Deficiência do fator XI 117 RELATO DE CASO Deficiência do fator XI Factor XI deficiency* Jayme Diament1, Adriana Regina Perez2, Nydia Strachman Bacal3, João Carlos de Campos Guerra4, Eurípedes Ferreira5 ABSTRACT We describe a patient with a prolonged aPTT who was diagnosed as having factor XI deficiency after a rather large hematoma was formed after angiography. Factor XI deficiency affects 1 in 1 million people, but it is more common in Ashkenazim with a gene frequency of 5% to 11%, being 0.3% homozygotes. These individuals usually do not present hemorrhagic events, except in cases of trauma or surgery. These patients should be identified by routine coagulation screening; bleeding could be prevented by use of fresh human plasma or plasma concentrates. Entre as doenças hereditárias mais comuns e que comprometem a ativação do Fator X está a deficiência de Fator VIII, a clássica hemofilia A, seguida da deficiência de Fator IX, a hemofilia B, além do envolvimento da deficiência Fator VII – via extrínseca e a ocorrência adquirida de inibidores desses fatores. Laboratorialmente essas deficiências se traduzem por um prolongamento do tempo parcial de tromboplastina ativada (TTPA), cuja ocorrência induz ao estudo desses fatores ou pesquisa de inibidores. Keywords: Factor XI deficiency; Coagulation protein disorders Resumo O Fator XI da via interna da cascata de coagulação é fundamental para a produção de tromboplastina endógena e a sua deficiência leva a um quadro clínico hemorrágico, conhecido como hemofilia C. Esta deficiência é objeto do presente caso, com particular ênfase na alta freqüência gênica entre o grupo étnico de judeus Ashkenazi. Descritores: Deficiência do fator XI; Transtornos de proteínas de coagulação INTRODUÇÃO A não produção de tromboplastina endógena ou ativação do Fator X da coagulação é necessária para a conversão da protrombina em trombina e ação dessa sobre o fibrinogênio, transformando-o em fibrina e posterior ação do Fator XIII, que estabiliza o coágulo de fibrina. RELATO DE CASO I.F., masculino, 70 anos de idade, foi admitido por apresentar dor precordial intensa e que teve início há duas horas. Relata que há três dias vem sofrendo de dor torácica, porém sem a intensidade e freqüência agora observadas. A dor tem características de insuficiência coronariana. O paciente sofre de hipertensão arterial, dislipidemia e vem sendo tratado em domicílio. Não há referências a outras doenças e nem história de hemorragia. O paciente submeteu-se a estudo hemodinâmico, que mostrou 90% de obstrução da parte média da artéria coronária direita, 80% na descendente anterior e lesões parietais nas demais artérias coronarianas. Foi realizada angioplastia com colocação de “stent” nos dois locais acima mencionados. O ecocardiograma intratorácico mostrou hipertrofia do ventrículo esquerdo e discreta insuficiência valvar aórtica e mitral. *Trabalho realizado no Laboratório Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein (SP). 1 Professor Adjunto da Disciplina de Cardiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (SP). 2 Médica da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Israelita Albert Einstein (SP). 3 Médica do Laboratório Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein e do Centro de Hematologia de São Paulo (SP). 4 Médico do Laboratório Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein e do Centro de Hematologia de São Paulo (SP). 5 Médico do Laboratório Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein (SP). Endereço para correspondência: Eurípides Ferreira - Laboratório Clínico - HIAE - e-mail: [email protected] Recebido em 13 de maio de 2004 - Aceito em 30 de agosto de 2004 einstein. 2004; 2(2):115-116 118 Diament J, Perez AR, Bacal NS, Guerra JCC, Fereira E Tabela 1. Estudo da coagulação Data 17/09 18/09 18/09 20/09 20/09 TP 16.6 15.9 15.6 15.1 15.6 Valor Referência Atividade 72% 77% 80% 85% 80% (70-100) INR 1.25 1.19 1.16 1.12 1.16 (0.96-1.25) TTPA 101.6 88.1 90.8 88.8 82.7 Relação paciente normal 3.28 2.84 2.93 2.86 2.67 Controle normal 31.0 Seg % seconds (0.90-1.25) seconds Dosagem do Fator XI < 1% (50-150%) % Dosagem do IX 92.0 (60.0-150.0) % Dosagem do Fator VIII 115.0 (60.0-150.0) % Os exames de sangue não mostraram aumento de CK-MB e troponina, porém o TTPA foi persistentemente prolongado, o que levou a retardar a retirada do introdutor vascular a nível de artéria femoral direita. A investigação da elevação do TTPA mostrou ser o paciente portador de deficiência de Fator XI da coagulação (tabela 1). DISCUSSÃO A deficiência de Fator XI foi descrita por Rosenthal et al. em 1953(1) e foi chamada de hemofilia C. A sua herança é incompletamente autossômica recessiva. A sua freqüência na população geral é 1/1.000.000, mas é freqüente entre os judeus Ashkenazi, sendo estimada uma freqüência gênica entre 5% e 11% e mais que 0,3% são homozigotos(2-5). A deficiência é decorrente de três tipos de mutação: I) alterações na segmentação do ADN; II) parada na leitura do ADN (stop codon) com molécula não funcional e III) substituição de aminoácido e disfunção molecular(6). Os tipos II e III ocorrem no referido grupo étnico(7). Cursa com poucas manifestações hemorrágicas, tais como sangramento gengival, epistaxe, menorragia e hematúria. Entretanto, após traumatismo ou procedimento invasivo, um sangramento importante pode ocorrer, como o observado no presente caso, onde um hematoma formou-se na região femoral. A deficiência de Fator XI interfere na cascada da coagulação, porquanto é um dos fatores da via interna para a ativação do fator X. O tratamento ou prevenção pode ser feito pelo uso de plasma humano fresco (inicialmente 15 ml/kg e após 3 a 6 ml/kg por 12 a 24 horas), ou usar concentrado de Fator XI ou Fator VII recombinante e, em caso de inibidor de Fator XI, recomenda-se ou uso de FEIBA(8). einstein. 2004; 2(2):115-116 CONCLUSÃO O presente caso ilustra que mesmo sem história prévia de sangramento, especialmente entre os judeus Ashkenazi, um estudo da coagulação deve ser realizado antes de qualquer procedimento invasivo e se um TTPA prolongado for encontrado torna-se imperativo pesquisar a deficiência de Fator XI, diante da alta freqüência da deficiência desse fator no referido grupo étnico. REFERÊNCIAS 1. Rosenthal RL, Dreskin OH, Rosenthal N. New hemophilia-like disease caused by deficiency of a third plasma thromboplastin factor. Proc Soc Exp Biol Med. 1953;82(1):171-4. 2. Asakai R, Cung DW, Davie EW, Seligsohn U. Factor XI deficiency in Ashkenazi Jews in Israel. N Engl J Med. 1991, 325(3):153-8. 3. Rapaport SI, Proctor RR, Patch MJ, Yettra M. The mode of inheritance of PTA deficiency: evidence for the existence of major PTA deficiency and minor PTA deficiency. Blood. 1961, 18( ):149-65. 4. Seligsohn U. High gene frequency of factor XI (PTA) deficiency in Ashkenazi Jews. Blood. 1978;51(6):1223-8. 5. Seligsohn U, Modan M. Definition of the population at risk of bleeding due to factor XI deficiency in Ashkenazic Jews and the value of activated partial thromboplastin time in its detection. Isr J Med Sci. 1981;17(6):413-5. 6. Asakai R, Chung DW, Ratnoff OD, Davie EW. Factor XI ( plasma thromboplastin antecedent) deficiency in Ashkenazi Jews is a bleeding disorder that can result from three types of point mutations. Proc Natl Acad Sci USA,. 1989,86(20):7667-71 7. Shpilberg O, Peretz H, Zivelin A, Yatuv R, Chetrit A, Kulka T, et al. One of the two common mutations causing factor Xi deficiency in Ashkenazi Jews (type II) is also prevalent in Iraqi Jews, who represent the ancient gene pool of Jews. Blood. 1995;85(2):429-32. 8. Rodgers GM, Grenberg CS. Inherited coagulation disorders. In: Greer JP, Foerster J, John N. Lukens JN Wintrobe’s clínical hematology. 10th ed. 1998. p. 1712.