Sérgio Souza – esse infinito humano jeito de ser (perfil) PEDRO ULSEN Texto originalmente publicado em http://www.textovivo.com.br/detalhe.php?category=perfil&conteudo=fl20070618080952 – Você não precisa ser tão sério. Se você levar a vida com um belo sorriso no rosto, ela é mais leve, mesmo com os problemas. Enquanto todos estão aqui, eu estou olhando para lá, sem formalidade. – E a satisfação em ser professor? – Eu não sei tudo e gostaria de aprender mais. Minha grande satisfação é passar mais para os alunos, é receber você, um ex-aluno meu, que veio aqui propor escrever sobre a minha vida. Sabe, uma vez, um ex-aluno me disse: “Valeu tudo o que você me falou”. O que mais eu quero da minha vida? Não quero mais nada. Eu quero ver o crescimento do aluno, quero que a criatura supere o mestre. – A vida tem que mudar? – A vida tem que andar. A vida pára quando você perde as esperanças. Tá cheio de zumbis por aí, que andam e falam. Em aula Sérgio está vestindo uma calça jeans básica, azul – sim, meio batida pelo tempo. Sapato de camurça, camisa bege e, por conta do frio, uma blusa de lã fina, com losangos azuis, beges e cinzas. Com muita naturalidade pegou um punhado de giz na sala dos professores e entrou na sala de aula onde cerca de vinte alunos o aguardavam. À vontade, ele chega esbanjando sorriso, caminhando informalmente, passos largos, braços que vão, voltam e demonstram leveza, desprendimento, alegria. A voz é marcante, muito expressiva – grave, sonora, preenche e contagia o ambiente. As entonações se alternam constantemente. Algumas vezes uma fala mais séria, em outros momentos mais informal, irônica. Sérgio domina a língua portuguesa impecavelmente. Mais: faz uso desse domínio e da facilidade que tem em articular as palavras. PEDROULSEN.COM.BR – Muito bem senhoras, senhores, senhoritas! Tudo bem com vocês!? O vozeirão, bem grave, chega ao ouvido de todos. A sala não responde. Todos se ajeitam nas carteiras. Uns conversam com os colegas ao lado, outros vão abrindo seus cadernos. – Não está tudo beeem!? Qual é o problema? Muito bem. Ótimo. Legal. Quem é que está falando aííí!? Claro que são as meninas! O tom é de quem tira sarro. Ele fala, gesticula, chama a atenção e olha cada um nos olhos. O tom de voz, sempre mudando, passa longe da fala monótona. Neste momento os alunos já estão concentrados. – Tenho a honra de apresentar meu amigo Pedro. Ele está aqui porque resolveu fazer o meu perfil. Todos se voltam para mim. Eu me apresento, explico a razão de estar entre eles. Os olhares me aprovam. Sou bem recebido. – Bom, na aula passada estávamos falando de... Nada!? Como assim, nada!? Concluo que ele está forçando os alunos. A memória da aula anterior, a participação deles. – Eu vou ao ano de 1601, e daqui a 1768. Isso corresponde ao que foi chamado de Barroco. O som do “a” é bem aberto, o do segundo “o” bem esticado. A frase é enfática, entonada. – É um período em que o neoclássico estava ligado à ascensão da burguesia. Logo depois tivemos as grandes revoluções, a Industrial, na Inglaterra, e a Burguesa, na França. A sala de aula, de seis por dez metros, tem um ventilador empoeirado pendurado na parede lateral direita. Está desligado. O chão antigo tem marcas de desgaste, é quadriculado com peças pretas e brancas, de cerca de vinte PEDROULSEN.COM.BR centímetros quadrados cada. Parede creme brilhante até 1,5 metro de altura e, daí pra cima, cor branca. Pintura velha, cantos e laterais das paredes com marcas de batidas. No fundo da sala janelas que apontam para a rua. Na frente, lousa, com menos de quatro metros de largura, e sob ela o tablado onde está o professor. A porta é de metal, dessas tipo corta-fogo, e corre ao lado da lousa. As carteiras dos cerca de vinte alunos são de madeira, longe de serem novas. Os alunos, de idades variadas, estão modestamente vestidos e são em sua maioria de pouca renda. Todos se preparam para o vestibular da FATEC (Faculdade de Tecnologia de São Paulo). A atenção que dão à aula é impressionante. Estão curtindo o momento. – Muito bem: 1500 é o ano do “achamento” do Brasil. Esse é o Quinhentismo. Digo isso com muita ironia porque todo mundo já sabia que o Brasil estava aqui. E nessa época, aliás, era 22 de abril, dois meses depois do Carnaval, e o Olodum ainda estava nas ruas, na Bahia! A sala cai na gargalhada e ele próprio ri de si mesmo. – Ora, em 1500... – diz, virando-se para o lado, esticando a própria espinha. O que era o Brasil em 1500? Nessa época tínhamos o Padre Anchieta, que depois virou nome de estrada, e o Padre Manuel da Nóbrega, que por inveja também virou estrada depois. Eram os bondoooooosos jesuítas. O segundo “o” é loooooooongo. – Deus está vendo – completa, ironicamente. – Professor, e a canonização do Frei Galvão? – Uma garota pergunta. – Fé é fé, não se explica. Eu não condeno nada. Mas você também não pode ter o olho fechado. Você também tem a razão... Alguns minutos mais e mais aula sobre Quinhentismo e Barroco. A despedida é otimista: PEDROULSEN.COM.BR – A esperança, a mudança do dia e da noite é o grande estalo. Se não foi hoje, vai amanhã, ouuuuuu... Depois de amanhã! Um dia dá, é só insistir! Boa noite turma!!! Ele despede-se, enquanto, generosamente, estende seus braços para frente, mantendo-os abertos para os alunos. Um sorriso no rosto, os olhos estão brilhando. É nítido para mim, que o conheço, que ele está aqui por adorar o que faz. Anuncia em voz empostada, grave, a sonora frase final: – Senhoras, senhores, prazer em revê-los! Pooonto final! Um beijo, um abraço, tchau! Ator natural Sérgio Souza é alto, magro, negro. Tem mãos grandes e pernas compridas. O rosto é fino, a boca grande com dentes fortes e bem feitos. O nariz é ligeiramente grande e empinado. As orelhas são pequenas, o cabelo é preto, curto, bem baixinho. Não há barba, nem bigode, nem óculos. Sérgio é dinâmico e ágil. Respira profundamente, enchendo e esvaziando com gosto seus pulmões. É um cara inquieto, mas não ansioso, e transparece firmeza. Está sempre observando tudo ao seu redor. Também é dono de um vozeirão poderoso de tenor. Muito grave. Dá aulas de literatura há quase trinta anos. Caminha ereto, a cabeça reta, mantém o olhar arguto à frente, vê com profundidade, e faz bom uso da inteligência. Tem a fibra que lhe sustenta e a ginga que lhe dá flexibilidade. Na sala de aula, como professor, provoca revoluções na cabeça dos alunos. É educador, conduz os jovens ao raciocínio, à visão crítica, à reflexão sobre as escolhas pessoais, bem pensadas, objetivas. Mas, poderia sê-lo, Sérgio este, Sérgio apenas? PEDROULSEN.COM.BR O que transparece é que na sua vida ninguém dá pitaco. Mas é também um ator. Um sujeito engraçadíssimo, que faz piadas o tempo todo, ri de si mesmo e de situações cotidianas. Tem um ótimo humor, esbanja alto astral, faz-se sentir querido e contamina todos ao redor, normalmente contando grandes histórias da literatura ou tirando sarro de situações corriqueiras. Fala diretamente a língua dos seus alunos, e se posiciona junto a eles. Mas é natural. Generoso quando conversa com as pessoas e também nos abraços. É espontâneo, até intrigante. Simples e ao mesmo tempo inexplicável: o tratamento vai de igual para igual. Não há barreiras, orgulhos, egos. No tratamento que concede às pessoas, ele procura fazer com que todos se sintam ao mesmo tempo iguais e humanos (mas sempre absolutamente iguais). De lá pra cá Fazia sete anos que eu não o via. Sérgio Souza foi meu professor de literatura em 2000. Desde então, quando freqüentei um cursinho preparatório, desses para o vestibular, seu jeito me intrigava. Quem é esse cara, engraçado desse jeito, inteligentíssimo, e que nos faz pensar a todo instante? E ainda dizem que ele é senegalês! O ano correu e neste período tive dele muito apoio para iniciar no jornalismo. Passou-se o tempo e o contato com ele permaneceu, por e-mail. Agora o reencontro ocorreu próximo ao Largo do Paissandu, em um domingo de aula (para ele). Na rua Capitão Salomão, 89, o cheiro era fétido. Prédios antigos abrigando hotéis baratos, mendigos, transeuntes, jovens, casais namoradores – alguns com bebês recém-nascidos no colo. Reparo na antiguidade do prédio do cursinho em que ele estava, e nas suas escadas de mármore. Me dirijo ao terceiro andar, à procura de um bebedouro, PEDROULSEN.COM.BR e ouço, do hall do segundo andar, aquele vozeirão característico. Era Sérgio, que, em sala de aula, dizia algo como: – Então, você percebe... Na volta do terceiro andar, passando novamente pelo segundo, ouço: – Boa semana para vocês, bom... O sino dispara. Volto ao térreo. Lá fora continuo aguardando o professor de tanto tempo. Observo na rua um Gol GTI, que nos anos 1980 era carrão de sucesso. Estava à venda, anunciado por Milton no telefone 3313-2520. Azul e prata, rebaixado, bem ao estilo moderno, arrojado. – Pedro Ullllllllsen! Ouço Sérgio me chamar, puxando bem a letra “L”, de modo que, para isso, com certeza pôs a língua no céu da boca, logo atrás dos dentes superiores. Vinha entusiasmado. O dia está ensolarado. Encontroi-o às 11h. De lá, iria acompanhá-lo até Jundiaí, no interior de São Paulo, onde ele também tem alunos. Seguimos de carona com outro professor, amigo seu. Márcio, que leciona matemática, guiava animadamente enquanto eu explicava para Sérgio – e também para Márcio, interessadíssimo na nossa conversa – a proposta do meu trabalho. Pelo celular, este já deixava tudo acertado para a cervejinha com os amigos, logo à tarde. No carro, esticado no banco do carona, mais à vontade impossível – despojado – Sérgio falou sobre vida, carreira, literatura, Machado de Assis, Seminário de Jornalismo Literário. Para ele, estava tudo ótimo. – E você está em aulas de domingo a domingo? – De domingo a domingo. – Não cansa? PEDROULSEN.COM.BR – Olha, tenho a impressão que a hora que eu cansar, vou cansar de vez. – Me lembro que você dizia que o te faz a cabeça é formar gente. – É isso mesmo. O que me faz a cabeça é formar gente. Status, carrões, não fazem a minha cabeça. – Também lembro que você comentava que gosta de dar aulas pra quem gosta de aprender. Sérgio sinaliza que sim, que não mudou de opinião. – E o Machado de Assis? – Se eu sou o que sou é graças ao Machado. Ele tinha tudo para não ser nada e foi tudo. Dá um banho no Eça de Queiroz! – Ele te influenciou? – O Machado acabou me influenciando. Ele tem um tom psicológico, por exemplo, quando fala de Brás Cubas e Bentinho. É uma maneira irônica de tratar psicologia. Fala da vida pelo lado que ninguém gosta, que é o fracasso. Eu aprendi muito jogo de palavras lendo Machado, e ele também é muito irônico. – Algum outro escritor te influenciou? – O Guimarães Rosa. Porque ele fala do mineiro. E o mineiro não fala, ele interpreta a idéia. Pra ele o trem não é trem, é coisa. Então ele joga com as idéias. – Fico pensando na sua formação. Imagino que tenha sido muito boa, principalmente na sua casa, com seus pais. – Minha mãe, Dona Marie, dizia que a verdade é a melhor coisa que existe, mesmo que você venha a perder. E meu pai também falava que mesmo que você não ganhe, a verdade é a melhor coisa. PEDROULSEN.COM.BR – Você gosta de falar? – Seu eu gosto de falar? Eu adooooooro falar! Já em Jundiaí fomos deixados aos cuidados de outro professor, que nos levou para almoçar e depois para o cursinho onde Sérgio era aguardado. No restaurante Nova China Sérgio gastou pouco mais de R$ 5. Nem dez minutos depois estávamos prontos para mais uma aula, já no colégio, às 13h em ponto, sem ansiedade. No curso preparatório para o concurso do Banco do Brasil o ambiente é acolhedor. A sala de aula é comprida e tem um público bem simpático – jovens com sotaques de interior. Há muita vivacidade e alegria. Neste dia, a aula é de interpretação e produção de textos. Alguém grita: – Professor, que que é “apôsto”? – Já vou chegar aí. Mas se você está perguntando isso eu “aposto” que você não sabe o que é “aposto”! – Diz Sérgio, rindo de si mesmo. E emenda: – Para a produção de texto a gente trabalha com o redigir, que é expressar por palavras um pensamento. E, claro, com o interpretar, que é analisar o pensamento expresso, por palavras ou não. O tom de voz se torna mais grave. Do lado de lá da janela reparo nos sons de uma grande avenida. Naquele dia, como nos outros, Sérgio vestia-se de maneira muito simples. No bolso da camisa de listras verticais de cores branca, azul e alaranjada, uma caneta Bic. Uma calça jeans básica, sapato de camurça, relógio no pulso do braço esquerdo, uma pulseira de couro no outro. Como de hábito, se dirigiu ao tablado com giz e apagador em mãos. Neste momento, me lembrei do papo que tivemos sobre Machado. “Machado de Assis se lê nas entrelinhas”, ele diz. E a vida, também se lê nas entrelinhas? Penso. A aula seguiu. “Interpretação da arte é subjetiva”, ouço ele dizer aos alunos. “Guimarães Rosa: o silêncio é a gente mesmo demais”, ouço agora. PEDROULSEN.COM.BR – Como a gente vai achar a palavra certa? – Sérgio inquire aos alunos. – Pensando! – ele próprio responde depois de algum tempo. Os alunos estão prestando “toda a atenção do mundo”, e ele, falando pelos cotovelos, empolgado com a aula que conduzia. – E aí você chegou ao pensar, à análise do pensar. Sérgio senta-se para ler o texto “O que é ser cidadão?”, que foi tema da redação do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Coloca óculos de leitura para lê-lo em voz alta. – Então, nesse exato instante, ele [o autor do texto] faz o quê? Vejo que ele se diverte dando aulas, essa que é a verdade. E que vive do seu próprio jeito, por si mesmo, não está nem aí para o que vão pensar dele. – Muito bem. Ótimo. Legal! Acaba a aula. Sem carona, nos dirigimos à rodoviária e pegamos o ônibus para São Paulo. Início de tudo Sérgio Souza é senegalês de nascimento. Talvez mais do que conhecimento, o que muito chama a atenção em seu jeito, em seus modos, em sua postura, é a sua sabedoria. Que ele tem uma excelente formação, é estudioso, basta um minuto de conversa com ele que sabemos o que é uma boa aula de literatura. No entanto, Sérgio traz consigo algo mais incontestável, um traquejo, uma manha de quem conhece as curvas da vida. Imaginar que ele teve uma excelente base, uma ótima educação familiar, já é algo. Mas será que ele, senegalês que é, traz algo que não conhecemos daquela cultura? O que será que seus pais, africanos também, trazem isso de um continente sobre o qual quase nada sabemos? PEDROULSEN.COM.BR A mãe, Dona Marie Vignon, lhe deu muita sabedoria, diz ele. Família constituída com Paulino do Espírito Santo e Souza, mudaram-se com o filho único para Paris. Lá, a mãe estudou sociologia na Sorbonne. – Da minha mãe, herdei o jeito de ver as coisas. – Que jeito é esse? – Um jeito suave, tranqüilo, e a certeza de que pra tudo se dá um jeito. Tudo o que ela falava estava contextualizado na vida. E assim ela me orientou. Era uma figura interessantíssima, uma pessoa muito ativa, ágil, magra que nem eu. – E o seu pai? – Ele era mais fortinho, bonachão, olhava a vida pela janela da vida. – Que importância eles tiveram na sua formação? – Por um lado, a agilidade de pensamento da minha mãe, e, por outro, o refrear de não agir por impulso do meu pai. Lembro de um episódio, quando eu tinha uns 13 anos e morava aqui em São Paulo, perto do que é hoje a avenida Sumaré. Estava brincando no quintal quando caí em um poço de água e afundei. Os meninos foram correndo chamar minha mãe, que já saiu com o chinelo na mão. Meu pai também foi, me buscou com calma, e, do alto da calma dele, falou pra eu ir tomar um banho quente. E depois disse: “É natural que um moleque faça bobagens como essas”. Eu lembro disso como se fosse hoje. Porque sei que jamais vou cair em outro poço, nem nesse nem em outros. Ele foi uma mão que me tirou do poço, que me tirou do perigo. A história da família de Sérgio é prodigiosa. Paulino, nascido no Cabo Verde, fugiu da rigidez do próprio pai. Tinha o grande sonho de estudar fora do país, e era fascinado pela Bahia brasileira. Assim que pôde, sozinho e sem ninguém mais, entrou clandestinamente em um navio que vinha para o Brasil. – Só que teve um problema: foi descoberto. Aí ele ficou trabalhando no navio. Iam mandá-lo de volta pra Cabo Verde, repatriá-lo. Quando o navio chegou a Salvador, a tripulação desceu, e na primeira oportunidade ele fugiu do navio e PEDROULSEN.COM.BR ficou sozinho em Salvador, na região do Pelourinho. Nessa época ele dormia nas praças, na areia, sem dinheiro. Foi quando descobriu que era possível ganhar dinheiro como engraxate. Assim, ele foi começando. Em Cabo Verde, ele já tinha estudado o básico e aqui ele recomeçou os estudos. Deixou de ser engraxate e ingressou como caixa de banco. Depois pediu ingresso na Faculdade de Engenharia de Minas da Universidade Federal da Bahia e entrou na Petrobras quando a Petrobras começou o trabalho de prospecção de petróleo na África. Como ele era africano, foi deslocado pela Petrobrás pra Senegal. E lá ele conheceu minha mãe. Namoraram, se casaram, e eu nasci lá. – Seu pai nunca mais voltou pra Cabo Verde? – Nunca mais. Uma vez eu visitei o meu avô, o pai dele, lá. Ele tinha uma voz muito parecida com a minha. Eu era pequeno, fui com minha mãe e fomos muito bem recebidos. – E como foi sua infância lá, no Senegal? – Meu avô por parte de mãe era chefe da tribo bantu, o que era considerado um cargo alto. E lá ele tinha uma atividade muito nobre: caçador de leões. O leão, quando ele é caçado, ele não é morto, ele fica na tribo e se torna um símbolo da força da tribo. Eu costumava ir junto. E eu sei que meu avô tinha a sabedoria da sabedoria, pois ele sabia exatamente o que estava fazendo. Um dia, me lembro, quando eu tinha uns cinco anos de idade, estava com ele e me distraí na savana – ele se afastou e eu não percebi. Quando dei por mim, estava no meio de cinco leões! Procurei manter a calma e não entrei em pânico. Os leões estavam simplesmente parados. Olhei em volta para cada um deles e lembrei que meu avô havia dito que a fera existe, a fera ataca, desde que ferida, com fome ou ameaçada. Saí então, andando. A língua que a gente falava era a iurubara. Quando encontrei meu avô, ele disse: “O perigo está em todo lugar. Tudo é perigoso e nada é perigoso. Você enfrenta o perigo na medida em que você pode enfrentar o perigo”. Isso eu acredito que seja uma visão de maturidade. E isso sempre me volta à cabeça. Se eu tenho que fazer algo, meço o risco. Jamais esqueço o ensinamento do meu avô. Ele ensinava na raça. PEDROULSEN.COM.BR Quando Sérgio tinha oito anos, sua família mudou-se para Paris. Seu pai foi transferido para o escritório da Petrobras na França. Lá viveram dois anos. Outros dois anos depois, novamente por conta do emprego, o pai Paulino foi transferido novamente, desta vez para o Brasil. Chegaram quando Sérgio tinha dez. Moraram em Salvador, no Rio de Janeiro, e chegaram a São Paulo em 1964, quando o futuro professor tinha 12 de idade. O primeiro endereço foi a rua Cristiano Viana. Dessa época, Sérgio diz lembrar dos vizinhos japoneses, das brincadeiras de criança com carrinho de rolimã e do gosto pela leitura, despertado pelo pai. – A mãe dos vizinhos japoneses chamava-se Suiako. E os meninos, Suneu e Kaoro. O sobrenome, lembro bem, porque era muito sonoro: Fukumaro. – E o gosto pelas histórias? – Meu pai sempre passava nas bancas de jornal e comprava de tudo, aí chegava em casa e falava: “Filho, comprei pra você. Vamos sentar e ler”. Ele por ele – Sérgio, como funciona, para você, esse olhar de igual para igual? – Eu olho de igual para igual. Pode ser um professor ou um mendigo. Olho as pessoas como seres humanos. Um professor de Goiânia uma vez me disse que o que faz diferença é o que uma pessoa pode proporcionar ao mundo. Eu, Sérgio, posso oferecer minha cultura, mas também estou sempre aprendendo. Aliás, você sabe, nunca digo que sou alguma coisa. Digo que estou, porque o dia em que for embora, não tem mais nada pra fazer, já cheguei ao fim. – Esse seu desprendimento com as coisas e, ao mesmo tempo, esse compromisso com a própria vida e com a vida dos seus alunos, não parece, aparentemente, um contra-senso? PEDROULSEN.COM.BR – Pode até parecer, mas não é. Aos poucos, você galga postos, e, na verdade, tudo o que estudei foi para mim. – E esse jeito bem resolvido? – Trago isso da gênese. Minha mãe era assim, meu avô, meu pai também. Em casa somos todos comuns. Fiz para mim. O que eu puder passar, vou passar, não sonego informações de jeito nenhum! Para mim, dessa vida o que a gente leva é o conhecimento. Mas esse tipo de orgulho que está por aí, é totalmente danoso. – O que você acredita que traz da cultura senegalesa? – O culto à natureza. E também acredito muito na lei do retorno, que é uma lei da natureza. Mas tem uma coisa: você tem que ser natural, você tem que fazer ser natural. O que vale é o que temos no coração, espontaneidade não tem como programar. – É o seu jeito hilário de ser... – Eu também tenho preocupações, também tenho mau humor. Mas a ironia é o melhor remédio para as rugas. – O espírito brincalhão pode te afastar do compromisso com a própria vida? – Aí eu é que te pergunto: a vida é séria? – Ah, mas eu perguntei primeiro! – Você não precisa ser tão sério... Sérgio tem formação em Biomedicina e em Letras. Começou a dar aulas de literatura, gramática e redação aos 19 anos e hoje, quase 30 anos depois, continua na ativa. Atualmente divide seu tempo em cursinhos de São Paulo, Jundiaí e Santos. Também é docente da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, e da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), em Recife. PEDROULSEN.COM.BR Quando seu pai faleceu, conta, ele queria deixar cultura como herança. Disse o pai: “Te dou cultura pra você buscar o resto. Se te der tudo, você não vai buscar mais”. – Há algum livro da sua vida? Ou algum livro... – “Memórias Póstumas de Brás Cubas”! – A resposta vem como um raio. – Por quê? – Ah, o Machado é minha tese, minha dissertação de mestrado e minha tese de doutorado! É minha leitura de cabeceira, “Memórias Póstumas”, sei de cor, de trás pra frente, de frente pra trás, tudo. – O que acha tão interessante pra você no livro? – Ele narra o conceito de vida pela ótica da psicologia. A vida é um fato estanque, um fato consumado. Não analisamos a vida como contínua. No livro, aconteceu tudo, será que valeu a pena ter vivido? E eu gosto muito também do último capítulo, o “Das negativas”. Essa visão machadiana, de quem nunca foi à escola, ele capta essas coisas. – Não há outro escritor pra você à altura do Machado? – O Eça de Queiroz é o correlato português, mas o Machado dá um banho nele. – E em “Dom Casmurro” a Capitu traiu ou não Bentinho? – Traiu nada! É tudo coisa da cabeça dele. Ele fala que o filho parecia o Escobar, que tinha o jeito do Escobar. Mentira. A Capitu sempre foi uma boa esposa, amou ele e cuidou dele. Só que ele se perdia nele mesmo. Era “casmurro” mesmo. E outra coisa: ele é que estava vidrado no Escobar. Para ele tudo era o Escobar. Se você ler o livro com atenção, a gente pode acreditar que o Bentinho gostava do Escobar e não da Capitu. PEDROULSEN.COM.BR – “Angústia”, de Graciliano Ramos, também é um grande livro? – Eu odeio este livro, mas é fantástico pela angústia que ele passa. Ele transmite a angústia pela obra. E é do tempo em que a literatura conseguia formar gente, né? – Você convive com os jovens há quase trinta anos. Isso te faz bem? – Me sinto com disposição de 38 ou até menos. A vida com essa juventude de 18, 19 anos me rejuvenesce. Faço parte de todo esse conjunto. E eu me obrigo a falar a linguagem deles, pra estar em sintonia. Eu uso Orkut, MSN, estou fazendo meu blog agora. Vam´bora! – A geração de alunos atual é diferente das anteriores? – Ah, mudou muito. Mudou o interesse e os objetivos. Hoje você olha para o aluno e não vê o horizonte. O cultuar, no sentido de cultura, não se vê mais. Não há mais objetividade, nem vergonha mais, não há pejo. Há muitos que vivem porque respiram. Balada, diversão, tudo isso é importante, tudo isso é válido, mas tem que haver objetividade. Hoje, a criatividade está morta. Na minha época eu ouvia rádio, ouvia muito o Fiori Gigliotti, que era um grande locutor. Então a gente imaginava o jogo, era um exercício de raciocínio. – E a vida, o que a vida é pra você? – A vida é a arte do encontro. Embora nela haja tantos desencontros. Mas isso não é meu não! É de Vinícius de Moraes! - Pausa. Ele então continua: Semana passada perdi um ex-aluno muito querido, um grande amigo. Faleceu de leucemia. Isso me abalou muito. Isso me fez repensar muito a vida. Quem é essa indesejada das gentes que adentra a sua casa, ceifa uma vida, e acabou? Isso é o repensar da vida, mas de quem pensou e poetizou a vida, como Manuel Bandeira, um baluarte da morte. Ele costumava dizer: “A inexeqüível vai encontrar a casa arrumada e a mesa posta”, e ele queria dizer que é como uma visita, e é uma visita que chega de sopetão. Portanto é sempre bom deixar a casa arrumada e a mesa posta. – Hum... PEDROULSEN.COM.BR – Mas é um momento que passa. Viva, porque esse momento não volta mais. Respire com cada instante o ar que puder carregar nos pulmões. Porque ele passa. A passagem é rápida, é curta. É um sopro, uma poesia, um momento. Portanto, é bom vivê-la com sorriso. – A gente percebe que você trata todos muito bem, é muito simpático, e também é nítido que você trata todos de igual pra igual, muito naturalmente. Parece que nem tem muito o que explicar. – Todos são pessoas, acima de tudo. Não vejo cargo, vejo as pessoas. Isso é fundamental. Isso eu aprendi com meu avô. Ele me dizia: “Olha para o leão de igual para igual, no fundo do olho dele”. Então eu olho no fundo do olho do leão, do elefante, do macaco, de todo mundo, isso independe. É um olhar com respeito e de igual para igual. Os outros Mas o que será que as outras pessoas pensam sobre o Sérgio? Carlos Hypólito tem 19 anos. Vai prestar vestibular para engenharia e teve aulas com Sérgio ano passado, em Cotia, na Grande São Paulo. Após um ano, manteve a amizade conquistada com o professor. “O cara é uma comédia. E o fato dele ser engraçado torna a aula dele muito boa”, declara Carlos. “Ele faz piada com tudo e com todos, e trata todo mundo bem, é humilde”, completa. A mesma opinião tem Lázara Aparecida Vieira, recepcionista de um cursinho onde ele dá aulas, e que o conhece há oito anos. “Ele é uma pessoa fantástica. O Sérgio, onde ele estiver, ele cumprimenta quem for, conversa numa boa, tem assunto com qualquer pessoa, e conversa sobre tudo. Além de ter uma memória fantástica.” PEDROULSEN.COM.BR Lázara é uma mulher bem arrumada, vaidosa. No dia em que conversamos, fazia tricô, mostrava-se calma, falando pausadamente. – Ele também é muito extrovertido. Esse não passa mal em lugar nenhum! Em qualquer lugar ele se arruma. Ele é bem ele e pronto. E tem um vozeirão, né! Parece locutor de rádio! – Lembra Lázara. - Acho que é devido à criação dele. Se fosse criado em uma família razoavelmente bem de vida, talvez ele não fosse assim. Porque ele já comentou comigo que já passou por coisas que nunca imaginava na vida. E isso faz a pessoa ser humilde. Pra ele não tem discriminação, acho que a gente tem que ser humilde mesmo. – Ele se interessa pelos outros? – Sim, outro dia mesmo eu tava aqui fazendo tricô e ele ficou me perguntando como faço os pontos... Leandro Fernandes também foi aluno de Sérgio há três anos em Diadema, Região Metropolitana de São Paulo. O ex-aluno, que atualmente estuda Educação Física na UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), lembra que, naquela época, era tímido e o professor sempre chamava todos para participar da aula. “Ele sempre me chamava, e eu prestava atenção.” Além da participação dos alunos, Leandro lembra que não gostava muito de literatura, mas que, com o professor, acabou “pegando gosto pelas aulas”. Sobre as tais aulas, Carlos Hypólito também acredita que eram especiais. “Pra mim ele reinventou a literatura. E ele nos conduzia ao raciocínio, não falava as coisas prontas, sempre dava a deixa pra gente pensar.” E-mails Sempre que envia e-mails (e isso ocorre com bastante freqüência), Sérgio insere algumas frases abaixo das mensagens, como as que estão abaixo. Talvez elas digam um pouco mais sobre ele. PEDROULSEN.COM.BR “A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência” (Fernando Pessoa) “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: Esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” (Guimarães Rosa) “Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra” (Shakespeare) “Aquele que caminha sozinho pode até chegar mais rápido... Mas aquele que vai acompanhado com certeza chegará mais longe!” Nas aulas, as despedidas costumam seguir o mesmo tom. São otimistas, enfáticas: – A esperança, a mudança do dia e da noite é o grande estalo. Se não foi hoje, vai amanhã, ouuu depois de amanhã! Um dia dá, é só insistir! Boa noite, turma!!! Ele despede-se enquanto, generosamente, estende seus braços para frente, mantendo-os abertos para os alunos. E a sempre grave e sonora frase final: – Senhoras, senhores, prazer em revê-los! Pooonto final! Um beijo, um abraço, tchau! PEDROULSEN.COM.BR