O DANO ESTÁ FEITO
Joaquim Falcão
De repente o Judiciário mudou sua pauta. Em vez de combater o nepotismo,
extinguir adicionais salariais, estabelecer metas de desempenho, implantar
digitalização e estimular a conciliação, a pauta é outra. É aumento de salários,
brigas públicas, judicialização de conflitos internos. É incrível a capacidade do
Judiciário de destruir sua legitimidade. De abalar a confiança dos cidadãos.
Durante mais de 15 anos, impacientes com o nepotismo e a lentidão, a
sociedade, o Executivo e o Congresso defenderam o controle externo do Poder
Judiciário. O país se mobilizou. O Judiciário foi contra. Negociou-se a criação do
CNJ, o controle de juízes, feito por uma maioria de juízes, com representantes
de outros setores. O CNJ resulta deste acordo. É um contrato entre Congresso,
Executivo, sociedade civil e o próprio Judiciário, a favor da ética e da eficiência
judiciais.
Hoje, a Associação dos Magistrados Brasileiros pressiona o Supremo para
romper unilateralmente este contrato. Querem retirar o poder do CNJ de julgar
e punir os juízes como manda a Constituição. Pretende-se transformar o CNJ
em conselho honorário. Não mais uma responsabilidade democrática.
Este
objetivo
político
reveste-se
de
argumentos
aparentemente
constitucionalizados, mas no fundo contrários à Constituição. O contrato político
que criou o CNJ foi formalizado no artigo 103 B da Constituição, que concede
ampla competência ao CNJ para receber qualquer reclamação contra os juízes,
sem nenhuma condição.
Qualquer do povo pode ir ao CNJ. Não precisa ir antes ao Tribunal local, como
quer a AMB. O Congresso deu ampla competência até para de ofício apurar
irregularidade. Pode agir por iniciativa própria sem nem mesmo ter denúncia de
terceiros. Esta ampla competência constitucional é garantia da própria
magistratura. O CNJ a exerce com parcimônia.
Agora, alguns pretendem extinguir o CNJ, deixando-o vivo. Lembro-me de
Plutarco, quando disse: a pior das justiças é aquela que é injusta, mas parece
justa. O pior CNJ é aquele que inexiste, mas parece existir.
O ataque é indireto. Inexiste um só dispositivo na Constituição que diretamente
fundamente a decisão de, em nome da autonomia do tribunal, limitar-se o CNJ.
A autonomia dos tribunais não é absoluta. Na democracia não há autonomias
absolutas.
Ao aprovar a emenda 45, que criou o CNJ, o Congresso disse claramente que
seus poderes são compatíveis com os dos tribunais. O próprio Supremo, ao
confirmar a constitucionalidade do CNJ em 2005, também.
A encruzilhada levada ao Supremo é falsa. A competência do CNJ não é
incompatível com a das corregedorias dos tribunais. Uma não elimina a outra.
São concorrentes, como afirma Ayres Britto. Na democracia, quanto mais
controle a favor da ética e da eficiência, melhor. A demanda é política e
corporativa . Foi derrotada ontem, quer ressuscitar hoje.
A decisão do Supremo não é sobre a morte em vida do CNJ. É sobre valores
éticos e sociais. Estão em jogo a concretização da imparcialidade no julgar e a
liberdade do cidadão de ir contra os poderosos do momento.
Como exigir de um advogado processar um desembargador no mesmo tribunal,
a quem mais tarde terá de recorrer no exercício de sua profissão?
Onde e como estes valores — a imparcialidade no julgar e a liberdade de
denunciar irregularidades — podem melhor ser concretizados: nas
corregedorias locais ou no CNJ? Ou nas duas, concorrentemente?
O dano está feito. As consequências da nova pauta serão maior atrito entre os
poderes. Entre os magistrados e os demais profissionais jurídicos. Uma mídia
mais atenta e investigativa em denúncias. Mobilização congressual. Confiança
decrescente na Justiça. O CNJ de alguma maneira apaziguava. Tinha alguém
imparcial atento a favor da ética e da eficiência. E agora?
Joaquim Falcão é professor de Direito Constitucional da FGV-Rio e membro do IAB.
* O texto publicado não reflete necessariamente o posicionamento do IAB
Download

Acesse a íntegra do artigo - Instituto dos Advogados Brasileiros