Justiça, moralidade e verdade:
sobre fichas e outros jogos sujos na arena política
Luiz Eduardo Soares
Para Marcos Rolim
Consideremos o cidadão bem posto na vida que ludibria a alfândega e
se regala com equipamentos contrabandeados para si e sua empresa. Comete
um crime, ou vários, mas a deliquência não o faz criminoso. O epíteto nefando
só manchará seu colarinho branco se for flagrado pulando a cerca. Aí sim,
deixará de ser o executivo competente, o empreendedor agressivo, atento às
oportunidades e bem relacionado, ornado com sobrenome de avenida. Passará
a ostentar o nome de seu ato, contrabandista, criminoso, e será destratado
pela voz do povo: meliante, vagabundo.
Ou seja, não é o ato de praticar um crime que faz de seu autor um
criminoso, mas ser flagrado. Por isso, os pais da moça procuram saber quem
namora sua filha de um modo amplo e sensível, tentando descobrir que valores
o pretendente preza, o que ele faz, como se porta diante das situações do dia a
dia. Os pais não pedem a folha corrida do futuro genro. Seja porque nem todo
transgressor cai na malha fina da Justiça, seja porque nem todo cidadão
capturado nesse filtro merece a repulsa moral. Depende. Pode estar envolvido
sem culpa em um enredo capcioso, mas pode também ter superado o estágio
de seu desenvolvimento pessoal em que tropeçou. Culpa é diferente de
responsabilidade. Quem age com generosidade com um amigo em quem
confia, pode ser traído em sua lealdade. Por exemplo, dispondo-se a incluir em
sua bagagem o pacote que o amigo pede que seja entregue a um parente. Por
que desconfiar do amigo? Se, nesse caso, o pacote embrulha drogas, isso
torna quem transporta responsável, não culpado. A Justiça condenará o
intermediário por tráfico, mas a família da noiva apoiará o casamento,
entendendo que o réu merece solidariedade. Do mesmo modo, o que dizer
daquela pessoa que assina o contrato de aluguel como fiador e acaba obrigada
a ressarcir prejuízos? Não podendo pagar a dívida, responderá na Justiça e
será responsabilizada. Quem, entretanto, a consideraria culpada de um erro
moral ou de uma violação ao pacto social, mesmo a reconhecendo passível de
responsabilização judicial?
Os juízos morais variam muito e dependem de circunstâncias bastante
específicas. Nem sempre coincidem com as decisões da Justiça, mesmo que
elas estejam certas e ainda que as Leis aplicadas sejam as mais justas. Não se
trata de paradoxo, muito menos de contradição. A moralidade é regida por
princípios mais sensíveis às variações individuais e à singularidade de cada
caso, e leva em conta as intenções e o sentido subjetivo em uma extensão que
as leis não podem fazer. Por mais que haja moralidades distintas em uma
sociedade pluralista, laica e democrática, são diferentes as finalidades da moral
e da Lei, mesmo quando compartilham referências axiológicas. A Lei tem como
objetivo definir regras do jogo para o funcionamento estável do pacto social,
tornando razoavelmente previsível a vida em sociedade, ou melhor,
transformando a previsibilidade em uma expectativa legítima e persuasiva para
a média das pessoas. A moralidade tem o objetivo de tornar as pessoas,
individualmente, melhores para si mesmas e para os outros, fazendo da
reflexão crítica sobre atos pregressos um mapa que orienta ações futuras.
A esfera moral é espinhosa e complicada, porque, em seu domínio,
valores e comportamentos se mesclam a dinâmicas psicológicas e afetos,
mobilizando potenciais cognitivos e emocionais, estimulando ou inibindo o
engajamento em experiências construtivas ou destrutivas de convívio. Nesse
campo tão delicado, a moralidade, com frequência, acusações culpabilizadoras
tendem a deprimir a auto-estima e reduzir a energia necessária para a
desejável mudança. Portanto, em matéria de juízos morais aplicados, muitas
vezes, menos (atribuição de culpa) é mais (chance de transformação), ou seja,
demonstrações de confiança, sem prejuízo do reconhecimento enfático do erro,
estimulam a correção da rota.
Recordemo-nos: o propósito da moralidade é melhorar as pessoas -entendendo-se este verbo de distintos pontos de vista. Nada a ver com as Leis,
cuja finalidade é estabilizar expectativas positivas, levando cada um a supor
que o futuro imediato é previsível porque há regras e um conjunto de
instituições de segurança e Justiça supostamente aptas a garantir sua
efetividade. Essa estabilização viabiliza a vigência do pacto social, preservando
o ambiente de negócios indispensável a investimentos, mantendo firmes as
molduras para a cooperação e reduzindo a cota de medo e angústia ante as
incertezas da vida.
A estrutura que descrevo articula-se sob a forma do Estado democrático
de direito, equilibrado pela divisão entre os poderes executivo, legislativo e
judiciário. David Hume dizia que só outro poder limita o poder. Por isso,
seguindo o roteiro concebido por Montesquieu e aplicando o modelo
experimentado nas primeiras democracias modernas, a Constituição de 1988
organizou o Estado brasileiro respeitando o princípio das tensas mas
indispensáveis limitações recíprocas entre os poderes.
Nessa paisagem institucional, qual o papel do Judiciário? Mais
especificamente: quais as relações entre verdade e justiça? Onde entra a
moralidade? Como avaliar a Lei que exclui da competição eleitoral os
candidatos com “ficha-suja”, isto é, que tenham sido condenados por decisão
colegiada em primeira instância?
Os temas são complexos e exigiriam elaboração mais longa e profunda.
Não me furto, entretanto, a resumir alguns argumentos e colocá-los em
circulação, mesmo antes do recomendável tratamento mais amudurecido, dada
a urgência do debate público suscitado pela decisão do novo partido, Rede,
segundo a qual condenados em primeira instância não serão candidatos pelo
partido, como determina a Lei, mas poderão ser admitidos como filiados, a
depender da avaliação de cada caso pela direção nacional, ouvido o conselho
de ética.
Do ponto de vista estritamente legal, nenhum problema: todo cidadão
mantém a integralidade de seus direitos enquanto sua eventual condenação
estiver sub judice, ou seja, enquanto não houver uma decisão judicial definitiva
–em outras palavras: enquanto a decisão condenatória não transitar em
julgado. A exceção diz respeito à privação provisória da liberdade, que
restringe o direito de ir e vir por motivos muito específicos e que se aplica,
como o nome diz, àqueles ainda não definitivamente condenados que
representem um risco para a sociedade, uma ameaça a testemunhas ou um
obstáculo ao desenvolvimento das investigações. Contudo, mesmo nesses
casos excepcionais (que, desafortunadamente, são mais comuns do que
deveriam ser, no Brasil, hoje), o direito ao voto e à filiação partidária
permanece intocado.
O movimento pelo respeito ao direito ao voto dos presos preventivos e
provisórios tem crescido, no Brasil, exigindo que o Estado garanta a aplicação
da Lei e ofereça meios para que o exercício do voto não continue a ser
indevidamente vedado, como ainda acontece com tanta frequência no país. A
violação das disposições legais tem diminuído e mais presos têm podido votar.
Tenhamos presente que a Lei de execuções penais vem sendo
transgredida com acintoso despudor e que a prática do voto assinala a
afirmação de milhares de cidadãos brasileiros como sujeitos de direito, o que
em nenhum momento nega sua condição de réus, que respondem a acusações
de violação de direitos alheios. A punição imposta pelo Estado não se confunde
com vingança, nem sentenças judiciais devem ser confundidas com retribuição,
a violadores, das violações perpetradas. É isso que distingue o Estado
democrático de direito de uma tirania; é isso que distingue a sentença judicial
do justiçamento.
O movimento referido deseja mais: quer estender o direito ao voto ao
preso condenado, entendendo que incluí-lo no universo dos eleitores significa
tratá-lo como membro da sociedade e corresponsável por seu futuro. Seria
educativo e uma forma de valorização potencialmente transformadora. Os
presos poderiam unir-se e eleger alguém que se comprometesse com uma
pauta contrária aos interesses gerais da sociedade? Talvez isso pudesse
acontecer, no caso de candidaturas proporcionais. Entretanto, o funcionamento
das casas legislativas impede que a proposta de um segmento social
específico se converta em Lei sem que a maioria a aprove. Se a própria
dinâmica democrática tem se mostrado insuficiente para conter os lobbies, terse-ia de discutir mecanismos que limitassem sua eficiência, ampliando a
transparência, fortalecendo a participação e criando freios à mercantilização do
voto.
O ponto a reter é mais simples: a Lei, hoje em vigor, não retira de quem
responde a processos na Justiça, criminais ou não, que não tenham “transitado
em julgado”, o direito de participar da vida política como cidadão que vota,
manifesta-se e opina. Faria sentido que um partido que se pretende
comprometido com a Constituição e com os valores que a regem vedasse a
esse cidadão o exercício desses direitos em seu interior, sempre, em qualquer
caso, independentemente de cada circunstância e do exame das condições
singulares? A única resposta plausível e compatível com a regência dos
princípios referidos é negativa, porque, se fosse positiva, estar-se-ia negando
uma separação --que é constitutiva das democracias—entre a justiça, a
verdade e a moralidade.
Quem procura a verdade, estuda, torna-se cientista ou filósofo, dedicase à pesquisa. Sabe que, no horizonte, não está propriamente a verdade, mas
o conhecimento possível naquele momento histórico, que será formulado com
os conceitos, os argumentos e os recursos de verificação mais convincentes
para a comunidade científica mundial, que opera com os mesmos critérios de
avaliação da aceitabilidade das proposições formuladas. Quem procura a
verdade, em sua provisoriedade inevitável, sabe que não há ciência de um
acontecimento único, mas conhecimento da dinâmica logicamente apreensível
que rege o grupo de fenômenos dos quais determinados acontecimentos
singulares podem ser a manifestação.
Quem procura a Verdade com V maiúsculo dedica-se à religião e até
mesmo a algumas filosofias. O acontecimento único pode adquirir aí o status
de revelação. Nesse campo, a verdade não é produto do conhecimento
humano, carregando consigo a precariedade do humano, mas dádiva
transcendente1. Todas as procuras e seus caminhos têm sua razão de ser e
fundam sua legitimidade na história das civilizações, cumprindo papéis
relevantes, ainda que nem sempre convergentes e harmônicos. Não raro,
1
Essa é apenas uma das concepções religiosas da verdade, mas basta para permitir um contraste
significativo.
cientistas, tomados pela sedução da Hybris, deixam-se enganar pela vaidade e
a vontade de poder, escrevendo suas teorias com letras maiúsculas. Por outro
lado, surpreendendo a visão positivista dos que ignoram a riqueza cultural das
religiões, há fiéis que submetem o conteúdo de suas crenças ao princípio da
humildade ante o desconhecido, e recusam a intolerância ou qualquer dano ao
pluralismo.
De todo modo, ninguém, procurando a verdade, com maiúscula ou
minúscula, irá à Justiça. O poder judiciário não é o destino de quem quer saber;
é o destino de quem precisa dirimir uma desavença, refratária à solução
“natural” entre pares, quando os demais mecanismos acessíveis não dispõem
de legitimidade consensual a todas as partes envolvidas, incluindo o terceiro
vértice do confronto: a sociedade. A Justiça é o endereço ao qual se dirigem os
que precisam de uma decisão com força para dissolver o nó --o conflito
insolúvel-- que paralisa os fluxos de ação social e de cooperação.
Quando a Justiça, ante uma guerra de versões, acolhe uma e exclui as
demais, ou estabelece uma narrativa alternativa sobre determinado fato ou
série de fatos, não o faz por amor à verdade, mas por compromisso prático. O
que está em jogo não é a infinita causa da pesquisa, mas a solução de um
conflito. Solução que sirva para, reafirmando a supremacia do Estado, por
intermédio de seu braço judicial, restabelecer as condições de vigência do
pacto social, consagrado na Carta Magna, distribuindo responsabilidades,
direitos, deveres e reparações.
Claro que, à Justiça, importa descobrir o que, de fato, aconteceu, nos
casos sob exame. Evidente que a decisão mais justa será aquela que conjugue
o respeito às normas - sempre reinterpretadas - com o endosso ao relato mais
verossímil, entre as versões que competem pelo selo oficial da justiça, o crachá
da “acreditação” institucional. Mas a procura pela restauração do fato tal como
realmente aconteceu é tão vaga e subjetiva quanto são as pesquisas sobre
eventos singulares, em ambientes reconstruídos por descrições interessadas,
por mais que seja viável contar com dispositivos tecnológicos2. Esses últimos,
na melhor das hipóteses, funcionam como redutores do repertório de narrativas
alternativas plausíveis, isto é, de narrativas sustentáveis diante da comunidade
dos falantes da língua compartilhada, cuja natureza não é apenas linguística,
mas social, cultural e normativa. Por isso, trata-se antes de retórica que
interpela a inteligência e a emoção dos ouvintes – juiz, júri, opinião pública mobilizando reações relativas à confiabilidade e à credibilidade dos relatos (e
dos relatores), do que de articulação lógica de proposições sobre o real com
pretensões de verdade. Observe-se, contudo, que os esforços de elucidação,
que anseiam, no limite ideal, pelo estabelecimento de um consenso, cedem
2
Exploro esse ponto em Justiça; pensando alto sobre violência, crime e castigo (Nova Fronteira, 2011).
ante a necessidade imperiosa, e legal, de decidir. E quem decide olha para o
passado e o presente, com vistas postas no futuro, isto é, em suas
consequências prováveis.
Nada a ver com a ciência e suas atribuições. Nada a ver com as
condições de produção da verdade. Enquanto a ciência opõe-se à ignorância, a
Justiça opõe-se ao conflito e aos riscos de que, não dirimido, contagie o pacto
e inocule imprevisibilidade na formação coletiva das expectativas. A incerteza é
o umbral da crise e, no quadro de agravamento extremo, é o preâmbulo para a
conflagração anárquica. O problema da Justiça é a incerteza – que representa
o desafio “à ordem e ao progresso”. A ciência convive bem com a incerteza e
se resigna negociar com ela e restringi-la, topicamente. Alimenta-se da
incerteza como se ela fosse o seu combustível. A Justiça oferece um
tratamento para fatos passados que dialoguem com o senso comum e
acomodem tensões, visando garantir a reprodução da ordem social no
presente e no futuro. A ciência, enquanto busca da “verdade”, não tem nenhum
compromisso com o senso comum, com a regulação de expectativas e com a
ordem social. Sua procura não se limita a prazos regimentais, nem é obrigada
a seguir procedimentos pré-fixados.
A ideia de que a Justiça está engajada na promoção do futuro da ordem
social, exorcizando a instabilidade, na medida do que lhe compete – posto que
há fontes alheias à sua intervenção -, provoca dúvidas importantes. Por
exemplo, a Justiça deveria privilegiar o cumprimento rigoroso de seus
protocolos formais e do universo normativo pertinente, quando esse viés colidir
com a substância do fato em causa? O caráter exemplar e dissuasório da
Justiça criminal deve sacrificar o réu individual em nome dos efeitos sociais de
um veredito? Qual a mensagem mais valiosa para o futuro da ordem
democrática e da estabilização de expectativas positivas sobre a cooperação e
o respeito ao pacto social? A consistência inabalável no cumprimento das
regras? Ou sua flexibilização para que se faça justiça, substantivamente, ante
evidências reconhecidas pela sociedade ainda que neutralizadas nos ritos
formais?
A corrente de juristas que conhecidos como “garantistas” sustenta que a
fidelidade absoluta aos protocolos (normas e ritos com que opera a Justiça)
não só representa o esteio para a estabilização de expectativas positivas, como
corresponde mais radicalmente ao direito e, portanto, ao que a Justiça deveria
ser, reconhecendo a inocência de cada réu individual até que os limites da
razoabilidade da hipótese da inocência tenham sido exauridos. Ninguém pode
ser sacrificado em benefício utilitário de outros fins, por mais nobres que sejam.
O utilitarismo, assim concebido, fere as garantias individuais, que constituem a
matriz axiológica do Estado democrático de direito.
Formulado em abstrato, impossível contestar o argumento garantista.
Entretanto, há casos, não poucos, em que a estrita observância dos protocolos
fere outros direitos individuais – e mesmo aqueles reunidos em coletividade e
difusos, mas nem por isso menos significativos para as garantias individuais.
Nesses casos, não cabe mais à Justiça a opção entre ferir e não ferir garantias.
Impõe-se a trágica interrogação: quais garantias individuais seria menos
danoso ferir?
Esse não é o universo desejável, nem corresponde à realidade
pressuposta pela teoria em que as regras convivem coerentemente entre si,
ordenadas por lógica sistêmica. Todavia, é o mundo real, arena concreta em
que contradições jogam, uns contra outros, valores e normas. Na área
ambiental, assim como no campo político em que atuam movimentos sociais,
os casos problemáticos multiplicam-se. Além disso, é consabido que as partes
não se chocam em uma tribuna efetivamente regida pela equidade. A
desigualdade no acesso à Justiça é uma das mais dramáticas, no país, e
realimenta as demais.
O garantismo, naquilo que aporta de adesão radical ao procedimento,
comporta uma dimensão virtuosa inexcedível, mas não tem alcance para
pretender converter-se em diretriz absoluta ou horizonte filosófico-jurídico de
nosso tempo, porque faz tabula rasa da inexorável inconsistência das
referências (nos planos normativo e valorativo) e das contradições práticas,
vividas sob a forma de conflitos hermenêuticos, em meio a antagonismos de
interesses historicamente situados.
De sua parte, ao contrário do que ocorre na esfera da Justiça, a
moralidade não se constrange ante a indecidibilidade e seus efeitos: a
hesitação, a dúvida. Pelo contrário, nutre-se dos dilemas trágicos, tão
instrutivos para nos remeter à finitude, nossa condição inescapável. Por isso,
até hoje Hamlet é superior a dogmatismos prêt-à-porter. Nada mais
enriquecedor, moralmente, do que debruçar-se sobre as dificuldades objetivas
que situações concretas representam para pautas valorativas. Aprende-se que
muitas vezes não há uma solução, o que há é a escolha entre valores ou
formas de violá-los, restando apenas a redução de danos. As aporias não
corróem a moralidade, não revelam sua inaptidão para o mundo vivido. Ao
contrário, mostram quão imprescindível é a instância moral para vivermos em
nosso mundo, mergulhados em contradições, e quão inadequadas são as
simplificações que degradam a moralidade em moralismo. Quando perdemos o
senso moral, perdemos a sensibilidade para as contradições enquanto tais, ou
seja, mais do que desafios cognitivos, laboratórios experimentais para nossa
auto-reinvenção e para repensar o social, sempre de novo.
Nem sempre há contradições. Há também convicções morais que se
aplicam, no dia a dia. Como foi dito na abertura, às vezes, o registro do
julgamento moral não coincide com avaliações judiciais. Isso significa que seria
aceitável renunciar à supremacia da Justiça e trocá-la por juízos morais, que
variam ao sabor dos ventos, dos códigos culturais, das teorias filosóficas e dos
envolvimentos pessoais? Claro que não. Decisões da Justiça existem para ser
cumpridas. Esse é um postulado elementar da democracia, para isso há a
separação dos poderes. Nem hipertrofia do executivo, nem linchamentos: o
império da Lei. Por outro lado, a separação entre verdade, justiça e moralidade
demonstra que há espaço para as três modalidades de pensamento, avaliação
e decisão.
O importante é que se compreenda o seguinte: a vigência da sentença
judicial, cujo valor prático e cuja legitimidade não estão em dúvida, pode afetar,
dependendo das circunstâncias, mas não anula a especificidade do juízo moral
que se faça a respeito de cada caso. Desistir de problematizar, no campo dos
juízos morais, cada ato humano, para respeitar uma decisão judicial seria
confundir inteiramente o significado do pronunciamento da Justiça, que requer
obediência prática na esfera a que se reporta, mas não impõe silêncio
obsequioso a outras indagações, a outros regimes de reflexão e avaliação.
Uma sociedade não pode furtar-se a pensar e repensar, moralmente, como não
pode renunciar a investir em pesquisas científicas, mesmo quando elas
ameacem subverter sua autoimagem ou as crenças hegemônicas.
Não há ofensa à Justiça, nem violação legal, quando um partido toma a
liberdade de submeter à sua própria avaliação a conduta de uma pessoa
condenada em primeira instância e conclui que ela tem as qualidades
necessárias para filiar-se.
Quem defende a tese oposta, sugere que a decisão parcial da Justiça
basta para definir o postulante à filiação não só como responsável por alguma
transgressão identificada, mas também como moralmente inepto. Imenso
equívoco. A Justiça não se pronunciou sobre o status moral dessa pessoa. Não
pode fazê-lo, nem lhe compete fazê-lo. A Justiça, vale reiterar, não existe para
produzir a verdade, nem para medir o calibre moral dos cidadãos. A sociedade
não pode ceder ao Estado, a qualquer de seus braços ou ramificações, a
preciosa e inalienável liberdade de avaliar moralmente e de construir suas
representações da verdade: nas ciências e nas filosofias, nas religiões e nas
reflexões públicas e privadas sobre a moralidade. Nos embates que resultam
da multiplicidade de teses e perspectivas sobre a verdade e a moralidade, não
cabe a intervenção judicial, a menos que eles transbordem as fronteiras das
diferenças culturais e políticas, traduzindo-se em violência e violação de
direitos. Os conflitos de ideias e avaliações morais são irredutíveis,
inconciliáveis, intermináveis e indispensáveis à vitalidade democrática.
Pessoalmente, considero a Lei da ficha limpa uma dupla contradição:
atribuindo-se poder de excluir da competição eleitoral a decisões judiciais de
primeira instância, viola-se o princípio da Justiça, enunciado na Constituição,
segundo o qual só há condenação quando a decisão judicial transita em
julgado. Por outro lado, viola-se a soberania popular expressa no voto, ainda
de acordo com a Carta Magna. Afinal, não se elege quem quer, quem se
oferece como candidato, mas quem recebe votos populares. Se o voto é
soberano, parece um contrassenso esterilizá-lo, vetando candidatos. Mesmo
porque as Leis erram, suas aplicações falham, mas, em última instância, a
fonte de sua correção ou de sua manutenção, a fonte da legitimidade das
instituições são os eleitores. Eles constituem a ultima ratio do poder na
democracia. O risco da judicialização é esvaziar a soberania popular.
Entretanto, admito que há um clamor na sociedade contra a corrupção e
a mercantilização do voto, e que confia no filtro judicial em primeira instância
para sinalizar, demarcar e auxiliar a escolha eleitoral –como se vivêssemos em
um mundo carente de informações. O clamor parece-me mais do que
justificado, mas o método adotado, não. Seria mais eficiente promover
mudanças nas estruturas políticas e nas regras eleitorais. Sobretudo, seria
mais efetivo mobilizar a sociedade discutir política e eleições. Mas o clamor há,
a demanda é fortíssima, o ceticismo cresce e as instituições perdem
credibilidade, velozmente. É preciso considerar a dimensão simbólica de
propostas e decisões.
O que não me parece razoável é repetir o mantra demagógico para
receber aplausos fáceis. É necessário revalorizar a política, a complexidade
dos debates morais, a inalienável liberdade de pensar fora da circunscrição
judicial, não para depreciar a Justiça, mas para não esperar dela o que ela não
pode dar, e não lhe transferir o que é prerrogativa inalienável da sociedade: a
elaboração autônoma e plural de juízos morais e a formulação independente de
avaliações políticas. Ou jamais mudaremos o que houver de errado com as
leis, com a Justiça, com a política e com nossa vida coletiva. Apesar das
aparências e das perversões históricas nacionais, o Estado nasce da
sociedade - não o contrário.
A Rede pode prestar um serviço ao Brasil se resistir ao canto de sereia
da aprovação fácil, do moralismo pueril, da ideologização maniqueísta, das
dicotomias simplistas, do populismo penal, em nome de algumas posições de
princípio contra-intuitivas, difíceis e, por isso mesmo, mais necessárias do que
nunca.
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