FACULDADE SÃO BENTO DA BAHIA PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM HISTÓRIA SOCIAL E ECONÔMICA DO BRASIL MANOEL ANTUNES DA SILVA SENTIDOS DA CONVERSÃO: ALDEAMENTOS, “CONVERSÃO” E HIBRIDISMO CULTURAL ENTRE OS JESUÍTAS E OS TUPINAMBÁ (1549-1590) Salvador 2014 1 MANOEL ANTUNES DA SILVA SENTIDOS DA CONVERSÃO: ALDEAMENTOS, “CONVERSÃO” E HIBRIDISMO CULTURAL ENTRE OS JESUITAS E OS TUPINAMBÁ (1549-1590) Trabalho monográfico apresentado ao Curso de Pós-Graduação lato sensu em História Social e Econômica do Brasil, da Faculdade São Bento da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em História Social e Econômica do Brasil. Orientadora: Profª. Me. Simone Trindade Vicente da Silva Salvador 2014 2 RESUMO Sentidos da Conversão é um estudo do empreendimento missionário da Companhia de Jesus na América Portuguesa, no período compreendido entre 1549 e 1590, ano do início da atividade catequética da Ordem até o momento da vinda do Padre Fernão Cardim, que escreveu um texto sobre os Tupinambás e seus costumes, entre 1583 e 1590. Centralizado nas cartas escritas pelos jesuítas, o trabalho realiza uma análise histórico-antropológica do encontro catequético e cultural estabelecido no interior dos aldeamentos jesuíticos nas terras brasílicas durante o século XVI. Propõe-se, portanto, analisar os sentidos da conversão e as possíveis maneiras com que os Tupinambás se apropriaram, adaptaram e negociaram a mensagem cristã transmitida pelos jesuítas, destacando a importância da mediação e tradução cultural implicadas na ação dos inacianos, responsáveis pela realização dos distintos códigos e alteridades culturais em contato. Dessa forma, este estudo apresenta os aldeamentos jesuítas no Brasil do século XVI como espaço pertinente para o surgimento de novas formas culturais que se pode chamar de hibridismo cultural. Palavras-chave: Conversão. Jesuítas. Tupinambá. Aldeamentos. Hibridismo Cultural. 3 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................4 2 DISCUTINDO OS TUPINAMBÁS: ANTROPÓLOGOS, SOCIÓLOGOS E HISTORIADORES ............................................................. .........................................7 3 OS SENTIDOS DA CONVERSÃO: MISSÕES JESUÍTICAS ENTRE OS TUPINAMBÁS............................................................................................................13 4 OS SENTIDOS DA CONVERSÃO E AS REDEFINIÇÕES IDENTITÁRIAS TUPINAMBÁ .............................................................................................................23 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................28 REFERÊNCIAS .......................................................... ...............................................29 4 1 INTRODUÇÃO O século XVI foi palco de muitos conflitos entre alteridades. De um lado, o autóctone, acostumado com suas práticas milenares, seus códigos de ética e suas crenças definidas; de outro, o invasor europeu, munido de uma perspectiva etnocêntrica, interessado em arrebanhar mais almas para seu credo. Desse antagonismo resultou o choque inevitável: os jesuítas, empenhados na conversão dos gentios, viam nos indígenas uma forma de expandir o cristianismo abalado pela Reforma Protestante; e os indígenas, abertos em sua plasticidade social, em uma mesma inconstância que não os incitavam a resistir à conversão, também não perseveravam (CUNHA, 2009). Este trabalho, portanto, objetiva compreender os embates de alteridades tão distintas entre Jesuítas e os Tupinambás e elege como temática central os sentidos da conversão e o surgimento de uma cultura híbrida no interior dos aldeamentos jesuítas a partir desse encontro cultural. A Companhia de Jesus, idealizada em 1534 por um grupo de estudiosos, liderada por Inácio de Loyola e fundada oficialmente por uma bula papal em 1540, havia surgido do pressuposto de um retorno à pureza da primitiva Igreja e da conversão dos pagãos e infiéis. Em 29 de março de 1549, chegaram à Província de Santa-Cruz os primeiros jesuítas designados à Missão do Brasil. Sobre o comando do Padre Manoel da Nóbrega, os padres Leonardo Nunes, Antônio Pires e João Azpilcueta Navarro, além dos irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jácome, apartaram na Bahia de Todos os Santos juntamente com Tomé de Souza, primeiro Governador-Geral da Terra de Vera Cruz (HUE, 2006). Empenhado nos sentidos da conversão dos Tupinambás (civilizá-los, afastálos dos seus “maus costumes” e trazê-los para os “bons costumes” da religião cristã), os inacianos acreditavam ter encontrado os silvícolas “sem Fé, nem Lei, nem Rei”, que tão facilmente quando se convertiam, esqueciam-se de tudo e voltavam novamente aos seus “maus costumes” caracterizados pelos jesuítas como “excessos” (AGNOLIN, 2007, p.331). Apesar de descrever várias cerimônias religiosas indígenas, Nóbrega e outros cronistas do século XVI não as reconheciam como uma religião e afirmavam que os índios não possuíam crenças. Na verdade, isso era visto como uma grande 5 vantagem, sob o ponto de vista dos sentidos da conversão, porque, desse modo, os Tupinambás estariam muito mais sujeitos e aptos a deixarem seus “costumes excessivos”. Dessa forma, os inacianos não percebiam que “os maus costumes dos Tupinambás eram sua verdadeira religião” (CASTRO, 2002). Todavia, Anchieta logo enumerava os entreves que dificultariam a conversão dos indígenas: Os impedimentos que há para a conversão e perseverar na vida cristã de parte dos índios são seus costumes inveterados [...] Como o terem muitas mulheres; seus vinhos em que são muitos contínuos e em tirar-lhos há ordinariamente mais dificuldade que em todo o mais [...] Item as guerras em que pretendem vingança dos inimigos, e tomarem nomes novos, e títulos de honra; o serem naturalmente pouco constantes no começo, e sobretudo falta-lhes limos e sujeição (ANCHIETA, 1984, p. 333). A missão de converter os Tupinambás logo se revela difícil. Segundo Castelnau-L`Estoile (2006), a conversão, cujo sentido evoca uma completa mudança de vida, implica, ao mesmo tempo, transformar os costumes dos índios e ensinarlhes os elementos essenciais do dogma cristão. Conclui a historiadora nestes termos: Os jesuítas do Brasil inventaram o aldeamento, isto é, uma aldeia de evangelização onde eram reunidos índios de origens diversas com os quais se residiam os missionários. Em decorrência da especificidade da conversão dos índios no Brasil, a missão, itinerante por definição, torna-se fixa (CASTELNAU-L`ESTOILE, 2006, p.19). O intuito deste estudo é compreender a relação entre índios e missionários a partir da ótica das diferenças cosmológicas, e respaldado no conceito cunhado por Sahlins (2003) de “estrutura da conjuntura”, segundo o qual “essas sociedades teriam um sistema cultural aberto, isto é, capaz de ressignificar localmente as mudanças introduzidas pelas relações coloniais” (SAHLINS, 2003 apud MONTERO, 2006, p.47). Dessa forma, Sahlins localiza a cosmologia nativa no centro dos processos de simbolização mobilizados pelo contato. Segundo Montero (2006, p.47), As tradições cosmológicas seriam, segundo Sahlins, a bagagem de onde os povos retirariam os traços operacionais para pensar sua relação com os outros através da construção simbólica de sinais constrastivos. Através dessas operações do pensamento cosmológico, os nativos seriam capazes de incorporar os eventos impostos pelo contexto em seus próprios termos. Partindo de Manoel da Nóbrega a Fernão Cardim, este trabalho visa ainda a analisar os sentidos da conversão para os jesuítas e focalizar as maneiras como os 6 indígenas incorporaram, transformaram ou rejeitaram o catolicismo transmitido pelos missionários nos aldeamentos e apreender as possíveis concepções ameríndias referentes ao encontro cultural. Influenciado pelos mais recentes estudos histórico-antropológicos preocupados em realizar uma interpretação do passado das sociedades ameríndias na América Portuguesa, o objetivo é compreender os múltiplos processos de convergência de horizontes simbólicos entre jesuítas e indígenas aldeados. Tem-se, aqui, como pressuposto, o fato de [...] que não há uma passagem temporal, analiticamente recuperável, entre uma configuração cultural e outra, a ênfase analítica deve voltar-se para a lógica das relações (políticas e simbólica) de significação e modo como produzem e reformulam alteridade (MONTERO, 2006, p. 43). Além disso, pretende-se destacar a importância da “mediação cultural” presente na ação dos jesuítas, responsável pela articulação dos distintos códigos simbólicos e culturais em contato nas aldeias. Dessa forma, assumir tal ponto de vista pode permitir contestar a eficácia da conversão pretendida pelos inacianos e caracterizar as missões jesuítas de Nóbrega a Cardim (1549-1590) como um espaço propiciador de “mestiçagem” (GRUZINSKI, 2001) ou hibridismo (VAINFAS, 2010). O trabalho está estruturado de forma a apresentar reflexões históricas sobre os sentidos da conversão. A seção 2, “Discutindo os Tupinambá” apresenta as principais ideias e o debate sobre a conversão dos Tupinambá presente na literatura dos antropólogos, sociólogos e historiadores, a mais rica na temática. Na seção 3, “Os sentidos da conversão”, evidenciamos a construção do projeto da conversão dos Tupinambá como resultado de dois grandes movimentos religiosos: a Reforma e a Contra-Reforma, que chegariam a Terra de Santa Cruz como Missão Jesuítica e atingiriam as mentalidades dos Tupinambá. Por fim, na seção 4, “As redefinições identitárias”, reunimos algumas documentações históricas para demostrar que os “maus costumes” indígenas não foram substituídos e o que houve foi a permanência de traços culturais de ambas as partes dos envolvidos na Conversão e na formação de elementos culturais híbridos. 7 2 DISCUTINDO OS HISTORIADORES TUPINAMBÁ: ANTROPÓLOGOS, SOCIÓLOGOS E A temática da conversão já foi tratada por alguns antropólogos, sociólogos e historiadores de maneira séria, mas ainda de forma incipiente, sendo focalizada em demasia enquanto aspectos do projeto jesuítico para a América Portuguesa, deixando possibilidades para outras leituras. De Métraux a Agnolin houve muitos acenos e até análises detalhadas ou pormenorizadas, mas inserida em outro aspecto de natureza mais abrangente. A conversão dos Tupinambá, desse modo, aparece sempre ligada a um aspecto maior, situando-se como ponto elementar ou complementar nessas leituras. Desde 1922, o antropólogo suíço, mas naturalizado cidadão americano, Alfred Métraux (1979) tentou nos fornecer um quadro geral da cosmologia, do xamanismo e da antropofagia Tupinambá. Em seu livro A Religião dos Tupinambá e suas relações com a das demais tribos tupi-guarani, o etnólogo tem como objetivo sistematizar as fontes dos cronistas para nos fornecer de forma crítica e detalhada a religião dos tupinambá. Mas, segundo Métraux (1979), o seu estudo das ideias religiosas dos Tupinambás está longe de formar um todo completo. Segundo o mesmo autor, tais lacunas são, em parte, preenchidas pelo etnólogo alemão Curt Numuendaju. A partir de seu livro, Métraux (1979) propôs que os pormenores frequentes e, às vezes, obscuros, fornecidos a respeito dos caraíbas e da “Terra Sem Mal” tornaram-se mais compreensíveis quando comparados aos acontecimentos relativamente recentes que se produziram no seio de alguns grupos Guaranis do Paraguai e do sul do Brasil. Para Métraux, pode-se compreender o estudo dos movimentos messiânicos dos Tupinambá partindo-se do conhecido para o desconhecido, isto é, do exame das fontes contemporâneas para interpretação dos velhos textos. Outro grande sistematizador do material dos cronistas foi o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes. Em seu livro Organização Social dos Tupinambá, publicado em 1948, o estudioso faz uma reconstituição da sociedade Tupinambá que esteve em contato contínuo com os europeus durante os séculos XVI e XVII. Dentre os aspectos para se compreender a religião dos Tupinambá estão as categorias de idade, essas muito rígidas e para atingi-las deveriam ser antecipadas 8 de rituais mágico-religiosos, e do conselho de chefes que “abrangia efetivamente todos os indivíduos de determinado status: os Ava e os Thuyaae” (FERNANDES, 2006). Esses aspectos sociológicos nos ajudam a confrontar as fontes quinhentistas e perceber que a conversão dos índios não aconteceria facilmente em uma sociedade estruturada e tão impregnada de rituais mágico-religiosos. Em 1951, Florestan Fernandes defendeu sua tese de doutorado e nela justificou que a guerra era uma comunicação com o sagrado. Segundo Fernandes (2006), as normas e os valores sociais que orientavam a conduta e as ações guerreiras possuíam um caráter mágico-religioso, e originavam subjetivamente como “obrigações essenciais” devidas pelos humanos a entidades sobrenaturais. Os escritos do antropólogo Pierre Clastres (1974) estão entre as pesquisas de antropologia política para justificar as migrações religiosas Tupi-Guarani, e podemos confirmar em sua tese sustentada nas duas coletâneas de ensaios. Segundo Clastres (2004), a busca da “Terra sem Mal” foi uma luta contra o Estado e contra o poder, e o aparecimento dos profetas caraíbas e do discurso que dizia a eminência do mal. Para o estudioso, o fenômeno do profetismo Tupi-Guarani deu motivo a numerosos erros de avaliação, e um deles seria interpretar o profetismo como a resposta a uma situação de grave crise consecutiva ao contato com a civilização ocidental. Conclui o antropólogo: Mas reduzir o profetismo tupi-guarani ao campo do messianismo seria desconhecer sua natureza radicalmente diferente, pela simples e irrevogável razão de que ele se originou entre esses índios bem antes da chegada dos brancos, talvez por volta de meados do século XV. Trata-se, portanto, de um fenômeno autóctone, que nada deve ao contato com o Ocidente, e que não estava, por isso mesmo, de modo algum orientado contra os brancos; trata-se claramente de um profetismo selvagem, do qual a etnografia assinalou nenhum equivalente noutros lugares (CLASTRES, 2004, p.153-154). Outra antropóloga que se dedicou ao estudo do profetismo Tupi-Guarani foi a francesa Hélène Clastres (1975). Em seu livro Terra sem mal: o profetismo tupiguarani, publicado em 1975, desenvolve e estende, por meio de um caso particular, a tese sustentada por Pierre Clastres. A estudiosa menciona no livro a complexidade da organização social Tupi-Guarani, como: hierarquização da chefia, submissão dos vencidos em guerra, organização mágica-religioso da sociedade etc. Dessa forma, há a afirmação de que mudanças profundas estavam acontecendo na sociedade 9 Tupi-Guarani no século XV, a um passo do aparecimento do Estado, desencadeando o conflito entre poder político e poder religioso. Segundo Clastres, a busca da Terra sem Mal teria surgido como reação às transformações políticas internas e não com a chegada dos europeus. De modo que exceto se admitíssemos que este conjunto coerente que é a Terra sem mal pudesse ter surgido bruscamente e ao mesmo tempo, em todas as sociedades tupis-guaranis, coincidindo com a chegada dos europeus somos levados a formular a hipótese de que o profetismo gerouse na medida exata em que as sociedades se transformavam e ampliavam, como a contrapartida crítica e negadora das transformações política e raciais que se inauguravam (CLASTRES, 1975, p.59-60). Um dos grandes trabalhos dedicados à religião e aos costumes Tupinambá é o ensaio de Manuela Carneiro da Cunha (2009) em colaboração com Eduardo Viveiros de Castro, Vingança e temporalidade: os Tupinambá, publicado a primeira vez em 1985. A partir desta obra, os antropólogos analisaram a “inconstância” dos índios a converterem-se e perceberam que a única obstinação e indiferença da plasticidade social dos Tupinambá era a vingança. E um dos pontos mais importante da vingança é o diálogo entre o matador e a vítima [...] em um primeiro momento, qualificou-se a matança iminente como uma vingança por mortes passadas. Segundo momento do diálogo, e afirma-se a vingança será vingada: a morte presente será a razão de mortes futuras (CUNHA; CASTRO 2009). Considerando a vingança como o ponto essencial da sociedade Tupinambá, Cunha relaciona memória e vingança para explicar a vingança na temporalidade, onde a memória, cujo único conteúdo é a vingança, de que a vítima é o resultado, mas também o penhor. Resumem: O nexo da sociedade Tupinambá é a vingança. Mas a vingança não é outra coisa senão um elo entre o que foi e o que será, os mortos do passado e os mortos por ver ou, o que dá no mesmo, os vivos pretéritos e os vivos futuros. Dizer que seu nexo é a vingança é portanto dizer da sociedade tupinambá que ela existe na temporalidade, que ela se pensa a se mesmo como constituída no tempo e pelo tempo (CUNHA; CASTRO, 2009, p.9394). Outro importante trabalho nessa área é o de Eduardo Viveiros de Castro (2002), um estudo acerca da conversão e descrença dos índios no século XVI, 10 publicado pela primeira vez na Revista de Antropologia, em 1992. Trata essencialmente da “inconstância da alma selvagem”, que ora aderia [“o selvagem”] com furor ao catolicismo jesuítas, ora, depois de “convertido”, retornava a seus “maus costumes” que tanto aterrorizavam os jesuítas sedentos de novas almas. Logo os jesuítas perceberam que os costumes Tupinambá era seu pior inimigo para a conversão, pois acreditavam que os indígenas não tinham religião. Para Castro, “os missionários não viram que os “maus costumes” dos Tupinambá eram que verdadeira religião era o resultado da adesão profunda a um conjunto de crenças de pleno direitos religiosas” (CASTRO, 2002, p.192). Carlos Fausto (2009) é um dos antropólogos que se dedicou à história e à cultura Tupinambá no seu texto publicado no livro História dos índios no Brasil, organizado por Manuela Carneiro da Cunha. No capítulo que lhe é atribuído, o objetivo principal é o de ler os cronistas a partir do material etnográfico contemporâneo ao autor. Um dos seus principais pontos de análise sobre os Tupinambá é o que diz respeito ao xamanismo e ao profetismo. Discordando de Hélène e Pierre Clastres, ele afirma que os movimentos migratórios dos indígenas em busca da Terra sem Mal foi causado pelos empactos da conquista e da colonização. Eram inúmeros os movimentos migratórios forcados e/ ou voluntários para o interior – os Tupi fugiam das epidemias, da escravização, buscavam novos territórios. Esse era não há dúvidas, um contexto propício à atualização do discurso profético, e de favorecer esses aspectos da cosmologia e do xamanismo Tupinambá. Ademais, os xamãs se encontravam numa posição particularmente incômoda: as epidemias e a mortandade afetavam de forma direta sua prática de cura, bem como faziam crescer as suspeitas sobre a sua atuação como feiticeiro, como aquele que produziam a morte (FAUSTO, 2009, p.387). Outro estudo que se atém, de maneira muito específica, em aspectos da conversão e seus impactos causado na religião dos Tupinambá é o do historiador Ronaldo Vainfas(2010). Em uma análise aprofundada da Santidade de Jaguaripe, dos idos de 1585, esses rituais e os caraíbas que os protagonizavam deixavam os moradores e jesuítas perplexos, já que desde Caminha todos são unânimes em dizer que não havia religião entre os índios. Em seu livro A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colônia, publicado em 1995, Vainfas analisa um movimento que o chamou de hibridismo cultural. Um dos pontos importantes de sua análise das particularidades do caraíba diz-se da migração religiosa objetivando a 11 Terra sem mal. Concordando com Carlos Fausto, sobre sua crítica às teses de Hélène e Pierre Clastres, Vainfas crê ser insustentável a ideia de que [...] o profetismo tupi-guarani incluindo a multiplicidade das cerimônias que dele resultavam não guardavam relações diretas e históricas, vale dizer com o contato com o colonialismo (VAINFAS, 2010, p.45). Para o historiador, a mudança de direção das migrações guiadas pelos caraíbas que antes visavam ao Ocidente passaram a buscar o Oriente, dessa forma, mostra de maneira convencível o quão tão decisiva foi a chegada dos moradores e jesuítas nas manifestações políticas religiosas dos Tupinambá. No início do século XXI, o estudioso da história indígena John Manuel Monteiro (2001) apresentou sua tese Tupis, Tapuias e Historiadores. Estudos da História Indígena e do Indigenismo. O pesquisador faz uma análise daquela que foi um instrumento para a conversão dos índios no Brasil: a língua geral. Segundo Monteiro, A língua geral dos jesuítas foi fruto de um longo processo de construção, começando com a chegada dos padres em 1549 e culminando com a publicação da Arte de Gramática de José de Anchieta, em 1595 e do Catecismo na Língua Brasílica, de Antônio de Araújo em 1618 (MONTEIRO, 2001, p.43). As aldeias missionárias foram o principal espaço de interação entre jesuítas e índios, respaldadas pela língua geral, que os inacianos especializaram-se para compreender “os maus costumes” e substituí-los pelos os “bons costumes” cristãos. Uma das pesquisas mais recentes sobre a conversão e contato entre jesuítas e índios é a de Cristina Pompa (2003). A premiada pesquisa Religião Como Tradução: missionários, tupi e tapuia no Brasil colonial procura reescrever a história indígena como um mundo de mudanças, adaptações, negociações e constantes redefinições identitárias no espaço do aldeamento jesuítico. Pompa focaliza no seu livro os rituais religiosos Tupinambá e nos mostra de maneira inovadora o olhar recíproco e diferenciado dos sujeitos índios que foram objetos de espanto por parte dos moradores do Velho Mundo. Buscou-se compreender “os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas” (WRIGTH, 1999) aldeados juntos a alteridades tão distintas à sua: os Jesuítas. Charlotte de Castelnau-L`Estoile (2006), em sua obra Operário de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil-1580-1620, mais restrita no 12 espaço e no tempo, veio confirmar que a conversão dos índios no Brasil não estava dando o fruto esperado pelo geral da Companhia de Jesus, Cláudio Aquaviva, em seu longo generalato (1580-1615). Segundo a historiadora francesa, “a missão no Brasil aparece como uma ‘vinha estéril’, assim como a chama o geral da ordem, em 1582” (CASTELNAU-L´ESTOILE, 2006). Em nove de maio de 1583, desembarcaram em Salvador Fernão Cardim, secretário, e Cristóvão de Gouvêa, encarregado pelo geral da ordem jesuítas de visitar a província do Brasil. Em 1585, o jovem jesuíta Fernão Cardim escreveu uma Narrativa epistolar relatando a sua visita nas aldeias indígenas, onde fariam o essencial do trabalho da conversão. A partir da descrição dos costumes indígenas presentes nos aldeamentos, podemos supor que a conversão não estava sendo como o esperado. O sociólogo Adone Agnolin (2007) marca uma das principais pesquisas relacionadas à Nova História Indígena e demonstra que, ao contrário da simples substituição dos costumes Tupinambá, o encontro entre jesuítas e indígenas estabelecidos no interior dos aldeamentos foi responsável por propiciar o surgimento de novas formações sociais e culturais. Analisando os sacramentos entre os indígenas, Agnolin percebeu que: Levando em consideração esses problemas de caráter histórico (próprios de uma perspectiva histórico-religiosa) já se entrevê quanto os instrumentos impressos ou manuscritos, que deviam servir para a “apresentação da fé” as novas populações do orbis Cristianus, além dos problemas de clareza doutrinal, de síntese conceitual e de traduzibilidade lingüística, determinaram um espaço para um “encontro” que se apresentará necessariamente repleto de equívocos e mal-entendidos. (AGNOLIN, 2007, p.249-250) De certa forma, esses equívocos e mal-entendidos entre ambas as partes estão muito próximos da proposta aqui delimitada, uma vez que os sentidos da conversão estão entrelaçados entre duas alteridades convergentes do espaço do aldeamento jesuíticos artificializado para os Tupinambá. 13 3 OS SENTIDOS DA CONVERSÃO: MISSÕES JESUÍTICAS ENTRE OS TUPINAMBÁ No século XVI surgiram dois grandes movimentos religiosos que sacudiram a Europa e que levariam esses acontecimentos até às estruturas da mentalidade religiosa das populações indígenas brasileiras. A historiografia convencionou chamar esses movimentos religiosos de Reforma Protestante e de Contra-Reforma. A “heresia luterana” contestava abertamente os dogmas da Igreja Católica e a autoridade do Papa. Esse processo de reforma religiosa desencadeou-se pelos abusos cometidos pela Igreja Católica e a mudança na visão de mundo da população deste período, no campo das transformações intelectuais, da cultura e da arte com o surgimento do pensamento renascentista. A Igreja Católica vinha, desde o final da Idade Média perdendo sua identidade, pois gastava com o luxo e preocupações naturais, o que a levava a se desviar do objetivo católico. A Igreja havia se afastado muito de suas origens e de seus ensinamentos, como pobreza, simplicidade e sofrimento. Muitos elementos do clero estavam desrespeitando as regras religiosas, principalmente o que diz respeito ao celibato, e Padres que mal sabiam rezar uma missa e comandar os ritos católicos deixavam à população insastifeita. Pioneiro na “ameaçadora heresia” que pairava sobre a Europa, Martinho Lutero protestou violentamente contra o comércio de indulgência e , em 1517, fixou na porta de Igreja de Wittenberg, onde era monge e pregador, 95 teses que, dentre outras coisas, condenava a prática da venda de indulgência e criticava vários pontos da doutrina católica. Segundo Adone Agnolin (2007), em sua teologia reformada, Martinho Lutero prescreve que o fiel deve pôr-se em contato com Deus somente por meio da leitura solitária da Bíblia, dispensando a (outra) mediação do Clero dos ritos e das cerimônias da Igreja. A Contra-Reforma, ou Reforma Católica, foi uma série de atitudes tomadas e barreiras colocadas pela Igreja contra a crescente onda do protestantismo. Para enfrentar as novas doutrinas, a Igreja Católica utilizou várias precauções para conter essa “ameaçadora heresia”. Preocupado com tal avanço da “heresia luterana” e com as perdas significativas de fiéis, bispos e Papa reúnem-se em Trento, onde 14 promoveram o Concílio de Trento (1545-1563). De acordo com o analista dos catecismos utilizados pelos evangelizadores dos Índios brasileiros: A fim de impermeabilizar-se contra a infiltração de uma (por nada impermeável) ruptura da coesão formal no âmbito do Catolicismo, os conturbados acontecimentos que acompanharam as conturbadas, longas e várias sessões do Concílio de Trento, encerrado no ano de 1563, acabaram por confirmar o texto da Bíblia, conhecido como Vulgata, enquanto texto oficial da Igreja e rito latino (AGNOLIN, 2007, p.49). É a partir da “heresia luterana” e da ação contestadora da Contra-Reforma que poderemos pensar no surgimento da ordem missionária da Companhia de Jesus. Segundo Sheila Moura Hue (2006), idealizada em 1534 por um grupo de universitários liderados por Inácio de Loyola e aprovada por bula papal em 1540, havia nascido da ideia de um retorno à pureza da primitiva Igreja e da conversão dos infiéis. Objetivando converter todos os tipos de infiéis, os “soldados de Cristo” ou “operário da vinha do Senhor”, como os inacianos se autodenominavam, dedicaramse a combater as heresias, o protestantismo e a catequizar os povos não cristãos da América. Afinal, uma das questões definidas no Concílio de Trento para combater a reforma religiosa dizia respeito à catequização dos habitantes de terras descobertas, através da ação dos inacianos, e estabeleceu-se que as crenças católicas poderiam ter dupla origem: a partir daquele momento as Sagradas Escrituras ou as Tradições Transmitidas pela Igreja, apenas esta estava autorizada a interpretar a Bíblia. Como afirma Lucien Febvre (2009, p.30), “cada época fabrica mentalmente seu universo”. É justamente a construção desse universo mental simbolicamente híbrido que na Terra de Santa Cruz tem seu início em 1500. Foi em 22 de abril de 1500 que os portugueses avistaram as terras brasílicas pela primeira vez. Ocorreu imediatamente o encontro entre de divergentes alteridades, portugueses e as etnias Tupi-Guarani do litoral brasileiro. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (2009, p.9), referindo-se ao encontro cultural afirma que: Ao chegarem às costas brasileiras, os navegadores pensaram que aviam atingido o paraíso terreal: uma região de eterna primavera, onde se vivia comumente por mais de cem anos em perpétua inocência. A cada lugar conferiam um nome - atividade propriamente adâmica – e a sucessão de nomes era também a crônica de uma gênese que se confundia a mesma viagem. A cada lugar, o nome de santo do dia: Todos os Santos, São Sebastião, Monte Pascoal. Antes de se batizarem os gentios, batizou-se a terra encontrada. 15 Pero Vaz de Caminha escrevendo ao rei Dom Manuel I, de Porto Seguro, em primeiro de maio de 1500, afirma que os indígenas pareciam inocentes e dispostos a abraçar a converter-se e aceitar os costumes da cristandade. Segundo John Hemminh (2007), feito a cruz, Cabral ordenou a seus homens que: [...] Nos puséssimos todos de joelhos e a beijássemos para eles [ índios] verem o acontecimento que lhe tinhamos. E assim o fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beija-la. (CAMINHA apud MEMMING, 2007, p.34). Hemming (2007) observa que “quando finalmente a cruz foi fincada, os índios participaram da cerimônia, ajoelhando-se durante as orações e imitando os portugueses quando eles se levantaram no momento do sermão”. É o que afirma Caminha nestes termos: E quando levantaram a Deus, que nos pussemos de joelho, eles se puseram todos assim como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegadas que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção (CAMINHA, apud HEMMING, 2007, p.34-35). Como todo homem do século XVI, Caminha estava impregnado de catolicismo. E ao que tudo levava a crer os esforços da catequese logo dariam os frutos desejados pela cristandade, “pois a gente é boa e de boa simplicidade e gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhe queiram dar” (CAMINHA, apud ROMINELLI, 1996, p.42). Tal observação de Caminha reforça a crença imediata de que os sentidos da conversão seriam fases: Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não tem nem entendem crença alguma [...] se farão cristão e hão de crer na nossa santa fé, à qual para a Nosso Senhor que os traga, porque certamente, esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente nestes qualquer cunho que lhes quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deus bons corpos e bons rostos, como a homens bons [...] E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a Santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja asssim! (CAMINHA, apud HEMMING, 2007, p.35. Grifo nosso). A “simplicidade” e “inocência” dos Brasis do litoral que demonstravam aparentemente facilidade em converter-se em bons cristãos, logo dariam lugar a 16 novas expressões depreciativas, como: mutáveis, inconstantes, brutos, ingratos e principalmente “maus costumes”. Em 29 de março de 1549, desembarcou no Brasil Antigo a primeira missão jesuítica com seus objetivos já previstos no berço da fundação da Companhia de Jesus. Segundo o sociólogo e historiador Adone Agnolin (2006, p.460): Em 1534 o espanhol Inácio de Loyola funda, junto com seis companheiros, o primeiro núcleo da Companhia de Jesus, que pretende constituir-se como um instrumento de luta a serviço do papa contra os hereges e os infiéis. Os jesuítas tornaram-se os protagonistas da Contra-Reforma católica. Composta por seis jesuítas, João de Azpilcueta Navarro, Leonardo Nunes, Antonio Pires, e os irmãos Diogo Jacome e Vicente Rodrigues, comandados pelo padre Manuel da Nóbrega (PEIXOTO, 1988, p.47). Dessa forma, a missão jesuítica que chega ao solo Tupinambá consolida-se através do “plano eclesiástico tridentino no século XVI” (AGNOLIN, 2006). Temática mais problematizada durante as reuniões do Concílio de Trento (1544-63), a Missão era vista como forma de penetração do cristianismo nas mentalidades dos bárbaros e gentios da América. Todavia, a conquista da América trazia ao conhecimento do Velho Mundo novas alteridades que, em seu conjunto, dominaram as preocupações da Igreja e do Estado. Em 1º de junho de 1537, o papa Paulo III viu-se com a difícil tarefa de afirmar com clareza, no documento oficial “Altitudo divini consilii, a plena dignidade humana das populações do Novo Mundo americano” (AGNOLIN, 2006, p.478). Para o historiador, “com esse ‘reconhecimento’, abriu-se um espaço fundamental e fundante para necessidade de empreender a obra de evangelização nos novos territórios” (AGNOLIN, 2006, p.479). É o que conclui o estudioso da religião e evangelização nos seguintes termos: Para além das diretrizes conciliares, as forcas decisivas para a penetração do cristianismo tridentino entre as populações “idólatras” foram expressadas pelas ordens religiosas, e de forma expecial pelos jesuítas. Se, de fato, nas reuniões conciliares, a “extirpação da idolatria” foi uma função entregue aos inquisidores e aos bispos, foi graças aos missionários, atraídos pelo modelo apostólico de pregação, que o Cristianismo penetrou em profundidade. No caso brasileiro, as diretrizes da missão foram inteiramente determinados pelo pensamento jesuítico (AGNOLIN, 2006, p.479. Grifo nosso). 17 A primeira missão que chegou juntamente com o primeiro Governador-Geral, Tomé de Souza, irmana-se a vontade do governador para iniciar o processo de conversão. De acordo com Hue (2006, p.11), “concedida pelo rei português D. João III, a missão de Tomé de Souza e do grupo jesuítas era francamente civilizatória”. Munido do Regimento de 1548 que o rei D. João III mandou redigir, documento que regulamentou a criação do Governo-Geral, Tomé de Souza estava juntamente com os inacianos empenhados em fazer as reformas necessárias para desestruturar dos Brasis os seus “maus costumes”. Através de análise do Regimento do primeiro governador, podemos perceber o seu caráter evangelizador e civilizador. Uma das atribuições do Regimento de 1548 é categórico ao afirmar: Favorecer os Índios que sustentarem a paz e fazer guerra contra os insurretos, dando-lhes castigos que sirva de exemplo a todos; ordenar que, nas vilas e povoações, se faça feira onde os índios possam comprar e vender, em pelo menos um dia de cada semana; Evitar que pessoa alguma, de qualquer qualidade e condição, faça guerra aos índios sem sua licença ou do capitão da capitania; Proibir que pessoa alguma, de qualquer condição, dê aos índios armas e munições, sob pena de morte e perda de todos os bens e atuar para que os Índios convertidos morrem junto às povoações das capitanias (SALGADO, 1985, p.144-145. Grifos nossos). Com o objetivo de incentivar a relação com os moradores e estabelecer, assim, tanto a conversão quanto a civilização, os jesuítas e o Governador uniram-se contra os “maus costumes” objetivando converter os Tupinambá, catequizá-los, civilizá-los e trazê-los para os “bons costumes cristãos”. Uma das prioridades estabelecidas para Tomé de Souza era justamente “servir a deus e à fé católica” e enobrecer a terra e sua gente. Para os jesuítas, os principais propósitos da missão estabelecida pela Coroa era a “catequese, proteção da liberdade dos índios” e a “educação e aldeamento dos nativos” (GAMBINI, 2000, p.48). Segundo o analista junguiano Roberto Gambini (2000, p.48), os jesuítas no Brasil deveriam ser portadores de certa moralidade ou padrão de comportamento, expresso, nesse caso, pelos princípios básicos do catolicismo. Os sentidos da conversão “político-espiritual era converter os indígenas”. Para o junguiano brasileiro, “os jesuítas, deveriam descobrir a melhor maneira de cristianizar os índios, tratando bem, favorecendo, protegendo e defendendo os que fossem de paz” 18 (GAMBINI, 2000). Nesse caso, os que deixassem os seus “maus costumes”. Aceito o batismo, os índios deveriam manter-se separados dos seus costumes excessivos, e agrupados “nas proximidades das vilas de portugueses para que conversem com os cristãos e não com os gentios, e possam ser doutrinados e ensinados nas coisas” dos “Bons Costumes” (GAMBINI, 2000, p.57). Quando os inacianos chegaram ao Brasil Antigo, o padre Manuel da Nóbrega, como chefe de missão, distribuiu os missionários, dando início o seu fervoroso projeto de conversão dos Tupinambá. “Leonardo Nunes enviado” à Capitania de “Porto Seguro”; “Diogo Jacome a Ilheos”, ficando “Navarro e Pires nas aldeas da Bahia” (PEIXOTO, 1988, p.47). Dava-se início aos primeiros reconhecimentos da alteridade cultural indígenas entre os jesuítas. Agnolin observa que no encontro catequético-ritual: Os primeiros reconhecimentos parecem delinear-se em forma de excessos, por um lado, e de ausências, por outro. Num primeiro tempo, os excessos serão identificados com os costumes e as ausências com as crenças. No imperativo de cristianizar os indígenas, os primeiros parecem, em princípios, ter preocupado mais do que os segundos. (2006, p.185) Escrevendo da Bahia em agosto de 1549, quatro meses depois de suas visitas às aldeias indígenas, Manuel da Nóbrega logo identifica os “excessos” e as “ausências” nos costumes dos indígenas de língua Tupi: Esta gentilidade a nenhuma coisa adora, nem conhece a Deus, somente aos trovões chamam tupã, que é como quem diz coisa divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para trazê-los ao conhecimento de Deus que chama-lo pai tupã. Somente entre eles se fazem umas cerimônias da maneira seguinte: de certo em certo anos vêm uns feiticeiros de longes terras fingindo trazer santidade, e ao tempo de sua vinda hles mandam limpar os caminhos, e os vão receber com danças e festas segundo seu costume. E antes que o feiticeiro chegue ao lugar, andam as mulheres de duas em duas pelas casas dizendo publicamente as faltas que fizeram a seus maridos, e umas as outras, e pedindo o perdão delas. E chegando o feiticeiro, com muita festa, ao lugar, entra em uma casa escura e põe na parte mais conveniente para seus enganos uma cabeça que traz em figura humana, e mudando sua própria voz, como a de criança, junto da cabeça, diz-lhes que não cuidem de trabalhar, nem vão à roça, que o mantimento por si próprio crescerá, e que nunca hles faltará o que comer, e que por si virá a casa, que as aguilhadas se irão a cavar, e as flechas se irão ao mato caçar para seu Senhor, e que hão de matar muitos de seus contrários, e cativarão muitos para seus comeres;e promete-lhes longa vida, e que as velhas se hão de tornar moças, e as filhas que as dêem a quem quiserem, e outras coisas semelhantes lhes diz e promete, com o que lhes engana; de maneira que crêem haver dentro da cabeça alguma coisa santa e divina, que lhes diz essas coisas, nas quais crêem. E, acabado de falar o feiticeiro, começam a tremer, principalmente as mulheres, com grande 19 tremores pelo corpo, que parecem endemoniadas, como decerto o são, lançando-se à terra, espumando pela boca, e nisto lhes persuade o feiticeiro de que então lhes entra a santidade, e quem assim não age, tornam-lhes mal. E depois hles oferecem muitas coisas. E nas enfermidades dos gentios usam também esses feiticeiros de muitos enganos e feitiçarias. Esses são os maiores inimigos que temos aqui: algumas vezes fazem crer aos enfermos que nós lhes metemos no corpo facas, tesouras e coisas semelhantes, e que com isso os matamos (HUE, 2006, p.35-37). Apesar de descrever várias cerimônias religiosas indígenas, Nóbrega não as reconheciam como uma religião e afirmava que os Tupi do litoral não possuíam crenças. Mas logo identificou os objetos de adoração indígenas, qualificando-os como os inimigos da conversão. Agnolin, depois de analisar a negociação da fé no encontro com o outro (a diversidade cultural), chegou à seguinte conclusão: Os excessos indígenas identificavam-se, sobretudo, com o conjunto de “costumes abomináveis” ou “maus costumes” - Cauinagem, guerra, antropofagia, sexualidade desordenada, pinturas, danças etc. - que conotava um estágio (de memória aristotélica) inferior da humanidade, reveladas de uma profunda desordem social e que dificultava, ao mesmo tempo, o processo de civilização. No combate a esses institutos, assim com à instituição central da cultura tupi do Karaíba, os “redutores” jesuítas, serão sempre irredutíveis (AGNOLIN, 2007, p. 276). Nóbrega observa que a maior autoridade pertencia aos “feiticeiros” que os indígenas reconheciam como pajés e Karaíbas, esses vistos pelos jesuítas como os propagadores dos “maus costumes” abomináveis. Referindo-se aos costumes indígenas, vistos pelos missionários como impedimento para a conversão. Agnolin (2007) afirma que “aos excessos dos Comportamentos”, estão presentes “algumas significativas ausências em relação à memória, à vontade e a religião”. Neste sentido, “se o missionário deve modificar por meio da força se necessário, o comportamento e os costumes indígenas para salva-los, ele deve igualmente fazer com que conheçam a lei de Deus” (AGNOLIN, 2007, p.277). Para os sentidos da conversão, os “excessos” impunham a disciplina, as “ausências” reclamavam a doutrina. Um e outro eram, juntamente, fundamentais para realizar o processo de cristianização. Nos relatos dos jesuítas do século XVI, são frequentes as descrições aos chamados “maus costumes” dos gentios. O padre João de Azpilcueta Navarro, 20 escrevendo da Bahia em 1550, apresenta o cuidado e as dificuldades em administrar o Batismo: Os Gentios [...] Pedem muitos deles o Baptismo, sobretudo em seis ou sete aldêas onde prégo. Mas por duas causas principalmente entendo que se lhes não deve administrar o Baptismo. Uma, é não terem Rei a quem obedeçam, nem moradia certa, mudando-se de aldeã todos os annos, e as vezes mais frequentimente quando succede algum delles embriagar-se e encoterisar-se, pois em três circircunstâncias nada menos fazem do que pegarem um tição e tocarem fogo a própria casa[...] Por isso se mudam quando agente menos pensa, de modo que repetidas vezes nos logares em que prégo acontece-me não encontrar aquelles de que mais confiava (NAVARRO,1988, p.77). Tentando converter “alma de outro tipo de alteridades que não compreendia”, o missionário João Navarro logo achou um culpado para as dificuldades em descaracterizar a alteridade Tupinambá afirmando: Não sei se isto se dá por obra de seus feiticeiros, os quaes dizem que os vou ensinando para ter menos trabalhos em fazer-lhes sofrer quando forem feitos escravos nossos [...] Os mais velhos são tão maliciosos, em grande parte, que todo o bem que lhes digo convertem, como a aranha, em veneno (Navarro da Bahia em 28 de março de 1550, in: NAVARRO,1988, p.77). E segue explicando o segundo motivo de não poder aplicar o Santo Batismo: A outra razão, de não menos efficaz, de diferir o Baptismo é que muito arraigado está nelles o uso de comer carne humana, de sorte que, quando estão em artigo de morte, saem pedil-a, dizendo que outra consolação não levam sinão esta, de vingança de seus inimigos, e quando não lha acha que dar, dizem que si vão o mais desconsolados deste mundo (NAVARRO,1988, p.78). Todavia, empenhado nos sentidos da conversão, firmes nos propósitos de modificar os “maus costumes” ameríndios e transformá-los em “bons costumes” cristãos, Navarro é irredutível nos seus propósitos: [...] gasto grande parte do tempo em reprehender esse vício; replicam alguns que comem-na somente as velhas; outros dizem que seus antepassados comeram e que elles devem comer carne humana. (NAVARRO, 1988, p.78) 21 Por último, o missionário apresenta uma descrição altamente pejorativa e demoníaca da alteridade cultural ritualística da vingança e antropofagia Tupinambá: Uma vez, por estes dias, foram à guerra muitos das terras de que fallo, e que muitos foram mortos pelos inimigos, donde, para se vingarem, outra vez lá voltaram e mortos muitos contrários, trouxeram grande abundancia de carne humana, e indo eu visitar uma aldêa; vi que daquella carne cozinhavam em um grande caldeirão, e ao tempo que cheguei atiravam fóra uma porção de braços, pés e cabeça de gente, que era causa medonha de ver-se, e seis ou sete mulheres, que com trabalho se teria de pé, dançavam ao redor, espeitando o fogo, que pareciam o demônio no inferno (NAVARRO,1988, p.78) O catequista Leonardo Nunes, em uma carta de 1550 endereçada aos irmãos de Coimbra, reconhece na “estranha” dimensão cultural indígena a escatologia cristã, projetando nos costumes e ritos ameríndios a figura do Demônio: Todos andavam nus, como elles todos costumam, delles tintos de negro, outros de vermelho, outro cheios de pennas, e não cessavam de atirar frechadas, com grande grito, e outros tangiam nos busios, com que fazem acorde em suas guerras que parecia o mesmo Inferno (NAVARRO,1988, p.86). O padre João Navarro de Porto Seguro apresenta uma descrição dos “maus costumes” dos Negros d’aldeia a partir de uma visão cosmológica cristã da demonologia1, Assim chegamos a uma aldeia onde achamos os Gentios todos bêbados, porque têm elles cada uma maneira de vinho de raízes que embebeda muito, e quando elles estão assi bebados estão tão brutos e feras que não perdoam a nem-uma pessoa [...] E vendo que aquella gente não tinha discrição para vir tão asinha ao conhecimento da fé, nem estava disposto 1 “Baseada na instrumentação interpretativa do demônio, a “demonologia” foi instrumento imprescindível para gerenciar modalidades peculiares de encontros culturais. A estrutura interpretativa demonológica constituiu, historicamente, inevitável e perturbadora imersão no mundo das culturas, autóctones, exóticas e indígenas. Ela permitiu constituir, na base desses encontros, uma nova e peculiar dimensão cultural: a cultura colonial. O “demoníaco” constituía-se, portanto, como rede que, em princípio, oferecia a possibilidade de entender tanto os “excessos” (rituais: diferentes do culto idolátrico), quanto as “ausências” (de crenças: que, de fato, revelava a ausência da idolatria) que caracterizava determinadas culturas. E, assim, o “demoníaco” começou, timidamente, a instalar-se nas primeiras descrições das alteridades indígenas. A demonologia constituiu-se, portanto, como um grau zero de religiosidade, patamar inaugural do processo evangelizador” (AGNOLIN, 2006, p.475. Sobre o estudo da demonologia no Brasil Antigo, remeteremos aos livros: O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009; Inferno Atlântico: demonologia e colonização séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Ambos da historiadora da USP, Laura de Mello e Souza. 22 para isso, partimos para outra. Contudo, póla missericordia de Deus, nos recebeu bem e nos ouvia pela língua a doutrina Cristã e mostravam elles e todos os mais folgar muito de ouvir, mas não ousavam de o dizer por um feiticeiro lhe davam a morte e que se as disséssemos por sua bocca logo morreriam. De aquelles ministro só é usar o demônio, temendo ser d’aqui destronado, como creio que o vai adivinhando (NAVARRO,1988, p.96). O catequista continua seu relato de uma visão de mundo respaldada no combate de Satã que tinha em seus representantes os “feiticeiros” ministros do demônio: Este mal de comerem uns aos outros onda mui danada entre elles e é tanto que os dias passados falharam a um ou dous que tinham a engordar para 2 isso se queria que o resgatassem . Elles respondeu que não o vendessem porque cumpria a sua honra passar por tal morte como vontade capital. Elles não se comem uns aos outros senão por vingança. Tem o Demônio muito domínio nelles, o qual dizem que algumas vezes lhes apparecen visualmente e que lhes dá e atormenta outras vezes asperamente (NAVARRO,1988, p.97-98). O sistema de vinganças Tupinambá estava na origem dos “maus costumes”, pois como os indígenas eram povos “sem fé, nem lei, nem rei”, eram seus costumes que deveriam ser modificados para que eles se tornassem “bons costumes” cristãos. Depois de retratarem os indígenas como filhos ou representante do Demônio cuja única maneira de emendar os seus costumes seria por meios da água do batismo, o padre Antonio Pires, certificando-se de que os indígenas estão firmes no conhecimento do catecismo e com isso possa perseverar-se em bons costumes: Muitos dos Gentios pedem água do Bautismo; mas o padre Nóbrega há ordenado que primeiro lhes façam os catecismos e exorcismos até que conheçamos nelles firmeza,, e também que primeiro emendem seus maus costumes. São taes os bautizados que perseveram, que é muito para dar graças ao Senhor, porque, ainda que dos seus são desenvolvidos e vituperados, não deixam de perseverar em bons costumes (NAVARRO, 1988, p.102). Por sua vez, no início das missões, o interesse que os tupinambá demonstravam pela fala dos missionários a respeito de suas divindades e os 2 “Resgate consistiam na troca de mercadorias por índios prisioneiros de outros índios. Nos termos do Alvará de 1574, somente os indígenas “à corda”, isto é, já preso e amarrados para serem mortos, poderam ser objeto de um resgate pelos moradores. Indivíduos obtidos por esse expediente tinham, segundo a lei, seu cativeiro limitado a dez anos” (ALENCASTRO, 2012, p.119). Para um estudo aprofundado dos princípios da legislação indigenista no Brasil Colonial, ver o artigo: Índios Livres e Índios Escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII), de Beatriz Perrone-Moisés, In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 23 pedidos de batismos feito aos padres, levavam os missionários a pensarem que a conversão seria facilmente alcançada e que os nativos, depois de convertidos, deixariam seus antigos costumes. Antonio Pires, informando como disciplinava os novos convertidos, confirma que [...] este hão de ser um fundamento grande para todos os outros se converterem. Já começam a ir pelas as aldêas com os Padres pregando a Fé, e desenganando os seus dos maus costumes em que vivem. (NAVARRO, 1988, p.102-103). Eduardo Viveiros de Castro (2002), estudando acerca da conversão e descrença dos Índios Tupinambá no século XVI: O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem, afirma que “nos, modernos e antropólogos, concebemos a cultura sob um modo teológico, como um ‘sistema de crença’ a que os indivíduos aderem, por assim dizer, religiosamente”. A religião, como sistema cultural proposta pelo antropólogo Clifford Geertz3, pressupõe uma ideia da cultura como um sistema religioso. Segundo Castro (2002, p.192), Sabemos por que os Jesuítas escolheram os costumes como inimigo principal: bárbaro de terceira classe, os Tupinambá não tinham propriamente uma religião, apenas superstição. Mas os modernos não aceitamos tal distinção etnocêntrica, e diríamos: os missionários não viram que os “maus costumes” dos Tupinambá eram sua verdadeira religião, e que sua inconstância era o resultado da adesão profunda a um conjunto de crenças de pleno direito religioso. (CASTRO, 2002, p.192). Os Jesuítas separaram equivocadamente, segundo o antropólogo, o sagrado do profano, não percebendo a cultura como um sistema religioso: Nós, em troca, sabemos que o costume é não só rei e lei, mas deuses mesmos. Pensando bem, talvez os Jesuítas soubessem disso, no fundo, ou não teriam logo detectado nos costumes o grande impedimento para a conversão (CASTRO, 2002, p.192). Contudo, passados os primeiros anos das missões, os padres e irmãos abandonaram o otimismo inicial ao constatarem que os Tupinambá, depois de batizados, voltavam a seus antigos costumes. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012. Ver especificamente os capítulos 4, A religião como sistema cultural; e 5, “Ethos, visão de mundo e a análise de símbolos sagrados. 3 24 4 OS SENTIDOS DA CONVERSÃO E AS REDEFINIÇÕES IDENTITÁRIAS TUPINAMBÁ Nos relatos do século XVI, são freqüentes as descrições e as referências às práticas de vingança e à antropofagia Tupinambá que foram unanimemente condenadas e, para os jesuítas, apontadas como principal empecilho para a conversão. O sistema de vinganças Tupinambá estava na origem dos “maus costumes”, pois como os indígenas eram povos “sem fé, nem lei, nem rei”, eram seus costumes que deveriam ser modificados para que eles se tornassem “bons costumes” cristãos (CASTRO, 2002). Por sua vez, no início das missões, o interesse que os Tupinambá demonstravam pela fala dos missionários a respeito de suas divindades e os pedidos de batismos feito aos padres levaram os missionários a pensarem que a conversão seria facilmente alcançada e que os nativos, depois de convertidos, deixariam seus antigos costumes abomináveis. Contudo, passados os primeiros anos das missões, os padres abandonaram o otimismo inicial ao constatar que os Tupinambá, depois de batizados, voltavam a seus antigos costumes de guerrear e de comer carne humana. Firmes em seus propósitos em converter os Tupinambá, “cujo sentido evoca uma completa mudança de vida, implica ao mesmo tempo transformar os costumes dos índios e ensinar-lhes os elementos essenciais do dogma cristão” (CASTELNAUL`ESTOILE, 2006, p. 20), os inacianos foram irredutíveis. Nessa direção, os sentidos da conversão dos inacianos são identificar os “maus costumes” indígenas, que consistiam em excessos de costumes e ausências de crenças, objetivando modificar o comportamento cultural dos tupinambá e impor outros modelos civilizatórios e cristãos. Todavia, a documentação histórica permite contestar a eficácia do projeto catequético desenvolvido pelos jesuítas e entender os aldeamentos como um ambiente possibilitador do “hibridismo cultural” (VAINFAS, 2010). Para entender os aldeamentos como espaços possibilitadores de novas formações culturais e sociais, far-se-á uma breve análise do relato que o padre Fernão Cardim fez em 1583 em sua Missão Jesuíta no Brasil. 25 Entre os anos de 1583 e 1590, o padre Fernão Cardim, secretário do padre visitador Cristóvão de Gouvêa, escreveu uma Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesuítica. Escrito em um contexto de grandes dificuldades da conversão, a carta de Cardim objetivava exaltar os trabalhos da evangelização realizados nos aldeamentos jesuíticos no Brasil a fim de insuflar o desejo dos inacianos a vir ganhar novas almas para Deus nas Terras Brasílicas. Dessa forma, a missão confiada ao visitador pelo geral da Companhia não é outra senão “a consolação dos nossos que trabalham nessa vinha tão estéril, laboriosa e perigosa” (CASTELNAU-L`ESTOILE, 2006, p.22). Portanto, se não se atentar para o contexto histórico da escrita do texto de Cardim, pode-se acreditar que a conversão dos Tupinambá aldeados já estava bem desenvolvida. O secretário do padre visitador descreve a chegada de seu superior em Salvador na Bahia (9 de maio de 1983) nos seguintes termos: O padre visitador antes da missa revestido em capa d’asperges de damasco branco com diacono e subdiácono revestidos do mesmo damasco, batisou alguns trinta adultos.O padre na mesma missa casou alguns em lei da graça[...] deu a comunhão a cento e oitenta índios e índias, dos quaes vinte e quatro, por ser a primeira vez, comungaram à primeira mesa, com capella de flores na cabeça; depois da comunhão hles deitou o padre ao pescoço algumas verônicas e naminas com Agnus Dei de várias sedas, com seus cordões e fitas, de que todos ficaram mui consolados. Um destes era um grande principal por nome Mem de Sá que havia vinte annos era christão; foi tanta a consolação, que tive de ter commungado, que não cabia de alegria [...]. Tive grande consolação em confessar muitos índios e índias, por interprete (CARDIM, 1980, p. 150-151, Grifos nossos) As primeiras práticas dos sacramentos da religião cristã ministradas no interior dos aldeamentos descritos por Cardim podiam ser traduzidas erroneamente pelos Tupinambá. O batismo cristão, regra necessária para o neófito entrar na comunidade cristã, podia ser comparado com o ato de renomação praticado pelos Tupinambá após a antropofagia ritual. Com o sacrifício da primeira vítima, os Tupinambá poderiam “ganhar nomes na cabeça dos inimigos” e integrar-se ao grupo do Avá. Segundo Fernandes (2006), esse é o período mais significativo da vida de um homem Tupinambá, porque neste instante os índios tornavam-se guerreiros, obtinham a ascensão social e poderiam casar. 26 O sacramento da eucaristia citado por Cardim era responsável por representar a culminância da conversão e também poderia representar elementos da cultura Tupinambá, pois a expressão utilizada pelos inacianos para traduzir a comunhão dava a entender que a [...] tradução do sacramento da comunhão, não se pode estabelecer a possibilidade de conotar uma ação sacramental que subtraísse a ação eucarística à sua (por outro lado evidente na própria traditio católica) conotação de uma ‘teofagia’ (AGNOLIN, 2007, p. 325). Podemos confirmar esse paralelismo no catecismo elaborado por José de Anchieta, quando “o Mestre pergunta: Por que Cristo teria instruído o sacramento da eucaristia? responde: ‘Seja meu corpo comida da alma deles’”. (AGNOLIN, 2007). Manifestação cultural significativa na sociedade Tupinambá, a música levaria os missionários a acreditarem que as festas religiosas cristãs pudessem substituir os “maus costumes indígenas”. Todavia, relatos da narrativa de Cardim demonstram que, ao contrário da simples substituição dos costumes Tupinambá nos aldeamentos jesuítas, houve a permanência de traços culturais de ambas as partes e a formação de elementos culturais híbridos, como se pode notar no texto seguinte: Partimos para a aldeia do Espírito Santo sete léguas da Bahia. Chegamos à aldeia à tarde, antes dela um bom quarto de léguas, começarão as festas que os índios tinham aparelhados, as quaes fizerão em uma rua de frescas e altíssimas arvoredos, das quaes saião uns cantando e tangendo a seu modo, outros em ciladas saião em grande gritaria, outros que nos atrocinão e fazião estremecer; os curumins e meninos com muitos macho de frechas levantadas fazião seu motim de guerra, e davão seu grito e pintados de vermelho, digo de várias cores, musinhos vinhão com as mãos levantadas receber a benção do padre dizendo em portuguez: louvado seja Jesus Cristo. Estas festas acabadas Os índios Murubixaba e principaes dão o Creiupe ao Padre que quer dizer vieste? E beijando-lhe a mão recebião a bencos mulheres nuas (coisa para nós mui nova) com as mãos levantadas ao céo também davão seu Creiupe, dizendo em portuguez louvado seja Jesus Cristo, assim de toda a aldeia fomos levados em procisão à igreja, com danças e bão música de flauta, com Fé-Deum louvamos: feito a oração lhes mandou o padre fazer uma fala na língua de que ficarão muito consolados e satisfeitos aquella noite os índios principaes grandes línguas pregarão da vinda do padre a seu modo, que é da maneira seguinte: Começão a pregar na rede por espaço de meia hora, depois se levantão e correm toda a aldeia pé ante pé mui devagar, e o pregador também é pausado, lfeumatico e vagoroso, repetem muitas vezes as palavras, por gravidade, cantão nestas pregações todos os trabalhos, tempestades, perigos e morte que o padre padeceria, vindo de tão longe para visitar e consolar e justamente os incitão a louvar a deus pela mercê recebida e que 27 tragão seus presentes ao padre, em agradecimento (CARDIM, 15831590, p. 73. Grifos nossos). Esse relato leva-nos a reconhecer diversos elementos culturais Tupinambá em mestiçagem com elementos cristãos, como: índios cantando e pregando a seu modo, encenando a guerra, instrumentos, pinturas, cânticos, nudez e a danças permanecem nos aldeamentos com elementos culturais cristãos. Apesar das transformações ocorridas nas cerimônias guiadas pelos inacianos, isso possibilitou aos Tupinambá traduzir a religião cristã a partir de seus elementos culturais e atualizar seus “maus costumes” nos aldeamentos jesuítas. Portanto, a partir do que foi estudado, podemos reconhecer que o encontro cultural de alteridades tão distintas nos possibilitou identificar os aldeamentos inacianos como espaços de mudanças, adaptações, negociações e constantes redefinições de identidades, possibilitando o surgimento de um novo padrão cultural híbrido. 28 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A evangelização dos indígenas teve como ponto de partida a instrução, a preparação para a conversão. E nessa preparação, os inacianos tinham que se misturar ao mundo social dos Tupinambá para transformá-los, identificar seus “maus costumes, corrigi-los e trazer para os “bons costumes cristãos”. Isso fazia da missão jesuíta um projeto civilizador e evangelizador. Aculturar e converter eram o propósito da catequese que só aplicava o sacramento da salvação (batismo) àquele que abandonasse o modo de vida antigo e passasse – consequentemente – a adotar a conduta dos princípios dogmáticos do catolicismo. Nesse processo da conversão, “equívocos” e “mal-entendidos” (AGNOLIN, 2007) faziam parte da relação entre jesuítas e Tupinambá. A tradução de dois mundos divergentes fazia surgir um novo universo simbólico de elementos culturais diferenciados que, segundo Bosi (1996, p. 65), possibilitava o surgimento de nova representação do sagrado. O que daí resultava, portanto, já não era nem teologia cristã nem a crença tupi, mas uma terceira esfera simbólica, uma espécie de mitologia paralela que só a situação colonial tornara possível. Buscou-se demonstrar com esse estudo que, no interior dos aldeamentos jesuítas, as tradições culturais dos Tupinambá estavam sendo construídas e ressignificadas costumeiramente. Nesse sentido, cabe ainda destacar que não foram apenas os indígenas que mudaram, mas também os próprios jesuítas ao remodelarem os dogmas e os métodos da catequese aos costumes nativos. Nesse sentido, para converter os ameríndios eles mudariam a essência de sua própria religião. Assim, a pesquisa referente à relação entre os jesuítas e os Tupinambá nos aldeamentos nos possibilita avaliar que os sentidos da conversão não alcançaram os objetivos desejados pelos inacianos durante quatro décadas de evangelização. Portanto, compreender o encontro entre uma religião prosélita como a cristã e outra com suas plasticidades como a religião dos Tupinambá, responsável por possibilitar o surgimento de elementos novos e híbridos culturalmente, nos leva a repensar e negar a eficácia dos sentidos da conversão e considerar os aldeamentos de Manoel da Nóbrega a Fernão Cardim (1549-1590) como um ambiente de constante tradução identitária, marcado por permanências de elementos culturais de ambas as partes. 29 REFERÊNCIAS AGNOLIN, Adone. Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séculos XVI - XVII). São Paulo: Humanitas Editorial, 2007. ______. Glória. In: MONTEIRO, Paula. (Org.). Deus na Aldéia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. ANCHIETA, José de. Cartas: Correspondência ativa e passiva. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 1984. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2003. Tomo III. BOSI, A. 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