Justiça Restaurativa e Processo Circular
nas Varas de Infância e Juventude
Kay Pranis
Abril de 2010
Venho de uma outra cultura e talvez nem tudo que eu disser será útil para seu
ambiente cultural. Por favor, aproveitem o que for útil e ignorem o que não for.
Vocês saberão melhor do que eu de que modo aplicar melhor a justiça
restaurativa e o processo circular. Partilharei com vocês os princípios gerais e a
estrutura da justiça restaurativa e dos círculos, e apresentarei alguns exemplos
do que tem sido realizado. No entanto, vocês são os portadores da experiência e
conhecimento que lhes permite conceber como estas ferramentas funcionarão
melhor para vocês.
Gostaria de observar também que, embora eu vá narrar alguns exemplos de
implementação, tais casos não são típicos da justiça juvenil nos Estados Unidos.
Nosso sistema ainda não é restaurativo por todo o país, mas há bolsões onde se
está realizando um trabalho maravilhoso de justiça restaurativa, que nos dão a
esperança de que no futuro estaremos seguindo nessa direção.
Imagens
Gostaria de começar partilhando com vocês alguns quadros que darão uma idéia
geral sobre o assunto:
Com o apoio do Círculo Comunitário um jovem (que havia roubado o cartão de
crédito do pai e feito compras de mais de mil dólares) pede desculpas a seu pai,
reverte as retribuições de seu imposto de renda federal e municipal para seu pai
e presta serviços comunitários para a igreja local. Seu pai declara: “Ganhei meu
filho de volta”.
Uma dúzia de adolescentes realizam reparos de cerca de 12 mil dólares numa
casa que haviam depredado. A vítima passa para olhar o andamento do trabalho
e os rapazes contam animadamente sobre o tudo que conseguiram fazer.
Uma mulher, que pertencia a um Círculo Comunitário de Justiça numa cidade do
interior passa numa esquina e vê uma das “crianças do Círculo” se envolvendo
numa briga com um outro grupo de crianças. Em virtude de seu relacionamento
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com o jovem dentro do Círculo, ela pára, abre a porta do carro e diz para o
menino entrar. Ele entra no carro e se livra de um possível problema.
Definição de Justiça Restaurativa
A justiça restaurativa surgiu como estrutura para orientar reações ao crime e à
delinquência em todos os níveis do sistema jurídico para a infância e juventude.
Howard Zehr identifica o foco central da justiça restaurativa como sendo o
“endireitar as coisas” e propõe três pilares centrais para essa estrutura que
procura endireitar as coisas: 1) A justiça restaurativa tem seu foco no dano ou na
ofensa cometida.
2) Danos ou ofensas geram obrigações.
3) A justiça
restaurativa promove engajamento e participação (Zehr, 2002). Portanto a
justiça restaurativa abarca reações ao crime e à delinquência que procuram
compreender, reconhecer e reparar danos e ofensas. Para chegar a compreender,
reconhecer e reparar, é preciso que haja participação direta de vítimas, ofensores
e as comunidades afetadas no processo judicial. Uma vez que o dano é o
problema central dessa estrutura, a justiça restaurativa requer uma reação ao
crime que não constitua outro dano ou ofensa.
Dentro da estrutura restaurativa a responsabilidade mutua é o tear sobre o qual o
tecido da comunidade se forma. O crime e a delinquência representam uma falta
de responsabilidade – da parte do ofensor, evidentemente, mas por vezes
também da parte da comunidade. A justiça restaurativa visa restabelecer a
responsabilidade mutua.
A justiça restaurativa concentra a reação ao crime e à delinquência no
restabelecimento de todos os efeitos negativos associados ao crime. Portanto,
será restaurativa qualquer ação que aponte na direção do restabelecimento de
qualquer pessoa afetada por um crime – seja a vítima, amigos ou familiares da
vítima, membros da comunidade, o ofensor, ou a família e amigos do ofensor –
minimizando conscientemente a probabilidade de qualquer dano ou ofensa no
futuro.
A justiça restaurativa tem raízes muito antigas e amplas. Processos focados no
reparo dos males e no reconhecimento de erros estavam presentes na maioria
das culturas antigas e ainda hoje são praticados entre povos indígenas de todo o
mundo. Muitos de nós utilizamos tais práticas em nossas famílias e comunidades.
No entanto, o sistema de justiça formal da sociedade ocidental do século 20 não
se baseou na filosofia da justiça restaurativa.
Dos Princípios à Prática – Perguntas Balizadoras e Responsabilidade
A justiça restaurativa é uma filosofia. Nas palavras de Dan Van Ness “Se o crime
é uma chaga, então a justiça é a cura”. E Howard Zehr identifica os princípios:
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• Foco no dano,
• Identificação das obrigações,
• Envolvimento de todos os afetados pela ofensa
• Utilização de um processo inclusivo e colaborativo.
Com traduzir esses princípios para a ação? O que fazer se desejamos agir
restaurativamente? Howard Zehr oferece um método elegante e simples para
criar uma reação restaurativa simplesmente mudando as perguntas que fazemos
diante de uma ofensa.
A prática tipicamente não restaurativa do sistema norte-americano de justiça de
infância e juventude é orientada pelas seguintes perguntas:
Que lei foi desobedecida?
Quem desobedeceu a lei?
O que devemos fazer a essa pessoa por ela ter desobedecido a lei?
A reação restaurativa é fazer um outro conjunto de perguntas:
Quem sofreu o dano?
O que essas pessoas precisam para começar a reparar o que está errado?
Quem tem obrigação de tentar atender a essas necessidades?
Quem deve participar do processo de determinar o que precisa ser feito para
reparar os danos?
Que processo colaborativo específico seria mais útil par determinar como reparar
os danos?
Esta mudança de perguntas nos leva numa direção totalmente diferente em
termos de ação. Coloca o dano e, portanto, a vítima e suas necessidades, no
centro. Uma reação restaurativa requer a compreensão de quem foi prejudicado e
o que exatamente significou o dano para aquela pessoa ou pessoas. E requer um
plano para reparar os danos e males na medida do possível. Parte ainda do
pressuposto de que profissionais, sozinhos, não podem responder a essas
questões. Os profissionais podem facilitar o processo ajudando aqueles que foram
afetados a, eles mesmos, responderem a estas questões sobre a natureza do
dano e como pode ser reparado.
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Esse novo conjunto de perguntas também traz um novo entendimento do que
seja responsabilização. No corrente sistema de justiça juvenil a responsabilização
é entendida como “sofrer o castigo”. Você foi responsabilizado quando sofreu a
punição. Na estrutura restaurativa a responsabilização é definida como
“desempenhar ações para reparar o dano e compensar a vítima”. Tal mudança na
definição de responsabilização tira o ofensor do papel de recebedor passivo do
castigo e o coloca na posição de agente que endireito o que está errado. As
perguntas de Howard Zehr nos ajudam a esmiuçar os elementos da
responsabilização que definem responsabilidades de ação específicas a serem
assumidas pelos ofensores.
No arcabouço restaurativo a responsabilização contém os seguintes elementos:
• Reconhecer que eu causei o dano.
• Reconhecer que eu podia escolher e escolhi aquilo.
• Compreender como os outros foram atingidos pelo que eu fiz (vítimas,
comunidade, minha própria família, ...)
• Agir para reparar os danos (físicos e emocionais).
• Agir para mudar hábitos e estilos de vida que contribuem para a escolha de
cometer um crime (evitar que o mal se repita)
As perguntas restaurativas e os elementos de responsabilização restaurativa são
guias muito funcionais para a implementação das práticas restaurativas. Eles nos
mostram o que fazer em nossas intervenções se queremos ser restaurativos.
Práticas de Justiça Restaurativa
Em virtude de a justiça restaurativa ser uma filosofia para orientar todas as
atividades em reação ao crime e à delinquência, ela não constitui um conjunto de
práticas fixas. Mas há várias práticas que surgiram sob esta filosofia e que
exemplificam a mesma, e que não raro constituem o cerne dos esforços para
construir um sistema mais restaurativo. As práticas em geral associadas à justiça
restaurativa são aquelas que reúnem vítimas e ofensores, ou vítimas, ofensores e
membros da comunidade para facilitar um diálogo que determine o que é preciso
para reparar os males cometidos e construir um futuro melhor. Muitas outras
práticas, que trabalham exclusivamente com ofensores ou exclusivamente com
vítimas, também procuram caminhar na direção da justiça restaurativa dando
apoio a vítimas, envolvendo os ofensores na reparação dos danos, aumentando
sua conscientização quanto às suas responsabilidades ou outros objetivos
restaurativos – mesmo não incluindo um encontro presencial entre vítima e
ofensor.
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As práticas de encontro presencial mais comuns são:
• Mediação vítima-ofensor - um diálogo presencial entre vítima e ofensor
mediado por um facilitador.
• Conferência grupal restaurativa – um processo de diálogo facilitado envolvendo
a vítima, pessoas que apóiam a vítima, o ofensor e pessoas que o apóiam.
• Círculos de construção de paz – um processo facilitado que envolve a vítima,
seus apoiadores, o ofensor e seus apoiadores, membros da comunidade e
membros relevantes do sistema judicial.
Esses processos de diálogo presencial se concentram no entendimento dos danos
sofridos por cada um dos presentes, depois passando ao planejamento de como
sanar esses danos ou males na medida do possível. Permitem que todos falem e
partilhem suas histórias, num ambiente que tem como principal característica o
respeito por todos.
Todos esses processos pressupõem que o ofensor reconhece a denúncia ou
queixa-crime. A participação da vítima é sempre voluntária e a participação do
ofensor em geral é voluntária ou representa algum grau de aceitação se
comparada a outras alternativas. Esses processos podem ser usados para
estabelecer as obrigações dos ofensores em muitas fases do processo penal:
encaminhamento informal, encaminhamento formal, depois da denúncia e antes
da pronúncia, depois da pronúncia e antes da sentença, como parte dela. O
processo circular pode ser utilizado para a pronúncia/sentenciamento e, nesse
caso, constituirá um Círculo de Sentenciamento. Tais processos são utilizados
também depois da condenação como parte do processo de cura ou reintegração à
comunidade, após o período de privação de liberdade.
Descreverei o processo circular em maiores detalhes, pois ele tem grande
aplicabilidade nas varas de infância e juventude. Começarei narrando a história
de como um círculo funciona.
Crise Familiar – Menino de Nove Anos fora de Controle
Mark, de nove anos, passou a ser alvo da atenção do serviço social porque
roubou 140 dólares de sua avó, uma motorista de táxi que deixava o dinheiro das
gorjetas jogado pela casa. Nos dois meses após esta queixa houve mais 13
queixas contra Mark. Seu comportamento saíra totalmente de controle.
Ele vivera com sua mãe durante os três primeiros anos de vida, período no qual
sofreu abusos físicos e sexuais por parte do namorado da mãe. Quando o juizado
de menores pediu para tirar a guarda da mãe, a avó veio buscá-lo, e o levou para
um outro estado onde ele passou a viver com sua irmã de seis anos. Cerca de
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um ano e meio antes do incidente do furto, a mãe de Mark, Colleen, veio morar
com eles. Ela tinha pouquíssima paciência e nenhuma capacitação como mãe. O
menino queria uma mãe, mas ela o rechaçava. A avó continuou a cargo da
criação, mesmo quando a mãe ocasionalmente tentava agir como tal, mas
também a avó não tinha a competência necessária. Embora a avó vivesse
naquele bairro há muitos anos, ela e Colleen viviam bastante isoladas.
Reuniu-se um Círculo para dar apoio à família e tentar entender seus problemas.
Participaram do Círculo o próprio Mark, Colleen, a avó, a irmã Mary, uma amiga
da família, uma vizinha, as mães de dois amigos de Mark, um voluntário da
comunidade que pertencia a um programa de avós adotivos, um comissário
municipal envolvido com justiça juvenil, um terapeuta de saúde mental, membros
da Associação Cristã de Moços, um voluntário da rede de segurança da
comunidade, e o facilitador comunitário voluntário. As mães dos amigos de Mark
estavam furiosas porque achavam que Mark estava levando seus filhos para o
mal caminho. A vizinha inicialmente mostrou raiva e medo. Ela tinha feito uma
das primeiras queixas contra Mark. No Círculo, a vizinha revelou, chorosamente,
que seus próprios filhos tinham se metido em encrencas no passado. Seu marido
lhe dissera para não se envolver, mas ela não concordou, pois não conseguia ficar
ali vendo aquele menino ficar igual aos filhos dela.
Durante o Círculo, os participantes manifestaram sua frustração em relação a
Mark, seus medos em relação a seu futuro, sua sensação de impotência, sua
preocupação com aquela família, e seu desejo de que Mark, sua família e o bairro
estivessem em segurança. Mark, cujo pai jamais participara de sua vida, reagiu
muito bem aos homens do Círculo. Em geral arqueado e sem fazer contato visual
com as pessoas, ele se sentava ereto e olhava quando os homens estavam
falando.
O Círculo chegou a um plano de consenso e Colleen (a mãe) e a avó se
comprometeram a frequenter aulas de como educar os filhos, e todos passaram a
fazer terapia familiar. O comissário local concordou em tentar conseguir uma
vaga para que Mark voltasse à escola, de onde tinha sido expulso por levar um
canivete para a aula. O avô adotivo concordou em passar tempo de lazer com
Mark e ajudá-lo na lição de casa. Os membros da ACM concordaram em achar
patrocinadores para que a família se tornasse sócia da ACM. A mãe de um dos
amigos de Mark concordou em levá-lo para andar de skate com seu filho duas
vezes por mês.
Nos Círculos que se seguiram, mais informação sobre a família veio à tona. Mary,
agora com 15 anos, tinha um namorado que vivia na casa com aprovação de
Colleen e da avó. Membros do Círculo descobriram que ele tinha 32 anos, ficaram
muito alarmados, e denunciaram o fato à polícia. Mark sempre tinha marcas
roxas provocadas pelos beliscões que o namorado da irmã aplicava em pontos
sensíveis para fazer com que ele se comportasse. O Círculo descobriu que Mark
adorava case e providenciaram para que ele começasse a passear os cachorros
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de vários vizinhos regularmente. Descobriram também que Mary tinha um forte
sentimento de responsabilidade por seu irmão, como se fosse a mãe dele. O avô
adotivo incluiu Mary em algumas das atividades que fazia com Mark para que os
irmãos pudessem se relacionar num ambiente lúdico como irmãos.
O comportamento de Mark melhorou e a família cooperava com o terapeuta e
freqüentava as aulas sobre como educar. No entanto, o juizado de menores
queria tirar Mark de sua casa. Os funcionários concluíram que, apesar do
progresso, a mãe e a avó não tinham condições de se responsabilizar por Mark.
Fez-se uma reunião para decidir para onde encaminha-lo. As dez instituições
envolvidas com o caso enviaram representantes, e três dos membros do Círculo
compareceram. Os representantes governamentais consultaram os arquivos e
começaram a discutir o caso. Os membros do Círculo logo perceberam que os
profissionais sabiam muito pouco sobre Mark e sua família, e estavam prestes a
propor uma medida que seria prejudicial ao menino. Os membros do Círculo
estavam divididos quanto a essa questão. Percebiam que Mark precisava mais do
que sua família era capaz de oferecer, mas sabiam também que todos os
membros da família estavam comprometidos uns com os outros e lutando para
ter relacionamentos e habilidades mais adequados. O Círculo pediu ao grupo de
trabalho se poderiam desenvolver uma abordagem mais construtiva.
Os participantes do Círculo encontraram na vizinhança um lar adotivo com um
casal de pais adotivos muito capazes. O Círculo se reuniu novamente, incluindo o
casal de pais adotivos, e desenvolveu um plano para que Mark continuasse
vivendo com sua família, mas fosse duas vezes por semana ao lar adotivo para
dar descanso à sua família e conviver num ambiente de capaz de fortalecê-lo. A
avó e Colleen concordaram em passar tempo com Mark na casa adotiva, a fim de
observar a interação dos pais adotivos com o menino. As crianças e a equipe do
Juizado de Menores aceitaram a proposta do Círculo e manifestaram sua
admiração diante do nível de apoio da comunidade a esta criança. Os dez
representantes do Juizado começaram a perguntar aos membros do Círculo: “O
que vocês acham que deveríamos fazer?”
Por vários meses o Círculo construiu uma rede de relacionamentos de apoio,
combinados com atividades de capacitação, junto aos membros da família,
membros da comunidade e agencies de serviço social, atividades que resultaram
numa mudança radical no ambiente de Mark e de sua família, e num senso de
esperança para a vizinhança. Os membros do Círculo assumiram o compromisso
de trabalhar com Mark e sua família pelo tempo que fosse necessário.
Círculos de Construção de Paz
Tendo como base os círculos de conversa dos nativos norte-americanos, o
processo circular de construção de paz envolve vítima, apoiadores da vítima,
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ofensor, apoiadores do ofensor e membros da comunidade interessados no caso
num diálogo estruturado sobre o que aconteceu, por que aconteceu, qual foi o
impacto, e o que é necessário para reparar o dano ou mal, impedindo que
aconteça de novo. Os participantes se sentam em círculo sem mesas ou outras
peças de mobiliário no meio. Um objeto, chamado bastão-de-fala circula pela
ordem entre os participantes, que falam somente quando estão segurando o
bastão-de-fala. A utilização desse bastão-de-fala reduz o papel do facilitador e
elimina as conversas paralelas ou interrupções, pois só ele define quem fala
enquanto os outros ouvem. O processo poderá acontecer em círculos diferentes,
um para vítima e outro para o ofensor antes que todos se reúnam para
determinar um plano de ação que trate das questões levantadas ao longo do
processo. Por consenso, o Círculo poderá estruturar a sentença do ofensor e
também estipular as responsabilidades dos membros da comunidade e dos
operadores de justiça como parte do acordo.
O processo circular está enraizado em tradições antigas e tem o aporte de
conhecimentos contemporâneos sobre a vida em sociedades multiculturais que
mudam com rapidez. As comunidades antigas usavam processos similares aos
Círculos para tratar do trabalho da comunidade – como é costume em muitas
comunidades indígenas em todo o mundo. Acreditamos que sejam uma forma
comum de engajamento coletivo em torno de questões de interesse da
comunidade em todos os tempos e lugares. Os processos circulares descritos
aqui descendem mais diretamente das tradições de vários povos das Primeiras
Nações, pessoas que ainda usam os Círculos e encarnam ensinamentos centrais
relacionados aos Círculos em seu modo de vida. O processo circular também é
formado por experiências modernas de diálogo, criação de consenso,
comunicação intercultural, reconhecimento de interesses individuais, teoria das
mudanças e transformação pessoal. O processo é um equilíbrio entre o antigo e o
contemporâneo, o indivíduo e o grupo, o ser interno e o externo.
O Círculo é uma técnica para organizar de modo eficiente a comunicação grupal,
para construir relacionamentos, tomar decisões e resolver conflitos. Ainda mais
importante, o Círculo encarna e nutre uma filosofia de relacionamento e
interconexão que pode nos guiar em todas as circunstâncias – dentro e fora do
Círculo. O Círculo é um espaço intencional concebido para apoiar os participantes
permitindo que tragam à tona o “melhor de si” – para ajudá-los a se
comportarem com base nos valores que retratam seu modo de ser quando estão
no melhor de si. O Círculo cria um espaço protegido que permite praticar o
comportamento baseado em valores daquele “melhor de si” naquelas ocasiões
em que pareceria arriscado fazê-lo. Quanto mais as pessoas praticam esse
comportamento no Círculo, mais esses hábitos são reforçados e levados para
outras regiões de suas vidas.
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Fundamento Estrutural do Círculo
No alicerce da estrutura dos Círculos estão os valores que nutrem bons
relacionamentos com os outros e os ensinamentos chave comuns a todas as
comunidades indígenas. Juntos, esses valores e ensinamentos antigos criam um
poderoso sistema radicular que ajuda a formar um continente para raiva,
frustração, alegria, dor, verdade, conflitos, visões de mundo diferentes,
sentimentos intensos, silêncio e paradoxos.
Para criar os valores fundamentais do Círculo, os participantes identificam valores
que consideram importantes para um processo saudável e que traga bons
resultados para todos.
Valores recorrentes são: honestidade, respeito, abertura, cuidado, coragem,
paciência e humildade. As palavras exatas variam de grupo para grupo, mas os
valores gerados pelos Círculos em uma imensa variedade de contextos são
essencialmente consistentes. Descrevem aquilo que queremos ser quando somos
o melhor de nós mesmos. No Círculo, os valores não são presumidos nem tão
pouco impostos pelo facilitador. Uma conversa consciente entre os participantes
sobre os valores que desejam manter no espaço coletivo é parte crítica do
processo circular.
As raízes indígenas do processo circular contribuem com conhecimentos chave
para os fundamentos do Círculo. Esses conhecimentos estão ligados à imagem do
círculo como metáfora para o modo como funciona o universo. Para muitos povos
indígenas o círculo enquanto símbolo traduz uma visão de mundo, uma forma de
compreender o funcionamento deste mundo. Eles são parte integrante dessa
visão de mundo e do próprio espaço do Círculo:
• Tudo está interligado.
• Embora tudo esteja interligado, há partes distintas e é importante que essas
partes estejam em equilíbrio.
• Cada parte do universo contribui com o todo e é igualmente valiosa.
O pressuposto de que tudo está interligado tem implicações profundas para os
relacionamentos humanos. Significa que não é possível expulsar, excluir ou se
livrar de ninguém ou de nada.
Esse valores partilhados e conhecimentos antigos permeiam cada aspecto do
processo. Eles formatam a atitude do facilitador ou guardião do Círculo, e
definem a atmosfera e o clima do espaço que o facilitador está tentando criar
junto com os participantes do Círculo. Esses valores são uma visão das
possibilidades do grupo. Em geral os participantes não se encontram numa
situação que reflete esses valores e ensinamentos quando chegam pela primeira
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vez no Círculo. A intenção do Círculo é ajudá-los a caminhar na direção desses
valores e ensinamentos partindo da situação onde estavam no momento de
entrar no Círculo. Cada fase do processo circular atua no sentido de construir e
nutrir a capacidade dos participantes de agir segundo esses valores e
conhecimentos. Para ter sucesso na tarefa de apoiar o movimento dos
participantes nessa direção o processo circular deve ser um modelo desses
valores e conhecimentos de todo modo que seja possível.
Elementos Estruturais do Círculo
O Círculo lança mão de seis elementos estruturais para criar o espaço definido
por esses valores e ensinamentos fundamentais. Esses elementos estruturais são
as ferramentas usadas pelo guardião/facilitador para tornarem os valores e
ensinamentos elementos funcionais num processo concreto, passível de ser
trabalhado, e que cria condições para um diálogo honesto e respeitoso que preza
cada voz e nutre relacionamentos.
Orientações – Os Círculos adotam um processo de autogoverno segundo o qual
todos os participantes participam na criação das expectativas comportamentais
para as interações do grupo. Os participantes criam as orientações para seu
processo por consenso. A criação coletiva das orientações leva à responsabilidade
partilhada com todos os participantes pela proteção da qualidade do espaço
coletivo.
Bastão de Fala – O bastão de fala é um objeto que tem sentido para o grupo e
passa de pessoa para pessoa na ordem em que estiverem sentados no círculo.
Só pode falar a pessoa que está segurando o bastão de fala. Essa pessoa terá a
atenção total de todos do Círculo e pode falar sem ser interrompida. A utilização
do bastão de fala viabiliza a expressão plena das emoções, a escuta qualificada,
reflexão cuidadosa, e um ritmo sem pressa. Além do mais, o bastão de fala cria
espaço para pessoas que acham difícil falar diante de um grupo, sem, no entanto,
que o seu detentor seja obrigado a falar. A escuta qualificada e fala respeitosa,
promovidas pelo uso do bastão de fala, criam segurança para falar verdades
difíceis.
Cerimônia – Os Círculos utilizam algum tipo de cerimônia para marcar a
abertura e fechamento do espaço especial do Círculo. Dentro do espaço do
Círculo pede-se aos participantes que se comportem de modo mais atento aos
valores centrais que definem o que há de melhor em cada um deles, e que ajam
segundo esses valores. Para a maior parte das pessoas isto requer que deixem
cair máscaras e proteções – e isto dá a sensação de vulnerabilidade. Torna-se
seguro faze-lo porque todas as outras pessoas do Círculo estão assumindo o
mesmo compromisso. Pelo fato de os espaços coletivos em geral não oferecerem
tal nível de segurança, é importante definir com clareza onde esse espaço seguro
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começa e onde termina. A cerimônia inicial ajuda os participantes a relaxarem,
soltarem ansiedades não relacionadas ao Círculo, se concentrarem no seu estado
interno, atentarem para a interconexão e se abrirem para possibilidades
positivas. A cerimônia de fechamento celebra as contribuições do grupo e
relembra os participantes a sua ligação uns com os outros e com todo o universo.
Partilha de Histórias – “A partilha de histórias pessoais é a fonte essencial do
poder dos Círculos” afirma Barry Stuart. Os Círculos constroem relacionamentos,
exploram problemas e partilham sabedoria basicamente através da partilha das
experiências de vida dos participantes. O Círculo convida os participantes a
compartilharem aquelas partes de suas vidas que têm relevância para o propósito
do Círculo. A contação de histórias é uma ferramenta poderosa para transformar
relacionamentos. Ela permite que os participantes vejam uns aos outros sob um
prisma multidimensional, que em geral derruba preconceitos ou pressupostos que
impedem a boa comunicação. A contação de histórias envolve o coração e o
espírito mais do que o fariam dados e informações.
Guardião/Facilitador - O papel do facilitador no Círculo é muito diferente do
que em outras metodologias de diálogo ou reunião. O facilitador do Círculo,
muitas vezes chamado guardião, é um membro do grupo. Pelo fato do bastão de
fala regular a ordem dos oradores, o facilitador tem menos poder de controle
sobre o processo do que teria em outras práticas de facilitação. A criação coletiva
de orientações também reduz a responsabilidade do facilitador, que fica dividida
entre todos no Círculo. O facilitador é responsável por monitorar a qualidade da
interação e deve levar quaisquer problemas que surjam no processo à atenção do
grupo, caso este já não os esteja corrigindo. O facilitador não é o único ou o
principal responsável por definir como os problemas do processo podem ser
resolvidos.
Tomada de Decisão Consensual – Quando é preciso tomar uma decisão num
Círculo, essa decisão deve ser consensual. Num Círculo o consenso significa que
todos podem viver com aquela decisão e apóia-la.
Talvez aquela decisão não
fosse o ideal para todos, mas ela precisa ser aceitável para todos. A eficácia do
processo consensual depende de uma sólida visão partilhada, equidade de vozes
e relacionamentos de confiança entre os participantes. Pelo fato dos Círculos
serem fundados sobre valores partilhados, oferecerem voz igual para todos
através do bastão de fala, e construírem relacionamentos ao longo de todo o
processo, chegar a um consenso no Círculo não é tão difícil como a maioria das
pessoas imagina. As decisões consensuais têm uma vantagem significativa sobre
as decisões impostas por voto da maioria. Elas são muito mais fáceis de
implementar porque todos estão empenhados e unidos na intenção de fazê-la
funcionar.
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Outras Características Centrais dos Círculos
Construção de relacionamentos antes da discussão do fulcro da questão – Os
Círculos intencionalmente retardam o diálogo sobre temas contenciosos até que o
grupo tenha avançado um pouco na construção de relacionamentos. Antes da
discussão das questões difíceis que motivaram o Círculo, faz-se uma rodada de
respostas a uma pergunta que motive os participantes a contarem algo sobre si
mesmos; depois vem a construção dos valores e orientações do Círculo; e ainda
uma volta de histórias pessoais sobre temas relacionados tangencialmente à
questão em pauta. Essas rodadas geram no Círculo uma consciência mais
profunda de como todas aquelas jornadas humanas criaram experiências,
expectativas, medos, sonhos e esperanças muito semelhantes. Essas rodadas
introdutórias servem também para apresentar os participantes uns aos outros de
uma forma inesperada e, assim, delicadamente desfazer pressupostos de uns em
relação aos outros e vice-versa. A criação conjunta de orientações oferece ao
grupo a oportunidade de vivenciar a busca de terreno comum apesar de graves
diferenças. No Círculo não se “vai direto ao ponto” de propósito. O tempo gasto
na criação de um senso de espaço partilhado e interconexão grupal aumenta o
nível de segurança emocional, que por sua vez permite que verdades mais
profundas aflorem. Esse tempo também promove consciência da humanidade
partilhada por todos os participantes.
Formato Físico – O nome do processo denota que a disposição física é
importante nos processos circulares. Os participantes se sentam em círculo, de
frente uns para os outros, sem mesas ou outros móveis entre eles. A geometria é
importante. Um grupo de pessoas em círculo sem mesas no meio terá uma
dinâmica diferente do que um grupo de pessoas em filas de cadeiras, ou mesmo
um grupo em volta de uma mesa redonda. A geometria do Círculo enfatiza a
igualdade. Não um ponto mais importante num círculo. Ele também realça a
interconexão entre os membros e estimula a responsabilização pois cada
participante pode olhar diretamente para todos os outros. O círculo tem um
único ponto focal que ajuda o grupo a se concentrar no propósito do círculo e
contém as distrações. A ausência de mesas estimula a presença plena e realça
ainda mais a responsabilidade e abertura. Não onde se esconder num círculo.
Liderança Partilhada – Vários dos elementos estruturais e características do
Círculo deslocam a responsabilidade do facilitador para o conjunto dos
participantes. A criação coletiva de valores e orientações para o Círculo envolve
todo o Círculo na definição de expectativas de conduta para todos. Quando isso
acontece, é mais provável que os participantes assumam responsabilidade por
garantir que tais expectativas se realizem, e é menos provável que fiquem na
dependência do facilitador como sancionador. O movimento do bastão de fala,
que vai passando de pessoa para pessoa na ordem em que estão sentadas,
regula o diálogo e reduz muito o papel e o poder do facilitador. Em muitos tipos
de processo o facilitador tem o poder de determinar quem vai falar, sendo que ele
pode falar a qualquer momento. Num Círculo o facilitador pode falar sem o
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bastão de fala, mas só o faz se houver um problema sério no processo que
demanda atenção imediata. A qualidade do processo é responsabilidade de todos
os participantes, e não apenas do guardião. Pelo fato dele se sentar como um
igual dentro do Círculo, e geralmente só falar quando recebe o bastão de fala,
tende-se a depender menos nele para soluções ou controle.
Tipos de Círculo
Por causa da flexibilidade e poder do processo circular, as pessoas usam os
Círculos para propósitos diversos. Consequentemente há diversos tipos de
Círculo. O tipo determinará a importância relativa dos vários elementos da
estrutura e do processo. A seguir temos uma lista de tipos de Círculo:
Tipos de Círculo
• Celebração
• Diálogo
• Aprendizado
• Construção do senso comunitário
• Compreensão
• Restabelecimento
• Apoio
• Reintegração
• Tomada de decisão grupal
• Conflito
• Sentenciamento
Círculos de Celebração ou Reconhecimento – Esses Círculos reúnem um
grupo de pessoas para prestar reconhecimento a um indivíduo ou a um grupo e
partilhar alegria e senso de realização. Em geral não é necessário gerar valores e
orientações específicas para um Círculo de Celebração, salvo pela concordância
em usar o bastão de fala respeitando-o. O consenso não é elemento relevante
num Círculo desse tipo. A preparação para um Círculo de Celebração envolve
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basicamente logística e convites. As pessoas usam tais Círculos para aniversários,
formaturas, prêmios, despedidas, e muitos outros eventos marcantes.
Círculos de Diálogo – Num Círculo de Diálogo os participantes exploram uma
questão ou tópico específico a partir de muitas perspectivas diferentes. Os
Círculos de Diálogo não buscam consenso sobre a questão. Permitem que todas
as vozes sejam ouvidas respeitosamente e oferecem aos participantes diversas
visões para estimular sua reflexão. O Círculo de Diálogo não está voltado para um
participante em especial. Em geral não requer preparação individual nem muito
trabalho de bastidores.
Círculos de Aprendizado – Esses utilizam o processo circular para o ensino ou
para a partilha de informações. Nele não se está preocupado com consenso, nem
é necessário preparação individual. Em geral não é seguido por acompanhamento
do caso.
Círculos de Construção do Espírito Comunitário – Seu propósito é criar laços
e construir relacionamentos entre pessoas que têm um interesse em comum. Os
Círculos de Construção do Espírito Comunitário dão apoio a ações coletivas
eficazes e à responsabilidade mútua. Eles não buscam consenso, mas podem ser
utilizados como etapa preliminar em preparação a um Círculo de Tomada de
Decisão onde se buscará consenso. Os Círculos de Construção do Espírito
Comunitário não focalizam certos participantes em especial e não requerem
grande preparação.
Círculos de Compreensão – Este é um Círculo de conversa que focaliza a
compreensão de algum aspecto de um conflito ou situação difícil. Em geral ele
não é um Círculo para tomada de decisões e, portanto, não é necessário chegar a
um consenso. Seu objetivo é desenvolver um quadro mais completo do contexto
ou das razões para um determinado evento ou comportamento. O Círculo de
Compreensão pode focalizar uma pessoa ou pessoas específicas e, portanto,
talvez requeira preparação e planejamento para garantir apoio adequado a esses
participantes. A preparação também deve garantir o envolvimento de pessoas
com várias perspectivas, necessárias para uma compreensão mais plena da
situação.
Círculos de Restabelecimento – O propósito deste Círculo é partilhar a dor da
pessoa ou pessoas que passaram por traumas ou perdas. Dele poderá emergir
um plano para apoiar, mesmo fora do Círculo, a pessoa que sofre, mas este não é
seu objetivo. Preparativos cuidadosos são muito importantes para que não se
produza através do Círculo, inadvertidamente, mais dor à pessoa atendida.
Círculos de Apoio – Este Círculo reúne pessoas significativas para dar apoio a
alguém que está passando por uma dificuldade em especial ou uma grande
mudança de vida. Os Círculos de Apoio em geral se reúnem regularmente ao
longo de determinado período de tempo. Eles podem, por consenso, desenvolver
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acordos ou planos, mas muitas vezes não são Círculos de tomada de decisão. Os
preparativos e a organização do primeiro Círculo são trabalhosos, mas os
subseqüentes nem tanto.
Círculos de Reintegração – Estes reúnem um indivíduo com um grupo ou com
a comunidade da qual o indivíduo foi retirado a fim de reconstruir ligações e
integrar o indivíduo de volta ao grupo. Frequentemente estes Círculos
desenvolvem acordos consensuais. São muito usados para jovens e adultos que
voltam para suas comunidades vindo de prisões ou instituições correcionais. Os
Círculos de Reintegração podem ser usados para ajudar na transição de militares
que voltam para suas comunidades depois de servir em regiões de conflito
armado.
Círculos de Tomada de Decisão – Um Círculo de tomada de decisão em grupo
se concentra em chegar a uma decisão consensual. Neste caso a preparação é
parte importante do processo, e poderá exigir a realização de Círculos de
Compreensão e Círculos de Formação de Espírito Comunitário antes que se reúna
o grupo para a tomada de decisão. Grupos de trabalho, conselhos diretores,
conselhos consultivos e famílias vêm usando estes Círculos de Tomada de Decisão
para tomar decisões importantes no escopo de suas comunidades.
Círculos de Conflito – Este Círculo reúne partes em conflito para resolver suas
diferenças. A resolução se forma através de um acordo consensual. Nestes casos
é comum haver uma prolongada preparação individual. Também é possível lançar
mão de outros tipos de Círculo como preparação ao Círculo de Conflito. Em geral
é preciso investir muito tempo na construção de relacionamentos antes de
discutir as questões centrais. Estes Círculos são usados para resolver conflitos no
bairro, no local de trabalho, na escola, na igreja e nas famílias.
Círculos de Sentenciamento – Este é um processo dirigido pela comunidade
em parceria com o sistema judicial, que tem por objetivo envolver todos aqueles
que foram afetados por uma ofensa para chegar a um plano de sentenciamento
adequado, que contemple todas as preocupações dos participantes. A pessoa
que sofreu o dano, a pessoa que causou o dano, família e amigos de ambos, e
outros membros da comunidade se reúnem, junto com representantes do poder
judiciário (juiz, promotor, advogado de defesa, polícia, oficiais de condicional) e
outros profissionais auxiliares, para discutir: 1) o que aconteceu; 2) por que
aconteceu; 3) quais foram as consequências e 4) o que é necessário para reparar
o dano e impedir que aconteça novamente. Por consenso, o Círculo concebe uma
sentença para a pessoa que cometeu o crime e talvez também estipule
responsabilidades para membros da comunidade e operadores da justiça como
parte do acordo. A preparação deste Círculo poderá incluir a realização de
Círculos separados para a pessoa que sofreu o dano (Círculos de
Restabelecimento) e para a pessoa que cometeu o crime (Círculo de
Compreensão), antes de reunir os dois.
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É importante notar que muitas vezes estes objetivos se sobrepõem. A maioria
dos Círculos são em parte Círculos de Construção de Espírito Comunitário, e a
grande maioria produz o efeito de restabelecimento para alguns participantes. A
tipologia apenas marca o propósito primário de cada Círculo. Como se vê acima,
o processo circular pode abarcar vários tipos de Círculo na medida em que o
processo avança por suas várias etapas.
Utilização dos Círculos no Âmbito Judicial para a Infância e Juventude
Os Círculos podem ser usados como reação em todos os graus e fases da
delinquência ou do comportamento inadequado.
Por exemplo:
• Círculos em escolas para resolver problemas de brigas, furtos, etc, em vez de
levar o caso diretamente à justiça.
• Círculos como desvio dentro do processo policial ou judicial. Numa localidade
do Leste de Minnesota utilize-se um modelo de Círculo em que os membros da
comunidade trabalham com até 3 infratores juvenis e suas famílias, encontrandose a cada duas semanas para trabalhar as responsabilidades que o jovem
assumiu para reparar os danos que causou e as mudanças que ele deve fazer em
sua vida. Os encontros perduram até que o grupo esteja satisfeito e confiante de
que o jovem está no bom caminho. Às vezes bastam algumas semanas, às vezes
mais de um ano.
• Círculos de apoio como parte da supervisão da liberdade condicional.
• Círculos dentro de programas onde os jovens são residentes para resolver
conflitos ou questões comunitárias entre os residentes.
• Círculos de reintegração para ajudar o jovem a se reintegrar à família, escola,
comunidade depois de deixar um instituto correcional.
Numa instituição de detenção juvenil em St Paul, Minnesota, cidade onde moro,
os funcionários descobriram que o primo de um dos internos tinha morrido num
tiroteio entre gangues. Chamaram a mãe até a instituição para comunicar ao
menino que o primo havia morrido. Depois de receber a notícia, ele pediu para ir
para o isolamento porque queria ficar sozinho. Pouco tempo depois pediu para
sair do isolamento. A funcionária o informou de que os outros internos ainda não
sabiam da morte de seu primo, e perguntou se ele próprio gostaria de contar. Ele
respondeu que sim. Ela então perguntou se ele queria contra aos outros no
Círculo, e ele respondeu que sim. Reunido o Círculo, ele informou aos outros e
chorou. O bastão de fala começou a dar a volta. Na metade da rodada estava um
interno que pertencia à gangue que tinha matado o primo. Quando este membro
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da gangue recebeu o bastão de fala, expressou empatia e preocupação. “Eu sei
como você se sente cara. Sinto muito que seu primo morreu.”
Círculos de Restabelecimento são aplicados em bairros depois de incidentes de
violência para acolher e dar apoio aos que estão sofrendo e com raiva. Em
Oakland, California, Uma ONG comunitária promove Círculos de Restabelecimento
para sobreviventes, e eles acreditam que isto reduziu a retaliação. Um padre de
Chicago se reúne regularmente num Círculo com jovens de gangues para reduzir
a violência no bairro. Certo dia em dezembro de 2009, 52 Círculos foram
realizados em todos os bairros de Chicago para que os cidadãos se reunissem e
chorassem a perda de jovens por causa da violência, partilhando seu
compromisso de criar uma cidade segura para os mais novos.
Implicações para Além dos Casos Individuais
Não é suficiente usar a justiça restaurativa para os jovens transgressores. A
filosofia de assumir a responsabilidade e corrigir os erros tem aplicação em todas
as esferas da vida. É de suma importância utilizar abordagens restaurativas
dentre os adultos das agências que trabalham com os jovens e com a
comunidade como um todo. Em Chicago, no ano passado, defensores da justiça
restaurativa organizaram círculos em nove varas de infância e juventude
envolvendo todos os profissionais que trabalham nas varas – juízes, promotores,
advogados de defesa, oficiais de condicional, oficiais de justiça, escreventes –
como oportunidade para que falassem sobre seu trabalho e seus
relacionamentos.
Em janeiro deste ano os moradores de Chicago organizaram Círculos de
vizinhança onde se reuniram membros da comunidade, funcionários das escolas,
policiais, oficiais de condicional, juízes, promotores de justiça, e vários jovens.
Eles se reuniram e conversaram sobre como criarem, juntos, uma comunidade
saudável.
No departamento de condicional da cidade de Ramsey County no estado de
Minnesota, EUA, os processos restaurativos são usados para resolver problemas
entre os funcionários. A utilização de abordagens restaurativas para a resolução
de conflitos entre colegas de trabalho começou nas prisões de Minnesota. Todas
as prisões nesse estado oferecem processos restaurativos para resolução de
conflitos entre funcionários.
Os processos restaurativos são ferramentas poderosas para sanar males e criar
comunidades capazes de prevenir males.
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Da perspectiva do jovem:
Um jovem que foi encaminhado ao Programa de Círculos de Sentenciamento de
Yellow Medicine County concordou com a tarefa de escrever um texto depois que
um acontecimento preocupante aconteceu. Esse mesmo jovem já tinha
frequentado o Círculo por mais de um ano, e o Círculo tinha feito uma celebração
para ele em reconhecimento pelo fato dele ter completado o programa. Ele voltou
para discutir um incidente que preocupava o Círculo.
Sua tarefa era escrever um texto sobre: Como você estava quando chegou ao
Círculo? Como pensava? Como se sentia? Depois deveria escrever sobre como
estava hoje. Como pensa agora? Como se sente agora? Como se relaciona com
as pessoas? Por fim, como se vê no futuro? Como se vê na comunidade, na
família? Como o Círculo ajudou?
Eis o que ele escreveu:
Um menino e seu pai estão pescando. O menino diz ao pai: "pai, como você era
quando era mais jovem?" O pai respira fundo e diz: "Bem meu filho, eu não era a
pessoa que você vê hoje. Olha, eu era um adolescente perturbado. Eu não me
preocupava nem tinha remorso pelas coisas que eu fazia. Eu fazia o que queria.
Nessa altura da minha vida eu perdi alguém muito importante para mim. Eu não
sabia o que fazer. Não ligava mais para a vida nem para nada. Eu queria que a
morte chegasse a qualquer minuto e estava bem com isso. Eu me metia em
brigas e não ligava se machucasse alguém no meu caminho. Eu tinha o pavio
muito curto e estourava à toa. Meu pai sempre estava bêbado e gritava comigo e
com as suas tias e com sua avó. Toda noite eu tinha que aturar isso. Sua avó era
a única trabalhando e seu avô só bebendo. Minha infância foi roubada de mim por
causa das coisas que ele fazia". O menino perguntou ao pai: "pai, porque você
tinha tanta raiva da vida?" O pai falou: "Filho eu perdi meu melhor amigo ele era
como um irmão, minha mãe era a única que sustentava a família, eu tinha um
pai que gostava mais de beber do que da família dele. Depois tive problemas com
a lei, mas não importa o que, sempre era só minha mãe que ficava do meu lado.
Eles me puseram num programa chamado círculo". O menino perguntou: “O que
é círculo?” O pai respondeu: "é um recomeço filho". Eu comecei ali olhando para
caras que eu desprezava e depois me vi gostando deles e nunca mais esqueci.
Cheguei com uma atitude destruidora e muito provocante. Com o passar do
tempo eu fui me abrindo e perdi a vontade de brigar. Era difícil acreditar que
essas pessoas estranhas tinham se transformado na minha família.
"Então meu filho o homem que você está vendo é bem diferente do que era”,
disse o pai. “Meu filho, levou tempo para eu virar a pessoa que você está vendo
hoje” disse o pai. “Sou muito mais maduro e achei um jeito de controlar a raiva e
o ódio. Não tenho mais vontade de morrer nem machucar os outros pois meu
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filho, as palavras são mais fortes que socos. Minha visão da vida é a maior
mudança porque, meu filho, porque é a vida a coisa mais importante. Rezo toda
noite para você seguir o caminho certo e Deus desviar você do caminho que eu
estava. Hoje eu assumo responsabilidade pelas minhas ações pois ninguém é
homem antes de fazer isso meu filho. Se algum dia você vir que está caindo ou
escorregando na vida, sempre se levante mais forte do que nunca. Hoje eu sei
dar valor a tudo que o círculo me ensinou. Eu não seria quem eu sou hoje se não
fosse por eles. Aprendi a ficar longe de encrencas e distinguir o certo do errado.
Além disso, aprendi a corrigir os erros que fiz nessa vida. Esse homem aqui
aprendeu que precisa ser honesto com as pessoas que importam porque a
verdade liberta. A vida era dura comigo porque eu fazia que ela fosse dura. As
pessoas te querem bem meu filho mesmo quando parece que não elas querem
sim. Tudo na vida é possível basta acreditar em você como eu acreditei e será
feito. Eu agora tenho paz em mim e não espero mais que a morte venha me
buscar. Criei laços com gente desconhecida que eu chamo de família. O mais
importante que aprendi foi que leva tempo para mudar e para ser respeitado
você precisa conquistar porque não vem de graça”. O menino ficou ali sentado
espantado com essas palavras de sabedoria e conhecimento. E também chocado
por saber o que o pai tinha sido.
“É meu filho a vida é cheia de surpresas. Me diga meu filho o que você quer da
vida?”. Bem, pai, quero ser um ótimo pai e ter um emprego na polícia. Quero
também ter uma boa casa com um bom terreno. E que meus filhos sejam criados
para serem crianças bem comportadas na sociedade. Uma mulher bonita que
cuide das crianças enquanto eu cuido de todo o resto. Acho que é isso pai. Ah, e
ser respeitado como você é.
Escrito por William Sturgeon, junho de 2008.
*NOTA: William deu permissão para divulgação de seu texto*
Conclusão
Gostaria de voltar à idéia de interligação. Contarei uma história que aconteceu no
meu país. Um afro descendente americano mudou-se de um bairro perigoso para
proteger seu filho. Fez tudo que podia para oferecer um ambiente positivo e
apoiar uma adolescência saudável. E seu filho era tudo que ele esperava. E então
seu filho foi atingido por uma bala perdida disparada por alguém que morava no
bairro perigoso. Um entrevistador da mídia comentou que ele tinha feito tudo
que podia pelo seu filho. Mas ele respondeu: “Não, não fiz. Me esqueci de uma
coisa. Me esqueci de cuidar dos filhos dos outros”.
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Somos todos profundamente interligados. No longo prazo, não há escapatória.
Aquilo que está acontecendo aos outros nos afetará mais cedo ou mais tarde.
Adotar esta visão de mundo significa uma mudança enorme de perspective, ao
menos para os norte-americanos. Significa que jamais podemos nos beneficiar a
custa dos outros. Significa que não há saída fácil evitando o conflito ou ignorando
os problemas. Mas essa visão pode também representar uma disposição
extremamente positive. Significa que jamais estamos sozinhos. Significa que
sempre pertencemos – não importa o que aconteça.
O medo de não pertencer ou a dor de sentir que não pertencemos está na raiz de
boa parte da violência e do mal no mundo. Viver como se todos pertencessem
talvez seja a melhor medida de prevenção da violência que jamais possamos
conceber.
As práticas restaurativas nos ajudam a viver como se todos coubessem,
pertencessem. De fato, o impulso restaurativo é sempre dirigido para a cura do
mal da desconexão.
Tradução Tônia Van Acker para Associação Palas Athena.
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