15 Introdução O presente estudo tem como objeto a Companhia de Aprendizes Marinheiros instalada na província do Maranhão, e sua política institucional de alistar órfãos, meninos de famílias pobres e/ou em situação considerada de abandono para transformá-los em marinheiros, no período entre os anos de 1870 e 1900. O interesse por essa instituição foi despertado no final do curso de graduação, no momento da pesquisa para a monografia de conclusão do curso, quando pesquisávamos nos jornais acerca do controle social exercido sobre a população pobre no período próximo à abolição da escravatura1. As notícias do pega-pega de meninos pobres realizado pelo Corpo de Polícia para corrigi-los na instituição suscitou certa curiosidade. As noções que tínhamos acerca da história militar, entretanto, eram tão rudimentares que naquela ocasião ficamos sem saber o que estava em jogo por detrás daquela caçada de crianças. Anos depois, no mestrado, houve oportunidade para fabricar um sentido2 para aqueles incidentes e tentar compreender por que a Armada criou este sistema de alistamento militar infantil. Os estudos sobre história militar, interessados em construir uma história vista de baixo3 são uma preocupação recente no meio universitário, mas já apresentam resultados, como podem ser vistos na coletânea organizada por Hendrik Kraay, Celso Castro e Vitor Izecksohn, intitulada Nova História Militar Brasileira. Anteriormente, a história militar centrava-se, de maneira geral, nos debates sobre os estratagemas das campanhas militares4, na narração de batalhas5 e nas biografias de militares nacionais de alta patente6. 1 FREIRE, Tarantini Pereira. Histeria punitiva: conexões entre aparelhos repressivos do Estado e discurso jornalístico. Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2008. 2 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 3 THOMPSON, Edward P. A História vista de baixo In: NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (orgs.). E. P. Thompson: as peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001. p. 185202. 4 A exemplo de BURTON, Richard Francis. Cartas dos campos de batalha do Paraguai. Tradução de José Lívio Dantas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1997. 5 Como podemos ver, entre outros, nas seguintes obras: CARNEIRO, David. História da Guerra Cisplatina. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946, DONATO, Hernâni. Dicionário das Batalhas Brasileiras. São Paulo: Editora Ibrasa, 1987, CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da campanha do Paraguai, 1865-1870. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército Editora, 1980. 6 Ver entre tantos, CARVALHO, Affonso de. Caxias. 3ª ed. Rio de Janeiro, Bibliex Editora, 1991; MORAES, Eugenio Vilhena de. O Duque de Ferro: novos aspectos da figura de Caxias. Org. Guilherme Andre de Frota e Luiz Paulo Macedo Carvalho. Rio de Janeiro, Bibliex Editora, 2003.; 16 Até 1960, um dos poucos trabalhos que destoavam da tendência em vigor foi a História Militar do Brasil7, de Nelson Werneck Sodré. Nesta obra, o general de orientação marxista, expõe a trajetória dos aparatos militares desde a Colônia, apresentando aspectos não trabalhados pela historiografia militar tradicional, principalmente os relativos às estruturas de poder existentes no campo militar. Em sua obra, porém, os soldados quase não são mencionados, os poucos que estão presentes na narrativa são militares de alta patente; os subalternos, quando aparecem, são representados como massa homogênea, desprovidos de trajetórias e historicidade próprias. Com os novos estudos, o cotidiano dos soldados rasos, suas relações com superiores hierárquicos e com a sociedade civil, as resistências ao recrutamento, suas práticas culturais tornaram-se objetos de estudo de inúmeros pesquisadores. A influência da história social, e sua inerente interdisciplinaridade, fizeram com que a intitulada Nova História Militar se detivesse nas questões da ação humana na história. Os estudos possuem, agora, recortes temporais mais curtos e mais regionalizados, mas não perdem de vista as questões relativas à política e estruturas de poder mais amplas. Segundo os organizadores da coletânea supracitada, a inspiração para essa nova forma de se escrever a história militar é oriunda daqueles historiadores sociais que se debruçam sobre as vivências de homens e mulheres comuns retirando-os da ―enorme condescendência da posteridade‖8. Porém, nessa coletânea apenas dois9, dentre os dezessete artigos, tratam da Marinha de Guerra, e somente um deles traz uma nota sobre as Companhias de Aprendizes Marinheiros10. Entretanto, as produções historiográficas sobre os aprendizes marinheiros foram aumentando e, atualmente, há teses e dissertações defendidas em vários programas de pós-graduação11, artigos12 e livros publicados13. 7 SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio: Paz e Terra, 1987, p. 13. 9 FONSECA, Paloma Siqueira. A presiganga e as punições da Marinha (1808-1831) e NASCIMENTO, Álvaro Pereira. Entre o convés e as ruas: vida de marinheiro e trabalho na Marinha de Guerra (1870 – 1910) In: Castro, Celso (org.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004 10 NASCIMENTO, Álvaro Pereira. 2004. p. 340 11 BARRETO NETO, Raul Coelho. Marujos de primeira viagem: os aprendizes-marinheiros da Bahia (1910-1945). Dissertação ( Mestrado em História)– Universidade Estadual da Bahia, Salvador. 2009; SILVA, Velôr Pereira Carpes da. A Escola de Aprendizes Marinheiros e as crianças desvalidas. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. 2002; LINS, Mônica Regina Ferreira. Viveiros de “homens do mar”: escolas de aprendizes-marinheiros e as 8 17 Segundo Nobert Elias, no século XVII, o recrutamento de crianças pobres na Inglaterra era uma prática corrente, utilizada para guarnecer navios. A arregimentação infantil era orientada pela noção de que apenas pessoas precocemente socializadas no campo naval dominariam as lides do mar. ―Recrutálos jovens‖ era um conhecido lema da antiga Marinha14. Os dirigentes da Marinha Imperial Brasileira certamente tinham isso em mente, pois promoveram desde os anos iniciais do Império o recrutamento de crianças pobres15. Tal prática cumpria o papel de guarnecer a Armada com mão de obra mais facilmente adaptável, por meio de uma socialização compulsória de crianças no campo marítimo militar. Concomitantemente às recomendações do ministério da Marinha, incentivando o alistamento de crianças, eram expedidas determinações proibindo o assentamento de indivíduos comprovadamente criminosos16 e sentenciados, que habitualmente eram enviados para cumprir pena na Marinha e no Exército17. experiências formativas na marinha militar do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2012; MACHADO, Gisele Terezinha. Escreveu, não leu, o pau comeu: a Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina (1889-1920). Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis; SILVA, Wandoberto Francisco da. Guerreiros do Mar: recrutamento e resistência de crianças em Pernambuco (1857-1870). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife. 2013. 12 MARQUES, Vera R. & PANDINI, S. Feios, sujos e malvados: os aprendizes Marinheiros no Paraná Oitocentista. Campinas: Revista Brasileira de História da Educação. Julho/dezembro, N. 8, 2004; CASTRO, Cesar Augusto. Navegar é preciso – a Escola de Aprendizes Marinheiros no Maranhão Império. In: Anais do Congresso Brasileiro de História da Educação. O ensino e a pesquisa em história da educação – São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; Aracaju: Universidade Tiradentes, 2008; MELLO, Saulo Álvaro de.: disciplina, violência, castigos e reações. Revista História em Reflexão: Vol. 4 n. 7 – UFGD - Dourados jan/jun 2010; SILVA, Rozenilda Maria de Castro. A Educação no Espaço Militar: uma abordagem. 2002. Disponível em: http://goo.gl/QrHq0w. Acesso: em 10 mar. 2013; LIMA, Solyane Silveira . 'Um meio de vida decente para os futuros dias': a Companhia de Aprendizes Marinheiros de Sergipe. In: Congresso Brasileiro de História da Educação, 2013, Cuiabá. VI Congresso Brasileiro de História da Educação. Cuiabá: Editora da UFMT, 2013. v. 1. 13 CASTRO, Reginaldo. Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piaui (1874-1915): história de uma instituição educativa. Teresina: EDUFPI, 2008; AQUINO, Dolores. Escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará: resgate histórico – criação e evolução. Fortaleza: [s.n.], 2000. 14 ELIAS, Norbert. Estudos sobre a gênese da profissão naval: cavalheiros e tarpaulins. Mana 7(1):, 2001, p. 92. 15 BRASIL. Coleção de leis do império. Aviso de 24 de outubro de 1823. 16 Ibid. Decisão de 22 de janeiro de 1823 e Decisão de 28 de julho de 1834.; O Aviso de 21 de novembro de 1833 ordenava que os Presidentes de Província enviassem as crianças pobres para ―os Arsenaes e Bordo dos Navios para aprenderem a ler e escrever, officios e marinhagem, ficando com praça de Grumetes‖ Cf. MATTOS, Raimundo José da Cunha. Repertorio da legislação militar, actualmente em vigor no Exercito e Armada do Imperio do Brazil, compilado e offerecido a S.M. o senhor D. Pedro II. Tomo terceiro. p. 41. 17 BEATTIE, Peter M.Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil, 1864-1945. Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 217. 18 Pelos decretos e avisos emitidos, percebemos que, por recomendar o afastamento de criminosos, os ministros queriam evitar que sujeitos indisciplinados e/ou avessos à militarização embarcassem nos navios da Armada. Com o recrutamento de crianças pobres, almejavam formar marinheiros militarizados, profissionalizados, promover o melhoramento do pessoal de bordo e tentar retirar o estigma18 que recaía sobre os recrutas, que eram tidos como rudes e indisciplinados. Mas foi apenas com a instituição das Companhias de Aprendizes Marinheiros que essas pretensões puderam ser materializadas. Criadas em 1840, tinham o objetivo de socializar meninos pobres no campo marítimo militar, onde receberiam instrução militar além do aprendizado das primeiras letras de matemática básica, noções de cartografia, além de aprenderem a doutrina cristã. Inicialmente, naquele mesmo ano, apenas uma Companhia foi constituída no Rio de Janeiro, que funcionou subordinada ao Corpo de Imperiais Marinheiros, repartição da Armada responsável pelo registro e posterior distribuição de marinheiros para as diversas províncias do Império. Posteriormente as Companhias foram se expandindo por outras províncias. Com essa política de alistamento de crianças pobres, o Império brasileiro teria seus navios tripulados majoritariamente por jovens que haviam crescido em uma escola militar, onde foram, em tese, previamente moldados e habituados desde cedo nas lides marítimas. A política de alistamento infantil da Armada tinha o objetivo de modernizar as práticas de seleção de novos membros, diminuindo inclusive a dependência da vergonhosa prática do recrutamento forçado. Com a atuação das Companhias de Aprendizes, o Império Brasileiro também livrar-se-ia, aos poucos, dos marujos estrangeiros contratados desde os anos iniciais, sendo possível então formar uma tropa totalmente nacionalizada. A historiografia sobre o recrutamento mostra que, desde os tempos coloniais19, a oposição popular ao serviço militar era grande e permaneceu no 18 O termo estigma será utilizado na perspectiva elaborada por Goffman, que o entende como um predicativo profundamente depreciativo atribuído a alguém ou a um grupo social específico. Cf. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1988. 19 PEREGALLI, Enrique. Recrutamento militar no Brasil colonial. Campinas: Editora da UNICAMP, 1986; SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 2001.;NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. ―Esses miseráveis delinquentes‖: desertores no Grão-Pará setecentista. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (Org.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004; NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. “A 19 Império Brasileiro. Servir no Exército20 ou na Marinha21 não fazia parte das expectativas da maior parte da população masculina; o baixo número de voluntários confirma a afirmação. Visando não depender tanto deste verdadeiro ―espantalho da população‖22, que era o recrutamento militar, foi que a Armada criou as Companhias de Aprendizes Marinheiros e, com ela, passou a fabricar seus próprios marinheiros. A pesquisa inicia-se em 1870, período marcado principalmente pelo término da Guerra do Paraguai, período marcado principalmente pela modernização da esquadra brasileira e dos equipamentos de bordo e pelos debates acerca da reforma no recrutamento. O processo de renovação da esquadra culminou no abandono gradativo dos veleiros, considerados ultrapassados se comparados aos modernos encouraçados e sua moderna artilharia. O objetivo do trabalho é, portanto, apontar os paradoxos de um tempo em que os navios e armamentos da Armada Brasileira eram considerados os melhores entre os então existentes, porém manipulados por indivíduos sem treinamento e ainda oriundos do ―mundo da desordem‖. O projeto de nacionalização dos marinheiros obteve sucesso; entretanto, havia problemas maiores a ser resolvidos pela Marinha, principalmente os relativos à soldadesca desenfreada”: politização militar no Grão-Pará da Era da Independência (1790-1850). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2009. 20 BEATTIE, Peter. ―The house, the street, and the barracks: reform and honorable masculine social space in Brazil, 1864-1945‖, in: The Hispanic American Historical Review, vol. 76, n. 3, agosto de 1996; MENDES, Fábio Faria. O tributo de sangue: recrutamento militar e construção do Estado no Brasil Imperial. Tese (Doutorado em Ciência Política), Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 1997; KRAAY, Hendrik. Repensando o recrutamento militar no Brasil imperial. Diálogos, Vol. 3, Nº 1 (1999). Disponível em: http://goo.gl/b1Kh4w. Acesso em: 07 mai. 2013; MENDES, Fábio Faria. Encargos, privilégios e direitos: o recrutamento militar no Brasil nos séculos XVIII e XIX. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004; FARIA, Regina Helena Martins de. Em nome da ordem: a constituição de aparatos policiais no universo luso-brasileiro (Séculos XVIII e XIX). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife. 2007; BEATTIE, Peter M.Tributo de sangue: exército, honra, raça e nação no Brasil, 1864-1945. Trad. Fábio Duarte Joly. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009; MENDES, Fábio Faria. Recrutamento militar e construção do Estado no Brasil Imperial. Belo Horizonte: Argumentum, 2010. 21 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do Convés ao Porto: a experiência dos marinheiros e a revolta de 1910. Departamento de História. Tese (Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2002; NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008; SILVA, Rosângela Maria da. De um Império a Outro: Portugal e Brasil, disciplina, recrutamento e legislação nas Armadas Imperiais (1790-1883). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2008; BANDEIRA, Fabiana Martins. Disciplinando homens, fabricando marinheiros: Relações de poder no enquadramento social da Corte (1870-1888). PPGH/UNIRIO. Rio de Janeiro. 2010; JEHA, Silvana Cassab. A galera heterogênea: naturalidade, trajetória e cultura dos recrutas e marinheiros da armada nacional e imperial do Brasil , c. 1822-c. 1854. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica - Rio de Janeiro, 2011; ANTUNES, Edna Fernandes. Marinheiros para o Brasil: o recrutamento para a Marinha de Guerra Imperial (1822-1870). Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2011. 22 PRADO JÚNIOR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 318. 20 alfabetização e profissionalização da tropa. A pesquisa finaliza-se em 1900, quinze anos depois da reestruturação sofrida pelas Companhias em 1885, que passaram a ser denominadas de Escolas de Aprendizes Marinheiros. Procuramos cobrir quinze anos antes e quinze depois dessa reestruturação para buscar indícios de mudanças e de permanências na legislação e no cotidiano dos aprendizes. Apesar de a Companhia de Aprendizes Marinheiros do Maranhão ter sido instituída em 1861, no Arquivo Público do Estado do Maranhão – APEM, só há ofícios regulares dos comandantes da instituição a partir de 1885, depois da reestruturação. Apesar das grandes lacunas que essa série documental apresenta, nesses ofícios foram encontrados indícios do funcionamento e das contradições existentes na instituição, levando inclusive a direcionamentos importantes e ao cruzamento com outras séries documentais. Os ofícios enviados pelo Capitão do Porto à Presidência da província também foram utilizados, visto que a Companhia de Aprendizes ficava aquartelada no mesmo edifício e o seu comandante era subordinado daquela autoridade, até o ano de 1876. Até então, as Companhias tinham, como comandantes, oficiais da Armada exclusivos para a função. Nesse ano, o ministro Luiz António Pereira Franco propôs, como medida de contenção de gastos, que as Companhias fossem dirigidas pelos Capitães de Porto ―sem aumento de vencimentos, como por diversas vezes se tem praticado, não padecendo o serviço‖23. Isso justifica o trato das questões do funcionamento da Companhia de Aprendizes ser feito pelo capitão do porto antes mesmo de este estar acumulando as funções. Nos livros Minutas da correspondência do presidente da província com autoridades da Marinha, encontramos indícios de conflitos provocados por policiais, que, ilegalmente, alistavam muitas crianças, gerando inúmeras reclamações de familiares e demais protetores que reivindicavam o desligamento deles. Para desenvolver esse estudo sobre a política de alistamento, profissionalização e militarização de crianças realizada pela Armada, não foi possível abrir mão de conhecer como se deu o processo de formação da força naval brasileira. Com base em historiografia específica no primeiro capitulo, buscamos apresentar como era e como estava aparelhada a primeira esquadra nacional. 23 BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha, 1876-2, p. 5. 21 O segundo capítulo tenta fazer uma aproximação do que era ser um marinheiros na Armada naquele período. Nele serão debatidas as reformas burocráticas pelas quais passaram suas instituições, mostrar a que código disciplinar estavam submetidos os marujos, evidenciando principalmente as especificidades deste, quando comparado aos de outros aparatos militares no mesmo período. Entender quem eram, e saber como e por que esses marinheiros chegavam à Armada, é importante para compreender quais problemas a instituição da Companhia de Aprendizes Marinheiros visava sanar. É por isso que no terceiro capítulo será feito um debate sobre as políticas de profissionalização das tropas da Marinha, com a instituição das Companhias de Aprendizes Marinheiros. O objetivo será discutir a política de modernização das tropas da Armada, especificamente no que tange ao alistamento de crianças para fins de militarização. O foco do capítulo é mostrar a consonância desse projeto da Marinha com outros projetos semelhantes, existentes à época, que visavam formar um novo perfil de trabalhador, além de resolver problemas de criminalidade, principalmente a infantil. No quarto e último capítulo, após termos identificado os problemas e medidas tomadas pelos dirigentes da Marinha para resolvê-los, observar-se-á as especificidades do funcionamento da Companhia de Aprendizes Marinheiros do Maranhão. Será feita uma aproximação do cotidiano dos aprendizes maranhenses, mostrando os instrumentos de disciplinarização presentes nos Regulamentos, as resistências infantis, os conflitos com os familiares que tiveram seus filhos alistados em desconformidade com a lei, assim como discutir os limites e as contradições desse projeto político. 22 1. A construção da Marinha no Brasil Imperial Os historiadores que se dedicam à história da Marinha do Brasil consideram a transmigração da Família Real portuguesa para a América como marco de fundação dessa força militar, pois juntamente com a Corte foi estabelecida uma estrutura burocrática, civil e militar, e, em 1815, o Brasil assumiu a condição de Reino, unido a Portugal e Algarves24. A mudança de status dos domínios portugueses na América e sua consequente independência política estiveram vinculadas a um conjunto de mudanças que, desde meados do Setecentos, no processo de decadência das bases ideológicas das monarquias vigentes, atingiu todo o mundo atlântico de maneira tormentosa e fecunda25. A Independência do Brasil, portanto, pode ser caracterizada como um elemento inserido num processo mais amplo, e cuja consolidação dependia ―da capacidade do novo Estado imperial de congregar as elites estabelecidas no Brasil e representar eficazmente os seus interesses no cenário internacional‖26. Segundo Emilia Viotti da Costa, o Império Brasileiro resultou da intenção das elites coloniais de constituírem a unidade territorial, ―mas isso não por questões de nacionalismo e, sim, pela necessidade de manter o território íntegro, a fim de assegurar a sobrevivência e a consolidação da Independência‖27. Some-se a isso a urgência das elites em manter a estrutura de produção escravista e, ao mesmo tempo, preservar a liberdade de comércio aos moldes liberais. Na Europa, o liberalismo caracterizou-se principalmente por ser uma ideologia burguesa voltada contra o aparato institucional do Antigo Regime, visando derrubar 24 Não custa lembrar que são poucos os trabalhos produzidos por historiadores acadêmicos sobre a Marinha de Guerra, isto fez com que os cronistas e historiadores militares tivessem o predomínio da escrita sobre a temática.Dentre todos, destacamos: MAIA, João do Prado. A Marinha de Guerra do Brasil na colônia e no Império (tentativa de reconstituição histórica). Rio de Janeiro: José Olympio, 1965; CAMINHA, Herick Marques. História administrativa do Brasil: organização e administração do ministério da Marinha no Império. Rio de Janeiro: Fundação Centro de Formação do Servidor Público; Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1986; VIDIGAL, Armando A. Ferreira. A evolução do pensamento estratégico naval brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985; SIMÕES DE PAULA, Eurípedes. A Marinha. In: HOLANDA, Sérgio Buarque (Dir.). História geral da civilização brasileira: O Brasil monárquico. 5 ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 1995, t.2 v.4; GREENHALGH, Juvenal. O arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na história: 1822-1889. Rio de Janeiro: IBGE, 1965 25 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês, Rio de Janeiro, Ed. UERJ/Contraponto, 1999. 26 MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (18081912). São Paulo: Editora da UNESP/Moderna, 1997, p. 84. 27 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia a República:momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense. 1999, p. 33. 23 os privilégios da nobreza. No Brasil, as ideias liberais foram apropriadas de uma forma que mantivessem os privilégios das elites, pois estas, apesar de se empenharem em montar um Estado aos moldes liberais, não estavam, na apreciação de Emilia Viotti, dispostas a renunciar ao latifúndio ou à propriedade escrava. A escravidão constituiria o limite do liberalismo no Brasil, o qual significava apenas liquidação dos laços coloniais. Por isso o movimento de independência seria menos antimonárquico do que anticolonial, menos nacionalista do que antimetropolitano. Por isso também a ideia de separação completa de Portugal só se configurou claramente quando se revelou impossível manter a dualidade das Coroas e, ao mesmo tempo, preservar a liberdade de comércio28. De fato, somente quando uma revolução liberal iniciou-se na cidade do Porto, em 1820, e as Cortes portuguesas mostraram sua face recolonizadora foi que se deu o processo de ruptura, garantindo assim os interesses das elites coloniais. Nos anos iniciais do Império Brasileiro não foi percebido um sentimento de pertencimento a uma comunidade imaginada29 mais ampla. Depois da emancipação política do Brasil, as identidades percebidas no período possuíam conotações bastante regionalizadas, constituindo-se, portanto, em identidades fragmentárias. As pessoas sentiam-se primeiramente ―paulistas‖, ―pernambucanos‖, ―bahienses‖, ―filhos de Minas‖ ou, ainda, ―patriotas‖30. Mantendo os regionalismos, todas foram contribuindo, à sua maneira, para a formação de uma identidade nacional. O Maranhão participou desse processo distinguindo-se do conjunto pela construção simbólica de uma superioridade espiritual, ao definir-se como Athenas. Conforme José Henrique Borralho, a invenção da Athenas brasileira foi o recurso utilizado por essa província para participar do jogo da construção identitária nacional sem que, necessariamente, a herança de Portugal fosse relegada31. A Independência política teve um custo elevado e as dificuldades financeiras foram muitas. Os dirigentes do Império se depararam, para além de outras coisas, com a premência de fortalecer o Estado e a Marinha brasileira. Precisava-se 28 Ibid. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 30 JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo Garrido. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: Senac, 2000, p. 140 31 BORRALHO, José. Henrique de P.A Athenas Equinocial: a fundação de um Maranhão no império brasileiro. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro. 2009 p. 18. 29 24 naquela conjuntura de soldados comprometidos com a ―causa brasileira‖, o que de início foi problemático, pois até 1822, tanto os chefes, como seus oficiais e marinheiros continuaram a ser portugueses, obedecendo a uma dinastia portuguesa [...].Basta mencionar que os filhos do Brasil não eram aceitos na Marinhagem da esquadra e só lá um ou outro, bem apadrinhado, lograva admissão na academia de Marinha32. Por Decreto Imperial de 5 de dezembro de 182233, foi criada uma comissão para verificar a conduta e adesão à causa da independência dos militares portugueses da Marinha, residentes no Brasil naquele momento. Essa comissão, presidida por Luis da Cunha Moreira, que ocupava o cargo de ministro da Marinha, através de correspondência aos oficiais portugueses, indagou-lhes sobre a adesão ou não ao novo Estado Imperial, ofertando aos não aderentes e às suas famílias facilidade de transporte para Portugal. Preferiram voltar para a antiga metrópole apenas cinco capitães de mar e guerra, quatro capitães de fragata, sete capitães tenentes, nove primeiros tenentes, dois segundos tenentes, oito guardas-marinha e vinte aspirantes34; em contrapartida, permaneceram ao serviço do Brasil, além dos oficiais generais que estavam no país, nove capitães de mar e guerra, vinte e um capitães de fragata, dezoito capitães tenentes, quinze primeiros-tenentes, vinte e oito segundos-tenentes, a companhia de guardas-marinha e vários lentes da academia35. A primeira esquadra foi montada com a apreensão dos navios da Armada portuguesa e a aquisição de outros. Era necessário investir no conserto dos navios existentes, já que o número de embarcações era diminuto e o estado delas era precário. Segundo João do Prado Maia, a nau Martins de Freitas era a única em boas condições, a Príncipe Real estava desarmada e as demais absolutamente inaproveitáveis36. O esforço para o fortalecimento da Marinha de Guerra era tamanho que, em 1822, os políticos Gonçalves Ledo e Luiz Pereira da Nóbrega sugeriram a D. Pedro I que se fizesse um plano de organização da Armada. Para executá-lo, o governo lançou mão de uma prática muito comum, utilizada desde o governo joanino para 32 MAIA, João do Prado. 1965, p. 52. BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto de 5 de dezembro de 1822. 34 MAIA, João do Prado. 1965, p. 60. 35 O nome de todos estão disponíveis em: SILVA, Theotonio Meirelles da. Apontamentos para a historia da marinha de guerra brazileira. Rio de Janeiro: Typ. Perseverança, 1881-1883. 1881, p. 47. 36 MAIA, João do Prado. 1965, p. 54. 33 25 socorrer as finanças públicas, a subscrição. Recorreu a comerciantes37, assim como a outros segmentos da sociedade, e o valor arrecadado, segundo consta nas despesas do Império, foi de 32:93$000, em 1823. e de 72:126$470, em 182438. Figura 1: Nau Pedro I (ex- Martins de Freitas) Fonte: http://goo.gl/P6vgiu. Acesso em: 21 ago 2014. Em 1823, o Brasil possuía apenas quinze navios de guerra de grande porte, totalizando 382 peças39; em 1824, com as apreensões e compras foram adquiridos vinte e seis navios, com 620 peças, e sete outros estavam em construção em estaleiros brasileiros, ingleses e americanos40. Somada à preocupante situação do material flutuante, ainda havia a carência de tripulação para guarnecer os navios e quartéis. Objetivando resolver o grave 37 Emprestar somas ao Império foi uma estratégia muito utilizada pelas elites coloniais para conseguirem títulos de nobreza, cargos na burocracia, contratos lucrativos, favores de toda ordem, etc. que interessavam aos negociantes. Ver: SILVA, Maria Beatriz Nizza. Ser nobre na Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2005 e FRAGOSO, João L. Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. 38 CARREIRA, Liberato de Castro. História financeira e orçamentária do Império do Brazil desde a sua fundação, precedida de alguns apontamentos acerca da sua Independência. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1889, pp. 98 e 106. 39 No campo militar, o significado do termo peça é ―peça d‘artilharia‖ ou, ainda, ―canhão‖, logo se depreende que se trata de canhões de artilharia instalados nos navios, responsáveis pelo disparo de projéteis com alto poder de alcance e destruição no período. Cf. SILVA, A. Moraes. Diccionário da língua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro (Volume 2: L - Z)., 1755-1824 40 SILVA, Theotonio Meirelles da. 1881. p 104-108 26 problema de pessoal para tripular os navios de guerra, os dirigentes imperiais apropriaram-se de uma prática utilizada por diversos Estados nacionais para guarnecer forças militares da terra e mar: o temível recrutamento forçado41. Em Portugal, no período da expansão ultramarina, não fora muito diferente se comparado a outros países. O recrutamento da marujada deu-se entre populações camponesas, que pouco ou nada sabiam sobre as lides do mar. Foi comum também a Coroa recrutar mendigos, desocupados e sentenciados da Justiça, além de artífices, que eram escassos nos longínquos domínios portugueses. Charles Boxer afirma que os magistrados tinham ordens para sentenciar sumariamente pessoas ainda à espera de julgamento, sendo culpados de crimes relativamente menores, como vagabundagem, condenados a deportação para Mazagão [...]. Os que eram culpados de crimes mais sérios deviam ser deportados para o Maranhão, para o Brasil e para Cacjeu [...]. Este último local tinha então falta de ferreiros e de pedreiros e os magistrados deviam deportar para aí os artífices dessas profissões que pudessem encontrar entre os presos. [...] algumas semanas antes da partida anual dos navios de carreira, fossem enviadas circulares oficiais a todos os corregedores de comarca, lembrando- lhes que deviam capturar e prender criminosos potenciais e reais, antes de os condenarem à deportação para a Índia. ‗Vossa Excelência não só prenderá os indivíduos que vivem para o prejuízo e escândalo do bem comum, mas também aqueles que vivem na ociosidade‘, sendo todos os que fossem jovens e aptos condenados a servir como soldados42. De acordo com Luiz Geraldo Silva, foi a historiografia nacionalista portuguesa quem construiu a imagem de ser sua esquadra constituída ―de uma plêiade de bravos marujos, os quais pareciam, desde a formação do Reino no século XIII, predestinados à execução das lides marítimas‖43. Silenciou, portanto, sobre a aversão popular à vida marítima. Charles Boxer assinala, ainda, que o fato de o Reino de Portugal ter sido pioneiro nas expansões ultramarinas não significa que os portugueses fossem mais uma raça de marinheiros aventureiros do que uma raça de camponeses ligados à terra. Há três ou quatro séculos, a percentagem de indivíduos que saíam para o mar em barcos procurando a sua subsistência era certamente muito menor em Portugal do que nas regiões de Biscaia, da Bretanha, da Holanda Setentrional, da Inglaterra Meridional e de certas zonas do Báltico44. 41 LIJÓ, José Manuel Vázquez. La matrícula de mar y susrepercusiones em la Galícia delsiglo XVIII. Tese (Doutorado em História). Universidad de Santiago de Compostela, 2005. 42 BOXER, C. R. O império colonial português (1415-1825). Lisboa, Edições 70, 1981. p.347-348. 43 SILVA, Luiz Geraldo. Vicissitudes de um império oceânico: o recrutamento das gentes do mar na América portuguesa (séculos XVII e XVIII). Revista Navigator. n..5, 2007, p. 34. 44 BOXER, Charles R.1981, p. 35-36. 27 O apego destes à sua terra era tamanho que os poucos voluntários eram ―por necessidade ou por cupidez, raro por aventura, [partindo] por vezes sem esperança de regresso‖45. Diogo Azambuja, capitão-mor da Armada Portuguesa encarregado da construção da fortaleza de São Jorge da Mina, na África, reforça a crítica à constituição do marujo português, ao defini-lo como: homens andrajosos e malvestidos, que ficavam satisfeitos com qualquer coisa recebida em troca das mercadorias que traziam. Era a única razão de sua vinda àquelas regiões, e seu maior desejo era negociar rapidamente e voltar para casa, porque preferiam viver no próprio país a viver em terras estrangeiras46. Percebemos que depender do voluntarismo dos habitantes era uma coisa com a qual os dirigentes não podiam contar muito, tanto os da Coroa Portuguesa do período expansionista, quanto os brasileiros no início do Império. Assim como foi comum à Coroa Portuguesa utilizar-se de mendigos, presos e pessoas arroladas sob o epíteto de ―desocupado‖, os dirigentes nos anos iniciais do Império Brasileiro tiveram que se contentar com os marujos portugueses que estavam disponíveis, além de precisarem contratar estrangeiros para tripular a frota nacional. Mesmo assim, uma minoria de ―nacionais‖ e escravos, muitos deles libertos para esse fim, também tripularam os navios da Armada nos verdes anos do Império47. Apropriando-se das políticas de recrutamento do Império Português, D. Pedro I ordenou uma campanha de recrutamento, utilizando-se de sua ―imperial clemência‖, anistiando diversos criminosos para prestarem serviços ―à sagrada causa da Independência deste Império, sendo empregados quer como soldados de artilharia da Marinha do Rio de Janeiro, quer como marinheiros e grumetes a bordo dos navios da Armada Nacional e Imperial‖48. Thomas Alexander Cochrane foi quem primeiro comandou a esquadra brasileira após a Independência política de Portugal. Ocupou o posto de primeiro almirante da Armada, colocação criada única e exclusivamente para ele, que a exerceu entre 1823 e 1827, no período em que lutava para submeter as províncias resistentes ao poder do Rio de Janeiro. O almirante é representado pela 45 LOURENÇO, E. Mitologia da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.11. BOXER, Charles. 1981, p. 48. 47 JEHA, Silvana Cassab. 2011, p. 11. 48 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto de 21 de março de 1823. 46 28 historiografia nacional como mercenário, caçador de butim, policial naval, entre outros termos. O sociólogo Gilberto Freyre parece ser um dos poucos que lhe faz um relativo elogio, ao defini-lo como ―um aventureiro, no bom e no mau sentido, correndo riscos, servindo e, ao mesmo tempo, disputando proventos materiais‖49. Segundo Nélio Galsky, a fama de mercenário e de agente da repressão foi atribuída a ele e a outros oficiais britânicos que estiveram à frente das investidas da Marinha brasileira no Maranhão, no Grão-Pará e na repressão à Confederação do Equador. Esse autor parte do pressuposto de que os oficiais ingleses viram naquelas regiões uma possibilidade de conseguir várias presas de guerra, devido à presença de fortes grupos comerciais portugueses, principalmente em São Luís e Belém, que eram ligadas mais a Portugal do que ao Rio de Janeiro50. Cochrane veio para a América com parte da sua tripulação embarcada sob o disfarce de colonos, formada majoritariamente por americanos e ingleses51. Nas narrativas que ele fez dos serviços prestados ao Império do Brasil, além de uma minuciosa descrição do material flutuante que encontrou, tece considerações nada lisonjeiras sobre a tripulação existente nas esquadras. Deixou registrado que se tratavam de marinheiros de mui questionável qualidade – compondo-se da pior classe de portugueses, com quem a porção brasileira da gente mostrava evidente repugnância a misturar-se. [...] Queixavam-se os capitães das dificuldades com que tinham a lutar no tocante às tripulações, e particularmente de que os soldados de marinha eram tão fidalgos que se consideravam degradados com fazer a limpeza de seus próprios beliches, e tinham pedido e obtido moços para os servirem! ao mesmo tempo que não podiam ser castigados por faltas ou crimes se não por seus próprios oficiais!52. Continua sua narrativa mostrando o quão deteriorados estavam os navios, armamentos e suprimentos e, notadamente irritado, volta a tecer comentários sobre a tripulação dizendo que os soldados embarcados não sabiam sequer 49 FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. Aspectos sobre a vida e a paisagem e a cultura do Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks/ UniverCidade Editora, 2000, p. 70. 50 GALSKY, Nélio. Mercenários ou libertários: as motivações para o engajamento do Almirante Cochrane e seu grupo nas lutas da Independência do Brasil. Dissertação (Mestrado em História). 2006. Universidade Federal Fluminenese. Rio de Janeiro. p. 55-56. 51 MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: A crise política do Antigo Regime Português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (Doutorado em História) Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006, p. 165. 52 COCHRANE, Thomas Alexander. Narrativa de serviços no libertar-se o Brasil da dominação portuguesa. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 41-42. 29 o exercício de peça, nem de armas curtas, nem de espada, e todavia têm de si tão alta opinião que nem ajudam a lavar o convés, nem mesmo a limpeza de seus próprios beliches, mas estão sentados a olhar enquanto estes serviços são feitos pelos marinheiros; desta sorte sendo inúteis como soldados de marinha são uma carga aos marinheiros, que deviam estar aprendendo seu ofício no alto dos mastros, em vez de ser convertidos em varredores e alimpadores de lixo53. No início dos combates contra a província da Bahia, que resistiu ao domínio proveniente da Corte do Rio de Janeiro, o Almirante viu suas manobras de guerra embaraçadas por motins promovidos por portugueses tripulantes de outros navios do Império, que deveriam acompanhar a nau por ele tripulada, mas ficaram distantes, numa ação de sabotagem. Na própria nau Capitânia, um grave motim de portugueses trancou os paióis de munição, aprisionando os transportadores de cartuchos54. Após esses acontecimentos, imediatamente Cochrane solicitou a José Bonifácio, o então Ministro do Interior e dos Negócios Estrangeiros, o envio urgente de nova tripulação, sem a qual, segundo o almirante, poderia ―o resultado comprometer os interesses do Império‖. Essa nova tripulação exigida teria que ser composta de marinheiros ingleses e americanos, com os quais os oficiais ingleses, justificadamente, teriam melhores condições de comandar, sem a limitação da língua, e em quem depositariam maior confiança. No bloqueio ao porto de Salvador, no comando da nau Capitânia, exigiu que toda a tripulação estrangeira fosse transferida para essa embarcação, com a qual empreendeu o cerco à cidade. A primeira leva de marinheiros estrangeiros enviada para atender a solicitação do Almirante foi formada por um grupo de Liverpool, constituído por 125 praças e 6 oficiais. Após três dias, chegou um segundo grupo composto por 171 praças, que posteriormente foram distribuídos pelos navios utilizados nos combates contra a Bahia. Nos meses seguintes não paravam de chegar novos grupos, avolumando, assim, a guarnição nacional, com os quais a força naval enfrentou as juntas governativas opostas à declaração de independência. Em março de 1823, o engajamento de estrangeiros trouxera 12 oficiais e 250 praças; em abril, 102 praças e mais 2 oficiais; por fim, mais 148 homens, entre oficiais e praças55. 53 Idem, p. 56. MELLO, Alexandre e MELLO, Nilva. A Guerra da independência no Mar da Bahia. São Paulo: IHGB, 1974. 55 VALE, Brian. Marinheiros Ingleses na Marinha do Brasil (1822-1850). In: Revista Marítima Brasileira. Vol.119. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1999, p. 108-110 54 30 Houve, de fato, um grande investimento na contratação de estrangeiros; porém, a experiência não se mostrou muito proveitosa. Funcionou até certo ponto, pois assim como os portugueses, os estrangeiros contratados, particularmente os ingleses, mostravam-se pouco confiáveis, principalmente pelas inúmeras deserções56. Os gastos com a contratação a prêmio57 de marinheiros estrangeiros levaram as autoridades a lançar uma verdadeira caçada humana, dando lugar a recrutamento forçado e ilegal de marinheiros mercantes estrangeiros, fato este gerador de inúmeros conflitos diplomáticos58. O engajamento de mercenários ocasionaria desgastes políticos consideráveis ao imperador. Para saírem de seus países, a fim de prestarem serviço militar no Brasil, irlandeses e alemães vinham motivados pelas promessas vantajosas feitas por seus contratadores. O major alemão Jorge Antonio Schaeffer (Georg Anton Von Schäeffer), representante do Brasil para essa missão, ofertou aos seus compatriotas ―algumas vantagens como viagem paga, subsídio diário de cento e sessenta réis no primeiro ano e metade no segundo; cavalos, bois, ovelhas, etc., na proporção do número de pessoas de cada família; concessão imediata de cidadania brasileira, entre outras concessões‖59. Utilizando-se do mesmo expediente, o irlandês William Cotter, também a serviço do império brasileiro, conseguiu recrutar em torno de 2.400 a 2.600 camponeses irlandeses, todos sem treinamento militar algum60. Submetidos a maustratos, à falta de alimentação adequada, aos baixos soldos e aos castigos corporais, a insatisfação desses marujos estrangeiros ajudou a abalar a já instável política de D. Pedro I. Em 1828, um soldado alemão foi condenado a receber 220 chibatadas (ou pranchadas; há controvérsias nos indícios) a mando do coronel Luiz Dell‘ Hoste, 56 SILVA, Theotonio Meirelles da. 1881, p. 136. Os marinheiros contratados a prêmio tinha um tempo de serviço reduzido e possuíam maiores soldos, se comparado aos recrutados. Em 1835, o ministro da Marinha, José Pereira Pinto fez alusão aos marinheiros ingleses contratados para as lutas de 1824, contras as províncias resistentes à autoridade do Rio de Janeiro, lembrando que cada marinheiro, pelo contrato de apenas três anos custava R$ 124$892 ao Império brasileiro. Seus gastos custaram ao erário a quantia de R$ 53:828$725. Cf.BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha, 1835, p. 9-10. Esse montante representa 3,4% dos gastos de toda a repartição da Marinha, no ano de 1824. Cf. CARREIRA, Liberato de Castro. 1889. p. 106. 58 ANTUNES, Edna Fernandes, 2011, p. 50. 59 SILVA, Rosângela Maria da. 2008, p. 62. 60 As estratégias do coronel William Cotter em suas contratações na Irlanda são tratadas por POZO, Gilmar de Paiva dos Santos. Imigrantes irlandeses no Rio de Janeiro: cotidiano e revolta no primeiro reinado. Dissertação (Mestrado em História) . Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010, em especial o capítulo 3. 57 31 mas, antes que o castigo chegasse ao fim, soldados alemães e irlandeses se rebelaram e o libertaram. Assim, entre os dias 9 e 13 de junho daquele ano, a cidade do Rio de Janeiro vivenciou momentos de desordens, sendo saqueadas vendas e pilhados alojamentos de oficiais61. Para dominar o motim, D. Pedro I mobilizou a tropa nacional contra os batalhões estrangeiros62. Até a metade do século XIX, a situação era delicada para os dirigentes da Marinha de Guerra. As formas de provimento de soldados eram todas problemáticas: no recrutamento forçado havia a aversão popular, pois a prática de ocupar vagas, com sujeitos que estavam obrigados a servir, dificultava a garantia de disciplina; os estrangeiros contratados eram custosos e pouco confiáveis; aos escravos era, em tese, proibido pegar em armas em nome do Estado; caçar nos portos os marinheiros mercantes de outras nações foi um verdadeiro catalisador de conflitos diplomáticos e com os voluntários pouco se podia contar. Os dirigentes sabiam que eram necessários projetos para tornar o serviço na Marinha de Guerra mais atrativo, pois a experiência nos conflitos em torno da independência mostroulhes o quão impopular era o serviço militar marítimo. Mais adiante serão apontados alguns elementos que ajudarão a evidenciar tal aversão. 1.1 Soldados para o Império Brasileiro A partir das interpretações de Hendrik Kraay e Fabio Faria Mendes sobre o recrutamento, podemos compreender o funcionamento de uma das facetas do Estado brasileiro e perceber os valores de classe que norteavam os homens inseridos nesse aparelho do Estado63, arena crucial onde afloraram questões de justiça distributiva e formação de identidades sociais64. Para esses autores, a legislação responsável pelo recrutamento foi elaborada em consonância com as aspirações e interesses dos proprietários de terras e de escravos. A Constituição de 1824, em seu art. 145, estabelecia que ―todos os brasileiros são obrigados a pegar em armas para sustentar a independência e integridade do 61 Sobre as consequências ver POZO, Gilmar de Paiva dos Santos. 2010. Capitulo 5. ARIAS NETO, José Miguel. Em Busca da Cidadania: praças da armada nacional (1867-1910). Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo. São Paulo. 2001, p. 36. 63 KRAAY, Hendrik. 1999. 64 MENDES, Fábio Faria. Recrutamento militar e construção do Estado no Brasil Imperial. Belo Horizonte: Argumentum, 2010. 62 32 Império, e defendê-lo dos seus inimigos externos, ou internos65‖. Porém, as Instruções de 1822, principal norma jurídica norteadora do recrutamento militar durante o Império, já havia definido que ficavam ―sujeitos ao recrutamento todos os homens brancos solteiros, e ainda pardos libertos, de idade de 18 a 35 anos‖. O percentual de recrutáveis, se a lei se restringisse a esse artigo, seria grande. Porém, era na quantidade de isenções que residia o problema. Nestas Instruções, isentavam-se de pegar em armas nas tropas de 1ª linha [...] o homem casado; o irmão de órfãos que tivesse ao seu cargo a subsistência e educação deles; o filho único de lavrador ou um à sua escolha, quando houvesse mais de um, cultivando terras próprias, aforadas ou arrendadas; o filho único de viúvo; o feitor ou administrador de fazenda de plantação, criação ou olaria, com mais de seis escravos; os tropeiros, os boiadeiros, os mestres de ofício com loja aberta, pedreiros, carpinteiros, canteiros e pescadores, oito bolieiros em cada cocheira pública, dois nas casas particulares com mais de duas seges, um nas casas com até duas seges, uns que exercitem os seus ofícios efetivamente e tenham bom comportamento; os marinheiros, grumetes e moços embarcados ou de comércio de grosso trato e, finalmente, todos os estudantes que apresentem atestados dos respectivos professores, que certifiquem a sua aplicação e aproveitamento66. As Instruções de 1822 liberavam do serviço militar uma série de trabalhadores de ofícios socialmente reconhecidos, além daqueles que viviam em circunstâncias específicas (maridos e filhos de amas dos expostos, homens casados, irmãos mais velhos de órfãos, filhos únicos de viúvas, filhos únicos de lavradores). A lei deixava claro o intuito do governo em proteger àqueles que eram vistos como essenciais para a sociedade e a economia. No entendimento de Fabio Faria Mendes, uma das peculiaridades do aparato administrativo colonial conservado pelo Império foi a manutenção de práticas litúrgicas de administração. Estas se caracterizavam pela provisão de serviços administrativos por quaisquer tipos de serviços intermediários com seus próprios recursos. Liturgias implicam prestações administrativas não remuneradas e voluntárias por notáveis locais, 67 conformando uma modalidade de administração honorária . Dentre as prestações administrativas realizadas a título de liturgia pelos notáveis locais estava a de operar o recrutamento, ou de fazer o alistamento de voluntários, raros, porém existentes. Alguns autores chegam até a questionar a 65 BRASIL. Coleção de leis do império. Constituição Política do Império do Brazil. Ibid. Instrução de 10 de julho de 1822. 67 MENDES, Fábio Faria. 2010, p. 17. 66 33 espontaneidade dos recrutas, julgando que o cognome ―voluntário‖ escondia escravos que driblavam seus senhores em busca do abrigo da farda68, pobres livres que queriam servir em aparatos militares mais suportáveis69 e perto de suas famílias, visto que aos voluntários era dado o direito de escolher o local onde queriam servir. Autoridades policiais também ameaçavam pequenos delinquentes presos para se alistarem nas forças armadas, uma forma interessante de esvaziar prisões. Os agentes recrutadores eram, basicamente, os notáveis locais que exerciam cargos de juiz de paz, auxiliados por soldados da Guarda Nacional e inspetores de quarteirão; além das autoridades policiais. No caso do recrutamento para a Marinha de Guerra, além destes recrutadores ainda exerciam esse papel os Capitães dos Portos e os comandantes das estações ou dos navios, que eram militares de carreira, além de populares que viam na caçada de recrutas uma forma de aumentar a renda. O juiz de paz, cargo estabelecido constitucionalmente em 1824 e regulamentado pela Lei de 15 de outubro de 1827, era um magistrado não profissional, prestadores de serviços litúrgicos70. Era eleito pelos habitantes da paróquia para um mandato com duração delimitado por lei. Por ser um cargo eletivo, sua escolha era controlada pelas elites locais. Possuía as funções de conciliador, pacificador e guardião da ordem e da tranquilidade pública, reformador social, protetor do meio ambiente e primeiro elo da cadeia judiciária. Thomas Flory71 o encontra na Bahia e no Rio, entre 1827-1837, fazendo registros civis de nascimento e óbito, censos demográficos, estatísticas criminais, listas de aptos a votar, entre outras atividades que contribuíam para reduzir os ―horizontes de invisibilidade da 68 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Do cativeiro ao mar: escravos na Marinha de Guerra. Estudos Afro-asiáticos. Nº 38 Rio de Janeiro. 2000. Disponível em: http://goo.gl/KiH0li . Acesso em: 17 de junho de 2013. e KRAAY, Hendrik, 'O abrigo da farda': o Exército brasileiro e os escravos fugidos, 1800-1888, Afro Ásia, v. 17 1996, p. 27. Disponível em: http://goo.gl/JuWWSL. Acesso em: 17 de junho de 2013. 69 A gradação dos rigores disciplinares é apontada por: FARIA, Regina Helena Martins de; DUTRA, Edvaldo Dorneles. Alistamento voluntário para as forças militares. Maranhão, meados do século XIX. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH. São Paulo, Julho 201, p. 8. 70 Apenas os Juízes de Direito recebiam os ordenados, enquanto os Juízes de Paz recebiam apenas os emolumentos relativos os atos praticados. BRASIL. Coleção de leis do império. Lei de 29 de novembro de 1832. 71 FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado em el Brasil imperial. México: Fundo Del Cultura Econômica, 1986, p. 105. 34 população‖72. Além disso, conforme Regina Faria, era o juiz de paz o magistrado que estava mais próximo da população, pois recebia queixas variadas e denúncias sobre diversos delitos, situação que o deixava numa posição privilegiada para conhecer uma série de estratégias populares e as qualidades morais da população de sua freguesia73. Em 1831, esse juiz eletivo passa a ter a responsabilidade de selecionar os homens aptos a servirem na Guarda Nacional e os inspetores de quarteirão. Estes ficavam isentos de servir tanto na Guarda Nacional quanto nas tropas de linha, ficando numa posição de relativo conforto, levando-se em consideração o que significava a possibilidade de ser recrutado para o Exército ou Marinha. O juiz de paz, portanto, era detentor de capitais políticos fundamentais para realizar o recrutamento em sua freguesia, pois os possíveis recrutas eram por ele indicados. A Guarda Nacional, por sua vez, foi uma força armada criada em 1831, após a extinção das Milícias e Ordenanças, existentes desde os tempos coloniais. Formada por homens livres, prestadores de serviços litúrgicos, era encargo obrigatório para todos os cidadãos brasileiros entre 21 e 50 anos, desde que dispusessem de renda para ser eleitores. Segundo Jeanne Berrance de Castro, dos anos iniciais até o Segundo Reinado, a Guarda Nacional foi composta pelos estratos populares74 que a integraram em busca de prestígio social ou de proteção, tendo grande importância na estabilização da unidade nacional. Posteriormente, após a reforma de 1850, e até o final do Império, passou por uma aristocratização de sua oficialidade e se transformou em um recurso político utilizado pelas elites para ameaçar eleitores da oposição. A autora considera que há um problema pouco discutido na historiografia: a organização da Guarda Nacional como um instrumento não só de domínio político de classe, mas de exploração econômica das classes populares pela classe dos proprietários através do Estado. Aqueles que assumiam seus encargos na Guarda Nacional o faziam sem nenhuma remuneração e ainda tinham que comprar o próprio armamento. Eram poucas as ocasiões, reguladas por lei, em que seus membros recebiam 72 HESPANHA, Antônio Manoel. As Vésperas do Leviathan, apud MENDES, Fábio Faria. Op. cit. 2010, p. 159. 73 FARIA, Regina Helena Martins de. 2007 p. 70. 74 CASTRO, Jeanne Berrance de. A Guarda Nacional. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1962, t. 2, v.1, p. 281. 35 compensação financeira e armas, o que gerava prejuízos notórios aos guardas alistados. Martins Pena (1815-1848), em sua obra ―Juiz de Paz na Roça‖, com a licença artística que o ofício lhe permitiu, abordou o cotidiano e aspectos sociais, políticos e econômicos das pequenas localidades do interior no Brasil Imperial. Em uma das cenas da peça, percebemos a indignação provocada nos familiares pelas constantes obrigações com que os guardas nacionais se deparavam. A personagem Maria Rosa, esposa do lavrador e guarda nacional Manoel João, reclama das obrigações que o cônjuge devia ao Estado. Achava injusto que fosse obrigado ir ―à cidade somente para levar um preso! [e]. Perder assim um dia de trabalho‖, em vez de estar cuidando dos próprios negócios na lavoura. A esposa queixava-se de Manuel João estar todos os dias vestindo a farda. Ora pra levar presos, ora pra dar nos quilombos... É um nunca acabar‖75. Pertencer à Guarda Nacional criava certos entraves à vida dos cidadãos que dela faziam parte, pois, se de um lado proporcionava uma relativa proteção, em contrapartida podia representar um peso elevado. O simbolismo do vestir a farda evidenciava a ambivalência da situação que oscilava entre o orgulho de ser da Guarda Nacional e a exploração realizada pelos mandantes locais, situação que colocava o sujeito em confronto entre as exigências legais das prestações litúrgicas a que estava obrigado e as necessidades cotidianas, especialmente aquelas relativas à produção para sustento da família. Fabio Faria Mendes lembra também que vestir a farda da Guarda Nacional confundir-se-ia, pois, com as isenções ao recrutamento, representando o alistamento na Guarda, uma das estratégias de evasão mais comuns daqueles que porventura se encontrassem ‗nas circunstâncias das levas‘. Um dos maiores incentivos à entrada nos quadros da Guarda era oferecido pela imunização que representava em relação ao recrutamento. A Guarda Nacional representava, na verdade, uma gigantesca rede de proteção institucionalizada, indisponibilizando a população para fins militares76. Tal proteção desagradava, especialmente, a alguns ministros que comandavam o Ministério da Guerra. José Saturnino, ministro desta pasta em 1837, durante uma sessão na Câmara dos Deputados, lembra aos parlamentares que não se conseguem bons soldados, e em número suficiente, por que ―os homens aptos a 75 PENA, Martins. O juiz de paz na roça. Ministério da Cultura. Cena VI. Disponível em: http://goo.gl/6PZwo7 . Acesso em: 10 mai. 2013. 76 MENDES, Fábio Faria. 1997. p.196. 36 servir na tropa de linha acham-se alistados na Guarda Nacional, onde pode entrar todo o que tiver 200 mil-réis de renda, no que estão incluídos todos os cidadãos - o que resta são homens muito miseráveis, doentes, aleijados e velhos‖77, que dificilmente se encontravam nas circunstâncias de servir. O ministro culpava diretamente as Instruções de 1822 e seus excessos de proteção, principalmente a isenção dos guardas nacionais. O Corpo de Polícia era uma instituição bastante influente no recrutamento em todas as províncias, e eram responsáveis por levar muitos homens para as forças armadas. A população masculina pobre, livre e passível de ser recrutada, via no corpo de polícia a possibilidade de adentrar no infortúnio da caserna. O policial representava o poder de punir, de prender e, muitas vezes, de abusar da sociedade. Por isso, era uma posição muitas vezes mal vista entre os populares. ―A polícia era o grande terror daquela gente‖78, disse o romancista Aluísio Azevedo. Segundo Fabiana Bandeira, os confrontos entre morcegos (denominação dada aos policiais pelas classes populares) e marinheiros na Corte não representavam nenhuma novidade e animavam a troca de correspondência entre as autoridades responsáveis pelos respectivos Corpos militares. Esta autora considera que a maioria das hostilizações de marinheiros aos morcegos pode ser lida como uma espécie de resposta, um revide, por terem sido esses os responsáveis pelas agruras que aqueles viviam nos navios e quartéis79. Álvaro Nascimento lembra também que a captura de desertores era outra circunstância que devia revoltar muitos marinheiros. Os desertores iam para cidades do interior ou bairros distantes do centro da cidade, e mesmo assim os morcegos os seguiam e os capturavam com suas garras80. Tais rivalidades afloravam com muito mais intensidade nos poucos momentos de licença da marujada, quando ―saíam às ruas e sentiam a liberdade de não estar presos à disciplina e à hierarquia militar. Eles invadiam as ruas em busca de prazer, de alegria e do sexo‖ 81 , ou seja, eles faziam, e com muito estardalhaço, tudo o que os policiais tinham que coibir. 77 BRASIL. Diários da Câmara dos Deputados. Sessão de 20 de junho de 1837. p. 294. Disponível em: http://goo.gl/Qu1nhK. Acesso em: 10 fev. 2013. 78 AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. 21 ed. São Paulo: Ática, 1990, p. 88. 79 BANDEIRA, Fabiana Martins. 2010, p 157. 80 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A polícia e o porto: marinheiros, imigrantes e os consulados estrangeiros no Rio de Janeiro (1890-1920). Congresso La policía em perspectiva histórica: Argentina y Brasil (Del siglo XIX a La actualidad). 2008. Disponível em: http://goo.gl/mwWspR. Acesso em: 3 de jun. 2013. 81 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. 2008. 37 A historiografia sobre o recrutamento militar na América portuguesa aponta que, desde os tempos coloniais82, a oposição popular ao serviço de armas era grande. Shirley Nogueira, por exemplo, constata que no Grão-Pará setecentista os não eram obedientes e dóceis. Eles desenvolveram diversas estratégias para se livrar do serviço militar, visto que era incompatível com a situação social desses indivíduos, os quais eram na sua maioria pobres e lavradores. Em outras palavras, os recrutados possuíam pouco ou nenhum escravo, contando, geralmente, apenas com seus familiares para o trabalho na lavoura. Além disso, o deslocamento para outras localidades implicava no rompimento das suas relações familiares (não raro foram os casos de soldados desertores buscando refazer seus laços familiares)83. Porém, quando o retorno do soldado desertor para seu local de origem não era possível, ele também poderia ir atrás de riquezas na região das Minas Gerais ou na fronteira do Grão-Pará com o Maranhão, ou [...] simplesmente arribasse para outro lado dos limites do extremo norte do Brasil com as colônias da França, Espanha, Inglaterra, Holanda, e desaparecesse. Desde meados do século XVIII que desertores e escravos fugiam do Pará por Cametá, descendo o Tocantins até Goiás. Muitos soldados se dirigiam para Goiás em busca de ouro. Nessa área, havia pouca incidência militar, deixando aquela fronteira aberta84. O miserável soldo, como lembrara Kalina Silva, também era uma permanência dos tempos coloniais. Soldados a serviço da Coroa Portuguesa recebiam parte do pagamento que lhes era devido em gêneros alimentícios de uso contínuo, as etapi, etapes ou, simplesmente, etape. A autora percebe na intensa troca de ofícios entre as autoridades do Pernambuco colonial, que a composição alimentar da soldadesca era composta, basicamente, de bananas e farinha. Os soldados até que suportavam o atraso dos pagamentos por meses a fio, mas ficar sem farinha, não! Quando esta faltava, os riscos de motins eram bastante claros85. Os salários pagos às tropas de 1ª linha, tanto do Exército quanto da Marinha de Guerra, não eram nada sedutores. João Mauricio Wanderley, que ocupava o cargo de ministro da Marinha em 1855, em sua prestação de contas anual, lamenta a falta de voluntários para servir nos navios e quartéis da Armada, e aponta a ―paga 82 PEREGALLI, Enrique, 1986; SILVA, Kalina Vanderlei, 2001; FARIA, Regina Helena Martins de. 2007 e NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. 2004. 83 NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. 2009, p. 124. 84 Ibid, p. 125. 85 SILVA, Kalina Vanderlei. 2001, p. 162 e 174. 38 insuficiente comparada com a que oferece a Marinha Mercante‖86, como um dos principais motivos. E já havia se passado mais de trinta anos da surpresa de Cochrane diante do valor pago aos marinheiros a serviço da Marinha imperial - que recebiam somente ―oito mil-réis por mês, enquanto no serviço mercante dezoito milréis era o preço corrente para bons marinheiros‖87 -, o problema das baixas remunerações ainda permanecia. Segundo Fabio Faria Mendes, durante o Império foi dominante um modelo de relações sociais pautadas no clientelismo. Nestas relações, o poder dos notáveis locais se sobrepunha, em parte, às redes formais de poder, representadas pelo Estado, havendo um sistema de trocas, cujos principais elementos eram fidelidades, serviços e mercês88. A problemática capacidade de controle e imposição de vontades por parte do poder central e, simultaneamente, a dependência destes aos notáveis locais evidenciavam a limitação dos recursos humanos e materiais historicamente enfrentados pelo Império brasileiro em face do objetivo que buscava efetivar: formar um aparato militar forte, disciplinado ou, pelo menos, completo. Dessa forma, é infrutífera, para dizermos o mínimo, a tentativa de compreender a lógica do recrutamento militar sem conhecer os valores políticos que orientavam aquela sociedade. Richard Graham defende que, no Brasil Imperial, as diretrizes políticoadministrativas eram estabelecidas tendo em vista uma união entre a elite central e os chefes locais. O governo central apadrinhava os chefes locais e, com isso, estabelecia-se uma serie de obrigações e benesses mútuas. Esse modelo de relação política consolidava vínculos entre as esferas pública e privada, uma vez que o próprio Império brasileiro dependia do uso de recursos privados para o funcionamento da administração central. A proposição de Graham segue o sentido de desmistificar a noção de que o Estado Imperial, mesmo tendo optado pela forte centralização desde o Regresso Conservador89, pudesse controlar, sem concessões, os chefes políticos locais mais distantes dos centros de poder e, ao 86 BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha, 1855, p.6. COCHRANE, Thomas Alexander. 2003, p. 41. 88 FARIA, Fábio Mendes. A economia moral do recrutamento militar no império brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 13, n. 13, out. 1998. Disponível em: http://goo.gl/8Le68R. Acesso em: 31 jan. 2006. 89 O chamado Regresso Conservador aconteceu entre fins do período regencial e começo do segundo reinado, quando os conservadores elaboraram medidas que visavam reforçar a autoridade monárquica e a centralização político-administrativa, para assim evitar agitações semelhantes às ocorridas no período regencial. 87 39 mesmo tempo, conseguisse responsabilizar-se pelo equilíbrio das forças em luta nos diferentes espaços ocupados pela sociedade escravista90. No meio dessas relações de força entre patrões locais e dirigentes imperiais, a população pobre livre procurava se proteger, inserindo-se em redes clientelares. Segundo Regina Faria, caso as Instruções de 1822 fossem seguidas à risca, só cairia na malha recrutadora aqueles homens classificados como vadios e mendigos. A autora também chama a atenção para a hermenêutica particular dada às normas imperiais pelas elites locais, que transformaram o recrutamento militar numa arma contra opositores e desafetos, utilizada nas disputas partidárias e nas desavenças pessoais91. Peter Beattie também sugere que o tipo de alistamento escolhido serviria como uma forma rápida e eficiente de limpeza social e manutenção da paz local. Essa questão será retomada posteriormente; antes, serão analisados os agentes responsáveis pelo recrutamento. Conforme Roberto Saba92, caso alguém ousasse desafiar a preponderância do chefe local e apoiasse outro candidato sofreria sanções, devido à influência daquele sobre as autoridades que controlavam a mesa paroquial (párocos, juízes de paz, vereadores); quando não, a violência direta resolvia a questão. O uso do recrutamento militar como arma política foi utilizado tanto antes, com o intuito de ameaçar os eleitores e suas famílias, como depois de realizadas as eleições, momento em que se descobria a cor política dos indivíduos93. Isso ocorria à revelia da legislação que proibia o recrutamento 60 dias antes e 30 dias depois das eleições94. A vitória eleitoral sempre dependia do uso das redes clientelares. Assim, estas se sobrepunham aos esforços de organização da burocracia imperial. Por esse motivo, segundo Graham, as elites ―gastavam a maior parte de sua energia na formação de redes de clientelismo, ampliando seu séquito ou encontrando um protetor poderoso para suas fortunas políticas95‖. 90 GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro. Editora UFRJ, 1997, p. 22. 91 FARIA, Regina Helena Martins de. 2007, p. 113. 92 SABA, Roberto. As ―eleições do cacete‖ e o problema da manipulação eleitoral no Brasil monárquico. Almanack n.2, nov. 2011. Acesso em: 18 Jun. 2013. Disponível em: http://goo.gl/N61MR1 . 93 MOURA, Denise. A farda do tendeiro: cotidiano e recrutamento no Império. Revista de Historia Regional v. 4, n. 1, verão 1999. 94 BRASIL. Coleção de leis do império. Lei 387 de 19 de agosto de 1846. Art. 108. 95 GRAHAM, Richard. 1997. p. 22. 40 O recrutamento era, portanto, um componente das relações clientelares, o que dificultava a sua realização, porque implicava na ruptura da proteção fornecida pelos grandes proprietários. Evidenciadas, especialmente, durante a mobilização de homens para a Guerra do Paraguai, na qual estas relações existentes nas localidades e a ruptura de muitas delas exibiam os limites de atuação do poder central, a relativa autonomia das localidades e o poderio de notáveis locais. Em geral, os recrutáveis eram, basicamente, aqueles indivíduos que se ocupavam de atividades transitórias, denominados na historiografia brasileira de ―desclassificados‖96, fortalecendo a ideia de que quartéis e navios de guerra não eram locais apropriados para pessoas honradas, cidadãs, proprietárias e trabalhadoras97. Para lá deveriam ser enviados os indivíduos que representavam um ônus social, os considerados improdutivos e que, por isso, seriam os contribuintes do “tributo de sangue”. Nas formulações elaboradas pelos letrados maranhenses, estes representavam as pessoas sem ocupação, como sujeitos inúteis e perigosos. Com a crise do escravismo, segundo Regina Faria, os pobres livres ganharam maior visibilidade e passaram a ser representados também como onerosos, transformando-se em um problema a ser resolvido com medidas severas e urgentes. Dentre estes letrados estava o coronel do Exército Miguel Vieira Ferreira, que propunha alternativas para quebrar a aversão ao trabalho por meio da inserção desses sujeitos em instituições profissionalizantes e, quando isso não fosse possível, recorrer-se-ia à coerção. As leis idealizadas por Ferreira pautavam-se em três pontos principais: 1º) todo indivíduo acima de uma determinada idade (14 anos, por exemplo) que não tivesse uma propriedade de certo valor, a qual lhe assegurasse renda suficiente para uma ―subsistência honesta‖ (sugere 500$000), era obrigado a trabalho a jornal; 2º) cada indivíduo nessa condição teria um livrete, no qual deviam ser registrados seus contratos de trabalho, funcionando como instrumento de controle de quem estava ou não trabalhando e se estava tendo bom comportamento; 3º) quem não se adequasse seria recolhido a prisões com trabalho ou assentaria praça no Exército98. 96 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Martins Ed., 1942. p. 279 97 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. 2008, p. 88. 98 FARIA, Regina Helena Martins de. Mundos do trabalho no Maranhão oitocentista: os descaminhos da liberdade. São Luís: EDUFMA, 2012, p. 236. 41 Tendo ou não sucesso, é o cerne dessa proposta que se assemelha ao teor das Instruções de 1822. O desejo de transformar em trabalhadores morigerados, todos os que não se ocupassem em atividades regulares e socialmente reconhecidas, animava os debates políticos. E a elaboração de propostas, que constrangessem a população pobre e livre ao trabalho, era feita tanto por civis quanto por militares. José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão de Rio Branco, por exemplo, quando ocupava o ministério da Guerra, em meados de 1870, afirmara que o recrutamento tem salvado da ociosidade e suas perigosas tendências a muitos indivíduos que, vivendo inutilmente para a sociedade, encontrarão nas instituições militares pronto corretivo ás suas faltas, e debaixo de severa vigilância reformarão os seus hábitos, ao passo que receberão instrução e preparar-se-ão para ser melhores cidadãos99. Para o ministro, os quartéis seriam um ótimo lugar para aproveitar tais indivíduos. Mas a ojeriza ao serviço militar era tamanha que os homens pobres livres resistiam de muitas formas ao recrutamento. O delegado de Itapecuru-Mirim, na província do Maranhão, explicando-se por não ter enviado recrutas para a capital, São Luís, diz que assim procedeu ―não por falta de empenho e, sim, por que a população recrutável prefere viver embrenhada nas matas a assentar praça e ser cidadãos úteis ao país‖100. O temor em ser recrutado suscitava a necessidade de desenvolver estratégias de fuga. Quando não possuíam as isenções a seu favor, nem a proteção de um grande proprietário local, muitos homens refugiavam-se nas matas. Tal prática ficou cristalizada na memória popular por meio do ditado ―Deus é grande, mas o mato ainda maior!‖ 101 . Outra referência possível de estratégia é a citada na peça ―Juiz de paz na Roça‖, na qual o personagem José, quando foi ―preso para recrutamento‖, fugiu de onde estava encarcerado e casou-se escondido e às pressas com Aninha, filha do guarda nacional Manoel João, para se livrar do quartel. O viajante Henry Koster registra o caso de um rapaz, no Recife, 99 BRASIL. Relatório do Ministério da Guerra. 1871-1, p. 4. MARANHÃO. Secretaria de Polícia (Correspondência). Delegados de Polícia de vários municípios / Chefe De Policia da província do Maranhão. Cx. 156, 1843. Delegado de Itapecuru-Mirim, 12 de janeiro 1843. Setor de avulsos. APEM. 101 TAUNAY, Alfredo d‘Escragnolle. Memórias. Ed. Iluminuras. 2004, p. 181 100 42 levado à presença de um capitão-mor, que lhe propôs a alternativa de casar com uma moça que ele jamais vira, e que estava aos cuidados da família privilegiada, ou tornar-se soldado. Ele preferiu essa última proposta. Foi enviado ao Recife e alistado 102. As duas passagens são ilustrativas, cada uma à sua maneira, por representar o reconhecimento das isenções das Instruções de 1822, pois legalmente, homens casados eram isentados do serviço de armas e,cientes disso, muitos apressavam ou arrumavam matrimônios. Dentro dos padrões preconizados pelos grupos dominantes, a vida familiar era vista como indício de morigeração, disciplina e obediência, atributos essenciais ao bom trabalhador. Segundo Peter Beattie, os sujeitos que violassem os votos de casamento feitos ou atentassem contra a virgindade alheia ―arriscavam os liames sociais básicos e o fundamento do status. Como punição, oficiais frequentemente enviavam vadios, defloradores e homens que abandonavam suas esposas para servir como praças no Exército‖ 103 ou na Marinha de Guerra. Foi o que aconteceu com Raimundo da Silva e Pedro Franco. Ambos moradores de Viana, no interior da província do Maranhão, ultrapassaram as barreiras do comportamento moralmente aceitável e foram recrutados. Raimundo foi acusado de desabonar a honra de sua sobrinha de apenas 11 anos, deflorando-a, e Pedro Franco, que era casado, abandonou a mulher e passava os dias a viver em ―escandaloso concubinato‖104, segundo o delegado. O sistema de recrutamento era tolerado por beneficiar ministros ávidos por recrutas; autoridades policiais que enxergavam nele uma forma de se livrar de vadios conhecidos e criminosos perigosos; notáveis locais que se utilizaram do seu poder para proteger sua clientela do serviço militar nas tropas de linha; homens pobres ―honrados‖ que ficavam contentes ao ver o ―tributo de sangue‖ recair sobre quem era considerado vadio e desordeiro105. 102 KOSTER, Henry. Viagem ao Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1942, p. 299. 103 BEATTIE, Peter. ―The house, the street, and the barracks: reform and honorable masculine social space in Brazil, 1864-1945‖, The Hispanic American Historical Review, vol. 76, n. 3, ago. 1996, p. 441. 104 MARANHÃO. Secretaria de Polícia (Correspondência). Delegados de Polícia de vários municípios / Chefe De Policia Da Província do Maranhão. 1843. Delegado de Viana, 26 de fevereiro de 1843. Setor de avulsos. APEM. 105 O uso do serviço militar como instrumento de distinção entre os pobres foi mostrado por MEZNAR, Joan E. 1992. The ranks of the poor: military service and social differentiation in Northeast Brazil, 1830-1875‖. The Hispanic American Historical Review, vol. 72, nº 3. 43 Apesar de ter como objetivo primário guarnecer as forças armadas com soldados, o recrutamento recebia uma ―tradução local‖ pelos responsáveis por realizá-lo, para servir de instrumento punitivo, de correção e de controle social. Os quartéis do Exército e os navios da Marinha eram utilizados como locais de correção para onde milhares de indivíduos indesejáveis foram enviados. Peter Beattie afirma que as forças armadas teriam funcionado também como instituições protopenais, em uma clara prática de longa duração que remonta aos tempos coloniais, quando o envio de pequenos criminosos e vadios para as instituições militares resolvia alguns problemas locais, pois serviram como uma válvula de escape parcial para prisões civis superlotadas ao incorporar infratores e os ―criminalmente‖ ociosos.[...] O recrutamento forçado diminuía os custos de julgamento e aliviava pressões pela construção de novas e caras prisões. Os oficiais locais então deslocavam os custos de controle social e ―reabilitação‖ para o Estado central106. O autor acrescenta ainda que, por mais absurdo que seja, comparado com as condições das prisões, o serviço militar provavelmente oferecia condições relativamente melhores. O recrutamento era, portanto, um importante recurso da polícia no controle social nos núcleos urbanos e nas zonas rurais no século XIX, principalmente em sua primeira metade. Em lugar de se construir presídios ou abarrotar delegacias de polícia com presos, era preferível enviar esses homens e até crianças indesejáveis para as Forças Armadas. Essa prática foi observada na Bahia, onde mendigos, moleques e vadios eram constantemente remetidos para as Forças Armadas. De acordo com Walter Fraga Filho, as autoridades de Salvador muitas vezes não tinham como garantir a reclusão dos presos que lhes eram enviados das zonas rurais, ficando essa situação incontrolável em épocas de instabilidade política, crises na lavoura ou de movimentos sociais diversos. Uma saída sempre lembrada pelas autoridades era enviar menores para a Companhia de Aprendizes Marinheiros daquela província, e os maiores para o Exército, ou embarcá-los no primeiro navio da Armada que ancorasse no porto de Salvador. Tais procedimentos foram realizados diversas vezes e, com isso, as autoridades conseguiram ―esvaziar a cidade de um problema 106 BEATTIE, Peter. 2009, p. 217. 44 que se avolumava a cada ano‖, ao mesmo tempo em que confiava na ―disciplina militar [...] como meio de correção de menores vadios e delinquentes‖107. Na conjuntura das revoltas regenciais, na primeira metade do século XIX, muitos rebeldes de províncias em agitação foram enviados como recrutas para combater em revoltas alhures. Durante, e mesmo depois de terminada a Balaiada, os agentes envolvidos no conflito, que não foram presos, mortos, anistiados ou deportados, foram entregues para as Forças Armadas. A prática de desterritorializar rebeldes e indesejáveis sociais foi bastante elogiada por Antonio de Miranda, então presidente de província do Maranhão, que assim se manifestou a respeito: ―Não podeis deixar de reconhecer, que este procedimento do Governo constitui, sem a menor duvida, um dos recursos indispensáveis à paz do Maranhão, além de contribuir para o sossego do sul‖108. Da relação de revoltosos anistiados e deportados para outras províncias constam personagens conhecidos da historiografia maranhense, tais como: Raimundo Gomes Vieira Jutahy, considerado o desencadeador da Balaiada ao invadir a cadeia da Vila da Manga para libertar seu irmão e outros vaqueiros que estavam presos, em 12 de dezembro de 1838, além de ser ele o emissor de vários manifestos contra autoridades109; João da Matta Coelho Castelo Branco, outro partícipe ativo do movimento nos momentos iniciais; e, por último, o índio Graciano de Souza Gavião. Esse fora descrito como um dos ―rebeldes que maiores atentados cometeu‖, antes de ser enviado como soldado para o Rio Grande do Sul. Quando chegou àquela província, o oficial que o recebeu fora alertado de que, na remessa de novos recrutas, alguns haviam se ―sobressaído por diferentes atrocidades praticadas‖ no Maranhão110. Hendrik Kraay111 e Dilton Araújo112 perceberam prática semelhante na Bahia pós-Sabinada, quando o Governo se utilizou desse recurso para despachar rebeldes 107 FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo/ Salvador: Hucitec/ Edufba, 1996, p. 128. 108 MARANHÃO. Presidência da província. Discurso recitado pelo exmº srº doutor João Antonio de Miranda, presidente da província, na abertura da assembléia legislativa provincial no dia 3 de julho de 1841. Maranhão: Tipografia Monárquica Const., 1841, p. 7. 109 Para verificar vários manifestos e correspondências trocadas entre autoridades e manifestantes conferir o catálogo organizado especificamente sobre a Balaiada por ARAÚJO, Maria Raimunda. (Org.). Documentos para a história da Balaiada. São Luís: Edições FUNCMA/APEM, 2001. 110 Ribeiro, José Iran. O fortalecimento do Estado Imperial através do recrutamento militar no contexto da Guerra dos Farrapos. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, n. 62. 2011 p. 262. 111 KRAAY, Hendrik. 1999. p. 4 45 ou suspeitos de participarem no conflito para outras províncias insurgentes. Desse modo, em um único ato resolviam-se duas questões: criminosos, indesejáveis e revoltosos eram retirados de suas regiões, contribuindo para a manutenção da ordem local, e o Exército e a Marinha ganhavam recrutas para defender fronteiras e combater revoltas nas províncias em agitação. Algumas especificidades nas listas de recrutamento chamaram a atenção pela forma com a qual eram distribuídos os recrutas entre os aparatos militares. O delegado José Thomás dos Santos, da Comarca de Viana, depois de ter recrutado 12 indivíduos, procedeu a um detalhamento minucioso acerca da procedência irregular de alguns deles, antes de enviá-los para a Capital, São Luís. Na lista do delegado constam José Raimundo da Silva, um deflorador conhecido da localidade, e o português Boas Rodrigues, considerado turbulento e com passagens pelo banco dos réus da Justiça sob a acusação de assassinato. Segundo o delegado, depois de ter sido absolvido pelo juiz, Boas ―tem assassinado as testemunhas e o suplente do delegado que lhe promoveu a culpa‖, provocando um mal-estar na localidade e, por isso, as pessoas ―reclamarão a retirada deste facinorozo desta província e principalmente desta comarca‖113. Ambos foram acusados de provocar desarmonia na localidade, tendo a autoridade policial sugerido explicitamente que fossem enviados para a Marinha de Guerra. Segundo as Instruções de 1822, era proibido o recrutamento de estrangeiros para as Forças Armadas. Estes só poderiam ser aceitos mediante contratos de engajamento. Porém, muitos eram recrutados em desconformidade com a lei, pois a decisão de remeter ou não o indivíduo dependia muito dos ânimos políticos, ficando a decisão atrelada ao sabor das circunstâncias. João José Amaral, delegado suplente da mesma comarca, pouco tempo depois teve problemas com Meridiano da Silva Pereira, sujeito apresentado como desrespeitador e intimidador das autoridades locais, sofrendo ameaças de morte por parte dele, no momento em que o prendeu para recrutamento. Temendo represálias, sugeriu ao chefe de polícia da província que esse recruta fosse enviado para a Marinha ou para o sul do Império114. Caso Meridiano fosse para a Armada, 112 ARAÚJO, Dilton Oliveira de. O Tutu da Bahia: transição conservadora e formação da nação (18381850), Salvador, Edufba, 2009, p. 57 113 MARANHÃO. Secretaria de Polícia (Correspondência). Delegados de Polícia de vários municípios / Chefe De Policia Da Província do Maranhão. 1843. Delegado de Vianna, 26 de fevereiro de 1843. 114 Id. Delegado suplente de Vianna, 9 de abril de 1843. 46 ingressaria no Corpo de Imperiais Marinheiros, no Rio de Janeiro, e de lá seria destacado para qualquer província. Caso fosse enviado para o sul do Império, é possível que seu destino fosse lutar na Revolução Farroupilha, a serviço do Exército ou da Marinha. O importante é que, para Viana, ele dificilmente retornaria. O delegado de Caxias, na mesma época, recorreu à prática semelhante. Ao enviar as listas de recrutas para o chefe de polícia da província, fez questão de classificar moralmente aqueles que julgava terem a Marinha como destino mais apropriado. Esse foi o caso de João Xavier de Brito, que havia deflorado duas primas legítimas, e de Manoel Izidoro, descrito como ―alferes de rebeldes, ladrão, elle e seus irmãos conhecidos pretos malvados‖. A uma meia dúzia de recrutas, o delegado disse ―serem vadios e que por isso não deviam voltar‖. Os demais foram catalogados simplesmente como vadios, tendo sido repartidos entre o Exército e o Corpo de Polícia115. A utilização de critérios não formais, na identificação dos indivíduos e na sugestão do envio para um ou outro aparato militar, evidencia uma diferenciação acerca da periculosidade que lhes era atribuída. Os considerados, por aquelas autoridades policiais como de pouco potencial danoso – os classificados simplesmente como vadios e/ou sem ofício - eram endereçados ao Exército ou ao Corpo de Polícia. Porém, as longas justificativas para determinados indivíduos e a sugestão de serem mandados para a Marinha em detrimento de outros aparatos militares, sugere que essa força armada fosse um local com disciplina implacável, jornadas de trabalho estafantes, sendo considerada, dentre todas as instituições militares, a menos desejável entre os soldados. Mesmo em 1851, quando foi ordenada a separação entre os recrutas do Exército e os da Marinha, não havia uma justificativa para tal seleção, não sendo explicitados os critérios a serem utilizados116. 115 Id. Delegado de Caxias, 12 de janeiro de 1843. BRASIL. Ministério do Exército. Coleção de leis do império. Aviso de 10 de outubro de 1851. In: AMARAL, Antonio José do. Indicador da legislação militar em vigor no Exercito do Império do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro : Typ. Nacional. 1872, p. 39. 116 47 2. Ser marinheiro no Brasil oitocentista A compreensão de que a população masculina brasileira tinha uma aversão ao serviço militar é uma unanimidade na historiografia; porém, havia algumas distinções entre as forças da terra e do mar que merecem atenção. Segundo Jorge Prata Sousa, as péssimas condições dos serviços navais sempre dificultaram o preenchimento dos quadros da Armada. Desde o início do Império, fatores como o afastamento da família, o longo tempo de serviço, os baixos soldos, a insalubridade a bordo, o rigor das leis, as chibatadas, os ferros nos pés, a golinha no pescoço, as intempéries climáticas, tudo isso formava um quadro desumano que fazia da Marinha um purgatório117. A maior parte dos indícios que permitem aos pesquisadores escrever sobre as Forças Armadas são frutos da atividade administrativa do aparelho do Estado, da imprensa e, muito raramente, de testemunhos diretos dos marinheiros. Os marujos nacionais eram em sua maioria analfabetos, o que dificultava o testemunho direto. Porém, entre os estrangeiros contratados, a situação era um pouco diferente. Silvana Jeha recorda que a maior incidência de pessoas alfabetizadas entre os protestantes gerou dezenas de livros de memórias de marinheiros publicados no século XIX e um sem-número de diários, dos quais uma quantidade razoável foi guardada nos arquivos norte-americanos e britânicos.(...) No Livro de Socorros da fragata Imperatriz, mais anglófonos e germanófolos assinam os respectivos nomes nos diversos recebimentos do que os seus colegas portugueses e brasileiros. Em 1852, o cirurgião da corveta Imperial Marinheiro, Emydio José Barbosa, relatou que os ingleses, os franceses e outros estrangeiros sempre liam um livreto no seu tempo de lazer. Segundo Barbosa, dentre uma centena de nacionais não se contava mais de seis alfabetizados. Ele criticava abertamente a Marinha, pois boa parte dos imperiais marinheiros frequentara a escola de aprendizes, onde deveriam ter sido alfabetizados118. John Ross Browne foi um, dentre os vários marujos norte-americanos engajados na Armada, que menosprezava os marinheiros locais e descrevia-os em seu livro de memórias de maneira degradante; também acusava-os de não respeitar os dias santos e nem saber da existência de um ser supremo. Quando perguntou a Enos, ―o mais inteligente deles‖, se já havia lido um livro chamado Bíblia, este 117 SOUZA, Jorge Prata de. Escravidão ou morte. Os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai. 2 ed. Rio de Janeiro: MAUAD: ADESA, 1996, p. 73. 118 JEHA, Silvana Cassab. 2011, p. 99. 48 respondeu que não a conhecia e que muito menos sabia ler119. Outro norteamericano, Jacob Hazen, contratado pelo Império Brasileiro para lutar na Sabinada (1837-1838), na Bahia, deixou registrada a sua percepção sobre o que era estar embarcado em um navio de guerra brasileiro, na primeira metade do século XIX. Lamentando-se bastante, diz que Every thing about the ship wore a disagreeable look; the men were black and sullen: the rations looked more like a mess prepared for a herd of swine than for seamen; and even the commandant, with his black, hairy visage, and broad licentious grin, bore a nearer resemblance to an epauletted OurangOutang, than to a naval officer120. Mesmo que se trate de um olhar orientado por visões de mundo específicas de estrangeiros, nas quais elementos ideológicos, heranças culturais e preconceitos étnicos se explicitem, os relatos deixam indícios dos não-ditos da documentação oficial, acerca de elementos do cotidiano da Marinha de Guerra. Segundo Arias Neto, as condições insalubres e a má alimentação eram responsáveis por uma verdadeira hecatombe dentro dos navios e nos quartéis da Marinha, que mantiveram as baixas por mortes em níveis geralmente altos, durante todo o período monárquico121. A travessia do local de origem até o destino também era mortal para muitos. Dados assustadores dessas travessias ficaram registrados e um deles ocorreu na cidade de São Luís. Segundo Juvenal Greenhalgh122, em 1827, dos 209 indivíduos recrutados no Piauí e enviados para São Luís, apenas 112 chegaram com vida e 27 morreram um pouco depois do desembarque. O porão infecto que os alojava, a alimentação estragada e o beribéri foram os ingredientes da fórmula mortal. Um ano antes, o deputado geral Custódio Dias proferiu diatribes durante uma sessão, depois de tomar conhecimento do fatal resultado de um recrutamento feito 119 BROWNE, John Ross. Etchings of a whaling cruise. New York, Harpers & Brothers Publishers, 1846, p. 43-44. Apud JEHA, Silvana Cassab. 2011, p. 100. 120 HAZEN, Jacob. Five years before the mast or Life in the forecastle, aboard of a whaler and man-ofwar.p. 154.Tradução livre: ―Tudo neste navio possui aparência desagradável; os homens eram pretos e sombrios: as rações pareciam preparadas para um rebanho de porcos, não para um marinheiro; e até o comandante com sua barba peluda e largo sorriso, mais parecia um orangotango do que um oficial de Marinha‖. 121 ARIAS NETO, José Miguel. 2001. p.107, 152 122 GREENHALGH, Juvenal. 1965, p. 189. 49 no Ceará, que ceifou 66 dos 230 recrutados que haviam sido embarcados em uma ―tumba funeral‖123. Muitos recrutas não conseguiam sequer chegar ao local em que iriam servir. Beattie afirma que o transporte dos recrutas, ―embora não fosse tão horrendo quanto a travessia do Atlântico, exibe certos paralelos com o tráfico de escravos‖124. O longo tempo de serviço também não atraía a população masculina a adentrar na Marinha de Guerra. Ser marinheiro era uma experiência duradoura. De acordo com o primeiro regulamento do Corpo de Imperiais Marinheiros, de 1845, era de 12 anos o tempo de serviço para os recrutados, 9 anos para os voluntários e 15 anos para os provenientes das Companhias de Aprendizes Marinheiros. O estabelecimento de tempos diferenciados pela forma de ingresso foi uma forma que o Estado Imperial encontrou para incentivar o voluntariado, pois quem se engajasse por vontade própria teria um menor tempo de obrigação, além de prêmios. O tempo de 12 anos para os recrutados compulsoriamente era uma punição clara pela falta de voluntarismo. O tempo mais elevado para os egressos das Companhias de Aprendizes Marinheiros justifica-se pelo fato de serem estes, em tese, mais aptos ao serviço de bordo e também para ressarcir o Governo Imperial dos investimentos feitos com formação educacional e profissional que lhes foram dispensados. Esse tempo, que já era longo, ainda sofreu uma tentativa de aumento para 20 anos pelo Decreto de 24 de outubro de 1854. Porém, reclamações formais foram feitas ao imperador D. Pedro II e ao Poder Legislativo, que acabaram sendo acatadas, retornando assim ao tempo de serviço do Regulamento de 1845125. Segundo Nascimento, o tempo de serviço não era fixo. A trajetória de vida de cada marinheiro é que determinava a sua permanência de mais ou menos tempo. Caso o marinheiro fosse acusado de indisciplina, o seu tempo de serviço poderia se estender por mais anos que o mínimo exigido. Em 1854 foi estabelecido que haveria para os crimes de terceira ou mais deserções, além das penas já consignadas, a perda do tempo de serviço anterior126, ou seja, criava-se mais uma forma de prender o indivíduo ao serviço militar. 123 BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 05 de agosto de 1826, p. 11. Disponível em: http://goo.gl/XGj2fi. Acesso em: 26 jun. 2013. 124 BEATTIE, Peter. 2009 p. 44. 125 ARIAS NETO, José Miguel. 2001, p. 86-108. 126 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto n. 1.591 de 14 de abril 1855. Art. 24. 50 Para a concessão de prêmios e promoções, o comandante analisava o Livro de Socorros, pois nele se registrava toda a vida do marinheiro, desde o ingresso até o dia do pedido de baixa do serviço. Se o marinheiro tivesse boa conduta poderia pleitear uma promoção; no entanto, em alguns casos, o comandante poderia manipular as listas de promoções. Vestir a farda da Marinha de Guerra implicava necessariamente ter de conviver com adversidades de todos os tipos. Ser marinheiro, segundo Álvaro Nascimento era aprender a conviver com indivíduos de regiões, cores, idades, opção sexual e condição das mais diversas, entre os quais poderiam ser criados laços de solidariedade e níveis de intolerância e de conflitos complexos e variados. (...) Havia, enfim, intensa e fervilhante diversidade humana reunida nos postos mais baixos da hierarquia militar. Tudo isso poderia fermentar e se tornar extremamente perigoso, obrigando o indivíduo a enfrentar comportamentos desconhecidos por ele até então127. Além do convívio com estranhos em um local distante, ser soldado significava ter sido objeto da caçada humana do período, ter sido acorrentado, geralmente por meses, arrastado por vilas, ficado preso em um depósito de recrutas, viajado no porão de um navio de guerra e, por fim, ficar sujeitado a um rigoroso código disciplinar que previa castigos físicos e privações de toda ordem. Ou seja, esses recrutas eram inseridos em um ambiente cultural onde os apelos à virtude cívica e à honra militar faziam pouco sentido128. 2.1 “Hei de ensiná-los: ou aprendem ou racho-os!” A existência de castigos físicos também tornava a vida militar pouco convidativa. A possibilidade de violação da integridade corpórea assustava os homens do período, pois entendiam que tal procedimento só era legitimo aos escravos. Cândido da Fonseca Galvão, o D. Obá II, foi um dos ingressantes dos denominados Voluntários da Pátria na guerra contra o Paraguai, e apontava os suplícios como um dos principais motivos para a aversão popular, situação que, nas palavras de seu biógrafo, deveria causar ―consternação entre libertos e homens 127 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. 2002, p. 96. MENDES, Fabio Faria. 2010. p. 44 128 51 livres de cor, ao reencontrarem tal punição nas regras disciplinares das Forças Armadas em que haviam se alistado‖129. Boa parte da legislação norteadora da Marinha sofreu alterações durante o Império, criando novas instituições, reduzindo e criando distinções no tempo de serviço dos marinheiros, determinando critérios de ascensão dos militares, dentre outros assuntos. Mas a parte pertinente à disciplina manteve-se intocável. A Armada era ordenada disciplinarmente pelo Regimento Provisional130 e pelos Artigos de Guerra da Armada Real Portuguesa131. Elaborado em 1796, esse Regimento Provisional regulava o serviço e a disciplina a bordo dos navios de guerra portugueses e, em 1799, depois de feitas as devidas adaptações, foram-lhe acrescidos os chamados Artigos de Guerra, que haviam sido criados para o Exército. Em 1808, tais códigos disciplinares foram introduzidos na América Portuguesa com a transmigração da Família Real e, em 1822, com a Independência, suas determinações foram mantidas. O Regimento Provisional foi criado para regular todo o serviço de bordo. Perpassavam em seus artigos normas de limpeza, higiene, organização cotidiana do trabalho, alimentação, entre outras. A ênfase recaía majoritariamente sobre a manutenção da ordem dentro das embarcações. Os Artigos de Guerra, por sua vez, davam aos comandantes das embarcações um forte instrumento gerador de medo e disciplina na tripulação, a ser utilizado, principalmente, contra aqueles que demonstrassem qualquer comportamento desviante. Entretanto, crimes ―de guerra, ferimentos, homicídios, alta insubordinação e deserções, por serem entendidos como delitos mais graves, deveriam ser julgados por um Conselho de Guerra‖132. Estavam previstos trabalhos forçados e até pena de morte para casos mais graves. Mas eram os castigos corporais, em particular as chibatadas, que, de forma geral, realizavam a manutenção da ordem e intimidavam a marujada. A experiência do recrutamento, aliada aos duros códigos disciplinares, mostraram que guarnecer navios de guerra e quartéis com pessoas que estavam ali 129 SILVA, Eduardo. Dom Oba II D’África, o príncipe do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 147. 130 BRASIL. Coleção de leis do império. Regimento Provisional para o serviço e disciplina das esquadras e navios da Armada Real que por ordem de Sua Majestade deve servir de regulamento aos comandantes das esquadras e navios da mesma senhora. Lisboa: Galhardo e Irmãos, 1841. 131 Ibid. Artigos De Guerra. Lisboa: Galhardo e Irmãos, 1841. 132 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001, p. 33. 52 a contragosto acabava por dificultar a manutenção da disciplina. Houve tentativas de minimizar a violência sistêmica na Marinha por meio de um projeto de lei elaborado na Câmara dos Deputados e enviado à Comissão de Marinha e Guerra do Senado, que visava retirar o castigo corporal somente dos voluntários, substituindo-os por punições mais condizentes com as formas modernas de punição, como desconto de soldo, rebaixamento de posto, prisão simples, entre outros. Mas a Comissão foi contrária à proposição, afirmando ser o projeto um verdadeiro atentado à Constituição, pois feria o direito de igualdade ao promover distinções entre recrutados e alistados133. 2.2 Os limites do aleatório na Lei do Sorteio Militar Vimos que o Poder Legislativo, a literatura e a imprensa do período imperial foram palcos de debates travados pelos contemporâneos ao recrutamento militar no Império Brasileiro. A historiografia trata-o como imprevisível, errático, distribuidor de encargos militares pesados, controlado por autoridades que manipulavam critérios de isenção134; arma eleitoral135; transporte penal136, de rebeldes137, maridos infiéis, filhos ingratos; incentivador para trabalhadores pouco diligentes138; moralizador social, dentre outras classificações. Tratava-se, portanto, de um recurso poderoso e seus controladores, como bem mostra a historiografia, utilizaram-no para fins diversos. Em 1874, foi aprovada a Lei do Sorteio Militar139, que visava substituir o recrutamento por um sorteio, que seria responsável por preencher as cotas anualmente estabelecidas pelos Ministérios da Guerra e Marinha. A junta 133 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Marinheiros em revolta: recrutamento e disciplina na Marinha de Guerra (1880 - 1910). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas, Campinas 1997. 134 MENDES, Fábio Faria. 2004. 135 FARIA, Regina Helena Martins de. 2007, p.113. 136 Segundo Peter Beattie, o recrutamento militar no Brasil fez surgir um sistema responsável pelo transporte de parcela dos homens considerados perigosos de uma província para outra, normalmente carente de soldados. O autor mostra que esse trânsito se dava no sentido norte-sul, num fluxo parecido ao dos escravos pós-extinção do tráfico internacional. BEATTIE. Peter. 2009. 137 RIBEIRO, José Iran. Op. Cit. 2011; ARAÚJO, Dilton Oliveira de. Op. Cit, 2009, KRAAY, Hendrik. 1999. 138 MEZNAR, Joan E. 1992. 139 BRASIL. Coleção de leis do império. Lei nº 2.556, 26 de Setembro de 1874. A lei original foi ligeiramente modificada pelo Decreto nº 5.881 de 27 de fevereiro de 1875, que permitia as isenções para arrimos de família; defeituosos fisicamente; religiosos; graduandos e estudantes de faculdades; filho de mãe viúva; feitor de fazenda; quem apresentasse substituto.. 53 responsável por essa nova forma de alistamento deveria ser composta pelo juiz de paz, pela autoridade policial mais graduada e pelo pároco. O procedimento adotado após a referida lei era o seguinte: 1) primeiro a junta esperava os voluntários; como estes sempre eram poucos, a junta seguia para o segundo ponto; 2) o alistamento de todos os cidadãos de 19 a 30 anos da idade; 3) depois de alistadas, as pessoas que possuíssem isenções a seu favor poderiam encaminhá-las à junta revisora (composta por um juiz de direito como presidente, pelo delegado de polícia e pelo presidente da Câmara Municipal) para não participarem do sorteio; 4) esse era também o momento de os indivíduos se dirigirem à junta de alistamento para comprar isenções, conforme previsto na lei; 5) os que não possuíssem isenção a seu favor ou não dispusessem de dinheiro para comprá-la, estariam sujeitos ao sorteio. De acordo com Regina Faria, a intenção dos militares era tirar o caráter de castigo e opressão do recrutamento e a pecha que recaia sobre os recrutas, vistos como a escória do corpo social. Mas a lista de isenções continuou imensa e as autoridades locais não deixaram de traduzi-las ao sabor de seus interesses. O novo sistema não conseguiu funcionar como previsto140. Para José Murilo de Carvalho, não funcionou por que permitia aos que não quisessem servir a pagar certa quantia de dinheiro ou apresentar substitutos, e introduzir isenções especiais para bacharéis, padres, proprietários de empresas agrícolas e pastoris, caixeiros de lojas de comércio, etc. De outro lado, deixava o alistamento e o sorteio a cargo de juntas paroquiais, presidida pelo juiz de paz e completadas pelo pároco e pelo subdelegado. O resultado foi continuar o serviço a pesar totalmente sobre pessoas sem recursos, financeiros ou políticos […]. O novo sorteio só colhia pobres ou não colhia ninguém, continuando o recrutamento a ser feito a laço como anteriormente141. Para esse autor, a Lei do Sorteio Militar não provocou mudanças significativas, e apesar do fim da isenção aos homens casados, os colhidos para o serviço militar continuaram a ser os pobres desprotegidos e os pequenos criminosos. 140 FARIA, Regina Helena Martins de. 2007, p. 114 CARVALHO, José Murilo de. As forças armadas na primeira República: o poder desestabilizador. In: História Geral da Civilização brasileira: o Brasil monárquico. FAUSTO, Boris (Org.). São Paulo: Difel, 1986, p.190. 141 54 Houve reações furiosas à nova lei em algumas províncias142, mas também resistências sutis foram detectadas em certas localidades, como aponta Assis Filho143. Segundo Fabio Faria Mendes, nas províncias atingidas por agitações, a desordem aparente dos acontecimentos encobria a presença de padrões de ação coletiva bem estruturados e com pautas de regularidade tão surpreendentes, que não deixavam dúvidas acerca da oposição popular à nova lei. Segundo o autor, a aversão ocorreu por ter a referida lei inserido, no jogo do recrutamento, elementos de compulsão e aleatoriedade que modificavam de modo radical a economia moral que governava a alocação dos encargos do recrutamento. A Lei do Sorteio Militar retirou o castigo físico como penalidade apenas do Exército, buscando tornar mais suave e atrativo o serviço das armas. Essa nova norma procurava eliminar os elementos mais arcaicos da disciplina brutal e arbitrária, assim como as marcas de distinção hierárquica e, para isso, suprimiu um dos sinais mais assustadores do estigma dos soldados144. Para a Marinha, em 1883 foi elaborada uma Ordenança para o Serviço da Armada Brasileira, visando instalar um novo regime disciplinar, regulando principalmente o art. 80 dos Artigos de Guerra145, estabelecendo graus e limites precisos às punições, uma vez que, segundo o ministro criador daquela, a Ordenança era tão mal elaborada que suas penas eram severas e, em muitos casos, manifestadamente desproporcionais146. O referido art. 80 preconizava que todos os mais delitos, como embriaguês, jogos excessivos e outros semelhantes, de que os precedentes artigos não façam particular menção, ficarão ao prudente arbítrio do superior, para impor aos delinquentes o castigo que lhes for proporcionado, o uso da golilha, prisão no porão e perdimento da ração de vinho é o que se deve aplicar a oficiais marinheiros, marinheiros, inferiores, e artífices, assim como à marinhagem e soldados, que podem também ser corrigidos por meio de pancadas de espada e chibata, não excedendo o número de vinte e cinco por dia; isto é em culpas que não exijam conselho de guerra147 (Grifos nossos). 142 Ficaram conhecidos como ―rasga-listas‖ os insatisfeitos com a Lei do Sorteio Militar. Vários casos foram apontados por MENDES, Fábio Faria. A ―lei da cumbuca‖: a revolta contra o sorteio militar. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 13, n. 24, 1999, pp. 267-293, p. 268. Disponível em: http://goo.gl/VlD1e0. Acesso em: 01 de jan 2013. 143 ASSIS FILHO, Francisco de. O chamado da pátria: o recrutamento militar na Freguesia de Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão da Ilha, 1875-1878.. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal de Santa Catarina. 2006. 144 MENDES, Fábio Faria. 2004, p. 268. 145 BRASIL. Coleção de leis do império. Lei nº 8.898 de 03 de março 1883. 146 Ibid. Relatório do Ministério da Marinha, 1883, p. 44. 147 Ibid. Coleção de leis do império. Artigos de Guerra. Lisboa: Galhardo e Irmãos, 1841. 55 Depois da Guerra do Paraguai, os ministros da Marinha não estavam tão preocupados com a falta de voluntários e sim com a criação de parâmetros para minimizar a violência do oficialato. O objetivo da Ordenança era atacar a hermenêutica adotada por muitos oficiais que interpretavam de forma abusiva o trecho ―ao prudente arbítrio do superior‖. O ministro João Maurício Wanderley, em 1855, já alertara para a necessidade de revisão nos códigos disciplinares, justificando que esta era uma ―necessidade reclamada de há muito tempo; não porque tenham dado lugar a tantos abusos quantos se afiguram à imaginação de alguns, a quem com razão impressiona o arbítrio‖148. Para o ministro Joaquim José Ignácio, em 1860, o código disciplinar presente na Marinha era representativo das contradições de uma Nação que queria ser moderna, mas que mantinha os marinheiros ―a mercê de uma legislação anacrônica e defectiva, que abrindo em muitos casos larga margem ao arbítrio, em outros pelo silêncio, compete o julgador a recorrer ao código comum, cuja penalidade nem sempre corresponde a natureza das infrações‖149. Além da redução dos castigos físicos, havia necessidade de reparos na questão processual, pois o direito de defesa era suprimido, o que favorecia o arbítrio dos julgadores. Em 1882, o ministro João Vasconcellos dizia que a legislação que tocava na questão disciplinar era obsoleta e destoa dos verdadeiros princípios do direito criminal. As penas são, em geral, de uma tão demasiada severidade que, em muitos casos, estão em manifesta desproporção com os crimes, principalmente porque são estabelecidos sem attenção às circunstâncias occurrentes. Contém, além disto, a parte penal outros defeitos e lacunas a que convem attender. As fórmulas do processo são incompletas. O direito de defesa é tolhido aos acusados na parte mais importante à instrução – ou sumário de culpa, desde quando meios de debate se preparam. Aos julgamentos faltam as bases jurídicas para garantir e harmonizar a defesa com a justiça, e em muitos casos predomina o arbítrio, na ausência de Disposição que possa ser aplicada. Na última instância a lei do julgamento é a vontade arbitrária dos julgadores150. Penalidades como rebaixamento de posto, desconto de soldo e prisão simples, dentre outros, não eram novidades, pois já constavam fazia parte do rol de punições dos Artigos de Guerra. Ocorre que a concretização destas punições era precedida de uma delonga administrativa, sem tamanho, pois 148 Ibid. Relatório do Ministério da Marinha, 1856, p. 7. Ibid. 1860, p. 15. 150 Ibid. 1882, p. 44. 149 56 para descontar o soldo de um marinheiro era necessário que o comandante avisasse o ajudante general da Armada. Reconhecido o desconto como castigo, o ajudante teria de oficiar ao responsável pela Contadoria da Marinha, que, logo em seguida, através de outro oficio retornasse ao ajudante general da Armada. Ora, o trabalho estafante para àqueles da burocracia atrasava ainda mais a punição; o castigo corporal, pelo contrário, era rápido e objetivo151. Álvaro Nascimento percebeu que o castigo tinha uma lógica, e percebeu-a comparando dois casos: o julgamento, em Conselho de Guerra de 1873, do então capitão-tenente José Cândido Guillobel, por ter mandado aplicar a pena de quinhentas chibatadas ao marinheiro Laurentino Manoel da Silva em um único dia, por ter entrado a bordo com uma garrafa de aguardente escondida e ter espancado o sentinela que quis denunciá-lo; e a passagem da punição de Amaro, personagem do romance O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, que sofrera punição por ter esmurrado desapiedadamente um segunda classe, porque este ousara, ―sem o seu consentimento, maltratar o grumete Aleixo, seu protegido152. O capitão-tenente Guillobel defendeu-se no Conselho de Guerra argumentando que o erro não fora dele e sim do legislador, o Conde Lippe, em seu Código de 1796, ao não fornecer subsídios para que o aplicador da lei levasse em consideração a ―constituição física‖ do marinheiro na hora da aplicação do castigo. Ou seja, quando o Conde criou a norma deixou de fato, ―ao prudente arbítrio do superior‖, dosar a penalidade. Guillobel afirmou que, na hora de punir seus subordinados, considerava a robustez do indivíduo, e confessou que tal prática fazia parte de um ―costume bem estabelecido‖ nos navios da Armada. Durante o castigo de Laurentino, que estava com duas camisas, uma de meia e outra de algodão, o oficial achou que não haviam sido suficientes as chicotadas já desferidas e, nas palavras dele, ―vendo o pouco efeito que no delinquente fazia o castigo fui forçado a fazê-lo continuar até chegar ao número de quinhentas pancadas de chibata‖153. Na racionalidade dos adeptos do ―costume bem estabelecido‖, a autoridade do comandante só ficaria intacta quando o castigo fosse suficiente para derrubar o marinheiro. A dor demonstrada durante o castigo era o termômetro da punição - o 151 NASCIMENTO, Álvaro. 1997,p. 90. CAMINHA, Adolfo. Bom-crioulo. São Paulo: Ática, 1995, p. 11. 153 NASCIMENTO, Álvaro, 2001. p. 145. 152 57 faltoso deveria externar o seu sofrimento e abraçar a humilhação para que o efeito fosse sentido. Para a manutenção da disciplina a bordo, os oficiais acreditavam que o castigo regrado seria problemático, pois havia marinheiros que suportavam a dor mais do que outros. A narrativa literária de Adolfo Caminha, fruto muito mais de sua experiência de bordo do que do esforço imaginativo, pois fora segundo tenente da Armada, tem elementos semelhantes aos apresentados no julgamento de Guillobel. Caminha constrói a cena de uma mostra154, num determinado momento do romance, em que três marinheiros seriam punidos. Descreve-os da seguinte forma: ―o Herculano, um rapazinho magro, muito amarelo, rosto liso, completamente imberbe; Sant'Ana, regulando a mesma idade, mas um pouco moreno, também grumete; e Amaro, um primeira-classe, negro, alto, espadaúdo, cara lisa‖155. Herculano, ao ser castigado, não suportou sequer a chegada da 25ª chibatada e, antes do fim do castigo estipulado pelo comandante, ―já torcia-se todo no bico dos pés, erguendo os braços e encolhendo as pernas, cortado de dores agudíssimas que se espalhavam por todo o corpo, até pelo rosto, como se lhe rasgassem as carnes‖156. Quando foi a vez de Sant'Ana ser castigado, ao receber o primeiro golpe, empinou-se na ponta dos pés, arregalando muito os olhos e esfregando as mãos, gritou - ―pe... pe... pelo amor de... de... de Deus, seu... seu... comandante!157‖. Era franzino e foi quebrado com poucas chibatadas. O desafio maior para a manutenção da disciplina a bordo pelos oficiais eram os fortes e recalcitrantes marujos. O personagem Amaro representava bem esse desafio, pois era ―um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos‖158; enquanto o Herculano e o Sant'Ana ―não passavam de uns pulhas, de uns miseráveis marinheiros que dificilmente aguentavam no lombo vinte e cinco chibatadas: uns criançolas!159‖. Amaro não cairia fácil, pois ―a chibata não lhe fazia mossa; tinha 154 Mostra, como está no livro, faz alusão ao Ato de Amostra. É a prática ritual de punição de marinheiros insubordinados. Não se tratava de mera brutalidade, mas sim da manifestação do poder em sua forma teatralizada, pois sempre que se precedia ao castigo havia solenidades, tais como a apresentação dos condenados, a leitura dos artigos que foram infringidos para, finalmente, ser aplicada a sanção. Era um espetáculo punitivo dotado de uma encenação que visava assegurar a eficácia e reprodução da dominação do oficialato sobre a marujada. 155 CAMINHA, Adolfo.1995, p. 5 156 Ibid, p. 7 157 Ibid. p. 9 158 Ibid. 159 Ibid. 58 costas de ferro para resistir como um Hércules‖160. No momento da mostra a marujada contava os açoites dados em Amaro; já passavam de cinquenta e o castigado ―nem sequer gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos‖. Dezenas de chicotadas haviam sido dadas quando Amaro, por fim, ―teve um estremecimento e soergueu um braço‖161. Foram necessárias cento e cinquenta chibatadas para que o efeito do castigo fosse finalmente sentido. O argumento dado por Guillobel, ao Conselho de Guerra, justificando seus atos - que na hora da aplicação dos castigos físicos não seria prudente desconsiderar a ―constituição física‖ do marujo indisciplinado - possui semelhanças visíveis com a narrativa do romance. Segundo Álvaro Nascimento, o ―costume bem estabelecido” pelos oficiais preconizava que um castigo de chibata no qual o marinheiro não perdesse uma gota de sangue e não fornecesse ao publico do ―ato de amostra‖, um grito de desespero seria o mesmo que uma lição mal dada(...) no entender dos oficiais, a realização das fainas e dos exercícios militares e o bom comportamento dos marinheiros somente podiam ser alcançados se fossem bem demarcados os limites entre aqueles que ordenam e os que obedecem(...) O castigo, assim, era um exercício cotidiano de poder e devia ser reproduzido todas as vezes que o domínio fosse questionado162. A decisão de Guillobel de não enviar Laurentino para responder a um Conselho de Guerra evidencia também outra questão importante. Enviar um marujo para responder por seus delitos em Conselho de Guerra implicava, a curto prazo, em um par de braços a menos a bordo devido à morosidade da Justiça Militar do período e, a longo prazo, caso o insubordinado fosse condenado às galés, nas palavras do oficial, ―seria por conseguinte inutilizar um homem que ainda podia corrigir-se‖163, certamente, por meio de pancadas. A prática de punir marujos nos próprios navios de guerra criou o que Álvaro Nascimento denominou de ―tribunal do convés‖. O oficialato instituiu esta prática disciplinar violenta e intimidadora, que se ancorou em manobras interpretativas que aumentavam ainda mais os rigores disciplinares, mantendo inquestionável a disciplina e a autoridade dos superiores. 160 Ibid, p. 11 Ibid. 162 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. 2001. p. 148-149. 163 AN – CGM: processo nº 695: José Candido Guillobel. 1873 (Cx 13170). Apud NASCIMENTO, Álvaro. Op. Cit. 2001, p. 150. 161 59 Em 1880, o ajudante-general Eliziário Barbosa, em relatório apresentado ao quartel general da Armada, diz que desde o ano de 1873 já estava pronta a Ordenança e que nela estava compilada todas as disposições em vigor na Armada, além de matérias ainda não regulamentadas. Segundo o relator, o intuito da nova norma era ―preencher a lacuna que sente o serviço interno dos navios de guerra, substituindo por disposições claras e terminantes as praxes mal acentuadas que o costume tem estabelecido‖164. Os excessos nas punições fizeram com que fosse elaborado o novo regulamento; no entanto, não houve a retirada dos castigos físicos, apenas a sua redução. O castigo máximo que poderia ser dado a um marinheiro não poderia ultrapassar 25 chibatadas. Isto, porém, ocorreu apenas no papel, pois quando estavam lá no meio do mar ou mesmo ancorados nos portos, era o comandante que dava a ultima palavra, e quem fosse contra ele estaria cometendo alta insubordinação (...) e por mais que se tentasse criar limites estipulando as doses do castigo, na verdade, quem havia de saber a medida final era o comandante do navio, o juiz do tribunal do convés165. Os comandantes, possivelmente, vivenciariam um problema grave com a vigência da Ordenança. Se respeitassem o prescrito, seriam desrespeitados pelos marinheiros, considerando que nem sempre a punição máxima prevista na lei produzia o efeito desejado, e isto era perigoso, haja vista que castigo leve pouco medo causava. Os oficiais temiam a retirada dos castigos a bordo, porque, como dissera Adolfo Caminha em seu romance, na mentalidade do oficialato as pancadas de chibata eram o ―único meio de se fazer marinheiro‖166. No primeiro dia depois de proclamada a República, o ministro da Marinha em exercício, Eduardo Wandenkolk, transformou o medo dos oficiais em realidade e decidiu extinguir os castigos físicos achando que com isso resolveria o problema secular da indisciplina. O oficialato revoltou-se e alegou não ter condições de manter a ordem sem o uso da violência física. No ano seguinte, com a criação da Companhia Correcional167, que previa punições como redução de vencimentos, perda de gratificações, rebaixamento de posto, não concessão de licenças, enfim, 164 BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha. 1880-1881, A-N1-5. NASCIMENTO, Álvaro. 2001, p. 158-159. 166 CAMINHA, Adolfo. 1995. p. 6. 167 BRASIL. Coleção das leis da Republica Federativa do Brasil. Decreto n. 328, de 12 de abril de 1890. 165 60 tentou-se transformar as formas de punição, que deveriam passar de ―uma arte de sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos‖168. Mas o ―costume bem estabelecido‖ dos oficiais não mudaria por decreto. A pressão do oficialato foi forte e, cinco meses depois, a chibata voltou a bordo: o ―tribunal do convés‖ foi reabilitado. Concomitante a esse processo, desde a segunda metade do século XIX, paulatinamente a escravidão perdia sua legitimidade, assim como algumas práticas a ela subjacentes, dentre essas os castigos corporais. Em maio de 1874, não estava mais em operação o Calabouço, local para onde eram conduzidos os escravos infratores, pelos seus próprios senhores, para as ―devidas correções‖,169. Durante o Império, várias leis foram criadas para restringir o poder senhorial sobre a escravaria. Em 1886, proibiu-se explicitamente os castigos físicos em escravos170. Os soldados do Exército tiveram que conviver com os Artigos de Guerra só até 1831, pois o ministro da Guerra Manoel da Fonseca Lima e Silva considerava ignominioso para o Exército Brasileiro a permanência do aviltante castigo das chibatas em seus soldados171, valendo apenas as pranchadas de espada, previstas nos Regimentos de Infantaria portuguesa do século XVIII172. A Lei do Sorteio Militar amenizou a vida dos recrutas do Exército retirando todas as espécies de castigo físico. Os dirigentes da Armada, por sua vez, reformaram seu código disciplinar ao implantar a Ordenança em 1883, a qual, como vimos, apenas regulou a quantidade de golpes de chibata, o que não foi suficiente para controlar os juízes do "tribunal do convés", que conservaram nos navios e quartéis da Armada ritos sumários de açoitamento, além de instrumentos e práticas típicas do mundo escravista, mesmo na República. 168 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petrópolis: Vozes,. 2005. p. 14. HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. p.214 170 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização. Brasileira, 1974, p. 287-289. 171 BRASIL. Coleção das leis do império. Decisão de 16 de julho de 1831. 172 GREENHALGH, Juvenal. 1965, p. 70. 169 61 3. A fábrica de marinheiros Os dirigentes da Armada encontravam dificuldades para manter o contingente da força naval completo, pois a população masculina mostrava resistência ao serviço militar nos conveses. O recrutamento, quando era realizado, atingia quase sempre os pobres e o serviço militar não era visto como um ofício honrado ou prova de coragem, mas como castigo e degredo. Para Silvana Jeha, a Marinha de Guerra brasileira, assim como as de outras nações emergentes do período, seguiu a tradição de manter em seus navios tripulações miseráveis, multinacionais, multiétnicas e multirregionais típicas das marinhas europeias173. Contratar estrangeiro, inicialmente, foi uma boa estratégia, porém, não demorou muito para que esses marujos se tornassem propagadores de conflitos e geradores de inúmeros prejuízos, representando um perigo aos interesses do Império brasileiro. O voluntariado, durante todo o período imperial, era insignificante. Os recrutados eram compostos por pessoas sem muitas habilitações para a função e pouco disciplinados, retirados das prisões ou ―das fezes da população‖174, como dissera o Visconde de Abaeté. A experiência com os primeiros marujos fez com que os ministros concluíssem que, para prover a Marinha de Guerra, medidas rigorosas deveriam ser tomadas. Por ser uma força armada detentora de peculiaridades, composta por equipamentos específicos, linguagem própria, que exigiam habituação nas lides marítimas, a Marinha de Guerra requeria dos marinheiros conhecimentos e habilidades específicas do campo naval, os quais por muitos não eram dominados. Um propositor de importantes mudanças na Armada Nacional, nesse sentido, foi o ministro Joaquim José Rodrigues Torres175. Seus projetos giravam em torno do desenvolvimento da indústria no arsenal do Rio de Janeiro, da elaboração de um 173 JEHA, Silvana Cassab. 2011, p. 30. BRASIL. Atas do Conselho de Estado. Sessão de 8 de janeiro de 1875. 175 Rodrigues Torres foi Ministro da Marinha entre os anos de 1831-1834; 1836 e 1837; 1840 e 1841. Joaquim José Rodrigues Torres nasceu em 13 de dezembro de 1802, em Itaboraí. Aluno de humanidades do Seminário de São José, no Rio de Janeiro, cursou a Universidade de Coimbra em 1821, formando-se em bacharel, em 1825. Alinhado aos conservadores, foi presidente de província, deputado, senador, conselheiro de Estado, ministro e presidente do conselho por várias vezes. Ocupou, em 1868, um momento político crítico para o Império, o Ministério da Fazenda. A sua nomeação, pelo Poder Moderador, visava a reafirmação do poder do Imperador, pois era o único representante vivo do Regresso, diante de uma Câmara de maioria liberal, Condecorado com várias ordens, foi agraciado com o título de Visconde de Itaboraí, em 1873. Cf. VAINFAS, Ronaldo (org). Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). RJ: Objetiva, 2002, p.408. 174 62 único sistema de alistamento para a composição e disciplina na Armada, pois considerava defeituoso o método utilizado para conseguir marinheiros pelo Império brasileiro. Achava problemático ter, nas mesmas embarcações, marinheiros contratados a prêmio e dispensados em curto tempo, principalmente estrangeiros, e marinheiros recrutados, arrancados das várias províncias e colocados a bordo dos navios sem qualquer vantagem, com soldos mais baixos e tempo de serviço maior. O ministro Torres julgava que a convivência de sujeitos nessas situações distintas gerava desarmonia e era motivo de contínuas deserções. Por último, pretendia promover a militarização, profissionalização e nacionalização dos marujos176. Vimos que foi apenas em 1836 que o então ministro à frente da pasta, Salvador José Maciel, inspirado pelas ideias de Rodrigues Torres, investiu numa estratégia para reduzir a contratação de estrangeiros, marinheiros mercantes e pescadores. Para Arias Neto, foi neste momento que se tentou militarizar o marinheiro, fixando-o a bordo dos navios, disciplinando-o, submetendo-o ao pagamento de baixos soldos, eliminando os gastos públicos com os prêmios e melhores salários que anteriormente eram pagos aos estrangeiros engajados177. Tal processo, entretanto, só seria possível com uma maior burocratização e controle ministerial sobre as instituições militares, o que era esperado, entre outras ações, com criação das Companhias Fixas de Marinheiros em 1836, que se transformou no Corpo de Imperiais Marinheiros, quatro anos depois. Segundo Álvaro Nascimento, esta instituição da Armada funcionava como um depósito central de marinheiros, cabos e sargentos, de onde eram distribuídos por todas as unidades navais da Armada: fortalezas, departamentos e navios de guerra espalhados pelo Brasil. Dessa forma o individuo poderia sair de Pernambuco com destino ao Corpo, na cidade do Rio de Janeiro, a fim de jurar bandeira e dali ser destacado para o Rio Grande do Sul, Ladário no Mato Grosso, ou qualquer outra província em que existisse um posto desocupado.(...) Assim o Corpo funcionava mais como um ponto para transferência de marinheiros, cabos e sargentos do que um lugar em que se fixavam por anos178 As mudanças sugeridas foram postas em prática e provocaram alterações significativas na tripulação da Armada. Segundo Silvana Jeha, a partir da década de 1850 a tripulação estrangeira da Armada, que era superior a de brasileiros no 176 ANTUNES, Edna Fernandes. 2011, p. 60-61. ARIAS NETO, José Miguel. 2001, p. 48. 178 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. 2002, p. 100. 177 63 primeiro momento, declina drasticamente. A crescente nacionalização das tropas foi conquistada pela maior institucionalização da Marinha de Guerra, com a criação do Corpo de Imperiais Marinheiros, que favoreceu o aumento no envio de recrutas nacionais, alguns voluntários e, principalmente, com os egressos das Companhias de Aprendizes Marinheiros179. Essas, com o passar do tempo, tornaram-se a principal fonte de marujos para a Marinha de Guerra, sendo bastante elogiadas pelos ministros e consideradas por autoridades diversas como verdadeiros ―viveiros da Armada‖. Fonte: JEHA, Silvana Cassab. 2001 p. 55-121. Quadro 1: Nacionalidade e naturalidade da tripulação da Marinha brasileira (1833-1854) Os dirigentes da Armada atribuíam à origem social dos marujos a causa principal para a insubordinação e falta de qualidade das tropas. O recrutamento era criticado abertamente pelos ministros, que o acusavam de ser responsável pela entrada de indivíduos avessos à ordem e à disciplina. Mas isso não era uma exclusividade da Armada. Hendrik Kraay afirma que oficiais do Exército lamentavam bastante sobre a composição de suas tropas, repletas de ―desordeiros, ébrios, vagabundos e malfeitores‖, que atrapalhavam a disciplina180. 179 JEHA, Silvana Cassab. 2001, p. 57. KRAAY, Hendrik. 1999. p. 11. 180 64 Os dirigentes da Armada não eram satisfeitos com essa situação e procuravam tomar medidas para amenizá-la. O ministro da Marinha Rodrigues Torres, por exemplo, recomendava às autoridades navais para não matricular "individuo algum que lhe seja enviado com a nota de criminoso, ou cujos costumes sejão incompatíveis com a moralidade e subordinação que deve haver a bordo dos navios de guerra‖181. Um aviso do Ministério da Marinha aos juízes de paz, de 1834, demonstra a preferência por recrutas mais jovens, pois ordenavam a essas autoridades que enviassem para a Marinha, preferencialmente, moços de 12 a 16 anos, evitando terminantemente o envio de malfeitores e criminosos, para não perverterem as tripulações dos navios de Guerra, nem deixarem o Império nas mãos do refugo da população182. O ministro Antônio Francisco de Paula Holanda Cavalcanti de Albuquerque, por sua vez, lastimava que, quando não eram os desordeiros habituais os enviados, em seu lugar iam como recrutas ―homens estropeados por velhice ou defeito physico, impossibilitados inteiramente para a penosa vida no mar‖183. A reforma desejada pelos dirigentes da Marinha pretendia formar uma nova geração de marinheiros, mais disciplinados, alfabetizados e profissionalizados, com o intuito de retirar o estigma184 que recaía sobre os marujos, tidos como rudes, indisciplinados e analfabetos em sua maioria. Alegavam que a Armada precisava de homens mais qualificados, por que as fainas haviam se tornado mais complexas, devido às mudanças dos navios adquiridos. Movidos a vapor, ou mistos, metalizados e mecanizados, os navios agora possuíam novos elementos, mais modernos, que exigiam homens cada vez mais especializados e acostumados a um ritmo de trabalho mais intenso. Segundo Helio Leôncio Martins, a Marinha de Guerra brasileira possuía nos anos iniciais ―homens de ferro em navios de madeira‖. Nas embarcações a vela, o trabalho no alto dos mastros, debaixo de mau tempo ou em combate, exigia dos marujos apenas robustez física, inconsciência do perigo, além de resistência para 181 BRASIL. Ministério da Marinha. Coleção das leis do império. Aviso nº 30 de 22 de janeiro de 1834. Ibid. Aviso nº 31 de 23 de janeiro de 1834. 183 Ibid. Relatório do Ministério da Marinha. 1840-2, p. 7 184 GOFFMAN, Erving. 1988. 182 65 sobreviver nos esquifes, que eram os navios de então. Para tripulá-los, diz o autor, só ―sub-homens‖, recrutados à força nos níveis mais baixos da humanidade185. A formação de uma nova esquadra pela Marinha foi impulsionada pela necessidade de repressão ao tráfico de escravos, pois em 1853, quando a campanha contra esse tráfico intensificou-se, a Assembleia geral concedeu créditos extraordinários para a compra de novos navios a vapor. A crise no Prata, em 1857, também fez o ministro Saraiva encomendar na Europa novas canhoneiras a vapor, próprias para a navegação fluvial186. O quadro a seguir pode dimensionar a renovação da frota nas décadas de 1850 e 1860. 1851 1864 1868 Vela 49 15 06 Vapor de rodas 10 15 21 Vapor de hélice/misto _ 13 51 Vapor encouraçado _ _ 16 total 59 41 94 Fonte: BRASIL. Relatórios do ministério da Marinha 1851-1868. Apud ARIAS NETO, José Miguel. 2001, p. 88. Quadro 2: Movimento de renovação da esquadra (1851-1868) No espaço de dezessete anos, os navios a vela praticamente desapareceram, enquanto os vapores de rodas e, principalmente, os de hélice, que permitiam os navios mistos (vapor/vela), tornaram-se predominantes. Entre os anos de 1848 e 1870, foram incorporados 118 novos navios à Armada, dos quais 30 construídos no Brasil. No mesmo período foram retirados de serviço 93 belonaves, o que significa uma renovação de quase 100% da esquadra em 22 anos187. Com a modernização dos navios altera-se também o ritmo de trabalho. Nas fábricas e oficinas do período da revolução industrial, a percepção do tempo do trabalho foi radicalmente alterada com a divisão do trabalho e com o posterior desenvolvimento tecnológico do período. Edward P. Thompson observou tal mudança pela introdução de um novo ritmo nas tarefas diárias, mais aceleradas, e na racionalização dos horários gerada pela mecanização: 185 MARTINS, Helio Leôncio. João Cândido e a Revolta de 1910. Revista Navigator n.1, 2005, p. 3-4. Disponível em: http://goo.gl/Jzf0Kx. Acesso em: 5 set 2013. 186 ARIAS NETO, José Miguel. 2001, p. 86 187 Ibid. p. 88-89. 66 Aqueles que são contratados experienciam uma distinção entre o tempo do empregador e o seu ―próprio‖ tempo. E o empregador deve usar o tempo de sua mão-de-obra e cuidar para que não seja desperdiçado: o que predomina não é a tarefa, mas o valor do tempo quando reduzido a dinheiro. O tempo é agora moeda: ninguém passa o tempo, e sim o gasta188. Porém, compreendemos que nos navios (mercantes e de guerra) esse processo foi mais tardio. Antes do uso do vapor nos navios, os embarcados estavam mais dependentes da dinâmica de ventos e marés, que subordinavam o ritmo das fainas. Com a inserção das novas tecnologias nos navios de guerra, o ritmo de trabalho muda, tornando-se mais intenso. A modernização da esquadra retirou de forma considerável intervalos para o descanso e lazer, como havia nos veleiros. A rotina em que o trabalho dependia mais do vento foi substituída por outra, baseada na máquina a vapor. O motor de navios desse tipo precisava ser constantemente alimentado e administrado, o que demandava pessoal desempenhando esse serviço o tempo todo, algo novo no trabalho marítimo. Para Fabiana Bandeira, essa alteração não deve ser desprezada, pois representa a transição dos navios da Armada para a era industrial, quando abandonaram sua feição de embarcações dependentes de bom tempo e de vento para se tornarem unidades produtivas de guerra, com motores mecânicos e modernos apetrechos de artilharia189. O caráter do recrutamento – punitivo e obrigatório – trazia para a Armada indivíduos descontentes com sua condição e que, provavelmente, pouco se importavam com as melhorias tecnológicas dos navios. Contudo, eram eles que alimentavam e faziam a manutenção e limpeza dos motores e das peças de artilharia naval. No romance ―O Bom-Crioulo‖, a transferência de uma corveta, movida a vela, para um encouraçado não foi bem vista pelo personagem Amaro. Ao saber que estava nomeado para servir em outro navio, ―um de aço, muito conhecido pelo seu maquinismo complicado e pela sua formidável artilharia‖, ficou enfurecido: ... que os pariu! Nem se tinha tempo de conhecer bem os navios: hoje num, amanhã noutro... Até parecia brincadeira!‘ Ficou furioso em ser transferido para o couraçado, naquela formidável prisão de aço, que lhe consumia o 188 THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 272. BANDEIRA, Fabiana Martins. 2010, p. 100. 189 67 tempo, e cuja disciplina — um horror de trabalho — privava-o de ir a terra hoje sim, amanhã não, como nos outros navios, ‗Ah! Mil vezes a corveta. Mil vezes! Ao menos tinha-se liberdade190. Manter funcionando os novos ―diabos de ferro‖ adquiridos e operar as peças de artilharia passava a demandar conhecimentos mínimos para não danificar as peças, evitando prejuízos ao erário. As inovações especializações nunca antes pensadas nas marinhas. tecnológicas exigiram Para dar conta das mudanças, foram criados postos para atender às novas necessidades no sistema de trabalho no interior dos navios, a exemplo do foguista e do maquinista. Os foguistas eram os responsáveis pelo abastecimento das fornalhas, e os maquinistas precisavam dominar o funcionamento de todas as peças que se moviam através da pressão produzida. A substituição da vela pelo vapor, além de imprimir um ritmo mais intenso de trabalho e diminuir o tempo de descanso, contribuiu na repressão às condutas que faziam parte da cultura marítima, principalmente o consumo de bebidas alcoólicas durante a realização das fainas. A ingestão de bebidas alcoólicas não era uma prática realizada apenas nos quiosques em terra e botecos perto dos portos - ela fazia parte do cotidiano das embarcações, fazendo parte inclusive da ração diária distribuída por muitas Marinhas de Guerra. A Marinha Inglesa ficou mundialmente conhecida por ter criado o grog, um composto de rum, limão, água e açúcar, que era distribuído aos marinheiros. O grog trouxe uma contribuição marcante à história do consumo de bebidas alcoólicas nas embarcações, ao diminuir o risco de acidentes, os enjoos e o consumo desenfreado, posto que horários foram estabelecidos para sua ingestão, entre 10 e 12 horas da manhã e entre 4 e 6 horas da tarde, visando ao bom desempenho das atividades marinheiras, que requeriam sobriedade191. Outro dado interessante é que a mistura ajudava a prevenir o escorbuto192, doença que grassava os marujos de muitas marinhas. 190 CAMINHA, Adolfo. 1995, p. 57. HALPERN, E., LEITE, L., SILVA FILHO, J.. Bebendo a bordo: tradição aprendida. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia. 2010. p. 156. Disponível em: http://goo.gl/FgEqmk. Acesso em: 2 out. 2013. 192 BELLUZZO, Rosa. Os Sabores da América: Cuba, Jamaica, Martinica e México. 2 ed. São Paulo. Tornado Editorial, 2002, p. 70. 191 68 Na Marinha brasileira do século XIX, a cachaça era a bebida predileta, sendo fartamente disseminada entre marujos e oficiais. Segundo Juvenal Greenhalgh, ela substituiu o vinho português que era servido antigamente e passou a fazer parte da: ração que se fornecia diariamente aos marinheiros. Em pouco, esse hábito tornava-se vício e o abuso da medida vinha a ser causa da maior parte dos atos de indisciplina que se produziam amiúde a bordo dos navios e estabelecimentos militares e que chegavam, por vezes, a assumir a gravidade da desordem e do motim193. Doses diárias de bebidas alcoólicas eram previstas na Legislação. Consta a distribuição de aguardente em pelo menos dois decretos, que contêm as tabelas de alimentação para oficiais e praças194. Em um deles há menção ao grog, que era servido apenas ―nas ocasiões de grandes fainas, de muita chuva ou de muito frio‖ Tais indícios nos fazem supor que, com as inovações tecnológicas, houve um maior disciplinamento imposto aos marinheiros após a segunda metade do século XIX, visando restringir ao máximo o consumo de álcool nos navios. A Ordenança de 1883 previa castigos para aqueles que consumissem mais bebida do que o permitido. Os que se embriagavam em mar, em serviço, os que voltavam bêbados das licenças, os que a escondiam ou tomavam além do permitido pelas tabelas, sofreriam punições variadas, que podiam chegar até 25 chibatadas. Não custa lembrar: o marujo Laurentino, que, em 1873, recebeu 500 chibatadas a mando de Guillobel e Marcelino Rodrigues. Ele foi o último marinheiro a receber chibatadas na Marinha de Guerra do Brasil, ocasião em que se deflagrou a Revolta da Chibata em 1910; ambos sofreram as punições por tentarem entrar com bebidas a bordo. A prática de ingerir bebidas alcoólicas permanece até os dias atuais, ao arrepio da lei, e muitas vezes com a anuência dos superiores195. A presença das máquinas fez com que o espaço nas embarcações – que já era reduzido – ficasse ainda menor e mais insalubre. Nessas condições, é provável que as insatisfações se transformassem em conflitos, aumentando a preocupação dos comandantes em relação à manutenção do trabalho disciplinado, da ordem e da 193 GREENHALGH, Juvenal F. L. Presigangas e calabouços ou prisões da Marinha no Século XIX. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha. 1998. p. 17. 194 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto nº 541 de 5 de novembro de 1847 e Decreto n. 4.954 de 4 de maio de 1872. 195 HALPERN, E., LEITE, L., SILVA FILHO, J. 2010, p. 162. 69 hierarquia. Fazer parte da estrutura de trabalho da Marinha não significava apenas cumprir a pesada jornada de trabalho. Era fundamental que o comportamento do marinheiro fosse produtivo, disciplinado, pacífico e obediente. Isso pressupunha a formação de corpos dóceis para a Armada, que fossem mais produtivos e submissos, submetidos a operações viabilizadas pela disciplina que os fizessem reconhecer e respeitar a hierarquia e seus rituais simbólicos. Segundo Álvaro Nascimento, a indisciplina e o analfabetismo dos marujos tornaram-se verdadeiras dores de cabeça para ministros e comandantes, pois como eles poderiam se especializar em assuntos cada vez mais complexos se não sabiam ler e escrever? E mais, como ensinar alguma coisa a indivíduos vistos pelos oficiais como indisciplinados e ignorantes? Tudo isso obrigou essas autoridades a pensar numa série de mudanças para alcançar os novos objetivos196. A mudança mais significativa, e por isso mesmo muito elogiada pelos ministros e oficiais, foi a criação da Companhia de Aprendizes Marinheiros, instituição que se tornou a principal responsável pela formação dos futuros marujos. 3.1 Os "viveiros da Armada" O recrutamento era um problema vivido pelos dirigentes da Marinha. A falta de voluntários ao serviço naval militar, a dependência aos notáveis locais para guarnecer os quartéis e navios da Armada e a notável falta de habilidades marítimas, apresentada pela maioria dos recrutados, deixavam os dirigentes navais preocupados. O ministro da Marinha Francisco Xavier Pais Barreto simplificou o problema e deu a solução para preencher os vazios das fileiras navais: ―para termos marinheiros é mister crea-los‖197. Por essas razões, os dirigentes da Armada criaram as Companhias de Aprendizes Marinheiros. Estas seriam escolas de preparação para futuros marujos, onde haveriam de aprender a ler, escrever, contar, riscar mapas e respeitar a doutrina cristã. Nas palavras do ministro da marinha, Joaquim Rodrigues Torres, a instituição teria como clientela 196 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. 2002, p. 109. BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha. 1860, p. 9 197 70 não só os moços de dez a dezessete anos, que voluntariamente se quiserem dedicar a esta profissão, mas também os órfãos e desvalidos, que para esse fim forem remetidos pelas competentes autoridades locais. Estes moços, recebendo a bordo a educação apropriada, e habituando-se de tenros anos à vida do mar, formarão, em chegando à idade viril, outras tantas companhias de marinheiros militares, que satisfarão a todas as condições do serviço naval198. As Companhias de Aprendizes Marinheiros foram criadas, portanto, com o propósito de socializar meninos pobres no campo marítimo militar. Inicialmente, no ano de 1840, apenas uma Companhia foi constituída, no Rio de Janeiro, subordinada ao Corpo de Imperiais Marinheiros. Depois de implementada na Corte, o projeto de instrução e profissionalização de crianças e jovens pobres da Armada foi ampliado para outras regiões do Império, transformado numa política nacional. A preferência, logicamente, seria dada às províncias litorâneas, pois a proximidade e o envolvimento da população com rios e mares eram bem vistos pelos dirigentes da Marinha, que tinham o interesse em moldar essa cultura marítima popular a favor da prestação do serviço militar para o Estado, em particular na Armada. Ao eleger meninos pobres como alvo dos projetos políticos, educando e profissionalizando-os, a Marinha de Guerra evidenciou que seria por meio de tal prática que conseguiria formar bons marujos. Os elogios dos ministros à instituição, em seus relatórios, são percebidos desde a sua criação, pois acreditavam que dentre os aprendizes sairiam os mais aptos, leais e disciplinados marinheiros, porque estariam desde pequenos acostumados ao rigor da disciplina militar e aos perigos da navegação. Destacavam também que, com o alistamento de meninos pobres, o Império brasileiro finalmente contaria com uma tropa exclusivamente formada por nacionais. 198 Ibid. 1843, p.14-15. 71 Província Decreto de criação das companhias Nº 1.517 de 4 de janeiro de 1855 Nº 1.543 de 27 de janeiro de 1855 Nº 1.987 de 7 de outubro de 1857 Nº 2.003 de 24 de outubro de 1857 Nº 2.003 de 24 de outubro de 1857 Nº 2.725 de 12 de janeiro de 1861 Nº 2.725 de 12 de janeiro de 1861 Nº 2.890 de 8 de fevereiro de 1862 Nº 3.347 de 26 de novembro de 1864 Nº 3.347 de 26 de novembro de 1864 Nº 4.112 de 29 de fevereiro de1868 Nº 4.112 de 29 de fevereiro de 1868 Nº 4.680 de 17 de janeiro de 1871 Pará Bahia Mato Grosso Pernambuco Santa Catarina Maranhão Rio G. do Sul Espírito Santo Paraná Ceará Sergipe Santos Parayba do Norte Amazonas Nº 4.680 de 17 de janeiro de 1871 Rio G. do Norte Nº 5.181 de 16 de dezembro de 1872 Piauy Nº 5.309 de 18 de junho de 1873 Alagoas Nº 5.847 de 2 de janeiro de 1875 Fonte: BRASIL. Coleção das leis do império. Quadro 3: Ordem de criação das Companhias de Aprendizes Marinheiros Anterior às Companhias, a Roda dos Expostos fora a primeira (e durante muito tempo praticamente a única) instituição brasileira criada com o intuito de dar um mínimo de atenção às crianças ―expostas‖ ou ―enjeitadas‖, como eram denominadas aquelas que sofriam abandono, prática comum desde o período colonial. Porém, os dois termos nomeavam práticas totalmente diferentes. Segundo Venâncio, os termos ‗expor‘ ou ‗enjeitar‘ encobriam realidades distintas. Toda mulher que, no meio da noite, deixasse o filho recém-nascido em um terreno baldio estava expondo-o à morte, ao passo que os familiares, ao procurarem hospitais, conventos e domicílios dispostos a aceitar o pequerrucho, estavam tentando protegê-lo. No primeiro caso, os bebês quase sempre eram encontrados mortos de fome, sede, frio ou então em virtude de ferimentos provocados por cães e porcos que perambulavam pelo passeio público. No segundo, a intenção era claramente salvar a criança199. Para Maria Luíza Marcílio, essa fora uma das instituições brasileiras de mais longa vida, sobrevivendo aos três grandes regimes políticos da história brasileira. Criada na Colônia, perpassou e multiplicou-se durante o Império, conseguiu manterse durante a República e só foi extinta definitivamente em 1950! O Brasil foi o último 199 VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias Abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX. Campinas, SP: Papirus, 1999.p. 23. 72 país a abolir a chaga da escravidão. Foi igualmente o último a acabar com este triste sistema200. Muitos médicos denunciavam os maus-tratos sofridos pelas crianças que estavam sob os cuidados da instituição, alertando sobre a falta de cuidados dispensados aos asilados. Segundo Renato Venâncio, muitos escritos médicos guardam palavras de perplexidade em face da constatação de que a Roda dos Expostos era uma verdadeira ―fábrica de anjinhos‖201. Os dados coletados por Marcílio apontam as dimensões alarmantes da mortalidade dos expostos no quadro mais geral da mortalidade infantil. Segundo a autora, de todas as categorias que formaram a população brasileira, incluindo a dos escravos, a dos expostos foi a que apresentou os maiores índices de mortalidade infantil e de mortalidade geral, pelo menos até o fim do século XIX. Não era incomum, nas Rodas de Expostos, a perda de 30% ou mais de bebês, só no primeiro mês de vida. Mais da metade morria antes de completar o primeiro ano de existência. Apenas 20% a 30% dos que foram lançados nas Rodas de Expostos chegaram à idade adulta202 Esther Arantes assinala ainda que na segunda metade do século XIX o Estado, movido pelo discurso médico-higienista e pela demanda de alguns setores da sociedade, promove uma ruptura com o caráter religioso do atendimento destinado às crianças abandonadas, ao construir uma rede profissionalizante de ensino, separada da assistência aos desvalidos203. Para Renato Venâncio, as Companhias de Aprendizes Marinheiros foram um dos elementos constitutivos dessa ruptura em relação ao atendimento de meninos pobres, com mais de sete anos de idade, sendo considerados a primeira rede institucional inteiramente pública para menores que não pudessem permanecer sob a custódia dos hospitais ou de responsáveis204. Depois delas, outras instituições foram criadas. As novas demandas das elites, em virtude da abolição do tráfico de escravos, associadas aos propagadores 200 MARCILIO, Maria Luiza. A roda dos expostos e a criança abandonada na História do Brasil. 17261950. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.). História social da infância no Brasil. 2 ed., São Paulo: Cortez, 1999, p. 51. 201 VENÂNCIO, Renato Pinto. 1999, p. 113 202 MARCILIO, Maria Luiza. 1999, p.237 203 ARANTES, Esther Maria Magalhães. Rostos de crianças no Brasil. In: PILOTTI, Francisco e RIZZINI, Irene. (Orgs.). A arte de governar crianças. A história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino, Ed. Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria Ed., 1995, 168-220. 204 VENANCIO, Renato Pinto. Os Aprendizes da Guerra. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.198-199. 73 do discurso higienista em voga na segunda metade do século XIX, foram os principais elementos que animaram a criação de tais locais, que promoveriam a formação cívica e a capacitação profissional das crianças desvalidas, que assim não seriam ‗entregues a si mesmas, senão depois de terem cumprido os deveres do homem para com a Nação, defendendo-a, e habilitadas para só dependerem de seus braços e da sua habilidade205 A principal apreensão das elites era como iriam conseguir braços para a lavoura, principalmente em virtude da decadência do escravismo. Segundo Martinez, o contexto da crise da escravidão e as discussões em torno da necessidade de se formar trabalhadores livres e disciplinados, sem dúvida foram questões fundamentais para a emergência de preocupações sociais com a criança, em especial, aquela pertencente aos setores mais pobres da sociedade206. Luciana de Araújo Pinheiro, investigando os relatórios ministeriais e policiais da Corte, produzidos nos anos finais do Império, observou a preocupação da capital do país com os problemas decorrentes da escassez de mão de obra e da possibilidade de contorná-los através da formação da criança pobre. Segundo essa autora assim como os ministros, as autoridades policiais são unânimes em apontar a necessidade de dar à infância instrução primária atrelada ao ensino profissional. Mas se os primeiros não apontavam em que tipo de atividade inserir os menores, os chefes de polícia estavam certos de que o trabalho agrícola era a melhor forma de encaminhamento para a infância pobre da Corte. Esta seria, afinal, uma forma fácil de lidar com a escassez de mãode-obra nas lavouras, consequente da crise do escravismo, e de buscar resolver o problema causado pelo excesso de meninos e meninas pobres nas ruas do Rio de Janeiro207‖ O objetivo central era evitar que crianças desvalidas se tornassem futuros vadios, inúteis e perigosos à sociedade. A ideia predominante para boa parte da sociedade ligava crianças pobres e trabalho como forma de evitar a marginalidade. No mesmo período, e observando a situação da província do Maranhão, Regina Faria aponta preocupações semelhantes ao analisar as propostas elaboradas por letrados locais para resolver o problema da formação do futuro 205 MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 193. ABREU, Martha & MARTINEZ, Alessandra Frota. Olhares sobre a criança no Brasil: perspectivas históricas. In: RIZZINI, Irene (org.) Olhares sobre a criança no Brasil – séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Amais, 1997, p.19-37. 207 PINHEIRO, Luciana de Araújo. A civilização do Brasil através da infância: propostas e ações voltadas à criança pobre nos finais do Império (1879-1889). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro. 2003, p. 70. 206 74 trabalhador. Segundo a autora, a proposta mais recorrente, visando transformar indolentes e libertos em indivíduos afeitos ao trabalho, era submetê-los a um processo educativo pautado na educação moralizante e no ensino profissional. A autora observou que muitos letrados defendiam que a educação profissionalizante deveria estar aliada à educação primária, enquanto outros só viam a parte técnica propriamente dita.(...) O ensino profissionalizante era muito valorizado, tendo havido várias sugestões de criação de escolas práticas de agricultura. A Proposta nº 19, por exemplo, sugeria a organização de uma associação para promover o ―ensino agronômico‖, através de escolas práticas de agricultura na ilha do Maranhão e em dez municípios do interior da província. Os sócios de cada região manteriam sua escola, na qual seriam feitos experimentos com novas culturas e preparados trabalhadores habilitados para operar o ―sistema aratório‖. Cada sócio poderia indicar até um determinado número de alunos. O autor, prevendo a possibilidade de não existirem na província pessoas habilitadas para ensinar em tantas escolas, sugeria a contratação de agrônomos práticos em outras províncias ou no exterior (Porto Rico, Cuba ou Demerara). A ação dessa sociedade incluiria também a publicação de um jornal para divulgar as notícias de todas as escolas208 A ideologia do trabalho estava atrelada, portanto, à ideia de regeneração, controle social e principalmente de disciplinamento urbano, já que muitas crianças desvalidas, caso as propostas tivessem seguido adiante, não mais circulariam pelas cidades. O propósito de disciplinar as classes populares e incentivar-lhes ao trabalho vinha atrelado à tentativa de ressemantizar a noção de trabalho que vigorava até então, visto como algo pejorativo, degradante, menor, típico de escravo. Irene Rizzini aponta elementos fortes para confirmar as dificuldades dessa empreitada, pois em uma sociedade escravista, esta não deve ter sido uma tarefa fácil. No relato de Frei Fognano, diretor da Colônia Orfanológica Isabel, no Pará, sobre o comportamento das crianças da capital da província, remetidas para a instituição, há evidências da forte associação existente entre trabalho manual, escravidão e castigo. O relatório, além de apontar a resistência dos meninos ao trabalho-aprendizado, na instituição, menciona o fato de que ―a maior parte delles [repetia] que o trabalho só é próprio do escravo!‖209 Os indícios são que a educação destinada aos pobres, na segunda metade do século XIX, esteve diretamente relacionada à formação de um certo trabalhador que tivesse habilidades de saber ler/escrever/contar, demandadas pelas atividades 208 FARIA, Regina Helena Martins de. 2012, p. 275-276. RIZZINI, Irmã. O cidadão polido e o selvagem bruto: a educação dos meninos desvalidos na Amazônia Imperial. Tese ( Doutorado em História). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2004. p. 242. 209 75 econômicas, mas também dominasse artes/ofícios, fosse obediente, disciplinado e tivesse amor ao trabalho. Fonte: Escola de Aprendizes Marinheiros. Disponível em: http://goo.gl/U4DeGB. Acesso em: 21 ago 2014. Figura 2: Companhia de Aprendizes Marinheiros da província de Espírito Santo, em 1862. O discurso dos ministros da Marinha estava em consonância com esses pressupostos. Assim como os projetos políticos visavam à fabricação de um novo trabalhador, instruindo-o desde os tenros anos, a Marinha queria construir um novo perfil de marinheiro, mais disciplinado, alfabetizado, habituado à rudeza da vida no mar e profissionalizado, tendo como matéria-prima as crianças desvalidas. 3.2 Assentando praça na Companhia de Aprendizes Marinheiros Para um menino ser aceito na Companhia de Aprendizes Marinheiros, alguns critérios deveriam, entretanto, ser respeitados. Segundo a legislação, só seriam aceitos os que tivessem de dez a dezessete anos, com constituição robusta, própria para a vida do mar e, por fim, estar ali de bom grado, voluntariamente210. Havia, porém, a possibilidade de recrutamento de órfãos e desvalidos, quando enviados por tutores, curadores ou autoridades locais. Posteriormente, foi determinada a aceitação de menores de ―10 annos, que tenhão sufficiente 210 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto nº 411-A, de 5 de Junho de 1845. Art. 31. 76 desenvolvimento physico para os exercicios do aprendizado‖211. Nos anos iniciais, parece ter sido difícil completar os quadros de aprendizes da única Companhia existente, com base no mero voluntarismo das famílias. Os dirigentes sabiam que sem incentivos mais precisos não teriam êxito em seus projetos, por isso solicitaram do Governo providências no sentido de assegurar pensões por certo numero de anos aos pais que apresentassem seus filhos para o serviço. Por este modo, e pondo em execução a medida, já resolvida para a província do Pará, nas outras províncias marítimas haverá mais probabilidade de elevar o Corpo ao estado próximo do completo, por que a experiência vai mostrando que a dificuldade da aqcuisição de voluntários e de menores procede de eles serem geralmente mandados para fora dos logares, onde existem suas famílias212. Outros, porém, não tiveram muitas opções e muito menos incentivo para servir nas forças Armadas - as contingências os levaram. Antônio Francisco de Paula de Holanda Cavalcanti de Albuquerque, ministro da Marinha em 1846, diz em seu relatório que a Companhia de Aprendizes prestou grande serviço ao ―dar emprego util, e mesmo salvar da miséria muitos menores, cuja condição a secca das provincias do Norte torna lamentavel‖213. Fonte: SDM. Divisão de Documentos Especiais, Fundo: imagens, Série: Escola de Aprendizes. Escola do Ceará, 1917. Figura 3: Marinheiro cortando o cabelo de um aprendiz. Ele está certamente referindo-se às vitimas da seca ocorrida no Ceará em 1845214, quando o presidente da província do Ceará reportou-se ao ministro da Marinha avisando que a longa estiagem gerara 120 novos recrutas para a Armada, incluindo 100 crianças, a maioria provavelmente órfã. Segundo Silvana Jeha, 211 Ibid. Decreto nº 1.591 de 14 de abril de 1855. Ibid. Relatório do Ministério da Marinha. 1848, p. 7. 213 Ibid. 1846-3, p. 12 214 SOUSA, José Weyne Freitas. Política e Seca no Ceará: um projeto de desenvolvimento para o Norte (1869-1905). Tese (Doutorado em História).Universidade de São Paulo, São Paulo.2009, p. 43. 212 77 muitas dessas crianças eram indígenas e, que listados em sequência, Cosme e Damião eram certamente gêmeos. Outro nome dessa lista trágica que chamou atenção foi o de Brazileiro Manoel da Silva. Quem o nomeou assim? Seus pais ou o funcionário do Governo que escreveu a lista de recrutas? Dificilmente alguém os reclamou e desconfio que muitos devem ter morrido durante a viagem215. Thomas Ewbank soube por um deputado cearense desse período que em decorrência do desastre climático muitos Indians—even Indian mothers— brought in their boys and sold them to the navy for food. Previously it was difficult to get an Indian lad under seventy milreis, but now their parents, having nothing for them or themselves to eat, freely offered them for ten216. No Quadro 1 deste texto percebe-se que a maior parte dos marinheiros eram provenientes da Região Norte. Segundo Peter Beattie, no Exército o padrão era o mesmo217. Para este autor, o recrutamento de vítimas da seca foi uma medida criativa para prover ajuda sem onerar os cofres públicos provinciais, além de contribuir para a formação da imagem do Nordeste como um local marcado pela pobreza, subnutrição, exploração e falta de educação218. Em 1855, na tentativa de seduzir familiares a alistar seus filhos e protegidos, a Armada começou a distribuir, pela primeira vez, um prêmio de 100 mil-réis para aqueles que alistassem seus filhos voluntariamente nas Companhias de Aprendizes Marinheiros219. Esse prêmio poderia ser depositado em favor do aprendiz, caso os pais ou tutores assim preferissem, para que eles mesmos o recebessem após o tempo de formação na instituição. Foi a primeira vez que, legalmente e de forma nacional, a Armada começou a oferecer dinheiro para as famílias em troca de seus filhos, pois antes isso deveria ocorrer por meio de tristes acordos informais em que os pais vendiam, eram obrigados a vender ou tinham seus filhos sequestrados pelas autoridades. 215 JEHA, Silvana Cassab. 2001. p.115. EWBANK, Thomas. Life in Brazil; or a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm.Harper & Brothers publishers 1856, p. 323. Tradução livre: Indígenas — inclusive mães indígenas — traziam seus meninos e os vendiam para a Marinha por comida. Anteriormente era difícil conseguir um jovem indígena por menos de setenta mil-réis, mas agora seus pais, não tendo comida para si próprios e para seus filhos, livremente lhes ofereceram por dez. 217 BEATTIE, Peter M. 2009, p. 425. 218 Ibid, p. 205. 219 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto 1.591 de 14 de abril de 1855. 216 78 Segundo Matilde Crudo, a legalização dos prêmios fez surgir sentimentos contraditórios. A algumas mães, em virtude da pobreza, entregavam seus filhos com a certeza de que lhes estavam reservando um futuro melhor, num gesto de amor materno. Outras mães - em nome desse mesmo amor - reivindicaram a devolução de seus filhos indevidamente encaminhados pela polícia ou porque a melhoria de condições de vida lhes permitira manter a família220. Essa segunda opção, na maior parte das vezes, era dificultada, pois caso os pais desejassem voltar atrás e retomar a guarda do filho, ―deveriam restituir ao erário público, tostão por tostão, tudo aquilo gasto com o aprendiz no período de internação, somado ao prêmio recebido na ocasião do alistamento‖221. A família representava, para os marinheiros, a imagem de dias menos perigosos e confortáveis, e a mãe era a representação maior do amor, carinho e proteção, da qual grande parte deles tinha lembrança. Mas não só na memória eles lembravam de suas mães... registravam seus sentimentos na pele. Apesar de, no século XIX e grande parte do XX, no mundo ocidental, as tatuagens serem disseminadas, em sua maior parte, apenas entre grupos masculinos marginalizados, tais como marinheiros, presidiários, motoqueiros etc., uma das tatuagens mais encontradas dentre os homens do mar é justamente aquela em que se lê, dentro de um coração: ―amor de mãe‖ ou o nome da progenitora222. A família, porém, nem sempre constitui um local onde as crianças estão seguras. Em um gênero poético-musical conhecido como modinha, muito popular no começo do século XX, encontra-se a trajetória de um marujo que fora alistado com o consentimento de sua mãe na Companhia de Aprendizes. Segundo Uliana Ferlim, as modinhas ocupavam-se de temas amorosos, fosse uma exaltação, uma declaração à amada, um amor idealizado, puro, casto e, às vezes, a descrição do amor maternal, muitas vezes ligado à idéia de sofrimento compartilhado por vários tipos de trabalhadores, dentre eles os marinheiros223. Na canção aludida, o marujo diz que havia nascido ―num lar sem nobreza‖, mas, mesmo assim, ―era muito feliz‖. Órfão de pai aos dez anos, ele lamenta o 220 CRUDO, Matilde Araki. Infância, trabalho e educação. Os aprendizes do Arsenal de Guerra de Mato Grosso. (Cuiabá, 1842-1889). Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2005, p.73. 221 NASCIMENTO, Álvaro Pereira. 1999. P. 78. 222 JEHA, Silvana Cassab. 2011, p. 179. 223 FERLIM, Uliana Dias Campos. A polifonia das modinhas: Diversidade e tensões musicais no Rio de Janeiro na passagem do século XIX ao XX. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2006, p. 47. 79 momento de sua maior infelicidade, que foi ser alistado na Companhia de Aprendizes. Cantarolando sobre seu infortúnio, de forma poética, descreve o processo de captação de crianças pela Marinha: Meio sorrindo o governo À minha mãe ofereceu Paga que trouxe do inferno, E minha mãe recebeu! Baniu-me do lar querido, Onde eu havia nascido, Por cem mil réis me vendeu!224 Pelos comportamentos adotados pelos adultos ao fugirem do recrutamento, percebe-se que para a população pobre era preferível viver na pobreza, em liberdade, à caserna com soldos mirrados. Muitas crianças certamente prefeririam ficar perto de suas famílias, brincar com seus irmãos ou sozinhas, a viverem uma vida ritmada por horários e sujeita a uma disciplina militar. Existiam ainda os casos de pais que eram enganados por pessoas que se ofereciam para intermediar os alistamentos, como ―tutores‖ ou "protetores", e embolsavam o prêmio. Para a Armada, o problema maior estava nos casos de deserção do menor. Para proteger as finanças do Estado houve mudanças nas instruções sobre o prêmio e o pecúlio dos aprendizes marinheiros, e o valor concedido aos pais e tutores passou a ser revertido ao menor que não desertasse, e este só receberia cinquenta meses após assentar praça225. Segundo Monica Lins, todas as discussões de então, sobre a propriedade ser sobre as coisas e não sobre as pessoas, foram de pouca valia para as crianças e os adolescentes. Esses jovens, além de não terem voz, de sofrerem o sequestro nas ruas, de serem enviados a contragosto para a correção, durante um longo período ainda tiveram sua liberdade trocada por um prêmio226. Para Renato Venâncio, ―não seria exagero afirmar que, no século XIX, a referida instituição foi uma das raras opções de ascensão social para os filhos de 224 Trovador maritimo, ou, Lyra do marinheiro, contendo modinhas, recitativos, lundus, canções, cançonetas, poesias, tangos e fadinhos marítimos e populares, escritos e colecionados uns, e outros apanhados diretamente da tradição oral por José Embarcadiço, p. 42-44. Apud. JEHA, Silvana Cassab. 2011, p. 179. 225 LINS, Mônica Regina Ferreira. 2012, p. 120. 226 Ibid. p.121. 80 forros ou de negros livres‖227, apesar de fazer parte do temido mundo militar. Referindo-se ao período antes da Guerra do Paraguai, o autor diz que as companhias de aprendizes viveram anos de notável expansão e de prestígio. A partir do início da Guerra do Paraguai, essa situação sofre uma brusca inversão, instalando-se um clima de desconfiança por parte das camadas populares que só será superado após a supressão do conflito228. Se o alistamento forçado de crianças e adultos, em tempos de paz, gerava reclamações em virtude da violência e da arbitrariedade, na mobilização para a guerra, quando havia necessidade de mais marinheiros para aumentar os efetivos e substituir os doentes, feridos e mortos em combate, a situação tornou-se ainda mais tensa. Uma das razões que Vitor Izecksohn aponta para o elevado número de voluntários no início daquela contenda internacional, foi a crença de que esta guerra seria curta229. Porém estendeu-se e as notícias das mortes230, doenças, mutilações, fome e infortúnios fizeram cessar o patriotismo. Para Wilma Peres, a Guerra do Paraguai evidenciou a debilidade estrutural do Império brasileiro. A libertação de escravos para lutar nela só ratificou a dificuldade do Estado em mobilizar seus cidadãos para o serviço militar231. Ao se dar conta da gravidade que o conflito assumia, o Governo levou o recrutamento a novos extremos. Tentou arregimentar 1600 homens dedicados à vida no mar, matriculados nas Capitanias dos Portos de todas as províncias232, isentos desse encargo cívico até então. Tais indivíduos receberiam duzentos mil-réis de prêmio, além do soldo de voluntário, que era de 20 mil-réis, por dois anos de serviço, ou por menos tempo se a guerra acabasse logo. Segundo Fabio Morais, o Ceará não conseguiu alcançar a cota de 90 recrutas estipulada e ainda tinha que concorrer, no ano fiscal de 1867-68, com um 227 VENÂNCIO, Renato Pinto. 2004, p. 201. Ibid. p.202. 229 IZECKSOHN, Vitor. Recrutamento militar no Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai. In: CASTRO, Celso, IZECKSOHN, Vitor e KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 189. 230 Estudos mais recentes calculam que o Brasil enviou para o front, entre 1865 e 1870, cerca de 139 mil soldados. Quanto às baixas produzidas nas forças brasileiras, elas são estimadas em torno de 50 mil. As polêmicas em torno da exatidão das baixas fornecem um parâmetro sinistro de comparação quanto à extensão da mortandade e violência dessa guerra. Cf. DORATIOTO, Francisco F. M. Maldita Guerra. São Paulo: Companhia Das Letras, 2002, p. 456-470. 231 COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: o exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo: Hucitec; Campinas: Ed. da UNICAMP, 1996. p. 151 e 236. 232 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto nº 3.708, de 29 de Setembro de 1866. 228 81 contingente de 80 recrutas. Diante das dificuldades encontradas para se arregimentar as quantidades necessárias de marinhagem para tripular as embarcações de guerra do Brasil em ação no Paraguai, o Ministério da Marinha elevou consideravelmente os valores dos prêmios pagos aos marinheiros que se apresentassem para o serviço da Armada por um ano. Para se ter uma ideia, o valor que anteriormente era de 200 mil-réis para dois anos, subiu para 400 mil-réis pelo tempo de serviço de um ano233, e mesmo assim os voluntários não apareceram. Pelo visto, continuar no ramo da pesca ainda era um bom negócio. Além de enviar escravos e pescadores para a Guerra, a Armada começou a enviar os meninos das Companhias de Aprendizes para os batalhões navais, muitas vezes sem terem recebido treinamento adequado. O crescente envio de aprendizes para o front pode ser acompanhado pelos dados apresentados por Jorge Prata: 1863 – 93; 1864 – 382; 1867 – 814; 1868 – 1.470234. Além do aumento do número de crianças enviadas, outro dado preocupante é que 89,87% delas haviam sido apresentadas por autoridades policiais235. Venâncio descreve o período como uma caçada às crianças pelas ruas para o esforço da Guerra, transformando-os em pequenos marinheiros de 11 ou 12 anos de idade. Por isso, esse autor considera que apesar da louvação da historiografia oficial em relação aos ―grandes almirantes‖, foram os garotos saídos das ruas, ou praticamente raptados das suas famílias, que de fato se expuseram aos perigos das balas de metralhadoras e de canhões. Foram eles que, de maneira mais arriscada, ajudaram os aliados antiparaguaios a vencer a guerra236. A incorporação de meninos e jovens nas tropas da Armada é algo pouco discutido pela historiografia, mas igualmente reforça a interpretação de Wilma Peres sobre os óbices enfrentados pelo Estado para arregimentar tropas237. 233 MORAIS, Fábio André da Silva. “Às armas cearenses, é justa a guerra”: Nação, honra, pátria e mobilização para a guerra contra o Paraguai na Província do Ceará. (1865-1870). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza. 2007, p 149. 234 SOUSA, Jorge Luiz Prata. A Guerra do Paraguai no contexto da escravidão brasileira. RJ: MAUAD/ADESA, 1996, p. 74. 235 SOUSA, Jorge Prata. A mão-de-obra de menores: escravos, libertos e livres nas instituições do Império. In: SOUSA, Jorge Prata (org.). Escravidão: ofícios e liberdade. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro- APERJ, 1998. Apud. LINS, Mônica Regina Ferreira. Os filhos das "classes perigosas" no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro e a regeneração pelo trabalho (1871-1910). In: XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH: 50 anos, 2011, São Paulo. 2011. v. 1, p. 11. 236 VENANCIO, Renato Pinto. Os Aprendizes da Guerra. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 1999, p. 208. 237 COSTA, Wilma Peres. 1996. p. 151 e 236. 82 Especulando sobre os resultados possíveis das Companhias, João Maurício Wanderley, ministro da Marinha em 1869, mostrava-se otimista com as progressões. Munido de mapas e tabelas enviados pelos comandantes de todas as províncias relata que o Corpo de Imperiais Marinheiros contou: em 1865, com 295 aprendizes; em 1866, com 316; em 1867, com 336; e em 1868, com 402. Sua expectativa era que, em breve, as Companhias pudessem responder pelo estado completo da Marinha, isto é, com 4 mil praças. Em seus cálculos, esses marinheiros seriam conseguidos da seguinte forma: Na corte e província do Rio de Janeiro, em lugar de uma só Companhia com 200 praças, a qual como já informei, tem perto de 400, pode-se estabelecer mais cinco, formando o total de 1200 praças. Nas províncias do Amazonas, Rio Grande do Norte, Parahyba e Alagoas, da mesma sorte se pode introduzir tão útil instituição. Teremos portanto mais 800, que juntas as 800 que acrescerão as companhias da corte formaram 1600 praças. Reunindo este ao das companhias atuais que é de 2100, teremos 4000 aprendizes marinheiros, isto é, pouco mais ou menos o numero sufficiente para renovação do corpo de imperiais marinheiros238. As progressões do ministro Wanderley estavam corretas. Houve, de fato, uma mudança na forma que a Marinha encontrou para preencher suas fileiras. Se antes eram os adultos recrutados que estavam em maior número nos quartéis e conveses, a partir de 1870 as Companhias de Aprendizes deram resultados visíveis, e o número de egressos dessas instituições superou o de recrutados com o passar dos anos. A criação do Corpo de Imperiais Marinheiros, em 1840, havia gerado uma maior burocratização da Marinha, aumentando a quantidade de informações disponíveis sobre os recrutas. As tabelas anexadas aos relatórios ministeriais permitem saber-lhes a origem, a forma de ingresso e o número dos recrutados em cada província, por ano. Segundo consta nos relatórios ministeriais, entre os anos de 1845 e 1866 ingressaram na Armada 6509 marinheiros; destes, 4292 foram recrutados e 2019 eram egressos das Companhias de Aprendizes. Entre 1867 e 1874, o número de aprendizes já supera o de recrutados, já que foram 1089 os recrutados contra 1888 ex-aprendizes das Companhias. Entre 1874 e 1888 é que se percebe mais claramente a mudança, pois figuram apenas 335 recrutados contra espantosos 4504 238 BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha. 1868, p. 11. 83 ex-aprendizes. Foi uma ruptura significativa com relação à forma de se conseguir marinheiros para a Armada. Fonte(s): BRASIL. Relatórios do Ministério da Marinha. 1867, p. N10. Quadro 4: Ingresso de marinheiros no Corpo de Imperiais Marinheiros (1845-1888) O ministro, entretanto, faz uma objeção às despesas que tais instituições acarretariam. Alega o alto custo de fabricação de um marinheiro nessas instituições, sem precisar o valor. Esse dado é fornecido, talvez com algum exagero, por outro ministro, Joaquim Delfino Ribeiro da Luz. Em 1873, explicando, na Assembleia geral sobre os montantes gastos pela Armada, diz que a falta de voluntários ao serviço naval militar motivara a criação das Companhias. Tratava-se, infelizmente, de um mal necessário, já que uma praça proveniente da dita companhia nos fica muito cara, por que é preciso receber um menino de 12 annos, crial-o e educal-o até os 17 em que começa a prestar serviços ao Estado. Esta praça entra para o corpo com uma despeza não inferior a três contos de réis, e muitas vezes mais239. Na concepção de João Mauricio Wanderley, a criação da instituição fora uma medida eficiente para renovar as guarnições da Marinha, pois, para completar o quadro de efetivos do Corpo de Imperiais Marinheiros, bastava ―preparar as companhias de aprendizes marinheiros para dar aquelle contingente annualmente. Em logar de exigir de cada província certo numero de recrutas, pediremos de cada companhia egual numero de jovens nas condições convenientes. É mais simples e menos sensível à população‖240. 239 BRASIL. Annaes do Senado do Império do Brasil. 1ª Sessão da 15ª Legislatura de 27 de novembro de 1872 a 31 de janeiro de 1873. Fala de Joaquim Delfino Ribeiro da Luz. Sessão em 3 de abril programação do orçamento. p. 141 240 Ibid. Relatório do Ministério da Marinha. 1869, p. 11 84 Segundo Fabio Faria Mendes, o recrutamento não era uma atividade administrativa regular do Império brasileiro, bem como que para seu sucesso utilizava-se de todos os expedientes possíveis, por vezes desesperadamente. Sua frequência e força eram episódicas, porque dependiam das necessidades de reposição da tropa, das emergências militares, dos humores políticos, fazendo com que seus resultados fossem imprecisos. Segundo o autor, eram ausentes quaisquer mecanismos regulares de reposição das fileiras, e a falta de quaisquer registros prévios, tanto dos indivíduos aptos ao serviço quanto dos isentos, tornava a tarefa altamente arbitrária, imprevisível e errática241. Caio Prado Jr. chamou o recrutamento de ―espantalho da população‖242, em virtude do pânico que provocava nas localidades. Um presidente de província do Pará, reportando-se ao ministro da Marinha, ao lamentar sobre os poucos soldados enviados, justifica o não-cumprimento das metas alegando o corre-corre provocado pela atividade recrutadora, pois ―a bandeira nacional, quando surge tremulando por esses remotos lugares, em vez de causar satisfação e alegria, espalha o terror‖243 nos homens que, temerosos, fugiam. Álvaro Nascimento diz que as Companhias de Aprendizes representavam, para os dirigentes da Armada, o que de melhor fora pensado até então em termos de reposição de tropas, uma vez que as guarnições não seriam mais compostas por homens destreinados, indisciplinados e de idade relativamente avançada, mas por jovens que haviam crescido em uma escola militar, onde foram, em tese, previamente moldados e habituados desde cedo nas lides marítimas, condições desejáveis para um bom militar a serviço dessa força armada244. Quando os quadros estivessem inteiramente completos com egressos das Companhias, o ministro João Wanderley acreditava que a Marinha não mais teria a bordo o elemento heterogêneo da marinhagem, que constitue ainda hoje um terço das guarnições, e dificilmente se accommoda às regras da obediência à que não foi acostumado. Compostas as Guarnições com gente tão idonea será talvez possível realizar uma outra medida digna de reflexão e estudo - a supressão dos castigos corporaes – por ora justificados, por que entram na organização dellas homens que não podem ser governados somente pelo estimulo245 241 MENDES, Fábio Faria.1998. PRADO JÚNIOR. Caio. 2000, p. 318. 243 AN. Série Marinha, XM 107, Correspondência com o presidente do Pará. Apud. JEHA, Silvana. Cores e marcas dos recrutas e marujos da Armada, c. 1822-c. 1860. Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, 7, 1: 36-66, 2013, p. 53. 244 Nascimento, Álvaro. 2002, p. 70. 245 BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha.1869, p. 11 242 85 O ministro Joaquim Delfino Ribeiro da Luz retomou a questão anos mais tarde, em 1874, dizendo que o Corpo de Imperiais Marinheiros, tendo praças ―morigeradas‖ e ―disciplinadas‖, bem que poderia aliviar os castigos corporais a bordo. No entanto, considerava perigosa a abolição total. Conhecedor das forças navais de outras nações, justificava a manutenção dos castigos físicos alegando que estes existiam até ―nas marinhas dos países mais civilizados‖. Entretanto, ressaltava a necessidade, já reiterada por ministros anteriores, de revisar os Artigos de Guerra, principalmente o art. 80, pois a interpretação dada pelo oficialato gerava abusos. Os ministros preocupavam-se com os excessos de alguns oficiais, mas contraditoriamente justificavam a permanência dos castigos físicos porque o recrutamento ainda trazia para os quartéis um pessoal resistente à disciplina, além de haver a relutância de maior parte dos oficiais. Afinal de contas, eram estes que lidavam cotidianamente com os marinheiros e achavam perigoso abrandar o regime disciplinar. Mesmo com a criação das Companhias de Aprendizes Marinheiros, o regime disciplinar não foi abrandado, ainda que as tropas estivessem quase todas completas com egressos dessas Companhias. 86 4. A Companhia de Aprendizes Marinheiros da província do Maranhão (18701900) Antes da criação das Companhias Fixas de Marinheiros, crianças e jovens a serviço da Armada eram distribuídos por vários navios, sem critério algum - bastava haver necessidade. Com a criação de quatro delas, um princípio de organização passou a ser adotado e todos os meninos passaram a ficar aquartelados na fragata Príncipe Imperial, onde seriam primeiramente instruídos em primeiras letras e nos princípios da doutrina cristã para, depois, ser embarcados como grumetes nos navios da Armada246. A instituição das Companhias de Aprendizes Marinheiros, a partir de 1840, deu impulso ao projeto naval de nacionalização, militarização e profissionalização das tropas. Além de ter uma tropa formada exclusivamente por nacionais, o propósito de tal programa era dotar a Armada de marujos mais jovens e, em tese, alfabetizados e que houvessem recebido anos de treinamento antes de ser convertidos em marinheiros profissionais. O ensino das primeiras letras aos pequenos tinha como objetivo vencer o analfabetismo que reinava entre os militares de baixa patente, mudando assim a imagem dos marinheiros como sujeitos rudes e ignorantes. O ensino profissional era responsável por socializá-los no mundo marítimo militar, para saberem os nomes e os usos dos instrumentos que utilizariam futuramente. Isso, porém, era apenas o prescrito. No cotidiano dos aprendizes, nem sempre as normas eram cumpridas e as condições de ensino em muito distanciavam-se do desejado. Para conhecermos como esse projeto foi desenvolvido, passamos a descrever e analisar o funcionamento da Companhia de Aprendizes do Maranhão, observando sua dinâmica e contradições de dentro, sem perder de vista, entretanto, as questões políticas mais amplas. Iremos nos deter, agora, nas experiências desses jovens, filhos de famílias pobres, órfãos, ingênuos, libertos e expostos, que chegaram de diversas formas aos cuidados dessa instituição militar comandada por oficiais graduados, destinada a formar marinheiros para a Armada. Nas séries documentais pesquisadas, encontramos pistas de momentos das vidas desses jovens e crianças. Indícios de 246 ANTUNES, Edna Fernandes. 2011, p. 87. 87 como viviam, o que comiam, vestiam, aprendiam, assim como parte de suas experiências concretas, marcadas pela dominação e violência, mas também pela astúcia e resistência. Faz-se necessário destacar que as series documentais consultadas não contemplam a narrativa daqueles jovens - suas vozes não aparecem. O desafio foi, portanto, buscar uma aproximação de como foi ser um aprendiz na Companhia de Aprendizes Marinheiros da província do Maranhão, entre 1870 e 1900, escovando os indícios a contrapelo, como sugeriu Walter Benjamim, contra as intenções de quem produziu os documentos247, dando sentido aos fragmentos de suas histórias. 4.1 O controle institucional A rotina precrita para os aprendizes era rígida até para os padrões da época. As crianças entravam muito cedo no campo militar, ficando sem muito contato com os familiares (aqueles que ainda os tinham) e com o mundo civil em geral, pois deviam ficar aquartelados em uma espécie de ―quartel-escola‖, localizado nas instalações da Capitania dos Portos da província. As Companhias de Aprendizes Marinheiros foram criadas para ser uma instituição total248. Para Erving Goffman, instituições construídas nesses moldes servem como local de confinamento por excelência, com o objetivo de ordenar melhor o tempo, centralizar a autoridade e manter os internos em maior vigilância. Pela grade de horários elaborada (Quadro 6) percebe-se que os legisladores queriam que os aprendizes tivessem o tempo rigorosamente dividido e cronometrado. Conforme o regulamento, o dia dos aprendizes deveria começar cedo. Às cinco horas todos deveriam estar de pé para fazer a limpeza do quartel. Depois teriam aulas de natação na praia ou na "banheira" que havia no quartel. Acreditamos que esta era destinada aos principiantes na natação, por não ser sensato deixar crianças destreinadas nas águas traiçoeiras do mar sem um ensino prévio em um local mais tranquilo. Estavam previstas aulas de primeiras letras, fundamentos das ciências náuticas e instrução militar. Havia horário para lavar as próprias roupas, tomar 247 GINZBURG, C. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 43. 248 GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. 88 banho, cear e para o recreio. Poderíamos supor que nesse horário os aprendizes iriam ter um momento de descanso, só deles, longe da vigilância e com um relaxamento da hierarquia, para se divertirem depois de um dia estafante. Mas, conforme o regulamento, isso não tinha lugar. Nas letras miúdas do regulamento, podemos visualizar que no horário do recreio os aprendizes deveriam ter aulas de ginástica. Fonte: Escola de Aprendizes - Marinheiros do Ceará. Disponível em: http://goo.gl/B6ni1W. Acesso em: 21 ago. 2014. Figura 4: Aprendizes realizando exercícios de ginástica. 1917. O controle do tempo não é característica exclusiva das ―instituições totais‖, mas da sociedade moderna como um todo249. Porém, em tais locais, o caráter imperativo do tempo é sentido com mais intensidade, pois foi apenas com o surgimento de unidades estatais relativamente estáveis que o tempo passou a ser experimentado sob a forma de um fluxo contínuo250, principalmente nas forças armadas modernas. A Companhia de Aprendizes Marinheiros do Maranhão seguia o modelo organizacional das Companhias criadas em Santa Catarina e Pernambuco, no ano de 1857 (Quadro 5). A defasagem de funcionários, entretanto, era tamanha que o capitão do porto Joaquim Pereira de Melo não conseguia realizar sua atribuição de recrutar marinheiros com presteza, devido ao baixo efetivo com o qual contava. Sob o seu comando apenas três imperiais marinheiros realizavam ―o serviço do Quartel e 249 THOMPSON, E. P. O tempo, a disciplina do trabalho e o capitalismo industrial. In: SILVA, T. T. da.(org.) Trabalho, educação e prática social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre:Artes Médicas, 1991. p. 44-93. 250 ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1984, p. 48. 89 policiamento dos menores‖, por isso os marinheiros ficavam impossibilitados de sair. Em busca de solução para esse problema, o capitão recorre à Presidência para solicitar soldados do Corpo de Polícia ou do 5 º Batalhão de Infantaria para ficarem no lugar dos marinheiros vigiando a Alfândega. O oficio do capitão apresenta indícios fortes da precariedade do aparato para o recrutamento, pois recorrer a soldados de outros aparatos para ocupar provisoriamente os postos dos marinheiros evidencia haver fragilidades estruturais da Armada na província, com os marujos sobrecarregados de atribuições. Comandante 1 Tenentes 1 Comissários 1 Escrivães 1 Mestre 1 Contramestre 0 Guardiães 1 Mestre d'Armas 1 Marinheiros de Classe Superior 4 Aprendizes Marinheiros 98 Pífaro 1 Tambor 1 Total 111 Fonte: BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto n° 2.725 de 12 de janeiro de 1861. Quadro 5: Organização da Companhia de aprendizes Marinheiros da província do Maranhão O baixo efetivo de marinheiros na província contribuía também para a nãorealização do recrutamento dos contingentes anualmente estipuladas pelo Ministério da Marinha. O capitão era ciente disso, apenas não queria correr riscos ainda maiores, pois a solicitação de soldados de outros aparatos para liberar os marinheiros para a caçada de recrutas tinha como propósito ―evitar alguma ocorrência desagradavel sendo os recrutas condusidos por menores da companhia, como se deo hoje(!)‖251. As cenas de jovens aprendizes, com armas em punho, escoltando adultos pelas ruas da cidade, evidenciam facetas de uma administração militar que se utilizava de improvisações perigosas para desempenhar suas funções mais básicas. 251 MARANHÃO. Ofícios do Capitão do Porto. 1874. Ofícios do Capitão ao Porto ao Presidente da província, de 21 maio de 1874. Setor de avulsos. APEM. 90 PELA MANHA PELA TARDE INSTRUCÇÃO SEXTA-FEIRA " . SABBADO " . . . . . . " " 9 h à 1/2 dia . " . . . " " " . " 1 1/2h à 3 1/2 . . . " " " . " . . 1 a 2 1/2 " " " 9h às 11 1/2 " . 1 1/2h à 3 1/2 " " " . " . " " . " . BANHO E NATAÇÃO RECREIO 1/2 dia CEIA . LIMPESA DE QUARTEL . RECOLHER . 8h LADAINHA " BALDEAÇÃO QUINTA-FEIRA LAVAGEM DE ROUPA . ARTILHARIA " INFANTARIA QUARTA-FEIRA REMOS E VELLAS . APARELHO E AGULHAS " JANTAR TERÇA-FEIRA REVISTA DE UNIFORME . INSTRUCÇÃO PRIMÁRIA " 8h " depois SEGUNDA-FEIRA sendo antes da corrida ou 2 hs 9h . 8 1/2 à 9 1/2 6 às occasião que a maré permittir, 5h Intervallos de 1 hora todos dias na DOMINGO MISSA ALVORADA DIAS DA SEMANA ALMOÇO MILITAR 1 1/2h a 2 3 às 5h 5h às 5 1/2 5 1/2 à 7 1/2 . " " . " . . " " . " . . . " " . " . . . . " " . " 5 1/2 à 8 . . . . " " . " . . . . 5 às 7 1/2 " " . " 1º Nos sabbados, depois da ceia, se fará a limpeza do armamento. 2° Nos domingos, depois da missa, mostra geral. 3º Todos os dias, na hora do recreio, exercício de gymnastica. 4º Todos os dias, depois do almoço, formão-se os aprendizes para passar-se mostra de roupa 5º Ao toque de silêncio às 9 horas e 30 minutos, fecha-se o portão do quartel. Quartel da Escola de aprendizes marinheiros do Maranhão em 31 de Dezembro de 1885. Fonte: Ibid. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros (1885-1888). Mappa do serviço semanal em que se applicam aos aprendises marinheiros da companhia da província do Maranhão. 31 de dezembro de 1885. Setor de avulsos. Quadro 6: Grade de horários dos aprendizes marinheiros da província do Maranhão - 1885 91 O discurso de que os aprendizes, além de abrigo e alimentação, teriam uma educação de qualidade pode ter seduzido muitas famílias pobres a entregar seus filhos para a instituição. Na província do Maranhão, segundo um relatório da Presidência no ano de 1874, havia uma população de aproximadamente 336.325 habitantes, dos quais 73.245 eram escravos e 263.080, livres. Da população livre, frequentavam as 132 escolas de instrução primária apenas 4.793 discentes, sendo 3.642 meninos e 1.151 meninas252. A escolarização não chegava sequer a 2% da população livre em geral. Segundo Antônio Almeida, a Freguesia de Nossa Senhora da Vitória, localizada na capital da província, que era considerada uma das mais importantes e mais alfabetizadas, possuía 39% de sua população livre desprovida de instrução escolar253. As possibilidades de escolarização por meio das escolas de primeiras letras eram visivelmente escassas para grande parte do segmento infantil pobre. De acordo com os trabalhos de César Castro, o acesso dos meninos das classes populares maranhenses ao campo escolarizado e também profissionalizante poderia se dar por meio da Casa dos Educandos Artífices254, criada em 1841, e pela Escola Agrícola do Cutim, criada em 1859. Ambas ministravam o ensino de ofícios e primeiras letras. A Escola do Cutim, entretanto, formava mão de obra especificamente para a lavoura. Para Castro, esta foi infrutífera, pois em todo o seu período de existência teve apenas 14 alunos matriculados; vilipendiada por desvios de verbas, sucumbiu em 1865255. Na apreciação feita pelo presidente de província Eduardo Machado, em 1851, o número de aprendizes na Casa dos Educandos Artífices havia extrapolado o estabelecido no regulamento da instituição e os requerimentos de admissões só 252 Ibid. Relatório com que o exm. sr. dr. Augusto Olympio Gomes de Castro passou a administração da província ao 3º vice-presidente, o exm. sr. dr. José Francisco de Viveiros, no dia 18 de abril de 1874, Maranhão, Typ. do Paiz, 1874. Apud. COSTA, Odaléia Alves da. O livro do povo na expansão do ensino primário no Maranhão (1861-1881). Tese (Doutorado em Educação). Universidade de São Paulo. São Paulo. 2013, p. 30. 253 OLIVEIRA, A. de Almeida. O ensino público. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. p. 45-46. 254 CASTRO, César Augusto. Infância e trabalho no Maranhão: uma história da Casa dos Educandos Artífices (1841-1889). São Luís: EDFUNC, 2007. 255 Idem. O Ensino Agrícola No Maranhão Imperial. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 48, p. 25-39 Dez. 2012. Disponível em: http://goo.gl/bwjtiJ. Acesso em: 15 de maio de 2013. 92 aumentavam256. Anos depois, o presidente José Bento de Araújo, em 1888, alegava que os recursos destinados à Casa estavam escassos, tornando inviável a manutenção de um número elevado de alunos. Por isso, baixara a ordem de ―não admittir um só alumno àquelle estabelecimento‖ e dispensar os que estavam além do permitido257. Castro informa que a redução na Casa foi de trezentos para cem aprendizes. Falta de verba, espaço reduzido, epidemias etc. foram as principais justificativas258. Se conseguir escolarizar os filhos já era difícil, depois dessa redução as condições ficaram mais desanimadoras ainda. Muitos pais, mães e tutores, a partir da década de 80 do século XIX, solicitaram vagas para seus filhos naquela instituição - a maior parte delas certamente foi frustrada. Na imprensa, visualiza-se claramente as tentativas: Pedro Paulo de Oliveira Santos. Pedindo que seja admittido no estabelecimento dos educandos artificies o seu tutelado de nome Pulqueiro, como pensionista da província. – ao Sr. Director da casa dos educandos artificies para inscrever o nome do tutelado do suplicante no quadro, afim de ser admittido quando houver vaga259. D. Francisca Ritta dos Santos – ao Sr. Coronel director da casa dos educandos artificies, para mandar inscrever o filho da suplicante, afim de ser admitido quando houver vaga260. Francisca Carolina de Souza Mello. – ao Sr. Coronel director da casa dos D educandos artificies para mandar inscrever o menor filho da suplicante, afim de ser attendida quando houver vaga261. Joaquim Marques Rodrigues Netto. – ao Sr. Coronel director da casa dos educandos artificies para mandar inscrever o nome do menor, filho da escrava do suplicante, afim de ser atendido quando houver vaga262. D. Maria Alexandrina Sá Fernandes. – ao Sr. Coronel director da casa dos educandos artificies para mandar inscrever o nome do menor afim de ser admititdo quando houver vaga263. 256 MARANHÃO. Presidência da Província. Falla dirigida pelo exm. presidente da provincia do Maranhão, o dr. Eduardo Olimpio Machado, á Assembléa Legislativa Provincial, por occasião de sua installação no dia 7 de setembro de 1851. Maranhão, impresso na Typ. Constitucional de I.J. Ferreira, 1851. p.17. 257 Id. Falla que o exm. snr. dr. José Bento de Araujo dirigiu á Assembléa Legislativa Provincial do Maranhão em 11 de fevereiro de 1888, por occasião da installação da 1.a sessão da 27.a legislatura. 1888. Maranhão, Typ. do Paiz, p. 23. 258 CASTRO, César Augusto. 2007, p. 314. 259 PUBLICADOR MARANHENSE. São Luís, 26 de novembro de 1885, Despachos, p.2. 260 PACOTILHA. São Luís, 27 de novembro de 1885. Despachos da Presidência, p.2 261 PUBLICADOR MARANHENSE. São Luís, 27 de dezembro de 1885, Despachos, p.1. 262 PACOTILHA. São Luís, 29 de dezembro de 1885, Despachos da Presidência. p. 2. 263 Id. São Luís, 30 de novembro de 1886, Despachos da Presidência. p. 2. 93 D. Seraphina Miranda – ao Sr. Coronel director da casa dos educandos artificies para mandar inscrever o nome, filho da supplicante, afim de ser admitido quando houver vaga264. Ao coronel director da cada dos educandos artificies – sem prejuízo das ordens anteriores mando vmc admittir nesse estabelecimento quando houver vaga o menor José João Ferrreira, filho legitimo de João Mariano Ferreira265. Em todos os pedidos fica evidente a falta de vagas para os pequenos. Operando com lotação máxima, a Casa dos Educandos Artífices não conseguia absorver todos os pretendentes. Nesse contexto, a Companhia de Aprendizes Marinheiros poderia ser a rara opção apontada por Venâncio, pois nela a vaga era assegurada - bastava o pretendente cumprir as exigências legais. Porém as condições do ensino previstas nem sempre eram cumpridas nessa instituição. Vinte aprendizes enviados para o Corpo de Imperiais Marinheiros tiveram a formação profissional questionada. O presidente da província Augusto Gomes de Castro reclamou da ―falta de instrução de quasi todos‖. Em resposta, o capitão do porto disse que os aprendizes não tiveram uma formação satisfatória por ―não haver alli pessoa habilitada que se encarregue do ensino dos menores de um modo proveitoso para elles‖266. De acordo com o decreto que norteava a organização das Companhias, o ―Capellão do Arsenal, ou hum Official Marinheiro que tiver as habilitações necessárias‖ seriam os encarregados em ensinar os aprendizes a ler, escrever, contar, riscar mapas, e orientá-los na doutrina cristã267. Na falta deles, o cargo de professor poderia ser dado ao escrivão268. Um Aviso ministerial conferia aos oficiais de Fazenda empregados na instituição tal incumbência, caso não houvesse prejuízos das obrigações de seu cargo269. O próprio capitão do porto relatou que aqueles 20 aprendizes foram para a Corte quase analfabetos por que, dentre outras coisas, eram ensinados pelo mestre de armas, que mal sabia ler e escrever, e como não podia mais esconder o 264 Id. São Luís, 14 de dezembro de 1886, Despachos da Presidência. p. 2. PUBLICADOR MARANHENSE. São Luís, 19 de março de 1882, Additamento ao expediente do dia 9 de março de 1882, p.1. 266 MARANHÃO. Presidência da Província. Relatório com que o exmº srº 1º vice-presidente da província, dr. José da Silva Maya, passou a administração desta província ao exmº srº presidente, dr. Augusto Olímpio Gomes de Castro, no dia 28 de outubro de 1870. São Luís: Tip.de José Mathias, 1870. p. 31-32. 267 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto nº 1.517 de 4 de Janeiro de 1855. Art. 17. 268 Ibid. Ministério da Marinha. Aviso nº 39 de 15 de fevereiro de 1864. 269 Id. Aviso nº 538 de 9 de dezembro de 1868. 265 94 problema confessou o ―quam precaria e prejudicial era a instrucção fornecida por semelhante professor‖, mas que havia se esforçado para que os aprendizes não ficassem sem aulas. Vera Marques e Silvia Pandini relatam que o capitão do porto da província do Paraná tinha dificuldades assemelhadas em conseguir um bom professor para os aprendizes. Segundo as declarações daquela autoridade, contou com muitos professores analfabetos para ensinar os aprendizes e o atual, dizia ele, ―além de não ter as habilitações precisas [...] embriaga-se, dando com esse procedimento exemplo pernicioso aos menores‖270. Pouco tempo antes, naquela mesma província, há indícios de que um aprendiz era o encarregado do ensino aos demais271. Para substituir aquele mestre de armas que estava lecionando na Companhia de Aprendizes do Maranhão, Fernando Ribeiro do Amaral, escrivão da instituição em 1870, aceitou ser professor de primeiras letras dos aprendizes durante um tempo, mas só o fez depois de ser arbitrada a gratificação de vinte mil réis mensais, considerada por ele ―muito mesquinha em virtude da acumulação de trabalho‖. No entanto, era proibida a gratificação nesse valor para a função, fato que o levou a deixar de "ensinar aos menores, porque não quis se sujeitar a receber a ainda mais mesquinha gratificação de dez mil réis mensais marcada pelo regulamento‖. O pagamento para lecionar na Companhia era considerado tão irrisório que levou o capitão do porto a questionar sobre quem, por tam diminuta quantia, de boa vontade, se preste a lecionar diariamente 80 a 100 meninos com o aproveitamento conveniente attendendo-se a relutância quase natural de toda a creança em aprender o que lhe é útil e necessário para a vida moral e social272. Somente com a reestruturação das Companhias de Aprendizes Marinheiros, que passaram a ser denominadas Escolas de Aprendizes Marinheiros, em 1885, foi que houve a criação do cargo de professor de primeiras letras273. Afirmamos anteriormente que a Companhia de Aprendizes fora pensada para ser uma instituição total, mas isso foi apenas uma pretensão. A falta de 270 MARQUES, Vera Regina Beltrão; PANDINI, Sílvia. p. 97. BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha. 1880 E 1881, A-N3-7. 272 MARANHÃO. Capitão do Porto. Ofícios do Capitão do Porto ao presidente da província de 19 de novembro de 1870. Setor de avulsos. APEM. 273 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto nº 9.371 de 14 de Fevereiro de 1885. No final do decreto há uma tabela com todos os profissionais que deveriam constar nas Escolas de aprendizes Marinheiros e seus respectivos soldos. 271 95 estrutura impedia que tal projeto disciplinar fosse cumprido à risca. Os ofícios dos comandantes da Companhia de Aprendizes, endereçados aos presidentes de província, apesar de toda a aridez dos documentos burocráticos, possibilitam a observação de um esboço do funcionamento e da estrutura material de todos os locais onde a Companhia se instalou. Foram várias as mudanças. Os prédios eram alugados e considerados inapropriados pelos Comandantes. O capitão-tenente Augusto Monteiro da Silva, em 1888, depois de descrever as instalações, enfatizando as dimensões acanhadas e as condições insalubres, diz que o espaço não abriga todo o pessoal, e não há tão pouco terreno algum para a instrução phisica dos aprendizes, como a gymnastica, a esgrima e mesmo para recreio dos meninos. Os exercícios como V. EXª tem sido testemunha, são feitos na rua, o que afeta em parte a disciplina militar de um estabelecimento desta ordem274. Os aprendizes eram obrigados a sair do quartel para realizar as atividades de aprendizagem militares. Na época dessa reclamação, os meninos ficavam aquartelados em um prédio localizado em frente à Igreja das Mercês275, e não raras vezes eram vistos indo ao terreno do dique276, que ficava na praia logo atrás da Igreja277, praticar exercícios de esgrima e baioneta. Se dependesse da vontade do capitão-tenente Silva, as instalações da Companhia não estariam sequer localizadas no perímetro urbano. Considerava a folia da cidade e a proximidade dos parentes prejudiciais à disciplina e formação dos aprendizes. No entanto, o comandante afirma não conhecer na cidade ―prédio algum que possa servir para a Escola de Aprendizes parecendo que melhor e mais econômico para os cofres do Estado, será construir-se um próprio Nacional retirado ao buliço da cidade e com todos os requisitos para tal fim‖278. Erving Goffman criou o conceito de instituição total para analisar sociologicamente locais que foram criados para funcionar como ―estufas de modificar pessoas e comportamentos‖, locais onde se objetivava realizar uma 274 MARANHÃO. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros (1885-1888). Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros ao presidente de província, 10 de agosto de 1888. Setor de avulsos APEM. 275 ALMANACK do diário do Maranhão para o ano bissexto de 1882. 5º Anno. Maranhão Typ-Frias. 276 MARANHÃO. Capitão do Porto. Ofícios do Capitão do Porto ao presidente da província, 2 de janeiro de 1885. Setor de avulsos. APEM. 277 MARQUES, Cesar Augusto. Apontamentos para o dicionário histórico, geográfico, topográfico e estatístico da província do Maranhão. Typ. do Frias. 1864, p. 133. 278 MARANHÃO. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros, 3 de maio de 1888. Setor de avulsos APEM. 96 mortificação do eu nos indivíduos. Esse conceito aplica-se a uma vasta quantidade de instituições. Ele elenca os manicômios, prisões e conventos, mas várias outras podem ser incluídas por ter grandes similitudes, como os quartéis militares, navios de guerra etc., que têm como característica principal o fato de ser locais de residência e trabalho, onde um grande número de indivíduos em situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada279. Na acepção do capitão-tenente Silva, o fato de os aprendizes estarem em contato constante com o mundo da rua poderia afetar a fabricação dos futuros marinheiros. Um local fechado e com contatos mínimos com o exterior seria ideal para que a formação militar não sofresse embaraços. Quanto mais segregada do mundo da rua a instituição fosse, mais distinção haveria entre os aprendizes e seus familiares. Outro indício que aponta o desejo de transformar a Companhia em instituição total são as constantes reclamações sobre a falta de um navio de guerra, exclusivo para o aprendizado das crianças. Provavelmente muitos aprendizes tornaram-se marinheiros sem nunca ter embarcado em um navio militar, e se o fizeram foi por pouco tempo. Quando havia a oportunidade, embaraços geralmente surgiam. Em 1873, por exemplo, quando já estava acertada uma viagem de instrução dos aprendizes até ao Ceará, no iate Rio das Contas, para serem instruídos ―nas diversas fainas marítimas‖, demandas consideradas mais urgentes precisavam ser atendidas. O comandante cancelou a viagem de instrução, alegando ser esta desnecessária, além de poder gerar inconvenientes, já que o capitão do porto anterior verbalmente declarou-me que no próximo paquete devião recolher-se no Quartel Central os Aprendizes Marinheiros que tivessem cumprido o tempo de aprendizagem marcado no regulamento, a vista dessa determinação não posso por a disposição do Comandante do Hiate Rio de Contas menor algum, por que os que estão nas circunstancias de sair para a instrução de que se trata são justamente os que tem de seguir para o Quartel Central e por essa rasão não podem sair deste Quartel, os que se seguem a estes são em numero limitado e necessários para os diversos serviços do quartel e o restante são tão pequenos que mais servirião para atrapalhar o navio do que para ajudarem a qualquer manobra‖280. 279 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 5. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 11. MARANHÃO. Capitão do Porto. Ofícios do Capitão do Porto ao presidente da província. Ofício de 8 de janeiro de 1873. Setor de avulsos. APEM. 280 97 Para não perder marinheiros considerados prontos, o Comandante seguiu o conselho do seu antecessor e os manteve aquartelados durante 40 dias, tempo em que esperaram o embarque para a Corte. Seguiram naquela ocasião 15 aprendizes para o Corpo de Imperiais Marinheiros281. Em 1888 ainda não havia uma embarcação para treino dos aprendizes, apesar das recorrentes solicitações nesse sentido. Othon de Carvalho Bulhão, então comandante da Companhia, disse que em sua gestão o contato dos aprendizes com navios de guerra foi limitado, acontecia esporadicamente, quando porventura alguma dessas embarcações atracava no porto, tendo havido aulas de instrução em navios apenas ―durante o tempo que aqui estacionarão as canhoneiras de guerra ‗Manáos‘ e ‗Lamego‘‖. Defendia que um navio exclusivo seria necessário e fundamental para o aprendizado e, com isso, ―bastante lucrarão os aprendizes Marinheiros em sua instrução profissional‖282. Fonte: Foto de Marc Ferrez. Disponível em: http://goo.gl/gj91IG. Acesso em: 21 ago. 2014. Figura 2: A Canhoneira Lamego, amarrada a uma bóia na Baía da Guanabara. Localizamos um único registro de viagem de instrução dos aprendizes do Maranhão. Aconteceu em 1885 e dele pode-se inferir problemas para além da falta de treinamento náutico, pois é repleto de denúncias de maus-tratos e das péssimas condições de vida que levavam os aprendizes dentro da instituição. O capitão281 Id. Ofício de 18 de fevereiro de 1873. Setor de avulsos. APEM. Ibid. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros ao presidente da província. Ofício de 1º de maio de 1888. Setor de avulsos. APEM. 282 98 tenente José Marques Mancebo, comandante da canhoneira Lamego, onde a referida viagem foi realizada, relata ao presidente da província que os aprendizes remetidos para o navio apresentaram-se a bordo com roupas sujas, anêmicos e com a cara de quem não comia havia muito tempo, considerando-os ―bastante atrasados e pouco desenvolvidos‖. O comandante da instituição defendeu-se dizendo não ser verdade o que consta no relatório do seu colega de farda: os aprendizes sob seu comando não andavam maltrapilhos; isso não acontecia nem ―mesmo quando eles acham-se em casa (o que poderei provar com o testemunho das pessoas que frequentam o Estabelecimento), como aconteceria indo eles à um exercício fora?‖. Essa não era a primeira vez que a vestimenta dos aprendizes marinheiros do Maranhão fora alvo de críticas. Anos antes, ao visitar as instalações da Companhia, o presidente da província Luiz de Oliveira Lins de Vasconcellos reclamou do ―estado de quase nudez dos menores aprendizes‖, alertando o capitão do porto ser ―urgente evitar que os menores continuem neste estado, não só pela decência que lhes é devida, como ainda pelo mau estado sanitário que atravessa a capital‖283. Em outra ocasião, em 1886, quando os aprendizes receberam fardamentos novos ―eram todos grande para os meninos e que assim mesmo mandei distribuir pois estes estão totalmente desprovidos‖284, disse o mesmo Othon Bulhão, que declarara meses antes que os aprendizes sob sua responsabilidade andavam bem trajados. 283 MARANHÃO. Livros de minutas da correspondência do Presidente da Província com Autoridades da Marinha. Livro 613. Registro nº 140 em 14 de agosto de 1879. Setor de códices. APEM. 284 Ibid. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros, 4 de janeiro de 1886. Setor de avulsos. APEM. 99 BLUSA DE PANNO BRIM COM GOLA AZUL ALGODÃO BRANCO TRANÇADO MESCLA BRIM PANO ALGODÃO AZUL TRANÇADO LENÇOS DE SEDA MACAS SACOS PARES/SAPATOS COBERTOR DE LÃ COLCHÃO CALÇAS BONET DE PANO CAMISAS AO ASSENTAR PRAÇA 1 1 2 2 2 1 2 2 1 1 1 1 1 DE TRES EM TRES MEZES 1 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 DE SEIS EM SEIS MEZES 0 0 1 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 DE ANNO EM ANNO 0 1 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 EPOCAS DA DISTRIBUIÇÃO Fonte: BRASIL. Ministério da Marinha. Aviso de 23 de junho 1875. In: Relatório do Ministério da Marinha. 1876-1, p. A-J-9. Quadro 7: Periodicidade de distribuição de fardamento dos aprendizes marinheiros Quanto à acusação de serem anêmicos os aprendizes, o comandante dizia que ―bastava vel-os para a gente se convencer do contrario, até o mesmo médico da escola, com o seu olhar de homem da sciencia ainda não chegou a descobrir tal coisa!‖. É consenso que uma boa alimentação, associada a medidas higiênicosanitárias são essenciais para a obtenção ou conservação da saúde de qualquer ser humano. Porém, isso não era realidade nas repartições da Marinha, cujos problemas vinham em duas frentes. Se por um lado havia enormes dificuldades para conseguir soldados, devido às redes clientelares que desviavam os recrutadores de parte da população, a má qualidade dos apurados, a aversão popular à vida militar, entre outros elementos, havia outra questão igualmente desestabilizadora para a Marinha: eram as doenças. Estas esvaziavam as guarnições e representavam a terceira maior causa da perda de marinheiros. Os relatórios ministeriais apontam que, entre 1867 e 1888, morreram 1.858 marinheiros em decorrência de doenças (não entram nessa contagem os acidentados nem os mortos em desastres). Esse percentual representa 29,4% do contingente total285. As baixas por tempo de serviço, por sua vez, contabilizavam 29,7% das perdas. Havia a possibilidade de dos marinheiros continuarem servindo e receber 285 BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha. 1889. Anexo: Mapa Estatístico do Corpo de Imperiais Marinheiros. Apud. ARIAS NETO, José Miguel. 2001, p. 151 100 gratificações, mas eram poucos os que se arriscavam a permanecer. A deserção era outro problema estrutural. Dos navios e quartéis da Armada, 48% da tropa, quase a metade, utilizou este último recurso de resistência ao serviço militar286. Anteriormente a situação era ainda pior. Entre 1845 e 1866, cerca de 41,1% da tropa naval morreu em decorrência de enfermidades. Segundo Arias Neto, se incluir-se as mortes por desastres e combates, o índice eleva-se para 64,7%. Estes dados permitem imaginar que as condições sanitárias e o regime alimentar à bordo dos navios e nos quartéis eram precaríssimos. Por outro lado, apenas 1,7 % dos ingressos obtiveram reforma final com as "vantagens" asseguradas pela lei, enquanto 18,6% simplesmente deixaram o corpo assim que completaram o tempo mínimo de serviço militar. Ou seja, tomando-se as estatísticas do ministério da Marinha, verifica-se que, do total de imperiais marinheiros existentes no corpo, no período de 18451866, 47,7% morreram, em sua maioria absoluta por doenças, e 17,4% foram desligados por ―inutilizados‖, enquanto que apenas 20,3% chegaram a completar o tempo de serviço mínimo ou foram reformados. As variações entre um período e outro são, por assim dizer, insignificantes287. Continuando em sua defesa, diz o comandante que os aprendizes sob sua responsabilidade são nutridos, e que a acusação derivou de um ―engano óptico‖ e que bastava ―lançar um olhar sobre os atuais aprendizes marinheiros desta escola [para ficar] convencido de que eles, se não tem alimentação appetitosa e variada dos filhos de famílias ricas ao menos não andam com a 'cara que não comiam a muito tempo'‖288. A alimentação dos aprendizes, segundo consta na lista posta em arrematação pela instituição, seria composta de arroz, açúcar, azeite doce, bacalhau, café, carne seca, carne verde, farinha, feijão, manteiga, sal, toucinho, vinagre de Lisboa e pão289. Alimentos e demais objetos de uso diário da Companhia de Aprendizes eram adquiridos por meio de editais veiculados nos periódicos. Os interessados apresentariam suas propostas ao Conselho de Compras da instituição e a mais vantajosa para a Fazenda Pública seria a contratada. As autoridades tentavam esconder o problema da (má) alimentação dos aprendizes, mas, por indícios esparsos, depreendemos o sofrimento enfrentado por eles, principalmente aos acometidos de beribéri. 286 Ibid. ARIAS NETO, José Miguel. 2001. p. 107 288 MARANHÃO. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ofício de 19 de dezembro de 1885. Setor de avulsos. APEM. 289 PUBLICADOR MARANHENSE. São Luís, 12 de junho de 1880, Declaração – Companhia de Aprendizes Marinheiros, p. 2. 287 101 4.2 Aprendizes beribéricos Beribéri - Eis-me Eu sou o Beribéri e, como Otelo, nasci lá nos desertos africanos, nasci para flagelo dos humanos, e as mais moléstias meto num chinelo. Naturalizei-me brasileiro e firmei a minha residência na terra de Gonçalves Dias. Gosto muito do Nordeste, e decididamente não saio de lá. Ainda não passei da Bahia. Não faço casa da corte. Artur Azevedo Durante todo o período estudado, os aprendizes sofreram bastante por causa do beribéri. Segundo um dicionário histórico de termos médicos, a palavra beri é de origem hindu e dá nome aos grilhões de ferro comumente utilizados em algumas regiões da Ásia para restringir as possibilidades de fuga de condenados que trabalhavam em serviços públicos; também eram utilizados para prender elefantes290. Segundo Jacob Bontius, médico holandês, há outra explicação para o nome da doença. Na Índia existe uma espécie de ovelha conhecida como Bhayree (beri), que andava de forma tortuosa291. Seja uma ovelha cambaleante ou um grilhão de ferro, o certo é que uma doença batizada com a repetição do termo já sugere dificuldades enormes de locomoção em seus portadores. Uma das consequências mais frequentes nos doentes de beribéri é justamente a fraqueza nas pernas, que impede o acometido de caminhar normalmente. Atualmente sabemos que o beribéri é uma doença causada pela deficiência de tiamina (vitamina B1) na alimentação, que apesar de facilmente tratável, pode levar a óbito em pouco tempo. Tal nutriente é responsável por várias reações químicas do organismo, principalmente na condução dos impulsos nervosos. São fontes alimentares ricas em tiamina os cereais integrais, gérmen de trigo, nozes e carnes (especialmente vísceras), aves, peixes, vegetais e produtos derivados do leite. Como se trata de uma vitamina hidrossolúvel, permanece por tempo reduzido no organismo antes de ser excretada pelos rins, razão pela qual deve ser ingerida diariamente. Caso não haja consumo diário, em dois ou três 290 MCNAIR, John Frederick Adolphus. Prisoners their own warders: a record of the convict prison at Singapore in the straits settlements established 1825, discontinued 1873, together with a cursory history of the convict establishments at Bencoolen, Penang and Malacca from the year 1797. 291 PEREIRA Sérgio, FRUTUOSO, Regis Augusto Maia. Apontamentos para a história médico-pericial na Marinha do Brasil. Revista arquivos brasileiros de medicina naval. v. 72 n.1 jan/dez 2011, p. 13 102 meses manifestam-se os primeiros sintomas da doença, que inicialmente são genéricos, como insônia, nervosismo, irritação, fadiga, perda de apetite e de energia - há dificuldade para o diagnóstico precoce. Quando evoluem para quadros mais graves, como a parestesia (formigamento e sensibilidade alterada), edema nos membros inferiores, dificuldade respiratória e cardiopatia, é que o beribéri pode ser diagnosticado com mais precisão. No século XIX, a partir dos pressupostos médicos vigentes, o beribéri era considerado uma doença contagiosa e provocada por uma bactéria, e assim era tratado292. Os médicos acreditavam que para o tratamento dos acometidos pelo mal de Ceylão, como também era conhecido, a primeira providência seria a retirada do doente do seu local de convívio, e enviá-lo para um lugar considerado adequado, onde seria tratado até que se verificasse o ―desapparecimento das bacterias no sangue dos doentes removidos‖293 . A documentação que se refere aos problemas do beribéri na Escola de Aprendizes aponta que os aprendizes doentes eram tratados segundo os pressupostos médicos do período. Ao primeiro indício da doença, a criança era retirada da instituição. Não foram casos isolados, alguns até fatais, segundo o comandante294. Sem muito esforço encontramos vários ofícios que notificam o envio de aprendizes para a Corte a fim de receberem tratamento: Solicito de V. Excª uma passagem de proa deste porto ao Rio de Janeiro por conta do Ministério da Marinha para o Aprendiz Marinheiro Jacinto Mamunco que acha-se atacado de beri-beri segundo declara o respectivo Cirurgião295. Rogo a V. Excª as suas ordens a fim de ter passagem do convés deste porto ao do Rio de Janeiro o Aprendiz Marinheiro Raymundo Nonato Alves que recolha-o a Corte por achar-se sofre de beri-beri, segundo as ordens do Quartel General296. Rogo a V. Excª se digne expedir as convenientes ordens ao Gerente da Companhia de Navegação Brasileira de Navegação a Vapor a fim de que tenha passagem a proa do próximo vapor que chegar do Norte, por conta do Ministerio da Marinha aos Aprendizes Marinheiros Antonio Raymundo Botelho e Raymundo Mangacho que seguem para a Corte por se acharem 292 CARRETA, Jorge Augusto. “O micróbio é o inimigo”: debates sobre a microbiologia no Brasil (1885-1904). Tese (Doutorado em Política Científica e Tecnológica), Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2006, p. 84-88. 293 SILVA, Antonio Augusto Ferreira da. Estudos de demographia sanitaria: durante 34 anos. Rio de Janeiro : Imprensa Nacional, 1893, p. 147. 294 MARANHÃO. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros ao presidente da província. Ofício de 23 de janeiro de 1888. Setor de avulsos. APEM. 295 Id. Ofício de 19 de março de 1888. Setor de avulsos. APEM. 296 Id. Ofício de 1 de março de 1888. Setor de avulsos. APEM. 103 com beri-beri conforme forão julgados na inspeção de Saúde a que forão sujeitos hoje297. Rogo a V. Excª as necessárias ordens a fim de que tenhão passagem de convés por conta do ministério da marinha deste porto ao do rio de janeiro os aprendizes marinheiros Ernesto Belmonte e Manoel da Conceição, que se achão inspecionados de saúde e julgados com beri-beri298. Os registros continuam em escala progressiva. Inicialmente era um oficio por aprendiz; com o passar do tempo, os casos foram aumentando e há casos de dois e até de três aprendizes com o encaminhamento acusado num mesmo ofício. Algumas práticas efetuadas dentro dos muros da instituição evidenciam o esforço dos oficiais da Companhia de Aprendizes em inculcar novos valores nas crianças alistadas, em uma tentativa de fazê-los abandonar seus referentes culturais. O propósito era imprimir-lhes uma identidade institucional estigmatizante, representada pelo grau mais baixo dentro da hierarquia da Marinha de Guerra, ou seja, a de ser um aprendiz. Posto Soldo Sargento ajudante, mestre de armas e 1º sargento 20$000 2º sargento 19$000 Forrieis 18$000 Cabos marinheiros 16$000 Marinheiros de 1º classe 12$000 Marinheiros de 2º classe 10$000 Marinheiros de 3º classe 8$000 Aprendizes 3$000 Fonte: BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto nº 304 de 12 de junho de 1843. Quadro 8: Tabela de vencimentos do Corpo de Imperiais Marinheiros. As autoridades militares acreditavam, então, que a educação ministrada às crianças poderia desfazer os hábitos adquiridos antes da entrada na instituição. Segundo Álvaro Nascimento, a maior parte dos oficiais referia-se ao problema da origem social dos meninos para embasar seus argumentos. Acreditavam que o meio social do qual eram retirados os futuros marinheiros estava impregnado de vícios e comportamentos não condizentes com a disciplina militar299. Quando um menino assentava praça na instituição, estavam os oficiais cientes de que não era apenas um corpo que entrava, mas uma série de costumes, 297 Id. Ofício de 16 de abril de 1889. Setor de avulsos. APEM. Id. Ofício de 26 de junho de 1889. Setor de avulsos. APEM. 299 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. 2002, p. 189. 298 104 práticas, sociabilidades e sensibilidades próprias das classes populares e de uma determinada faixa etária. Havia recomendação expressa, por parte da presidência da província, para que o comandante da Companhia de Aprendizes não permitisse que os aprendizes saíssem do quartel para visitar seus familiares nos dias santos e feriados. Isso seria possível apenas uma vez por mês e, mesmo assim, durante poucas horas300. Era desejável que os aprendizes fossem dóceis e não relutassem à modelagem institucional, mas indícios apontam que nem todos os aprendizes foram tão passivos assim. 4.3 A desigualdade da dádiva: trocando prêmios por filhos O ministro da Marinha em 1876, Luiz António Pereira Franco reconhecia que ser marinheiro no Império brasileiro não era fácil, o que causava repugnância nos pais e tutores em alistar filhos e pupilos nas Companhias de Aprendizes. Para o ministro, a ignorância não os deixava perceber o mal que estavam fazendo aos seus filhos ao negar-lhes ―as compensações que o Estado prodigaliza, dando-lhes, além de prêmios, uma educação conveniente, e garantindo-lhes o futuro‖301. As promessas da Armada de que as Companhias iriam alfabetizar os filhos das classes pobres, transformando-os em marinheiros fortes e disciplinados, não eram suficientes para seduzir seus familiares. Era sabido que ser soldado ou marinheiro não representava uma saída da pobreza, mas uma forma de nela permanecer. Por isso, praticamente não havia quem desejasse tal destino para seus filhos. Aproveitando-se da vulnerabilidade social das famílias pobres, a Armada adotou a política de distribuição dos prêmios citados por aquele ministro. O Decreto 1.517, de 14 de abril de 1855, oferecia 100 mil-réis aos pais que apresentassem de bom grado seus filhos à instituição. Vários decretos posteriores regulamentavam o sistema de pecúlio dos aprendizes, sem alterações substanciais302. 300 MARANHÃO. Livros de minutas da correspondência do Presidente da Província com Autoridades da Marinha. Livro 609. Registro nº 81 em 11 de março de 1872. Setor de códices. APEM. 301 BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha. 1876-1, p. 18. 302 Ibid. Aviso regulamentar de 28 de novembro de 1867. In: Relatório do Ministério da Marinha. 1867, p. A1-21; BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto nº 5.950 de 23 de junho de 1875. 105 Os responsáveis legais tinham a opção de abdicar desse valor em favor dos aprendizes alistados, o qual ficaria depositado como uma poupança. Pela legislação, o montante poderia ser retirado apenas em poucas situações: na maioridade, quando os ex-aprendizes tivessem baixa no Corpo de Imperiais Marinheiros, ou pelos responsáveis legais se os menores ficassem incapacitados em virtude de doenças ou acidentes. Em casos de deserção, o pecúlio seria revertido ao Asilo dos Inválidos, e no caso de falecimento também, mas apenas se familiares ou o representante legal não o requeresse303. Observando atentamente a lei que trata do pecúlio, percebe-se que essa fora elaborada para evitar ao Tesouro Público prejuízos com os aprendizes, pois as despesas corriqueiras deles eram pagas com o soldo a que tinham direito. O pecúlio dos aprendizes era abastecido da seguinte forma: mensalmente seria retirada do soldo dos aprendizes a quantia de mil réis, dos três mil que recebiam, para ser somado ao valor do pecúlio, de 100 mil réis, caso existente, se não o aprendiz que não teve direito ao prêmio começaria com o pecúlio zerado. Os aprendizes ainda tinham que pagar pela própria farda e pelo tratamento médico que porventura recebessem. Para não ter gastos com aprendizes incapacitados por doenças ou acidentes, o pecúlio que eles acumularam servia para pagar a própria indenização. A trajetória do aprendiz maranhense Marcos Antonio Magé exemplifica bem tal prática. Marcos fora alforriado pelo conhecido médico maranhense Cesar Augusto Marques, com o propósito de ser alistado na Companhia de Aprendizes Marinheiros304, haja vista a instituição não aceitar escravos como aprendizes. Entretanto, o projeto de vir a ser imperial marinheiro teve de ser abandonado por ter Marcos ficado cego de um dos olhos. O relatório de inspeção atestou que, de fato, o aprendiz sofrera uma limitação visual considerável e isto atrapalharia o desempenho de sua futura profissão, sendo recomendado seu desligamento. A causa do problema sequer foi mencionada. Nos quatros anos que lá esteve, deve ter juntado algum dinheiro, já que os aprendizes eram obrigados a fazer os depósitos mensais. Por ter sido alistado voluntariamente por um tutor, provavelmente, teve direito ao dinheiro do prêmio, além dos 303 304 Ibid. Decreto nº 5.950, de 23 de Junho de 1875. Art. 4. MARANHÃO. Capitão do Porto. Ofícios do Capitão do Porto ao presidente da província. Ofício de 5 de junho de 1871. Setor de avulsos. APEM. 106 depositados mensalmente. Tais circunstâncias, provavelmente, não diminuíram a dor de ter ficado cego de um olho tão jovem305. Monica Lins demonstra a precariedade de direitos dos aprendizes da Marinha e os possíveis destinos de meninos que foram inutilizados enquanto estavam sob os cuidados da instituição, relatando o caso do aprendiz Nortílio Reis. Maranhense órfão era oriundo da Escola de Aprendizes de seu Estado, mas por algum motivo foi parar no Rio de Janeiro antes de ter completado o período de formação. Na época, segundo a autora, era muito comum que os meninos circulassem em diferentes escolas, por motivos disciplinares, por suas qualidades laborais, para equilibrar o número de aprendizes entre as Companhias306, dentre outras razões. Segundo Elias, no mundo marítimo as pessoas tinham que trabalhar, ao menos por algum tempo, com suas próprias mãos, pois os livros tinham pouca serventia307. E foi assim, durante um exercício, tentando levantar um escaler, que o aprendiz teve a mão direita esmagada. O caso do menino maranhense resultou em uma Consulta ao Conselho Naval. Essas serviam como uma forma dos comandantes de todas as repartições da Marinha sanarem suas dúvidas a respeito de casos controversos e/ou merecedores de atenção especial, em virtude de sua urgência ou excepcionalidade. O questionamento feito foi sobre o que fazer com aquele aprendiz. Conforme o entendimento do período os aprendizes marinheiros nem são praças de pret, nem inferiores da marinha; são apenas educandos por conta do Estado com certa preparação para serem marinheiros nacionais e por isso nem contribuem para o montepio e asylo e nem siquer se lhes conta tempo de aprendizagem como útil para a reforma308. Segundo a linha de raciocínio do Conselho da Marinha, Nortílio não iria para o asilo dos inválidos por que em momento algum contribuiu diretamente para a manutenção do mesmo. Apenas os pecúlios de aprendizes, que por algum motivo não eram entregues aos destinatários, seriam transferidos para custear aquela instituição da Marinha. Alguns membros do Conselho sugeriram que fosse concedido ao aprendiz o ―gozo da etapa que percebe na Escola‖, mas logo 305 Id. Ofício de 22 de julho de 1875. Setor de avulsos. APEM. LINS, Mônica Regina Ferreira. 2012, p. 200-201. 307 ELIAS, Nobert. 2001, p. 93. 308 BRASIL. Ministério da Marinha. Consulta nº 8783. In: Relatório do Ministério da Marinha. 1902, p. A8-147-148 306 107 consideraram a proposta, já que pagar três mil réis mensais àquele acidentado seria abrir um precedente perigoso para as finanças da Marinha, pois inaugurar-se-ia uma forma de ―pensão vitalícia disfarçada‖ aos acidentados, que poderia ―perturbar as verbas orçamentárias‖. A Marinha muitas vezes apresentava-se como a família que os meninos nunca tiveram, mas não foi acolhedora para muitos. Ao primeiro sinal de aumento de despesas, a solução era descartá-los, e com Nortílio não foi diferente. Inválido e órfão pela segunda vez, sem parentes conhecidos, foi desligado e devolvido ao Juiz de Órfãos de São Luis, que o havia remetido para a Escola de Aprendizes do Maranhão, a quem foi dada a ciência da existência de um pecúlio acumulado. Nortílio ficou sem parte da mão direita, mas carregou na outra um desprezível abono de cinquenta réis para ajuda de custo e o prêmio de cem mil réis309. 4.4 Em busca de pequenos marinheiros Para fazer funcionar as fábricas de marinheiros, os dirigentes seguiram a lógica do tributo de sangue aplicada ao recrutamento de adultos. Na falta de voluntários, os militares recorreram ao Corpo de Policia e aos próprios marinheiros para conseguir os novos aprendizes. Pela tabela seguinte percebemos o quanto o Corpo de Polícia e a Capitania dos Portos se empenharam na busca de meninos pobres pela capital e vilas do interior. O alistamento de grande parte deles também resultava da expectativa de parte da população, em ser esta uma forma de se livrar de pequenos arruaceiros e ordenar a cidade, de acordo com os padrões desejados pelas elites do período. A imprensa participou ativamente das campanhas de alistamento, sugerindo uma atitude mais enérgica por parte dos agentes recrutadores. No jornal Diário do Maranhão, por exemplo, há um relato de que as ruas da cidade de São Luís estavam cheias de creanças vadias e a maior parte orphãos, sem terem por tanto quem verdadeiramente por elles se interesse, obrigando-os não só a aprenderem a ler e a escrever como a qualquer officio para no futuro serem uteis a si e á pátria, andando por ahi, dia e noite, semi nus viciando se, em vez de serem aproveitados para qualquer coisa. Se os pais, tutores ou protectores d‘estas pobres crianças, não podem mandar-lhe ensinar qualquer officio, de que mais tarde façam profissão útil, lembramos a Companhia de Aprendizes Marinheiros que, muito de proposito o Governo Imperial criou com o fim de proteger os desvalidos. A Companhia de Aprendizes Marinheiros é uma das melhores e mais bem montadas que tem o império, e nós mesmos já tivemos occasião de apreciar o adiantamento que em tudo tem as creanças que ali se acham aprendendo, alem do 309 LINS, Mônica Regina Ferreira. 2012, p. 175. 108 desvellado tratamento que recebem das pessoas responsáveis de dirigiloas. Não podemos deixar de pedir de novo as authoridades competentes que lancem vistas e proteção para tantas creanças que aqui temos nos casos de aproveitarem da boa vontade do Governo, pois com isto prestarão relevantes serviços à essas creanças, à sociedade maranhense e à marinha Imperial. São diariamente vistos essas ruas muitos pequenos, entregues ao vicio, vendendo obras de presos, reunidos nas quitandas próxima à cadeia, acostumando-se ás rixas, ás brigas, bebendo e por consequência, preparando-se para mais tarde commeterem toda a sorte de crimes. Agarral-os e collocal-os no estabelecimento de, onde vão ser convenientemente educados e onde podem aprender, será uma obra meritoria prestadas a elles e á sociedade. Para o facto, e de acordo com as recomendações do governo, chamamos a attenção dos juízes competentes, que merecerão por seus esforços os louvores de que serão dignos310. A proteção sugerida no período possuía um significado ambíguo, pois se de um lado visava proteger meninos pobres, dando-lhes educação e profissionalização, do outro, pode-se perceber que o desejo de retirar de circulação aqueles pequenos vadios é evidente, seguindo a mesma lógica do recrutamento para as tropas do Exército e Marinha. No mesmo jornal, o delegado Mello Rocha era apresentado como um fiel cumpridor da lei e garantidor da segurança pública por prender alguns indesejáveis. Em uma de suas atuações, acabou com os ―bailes inconvenientes‖ na rua do Norte, prendeu alguns ―trovadores noturnos‖ insistentes, fez uma batida em uma casa de jogos, multando os proprietários, confiscou os instrumentos do crime e, ainda, prendeu dois menores vagabundos, que, desamparados e assim com o caminho aberto a perdição foram remmetidos a Companhia de aprendizes marinheiros, onde pela educação, instrucção e pelo trabalho poderão a vir ser mais tarde, cidadãos uteis a sociedade e a si mesmos311. Um desses ―menores vagabundos‖ chamava-se Pedro Paulo e era filho de Epifania Rosa de Oliveira. Ao saber que seu filho fora alistado, apressou-se em fazer um requerimento visando à soltura do menor, mas a resposta fora negativa. A forma como o menino entrara na instituição contava muito, e Pedro Paulo chegara anexado a um oficio da Polícia. O comandante da Escola de Aprendizes justificava a permanência do menino na instituição, alegando ser ele desvalido, visto ter sido encontrado pelo Chefe de policia jogando alta noite em uma casa de jogo, quando dera cerca na dita casa, acostumando-se em 310 DIÁRIO DO MARANHÃO. São Luís, 29 mar. 1884, Companhia de Aprendizes Marinheiros, necessidade reconhecida, p.3. 311 O PAIZ. São Luís, 16 abr. 1887, Secção Official - Noticiários, p.2. 109 tão tenra idade aos vícios e por conseguinte preparando um infeliz futuro, ao passo, que aqui terá educação conveniente, futuro garantido e será assim útil a si e a seu Pais; acrescento segundo informações que a mãe não tem meios para sustentá-lo nem força moral para contê-lo e a outros filhos que tem312. Segundo Scheuler, no século XIX, chamar um menino de desvalido era o equivalente dizer que este vivia num estado de pobreza e de ausência de valores morais. Desvalido era todo aquele com poucas posses ou sem o necessário para viver, que não dispunha da proteção de alguém que lhe garantisse sequer um alimento. A noção de infância desvalida, portanto, remete aos meninos e meninas despossuídos, ou seja, àqueles provenientes dos segmentos mais pobres da sociedade313. Juntando-se o fato de Pedro Paulo ser assim qualificado à circunstância de ter sido encontrado numa ―espelunca‖, pela polícia, e ter uma mãe definida como desprovida de bens materiais e ―força moral‖ para educar seus filhos, dificilmente ele seria desligado da Escola de Aprendizes. Sua situação reunia todos os elementos necessários para que sua mãe ficasse sem o filho e a Marinha obtivesse um pequeno marinheiro. Capturar crianças vagando pelas ruas era uma das formas encontradas pelas autoridades para conseguir aprendizes a baixo custo. Quando era o Corpo de Polícia que remetia o menino para a instituição, os direitos das famílias e da própria criança, que já eram precários, ficavam ainda menos exequíveis. O desfecho de muitas situações mostrou que, na relação de força entre Marinha e familiares dos aprendizes, as decisões quase sempre eram desfavoráveis a estes. 312 MARANHÃO. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros ao presidente da província em 10 de abril de 1887. Setor de avulsos. APEM. 313 SCHUELER, Alessandra Frota Martinez. A Associação Protetora da Infância Desvalida e as Escolas de São Sebastião e São José In: Carlos Monarcha (org.). Educação da infância brasileira (1875-1983). São Paulo: Autores Associados/Fapesp, 2001. 110 idem por autoridades policiaes Idem pelo Juiz de orphãos Idem por senhores ou tutores Apresentados de ausencia Capturados Com premio Sem premio Total Baixa por inspeção Idem por precisos motivos Remettidos para o Corpo Auzentarão-se Falecerão Total Para mais Para menos 1861 0 9 0 0 0 0 0 1 8 9 0 0 0 0 0 0 9 0 1862 0 44 6 0 0 0 0 24 26 50 0 0 0 0 0 0 50 0 1863 0 32 0 0 0 0 0 21 11 32 0 2 0 0 2 4 32 4 1864 0 9 0 0 0 0 0 5 4 9 0 1 21 0 1 23 9 23 1865 0 12 0 0 0 0 0 4 8 12 2 0 17 0 0 19 12 19 1866 0 12 2 0 0 0 0 5 9 14 0 2 32 0 2 36 14 36 1867 0 37 7 0 0 0 0 12 32 44 0 3 30 0 1 34 44 34 1868 0 37 5 0 0 0 0 16 26 42 0 6 0 0 1 7 42 7 1869 0 11 2 0 0 0 0 8 5 13 1 0 7 0 1 9 13 9 1870 5 0 2 3 12 0 0 12 10 22 0 3 20 1 0 24 22 24 1871 1 0 1 1 5 0 1 6 2 9 0 3 19 2 0 24 2 24 1872 4 0 " 3 1 0 1 1 7 9 3 2 1 0 2 8 9 8 1873 5 0 " 1 3 0 0 0 9 9 3 1 15 0 3 22 9 22 1874 6 0 3 1 6 0 0 7 9 16 0 1 15 1 0 17 16 17 1875 12 0 " 0 2 1 0 2 13 15 1 0 30 0 0 31 15 31 1876 10 0 1 1 0 0 0 10 2 12 4 0 15 0 0 19 12 19 1877 3 0 8 5 7 0 0 7 16 23 0 2 0 0 0 2 23 2 1878 8 0 0 0 3 0 0 5 6 11 0 0 11 0 3 14 11 14 1879 13 0 0 0 3 0 0 4 12 16 1 0 17 0 4 22 16 22 1880 3 0 0 0 1 0 0 1 3 4 3 0 20 0 0 23 4 23 1881 0 0 0 0 6 0 0 3 3 6 1 0 15 0 0 16 6 16 1882 9 0 8 0 8 0 0 11 14 25 1 0 8 0 0 9 25 9 1883 12 0 5 0 2 0 0 4 15 19 2 0 10 0 0 12 19 12 1884 2 4 2 2 3 0 0 1 12 13 0 2 28 0 0 31 13 31 1885 10 0 0 2 4 0 0 1 15 16 0 0 0 0 1 1 16 1 52 19 66 1 2 171 277 450 22 28 331 4 21 ANNO Remettidos pela Capitania Para menos Remettidos pela Presidencia Para mais Somma 103 207 407 432 407 Fonte: Id. Mappa estatístico da Escola nº 2 de Aprendizes Marinheiros do Maranhão desde 22 de abril de 1861, época de sua criação. Anexo ao ofício de 1º de janeiro de 1885. Setor de avulsos. APEM. Quadro 9: Alistamentos para a Escola de Aprendizes Marinheiros do Maranhão (1861-1885) Quando Ana Guterres foi requerer na presidência da província a gratificação a qual julgava ter direito, em virtude do alistamento irregular de seu filho, Armando, 111 deparou-se com aquele sistema de proteção de gastos da Armada e com as distinções sobre as formas de ingresso de aprendizes que definiam quem tinha direito ao quê. O referido aprendiz fora enviado para a Escola de Aprendizes por policiais enquanto estava ―vagabundeando‖ pelas ruas, mesma situação do aprendiz Pedro Paulo. Os indícios sugerem que Epifânia queria apenas o filho de volta. Ana Guterres, no entanto, parece ter se interessado, também, pelo prêmio de cem milréis, que lhe foi negado prontamente pelo comandante da Escola. A autoridade militar explicou ao presidente da província que só tem direito aos prêmios da Marinha os pais (ou seus filhos, caso estes optassem por abdicar do pecúlio) que entregavam os filhos ―voluntariamente ao Governo Imperial para servir à Pátria‖, e não para um menor ―vagabundo‖ ou para aquela mãe, ―maltrapilha que não sabe ler, escrever officio algum‖314. O sistema de alistamento para a Companhia de Aprendizes evidencia uma série de práticas pouco conhecidas, responsáveis pela retirada de inúmeros meninos do convívio familiar, muitas vezes de forma arbitrária e alocados dentro de uma instituição militar, muitas vezes a contragosto. Argumentos econômicos foram amplamente utilizados pelas autoridades da Marinha para arrancar os filhos de famílias pobres. Representá-las como desprovidas de bens para cuidar dos filhos foi um expediente legitimador de muitos alistamentos e requerimentos de soltura de aprendizes. Segundo Kraay, para livrar um parente, filho ou a si mesmo do recrutamento para as tropas de 1ª linha no século XIX vários argumentos eram apresentados. Para serem desligados, esses homens, muitas vezes com pareceres e atestados emitidos por autoridades públicas, diziam-se pessoas decentes com posse de bens, casados, respeitadores da moralidade sexual vigente e das autoridades; outros enfatizavam sua responsabilidade para com os familiares, alegando serem arrimos de família, cuidando da mãe e dos irmãos menores, ou seja, representavam-se ou eram representados como portadores de um ou mais elementos que os isentassem do recrutamento. 314 MARANHÃO. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros (1885-1888). Ofício do comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros ao presidente de província em 4 de agosto de 1887. Setor de avulsos APEM. 112 Quando eram as mães que mandavam elaborar os requerimentos, além de lembrar as isenções de seus filhos, faziam apelos emocionais. Segundo Silvana Jeha, encontram-se facilmente verdadeiros clássicos da retórica da pobreza em requerimentos de mães que expunham as condições de vida precárias em que ficaram após o recrutamento de seus filhos para a Armada. Os requerimentos sugeriam condições de vida difíceis, as quais somadas aos atestados anexos, retratavam uma situação real de miséria315. Vejamos o caso de Francelina Maria. Mãe pobre e solteira vivia com seu filho Antonio Pinto na vila de Itapecuru-Mirim, até que este foi encaminhado forçadamente para ser alistado na Companhia de Aprendizes pelo delegado da localidade. A autoridade policial assim procedeu alegando que o ―menor era pessoa desvalida, sem pais, e vagava pelas ruas sem se ocupar com cousa alguma‖. Ou seja, era considerado um pequeno desocupado, que mais tarde poderia se tornar um grande problema para as autoridades. Para evitar problemas futuros, o delegado fez o que julgou ser o mais acertado. Francelina retificou dizendo serem inverdades as alegações, afirmando que Antonio não passava os dias vagando; pelo contrário, ―seu único filho é que lhe coadjuva na sua subsistência‖ e, por isso, seu lugar era ao seu lado, ajudando-a na economia doméstica, e não na Companhia de Aprendizes Marinheiros316. Outra mãe, Edwiges Rosa, apresentou o mau estado de saúde de seu filho como justificativa para o desligamento requerido, mas o pedido foi negado. O aprendiz Hemetério, filho da requerente, fora enviado pela polícia fazia pouco tempo, muito provavelmente por estar na rua, e foi alistado após inspeção médica. Atendendo à solicitação da Presidência, o comandante mandou inspecionar novamente o menino, a contragosto, por julgá-lo ―em perfecto estado de saúde, sendo por isso inexacto o que allega a supplicante que só parece procurar pretexto para retira-lo deste estabelecimento, onde recebe educação conveniente, que as posses da supplicante não permitem dar‖317. Muitas mães não tiveram seus filhos de volta devido às alegações dos dirigentes da Companhia/Escola de Aprendizes de que elas não tinham condições 315 JEHA, Silvana Cassab. 2011, p. 175. MARANHÃO. Capitão do Porto. Ofícios do Capitão do Porto ao presidente da província. Ofício de 23 de fevereiro de 1872. Setor de avulsos. APEM. 317 Ibid. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros ao presidente da província. Ofício de 18 de agosto de 1887. Setor de avulsos. APEM. 316 113 econômicas para custear-lhes a formação. Outras, pelo mesmo motivo, entregaram seus filhos à instituição. Muitos familiares ficaram com o prêmio a que tinham direito pelo alistamento realizado e outros abdicaram dele em favor dos filhos. Mas houve casos que nos levam a pensar que muitos familiares tentaram utilizar a instituição apenas como abrigo passageiro para seus filhos. Quitéria Marcelina de Barros foi uma dessas mães que possivelmente se utilizaram da instituição em momento de dificuldade financeira, entregando seu filho ainda pequeno, com o intuito de buscá-lo depois. Ao tentar reaver seu filho, apresentou requerimento ao presidente da província alegando que o estado de saúde do aprendiz era preocupante. O governante pediu esclarecimentos ao comandante Othon Bulhão, que deu o seguinte parecer: são inverdadeiras as alegações que faz a suplicante tanto quanto a saúde do aprendiz Pedro Nolasco de Barros, que é optima, como por constar ter esta mais filhos alem desse e não ter idade avançada que alega priva-la de trabalhar para a sua manutenção, ocorre que foi ela própria quem offereceu o referido menor em 31 de março de 1883 ao governo imperial para alistarse nesta escola, declarando que assim procedia por não ter meios para educa-lo, no entanto, agora, depois de 4 anos de aprendizagem que o governo tem dispendido com a sua educação [...] e achar-se o dito menor quase pronto para alistar-se no Corpo de Imperiais marinheiros, é que a supllicante se lembra de querer retira-lo, parecendo que só queria que seu filho fosse educado pelo governo imperial, sem prestar-lhe o mesmo serviço, o que não me parece justo, no entanto V. Excª dirá ao Governo Imperial o que melhor entender318. Pedro Nolasco esteve sob os cuidados da instituição por aproximadamente quatro anos. No entender do comandante, o objetivo da mãe ao alistá-lo era o de reduzir as despesas com a criação do filho, enquanto este estava pequeno. No Brasil, boa parte das crianças de famílias pobres, desde a mais tenra idade, colaborava como força de trabalho nos domicílios em que viviam. Tinham que participar da luta pela sobrevivência familiar, lançando-se no mercado de trabalho em tarefas adequadas à sua força física ou, pelo menos, cuidando dos irmãos menores. Não há menção à idade de Pedro Nolasco, mas quando o comandante diz que o aprendiz estava ―quase pronto para alistar-se no Corpo de Imperiais marinheiros‖ é possível que já estivesse bem próximo dos dezoito anos, idade em que os aprendizes tornar-se-iam marinheiros. Quitéria recebeu a notícia do Ministério da Marinha autorizando o desligamento do seu filho; porém, teria que 318 Id.Ofício de 7 de março de 1887. Setor de avulsos. APEM. 114 conseguir um montante de dinheiro para ―indemnisar, previamente, a despeza feita pelo estado com dito menor‖319. Não sabemos, porém, se ela pagou a indenização exigida. A hipótese de que muitos pais tentaram usar a instituição como um abrigo temporário para seus filhos é reforçada pelos indícios do requerimento de João Otávio Sodré, na tentativa de livrar o aprendiz Manoel Sodré, seu filho. Muitos pais recorreram à presidência da província para resolver os problemas dos alistamentos ilegais, mas o requerente em questão pediu à ―Sua majestade O Imperador” a graça para que desligasse seu filho daquela instituição. Porém, capitão-comandante pondera ao presidente que o aprendiz não fora alistado ―com a notta de vadio‖ e que o próprio pai concordara, na época, com o alistamento do filho, mas agora, depois de crescido, ―quando o acha nas circunstancias de poder servi-lo vem requerer o seu desligamento, depois de ter o Estado gasto com ele bastante dinheiro e se achar no caso de poder prestar serviços a sua patria que o educou‖320. Honorata Pedrosa foi outra mãe que teve seu filho forçadamente alistado na Companhia. Para ter Cyriaco de volta, alegou também à presidência que seu filho tinha a saúde comprometida. Se esta fosse de fato a condição de saúde do aprendiz, certamente o comandante já o teria desligado, pois evitava-se menores doentes na instituição. Para o comandante Augusto, o desligamento do menino era inviável uma vez que sua condição de saúde era ótima, e alertara ao presidente da província que tal medida não deveria ser tomada, pois ―muito concorreria para o descrédito da instituição‖ que apresentava dificuldades na aquisição de menores321. Entrar na Armada era fácil: bastava ter pré-requisitos básicos, como gozar de boa saúde e ter constituição física robusta para o serviço. Não precisava nem ser de boa procedência (esse era elemento de mera retórica). Somente nas ultimas três décadas do século XIX foram criadas leis, de eficácia questionável, que impediam a entrada de indivíduos recrutados à força pela polícia. Mas depois de assentar praça na Armada, os desligamentos eram difíceis. A suspensão daquele encargo militar dava-se majoritariamente por invalidez, 319 O PAIZ, São Luís, 9 de maio de 1887. Officios. p.2 MARANHÃO. Capitão do Porto. Ofícios do Capitão do Porto ao presidente da província. Ofício de 27 de agosto de 1872. Setor de avulsos. APEM. 321 Ibid. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros ao presidente da província. Ofício de 18 de junho de 1888. Setor de avulsos. APEM. 320 115 substituição – quando o marinheiro encontrava outra pobre alma para pôr em seu lugar – ou morrendo. Para desligar um aprendiz, a dificuldade era quase a mesma. Pelo regulamento, que sempre era lembrado pelos comandantes diante das tentativas dos familiares, um aprendiz só podia ser desligado por incapacidade física ou mental, ou se os responsáveis ressarcissem os gastos realizados com ele. O Ministério da Marinha protegia suas finanças através desse sistema de indenizações justamente para recompor os gastos realizados quando, por diferentes motivos, os aprendizes não eram transformados em imperiais marinheiros. Em toda a documentação trabalhada não há menção ao valor exato a ser pago pelos familiares para reaver os filhos. O ministro Joaquim Delfino Ribeiro da Luz, em 1873, afirma que o custo de fabricação de um aprendiz num lapso de cinco anos girava em torno de três contos de réis ou mais. As historiadoras Vera Marques e Sílvia Pandini encontraram o caso do aprendiz José, alistado irregularmente na Companhia de Aprendizes de Paranaguá, na província do Paraná, que permaneceu durante quatro anos na instituição. Quando o pai do aprendiz requereu o seu desligamento, o capitão do porto declarou que o montante despendido pelo Estado perfazia o total de 1.173$600322. Os valores eram bastante elevados para a realidade da população pobre do período. 4.5 O aprendiz Casemiro e os limites da ascensão na Armada O aprendiz Casemiro experienciou situação semelhante à de Pedro Nolasco. Era um aprendiz em término de curso e com os dias contados para fazer a travessia até o Corpo de Imperiais Marinheiros, quando sua mãe Úrsula Maria tentou desligálo da instituição. Como de praxe, o aprendiz só estaria liberado se as despesas feitas com o menino fossem quitadas323. Ao que tudo indica, o capitão queria enviar Casemiro o mais breve possível para assentar praça como marinheiro, mas o presidente da província solicitou-lhe paciência, argumentando que enquanto a mãe ―não declarar que não pode entrar para os cofres da Thesouraria da Fazenda com a importancia da despeza feita pelo estado com o dito menor‖, este deveria 322 MARQUES, Vera Regina. & PANDINI, Silvia. 2004. p.7. MARANHÃO. Livros de minutas da correspondência do Presidente da Província com Autoridades da Marinha. Livro 608. Registro nº 156 em 3 de agosto de 1874. Setor de códices. APEM. 323 116 permanecer na Província324. Em vez de ressarcir o erário, Úrsula solicitou a ―graça de ser dispensada do pagamento‖. Como não teve condições econômicas de ressarcir os gastos, Casemiro foi enviado para o Corpo de Imperiais marinheiros em 24 de outubro de 1874. O desespero dos familiares com a chegada do término do curso de formação dos aprendizes não era infundado. A passagem para o Quartel General muitas vezes era só de ida, raramente os marinheiros viam seus familiares novamente. Encontramos Casemiro matriculado em vários navios, durante mais ou menos nove anos, até quando foi desligado do Corpo de Imperiais Marinheiros. Não por indisciplina ou deserção, pois tais infrações não eram resolvidas com a expulsão e sim com chibatadas, mas por ter sido promovido. Fora nomeado para o Corpo de Oficiais Marinheiros ocupando o posto de 1º sargento, o mais alto que o sistema hierárquico permitia aos marinheiros oriundos das Companhias/Escolas de Aprendizes Marinheiros. Segundo o regulamento, a ascensão ocorria em virtude de conhecimentos adquiridos na Armada. O posto mais baixo era o ocupado pelos aprendizes; acima deles estavam os grumetes; e, depois, os marinheiros escalonados em classes. O grumete era um principiante no mundo marítimo, independente da idade, mas o usual era ser jovens. Por isso, eram conhecidos por "moços" ou "criados de navio", sendo incumbidos de realizar as tarefas mais elementares no cotidiano das embarcações, como limpeza, transporte de suprimentos, ajudantes de cozinha, etc. Para não deixar dúvidas sobre a sua ocupação, os grumetes eram catalogados nos livros de despesas dos comandantes dos navios como ―vassouras‖, por serem ―elles os que varrem os Navios debaixo da direcção dos Guardiães‖325 Para subir de posto, os pretendentes submetiam-se a exames, de periodicidade não declarada na legislação, quando eram avaliados em todos os misteres, em que são instruidos, feito na presença do Commandante Geral, do segundo Commandante, e do Capitão da respectiva Companhia, pelos differentes Mestres e Instructores, dando-se a principal importancia nestes exames, ao que diz respeito á arte de Marinheiro, em segundo lugar á de Artilheiro, e por ultimo ás restantes326. 324 Id. Livro 608. Registro nº 166 em 17 de agosto de 1874. Setor de códices. APEM. MATTOS, Raimundo José da Cunha. 1834 p. 233. 326 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto nº 411-A de 5 de Junho de 1845. Art. 22. 325 117 Segundo Álvaro Nascimento, para galgar o posto de marinheiro de 3ª classe, o candidato deveria apresentar durante os exames desenvoltura no manejo e conservação das velas e cabos. Se apresentasse, além daquelas, habilidade com armas brancas e de fogo, seria um 2ª classe. O posto de 1ª classe deveria ser ocupado por marinheiros que acumulassem todas as habilidades anteriores e ainda soubesse os nomes e função do aparelhamento das embarcações. Para ser cabo, ainda deveria saber a ―numeração das diferentes bandeiras de sinais‖327. Como a marujada era constituída majoritariamente por analfabetos, a ascensão era limitada. Os oficiais inferiores da Armada tinham que ter domínio da leitura e da escrita, além de todos os outros conhecimentos citados anteriormente. Um analfabeto na Armada só conseguiria chegar até o posto de cabo, nunca alcançaria o posto de sargento, o mais baixo dentre os oficiais inferiores328. Durante o período imperial eram necessários apenas conhecimentos de marinharia para se chegar ao posto de cabo. Mas, a partir de 1890, novos elementos começaram a fazer parte dos critérios de avaliação, como o comportamento disciplinar e o grau de alfabetização. No novo regulamento, os analfabetos conseguiriam no máximo ser um marinheiro de segunda classe, pois os de terceira tinham por obrigação saber ler e escrever. Estas variáveis não estavam presentes na legislação anterior e, de certa forma, dificultaram bastante a escalada para os postos mais altos329. Em 1885, Casemiro conseguiu voltar para o Maranhão, e durante algum tempo fez parte do estado menor da mesma instituição que o retirou de sua família330. Porém, sua tarefa de formar novos marinheiros foi passageira, voltando a ocupar seu antigo posto de guardião em embarcações da Armada. Os indícios nos 327 As bandeiras de sinais no caso, são os símbolos presentes no Código internacional de sinais marítimo adotado por quase todas as marinhas do mundo, seja ela mercante ou de guerra. Segundo o capitão tenente José Maria do Nascimento ―o Código internacional facilita aos navegantes os meios de se communicarem entre si, e também com as estações semaphoricas das costas, qualquer que seja o idioma de suas respectivas nacionalidades‖. Era uma forma de comunicação entre os navios em períodos onde a comunicação à radio ainda não existia. Todas as bandeiras, combinações possíveis e seus significados estão disponíveis em: NASCIMENTO, José Maria do. Lista alphabetica dos navios de guerra e mercantes do imperio do Brazil publicado por ordem do exm. sr. conselheiro dr. Alfredo Rodrigues Fernandes Chaves, ministro da Marinha. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886, p. 3-5. 328 NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. 2002, p.107. 329 ibid, p. 114. 330 MARANHÃO. Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ofícios do Comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros ao presidente da província em 31 de dezembro de 1885. Anexo: Mappa do pessoal de que se compõe o estado maior e menor da Escola n º 2 de Aprendizes Marinheiros do Maranhão. Setor de avulsos. APEM. 118 levaram até o ano de 1893, quando esse egresso da Companhia de Aprendizes ocupava o cargo de patrão-mor do contingente da Marinha sediado do Estado do Maranhão. Pelo decreto em vigor, os patrões-mores eram equiparados aos 1os tenentes, quando não fossem oficiais reformados do corpo da Armada, e eram escolhidos dentre os mestres de 1ª classe do Corpo de Oficiais Marinheiros que apresentassem aptidão profissional e bom comportamento331. Casemiro entrou para o Corpo de Imperiais em meados de 1874. Em 1893 contabilizava dezenove anos de assentamento. É possível que ele se enquadrasse na hipótese dos oficiais reformados, pois os egressos das Companhias de Aprendizes Marinheiros eram obrigados a servir por quinze anos, mas poderiam optar por permanecer, o que era raro, mas acontecia. Segundo Álvaro Nascimento, havia na Armada duas carreiras distintas e antagônicas: a dos oficiais (de guarda-marinha a almirante) e a dos subalternos (de grumete ou soldado a 1º sargento). Tal antagonismo era constituído pelo modo de incorporação e pela origem social dos alistados. Se, de um lado, os futuros oficiais tinham de disputar uma vaga na Escola Naval, através de ligações familiares e de nobreza, por outro lado os marinheiros eram alistados, em sua grande parte, à força, ou quando menores, por desejo de seus pais, tutores ou agarrados pela polícia nas ruas332. A forma como se dava a inserção na Armada de certa forma determinava até onde os indivíduos poderiam chegar dentro da corporação. A trajetória de Casemiro demonstra as contradições, possibilidades e os limites da ascensão dentro dessa força armada para marinheiros comuns. Casemiro, mesmo depois de cumprir o longo período ao qual foi obrigado, conseguiu um posto que apenas o equiparava à 1º tenente, pois para sê-lo de fato precisaria ter cursado a Escola Naval. Esta era uma instituição, segundo José Murilo de Carvalho, destinada a um público seletíssimo, alistando principalmente filhos de aristocratas e das famílias tradicionais da força naval333, e não um menino pobre como Casemiro, cuja mãe não tinha sequer dinheiro para tirá-lo da Companhia de Aprendizes. 331 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto nº 745, de 12 de Setembro de 1890. Art. 137. NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. 2002. p. 102. 333 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ/Relume Dumará, 1996, especialmente os capítulos 3 e 7. 332 119 4.6 Os pequenos incorrigíveis Os indícios evidenciaram que os familiares dos aprendizes reagiram de formas diferenciadas ao enquadramento infanto-juvenil naquela instituição militar, expressando seus valores e estratégias para enfrentar a pobreza, assim como as práticas do oficialato da Armada, que deixava às claras a necessidade de marinheiros e os cuidados do Estado para evitar prejuízos com a interrupção na formação dos aprendizes. No entanto, os capitães do porto da província do Maranhão vez ou outra se deparavam com a situação de aprendizes fugindo da instituição. Foram poucos, mas houve quem se utilizasse de tal recurso para dar fim à condição de aprendiz. Foi o caso dos irmãos Manoel e Mateus, enviados pelo pai, André Barreto, para serem inspecionados e alistados na Companhia de Aprendizes. O primeiro fora julgado incapaz por ter sífilis. O segundo, ao saber que fora considerado apto, sequer chegou a ser alistado na Companhia, fugindo na primeira oportunidade. Passou sete dias foragido, até ser reapresentado pelo seu pai, em 5 de abril de 1864. Mateus parecia não gostar da instituição e fugiu mais uma vez, ―aproveitandose do rumor que se faria com o toque da alvorada, galgou por uma das janellas do quartel o telhado e evadio-se, sendo preso num dos estaleiros de carpinteiros na praia da Mercês‖334. Se e como foi punido, não foi possível sabermos. O caso de Manoel dos Remédios, entretanto, evidencia a punição que uma deserção poderia acarretar a um aprendiz. Ele deveria estar insatisfeito na instituição, pois dali fugiu em 18 de setembro de 1871, sendo capturado apenas em 29 de janeiro do ano seguinte. Passara mais de cinco meses escondendo-se de todos os aparatos militares que se ocupavam da caçada de desertores, e para casos assim a lei era bastante clara. Segundo o art. 39 do decreto que regulava a disciplina da instituição, o Aprendiz Marinheiro que desertar e for capturado, ou se não apresentar dentro de tres mezes, será remettido logo para o Quartel central na Côrte, sendo conservado preso até a occasião da partida. Se, porêm, apresentarse voluntariamente dentro de tres mezes depois da deserção, continuará na Companhia, soffrendo neste caso o castigo correccional que o Commandante da Companhia julgar justo‖335. 334 MARANHÃO. Capitão do Porto. Ofícios do Capitão do Porto ao presidente da província em 7 de abril de 1874. Setor de avulsos. APEM. 335 BRASIL. Coleção de leis do império. Decreto nº 1.517, de 4 de Janeiro de 1855. 120 Por ter passado tanto tempo foragido, o aprendiz Manoel fez a famosa travessia para a Corte, antes mesmo do término de sua formação. Esta seria concluída na Companhia de Aprendizes do Rio de Janeiro. Hendrik Kraay sugere que o recrutamento para as tropas de linha era uma poderosa arma de controle social, usada para intimidar e punir homens que não trabalhavam, que não obedeciam às autoridades e que não procuravam servir a um patrão ou a um comandante da Guarda Nacional336. Da mesma forma, crianças que não se comportavam de acordo com o socialmente esperado eram ameaçadas com o alistamento nas Companhias de Aprendizes - a associação da Armada como uma instituição correcional estendeu-se às Companhias de Aprendizes, e a simples menção ao alistamento era suficiente para deixar uma criança obediente. Humberto de Campos, escritor e poeta maranhense, recorda que quando criança seu maior medo era ser ―internado‖ na Escola de Aprendizes. Conta, em suas memórias, que ―as notícias que me davam desse estabelecimento eram as de uma casa de torturas inconcebíveis‖. Certo dia chegara a casa de Humberto uma carta ―de ordem do comandante Gervásio‖ para sua mãe. A sensação descrita pelo escritor indica o terror em que ficou: Arregalei, naturalmente, os olhos. O ―comandante Gervásio‖ era o capitão do porto e comandante da Escola de Aprendizes, cuja farda branca era um dos orgulhos da cidade e uma das ameaças permanentes à minha tranquilidade de menino vadio. Minha mãe tomou a carta, rompeu o envelope, e, com a fisionomia triste, leu, alto, mais ou menos o seguinte: ―Exma. Sra. Dona Ana de Campos Veras. Passando eu uma destas tardes pela casa da senhora, vi o seu filho Humberto correndo no quintal atrás de um pato, e dizendo nomes feios em voz alta. Não sendo a primeira vez que isso acontece, previno a senhora que, a primeira vez que tal cousa se repita, mandarei um marinheiro pegar o seu filho e trazê-lo para a Escola de Aprendizes Marinheiros, onde sentará praça e será castigado como merece. Assinado: Gervásio Pires de Sampaio, capitão do Porto.‖[...] Uma covardia invencível aniquilou-me a vontade. Durante algumas semanas mostrei-me dócil, obediente, morigerado. Passei o resto do verão sem empinar papagaio. Não proferi, durante algum tempo, nomes condenáveis337. Anos mais tarde, lembrou-se do fato e perguntou a sua mãe sobre o motivo da carta do capitão. Ela ironicamente respondeu: ―Como tu eras tolo! tu não viste que a letra era minha?‖. 336 KRAAY, Hendrik. 1993. CAMPOS, Humberto de. Memórias e Memórias inacabadas. São Luís : Instituto Geia, 2009, p. 149. 337 121 Fran Martins reforça a imagem reformista da Companhia, em ―A rua e o mundo‖, quando afirma que ―a Marinha era, então, o terror dos meninos. Quando um não prestava, os pais o deportavam para a marinha, porque lá, de qualquer maneira, haveria de se endireitar‖338. Na imprensa maranhense, sugestões de caráter semelhante reforçam o caráter correcional da instituição, ao expor a reclamação de um leitor contra o mau comportamento de um menino de 8 annos, filho de uma tal Joanna cearense, moradora a rua de Sant‘Anna, quase defronte da casa do Sr. Dr. Abilio. Vive o tal pequeno a atirar pedras, e o nosso informante diznos que por pouco era hontem vitima do tal brinquedo. O menino esta no caso de ter uma correção, merece-a mesmo, pois dela precisa e na companhia de menores pode elle obter uma educação vantajosa e ser útil339 A ―companhia de menores‖ referida é a Companhia de Aprendizes Marinheiros. Ambas as denominações eram utilizadas pela imprensa e pelos dirigentes da Marinha, de forma indiscriminada, para a instituição. Esta serviria para regenerar crianças pobres que não se portassem dentro dos padrões comportamentais aceitáveis no período para sua classe social. A solução sugerida para corrigir o mau comportamento infanto-juvenil era colocá-las num local que unisse disciplina militar e educação moral-religiosa. Um articulista do jornal Pacotilha sugere que o local serviria como depósito não apenas de indisciplinados, mas também para pequenos criminosos. A Companhia foi lembrada como um local ideal para moralizar um menino de doze anos, acusado de deflorar uma menina de apenas oito anos(!). Para o articulista, essa seria a melhor opção, porque ―por amor à edade, não pode a lei punir este d. Juan precoce, parecerá razoável que o mettam na companhia de aprendizes marinheiros, para que elle aplique melhor e mais utilmente o seu tempo‖340 A associação da Companhia de Aprendizes como local de punição vai ficando mais acentuada quando se parte para o plano legal e institucional. A Casa dos Educandos Artífices, como vimos, ministrava aulas de primeiras letras e ensino de ofícios mecânicos em geral. Mas apesar da disciplina militarizada, a resistência dos educandos fazia parte do cotidiano dos administradores daquela instituição. As 338 MARTINS, Fran. A rua e o mundo. São Paulo: Martins, 1962, p. 21. Apud. SILVA, Rozenilda. M. C . Companhia de Aprendizes Marinheiros do Piauí e a sua relação com o cotidiano da cidade de Parnaíba. In: IV Encontro de Pesquisa em Educação da UFPI, 2006, Teresina. A pesquisa como mediação de práticas sócio-educativas. Teresina: EDUFPI, 2006. 339 DIÁRIO DO MARANHÃO. São Luís, 17 set.1884. Creança má, p. 2. 340 PACOTILHA, 27 ago. 1883. Pacotilha, p. 2. 122 punições para o mau comportamento dos aprendizes artífices, segundo o regulamento, oscilavam de acordo com o grau da traquinagem praticada. A gradação era a seguinte: Art. 33. A casa reconhece as penas seguintes: 1ª. Repreensão particular, na secretaria do estabelecimento; 2ª. Repreensão pública, à frente do corpo formado; 3ª. Privação do recreio, ou passeio, ou de ambas as coisas juntamente; 4ª. Trabalho fora das horas do costume; 5ª. Exclusão da mesa por uma a três vezes; 6ª. Servir a mesa aos companheiros, por uma a três vezes; 7ª. Outros trabalhos, que excitem o pejo e o vexame; 8ª. Prisão por um a oito dias, no xadrez da casa; 9ª. Expulsão do estabelecimento341. Com base nos regimes disciplinares das corporações militares, Regina Faria e Edvaldo Dutra deduziram que servir em certos aparatos militares parecia ser algo menos sofrível. A gradação encontrada pelos autores indica a existência de diferentes níveis. Os ―transgressores incorrigíveis‖ das Guardas Campestres deviam ser punidos com a pena de até um ano servindo no Corpo de Polícia. (art.4º, da referida Lei Provincial nº.98). Neste, os praças com ―conduta irregular‖ e que não dessem ―esperança de se corrigir‖ deviam ser encaminhados para o Exército ou a Marinha (art. 32, do Regulamento de 1855, do Corpo de Polícia do Maranhão)342. Um aviso circular, reservado, enviado pelo Ministério da Guerra à Presidência do Maranhão indicava um desdobramento no terceiro nível, pois havia a determinação de que ―os praças do exército que se tornarem incorrigíveis sejão transferidos para a Armada‖343. O aviso sugere ser a Marinha o limite, e seus rigores disciplinares, pelo visto, um assombro para soldados de outros aparatos militares. Essa possibilidade de transferência como punição, após 1876, nos leva a pensar que estar em um navio da Armada ou nos seus quartéis seria uma experiência bastante desagradável. A transferência como forma de punição também foi um recurso utilizado para induzir bom comportamento aos aprendizes da Casa dos Educandos. A disciplina militar e o rol de punições habituais daquela instituição não foram suficientes para 341 MARANHÃO. Regulamento da Casa dos Educandos Artífices – 1855. Apud. CASTRO, César Augusto (Org.). Leis e regulamentos da instrução pública no Maranhão Império: 1835-1889. São Luís : EDUFMA, 2009.p. 333-334. 342 FARIA, Regina Helena Martins de; DUTRA, Edvaldo Dorneles. 2011, p. 8. 343 MARANHÃO. Livros de minutas da correspondência do Presidente da Província com Autoridades da Marinha. Livro 610. Registro nº 36 em 28 de março de 1874. Setor de códices. APEM. 123 obter bom comportamento de Francisco Batista de Melo e de João Marques Rodrigues. Sobre Francisco Melo não há muita informação sobre o que motivou sua transferência para a Companhia de Aprendizes, mas os indícios sobre o educando João sugerem que durante três anos na instituição não houve demonstração de afinidade com ofício algum ali ensinado. Mas isto não seria um motivo suficiente para a transferência, pois a mera falta de habilidade era resolvida com o simples desligamento. Porém, a menção ao art. 35 deixa claro que a inabilidade estava associada a problemas graves de indisciplina344. Segundo o referido artigo o educando, que não der esperança de corrigir-se com a imposição das penas decretadas no presente regulamento, será remetido com a devida parte ao Presidente da Província, que lhe mandará verificar praça no exército ou na armada nacional e imperial345. Talvez, pela pouca idade, os dois não foram enviados diretamente para ser soldados nos corpos militares citados no regulamento. Porém, o fato de terem sido remetidos para a Companhia de Aprendizes Marinheiros em momento algum desvirtuaria o sentido da norma. 4.7 Crianças nas ruas O esforço diário do Corpo de Polícia contra o aumento da criminalidade era elogiado nos periódicos, mas também realçava alguns excessos. A atuação ostensiva, e muitas vezes arbitrária dos policiais, era denunciada, como numa ocasião em que houve pelas ruas de São Luís um pega-pega de crianças, feito pela policia, acobertada com o nome de prisão de vadios para a companhia de aprendizes marinheiros. Se algumas vezes ha a necessidade de se reclamar e effectuar esta medida pelo grande numero de vagabundos e viciados(...) parece que a policia mal approveitou a occasião para bem desempenhar a sua missão, e isto por que nas occasiões precisas não atende as reclamações e vai agarrando a torto e a direito, os pequenos que encontra.(...) Interrogado os soldados pela forma incorrecta porque procediam, responderam que tinham ordem para agarrar a toda e qualquer criança que encontrassem!346 344 PUBLICADOR MARANHENSE, São Luís, 26 abr. 1874. Expediente do dia 20 de abril de 1874, p. 1. 345 346 MARANHÃO. Regulamento da Casa dos Educandos Artífices – 1855. 2009. p. 334. DIÁRIO DO MARANHÃO, São Luís, 22 de fevereiro de 1887. Prisão de crianças, p. 2. 124 O fato virou notícia porque a vítima da arbitrariedade policial daquele dia tinha sido um "menino de casa" do médico e político maranhense Manuel Bernardino da Costa Rodrigues347. Tratava-se, portanto, de uma criança inserida em uma rede de proteção, gerando até uma certa "revolta" nos cidadãos que presenciaram a cena, segundo o periódico. Observando tal notícia, temos a impressão de que ser criança, principalmente pobre, e estar na rua significava estar exposto aos riscos de ser capturado por policiais e entregue à Companhia de Aprendizes. Os alistamentos ilegais eram rotineiros e causavam transtornos para as famílias não inseridas numa rede de proteção. No alistamento infanto-juvenil vigoravam práticas assemelhadas ao recrutamento de adultos no que tange aos critérios de isenção, e o fato de estar inserido ou não em uma rede de proteção. Isso pode ser deduzido do caso dos meninos Simão, Manoel, Alfredo, Ignácio, Jeronimo e Emiliano. Eles certamente foram surpreendidos por uma batida policial e levados para assentar praça na Companhia de Aprendizes348. Inspecionados, foram considerados aptos e alistados na instituição. Não demorou muito para que os responsáveis fossem requerê-los de volta. Alfredo, Manoel e Jerônimo eram filhos legítimos com pai e mãe vivos, foram por estes requeridos e desligados da instituição. Angélica Rosa Belfort era mãe solteira e foi ao resgate de seu filho Emiliano. Falamos em resgate em virtude da própria linguagem utilizada nos ofícios, que sugere estarem os meninos presos de fato. Leocádio Ferreira de Souza era protetor de Ignácio e, ao saber do ocorrido, reclamou prontamente à presidência da província, que ordenou ao capitão do porto para pô-lo em liberdade, visto o recrutamento ilegal do qual fora vítima. O caso de Simão é um dos mais interessantes. No discurso dos dirigentes e oficiais da Marinha, a Companhia era apresentada como instituição destinada a dar uma formação elementar e ocupação aos meninos pobres, órfãos e desprotegidos em geral. Simão não se enquadrava nesse perfil, pois já tinha com o que se ocupar. Honório José do Nascimento, mordomo da irmandade de São Manoel e carpinteiro, atestou que aquele menino apreendido na rua era seu aprendiz e não um 347 Era mais conhecido como Costa Rodrigues (1853-1929), foi um médico e político brasileiro, eleito deputado federal e senador pelo Maranhão, ocupando dois mandatos em cada cargo político. 348 MARANHÃO. Livros de minutas da correspondência do Presidente da Província com Autoridades da Marinha. Livro 611. Registro nº 98 em 18 de junho de 1877. Setor de Códices. APEM. 125 desocupado. Talvez tenha sido capturado por estar na rua e não portar suas ferramentas de trabalho no momento da captura. A apreensão desses seis meninos exemplifica como agiam os órgãos encarregados da segurança pública e, ao mesmo tempo, do alistamento forçado de crianças. Ao avistarem algum ajuntamento, ou alguém numa atitude considerada suspeita, logo o prendiam. A intenção era estabelecer uma ordem urbana e retirar das vias públicas a presença incômoda das diversões daqueles jovens. Os seis meninos citados há pouco conseguiram ser desligados da instituição, por iniciativa de seus responsáveis. Muitas crianças pobres, entretanto, tiveram trajetórias diferentes. Certos órfãos, além de terem sofrido o trauma da perda dos pais, ainda tinham que conviver com a possibilidade, não muito remota, de ser enviados pelos juízes de órfãos para a Companhia de Aprendizes. Criado ainda no período colonial, o cargo de juiz de órfãos ocupava-se dos processos familiares em que estavam envolvidos menores de 21 anos. Inicialmente, essa autoridade tinha como objetivo principal mediar questões envolvendo riquezas deixadas: fazia partilhas, heranças e cuidava dos processos de tutela de crianças de posses. Em virtude das mudanças sociais e dos problemas advindos do aumento populacional, as prerrogativas dos juízes de órfãos foram ampliadas, ficando também incumbidos de zelar pelas crianças pobres, pelos imigrantes que começavam a chega, pelas famílias escravas e libertas, envolvendo-se principalmente com questões relativas ao abandono infantil e às relações de trabalho. Gislane Azevedo percebeu que a legislação que ampliou as prerrogativas desses juízes, antes de favorecer o bem-estar e melhores condições de vida, gerou o contrário. Para a autora, abriu-se uma brecha para a exploração infantil por parte dos tutores, pois se antes da promulgação destas leis, a tutela acontecia com menores ricos, a partir de então, a sociedade começou a utilizá-la também para crianças pobres. Na maior parte das vezes, isso não significava preocupação para com o bem-estar dos menores carentes. As famílias de posse aproveitavam-se da lei que dizia ser necessário dar tutor a todos os órfãos menores de 21 anos e decidiam tutelá-los com a finalidade de terem em 126 casa verdadeiros compulsoriamente349. criados, fazendo os serviços domésticos Em uma sociedade escravista, crianças pobres livres incorporadas a uma família representavam aumento de mão de obra gratuita. Por isso, pedir a tutela poderia trazer vantagens econômicas incríveis, e muitos requerentes sabiam disso. Pela legislação, os tutores não eram obrigados a pagar ao menor por seus serviços prestados, pois quando alguém requeria tutela de um menor, geralmente argumentava que gostaria de mantê-lo sob seus cuidados em virtude de ele estar abandonado ou sofrendo maus-tratos em outra residência. Em geral, o juiz atendia o requerente, pois, amparava-se na lei que determinava que todo menor órfão ou abandonado deveria ter tutor. Assim, o magistrado entendia estar tirando uma criança da rua ou da casa de quem não tinha condições de criá-la para colocá-la no lar de um cidadão que se comprometia a cuidar dela. (...). Entretanto, a argumentação do solicitante de estar ‗preocupado com o bem estar do menor‘ camuflou, na maioria das vezes, outro interesse: o de ter crianças trabalhando gratuitamente para ele. (...). Muitas delas, além de terem uma vida dedicada exclusivamente ao trabalho sem receber nenhum retorno financeiro, ainda sofriam castigos físicos350‖. O aumento do número de crianças em situação de vulnerabilidade e a necessidade de formação de marinheiros fizeram com que os oficiais da Marinha e os presidentes da província enviassem circulares para os juízes de órfãos, tanto da capital quanto do interior da província, para que estes se empenhassem na busca de crianças. Conseguimos traçar algumas trajetórias de crianças que, em virtude da orfandade, acabaram caindo nas malhas do Judiciário e depois foram remetidas para a Companhia de Aprendizes. Joaquim tornou-se órfão aos ―onse annos de idade pouco mais ou menos‖ no ano de 1870. Era ―natural do Termo da Batalha e filho legitimo de Jozué, escravo e da fallecida Maria, livre‖. Sua situação foi parar na mesa de Antonio Pires, juiz de órfãos de Parnaíba, para que desse um ―destino conveniente‖ ao menino. Com a mãe falecida, o único familiar vivo e conhecido era seu pai, cuja condição de escravizado não lhe permitia ter a guarda de seu filho. 349 AZEVEDO, Gislaine C. Sebastianas e Geovannis: o universo do menor nos processos dos Juízes de Órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 1995. p. 42. 350 Idem. A tutela e o contrato de soldada: a reinvenção do trabalho compulsório infantil. História social, (3): Campinas, 1996, p. 20. 127 Na época não existia Companhia de Aprendizes na província do Piauí. Pelos estudos de Rozenilda Silva351, sabemos que apenas em 1874 uma Companhia de Aprendizes começou a funcionar em Parnaíba. Por isso Joaquim fora enviado para a Companhia de Aprendizes mais próxima, a do Maranhão352. A trajetória de João expõe a precariedade da vida sob o regime escravista. Contando com apenas 10 anos, deveria ser um daqueles muitos meninos escravos que circulavam nas ruas da cidade de São Luís, levando recados, fazendo serviços domésticos ou qualquer outra atividade compatível com a pouca idade. Provavelmente vivia com sua mãe até o momento em que esta fora, sozinha, vendida em 1874. Pela Lei nº 1.695, de 15 de setembro de 1869, ou a mãe não deveria ter sido vendida, ou João deveria acompanhá-la na transação, pois era expressamente proibido separar familiares escravizados (pai, mãe e filhos menores de 15 anos) em negociatas entre senhores. Ocorre que a Lei não foi suficiente para manter mãe e filho juntos - prevaleceu o arbítrio. João não virou mercadoria; pelo contrário, foi alforriado e passou a gozar do status de liberto. E o pior: sem protetor algum, pois pelo visto seu antigo dono não teve interesse em permanecer com ele. O translado com a escritura pública da sua alforria foi parar nas mãos do juiz de órfãos da capital, que não deve ter pensado muito a respeito e o remeteu diretamente para a presidência da província com uma requisição de inspeção de saúde. Antes, porém, o presidente fez uma recomendação curiosa ao capitão do porto: ―consta ainda não ter sido baptizado o referido orphão, recomendo que promova os meios necessários a fim de ser-lhe ministrado aquele sacramento‖353 antes do mesmo assentar praça na Companhia. Enquanto algumas crianças eram empurradas para dentro da instituição, outras, contraditoriamente, procuravam-na para se proteger de maus-tratos, achando ser aquela a solução para uma vida com menos opressão. Hypolito de Souza Ramos poderia ser considerado o aprendiz ideal e um exemplo de menino 351 SILVA, Rozenilda Maria de Castro. Companhia de aprendizes marinheiros da província do Piauí: o recrutamento à armada e o acesso da criança pobre à Escola (1874 a 1915) in: Linguagens, Educação e Sociedade. n. 9, Teresina, UFPI: jan.-dez. 2003. 352 PIAUÍ. Juiz de Orfãos da cidade de Parnaíba da Província do Piauhy. Ofícios do Juiz de Orfãos de Parnaíba ao presidente da província do Maranhão em 10 de setembro de 1870. Setor de avulsos. APEM. 353 MARANHÃO. Livros de minutas da correspondência do Presidente da Província com Autoridades da Marinha. Livro 608. Registro nº 253 em 25 de novembro de 1874. Setor de códices. APEM. 128 pobre a ser seguido, se não fosse por algumas questões. Sabemos que muitos pais ou tutores, espontaneamente, alistavam suas crianças e que isso gerava direito a um prêmio, mas isso não implica dizer que as crianças realmente quisessem tal destino. Hypolito, contrariando as estatísticas, foi voluntariamente ao encontro do juiz de órfãos para requerer o próprio encaminhamento para a Companhia de Aprendizes. Seu comportamento fora elogiado pelas autoridades, e seu voluntarismo dar-lhe-ia direito ao prêmio de 100 mil-réis354. As autoridades só não contaram, entretanto, com a sua astúcia em esconder sua verdadeira condição para ser alistado. Após ter sido descoberto, foi desligado e entregue ao machinista Roberto Bielly, que o reclamou como seu parente e mestre que é, e em cuja companhia se acha aprendendo o officio de machinista na officina da fundição da Companhia de Vapores para o que foi-lhe entregue pelo seu pai Francisco Pereira Ramos residente na Vila de Barra do Corda355. Hypolito não era órfão, vivia como aprendiz de maquinista, mas preferiu alistar-se na Companhia de Aprendizes a permanecer junto de seu mestre e parente. Provavelmente julgou que ser aprendiz de marinheiro era uma condição melhor do que aquela que tinha como aprendiz de maquinista. Luiz de Mendonça era filho único e tinha 12 anos quando sua mãe, Maria Alexandrina, faleceu. Natural de Turiaçu não restou ninguém que se responsabilizasse por sua criação. Para não viver desamparado, o juiz de órfãos daquela vila achou por bem enviá-lo para ter a saúde inspecionada e ser alistado na Companhia de Aprendizes. O mesmo ocorreu com João da Cruz, Firmo Augusto de Asevedo, Jeronimo, Manoel Pedro Viera e outros tantos mais que, após perderem pai e/ou mãe, foram entregues à Companhia de Aprendizes. Observamos que esses meninos enviados pelos juízes de órfãos foram alistados na Companhia em uma condição, digamos, vantajosa, pois tiveram direito ao prêmio de 100 mil-réis previsto. Pelos decretos 1.519, de 1855, e 9.371, de 1885, os prêmios só seriam dados aos aprendizes alistados por seus familiares ou tutores e não para os órfãos remetidos pelos juízes, como presenciamos. 354 355 Id. Livro 609. Registro nº 67 em 25 de abril de 1875. Setor de códices. APEM. Id. Registro nº 71 em 29 de abril de 1875. Setor de códices. APEM. 129 Uma trajetória pouco encontrada foi a de expostos ou enjeitados da Santa Casa de Misericórdia, sendo encaminhados para a Companhia de Aprendizes Marinheiros. Da data de criação daquela instituição, em abril de 1828, até o ano de 1873, foram acolhidas 229 crianças expostas na instituição. Segundo os registros, 203 crianças faleceram (!), 20 foram para a Casa dos Educandos Artífices, 8 para oficinas mecânicas particulares e apenas 5 foram para a Companhia de Aprendizes Marinheiros356. Depois disso, encontramos apenas Sebastião Pinto, um pequeno sobrevivente que escapou da estatística da mortalidade infantil, e que conseguiu chegar aos 10 anos, idade em que fora encaminhado para a Companhia de Aprendizes Marinheiros. O índice de mortalidade elevado da instituição nos faz pensar em um ambiente habitado por meninos adoentados e/ou de compleição física mirrada, meninos que certamente seriam relaxados pelos médicos nas inspeções de saúde, pois nas péssimas condições, em que estavam os pequenos da Santa Casa de Misericórdia, sobreviver já era um grande prêmio. No projeto de alistamento e profissionalização infantil, realizado pela Marinha, a criança pobre do sexo masculino ficou numa encruzilhada entre autoridades militares e civis diversas. Muitas foram retiradas forçadamente do convívio familiar. A acusação de falta de cuidado e o suposto abandono por parte dos pais legitimavam a prática. Um julgamento apressado poderia ver nos alistamentos voluntários de crianças, em troca do prêmio, a existência de ganância e falta de amor pelo filho, mas também poderiam ser vistos como cuidado e esperança de que o filho fosse tratado dignamente. As tentativas, frustradas, de desligamentos posteriores, no entanto, sugerem que, em alguns casos, tratava-se mesmo de pobreza e de duras condições de vida, e não de desleixo, como acreditavam as autoridades. 356 Ibid. Presidência da província. Relatório apresentado à assembléia legislativa provincial do Maranhão pelo excelentíssimo senhor presidente da província, Dr. Silvino Elvidio Carneiro da Cunha, no dia 17 de maio de 1873. Maranhão: Typografia do Frias, 1873, p. 51 130 Considerações finais A formação da Marinha de Guerra brasileira era de fundamental importância para consolidar o projeto da elite imperial de preservar a unidade nacional e integridade do território nacional. Sua função, dentre outras, era a de proteger o comércio e zelar pela ordem, destruir as revoltas nas províncias em agitação, repelir ataques externos, fiscalizar o tráfico ilegal de escravos após 1850, dentre outras. Diversos indícios apontam o poder reduzido da esquadra nacional, tanto em número de navios, quanto em tripulação. O Império brasileiro conseguiu seus primeiros navios confiscando os da antiga metrópole, Portugal, e comprando outros tantos. Essas belonaves eram tripuladas inicialmente por uma ―galera heterogênea‖, conforme definiu Silvana Jeha. Os primeiros marujos eram estrangeiros de várias nacionalidades, muitos portugueses aderentes à causa da Independência, além de presos de justiça e escravos. As esquadras compostas por tais sujeitos resolveram as demandas iniciais, pois foram eles os responsáveis por forçar a adesão das províncias resistentes ao domínio da Corte do Rio de Janeiro. Mas com o passar do tempo, os pelotões de estrangeiros geraram distúrbios e prejuízos para o Império. Em 1831, o ministro da Marinha Rodrigues Torres alertava que as tropas estrangeiras causavam males à Armada, em virtude da indisciplina. Por isso, visava "extirpar o espírito insidioso"357 dos contratados e "expurgar" da Armada esses indivíduos de "espíritos inquietos". Seu objetivo era fazer uma reforma geral, dando uma organização mais clara à força naval, elaborando regras mais precisas e institucionalizando-as de fato. A base legal das transformações propostas vieram com o Decreto nº 304, de 2 de junho de 1843, que organizou militarmente o Corpo de Imperiais Marinheiros e as Companhias de Aprendizes Marinheiros. Segundo Edna Arantes, a criação do Corpo de Imperiais Marinheiros teve o propósito de criar um núcleo militarizado, profissional e nacional na Marinha de Guerra, já que, além dele, havia ainda o Corpo de Artilheiros e a marinhagem 357 BRASIL. Relatório do Ministério da Marinha, 1831 , p.7. 131 avulsa. Esta última era formada principalmente por estrangeiros contratados, mas havia também nacionais voluntários358. As Companhias de Aprendizes Marinheiros, por sua vez, tinham o objetivo de preencher o Corpo de Imperiais Marinheiros com marinheiros treinados desde pequenos para as lides do mar. Passaram a ser chamadas de ―viveiros da Armada‖ pelos dirigentes da Marinha, por terem se transformado no principal local de onde a força naval conseguia seus marinheiros, depois da década de 1870. Os provenientes dessa instituição eram mais jovens e, em tese, profissionalizados, pois haveriam de passar por um aprendizado prévio. Seriam os aprendizes os substitutos daqueles sujeitos que antes eram recrutados, geralmente mais velhos e sem muitas habilidades náuticas. Teriam um tempo de serviço maior, já que deveriam prestar quinze anos de serviço à Armada, depois de concluída sua formação nas Companhias. Como substituiriam os estrangeiros então contratados, que ganhavam mais e ficavam menos tempo, aliviariam o peso nos gastos com contratações. Em 1869, o ministro João Mauricio Wanderley até cogitou a possibilidade de haver a supressão dos castigos corporais na Armada, com a tripulação sendo composta majoritariamente por esses jovens egressos das Companhias de Aprendizes. O Regimento Provisional e os Artigos de Guerra organizavam disciplinarmente os navios e quartéis da Armada. Eram códigos bastante severos, e neles estavam previstos temidos castigos físicos (os aprendizes eram regidos por um código disciplinar próprio). Mas o terror dos marujos não se resumia àqueles dois regulamentos. Além dos códigos escritos, estava presente no cotidiano das embarcações um ―costume bem estabelecido‖, oriundo de códigos não escritos, bastante conhecidos da tripulação. Os códigos escritos eram rigorosos, sim, isso não resta dúvida, mas a interpretação abusiva do art. 80 dos Artigos de Guerra fazia com que o cotidiano das embarcações fosse ainda mais violento, dando origem à um verdadeiro ―tribunal do convés‖. Neste, o comandante do navio era o verdadeiro juiz, dando sentenças desarrazoadas e muitas vezes em desconformidade com as leis, que já eram duras. 358 ARANTES, Edna Antunes. 2001. p. 63. 132 A existência de castigos físicos nas Forças Armadas fazia com que a população masculina ficasse temerosa em virar soldado. Regina Faria e Edvaldo Dutra359 lembram que a transferência para as tropas de 1ª linha fazia parte do rol de punições para os insubordinados de aparatos militares menores. Essa prática aliada ao mencionado Aviso do ministro da Guerra ao presidente da província do Maranhão, ordenando que este enviasse os ―incorrigíveis‖ do 5º Batalhão de Infantaria do Exército para a Armada - confirma a interpretação de Paloma Siqueira, Peter Beattie e Álvaro Nascimento: a permanência de um marinheiro na força naval seria praticamente uma experiência prisional360. A diferença estaria nos momentos de liberdade de que os marinheiros dispunham, quando muitos aproveitavam para fugir. A comparação é inevitável. A Companhia de Aprendizes Marinheiros do Maranhão também recebeu crianças e jovens da Casa dos Educandos Artífices considerados indisciplinados. E isso amparado pelo próprio Regulamento dessa instituição, sugerindo que os aprendizes da Armada estavam submetidos a um código disciplinar mais rigoroso que os educandos artífices, e que a Companhia funcionava como uma instituição corretiva. As sugestões veiculadas dos periódicos locais de enviar para a Companhia de Aprendizes crianças e jovens que perturbavam o sossego público, ou que cometiam delitos, reforçam a ideia de que ela era vista como um local de punição para a infância pobre, para quem não se portava como era socialmente esperado. A atuação do Corpo de Polícia, encaminhando irregularmente crianças, que sequer estavam nas condições estipuladas pelo Regulamento, também evidencia a existência de um código de conduta disseminado entre as autoridades responsáveis pelo controle social no período, que tinha o objetivo principal de desqualificar as famílias pobres para retirar-lhes os filhos. Tinham chance de ser desligadas daquela instituição apenas as crianças cujos familiares ou protetores estivessem inseridos em redes clientelares, que lhes dessem suporte no desligamento de seus filhos irregularmente alistados. A troca de ofícios entre autoridades da Marinha e a presidência da província evidencia igualmente tal código, pois a justificativa dos alistamentos forçados era a 359 FARIA, Regina Helena Martins de; DUTRA, Edvaldo Dorneles. 2011, p. 8. FONSECA, Paloma Siqueira. 2004; NASCIMENTO, Álvaro Pereira. 1997, 1999, 2002, 2004, 2008; BEATTIE, Peter. 2009, p. 217 360 133 de que os familiares desses meninos eram pobres e desleixados e maus provedores. Quando estes conseguiam provar ter boa conduta, tinham que ressarcir quantias muito elevadas para ter de volta os filhos alistados. Pressionadas pela falta de dinheiro e/ou animadas pela esperança de que aquela instituição alimentasse e alfabetizasse seus filhos, muitas mães alistaramnos, demonstrando um gesto maternal de cuidado e preocupação, mas também de astúcia. Basta lembrarmos de Quitéria Barros e João Sodré. Ambos colocaram seus filhos bem pequenos na instituição e quiseram desligá-los anos depois, quando já estavam crescidos, mas se depararam com a blindagem institucional da Armada, que evitava de todas as formas custear a educação e profissionalização de jovens que nunca se tornassem imperiais marinheiros. Este trabalho teve, portanto, a pretensão de contribuir com os estudos militares que possuem os aprendizes da Armada como objeto de preocupação, assim como visou despertar o interesse de futuros pesquisadores a se interessarem pela temática. Mas, se novos navegantes não se sentirem confortáveis em realizar essa travessia, ficamos contentes em ter retirado do esquecimento a experiência daquelas mães, pais e filhos que tiveram suas vidas marcadas pela estigmatização e violação de direitos. 134 REFERÊNCIAS ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ABREU, Martha & MARTINEZ, Alessandra Frota. 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