Figura 5: A apresentação imunológica pode ser efectuada de uma forma directa ou indirecta, de acordo com a natureza das células apresentadoras de pequenas porções de moléculas do dador (péptidos). órgãos transplantados representam uma teia complexa de interacções entre células do sistema imunológico e de moléculas que activam e propagam essa resposta. Bilhetes de identidade celular e compatibilidade O sistema imunológico do receptor de um órgão reconhece como estranhas as células do dador através de proteínas específicas na superfície destas células. São vários os genes que codificam estas proteínas possuindo alterações na sua sequência de ADN que resultam numa quantidade apreciável de combinações de proteínas diferentes à superfície das células de indivíduos de uma mesma espécie. Estes genes encontram-se localizados no cromossoma 6 do Homem, numa região designada como Complexo Major de Histocompatibilidade, pelo facto de aí se concentrarem muitos genes com importância na compatibilidade em transplantação. A diversidade é de tal modo elevada que se pode comparar ao carácter único de um bilhete de identidade celular. Conhecem-se hoje quase 3500 formas diferentes destes genes que podem surgir em combinações de 10 proteínas diferentes numa mesma célula. A probabilidade de encontrar dois indivíduos com a mesma combinação destas proteínas na superfície das suas células é muito reduzida. O sistema imunológico de um doente transplantado consegue identificar e montar uma resposta violenta na presença de apenas uma proteína diferente. Tratamento anti-rejeição No final da década de 70 do século passado, deu-se um avanço significativo para o sucesso da transplantação. Uma nova utilização de uma substância conhecida como ciclosporina veio permitir em muitos casos reduzir significativamente a taxa de rejeição. Contudo, esta droga possui efeitos secundários que podem resultar em toxicidade para o próprio órgão transplantado. Outros 16 Conhecer a Imunologia Coordenação Científica: SPI | Patrocínio exclusivo medicamentos foram entretanto desenvolvidos minimizando os efeitos adversos da ciclosporina (tacrolimus, sirolimus, everolimus e micofenolato de mofetil). Todos os medicamentos disponíveis hoje em dia suprimem a resposta imunológica, constituindo assim um problema, dado que não são específicos para a resposta imunológica contra as células do dador. Na sequência destes tratamentos, os doentes transplantados aumentam a susceptibilidade a infecções, cancro e outras complicações normalmente resolvidas por um sistema imunológico funcional. A investigação dos mecanismos imunológicos responsáveis pela rejeição pode permitir a curto ou médio prazo o aparecimento de tratamentos específicos para diminuir a rejeição sem afectar a capacidade imunológica do doente em geral. Desafios actuais da imunologia da transplantação Uma área que tem merecido atenção especial dos imunologistas relaciona-se com um fenómeno observado há muito tempo e designado por «tolerância». De facto, existem doentes que não apresentam sinais de rejeição após a interrupção ou abandono do tratamento. O esclarecimento dos mecanismos responsáveis por este tipo de resposta pode ajudar a desenvolver estratégias que induzam estes estados de tolerância em todos os doentes. O estudo da imunologia tem proporcionado aplicações notáveis na prática clínica revelandose também uma área de investigação fascinante pelos desafios que se colocam de compreensão dos mecanismos celulares e moleculares que podem permitir melhor qualidade de vida aos doentes que necessitam de recorrer à transplantação de órgãos e tecidos. V. O Sistema Imunitário contra o cancro Bruno Silva-Santos, Instituto de Medicina Molecular, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa T odas as doenças originadas pela formação de um tumor maligno num determinado órgão do organismo são colectivamente designadas por “cancro”. Uma vez diagnosticado, o paciente poderá submeter-se a cirurgia para excisão do tumor ou a tratamentos baseados em produtos químicos (quimioterapia) ou na radiação (radioterapia). Como bem sabemos, estas estratégias por vezes não são suficientes para o controlo da doença e é neste contexto que a imunoterapia surge como uma “arma” adicional para o combate ao cancro. Se tanto médicos como biólogos têm trabalhado intensamente na investigação na área do cancro, os imunologistas em particular têm-se dedicado a estudar o papel constante do sistema imunitário (SI) no combate à formação de tumores e a conceber novos tratamentos imunológicos. Uma série muito vasta de estudos com modelos animais no século XX veio mostrar ser de facto possível activar o SI (de ratinhos) de modo a rejeitar tumores experimentais, usando estratégias de vacinação análogas às utilizadas contra vírus e bactérias, mas neste caso com células tumorais. Porém, essas experiências também revelaram ser muitíssimo mais complicado tratar um tumor quando se estimula o SI já depois da sua formação –o que representa a situação real com que nos deparamos na clínica. Figura 6: Populações de linfócitos anti-tumorais. Os linfócitos CD8, NKT, NK e Υδ produzem factores que provocam a morte das células tumorais: as moléculas secretadas perforinas e granzimas, e proteínas de membrana que se ligam a receptores de morte presentes nas células tumorais. As células dendríticas (DC) participam na activação dos linfócitos antitumorais através da produção de factores solúveis (citocinas) e de ligandos para os receptores específicos de células T (TCR). Actualmente possuímos várias evidências de que o SI está envolvido numa luta constante, dentro de nós, contra a formação de tumores, que estão geralmente cercados por células do SI que são capazes de destruir células tumorais em ensaios feitos no laboratório (após colheita de ambos os tipos de células). Ratinhos com um SI normal conseguem rejeitar uma série de tumores experimentais, ao passo que estes se desenvolvem rapidamente em ratinhos com um SI deficiente (o mesmo acontecendo em seres humanos imunodeficientes). Finalmente, existem moléculas nos tumores que são reconhecidas pelas células do SI, activando-as para a destruição daqueles. Conhecer a Imunologia 17 Há de facto vários tipos de células do SI capazes de reconhecer e eliminar células tumorais, como ilustrado na Figura 6. Os linfócitos são glóbulos brancos capazes de destruir outras células, em particular as tumorais, as quais reconhecem como sendo diferentes das saudáveis através de moléculas que expõem à sua superfície. Várias imunoterapias têm vindo a ser desenvolvidas de modo a estimular estes linfócitos anti-tumorais que oferecem a vantagem (em relação à quimioterapia, por exemplo) de reconhecerem especificamente as células tumorais e pouparem as saudáveis. Assim, conceberam-se vacinas compostas por células tumorais do próprio paciente (após colheita de uma amostra), ou pelas moléculas típicas dos tumores que são reconhecidas pelos linfócitos anti-tumorais. Para alguns tipos de tumores (particularmente alguns linfomas e carcinomas) existem tratamentos eficazes baseados em anticorpos específicos para determinadas moléculas características das células que compõem os tumores. Para alguns tipos de tumores (particularmente alguns linfomas e carcinomas) existem tratamentos eficazes baseados em anticorpos específicos para determinadas moléculas características das células que compõem os tumores. Os anticorpos não só “marcam” as células tumorais para serem alvo dos linfócitos, como podem eles próprios ser quimicamente associados a substâncias tóxicas que destroem localmente as células tumorais. Por outro lado, os linfócitos também podem ser colhidos do sangue do paciente e estimulados no laboratório com uma série de factores que lhes conferem maior poder de combate às células tumorais para depois serem reinjectados no paciente. O objectivo é aumentar a estimulação dos linfócitos (mais do que a possível no próprio organismo), esperando que ao serem reinjectados sejam mais eficazes na eliminação do tumor. Apesar dos grandes avanços no nosso conhecimento sobre a actuação dos linfócitos anti-tumorais, a verdade é que as estratégias imunoterapêuticas para o cancro ainda só apresentam taxas de sucesso (medidas, por exemplo, pela diminuição do tumor) na ordem dos 20%. É por isso necessária muito mais investigação nesta área para tornar a imunoterapia uma componente fundamental (em conjugação com a quiomioe radioterapias) no tratamento do cancro. Os imunologistas não desistirão desta batalha. Sugestão de bibliografia especializada: General Principles of Tumor Immunotherapy, por H. Kaufman e J. D. Wolchok, Editora Springer (2007). 18 Conhecer a Imunologia Coordenação Científica: SPI | Patrocínio exclusivo VI. Doenças auto-imunes João Eurico Cabral da Fonseca, Hospital de Santa Maria e Instituto de Medicina Molecular, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. O sistema imunitário tem como função principal a defesa do nosso organismo contra agressões exteriores, particularmente contra agentes infecciosos como as bactérias. Existe um rigoroso sistema de vigilância interno que previne e ataca precocemente qualquer ameaça de infecção, mas também impede que o sistema imunitário cometa erros de identificação e reaja contra estruturas do nosso corpo, confundindo-as com estruturas exógenas. Quando este fenómeno ocorre podem surgir doenças, globalmente conhecidas por doenças auto-imunes. Este fenómeno acontece, geralmente, como resultado de uma interacção complexa entre os nossos genes e o meio ambiente. Ou seja, existe habitualmente algum grau de hereditariedade nestas doenças, que predispõe para que elas ocorram quando um determinado estímulo biológico, físico ou químico surge na nossa vida. Esta hereditariedade é determinada pela influência de muitos genes diferentes em várias células e moléculas do nosso organismo e por isso é muito difícil de ser prevista por testes genéticos. Os estímulos externos que despertam estas doenças em indivíduos geneticamente predispostos são inúmeros, comuns no dia-adia e muito difíceis de identificar. Consequentemente, é quase im- Figura 7: Articulação inflamada (artrite), mostrando a presença de várias células do sistema imunitário que contribuem para a dor, tumefacção, incapacidade e destruição da estrutura articular. possível, com os conhecimentos médicos actuais, identificar os doentes em risco de desenvolver doenças auto-imunes e prevenir o contacto com os agentes precipitantes. Por vezes, estes fenómenos de auto-imunidade são transitórios e auto limitados, funcionando um pouco como uma “tempestade imunológica”. Um exemplo clássico deste comportamento transitório é a febre reumática, uma doença muito rara actualmente em Portugal, mas ainda frequente em muitos países, como o Brasil, por exemplo. A febre reumática é caracterizada por febre e inflamação das articulações (artrite) e do coração em indivíduos geneticamente predispostos que, quando expostos a uma proteína existente numa bactéria (um tipo especial de estreptococos) que infecta as amígdalas (amigdalite), geram uma resposta imunitária contra várias estruturas do seu organismo, incluindo o coração. Esta Conhecer a Imunologia 19