HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO ENSINO:
JUSTIFICATIVAS PARA UM PROJETO DE FORMAÇÃO
DE LEITORES MENOS “QUADRADO”.
Vinicius da Silva Rodrigues*
Professor responsável: Antônio Marcos Vieira Sanseverino
RESUMO: este trabalho propõe-se a discutir o relevante papel de outras linguagens associadas ao ensino de
Literatura na escola numa proposta híbrida e interdisciplinar dentro do próprio campo artístico. Neste caso,
toma-se como foco as potencialidades intertextuais que se apresentam entre a literatura e a narrativa gráfica,
compreendendo esta especialmente através das histórias em quadrinhos. O trabalho com a narrativa gráfica e
a arte sequencial, assim, acaba abarcando algumas das questões aqui entendidas como centrais dentro da
proposta do componente curricular de Literatura e da formação de leitores na escola, quais sejam: mediar o
currículo e algumas necessidades que também se impõem através da historiografia literária (sem considerá-la,
contudo, a única possibilidade de trabalho) e ampliar o campo de abrangência estética do aluno. Por outro
lado, a escolha da narrativa gráfica não é casual e, por sua vez, tenta dar conta de outra reflexão fundamental:
discutir os domínios da Literatura como componente curricular na Educação Básica no sentido de também
refletir sobre seus suportes e ferramentas.
PALAVRAS-CHAVE: Histórias em quadrinhos, Ensino de Literatura, Formação de leitores.
ABSTRACT: This paper proposes to discuss the relevant paper of other languages associated to the teaching
of Literature in school with a hybrid and interdisciplinary proposal inside the own artistic field. In this case, it
takes as focus the intertextuals potentialities that present theirselves between the literature and the graphic
narrative, comprising this, specially, through comicbook stories. So, the work with the graphic narrative and
the sequential art ends up covering some of the issues comprehended here as central inside the purpose of the
curricular component of Literature and the formation of readers in school, independently of who they are: to
measure the curriculum and some needs that also impose among the literary historiography (without consider
it, however, the only possibility of work) and to enlarge the field of the student's aesthetic
comprehensiveness. In other side, the choice of the graphic narrative is not causual and, on the other hand,
tries to manage the other fundamental reflection: to discuss the domains of literature as a curricular
component in Basic Education in the sense of also reflect their suports and tools.
KEY WORDS: Comicbooks, Teaching of Literature, Upbringing of readers.
1 Introdução
*
Mestrando em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; licenciado em Letras pela mesma
universidade. E-mail: [email protected].
1
Na escola, especialmente no Ensino Médio, o componente curricular de Literatura é
compreendido, em princípio, por sua condição estritamente ligada à historiografia, a
despeito de propostas de mudança e de questões levantadas pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs) que tentam reverter tal paradigma. A fruição literária, logo – se é que
pode estar relacionada como tal – depende, nesse caso, de uma materialidade que se
objetiva frequentemente nas condições sócio históricas da obra. Há que se considerar, no
entanto, que esta não é a condição ideal para nortear, sozinha, a mediação de um objeto
artístico frente a grupos de jovens que precisam, muitas vezes, reinventar-se, eles próprios,
como leitores, uma reinvenção que depende, naturalmente, da mediação do professor.
Dessa forma, assume-se o compromisso com o real objetivo do ensino de Literatura na
escola: a formação de leitores – que adquire, no Ensino Médio, um caráter de reformulação
(ou reformação) desses mesmos leitores, que atendem por novas necessidades e
expectativas ao término do Ensino Fundamental, o que é natural, como adolescentes que
são, que muitas vezes precisam ser, novamente em suas trajetórias escolares, “assediados”
para o mundo da leitura. Com isso, novas estratégias se impõem ao educador,
especialmente na escolha de seu projeto de trabalho para o ano escolar quando na seleção
de textos e obras.
Tendo isso em vista, este artigo propõe-se a discutir o relevante papel de outras
linguagens associadas ao ensino de Literatura na escola numa proposta híbrida e
interdisciplinar dentro do próprio campo artístico a fim de estimular uma compreensão
mais ampla acerca da ideia de leitura, propondo o diálogo com outras linguagens e campos
artísticos. Neste caso, tomarei como foco as potencialidades intertextuais que se
apresentam entre a literatura e as narrativas gráficas, compreendendo estas especialmente
através das histórias em quadrinhos. Assim, são abarcadas algumas das questões que
entendo como centrais dentro da proposta do componente curricular em questão e da
formação de leitores na escola, quais sejam: mediar o currículo e algumas necessidades que
também se impõem através da historiografia literária (sem considerá-la, contudo, a única
possibilidade de trabalho) e ampliar o campo de abrangência estética do aluno. Por outro
lado, a escolha da narrativa gráfica não é casual e, por sua vez, tenta dar conta de outra
reflexão fundamental: discutir os domínios da Literatura como componente curricular na
Educação Básica no sentido de também refletir sobre seus suportes e ferramentas.
2
2 A formação do projeto de leitura na escola: trabalhando sob um viés comparatista.
A Literatura parece já nascer como um campo interdisciplinar entre as áreas de
abrangência do ensino escolar. Trata-se de uma área que permite pontos de contato não só
com as outras possíveis abordagens das Linguagens como também com a Filosofia, a
Sociologia, a História, a Geografia e, por que não dizer, toda forma de conhecimento
concebido pelo homem, uma vez que dá conta, em suma, da natureza humana, seja no
campo do fantástico, seja numa abordagem realista. Dessa maneira, podemos entender que
a Literatura, como arte, assume incontáveis potencialidades, como anuncia Edgar Morin:
Literatura, poesia e cinema devem ser considerados não apenas, nem
principalmente, objetos de análises gramaticais, sintáticas ou semióticas, mas
também escolas de vida, em seus múltiplos sentidos:
- Escolas da língua, que revela todas as possibilidades através dos escritores e
poetas, e permite que o adolescente (...) possa expressar-se plenamente em suas
relações com o outro.
- Escolas (...) da poética da vida (...), da emoção estética e do deslumbramento.
- Escolas da descoberta em si, em que o adolescente pode reconhecer sua vida
subjetiva na dos personagens de romances ou filmes. (...) (MORIN, 2005, p. 48)
Morin também enunciará que uma prática pedagógica baseada no contato
permanente entre diversas áreas do conhecimento de maneira interdisciplinar ou até
mesmo transdisciplinar contempla alguns princípios básicos que nada mais são do que
posturas do educador frente à sua matéria básica: o saber. É a partir desses princípios que
se constroem, enfim, as abordagens de sala de aula. Entre esses princípios está, por
exemplo, a ideia da “reintrodução do conhecimento em todo conhecimento” (MORIN,
2005, p. 96), melhor compreendida, talvez, através do conceito de “migrações”
transdisciplinares:
Certas noções circulam e, com frequência, atravessam clandestinamente as
fronteiras, sem serem detectadas pelos “alfandegueiros”. Ao contrário da ideia
muito difundida de que uma noção pertence apenas ao campo disciplinar em que
nasceu, algumas noções migradoras fecundam em um novo terreno, onde vão
enraizar-se, ainda que à custa de um contrassenso. (MORIN, 2005, p. 108)
A propósito do “contrassenso” colocado por Edgar Morin, o que se tem aqui é o
estímulo a uma postura demasiadamente necessária ao professor formador de leitores: a do
professor-pesquisador, que estabelece hipóteses e dúvidas em sua prática a fim de extrair
resultados, que se propõe a investigar terrenos inexplorados até por ele mesmo com o
objetivo de compreender novos caminhos, novas abordagens possíveis para o seu trabalho.
3
Afinal, formar leitores é um exercício que exige sensibilidade e observação constante das
reações provocadas pela fruição estética e pela imersão ou não no objeto literário proposto.
Considerando tal proposta, no meio escolar o livro & a leitura literária podem vir a
ser, eles próprios, poderosos instrumentos interdisciplinares, na medida em que um
trabalho de formação de leitores assume-se verdadeiramente como um projeto, onde
objetiva-se esgotar a leitura para, num segundo momento, estabelecer a ponte com a
próxima – e assim sucessivamente. Por meio dessa abordagem, um mesmo conceito
estético ou motivação para a narrativa pode ser mediado em diferentes contextos ou
discursos literários. Trata-se de um exercício comparatista, mas que, por outro lado,
compreende a importância da autonomia da obra literária durante o processo de leitura.
Contudo, a “ponte” para outros discursos ou formas & gêneros da literatura não
necessariamente se faz como abordagem única e estruturante; trata-se de uma pequena
abertura que permitiria o diálogo com diferentes fontes para o debate, perceptíveis em
diferentes componentes curriculares, e, ampliando ainda mais a ideia, o alcance de outras
formas narrativas que compartilham com a literatura conceitos e possibilidades de se
contar uma história ou de motivar a fruição estética, que por sua vez ressignificam a leitura
e colocam a arte, seja no quesito da narratividade ou em outros aspectos, numa dimensão
contextual bem mais ampla do que o normal.
O que se apresenta aqui, portanto, é que entendamos a proposta de trabalho do
componente curricular de Literatura como, de fato, um projeto de leitura, concebido em
módulos ou em único bloco, mas onde, enfim, cada escolha representa uma “ponte” para
outra. Podemos considerar, assim, que o ensino de Literatura no Ensino Médio poderia se
dar como um projeto de Literatura Comparada na escola. Tal proposta, em princípio, daria
conta de uma necessidade vital dentro dos objetivos propostos pelo professor de Literatura:
a capacidade de produzir analogias que vão além de relações históricas e/ou sociológicas.
Tal opção se justificaria a partir do momento em que admitíssemos, assim, que
não é possível ler senão comparativamente (ou seja, racionalmente) (...) não se
trata tanto da opção entre comprar e não comparar... Não há de fato como não
comparar. Toda leitura é ativação, partilha e “cooperação interpretativa” (no
sentido que Umberto Eco dá a este conceito) (BUESCU, 2001, p. 23).
Considera-se, portanto, que a construção de um projeto de leitura jamais se dá a
partir de uma seleção aleatória de textos, o que significa, também, poder articulá-la com o
reconhecimento de certos cânones fundamentais e com o domínio da tradição literária, sem
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que isso esteja atrelado tão somente ao peso da tradição de um ensino conservador de
paradigma positivista. Ou seja: a historiografia não pode ser o fim único do ensino de
Literatura na escola, até porque, a priori, ele não privilegia a leitura como instrumento
fundamental do trabalho, o que acaba não proporcionando o grande objetivo de tal
componente curricular, qual seja a formação de leitores.
Aqui, considera-se, fundamentalmente, o trabalho com o Ensino Médio, onde se
revela de maneira mais gritante a problemática de um ensino pautado pela formação
enciclopédica e historiográfica. Na difícil articulação entre formação de repertório,
conhecimento da tradição literária e formação de leitores autônomos, acaba sendo
privilegiado o caminho mais “fácil”, até mesmo pela disposição causada pelos exames de
vestibular que lidam, predominantemente, com vasta carga de conteúdo, que quase sempre
impossibilita um mergulho na leitura, muito menos aquela que não está diretamente
associada à tradição canônica, um problema observado, inclusive, nas Orientações
Curriculares para o Ensino Médio:
Constata-se, de maneira geral, na passagem do ensino fundamental para o ensino
médio, um declínio da experiência de leitura de textos ficcionais, seja de livros
da Literatura infanto-juvenil, seja de alguns poucos autores representativos da
Literatura brasileira selecionados, que aos poucos cede lugar à história da
Literatura e seus estilos. Percebe-se que a Literatura assim focalizada – o que se
verifica sobretudo em grande parte dos manuais didáticos do ensino médio –
prescinde da experiência plena de leitura do texto literário pelo leitor. No lugar
dessa experiência estética, ocorre a fragmentação de trechos de obras ou poemas
isolados, considerados exemplares de determinados estilos, prática que se revela
um dos mais graves problemas ainda hoje recorrentes (MEC, 2006, p. 63).
Cyana Leahy sintetiza a problemática pedagógica que se estabelece na ação de
privilegiar a historiografia literária ao comentar que tal prática se caracteriza, não raro,
“pela leitura submissa, acrítica e artrítica dos livros didáticos de literatura ou de apostilas
condensadas”, onde se tem “uma memorização acelerada, incongruente e banal, voltada
para a historicidade de fatos, destituída de prazer, com pouca leitura” (LEAHY, 2004,
p.54), de forma que a colocar a leitura literária, basicamente, como servil a partir de
abordagens metodológicas que limitam os valores fundamentais que deveriam estar
inseridos na prática de formação de leitores, como também cita a autora: “o prazer, a
fruição, sensações, emoções, o diálogo verdadeiro com a palavra-arte” (LEAHY, 2004, p.
55), logo, já apontando para a necessidade de mergulho no objeto literário e acerca daquilo
que realmente deveria interessar num pretenso ensino de Literatura, a professora
complementa:
5
Raras foram as oportunidades de ampliação e aprofundamento do diálogo
genuíno, querendo genuinamente saber dos alunos suas respostas sensoriais,
emocionais, racionais ao lido: o que realmente sentiram, pensaram,
depreenderam do texto literário. Mais raramente ainda se procedeu à leitura
crítica, à análise teoricamente fundamentada, à interpretação sem maniqueísmo
ou polarização do texto (LEAHY, 2004, p. 55).
Sendo assim, de um ponto de vista pragmático, a Literatura como componente
curricular na no Ensino Médio deveria compreender três aspectos básicos: se abrir como
uma ferramenta transdisciplinar/interdisciplinar, onde, não necessariamente, é o
componente em questão que lida, sozinho, com a divulgação e fomentação da leitura na
escola, mas é quem acaba por centralizar boa parte da discussão, principalmente no campo
estético, e é de onde ela parte, afinal; ser compreendida como espaço para o trabalho sobre
o texto e sobre a fruição estética, que encaminha a compreensão, o debate e o
entendimento não gratuito do texto literário, dentro de uma dimensão social e cultural
maior, possibilitando, a partir daí, a formação do leitor; e também divulgar a tradição
literária a fim de possibilitar outro tipo de formação: a de um repertório de leitura mínimo
que esteja inserido (também) dentro de uma dimensão histórica.
Seriam três os elementos que deveriam orientar a prática pedagógica – que
interagiriam permanentemente. Nessa interação, percebe-se, contudo, que o segundo tópico
abre as possibilidades de intertexto universais da Literatura no diálogo com outras artes, o
que só ampliaria os outros dois aspectos previstos. Dessa maneira, como espaço para
formação de leitores e entendendo a necessidade de contemplar tal questão de forma ampla
e significativa, abrindo-se para todas as possibilidades e contatos com os múltiplos
universos que circundam o aluno, poderíamos entender que a fruição estética far-se-ia não
só de modo interdisciplinar ou intertextual, mas também de modo intersemiótico, logo, em
diálogo com diversas formas de escrita ou de narrativa e, ainda, com diferentes
manifestações artísticas. O domínio estético do ensino de Literatura, dessa maneira,
constituir-se-ia como um ensino, também, de arte, portanto, onde as ferramentas e
procedimentos da literatura comparada parecem dar razoável suporte.
A partir dessa reflexão, o que se propõe aqui é uma abordagem estruturada nas
possibilidades de diálogo da literatura com a história em quadrinhos, uma linguagem por si
só híbrida, que se apropria de elementos literários – em especial, ligados à narratividade –
para estabelecer uma relação praticamente indissociável entre palavra e imagem. A
imagem e a iconografia, contudo, são os aspectos talvez mais essenciais aos quadrinhos, o
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que possibilita notar que, por maiores que sejam as variações de nomenclaturas que tentam
dar conta das de tal linguagem, é verdadeiramente o suporte imagético que sustenta as
HQs, sejam ditas como narrativas gráficas, como graphic novels ou, ainda, como arte
sequencial. Assim, tomando como ponto de partida a ideia de um ensino de Literatura
voltado à formação de leitores que deve buscar não só o letramento literário, mas também a
formação de uma sensibilidade artística e a construção de um imaginário poético por meio
de outras manifestações e linguagens, tem-se que o que deve ser estimulado é uma postura
investigativa no aluno, capaz de colocá-lo como sujeito que questiona as possibilidades de
diálogo entre obras diferentes e/ou de diferentes linguagens artísticas. Logo, o que é
trazido nesta proposta é uma ideia de distanciamento de um ensino de Literatura
tradicional, que evoque tão somente o estudo da obra literária historicamente consagrada e
contextualizada que, quando muito, apenas recorre à identificação meramente acessória de
outras linguagens no campo das artes visuais.
As histórias em quadrinhos, nesse sentido, por sua estrutura híbrida, são capazes de
articular seu conteúdo com noções que se estabelecem no campo do literário e das artes
plásticas, explicitando, contudo, real potencial por meio da narrativa. De tal maneira que,
por mais que o literário seja o elemento central desse modelo de ensino – muito mais
voltado a um ensino de arte, pensando a arte de forma ampla –, haveria uma preocupação
toda especial em pensá-lo dentro de uma abordagem intertextual, que utilizasse as
ferramentas da literatura comparada, permitindo a uma abordagem que utilizasse os
quadrinhos como meio para articular estéticas, conceitos e temas literários também aquilo
que defende Antonio Luiz Cagnin como um necessário “aprendizado para a leitura da
imagem” (CAGNIN, 1975, p. 51), o que só ampliaria as noções de escrita e de texto,
como, inclusive, referem-se os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio
(PCNEM):
A utilização dos códigos que dão suporte às linguagens não visa apenas ao
domínio técnico, mas principalmente à competência de desempenho, ao saber
usar as linguagens em diferentes situações ou contextos, considerando, inclusive
os interlocutores ou públicos. (PCNEM, 1999, p. 96.)
3 Quadrinhos & literatura: hibridismo e leitura do texto imagético.
Particularmente, além de ampliar a noção de narrativa, se tomado como ponto de
partida o formato literário, as histórias em quadrinhos são uma linguagem artisticamente
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interdisciplinar, por ser dotada de um código próprio calcado na hibridização, como aponta
Nestor Canclini: “Há gêneros constitucionalmente híbridos, por exemplo o grafite e os
quadrinhos (...) Lugares de intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular,
aproximam o artesanal da produção industrial e da circulação massiva” (CANCLINI, 1998:
p. 336). A leitura da imagem revela uma poética particular que muitas vezes torna-se
complexa, principalmente a partir das muitas subversões às quais os quadrinhos se
permitem ao descontruir a própria estrutura narrativa. Antes disso, porém, as HQs revelam
uma maneira toda especial de se lidar com a leitura, revelada ainda no processo criativo,
como aponta Will Eisner:
“Escrever” para quadrinhos pode ser definido como a concepção de uma ideia, a
disposição de elementos da imagem e a construção da sequência da narração e da
composição do diálogo. É, ao mesmo tempo, uma parte e o todo do veículo.
Trata-se de uma habilidade especial, cujos requisitos nem sempre são comuns a
outras formas de criação “escrita”, pois lida com tecnologia singular. (EISNER,
2001, p. 122.)
Logo, como muitos autores irão apontar, histórias em quadrinhos não são literatura,
ainda que muitos busquem uma certa correspondência a partir de seu conteúdo
predominantemente narrativo e em termos como graphic novel, novela gráfica ou romance
gráfico. Como comenta o pesquisador Paulo Ramos,
Chamar quadrinhos de literatura, a nosso ver, nada mais é do que uma forma de
procurar rótulos socialmente aceitos ou academicamente prestigiados (...).
Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma,
que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos (RAMOS,
2009 , pág. 17).
As terminologias que acabam por designar, arbitrariamente, os quadrinhos não dão
conta, portanto, de todas as suas potenciais capacidades. O termo graphic novel e suas
correspondentes “traduções” limitam a arte sequencial, por exemplo, a uma relação direta
com o formato literário, de certa maneira estabelecendo um juízo de valor estético na
medida em que excluem da equação outras manifestações da linguagem quadrinizada
como a tira ou a charge, por exemplo. A própria noção de “romance” gráfico é de difícil
aceitação, na medida em que mesmo algumas obras rotuladas como tais não trazem apenas
um único arco narrativo fechado como é próprio do formato romanesco, explorando a
noção de fragmentação e de rompimento com a ideia do romance como espaço da grande
narrativa, da história com início, meio e fim, autônoma e totalizadora de uma certa
realidade no campo da ficção. Como afirmarão Vergueiro & Ramos:
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Diálogos entre linguagens ocorrem. Nem por isso deixam de manter suas
características autônomas. Ou será que alguém espera encontrar balões em um
romance? Não. Pois balões são uma convenção característica da linguagem dos
quadrinhos (VERGUEIRO e RAMOS, 2009, p. 37).
Aqui, percebe-se o quão interdisciplinar é o campo dos quadrinhos, capaz de, quase
que inevitavelmente, manter seu diálogo frequente com o literário, como percebemos
nesses diferentes rótulos dados às HQs. No entanto, é mais do que necessário perceber que,
ao se lidar com a narrativa gráfica, seja no suporte da arte sequencial propriamente dita,
seja em obras que apostam na subversão do próprio vocabulário básico das histórias em
quadrinhos – mas que ainda utilizam a linguagem imagética como meio fundamental – o
aspecto semântico se constitui num sensorialismo visual, muitas vezes ligado ao seu
código estrutural básico, como o enquadramento – muitas vezes, afinal, não se está a
considerar que o mesmo se dá sempre, uma vez que a própria noção de sequencialidade
tradicional e outros aspectos são frequentemente subvertido, principalmente em narrativas
mais contemporâneas; em outro âmbito, reconhecer nos balões e nas onomatopeias os
elementos fundantes da arte sequencial é subjugar a imagem frente ao texto, o que está,
aqui, tentando ser descontruído. O esforço por tal desconstrução necessária se dá por
considerar que a leitura dos quadrinhos necessita de uma sensibilidade especial pouco
estimulada no campo da educação e do trabalho com a leitura, qual seja a já referida
estimulação à sensibilidade na leitura da imagem. Talvez – cabe-nos tentar avaliar – o que
haja é uma pretensa sensação de compreensão advinda do vínculo permanente que há no
mundo contemporâneo com a comunicação visual, dentro da qual é possível perceber,
inclusive, uma forte presença das histórias em quadrinhos, como aponta Thierry
Groensteen (2004, p. 19); mas o pesquisador francês também dirá que, para se trabalhar
com as narrativas gráficas, é mais do que necessária uma pedagogia que seja capaz de lidar
com a imagem e a forma como a mesma se articula:
Ler as imagens, compreender suas ligações, provar as qualidades próprias de um
desenho, isto se aprende, ou, antes, isto se deveria aprender. Mas a ignorância
neste domínio é tal que alguns introduziram, não sem propósito, o neologismo
d’aniconète (aos moldes d’analphabete) [em nota de rodapé: “Algo como
anicônico, por analogia a analfabeto, ou seja, aquele que não entende os
ícones.”] (GROENSTEEN 2004, p. 42)
Dessa maneira, ao apontar a problemática relação com os “analfabetos do ícone”
que povoam a sociedade, Thierry acabará por sistematizar quatro grandes princípios a
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partir dos quais deveria se fundamentar uma pretensa pedagogia que fosse capaz de
mediar, adequada e profundamente, a leitura da imagem dos quadrinhos e, portanto, da
imagem em si. Dentre esses princípios, poderiam ser destacados pelo menos dois: formar o
gosto pela apreciação do desenho – assim, por extensão, fomentando uma maior
sensibilidade do leitor nas artes plásticas e em outras formas de narrativa gráfico-visuais –
e se libertar dos lugares comuns sobre as relações entre o texto e a imagem, um princípio
de certa forma inquietante, uma vez que é muito tênue a capacidade de colocar ambos
numa estranha e, inevitavelmente, hierárquica, posição de coordenação ou subordinação,
mais uma vez dando ao texto o maior grau de autonomia e estabelecendo que a imagem é o
mero complemento para a significação (GROENSTEEN 2004, p. 43-46).
Esta última ideia do escritor francês, logo, interessa particularmente. Moacy Cirne
dirá que para ler e interpretar o universo narrativo das HQs é necessário conviver com
aquilo que ele chama de “Poeticidade Libertária” (CIRNE, 2000, p. 16), onde seus
recursos, sua “gramática” (por assim dizer) e sua linguagem, historicamente, adquiriram tal
grau de autonomia que se tornaram capazes de se rearticularem constantemente.
Groensteen afirmará que tal apelo condiz com uma motivação e uma “disposição panvisual1” (GROENSTEEN 2004, p. 44); Cirne amplia tal compreensão ao refletir sobre o
fato de que a especificidade dos quadrinhos é complexa e reside
No modo narrativo visual capaz de agenciar elipses gráficas e espaciais. O
desencadeamento de imagens (“congeladas” no tempo e no espaço) será sempre
relacional, cuja tessitura significante apontará para a eficácia das relações críticas
entre os diversos planos/enquadramentos de cada série ou estória. Caso
contrário, não teremos um quadrinho de consequências estéticas, inclusive
narracionais e gráficas, realmente produtivas. (...) o elemento semântico da
informação textual, contido em balões ou simples legendas, filtra-se na travessia
icônica de todos os elementos constitutivos do discurso quadrinizante. (...) a
semioticidade dos quadrinhos pode ser localizada numa certa grafia narrativa,
que faz da relação entre as imagens uma relação estrutural, lugar estético de um
não-dito significante (CIRNE, 2000, p. 29).
Passemos a alguns exemplos: a HQ Maus – A História de um Sobrevivente, de Art
Spielgman, é, reconhecidamente, um clássico dos quadrinhos. Testemunho do pai do autor
acerca das experiências vividas durante a II Guerra Mundial, quando fora perseguido pelos
nazistas por ser judeu, a obra imprime um olhar particular sobre o tema do holocausto a
1
“o que funda a linguagem da história em quadrinhos é precisamente a multiplicidade de imagens em
situação de co-presença no seio de um multi-quadro” (GROENSTEEN 2004, p. 44).
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partir, justamente, de seu conteúdo gráfico. Não fosse isso, talvez a obra perderia muito de
sua força dramática. O que se tem em Maus é a representação dos judeus como ratos e dos
nazistas como gatos, onde o autor ainda acaba experimentando outras abordagens, como o
ato de desenhar os personagens do bloco soviético como porcos. O traço simples e
imediato de Spielgman é quase um contraponto à representação surrealista do rosto dos
personagens. A simples ideia de compor uma metáfora da perseguição dos nazistas aos
judeus, contudo, não é a sua única possibilidade de leitura: os porcos do bloco soviético
são, por si só, uma possível referência ao clássico A Revolução dos Bichos, de George
Orwell; a questão de que a diferenciação dos “bichos” se dá por culturas, ideologias ou
questões de âmbito filosófico, político e sociológico e não somente étnico ou de
nacionalidade reproduz a leviana ideia dos nazistas em torno do arbitrário conceito de raça,
em geral atribuído aos judeus como uma “raça menor” ou, ainda, uma “raça de inumanos”;
o uso do rato reforça o rebaixamento dos judeus a um tipo grotesco e nojento, caricatura da
degradação humana, tal como propagavam (e propagandeavam) os nazistas, inclusive a
partir da imagem de Mickey Mouse, representante da indústria cinematográfica
hollywoodiana, composta, em grande parte (à época e também hoje) por judeus e/ou
descentes de judeus. Fora isso, sobram outras grandes ideias visuais na obra, como o
conflito de identidade do autor com a sua própria cultura (judaica), onde se troca o rosto
por uma máscara, representada assim, portanto, a fim de denotar um simbolismo. Outro
exemplo se dá no momento em que Art mostra-se cansado e demasiadamente
sobrecarregado com o trabalho de composição do livro: além da metalinguagem, um traço
frequente nos quadrinhos adultos, um enquadramento em plano mais aberto (estabelecendo
um dinamismo na troca dos quadros) revela outro simbolismo evidente, uma pilha do que
parecem corpos de judeus mortos nos campos de concentração, como se aquela memória
estivesse, de fato, preenchendo a vida do autor.
(Fonte: SPIELGMAN, 2009, p. 201 / p. 157).
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Figura 1 – A montanha de corpos se avoluma nas memórias do holocausto recolhidas por Art Spielgman.
(Fonte: SPIELGMAN, 2009, p. 201 / p. 157).
Figuras 2 e 3 – em Maus, de Art Spielgman, o recurso da máscara é usado, mataforicamente, tanto para
representar um conflito de identidade quanto um “disfarce”, na medida em que alguns judeus tentam se
infiltrar na massa e não serem descobertos.
Outro aspecto bastante interessante na narrativa de Maus surge a partir de outro
exercício de metalinguagem: em dado momento, tomamos conhecimento de uma outra
história produzida por Art Spielgman no passado, O Prisioneiro do Planeta Inferno; passase, então, à leitura de uma história em quadrinhos dentro de outra história em quadrinhos.
Nessa história, contudo, os personagens são humanos representados como humanos e o
contraponto gritante que se estabelece entre a graphic novel sobre o holocausto e a
pequena história que surge dentro dela mostra-se um exercício estético peculiar: como
analisou Scott McCloud, “Em O Prisioneiro do Planeta Inferno, de Spielgman, linhas
expressionistas representam uma história de horror da vida real” (MCCLOUD, 2005, p.
126.), por outro lado, o traço mais “cru” e menos exagerado de Maus torna tudo muito
mais sóbrio; assim, o horror da guerra e do genocídio, que é mais abrangente (mais geral),
tem formas mais simples e objetivas (quase documentais) de representação, mas os
personagens aparecem de forma “absurda”, como num exercício mais profundo de
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metáfora visual; já o “expressionismo” de O Prisioneiro do Planeta Inferno reproduz os
conflitos particulares dos personagens, ilustrando o mundo ao seu redor em plena
deformação a fim de dialogar com seu personagem principal, apresentando, contudo, seres
humanos ilustrados como tais.
Nota-se, então, que o aspecto gráfico é norteador da experiência plena de leitura de
Maus – A História de Um Sobrevivente. Por mais que eventualmente seja solicitado algum
tipo de experiência prévia do leitor (no caso de certos dados referentes à guerra e ao
período do nazi-fascismo na Europa), a significação das imagens, contudo, não depende
integralmente disso (pelo menos neste caso específico). Poderíamos, contudo, citar alguns
exemplos em que a formação de um “repertório” interpretativo auxiliaria e ampliaria a
leitura do texto imagético no plano do conteúdo. Por mais que neste trabalho esteja em
foco a formação de uma sensibilidade do leitor de imagem, é necessário a articulação de
diferentes níveis sensíveis/sensoriais a fim de que tal leitor seja plenamente capaz de
produzir relações diversas. E lembremos, como aqui já apontado, que este é grande foco da
abordagem aqui prevista: uma abordagem essencialmente intertextual.
Will Eisner já proclamara que
A compreensão de uma imagem requer uma comunidade de experiência.
Portanto, para que sua mensagem seja compreendida, o artista sequencial deverá
ter uma compreensão da experiência de vida do leitor. É preciso que se
desenvolva uma interação, porque o artista está evocando imagens armazenadas
nas mentes de ambas as partes (EISNER, 2001 , pág. 13).
Voltemo-nos, então, a outros dois exemplos, ambos ligados ao mais popular dos
temas das narrativas gráficas: os heróis (ou super-heróis). Na belíssima Asilo Arkham,
ilustrada por Dave McKean e roteirizada por Grant Morrison, Batman deve invadir o
manicômio do título para conter os prisioneiros que tomaram conta do local. Em meio à
narrativa que se desenrola, vemos o protagonista esgueirar-se em meio aos espaços mais
traiçoeiros do asilo, ao mesmo tempo em que, como é comum nas histórias do herói, passa
a questionar o porquê em se sacrificar daquela forma. Com isso, resgatam-se imagens do
passado, em curtos flashbacks ou quadros sutis que remetem às memórias do personagem.
Num desses momentos, uma das cenas mais repetidas e reinterpretadas dos quadrinhos
volta à tona: Batman relembra da noite em que seus pais foram mortos. Desta vez, porém,
dois pequenos detalhes ressignificam a cena, talvez por fruto do fluxo de consciência do
próprio personagem, na leitura dos autores: na saída do cinema, Bruce Wayne (a
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verdadeira identidade do herói), ainda criança, está acompanhado do pai e da mãe; no
letreiro do cinema, podem-se ler dois anúncios de filmes distintos, Bambi e Zorro; a leitura
possível remete à orfandade de Bruce Wayne, ligada ao primeiro filme, e à imagem icônica
que este escolhera para compor seu vigilante mascarado, que dialoga com o segundo.
Contudo, é possível que se questione o fato de que estamos lidando com a presença do
texto em cena. Observe-se, entretanto, que o texto, aqui, não se articula em nível semântico
com enunciados, frases, diálogos ou sintagmas quaisquer – são palavras “soltas” que tem
uma profunda relação imagética com a composição do cenário, onde sua significação ainda
depende de toda uma apropriação do conteúdo psicológico do personagem. Will Eisner
afirmará que este é um recurso muito presente nos quadrinhos, a palavra lida como uma
imagem: “o letreiramento, tratado ‘graficamente’ e a serviço da história, funciona como
uma extensão da imagem. Nesse contexto, ele fornece o clima emocional, uma ponte
narrativa (...)” (EISNER, 2001, pág. 10).
(Fonte: MORRISON e MCKEAN, 2003, p. 54.)
Figuras 4 e 5 – A versão de Grant Morrison e Dave McKean para a cena do assassinato dos pais de Bruce
Wayne.
Em outra graphic novel, a obra Marvels, de Kurt Busiek e Alex Ross, a
intertextualidade no campo gráfico se dá por meio da homenagem. Em dado momento, o
ilustrador Alex Ross aproveita para homenagear um famoso quadro do pintor norteamericano Edward Hopper: Falcões da Noite, paradigma do Realismo estadunidense. A
referência, mais uma vez, não vem gratuitamente e pode-se perceber neste movimento ao
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menos uma questão em particular: o traço de Ross, bastante realista, bebe na fonte de
pintores como Hopper e, neste caso, a homenagem vem naturalmente, como um gesto
cuidadoso em explicitar as referências do quadrinista. Além disso, todo o tom de Marvels é
pautado pela proposta de identificar os super-heróis dentro de um contexto verossímil,
abordando-os dentro de uma realidade histórica, onde o verdadeiro protagonista é,
justamente, um fotógrafo que presencia o surgimento das diversas gerações de super seres
desde os anos 1940. Um fotógrafo como protagonista é um elemento a mais de distinção
no traço de Alex Ross, pois este, muitas vezes, chega quase ao nível do hiper-realismo.
(Fontes: BUSIEK e ROSS, 2010, p. 35; HOPPER, http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:800pxNighthawks.jpg)
Figuras 6 e 7 – Intertextualidade e referência em Marvels: o traço realista de Alex Ross bebe na fonte do
Realismo de pintores como Edward Hopper.
Tendo já percebido a importância da sensibilidade para com o texto imagético,
observa-se, também, que Marvels aponta, logo, na direção do outro tema proposto neste
artigo: pensando mais objetivamente no trabalho professor de Literatura, o desafio maior
se encontraria na possibilidade de diálogo entre diferentes textos, a partir, portanto, de uma
proposta dialógica entre diferentes modalidades artísticas. O estímulo à fruição estética no
campo da narrativa gráfica se dá de forma diferente do que na literatura, porém, ambos se
comunicam por sua finalidade última, qual seja a de produzir um leitor atento, capaz de
articular os elementos estruturantes a fim de dar a eles funcionalidade dentro da obra e de
ampliar sua compreensão. Se num determinado momento, portanto, a relação se dá com os
componentes próprios da linguagem que está sendo especificamente analisada, chega-se,
logo, ao espaço de transição, onde a obra valer-se-á de seu conteúdo temático e de sua
proposta narrativa e/ou conceitual. Com isso, não apenas Marvels como o próprio Asilo
Arkham seriam ferramentas interessantíssimas para se discutir a figura do herói na ficção,
por exemplo, tema abundante e ilimitado para a literatura, presente como marca registrada
dos quadrinhos pelo viés da fantasia, contudo, sendo capaz de apresentar abordagens e
temas diversificados, seja pelo viés do herói como protagonista, seja, também, tratando a
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figura do herói “épico” ou do super-herói por um viés realista como o de Marvels; a
literatura romântica e a transição para o Realismo podem ser um bom ponto de partida (ou
de chegada, dependendo da abordagem escolhida pelo professor); além disso, a noção do
herói problemático, formulada por Georg Lukács, por exemplo, pode ser analisada em
diversas HQs, inclusive, mais uma vez, nestas que trabalham a figura do herói em seu
sentido mais épico ou aventureiro, como é o caso do Batman de Asilo Arkham. No caso de
Maus, a literatura de testemunho, a narrativa centrada no tema da guerra ou, ainda, a
temática judaica também encontram farto material de diálogo com a literatura, tanto nas
décadas passadas quanto na literatura contemporânea; isso sem contar os próprios
subgêneros biografia e autobiografia.
Como já reiterado aqui várias vezes, a particularidade do formato HQ possibilita
uma leitura autônoma desta forma de arte. Percebemos isso, também, quando vemos que
tal autonomia se constitui na profusão de temas, títulos, públicos e variantes narrativas que
há dentro do próprio campo dos quadrinhos. Assim, as possibilidades de articulação entre
literatura e quadrinhos são vastíssimas, como seriam, também, com o cinema, com o teatro,
etc. Dessa forma, estamos tratando de um projeto de leitura que, na medida em que
subverte expectativas do próprio currículo, amplia as possibilidades de abordagem para,
enfim, dar foco ao trabalho com o texto – seja imagem, seja palavra, seja sua constante
hibridização nas HQs, ou seja, ainda, a imagem articulada a outros recursos próprios da
visualidade. Assim, a abertura para os quadrinhos – que traduz a almejada abertura para as
outras linguagens – também recorre em novas ideias: desmistifica a ideia de trabalhar tão
somente o cânone, mas também não significa retirar a presença dos clássicos; em tempo,
estimula a capacidade do aluno em explorar uma perspectiva dialógica, o que estamos a
definir como uma postura investigativa do educando. O conceito de herói é um exemplo
disso. Outro tema possível, recorrente em nossa historiografia (e note-se que estamos a
considerar a historiografia também como uma das muitas possibilidades de leitura da obra
literária) seria o regionalismo: obras para diversos públicos, como Estórias Gerais, de
Welington Srbek e Flávio Colin – bem como quase toda a obra de Colin –, Um Outro Pastoreio, de
Rodrigo dMart e Indio San, Bando de Dois, de Danilo Beyruth e as histórias da Turma do Pererê,
de Ziraldo, seriam alguns exemplos a serem trabalhados. A narrativa de formação, terreno fértil
para a sedução e formação do leitor, que tem na literatura brasileira representantes como Raul
Pompeia, Fernando Sabino, Daniel Galera, Moacyr Scliar, Jorge Amado – além das possibilidades
com a literatura estrangeira –, tem, também nas HQs, autores respeitadíssimos, como Craig
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Thompson e Marjane Satrapi. Outro exemplo ligado à historiografia literária, a narrativa de
viagem, tem um correspondente à altura na novela gráfica: Hugo Pratt e as narrativas de seu antiherói navegador Corto Maltese. A representação da cidade na ficção, tema de obras fundamentais
como O Cortiço, tem na obra do quadrinista Will Eisner um de seus maiores artistas. Isso sem falar
da literatura engajada e da sátira política, temas fundantes de uma verdadeira tradição do quadrinho
nacional, calcado na charge e na tira de humor. Neste ponto, mais uma vez, não só a literatura e o
quadrinho nacional fornecem possibilidades enormes, e seria mais do que necessário redimensionar
o currículo de forma a se articular com autores estrangeiros (outro grande tabu na formação dos
projetos de leitura na escola).
Enfim, para cada uma dessas abordagens, novos estilos se impõem, novos desafios em
torno da decifração do código visual também. No entanto, em todos os aspectos, o trato com o texto
se faz presente, uma vez que há estimulo à inquietação, a desacomodar o leitor de uma posição
passiva e voltada a preceitos que limitam a análise literária. Nesse quesito, as histórias em
quadrinhos, ao contrário do que se pensa, possibilita uma leitura ativa, baseada num código
linguístico híbrido e, por isso, vocacionado à subversão do modelo interpretativo e analítico dos
estudos literários, podendo, com certeza, ampliá-lo e auxiliá-lo.
4 Considerações finais
Um ensino de Literatura produtivo é aquele que almeja, a todo custo, a formação de
leitores. Contudo, é necessário discutir os domínios da Literatura como componente
curricular – será que o campo da linguagem, neste caso, não deveria abarcar os outros
fenômenos artísticos de fato?
Tendo em vista a complexidade do texto imagético dentro da arte sequencial aqui
brevemente analisada e todas as possibilidades sugeridas a partir de uma abordagem dialógica entre
literatura e HQ, é necessário, enfim, compreender que um projeto de formação de leitores deve
ampliar seu escopo e ir muito além da historiografia. A capacidade de articulação entre diferentes
modalidades textuais e artísticas, bem como diferentes gêneros, dá ao educando diferentes chances
de fruir e agir sobre o texto, encontrando, ele próprio, em algum momento, a sua própria “voz”
como leitor, logo, consciente de que é um sujeito capaz de compreender o que está além da
superfície. Com isso, é necessário que o professor seja um mediador atento e sensível, capaz de
manter uma postura, ao mesmo tempo, próxima e distante, numa esfera ampla o suficiente para
abarcar os diálogos comparatistas, mas também capaz de refinar os discursos a fim de conferir as
especificidades necessárias à autonomia de determinada linguagem. Assim, percebe-se que a
síntese de Tânia Carvalhal é bastante adequada:
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A noção de intertextualidade abre um campo novo e sugere modos de atuação
diferentes ao comparativista. Do “velho” estudo de fontes para as análises
intertextuais é só um passo. Mas essa é uma travessia que significa para o
comparativista engavetar os antigos conceitos (e preconceitos) e adotar uma
postura crítico-analítica que seus colegas tradicionais evitavam. Principalmente,
as novas noções sobre a produtividade dos textos literários comprometem a
também “velha” concepção de originalidade (CARVALHAL, 1992, p. 53).
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PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS DO ENSINO MÉDIO. Brasília: MEC,
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LITERATURA E ENSINO_4_Vinicius da Silva Rodrigues