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REVIST
A JURÍDICA
REVISTA
MA
TER DEI
MATER
ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE
BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI
ISSN 1676-1278
Volume 3 - Número 3 - jul./dez. 2002 - Semestral
PATO BRANCO - PARANÁ
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
2
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
3
REVISTA JURÍDICA MATER DEI - COMPOSIÇÃO
DIRETOR GERAL DA
FACULDADE MATER DEI:
DR. GUIDO VICTOR GUERRA
EDITOR:
PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA
SUPERVISOR EDITORIAL:
PROF. DR. DIRCEU ANTONIO RUARO
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REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA:
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RESUMOS PROF. RODRIGO SIMIONATO
VERSÃO DOS RESUMOS PARA A LÍNGUA INGLESA:
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DIAGRAMAÇÃO E CAPA:
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EQUIPE DA FACULDADE MATER DEI
DIRETOR GERAL
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VICE-DIRETORA GERAL
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SECRETÁRIO FINANCEIRO
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BIBLIOTECÁRIA
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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APRESENTAÇÃO
O compromisso da Faculdade Mater Dei com a pesquisa
consolida-se com a edição do terceiro volume de sua Revista Jurídica.
No entender da Instituição, a educação jurídica deve transpor os limites
tradicionais do ensino dogmático e meramente reprodutor de
conhecimentos divorciados da realidade social.
Mais vinte dois artigos de autoria de Professores e Juristas Docentes da Faculdade Mater Dei e de outras Instituções de Ensino
Superior - enriquecem o Órgão de Divulgação Científica do Curso de
Direito Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei, ensejando à
comunidade jurídica o debate sobre o Direito e as Ciências Sociais
com as quais mantém diálogo a Ciência Jurídica.
Registre-se o sincero agradecimento da Instituição em prol dos
que contribuíram para a publicação de mais um volume da Revista
Jurídica Mater Dei, pois tal contribuição enriquece a educação jurídica
nacional.
Para a Faculdade Mater Dei a trilogia ensino, pesquisa e
extensão é o caminho que conduz à solidez do conhecimento. O ensino
fundado em pesquisa visa a formação de Bacharéis aptos ao exercício
das diversas profissões jurídicas, mas também conscientes de seus
deveres como Cidadão.
DR. GUIDO VICTOR GUERRA
DIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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EDITORIAL
“A cidadania gestada na universidade tem como característica mais notável
a de poder instrumentalizar-se mais que outras, no manejo e na produção
do conhecimento. Esse tipo de competência alimenta-se crucialmente da
pesquisa”.
MARIA FRANCISCA CARNEIRO. Metodologia da aprendizagem e pesquisa jurídica.
Curitiba: Juruá, 1999, p. 85.
A educação jurídica produz conhecimento, impondo-se que os
Cursos Jurídicos incentivem a pesquisa como complemento indispensável às atividades de ensino e de extensão.
A educação completa, holística, deve preparar profissionais qualificados, mas ao mesmo tempo deve despertar nos Acadêmicos os ideais da Cidadania, a fim de que os futuros Bacharéis estejam aptos à
construção de uma nova realidade social, mais justa e fraterna.
A pesquisa produz o saber, investiga, soluciona, afirma, comprova, assenta os fundamentos de toda Ciência, inclusive do Direito, e
para tanto, a Revista Jurídica Mater Dei oferece sua contribuição.
O terceiro volume - relativo ao segundo semestre de 2002 - contribui para a educação jurídica nacional na medida em que traz a lume
temas relevantes para o Direito e as Ciências Sociais na atualidade.
Com a notória qualidade dos artigos publicados, a Revista confirma seu compromisso com a excelência. O Curso de Bacharelado
em Direito da Faculdade Mater Dei espera que esta publicação reverta
em prol de toda a Comunidade Acadêmica, Docente e Discente.
PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA
COORDENADOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO
COORDENADOR DO NÚCLEO DE PESQUISAS JURÍDICAS MATER DEI
EDITOR DA REVISTA JURÍDICA MATER DEI e dos
CADERNOS DE ESTUDOS JURÍDICOS MATER DEI
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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ARTIGOS
OS DIREITOS DE PERSONALIDADE E O NOVO CÓDIGO
CIVIL BRASILEIRO - FLORI ANTONIO TASCA
MANAGEMENT PÚBLICO: POLÍTICA DE REFORMA E GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL E NA ITÁLIA FRANCISCO CARLOS DUARTE
CRITÉRIOS JURÍDICOS PARA A DISTINÇÃO ENTRE A PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA RURAL E URBANA: ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICAS - JOSÉ ROBSON DA SILVA
VÍNCULO DE EMPREGO ENTRE POLICIAL MILITAR ESTADUAL (COMO EMPREGADO) E EMPREGADOR NO ÂMBITO PRIVADO - SILVANA SOUZA NETTO MANDALOZZO
COMISSÕES DE CONCILIAÇÃO PRÉVIA : CULTURA E
AUTOCOMPOSIÇÃO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO - VANDERLEI
SCHNEIDER DE LIMA
A RETROATIVIDADE BENIGNA DA LEI TRIBUTÁRIA E O ATO
NÃO DEFINITIVAMENTE JULGADO - CÉLIO ARMANDO JANCZESKI
JUIZ CRIMINAL E O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO - CARLOS ALBERTO BAPTISTA
OS PRINCIPAIS TRATADOS DA UNIÃO EUROPÉIA - HOMAR
PACZKOWSKI ANTUNES PINTO
BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR EM FACE DOS EMPREGADOS E A OBRIGAÇÃO DE REPARAR OS DANOS - MARIA CLAYDE ALVES PACE
CONFLITO APARENTE DE NORMAS E ART. 10 DA LEI N°
9.437/97 - RUDI RIGO BÜRKLE
OS FURTOS TENTADOS NOS MODERNOS ESTABELECIMENTOS DE VENDA A VAREJO NA REALIDADE ATUAL - SILVIO
COUTO NETO
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JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA EM MATÉRIA DE LIMITAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS - SÍLVIA MARIA
DERBLI SCHAFRANSKI
ENSAIO SOBRE O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE - ANDREY
HERGET
CORRETOR DE IMÓVEIS E O NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO - ERLON ANTONIO DE MEDEIROS
PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO FUTURO DO DIREITO PENAL BRASILEIRO - PAULO CÉSAR BUSATO
A SÚMULA 233 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E O
DESTINO DOS PROCESSOS DE EXECUÇÃO EM CURSO - ADRIANA
TIMÓTEO DOS SANTOS
SOBRE O PAPEL E ORIGENS DA SOCIOLOGIA - GUILHERME G. TELLES BAUER
ASPECTOS COMPORTAMENTAIS DAS EMPRESAS:
ENFOQUE NA RESPONSABILIDADE JURÍDICA E SOCIAL DAS
EMPRESAS - MAGDA DEMARTINI TASCA
TRABALHO, LIBERALISMO E IDEÁRIO NEOLIBERAL LINEU FERREIRA RIBAS
O DIREITO À DIFERENÇA, À IGUALDADE E À LIBERDADE
DOS HOMOSSEXUAIS - JULIANE MAYER GRIGOLETO
REALIDADE E REPRESENTAÇÃO - RAFAEL AUGUSTUS
SÊGA
DIREITO, JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO DO ADVOGADO ROBERTO ANTONIO BUSATO
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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OS DIREITOS DE PERSONALIDADE E O
NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO1
FLORI ANTONIO TASCA
PROFESSOR TITULAR e COORDENADOR DO CURSO DE
BACHARELADO EM DIREITO DA FACULDADE MATER DEI. DOUTOR EM
DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS e MESTRE EM DIREITO PRIVADO
PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. ADVOGADO e
CONSULTOR NO ESTADO DO PARANÁ.
RESUMO
O texto aborda o tema dos direitos de personalidade à luz da nova codificação
civil brasileira. Inicia tratando dos fundamentos teóricos da doutrina, passando
para a análise do conceito e a abrangência dos direitos personalíssimos, e
destacando sua relação com a doutrina dos direitos fundamentais. O artigo
descreve as inovações da Lei 10.406/2002 e as relações da temática com as
pessoas jurídicas. Cuida ainda da incidência das normas de responsabilidade
civil em casos de atos ilícitos cometidos contra as pessoas, atentatórios
aos direitos personalíssimos. Como conclusão, o autor aponta o divórcio
existente entre o discurso jurídico (protetor das pessoas) e a realidade social
excludente.
ABSTRACT
The text points to the theme of Entity Law according to the new Brazilian Civil
Code. It starts talking about theory of fundaments in the issue, going to the
analysis of concept and how far the exclusive rights go , and pointing to its
relation with the subject of basic rights. The article describes the innovations
of act # 10.406/2002 and the theme relation to the legal entity. It still cares
about the incidence of rules of civil liabilities in case of unlawful act
committed against people, in attention to the exclusive rights. As a conclusion,
the author points to the divorce between the law argument (people protector)
and the social reality .
PALAVRAS CHAVE - Direito Civil; direitos de personalidade; novo
Código Civil brasileiro; responsabilidade civil.
INTRODUÇÃO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS
A vigência da Lei 10.406, de 10/01/2002 (novo Código Civil brasileiro - CCB) tem gerado ansiedade nos meios sociais, dada a
1
Texto que fundamentou conferência proferida no evento “repensando o Direito Privado: uma jornada pelo
novo Código Civil brasileiro”, promovido pelo Departamento de Direito das Relações Sociais do Curso de
Bacharelado em Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa (segundo semestre de 2002).
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abrangência e a importância da legislação civil, a regular toda a vida
privada, disciplinando as pessoas, as famílias, as obrigações, as empresas, as coisas e as sucessões.
A comunidade jurídica tem discutido intensamente a nova
codificação, sendo variados os temas que suscitam os mais acirrados
debates, podendo-se destacar (pela inovação e relevância) os direitos
de personalidade, matéria prevista no Livro I da Parte Geral (Das Pessoas), Título I (Das Pessoas Naturais), Capítulo II (Dos Direitos da
Personalidade), artigos 11 a 21.
A formulação teórica da teoria dos direitos de personalidade é
relativamente recente e sujeita a discussões doutrinárias e
jurisprudenciais, marcadas até então por lei arcaica (Código Civil brasileiro de 1916 : CCB-16), afastada dos ideais de proteção integral das
pessoas.2
O Direito antigo (inclusive o Direito Romano) ignorava a tutela
integral das pessoas, pois apesar de alguns povos terem elaborado
normas protetivas,3 inexistia a concepção de direitos oriundos da personalidade jurídica. A teoria dos direitos personalíssimos foi fortalecida
no Século XX, principalmente pelo Direito, o qual assentou as colunas
de sustentação da doutrina.4
2
“A categoria dos direitos da personalidade constitui-se, portanto, em construção recente, fruto de
elaborações doutrinárias germânica e francesa da segunda metade do século XIX. Compreendem-se,
sob a denominação de direitos da personalidade, os direitos atinentes à tutela da pessoa humana,
considerados essenciais à sua dignidade e integridade. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio
de Janeiro : Renovar, 1999, p. 24.
3
Deve-se assinalar, no entanto, a existência no Direito Romano de normas que, pontualmente, visam a
proteção das pessoas, em especial no Direito das Obrigações, d’onde se destacam as obrigações que
nascem dos delitos privados. Destaque-se, por exemplo, a existência do delito de injúria, o qual abrangia,
em dadas circunstâncias, tanto ofensas físicas quanto agressões morais, ensejando reparação pecuniária
pelo ofensor em prol do ofendido.
4
Na lição de Francesco Messineo, “los derechos de la personalidad constituyen una categoría desconocida
de los ordenamientos jurídicos antiguos; y son una conquista de la ciencia jurídica del último siglo. En el
pasado, entre nosotros (y aun hoy, en otras legislaciones), se reconducían algunos de estos derechos
bajo el concepto de derecho de propriedad sobre bienes inmateriales, considerándose bienes inmateriales
el nombre, las cartas misivas etc.; esto, con ocasión de indudable caráter absoluto de aquellos derechos,
pero tanbién porque no se veía que los mismos estén desprovistos de carácter patrimonial y no se advertía
que, si todos los derechos reales son absolutos, no todos los derechos absolutos son reales”. Trad.: “Os
direitos da personalidade constituem uma categoria desconhecida dos ordenamentos jurídicos antigos;
e são uma conquista da ciência jurídica do último século. No passado, entre nós (e ainda hoje, em outras
legislações), se ampliavam alguns destes direitos sob ao conceito de direito de propriedade sobre bens
imateriais, considerando-se bens imateriais o nome, as cartas missivas, etc.; isto, em virtude do indubitável
caráter absoluto daqueles direitos, mas também porque não se via que os mesmos estivessem desprovidos
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
15
Nada obstante, vários fatores contribuíram para a gênese e o
desenvolvimento da teoria dos direitos personalíssimos. Para Carlos
Alberto Bittar destacam-se: a) a difusão do Cristianismo, assentando a
idéia de dignidade do homem; b) a Escola Jusnaturalista, firmando a
noção de direitos humanos e inatos ao homem, correspondentes à natureza humana e preexistentes ao reconhecimento do Estado; c) o
Iluminismo, cuja doutrina exigia maior respeito ao ser humano (cidadão), combatendo a tirania do Estado.5
A controvérsia sobre o tema chegou a tanto que se questionou
a própria existência dos direitos de personalidade como categoria jurídica autônoma, grassando o debate sobre a natureza jurídica, a amplitude e o conteúdo desses direitos.
Tal contexto contribuiu para o surgimento de “teorias
negativistas”, as quais não admitiam sequer a existência dos direitos
personalíssimos no plano do Direito positivo.6
Bittar descreve o problema:
O tema dos direitos da personalidade está eivado de dificuldades que decorrem, principalmente: a) das divergências entre os
doutrinadores com respeito à sua própria existência, à sua natureza, à
sua extensão e à sua especificação; b) o caráter relativamente novo
de sua construção teórica; c) da ausência de uma conceituação global
definitiva; d) de seu enfoque, sob ângulos diferentes, pelo direito positivo (público, de um lado, e privado, de outro), que lhe imprime feições
e disciplinações distintas.7
A par das divergências, a doutrina atual reconhece que os direitos de personalidade afirmam-se diante da necessidade de proteção
de caráter patrimonial e não se advertia que, se todos os direitos reais são absolutos, nem todos os
direitos absolutos são reais.” MESSINEO, Francesco. Manual de derecho civil y comercial, tomo III.
Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires, Argentina, 1954, p. 05
5
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade e o projeto do Código Civil brasileiro. In: Revista
de Informação Legislativa nº 60. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, outubro
a dezembro de 1978, p.19.
6
“Destacam-se, antes de mais, as chamadas teorias negativistas (Roubier; Unger; Dabin; Savigny; Thon;
Von Tuhr; Enneccerus; Zitelmann; Crome; Iellinek; Ravà; Simoncelli, dentre outros), que, no século passado,
refutaram a categoria dos direitos da personalidade. Afirmava-se, em síntese estreita, que a personalidade,
identificando-se com a titularidade de direitos, não poderia, ao mesmo tempo, ser considerado como
objeto deles. Tratar-se-ia de contradição lógica.” TEPEDINO, Gustavo. Ob. cit., p. 25.
7
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade e o projeto do Código Civil brasileiro, Ob. cit., p. 106.
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integral da pessoa humana, especialmente contra práticas e abusos
atentatórios à sua dignidade.8 9
O tema é relevante e atual, pois o mundo moderno, caracterizado pelo avanço da ciência e da tecnologia, conduz a humanidade “a
lugares nunca dantes imaginados, mas que trazem consigo questões
tormentosas e de dificílima solução para os juristas, dentre as quais
podem ser apontadas as atinentes à esfera dos direitos da personalidade”.10
DIREITOS DE PERSONALIDADE: CONCEITO E ABRANGÊNCIA
Os direitos de personalidade são direitos subjetivos,11 mediante
os quais a ordem jurídica concede ampla proteção à pessoa humana.
Tal conceito, porém, não é isento de controvérsias, entendendo
parte da doutrina que não se pode reconhecer aos direitos
8
GOMES, Orlando. Direitos de personalidade. In: Revista Forense nº 216. Rio de Janeiro: Forense,
outubro a dezembro de 1966, p . 05.
9
Sobre a proteção da pessoa, à luz do sistema da common law, escrevem Samuel Warren e Louis
Brandeis: “Es un principio tan viejo como el common law que el individuo debe gozar de total protección
en su persona y en sus bienes; sin embargo, resulta necesario, de vez em cuando, redefinir com
precisión la naturaleza y la extensión de esta protección. Los cambios políticos, sociales y económicos
imponen el reconocimiento de nuevos derechos, y el common law, en su eterna juventud, evoluciona
para dar cabida a las demandas de la sociedad. Así pues, hace ya mucho tiempo, el derecho establecía
medios de reparación en caso de agresiones de hecho contra la vida y los bienes, por delitos vi et
armis.” Trad.: “Sobre a proteção da pessoa, à luz do sistema do common law, escrevem Samuel Warren
e Louis Brandeis: “É um princípio tão velho como o common law que o indivíduo deve gozar de total
proteção à sua pessoa e aos seus bens; no entanto, resulta necessário, de vez em quando, redefinir
com precisão a natureza e a extensão desta proteção. As mudanças políticas, sociais e econômicas
impõem o reconhecimento de novos direitos, e o common law, em sua eterna juventude, evolui para dar
guarida às demandas da sociedade. Assim pois, faz já muito tempo, o direito estabelecia meios de
reparação em caso de agressões de fato contra a vida e os bens, por delitos vi et armis.” WARREN,
Samuel & BRANDEIS, Louis. El derecho a la intimidad. Trad. Pilar Baselga. Madrid, Espanha : Editorial
Civitas, 1995, p. 21.
10
“Tal esfera, com efeito, tem sido continuamente provocada pelas dúvidas carreadas pelo progresso
científico e tecnológico sem par de nossos tempos, bem como tem sido alvo de mais e mais investidas
desse mesmo progresso. Daí a importância de que se reveste o estudo acurado das garantias e dos
instrumentos de salvaguarda dos direitos da personalidade – máxime dos previstos solenemente na
Constituição, que traça as diretrizes fundamentais do Estado.”BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Os direitos
da personalidade na Constituição de 1988. In: Revista dos Tribunais nº 733. São Paulo : RT, novembro
de 1996, p. 83.
11
“A melhor conceituação de direito subjetivo ainda é a velha expressão latina facultas agendi . Direito
subjetivo é a faculdade de agir conforme o que dispõe a norma objetiva (a norma agendi). Em outras
palavras : o direito objetivo confere um direito aos indivíduos; a estes cabe optar, ou não, pelo uso deste
direito, sempre de acordo com a norma vigente. É um poder de ação, determinado pela vontade do
indivíduo e disciplinada pela ordem jurídica, que vai recair sobre bens jurídicos.” CORTIANO JÚNIOR,
Eroulths. A teoria geral dos direitos da personalidade. In: Revista da Procuradoria Geral do Estado do
Paraná nº 05. Curitiba : Imprensa Oficial do Estado, 1987, p. 21.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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personalíssimos o caráter de direitos subjetivos.12
A corrente majoritária, porém, reconhece que “a personalidade é dotada (seja por fato da própria natureza, seja por concessão
jurídica) de direitos subjetivos relativos à própria personalidade, que
lhe vão permitir desenvolver-se, tornando o homem digno na sociedade”, como bem esclarece Cortiano Júnior. 13
Afirma-se, assim, a existência dos direitos subjetivos de personalidade, pois se o direito subjetivo pressupõe sempre um dever
jurídico, é natural que se exija de todos o respeito aos semelhantes, às
outras pessoas (mediante seus atributos de personalidade), exigência
essa oponível erga omnes. 14
Para José Castan Tobenãs
Si el concepto del derecho subjetivo presupone un poder al que el
ordenamiento jurídico conceda una cierta autonomía, no puede
negarse la posibilidad técnica de que sean objetivados por el Derecho,
separándolos y destacándolos de la personalidad, determinados atri12
Segundo Eroulths Cortiano Júnior, “muitos autores não categorizam os direitos da personalidade como
direitos subjetivos simplesmente porque cada qual parte de um seu particular conceito do que sejam
direitos subjetivos. Para alguns, estes não são direitos, mas ‘poderes’. Para outros tratam-se de ‘situações
juridicamente estabelecidas’ ou ‘deveres da coletividade’. Tais posicionamentos não adicionam novidades
à tradicional teoria dos direitos subjetivos, que continua tendo aceitação plena da doutrina, da lei e da
jurisprudência. Importa saber por ora que o indivíduo, perante a norma jurídica, tem uma faculdade de agir
em relação aos bens jurídicos, do modo que melhor lhe aprouver, mas em consonância com a ordem
jurídica, na busca de sua realização pessoal. Esta a caracterização dos direitos subjetivos, entre os quais
destacam-se alguns tão intimamente ligados à personalidade que são imprescindíveis para a existência
digna do homem. São os direitos da personalidade.” Idem, p. 23.
13
“Direito subjetivo é a faculdade de agir, em conformidade com a ordem jurídica, sobre um determinado
bem, que constitui o seu objeto. Qual o objeto dos direitos da personalidade ? Juridicamente, considerase bem toda a utilidade, material ou imaterial, que incida na faculdade de agir do sujeito, porque lhe
despertou interesse. É todo o interesse do homem, ideal ou econômico, munido de proteção jurídica. Mas
o interesse do homem não se dá apenas sobre bens externos a ele, mas também – e principalmente –
sobre sua própria pessoa.” CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. A teoria geral dos direitos da personalidade,
Ob. cit., p. 22-24.
14
“En principio, no hay ciertamente razones decisivas para negar la existencia de la categoría jurídica
constituída por los derechos subjetivos de la personalidad. Si el derecho subjetivo presupone siempre un
deber jurídico, que haga posible una pretensión o exigencia, hay que reconocer que el derecho a la vida,
a la integridad física, al honor, a la identidad personal, etc., penetran en el círculo del deber jurídico que
pesa sobre todos, en el sentido de que no han de ser ilegítimamente lesionados.” Trad.: “Em princípio, não
há certamente razões decisivas para negar a existência da categoria jurídica constituída pelos direitos
subjetivos da personalidade. Se o direito subjetivo pressupõe sempre um dever jurídico, que faça possível
uma pretensão ou exigência, há que se reconhecer que o direito à vida , à integridade física, à honra, à
identidade pessoal, etc., penetram no círculo do dever jurídico que pesa sobre todos, no sentido de que
não devem ser ilegitimamente lesionados.” TOBENÃS, José Castan. Los derechos de la personalidad.
Madrid, Espanha : Instituto Editorial Rèus, 1952, p. 21-22.
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18
butos suyos, que sean así elevados a bienes jurídicos y
consiguientemente a objetos de derecho, protegidos com una específica acción civil. En los derechos esenciales de la personalidad,
ciertamente, pueden concurrir las cualidades propias de los derechos
subjetivo, en cuanto se dé en ellos la atribución, por el ordenamiento
positivo, de un poder jurídico a un titular frente a outra u otras
personas, puesto a su libre disposición y tutelado por una acción
judicial. Por lo demás, el problema de si el Derecho positivo reconoce
como un poder jurídico autónomo protegido por una acción a cada
uno de los posibles derechos de la personalidad, sólo puede
resolverse, caso por caso, según los principíos del ordenamiento
jurídico de que se trate. 15
Destaque-se o conceito de Limongi França, para quem os direitos de personalidade consideram-se “faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim
seus prolongamentos e projeções”. 16 17
A proteção da pessoa fundada na doutrina dos direitos de personalidade volta-se a seus atributos imateriais, ensejando a prevenção e impondo a reparação integral dos danos sofridos pelas vítimas
de agressões físicas, morais ou intelectuais.
A multiplicidade de leituras possíveis dos direitos de personalidade dificulta a formulação de uma idéia unívoca. Sua fundamentação é
controversa, como anota Orlando Gomes:
15
Trad.: “Se o conceito do direito subjetivo pressupõe um poder ao qual o ordenamento jurídico conceda
uma certa autonomia, não se pode negar a possibilidade técnica de que sejam objetivados pelo Direito,
separando-os e destacando-os da personalidade, determinados atributos seus, que sejam assim elevados
a bens jurídicos e consequentemente a objetos de direito, protegidos com uma ação civil específica. Nos
direitos essenciais da personalidade, certamente, podem concorrer as qualidades próprias dos direitos
subjetivos, enquanto se dê neles a atribuição pelo ordenamento positivo, de um poder jurídico a um titular
frente a outra ou outras pessoas, posto à sua livre disposição e tutelada por uma ação judicial. No mais,
o problema de se o direito positivo reconhece como um poder jurídico autônomo protegido por uma ação
a cada um dos possíveis direitos da personalidade, somente se pode resolver, caso por caso, segundo os
princípios do ordenamento jurídico de que se trate.” Idem, ibidem.
16
FRANÇA, Rubens Limongi. Direitos da personalidade. Coordenadas fundamentais. In: Revista dos
Tribunais nº 567. São Paulo : RT, janeiro de 1983, p. 09.
17
“Mas vê-se presente a importância dos direitos da personalidade no mundo moderno, onde a
informatização tende a colocar tais direitos em plena vitrine, sujeitos, portanto, a quebras diuturnas.”
FONSECA, Antonio Cezar Lima da. Anotações aos direitos da personalidade. In: Revista dos Tribunais
nº 715. São Paulo : RT, maio de 1995, p. 53.
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Noção mais clara, obtém-se mediante delimitação de seu objeto,
em termos que nos parecem perfeitamente admissíveis. Constituem-no os bens jurídicos em que se convertem projeções físicas ou
psíquicas da pessoa humana por determinação legal, que os individualize para lhes dispensar proteção.
Reclama, assim, a definição do direito de personalidade, o alargamento do conceito jurídico de bem, que lhe reconheça significação
diversa da que se lhe atribui em Economia. Em Direito, toda utilidade, material ou não, que incide na faculdade de agir do sujeito, constitui um bem, podendo figurar como objeto da relação jurídica, porque sua noção é histórica e não naturalística. Nada impede, em conseqüência, que certas qualidades, atributos, expressões ou projeções da personalidade sejam tuteladas no ordenamento jurídico como
objeto de direitos de natureza especial. 18
Os direitos de personalidade reportam-se às pessoas, 19 protegendo a vida, a saúde, a integridade psicofísica, a liberdade, a honra, o nome, a imagem, a intimidade e a vida privada, dentre outros
atributos.20
Talvez a maior polêmica em torno do tema diga respeito à questão da limitação dos direitos de personalidade aos expressamente previstos em lei (teoria da tipificação dos direitos de personalidade), contrastando com a cláusula geral ou direito geral de personalidade, protegendo integralmente a pessoa independente de previsão normativa.
Perlingieri expõe a controvérsia: “sobre os direitos da personalidade distinguem-se concepções que tendem a reconhecer um ‘direito geral de personalidade’ e teorias que sustentam a existência de
uma pluralidade de direitos da personalidade”. 21
18
GOMES, Orlando. Direitos de personalidade, Ob. cit., p. 06.
A doutrina dos direitos de personalidade abrange as pessoas físicas e as pessoas jurídicas. Há, no
entanto, diferenças essenciais entre a tutela das pessoas humanas em relação às jurídicas, dadas as
diferenças ontológicas entre ambas. Enquanto a pessoa natural é um ser físico, com existência bio-psíquica,
a pessoa jurídica é um “ser” dotado de personalidade jurídica (conceito jurídico) real, porém é um “ser”
imaterial.
20
Mota Pinto afirma que os direitos de personalidade abrangem “um círculo de direitos necessários; um
conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa”. MOTA PINTO, Carlos Alberto da
Mota. Teoria geral do direito civil. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 1996, p. 207.
21
“No âmbito destas últimas – ditas concepções ‘atomísticas’- apontam-se aquelas que consideram a
existência de uma série aberta de direitos (atipicidade dos direitos da personalidade) ou fechada
19
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
20
Merece crítica a posição doutrinária que limita a tutela jurídica
dos direitos de personalidade aos previstos (expressamente) em lei,
revelando-se injustificável tamanha restrição. 22
A amplitude conceitual da cláusula geral de personalidade é
assinalada por Judith Martins-Costa em seu livro “a boa-fé no direito
privado”, 23 no qual a insigne jurista traça claramente os contornos do
Direito Privado contemporâneo.
Impõe-se, hoje, reconhecer um direito geral de personalidade,
nos moldes enunciados por Perlingieri, para quem “nenhuma previsão
especial pode ser exaustiva e deixar de fora algumas manifestações e
exigências da pessoa que, mesmo com o progredir da sociedade, exigem uma consideração positiva”. 24
A exegese da Constituição Federal do Brasil revela que o Direito positivo contempla uma “cláusula geral” de proteção à personalidade jurídica, anotam (dentre outros) Tepedino 25 e Cortiano Junior. 26
(tipicidade). A contraposição entre tipicidade e atipicidade, aparentemente apenas técnica, encerra
opções ideológicas e culturais. Na maioria das vezes, afirma-se que os direitos da personalidade são
típicos: fora das hipóteses expressamente previstas, ou pelo Código Civil, ou pelas leis especiais, ou
pela Constituição, não existiriam outras. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Trad. Maria Cristina
De Cicco, 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 154.
22
“A realização plena da dignidade humana, como quer o projeto constitucional em vigor, não se
conforma com a setorização da tutela jurídica ou com a tipificação de situações previamente estipuladas,
nas quais pudesse incidir o comportamento.” TEPEDINO, Gustavo. Ob. cit., p. 46.
23
"Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto, uma disposição
normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’,
ou ‘vaga’, caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de
modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente
ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora
do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual, reiterados no tempo
os fundamentos da decisão, será viabilizada a ressistematização destes elementos originariamente extrasistemáticos no interior do ordenamento jurídico.” MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado.
São Paulo: RT, 1999, p. 303.
24
“Afirmada a natureza necessariamente aberta da normativa, é da máxima importância constatar que a
pessoa se realiza não através de um único esquema de situação subjetiva ... A esta matéria não se pode
aplicar o direito subjetivo elaborado sobre a categoria do ‘ter’. Na categoria do ‘ser’ não existe a dualidade
entre sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e a titularidade é institucional, orgânica. Onde o
objeto de tutela é a pessoa, a perspectiva pode mudar; tornando-se necessidade lógica reconhecer, pela
especial natureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o
sujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo de relação. A tutela da pessoa não pode ser
fracionada em isoladas fattispecie concretas, em autônomas hipóteses não comunicáveis entre si, mas
deve ser apresentada como problema unitário, dado o seu fundamento representado pela unicidade do
valor da pessoa. Este não pode ser dividido em tantos interesses, em tantos bens, em isoladas ocasiões,
como nas teorias atomísticas.” PERLINGIERI, Pietro. Ob. cit., p. 155-156.
25
“Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao
objetivo fundamental de erradicação da pobreza e marginalização, e de redução das desigualdades
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
21
Tal cláusula geral (de fundamento constitucional) objetiva tutelar
amplamente os interesses das pessoas, as quais passam a ser vistas
como o centro do ordenamento jurídico.
Do Direito europeu colhe-se o exemplo lusitano. Para Mota
Pinto o artigo 70º do Código Civil português é norma geral de tutela da
personalidade humana, consagrando um verdadeiro “direito geral de
personalidade”, permitindo “conceder tutela a bens pessoais não
tipificados, designadamente protegendo aspectos da personalidade cuja
lesão ou ameaça de violação só com a evolução dos tempos assumam um significado ilícito”. 27
Elimar Szaniawski, ilustre professor da Universidade Federal
do Paraná, observa que a “cláusula geral” de tutela da personalidade
humana está presente no Direito alemão:
O direito geral de personalidade ressurgiu e se afirmou no direito
alemão a partir da Lei Fundamental de Bonn, ou Grund Gesetz que,
em seu artigo 1º, declara ser intangível a dignidade do homem e em
seu art. 2º reconhece o livre desdobramento da personalidade. A
dignidade do homem e o direito ao livre desdobramento de sua personalidade são, portanto, elementos integrantes do direito geral de
personalidade que, através da ordem jurídica, são garantidos como
um direito subjetivo a respeito de todas as pessoas.28
A ampla e efetiva proteção das pessoas é a missão dos direitos de personalidade, previstos tanto no Direito Público quanto no Direito Privado, protegendo as pessoas de condutas lesivas e prescrevendo
a reparação dos danos materiais e morais.29
sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos
e garantias, adotados pelo textor maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção
da pessoa humana, tomada como valor máximo do ordenamento.” TEPEDINO, Gustavo. Ob. cit., p. 48.
26
“Não podem restar dúvidas que o Brasil fez a opção pelo direito geral de personalidade (ao lado da
proteção tipificada, seja em leis esparsas, seja no projeto do Código Civil, em afirmar que a liberdade, a
segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça são os valores supremos de nossa
sociedade, assegurados pelo Estado de Direito. Além disso, a dignidade da pessoa humana é fundamento
da República (art. 1º) e é garantida a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade (art. 5º)”. CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos aos chamados direitos da
personalidade. In: Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Coord. Luiz
Edson Fachin. Rio de Janeiro: Renovar, 1988, p. 47.
27
PINTO, Carlos Alberto da Mota. Ob. cit., p. 208.
28
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. São Paulo: RT, 1993, p. 56 .
29
“Tem por finalidade suas regras, algumas das quais apresentam às vezes cunho público ou penal, sem
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
22
A doutrina aponta como características dos direitos
personalíssimos a extrapatrimonialidade, a essencialidade, a
intransmissibilidade, a imprescritibilidade, a impenhorabilidade, a vitaliciedade, destacando o caráter absoluto, erga omnes. 30
Como explica Messineo:
De aquí, las características de los derechos de personalidad; los
cuales, si bien no son reales, son todos absolutos (e implican para
los terceros un deber general de abstención; en el que se concreta
el respeto y la salvaguardia de ellos); y son también indisponibles,
intrasmisibles al herredero, irrenunciables, no-susceptibles de
adquisición por virtud de posesión (qun continuada), imprescriptibles,
inexpropiables y no-susceptibles de estimación pecuniária (algunos
son inmodificables en su contenido). Se adquieren por el hecho
mismo de ser sujeto de derechos (persona); y casi todos ellos nacen
y se extinguen, ope legis, con la persona ... La lesión de los derechos
de la personalidad se manifesta en un daño a la persona, pero asume
los contornos del que se há llamado daño no-patrimonial. 31
As várias facetas dos direitos personalíssimos espelham sua
importância, pois há proteção da personalidade em diversos níveis do
ordenamento jurídico, tanto constitucional quanto civil, sem olvidar que
a ciência criminal cuida também da matéria, tipificando delitos contra
os direitos personalíssimos (calúnia, injúria e difamação).
embargo do privativismo que as cerca: 1º) proteger aqueles direitos de ofensas por ilícitos de outros
particulares; 2º) proibir disposições ou limitações voluntárias que se choquem com o interesse geral
(ordem, bons costumes), ou importem diminuição permanente da integridade física”. OLIVEIRA, Moacyr de.
Evolução dos direitos de personalidade. In: Revista dos Tribunais nº 402. São Paulo: RT, abril de 1969,
p. 31.
30
Como afirma Carlos Alberto Bittar: “São os direitos que transcendem, pois, ao ordenamento jurídico
positivo, porque ínsitos na própria natureza do homem, como ente dotado de personalidade. Intimamente
ligados ao homem, para sua proteção jurídica, independentes de relação imediata com o mundo exterior
ou outra pessoa, são intangíveis, de lege lata, pelo Estado, ou pelos particulares”. BITTAR, Carlos Alberto.
Os direitos da personalidade, 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 11.
31
Trad.: “Daqui, as características dos direitos de personalidade, os quais, apesar de não serem reais,
são todos absolutos (e implicam para os terceiros um dever geral de abstenção; no que se concretiza o
respeito e a salvaguarda deles); e são também indisponíveis, intransmissíveis ao herdeiro, irrenunciáveis,
não suscetíveis de aquisição em virtude de posse (mesmo que continuada), imprescritíveis, inexpropriáveis
e não suscetíveis de estimação pecuniária (alguns são inalteráveis em seu conteúdo). Se adquirem pelo
fato mesmo de ser sujeito de direitos (pessoa); e quase todos eles nascem e se extinguem, ope legis, com
a pessoa ... A lesão dos direitos da personalidade se manifesta em um dano à pessoa, mas assume os
contornos do que se chamou dano não patrimonial”. MESSINEO, Francesco. Ob. cit., p. 04.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
23
DIREITOS DE PERSONALIDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Há muito esteve o tema dos direitos de personalidade ligado
ao Direito Público.32 Para Limongi França, se por um lado isso poderia
se constituir em lacuna, por outro mostra “a importância desses Direitos, pois muitos deles integram as declarações constitucionais que servem como garantia dos cidadãos contra as arbitrariedades do Estado”.33
Nada, obstante, a previsão dos direitos de personalidade na
seara do Direito Privado, inegável a proximidade desses com os direitos fundamentais, previstos em normas de Direito Público.34
Capelo de Sousa, autor de “o direito geral de personalidade”,
observa que a afinidade entre direitos de personalidade e direitos fundamentais “emerge da parcial sobreposição ao nível da pessoa humana de dois planos jurídico-gnoseológicos: o de Direito Civil, onde se
fundam os direitos da personalidade, e o de Direito Constitucional,
d’onde irradiam os direitos fundamentais”.35
É do Direito Privado o domínio da doutrina dos direitos de personalidade, considerados direitos subjetivos de ordem privada dotados de proteção civil, enquanto “la teoría de los derechos del hombre
se preocupa, sobre todo, de su tutela publica, aspirando a poner al
individuo bajo la protección del Derecho político”, como sustenta Castan
Tobenãs.36
32
Tratando dos direitos de personalidade, escreve Moacyr de Oliveira que “fixados no decorrer do
século passado, por juristas alemães, foram durante muito tempo, como prerrogativas essenciais e
fundamentais da pessoa, considerados via de regra como matéria de Direito Público. Pertence a época
recente sua caracterização no rumo privativista que lhe deram sobretudo na Alemanha, Itália, França e
Espanha.” OLIVEIRA, Moacyr de. Ob. cit., p. 29.
33
FRANÇA, Rubens Limongi. Ob. cit., p. 10.
34
Segundo Ricardo Luis Lorenzetti, “os direitos fundamentais têm sido chamados de garantias de liberdade,
direitos individuais, direitos participativos, direitos humanos ou direitos personalíssimos. Indicamos a origem
histórica e a indubitável referência aos valores que eles supõem, e que correspondem ao homem enquanto
tal, independente da ordem jurídica onde vive.” LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito
privado, Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo : RT, 1998, p. 283 .
35
O autor observa que, embora haja larga coincidência entre os direitos de personalidade e os direitos
fundamentais, isso “não significa assimilação ou perda de autonomia conceitual recíproca, pois tais
categorias jurídicas, mesmo quando tenham por objeto idênticos bens de personalidade, revestem um
sentido, uma função e um âmbito distintos, em cada um dos planos em que se inserem” . SOUSA,
Radinbranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra, Portugal : Coimbra
Editora, 1995, p. 581-584.
36
“La significación política que acompaña a la teoría de los derechos del hombre y del ciudadano,
como a la de los llamados derechos individuales, es, en efecto, muy clara. Están vinculados a las
Declaraciones de derechos formuladas a partir del siglo XVIII, cuyas fuentes doctrinales e históricas
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
24
A despeito de enraizada no Direito Privado, vê-se com freqüência a tutela dos direitos personalíssimos pelo Direito Público, por normas e princípios consagrados em pactos e convenções internacionais,
em especial as que têm por desiderato declarar os direitos fundamentais do homem.37
No dizer de Capelo de Sousa:
De todo o modo, apesar destas destrinças, verifica-se como vimos,
uma tendência, face ao reconhecimento constitucional da dignidade
da pessoa humana no quadro das relações sociais, para os direitos
de personalidade serem também tutelados, no plano constitucional,
como direitos fundamentais. Inversamente, ocorre ainda outra tendência, face ao reconhecimento de uma dimensão relacional ‘eu’mundo da personalidade, para os direitos fundamentais serem direitos de personalidade, mas aqui com o limite não subvertível do conteúdo e do continente da personalidade humana enquanto bem juridicamente directamente tutelável. 38
Em perspectiva história, o Direito Privado nacional (CCB-16)
negou tratamento sistemático aos direitos de personalidade,39 prevendo somente a tutela indireta desses direitos, mediante a incidência dos
se discuten, pero cuya doble característica, política e individualista, se manifiesta con mucho relieve.”
Trad.: “O significado político que acompanha a teoria dos direitos do homem e do cidadão, como o dos
chamados direitos individuais, é, com efeito, muito claro. Estão vinculados às declarações de direitos
formuladas a partir do século XVIII, cujas fontes doutrinárias e históricas se discutem, mas cuja dupla
característica, política e individualista, se manifesta com muita relevância.” TOBENÃS, José Castan. Ob.
cit., p. 12-13.
37
Como escreve Jésus Gonzáles Pérez : “ciertamente, las facultades que integran la esfera imediata de
la personalidad quedan relegadas a una zona de valor social secundario. Pero, desde principios de siglo,
son evidentes los esfuerzos de la doctrina – acentuados los últimos años – por la costrucción jurídica de
los derechos de la personalidad, ‘para poder acorazar a la persona humana en las relaciones de Derecho
privado’, sin que pueda desconocerse la influencia de las declaraciones de los derechos humanos.” Trad.:
“Certamente, as faculdades que integram a esfera imediata da personalidade ficam relegadas a uma
zona de valor social secundário. Mas, desde o princípio do século, são evidentes os esforços da doutrina
– acentuados nos últimos anos – pela construção jurídica dos direitos da personalidade, ‘para poder
defender a pessoa humana nas relações de Direito privado’, sem que se possa desconhecer a influência
das declarações dos direitos humanos.” PÉREZ, Jesús González. La dignidad de la persona. Madrid,
Espanha: Editorial Civitas, 1986, p. 124.
38
“Por outro lado, há direitos fundamentais que, por não terem como objecto tutelado directamente a
personalidade humana, não se traduzem, ao nível juscivilístico ou nem sequer no plano da garantia
juspublicística, em direitos de personalidade. É, nomeadamente, o caso de garantia de acesso ao direito
e aos tribunais ..., das garantias contra a retroactividade da lei criminal ..., da maioria das garantias do
processo criminal ...” SOUSA, Radinbranath Valentino Aleixo Capelo de. Ob. cit., p. 585-586.
39
A tutela à pessoa humana, no Código Civil de 1916, se encontra nos dispositivos que tratam da
liquidação das obrigações decorrentes de atos ilícitos, em especial nos artigos 1.537 a 1.553.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
25
princípios e normas da responsabilidade civil (reparação de danos
extrapatrimoniais).
Nada obstante, a previsão dos direitos personalíssimos em
modernas codificações, inexistia na lei nacional normas adequadas
sobre a tutela preventiva e a tutela reparatória dos direitos de personalidade, sendo (de certo modo) um alento a previsão da matéria no
novo Código de iminente vigência.40
O arcaico patrimonialismo do CCB-16 foi combatido por outras leis que, reconhecendo as mutações decorrentes de fatores sociais, culturais e éticos, passaram a valorizar as pessoas como criadoras e destinatárias das normas jurídicas.
À evidência, houve (há) gradativa transformação no Direito
Privado, passando o Direito Civil a ocupar-se mais das pessoas e seus
direitos inatos, para além de valorizar unicamente os bens materiais.41
A lacuna legislativa da codificação de 1916 ensejou a edição
de outros diplomas legislativos, visando a proteger os direitos de personalidade, cuidando da tutela indireta das pessoas, principalmente
pela previsão de reparabilidade de danos extrapatrimoniais.42
40
Para Carlos Alberto Bittar, “os direitos de personalidade – tema sobre o qual se digladiam os autores
e sob diferentes aspectos não se alcançando, ainda, uma colocação definitiva, em face, principalmente,
da construção teórica recente – vêm obtendo, gradativamente, a inserção em Códigos e projetos
recentes, fato que reflete tendência para o seu reconhecimento legislativo geral. Essa postura vem
preencher lacunas existentes na orientação tradicional, pois os Códigos, especialmente os de influência
francesa, inspiraram-se na divisão dos direitos em pessoais, reais e obrigacionais, não se preocupando
com a inclusão dos da personalidade, cabendo à jurisprudência e à doutrina a sua afirmação”. BITTAR,
Carlos Alberto. Os direitos da personalidade e o projeto do Código Civil brasileiro, Ob. cit., p.
127.
41
Como observa Eroulths Cortiano Junior: “No âmbito do direito privado deixa-se (rectius: está se deixando)
atrás a velha concepção do patrimonialismo, marcante nas codificações que praticamente atravessaram
este século. O direito civil deixa de ser marcado pela propriedade, contrato, testamento e família. Uma
contemporânea visão do direito procura tutelar não apenas estas figuras pelo que elas representam em si
mesmas, mas deve tutelar certos valores tidos como merecedores de proteção: a última ratio do direito é
o homem e os valores que traz encerrados em si. Neste sentido, revolta-se o direito contra as concepções
que o colocavam como mero protetor dos interesses patrimoniais, para postar-se agora como protetor
direto da pessoa humana. Ao proteger (ou regular) o patrimônio, se deve fazê-lo apenas e de acordo com
o que ele significa: suporte ao livre desenvolvimento da pessoa”. CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns
apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade, Ob. cit., p. 32-33.
42
São exemplos de leis que tutelam indiretamente direitos da personalidade, mediante a previsão da
reparabilidade dos danos extrapatrimoniais: a) Lei 5.250/67, chamada Lei de Imprensa, que regula a
liberdade de manifestação do pensamento e de informação; b) Lei 7.565, de 19/12/86, que instituiu o
Código Brasileiro do Ar, disciplinando responsabilidade civil por acidentes aéreos e prevendo a reparação
de danos pessoais; c) Lei 6.453, de 17/10/77, que dita regras sobre a responsabilidade civil decorrente
de atividades nucleares; d) Lei 7.853, de 24/10/89, que tutela os interesses de pessoas portadoras de
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
26
O texto constitucional transmou o Direito Privado, pois a Constituição Federal consagrou os direitos fundamentais e os direitos de personalidade como alicerces de uma sociedade fraterna, pluralista e democrática, 43 anunciando a Lei Maior a supremacia do ser sobre o ter,
dos valores humanos acima dos bens materiais.44
Orlando de Carvalho, consagrado jurista português, trata do
tema sob o título “repersonalização do Direito Civil”, reconhecendo a
supremacia da pessoa humana e de seus direitos imanentes, os quais
devem ocupar o topo do ordenamento jurídico.45
Para Cortiano Junior o fenômeno da repersonalização “vai se
impondo como uma resposta à ordem criada e que não mais se encaixa na moldura dos fatos, e tampouco nas esperanças do homem”, pois
“o direito não está apenas centrado funcionalmente em torno do conceito de pessoa, mas também seu sentido e sua finalidade são a proteção da pessoa”. 46
deficiências físicas; e) Lei 8.069, de 13/07/90, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente, que
disciplina a proteção da infância e da juventude; f) Lei 8.078/90, chamada Código de Defesa do Consumidor,
que elenca como direito básico do consumidor a prevenção e a reparação de danos, tanto materiais
quanto imateriais.
43
Preâmbulo da Constituição Federal : “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacíficas das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. Título
I. DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS. Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissociável dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV
– os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa – V – o pluralismo político.”
44
Sobre o assunto, escreve Gustavo Tepedino: “No caso brasileiro, em respeito ao texto constitucional,
parece lícito considerar a personalidade não como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito do
qual seria exercido a sua titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia
privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de validade. A prioridade conferida
à cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III, CF), fundamentos da República, e a adoção
do princípio da igualdade substancial (art. 3º, III), ao lado da isonomia formal do art. 5º, bem como a
garantia residual estipulada pelo artigo 5º, § 2º, CF, condicionam o intérprete e o legislador ordinário,
modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte”.
TEPEDINO, Gustavo. Ob. cit, p. 47.
45
A repersonalização do direito civil, ou a polarização da teoria em volta da pessoa, trata de “repor o
indivíduo e os seus direitos no topo da regulamentação jure civile, não apenas como o actor que aí
privilegiadamente intervém mas, sobretudo, como o móbil que privilegiadamente explica a característica
técnica dessa regulamentação”. CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica – seu
sentido e limites (nota prévia), 2 ed. Coimbra: Centelha, 1981, p. 10.
46
“O centro nuclear do direito civil é a pessoa humana. Todo e qualquer instituto jurídico só tem razão de
ser a partir do momento em que exista (e seja considerado) em função do homem. O próprio direito
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
27
Vale citar ainda a poética lição de Lorenzetti, para quem “o grupo de direitos fundamentais atua como um núcleo, ao redor do qual se
pretende que gire o Direito Privado; um novo sistema solar, no qual o
Sol seja a pessoa”.47
A “repersonalização do Direito Civil” é relevante marco teórico
para a doutrina dos direitos de personalidade. Além disso, a teoria dos
direitos personalíssimos é construída sobre os princípios constitucionais que consagram às pessoas especial proteção.
Neste contexto, ao lado “repersonalização” destaca-se o fenômeno da “constitucionalização do Direito Civil”, pois, no Brasil, é no
texto constitucional que se encontram as normas fundamentais que
conduzem à aceitação de um direito geral de personalidade, a tutelar
(amplamente) os atributos existenciais das pessoas.48
José Antônio Peres Gediel, na obra “os transplantes de órgãos
e a invenção moderna do corpo”, escreve que “a revitalização do conhecimento jurídico, por meio dos textos constitucionais e da doutrina
constitucionalizada, permitiu aos estudiosos do Direito Civil refundir os
direitos fundamentais, originalmente erigidos contra o Estado, com os
direitos de cunho privado, para destacarem o seu núcleo comum, localizado na dignidade humana”.49
Convergindo, Maria Celina Bodin de Moraes afirma a
encontra sua razão de existir na noção de pessoa humana, que é anterior à ordem jurídica. Esta,
construindo a noção de personalidade, o faz com base num dado pré-normativo, que é, ao mesmo tempo
ontológico (a pessoa é) e axiológico (a pessoa vale).” CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns
apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade, Ob. cit., p. 41-53.
47
LORENZETTI, Ricardo Luis. Ob. cit., p. 145.
48
No dizer de Eroulths Cortiano Junior, a constitucionalização da proteção à personalidade deve ser
refletida sob um duplo aspecto: 1º) a superação dos limites do direito privado clássico; 2º) a efetividade da
norma constitucional de proteção à personalidade, dotada de concretude e aplicação imediata : “assim é
que as normas constitucionais de proteção à personalidade não devem ser vistas apenas como normas
programáticas (portanto não dotadas de concretude). Ao contrário. Se todo o sistema jurídico gravita em
torno da Constituição, tudo o que nela se contém forma e informa o direito ordinário. A ordem jurídica de
uma sociedade é unitária, o que afasta a tradicional contraposição direito privado/direito público. Como
conseqüência, afasta-se também uma eventual contraposição direito civil/direito constitucional. A norma
constitucional é parte integrante da ordem normativa, não podendo restringir-se a mera diretriz
hermenêutica ou regra limitadora da legislação ordinária ... Assim, não se fala mais em proteção humana
pelo direito público e pelo direito privado, mas em proteção da pessoa humana pelo direito”. CORTIANO
JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade, Ob.
cit, p. 37-38.
49
GEDIEL, José Antônio Peres. Os transplantes de órgãos e a invenção moderna do corpo.Curitiba:
Moinho do Verbo, 2000, p. 06.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
28
constitucionalização do Direito Civil, pela qual a dignidade da pessoa
humana é erigida como um dos fundamentos da República Federativa
do Brasil, extinguindo o antagonismo entre Direito Público e Direito
Privado.50
Para a respeitável jurista, a Constituição Federal deve orientar
e informar todos os ramos do Direito, impondo-se que a hermenêutica
do Direito Privado seja guiada pela luz do texto constitucional.
Quando as Constituições mudam o caráter liberal (de mero
instrumento de limitação do poder político do Estado) buscando ser
uma Constituição dirigente, regulando e controlando a ordem econômica e social (como a Constituição brasileira em vigor), a norma constitucional passa a ocupar o lugar que pertencia à codificação civil.
No Brasil, a Constituição da República está no topo da pirâmide jurídica, garantindo a unidade do sistema jurídico. A Constituição
orienta as normas infraconstitucionais para a concretização dos ideais
enunciados no texto constitucional.
Em tal contexto, ressalta-se a rejeição do antagonismo rígido
entre Direito Público e Direito Privado, sem significar, no entanto, que
o Direito Privado tenha perecido ou diminuído de importância, e que o
Direito Público tenha tomado conta de todo o ordenamento jurídico.
Em verdade, pretende-se que o sistema normativo seja (re)visto
à luz do texto constitucional, com a “aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não apenas na relação Estado-indivíduo, mas também na relação interindividual, situada no âmbito dos
modelos próprios do Direito Privado”.51
Além da superação da clássica dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, merecem ser destacados outros pressupostos
metodológicos do tema, destacando-se a consciência da unidade do
sistema e da hierarquização do ordenamento jurídico.
A Constituição é a norma fundamental do Direito Positivo. Contém valores éticos e morais que devem ser observados pelo legislador
infraconstitucional na elaboração das leis públicas e privadas destina50
TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. In: Revista de
Direito Civil nº 65. São Paulo: RT, julho-setembro de 1993, p. 26.
51
Idem, p. 28.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
29
das a regular a vida das pessoas.
As Constituições representam bem mais do que meros “documentos políticos” que limitam o legislador com normas programáticas,
reconhecendo-se, hoje, (no plano teórico) a necessidade da
concretização do princípio da efetividade das normas constitucionais,
as quais são dotadas de aplicabilidade direta às relações de Direito
Público e de Direito Privado. Todo o sistema jurídico deve refletir os
princípios e valores da lei fundamental, à Constituição Federal.
Assim, os direitos de personalidade afirmam-se (em princípio)
em nível constitucional, acolhendo a Constituição gama de direitos que
(historicamente) estava relegada ao âmbito do Direito Privado.
A lição de Gediel sintetiza a nova visão (constitucional) dos
direitos de personalidade, pois os direitos personalíssimos integram
os direitos fundamentais, ao se liberarem de sua origem puramente
individualista e se apresentarem comprometidos com a solidariedade
social.
As noções de direito subjetivo e de liberdade, até então
construídas em torno do poder de decisão individual, passam a irradiar
deveres especiais para o titular do direito com relação à sua própria
condição humana. A soberania do Estado, por sua vez, vem mitigada
pelo dever de garantia dos direitos fundamentais aos cidadãos. [...]
A fundamentalidade dos direitos da personalidade rompe com
a fragmentação das categorias jurídicas de Direito Público e Privado, à
medida que contempla, concomitantemente, poderes e deveres, que
se unificam no ser humano e se projetam no sujeito e no cidadão. [...]
A aproximação entre os direitos fundamentais e os direitos da
personalidade, nos textos constitucionais mais recentes, a exemplo do
que ocorre com a CF, permite não só contemplar os direitos de personalidade, a partir de uma cláusula geral de proteção (art. 1º), mas também consagrar, explicitamente, um rol desses direitos (art. 5º).
O movimento de constitucionalização dos direitos de personalidade vem acompanhado de uma elaboração teórica, que inclui a
reapreciação de elementos da teoria clássica do Direito Civil. 52
52
GEDIEL, José Antônio Peres. Os transplantes de órgãos e a invenção moderna do corpo, cit., p. 48-50.
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30
A proteção das pessoas é prevista também em leis penais,
tipificando variadas condutas delituosas como os crimes contra a vida,
contra a integridade física e moral, a garantia de inviolabilidade da intimidade, vida privada, dentre outros. 53
A tipificação de condutas violadoras dos direitos de personalidade incide no âmbito específico do poder punitivo do Estado, o qual
considera criminosos atos atentatórios à pessoa (natural ou jurídica),
o que representa mais uma faceta da tutela jurídica da personalidade. 54
Além da tutela constitucional e penal, há a tutela civil preventiva e reparatória, aquela buscando evitar que ocorra dano à pessoa,
esta afirmando o dever de reparação, se presentes os pressupostos
da responsabilidade civil.
O sistema brasileiro de proteção civil à personalidade afirmase com ênfase no aspecto reparatório, pelo qual o Poder Judiciário
pode impor ao ofensor o pagamento de uma soma em dinheiro em prol
da vítima de danos extrapatrimoniais (morais).
Nada obstante, (mesmo rara) vislumbra-se a possibilidade de
reparação in natura ou reparação natural, como ocorre (por exemplo)
com o direito de resposta em face de afirmações ofensivas ou da publicação de sentença condenatória em delito contra a honra.
No plano civil verifica-se tendência de fortalecimento da tutela
preventiva dos direitos de personalidade, visando a evitar que ocorram
danos. No contexto, essencial o papel do Poder Judiciário, atuando
53
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade e o projeto do Código Civil brasileiro,
Ob. cit., p. 116.
54
Carlos Alberto Bittar Filho, referindo-se à tutela dos direitos da personalidade, com ênfase para a
proteção dos direitos autorais, assim escreve : “A fim de dar aos direitos da personalidade e aos
autorais total amparo, o ordenamento jurídico prevê diversos modos de reação. Os objetivos específicos
que o norteiam são, de maneira geral, os seguintes : a) cessação de práticas lesivas; b) apreensão de
materiais oriundos de tais práticas; c) submissão do agente ao cumprimento de pena; d) reparação de
danos materiais e morais; e) perseguição criminal do agente. Aqui, a nota central é, sem dúvida, a
dignidade humana, que deve sempre ser preservada de todos os ataques da ilicitude. A tutela conferida
aos direitos da personalidade e aos autorais espraia-se por três esferas – a administrativa, a civil e a
penal. O princípio básico que as inspira é o da independência (CC, art. 1.525): preenchidos, entretanto,
os respectivos requisitos em concreto, há a possibilidade de uso simultâneo, em certos casos (e.g., uma
prática civilmente ilícita e tipificada como crime para propiciar a ação do lesado nos juízos cível e criminal,
a par de eventuais providências administrativas compatíveis).” BITTAR, Carlos Alberto & BITTAR FILHO.
Tutela dos direitos da personalidade e dos direitos autorais nas atividades empresariais.
São Paulo: RT, 1993, p. 12-13.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
31
mediante pedidos em ações cautelares ou de antecipação de tutela,
instrumentos de urgência.
Em síntese, destaca-se a amplitude da proteção às pessoas
(à personalidade e seus atributos imateriais) consagrada na Constituição da República e em Leis Ordinárias, consolidando (no plano
legislativo) a teoria dos direitos de personalidade.
A NOVA CODIFICAÇÃO E OS DIREITOS DE PERSONALIDADE
O artigo 11 do novo CCB abre o Capítulo “dos direitos da personalidade” : “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da
personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o
seu exercício sofrer limitação voluntária”.
A intenção do legislador em enunciar as características dos
direitos de personalidade é louvável. Entretanto, a norma é incompleta, deixando ao largo, outros atributos, como a extrapatrimonialidade,
a impenhorabilidade, a oponibilidade erga omnes e outros.
O artigo 12 trata das modalidades de tutela concedidas aos
direitos personalíssimos: “pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a
lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem
prejuízo de outras sanções previstas em lei”.55
Referindo-se à cessação da ameaça, cuida a norma da chamada tutela preventiva dos direitos de personalidade, a qual objetiva
evitar danos, prevenindo o ilícito ou (ao menos) amenizando sua gravidade.
Aludindo a “perdas e danos”, o novo Código impõe a responsabilidade civil aos ofensores dos direitos personalíssimos. A norma abrange tanto os danos materiais (danos emergentes e lucros cessantes)
quanto (e principalmente) a efetiva reparação dos danos
extrapatrimoniais decorrentes de ofensa aos direitos de personalidade.
A lei determina ainda que o responsável por ato ilícito contrário
aos direitos de personalidade sujeite-se a variadas sanções, como ocorre com ato ilícito que seja tipificado penalmente, como ocorre com os
crimes contra a honra (artigos 138 a 140 do Código Penal).
55
“Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste
artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau”.
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32
É ampla a proteção da honra, pois a ofensa ao direito
personalíssimo acarreta o dano moral, podendo ensejar prejuízos financeiros positivos (danos emergentes) e negativos (lucros cessantes), além
de (eventualmente) incidir em um ou mais tipo(s) penal(is) : calúnia, injúria ou difamação.
Os artigos 13 a 15 do novo CCB cuidam de importantes aspectos ligados à proteção psicofísica das pessoas:
Artigo 13 – Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da
integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único – O ato previsto neste artigo será admitido para fins
de transplante, na forma estabelecida em lei especial.
Artigo 14 – É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da
morte.
Parágrafo único – O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.
Artigo 15 – Ninguém pode ser constrangido a submeter-se com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
Do artigo 16 ao artigo 19 o novo Código protege o nome (prenome e sobrenome) e o pseudônimo:
Artigo 16 – Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o
prenome e o sobrenome.
Artigo 17 – O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem
em publicações ou representações que a exponham ao desprezo
público, ainda quando não haja intenção difamatória.
Artigo 18 – Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em
propaganda comercial.
Artigo 19 – O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da
proteção que se dá ao nome.
O artigo 20 reporta-se ao abuso na liberdade de manifestação
de pensamento, cuidando de divulgação de escritos e da utilização da
imagem:
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
33
Artigo 20 – Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de
escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou
a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu
requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único – Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para reclamar essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
O artigo 21 cuida da vida privada, importante direito de personalidade, prevendo que “a vida privada da pessoa natural é inviolável,
e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Ressalte-se que o rol dos direitos de personalidade no novo
CCB não deve ser considerado exaustivo, porque o direito geral de personalidade consagrado no texto constitucional não limita a tutela dos
direitos personalíssimos (somente) aos previstos, norma expressa (lei).
Por um lado a nova codificação (no capítulo em comento) não
cuida exaustivamente dos direitos subjetivos de personalidade. Por outro, afirma-se existir uma cláusula geral, pela qual todo e qualquer atributo da personalidade merece ampla e efetiva proteção, pois a dignidade do ser humano é um dos pilares da República Federativa do Brasil,
conforme artigo primeiro, inciso terceiro, da Constituição Federal.
OS DIREITOS DE PERSONALIDADE E A PESSOA JURÍDICA
Importante inovação da novel codificação é o reconhecimento
(expresso) da titularidade dos direitos de personalidade pelas pessoas
jurídicas, como previsto no artigo 52: “aplica-se às pessoas jurídicas,
no que couber, a proteção dos direitos de personalidade”.
Mesmo tendo sido amplamente debatido na doutrina e jurisprudência, o tema “pessoa jurídica” ainda suscita controvérsias, multiplicando-se as teorias sobre sua natureza e outros aspectos de sua personalidade jurídica, acirrando-se o debate entre juristas e tribunais em todo
o mundo.
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34
A doutrina ficcionista afirma que o Direito Romano só reconhecia como persona o ser humano, sabendo-se, entretanto, que a noção
de pessoa jurídica surgiu já naquele período quando se reconhece
como sujeito de direitos o estado romano (populus romanus), as ciutates
e os municipia.
A elaboração teórica do conceito de pessoa jurídica foi obra do
Direito Canônico, o qual considerou a Igreja um corpus mysticum ou
persona ficta. A partir daí, o direito privado passou a atribuir o status de
persona também às coletividades (associações) e patrimônios (fundações).
A doutrina da realidade da pessoa jurídica combate a idéia
ficcionista, reconhecendo o Direito o fundamento social de agregação
humana, atribuindo às pessoas jurídicas personalidade real, com capacidade jurídica para a prática dos atos necessários à implementação
de seus objetivos sociais.
A afirmação da realidade da pessoa jurídica decorre de seu
cunho social subjacente, congregando pessoas naturais em torno de
fins comuns, podendo-se daí concluir que a existência das pessoas
jurídicas decorre dos interesses humanos duradouros, de caráter comum ou coletivo, exigindo o concurso de várias pessoas para sua consecução.
As pessoas jurídicas existem para servir às pessoas naturais,
sendo instrumento de concretização dos objetivos comuns ou coletivos a impor a conjugação de esforços.
Há diferenças valorativas entre pessoas naturais e pessoas
jurídicas, pois só as pessoas naturais têm existência física, corpórea,
sendo sua tutela mais abrangente do que a das pessoas jurídicas.
Nada obstante, o fundamento social do fenômeno associativo
criador das pessoas jurídicas, evidencia-se que somente o Direito positivo pode atribuir personalidade jurídica aos entes coletivos, exigindo
à lei diversos requisitos para sua constituição, existência e extinção.
O conceito de pessoa jurídica varia conforme o momento histórico
e a ideologia da ordem jurídica, atribuindo-se o status de pessoa jurídica
aos entes que o Estado (mediante o Direito) reconhece como tal.
Sendo evidente a realidade jurídica dos entes coletivos, seu
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
35
campo de atuação, é geralmente, patrimonial, manifestada na prática
de negócios jurídicos que visem atingir a plenitude de seus objetivos
sociais.
Nada obstante, (para além de seu patrimônio econômico) a pessoa jurídica possui esfera moral, abrangendo direitos de personalidade
(extrapatrimoniais), como a honra objetiva e o nome (dentre outros).
Há doutrina e jurisprudência contrárias ao reconhecimento de
direitos extrapatrimoniais às pessoas jurídicas, sob o argumento da
inexistência de personalidade jurídica dos entes coletivos, tudo com
base nas teses ficcionistas.
A controvérsia tem sido superada pela admissão de alguns
direitos personalíssimos aos entes coletivos. Do contexto, verifica-se
que a jurisprudência nacional indica a superação da postura negativista
quanto à compabitilidade de certos direitos de personalidade à pessoa
jurídica, bastando ver a Súmula de Jurisprudência Predominante do
STJ, verbete nº 227: “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.
Admite-se a possibilidade de a pessoa jurídica pleitear reparação por danos extrapatrimoniais, o que está previsto na própria Constituição (art. 5º, V e X). A pessoa jurídica pode ser considerada vítima
de danos imateriais, inexistindo no texto constitucional distinção entre
as pessoas naturais e jurídicas.
A tutela da personalidade da pessoa jurídica é também prevista em leis como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Imprensa, ambas acolhendo a reparabilidade do dano extrapatrimonial decorrente da ofensa aos direitos de personalidade.
A proteção da pessoa jurídica abrange os direitos de personalidade, componentes de uma esfera moral, como o direito à honra objetiva, ao nome, ao crédito, ao segredo, além de outros direitos
extrapatrimoniais inerentes à personalidade jurídica e compatíveis com
os entes coletivos.
Neste contexto, a análise dos direitos de personalidade compatíveis com a pessoa jurídica revela que o ordenamento jurídico brasileiro tutela a honra objetiva da pessoa jurídica em dois planos: o civil e o
penal. O primeiro impõe a responsabilidade por danos e o segundo tuRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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tela criminalmente a honra objetiva (difamação ou calúnia).
A pessoa jurídica tem direito ao nome como meio de
individualização e de reconhecimento na sociedade, tutelando o texto
constitucional o nome empresarial, decorrendo daí (analogicamente) a
proteção do nome de qualquer pessoa jurídica, proibindo-se a usurpação.
O direito ao crédito integra a esfera moral da pessoa jurídica,
merecendo tutela diante de qualquer ato que injustamente o abale,
gerando danos materiais ou extrapatrimonais.
Verifica-se forte tendência doutrinária pela aceitação do direito
ao segredo ou intimidade das pessoas jurídicas, protegendo-se o resguardo do sigilo de suas atividades sociais; o segredo comercial e
industrial; o sigilo bancário, fiscal e de comunicações.
Para além desses direitos, a esfera moral da pessoa jurídica
acolhe outros atributos compatíveis com a personalidade jurídica dos
entes coletivos, ainda que não expressamente previstos em texto legal.
DIREITOS DE PERSONALIDADE E RESPONSABILIDADE CIVIL
Os atos que agridem as pessoas (naturais e jurídicas) e maculam
os direitos de personalidade são considerados atos ilícitos de natureza
civil, gerando danos extrapatrimoniais passíveis de reparação.
Segundo o artigo 927 do CCB, “aquele que, por ato ilícito (arts.
186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”, dispondo
seu parágrafo único que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a
atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por
sua natureza, risco para os direitos de outrem”.56
Do artigo 927 ao artigo 943 o novo Código cuida “da obrigação
56
Novo Código Civil – DOS ATOS ILÍCITOS:
Artigo 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e
causar prejuízo a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Artigo 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Artigo 188 – Não constituem atos ilícitos:
I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.
Parágrafo único – No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o
tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do
perigo.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
37
de indenizar”, traçando regras gerais de responsabilidade civil, dentre
as quais destacam-se:
Artigo 931 – Ressalvados outros casos previstos em lei especial,
os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em
circulação.
[...]
Artigo 935 – A responsabilidade civil é independente da criminal, não
se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre
quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.
[...]
Artigo 942 – Os bens do responsável pela ofensa ou violação do
direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se
a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente
pela reparação
[...]
Artigo 932 – O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la
transmitem-se com a herança.
O artigos 944 a 954 do CCB são dedicados à “indenização”, a
qual é medida “pela extensão do dano”. Pela nova codificação, “se
houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano,
poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização” (artigo 944 e
parágrafo único).
Destaque-se o artigo 945 do novo Código, pelo qual “se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em
confronto com a do autor do dano”.
Os demais dispositivos que tratam da “indenização” reportamse, em geral, à modalidades de reparação de danos, como nos casos
de homicídio; lesão ou ofensa à saúde; incapacidade laborativa;
usurpação ou esbulho; injúria, difamação ou calúnia (ofensas contra a
honra) e ofensas à liberdade pessoal (cárcere privado; prisão por queiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
38
xa ou denúncia falsa e de má-fé; prisão ilegal).
Ao largo da reparação civil, é possível a incidência da responsabilidade penal, desde que o ato gerador do dano seja tipificado como
crime, como se dá com os delitos contra a honra (calúnia, injúria e
difamação), ensejando a ação penal (queixa-crime) visando a imposição da pena criminal correspondente.
Certo é que a responsabilidade civil independe da criminal, impondo-se o dever de reparar sempre que presentes os elementos essenciais da responsabilidade civil, independente do resultado do
processo criminal, como dispõe o artigo 935 da novel codificação.
Destarte, o dever de reparar não está vinculado à condenação criminal do ofensor, porém a sentença penal condenatória impede
a discussão, no juízo cível, sobre a autoria e materialidade do ilícito.
Ao largo da doutrina, a análise da jurisprudência é o meio adequado à investigação dos casos de ofensas contra as pessoas (naturais e jurídicas), os quais aplicam a responsabilidade civil em face da
ofensa aos direitos de personalidade.
A questão da natureza jurídica da reparação dos danos
extrapatrimoniais é controvertida, podendo-se afirmar (ao mesmo tempo) o caráter de penalidade para o ofensor e a função compensatória
para a vítima.
O Direito atual tende a aceitar amplamente a teoria mista ou
eclética da reparabilidade do dano extrapatrimonial, reconhecida a
complexidade da natureza jurídica da reparação e afirmada a necessidade de conjugação dos seguintes objetivos: a punição do ofensor e a
compensação da vítima.
Quanto à fixação do valor da reparação (quantum debeatur),
verifica-se que (salvo exceções) inexistem critérios objetivos (totalmente
seguros) que guiem o magistrado na fixação do valor de reparações
de danos que, (diante de sua peculiar natureza) são insuscetíveis de
apreciação econômica.
O Direito brasileiro filiou-se ao sistema aberto de responsabilidade civil por danos extrapatrimoniais, não dispondo a lei, em regra,
sobre critérios rígidos e previamente determinados para a
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ressarcibilidade das ofensas contra a esfera moral da pessoa.
No Direito pátrio a fixação de valores para reparação de danos
extrapatrimoniais é tarefa exclusiva do magistrado, inexistindo limitação legal para a fixação do quantum, estando revogada a Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) quanto aos tetos máximos de reparação, conforme tem afirmado a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
O arbítrio do magistrado é apontado como o fator determinante
na reparação dos danos extrapatrimoniais, afirmando-se enfaticamente o caráter subjetivo do arbitramento.
Ao lado da subjetividade, impõe-se que o magistrado observe
diretrizes (princípios qualitativos e critérios quantitativos) que vêm sendo
delineadas há décadas pela doutrina e jurisprudência.
Para a fixação do valor, deve o magistrado enfatizar o princípio da reparação mais completa possível, aquela que (efetivamente)
proporcione (simultaneamente) punição exemplar para o ofensor e real
compensação para a vítima.
As decisões que concedem reparação de danos
extrapatrimoniais geralmente assinalam que o valor deve ser arbitrado
com razoabilidade, visando a coibir o possível enriquecimento ilícito
da vítima.
A leitura crítica da jurisprudência nacional conduz à conclusão
de que, se, por um lado o princípio da razoabilidade da reparação deve
coibir intenção de locupletamento da vítima, por outro, a função punitiva da reparação deve ser ressaltada, devendo o valor atender satisfatoriamente ao fim de sancionar o causador dos danos.
Em face do caráter emblemático que a função punitiva da reparação inflige ao causador do dano, não se justifica o arbitramento de valores
ínfimos a título reparatório, como têm ocorrido freqüentemente nos tribunais pátrios ao argumento de que a reparação deve ser razoável.
Para a quantificação da reparação por danos extrapatrimoniais
deve o magistrado considerar vários fatores na busca da justa reparação,
ressaltando-se a gravidade do dano e a situação econômica das partes,
especialmente a do ofensor, pois quanto maior for o potencial financeiro
do causador do dano, tanto mais onerosa será a reparação devida.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
40
Nos casos em que os danos extrapatrimoniais sejam causados
por grandes empresas (gigantes) capitalistas, como (por exemplo) as
instituições financeiras, sustenta-se que a reparação deve privilegiar a
natureza punitiva e exemplar da reparação, pois o potencial econômico
dos bancos autoriza o arbitramento de valores adequados à justa reparação dos danos.
O grau de culpa do ofensor é relevante critério para dimensionar
o valor reparatório, pois enfatiza o elemento volitivo, autorizando o
agravamento (dolo) ou amenização (culpa leve) da situação do ofensor
na fixação do valor da reparação.
A culpa concorrente também exerce influência na dosagem da
reparação, pois o valor reparatório deverá ser diminuído quando a vítima haja contribuído para a ocorrência do evento danoso.
No tocante ao dano extrapatrimonial, sustenta-se que a observância estrita do princípio da restituição integral (restitutio in integrum)
é difícil, dada a impossibilidade de retorno ao estado anterior (status
quo ante) a danos que não têm repercussão imediata no patrimônio
econômico do ofendido.
Mesmo na ausência de critérios (precisos e objetivos) para a
reparação do dano imaterial, busca-se, ao máximo, a aproximação com
o princípio da reparação integral, ideal que deve ser perseguido pelo
magistrado no exercício de sua subjetividade. Deve o juiz proferir as
decisões com prudente arbítrio.
Em face do princípio da reparação integral ou reparação mais
completa possível deverá o julgador buscar o equilíbrio da dupla natureza da reparação: punitiva e compensatória.
Para isso, ressalta-se que a conjugação dos fatores de punição e compensação deverá conduzir ao arbitramento de valores adequados (significativos) para a reparação de danos extrapatrimoniais.
O valor do montante reparatório deverá ser expressivo, não meramente simbólico.
Destaca-se, quando possível, a faceta exemplar da reparação,
devendo o valor ser agravado sempre que o ofensor (por sua posição
econômica) seja reincidente no desrespeite os direitos (fundamentais e
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de personalidade) das pessoas.
A jurisprudência atual evidencia decisões que relutam em deferir valores significativos a título de reparação, sustentadas na idéia
de moderação como vetor para a fixação do valor reparatório.
O tema “reparação do dano extrapatrimonial” necessita progredir em sua elaboração legislativa e teórica, pois a doutrina e a jurisprudência são frágeis na caracterização das hipóteses de danos e vacilantes nos critérios para a fixação do valor reparatório.
Nada obstante, a matéria tende a ser pacificada (a longo prazo), pois há esforços dos legisladores, magistrados e cientistas para
delinear, mais claramente, os direitos de personalidade e sua tutela
À GUISA DE CONCLUSÃO – DISCURSO JURÍDICO E REALIDADE
SOCIAL
Luiz Edson Fachin, destacado professor da Universidade Federal do Paraná e um dos maiores civilistas na atualidade, escreve
que o Direito Civil “deve ser concebido como ‘serviço da vida’ a partir
da sua raiz antropocêntrica”. 57
O pensamento do professor paranaense enseja reflexão acerca da teoria que afirma a posição privilegiada das pessoas, as quais
estariam, “no topo da pirâmide jurídica”, segundo o fenômeno da
“repersonalização do Direito”.
A análise estrutural e conjuntural da realidade social revela
que a desigualdade marca a sociedade brasileira, impedindo a
concretização dos ideais enunciados nos textos legais: Constituição
Federal, CCB e outras (inúmeras) leis.
57
“Numa expressão, o Direito Civil deve, com efeito, ser concebido como ‘serviço da vida’ a partir da sua
raiz antropocêntrica, não para retomar a biografia do sujeito jurídico, mas sim para se afastar do
tecnicismo e do neutralismo. Não sucumbir, enfim, ao saber virtual. É certo que o legislador do Estado
social não está mais desvinculado da realidade histórica concreta de seu tempo, pois a força normativa
dos novos preceitos pode emergir de um verdadeiro estado de necessidade. Entre a resistência à
transformação e as necessidades que se impõem pelos fatos, o papel a ser exercido , nesse campo,
pelos operadores do Direito, poderá antecipar, em parte, aquilo que virá. Nada obstante, não é possível
aceitar passivamente os resultados dessa aferição crítica. Essa mesma via há de ser submetida à
prova: trata-se de uma renovação por dentro e ao fundo vai, ou são apenas retoques que operam na
estrutura do projeto racionalista que fundou as codificações privadas ? Esta interrogação sugere
pensar se o passo à frente que se esboça é uma mudança efetiva ou tão só a última fronteira de um
sistema moribundo que agoniza, ainda não se esgotou.” FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito
civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 15-16.
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42
O Direito Civil evoluiu (principalmente desde o novo texto constitucional), e apesar disso a sociedade brasileira é marcada por
gravíssimos contrastes, com crescente (e perigosa) exclusão social,
geradora de massas populacionais marginalizadas, para as quais os
direitos fundamentais e os direitos de personalidade não passam de
“direitos virtuais”, emprestando a expressão de Miaille.58
A idéia, mesma de “sujeito de direito”, compreendida como “o
ponto ao redor do qual circulam todas as categorias jurídicas”,59 é submetida a julgamento crítico diante da realidade (capitalista e globalizada)
atual.
No dizer de Miaille:
A noção de sujeito de direito como equivalente de indivíduo está
longe de ser evidente conforme o sistema social no qual nos situamos. Não é ‘natural’ que todos os homens sejam sujeitos de direito.
Isto é o efeito de uma estrutura social bem determinada: a sociedade capitalista. Mas, então, por que é que isso é necessário nesta
sociedade? Precisamente para permitir a realização das trocas mercantis generalizadas. 60
É insuficiente, pois, que o Direito evolua teoricamente, rompendo com o patrimonialismo em prol de uma visão existencialista,
voltada aos interesses das pessoas, como propala o Direito Civil contemporâneo.
O Direito Civil submete-se a transformações por fenômenos
como a descodificação, a constitucionalização ou a repersonalização,
porém, a realidade social evidencia-se “desumana” para com grande
parcela pobre da população brasileira.
A política neoliberal e o fenômeno da globalização (marcantes
no alvorecer deste novo milênio) selam as portas do “mercado capitalis58
MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, 2 ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 114 e ss.
“O sujeito de Direito é o ponto ao redor do qual circulam todas as categorias jurídicas. E mais, é no
sentido de garantir um determinado tipo de ‘liberdade’ que o Direito tutela os interesses deste mesmo
sujeito de Direito que, em essência, são interesses egoísticos que se contrapõem àqueles dos demais
membros da sociedade ... Do ponto de vista econômico, o sujeito de Direito encontra-se situado no
mercado como um agente econômico, isto é, como comprador e vendedor de mercadorias.” Comentário
de Paulo Bessa, na apresentação da obra de Pasukanis. In PASUKANIS, E. B. A teoria geral do direito
e o marxismo. Trad. Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. XIII.
60
MIAILLE, Michel. Ob. cit., p. 117.
59
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43
ta” a milhões de pessoas, vitimadas por uma injusta distribuição das
riquezas.
O Brasil vive um momento histórico difícil, prevalecendo uma
política que se intitulou “social democrata”, mas que revelou uma das
facetas nefastas do neoliberalismo, com a indiscriminada abertura das
fronteiras nacionais em prol do capital especulativo internacional e em
favor de poderosos grupos econômicos estrangeiros. Tudo em prejuízo da maioria marginalizada e empobrecida da população.
É missão do Direito concretizar seus próprios preceitos,
ensejando a criação de mecanismos para que a igualdade meramente
formal saia do plano teórico e ganhe vida, contribuindo para a diminuição dos índices de miséria e de violência que dominam a sociedade
brasileira.
O Direito deve servir à vida, não somente mediante um discurso avançado de proteção das pessoas, senão pela efetividade das
normas jurídicas, para a qual devem contribuir todos os cidadãos.
Respeitar os direitos fundamentais e os direitos de personalidade, representa contribuição para a construção da cidadania. Neste
sentido, impõe-se o empenho dos melhores esforços da sociedade
civil organizada e das autoridades governamentais, todos irmanados
no mesmo ideal.
O ideal de “um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, como preconiza a
Constituição da República.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
44
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46
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
47
MANAGEMENT PÚBLICO: POLÍTICA DE REFORMA E
GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO
BRASIL E NA ITÁLIA 61
FRANCISCO CARLOS DUARTE
62
PROFESSOR TITULAR DO CURSO DE MESTRADO DA PUC - PR.
DOUTOR EM DIREITO E PÓS-DOUTORANDO NO CENTRO DI STUDI
SUL RISCINIO DA UNIVERSITÀ DI LECCE, ITÁLIA.
RESUMO
O texto investiga a possível aplicação de políticas de reforma na alta
administração pública no Brasil, analisando os impasses gerados entre os
aspectos jurídicos e administrativos dessas políticas de reforma. O autor
pretende demonstrar que é possível que a gestão jurídica intra-institucional
seja mecanismo que garanta direitos fundamentais na reformulação do sistema
da alta administração pública gerencial. O trabalho analisa a natureza política,
jurídica e econômica da reforma da administração pública e suas relações
com as novas formas organizacionais dos sistemas gerenciais privados, com
base no conceito de management da administração.
ABSTRACT
The text investigates the possibility of application of renewal politics in the
high public administration in Brazil, analyzing what problems will appear
between legal aspects and administrative ones in these renewal politics. The
author intends to demonstrate that it’s possible the juridical intra institutional
administration to be a way to guarantee the basic rights in the renewal of the
high public management. The paper analyses the political, juridical, and
economical characteristics of the renewal in public administration and its
relation to the new organizational ways in private management systems, taking
as basis the concept of management.
PALAVRAS CHAVE
Direito Administrativo; reforma da administração pública; gestão jurídica intrainstitucional; management da administração.
61
Este ensaio condensa alguns aspectos da investigação interdisciplinar de pós-doutoramento sobre
management público no Brasil e na Itália, que o autor realiza, desde março de 2002, na Università di
Lecce.
62
Pós-doutorando no Centro di Studi Sul Riscinio da Università di Lecce, Itália, sob orientação do Prof.
Dr. Raffaele De Giorgi. O autor desde logo agradece ao orientador pela sua hospitalidade e pela sua
disponibilidade em discutir as idéias reunidas nesta pesquisa, em uma série de encontros e seminários.
Esta orientação foi essencial no processo de produção científica desta pesquisa.
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48
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem por objetivo verificar as possibilidades e impossibilidades de aplicação das políticas de reforma na Alta
Administração Pública no Brasil63 . As reformas na gestão pública costumam gerar impasse na medida que entram em choque os aspectos jurídicos e os aspectos administrativos64 . Os aspectos jurídicos se referem
ao fato de que a reforma deve garantir a igualdade de direitos, pois
conforme a teoria do garantismo, a reforma não deve ferir os direitos
fundamentais 65 . Por outro lado, a prática adminstrativa, ao
operacionalizar a reforma, prioriza a eficiência, a produtividade e a
competitividade, o que nem sempre respeita os aspectos legais e os
direitos fundamentais. Como equacionar a teoria e a prática? Incide
ainda diretamente nessa questão os mercados econômicos internacionais, que atuam de forma determinante na implementação das políticas de reforma. Neste trabalho, pretende-se demonstrar que a Gestão
Jurídica intra-institucional pode operar como mecanismo de garantia
de direitos fundamentais no contexto da reformulação do sistema da
Alta Administração Pública Gerencial. Para tanto, a análise da natureza política, jurídica e econômica da reforma da administração pública
e sua interface com as novas formas organizacionais dos sistemas
gerenciais privados é focalizada a partir do conceito de management66
da Administração.
63
A Alta Administração Pública, que entre outras coisas, define as políticas públicas, é peça-chave para
as reformas da gestão pública, e objetivo dos esforços de reforma, que estão atualmente em curso em
vários países da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), conforme os
Cadernos ENAP n. 17, 1999.
64
Nesse sentido, ver Corsi, 1998.
65
Os impasses gerados no momento da implementação das políticas de reforma na administração pública
são também discutidos por Christensen y Per Laegreid, 2001; e por Grau, 1998.
66
O conceito de management direcionado à Administração Pública é ressaltado no discurso do presidente
do conselho directivo do ICSCSP-UTL: “O management tem como elementos nucleares as quatro funções
básicas de planejar, organizar, liderar e controlar, pensadas para definir caminhos, enfrentar resistências
e superar obstáculos em ordem a alcançar os resultados que se procura. A sua essência é a postura
mental de ordenamento metódico da acção. A mesma postura que inspira os procedimentos das
administrações públicas, ainda que cuntinuamente construídos segundo a lógica do serviço do Estado
e da salvaguarda dos direitos dos cidadãos, e não necessariamente da optimização do uso de recursos
raros para a obtenção de resultados mais interessantes na conjugação das colunas do dever e do haver.”
(NETO, 2000. P. 09)
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49
REFERENCIAL TEÓRICO
Para observação e compreensão do Sistema Político, utiliza-se
o arcabouço da “Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos” elaborada
por Niklas Luhmann67 e também a Teoria do Garantismo. A Teoria dos
Sistemas Sociais parte do pressuposto de que os sistemas sociais operam e se reproduzem mediante mecanismos autopoiéticos,68 que se
acoplam estruturalmente, porém, não se comunicam. Nesse sentido, se
a administração pública abarca um sistema jurídico, um sistema político
e um sistema econômico, na situação de reforma é preciso tomar decisões aplicáveis a cada sistema independentemente. Ou seja, mudanças no sistema político não podem levar a mudanças no sistema econômico, nem vice-versa.
A Teoria Geral do Garantismo, conforme Duarte (2001, p.33)
está centrada no equilíbrio entre a pessoa humana e o poder, tanto
público como privado. Ainda segundo Duarte (op. cit.)
toda a construção institucional do aparato de dominação constituído
em torno do Estado deve girar em função, unicamente, da pessoa
humana e como tal, deve respeitar os limites impostos pelo prlo
abrangente conceito de liberdade que ela possui.
A análise das formas organizacionais da administração pública não é exclusiva destas abordagens, senão que, a partir delas, se
tenta elaborar um acoplamento epistemológico com outras teorias da
administração gerencial contemporânea.
O PLANO DIRETOR DA REFORMA
A reforma da administração pública federal no Brasil foi determinada pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do
Estado, por meio da Câmara da Reforma do Estado, com a formalização
67
A expressão “autopoiéisis” provém da Biologia e foi cunhada por primeira vez por Maturana. Com essa
expressão este último autor quer expressar a forma em que sistemas biológicos se autoproduzem a
partir de seus próprios elementos. Luhamnn translada esse conceito para os sistemas sociais: “Los
sistemas autopoiéticos son los que se producen por sí miesmos no sólo sus estructuras, sino también
los elementos (...) No hay imput no output de elementos en el sistema o desde el sistema: esto es lo
que se entiende com el concepto de autopoiesis”. Cfr. LUHMANN, Niklas e DE GIORGI, Raffaele. Teoria
de la Sociedad. México: Doble Luna, 1993, p. 40. Especialmente sobre toda a arquitetura teórica da
Teoria da Sociedade recomenda-se: LUHMANN, Niklas. Sistemi Sociali. Bologna: Il Mulino, 1991.
68
Essa teoria é mais detalhadamente discutida em DUARTE (2002).
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
50
de um Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que definiria
os objetivos e estabeleceria suas diretrizes, pois é preciso, agora, dar
um salto adiante, no sentido de uma administração pública que chamaria de gerencial, baseada em conceitos atuais de administração e eficiência, voltada para o controle dos resultados e descentralizada para
poder chegar ao cidadão, que, numa sociedade democrática, é quem
dá legitimidade às instituições e que, portanto, se torna cliente privilegiado dos serviços prestados pelo Estado.69
Para a operacionalização das propostas veiculadas neste Plano Diretor, foi editada, entre outras, a Emenda Constitucional no 19/98,
que modifica o regime e dispõe sobre princípios da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças
públicas e custeio de atividade a cargo do distrito Federal. Em conseqüência da sua aprovação, foram editadas leis complementares e ordinárias, entre elas, a Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000,
denominada Lei de Responsabilidade na gestão fiscal, que foi inspirada em regras adotadas pela União Européia (Tratado de Maastricht),
pelos Estados Unidos (Budget Enforcement Act) e pela Nova Zelândia
(Fiscal Responsability Act). Essa lei se constitui em um mecanismo
institucional para garantir a estabilidade fiscal, ou seja, o equilíbrio dos
gastos públicos,70 regulamentando principalmente o Artigo 169 da
Constituição Federal, que delega à Lei Complementar a função de limitar a despesa com o funcionalismo público.71
AS POSSIBILIDADES E LIMITES DA POLÍTICA DE REFORMA
O Estado Intervencionista ou de Bem-Estar representa um
pacto social entre o trabalho e o capital, no qual, os cidadãos teoricamente poderiam aspirar a níveis mínimos de Bem-Estar: educação,
saúde, seguridade social, salário e moradia,- como direitos fundamentais que deveriam ser garantidos. Porém, a crise econômica do início
da década de 70, pôs em questão esse modelo de Estado. É nesse
69
Cf. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: Presidência da República, 1995, p. 10.
Na Argentina, foi editada a Lei n. 24.453/01, denominada de equilíbrio fiscal ou déficit zero. Tal lei foi
qualificada de inconstitucional por organizações de direitos humanos.
71
Pessoa (200, p. 35-39) detalha especificamente a “Nova Administração Pública” de 1998.
70
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
51
contexto que ganham força as idéias neoliberais, estruturadas de modo
a romper o poder dos sindicatos, controlar rigidamente os gastos sociais e as intervenções econômicas72 .
O modelo neoliberal apregoa um mercado livre, baseado na
produtividade e eficiência, e por isso a liquidação das empresas estatais e o setor privado são vistos como modelos a serem seguidos. Já
as políticas do Estado são combatidas como ineficientes, improdutivas, anti-econômicas e limitadoras da liberdade individual, além de restringirem a lucratividade.
De acordo com esses princípios, a formulação da política pública é direcionada para a privatização e para a diminuição dos gastos
públicos. Para atingir esses objetivos, devem ser seguidas as decisões tomadas pelo chamado “Consenso de Washington”, primeiramente
implementadas na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, e que
direcionam as ações da reforma a fim de promover a modernização e
o aumento da eficiência da administração pública. As atividades estatais foram redirecionadas a partir da sua descentralização, transferindo paulatinamente as responsabilidades do Estado para o mercado e
para a comunidade. Esta passagem coloca o Estado na condição de
regulador, com base nos critérios de mercado de eficiência, competição e qualidade73 .
Os Estados Latino-Americanos seguiram essas transformações,
ressaltando-se que diferentemente dos países do primeiro mundo, o Estado de Bem-Estar não havia conseguido implementar um sistema de
seguridade social nesta região74 .. Assim, na década de 80, a maioria dos
governos latino-americanos, inclusive o Brasil, passou por reformas administrativas e econômicas que primaram pela adoção da lógica de mercado nos organismos estatais. (MENEGHEL e LAMAR, 2002)
MANAGEMENT PÚBLICO NO BRASIL
O modelo desenhado pela Emenda Constitucional 19/98 para
a nova administração pública gerencial se apresenta como uma tenta72
A respeito, ver Meneghel e Lamar, 2002; Souto, 2001; Teixeira e Santana, 1994.
Nesse sentido, ver também Ramos (2001), Seabra (2001), Ferlie et al. (1996).
74
A questão das reformas na gestão pública latinoamerica é tratada em Bozzi, 2001
73
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
52
tiva de quebra dos paradigmas estabelecidos pelo Estado Moderno,
que de longa data, determinam as instituições públicas75 . Pensar em
uma administração pública gerencial implica construir novos referenciais
que orientem o espaço público institucionalizado para adequação da
complexidade contemporânea.76 Esse novo modelo gerencial se inspira na administração empresarial e se volta para77 :
a) a definição precisa dos objetivos que o administrador público deverá atingir em sua unidade;
b) a garantia de autonomia do administrador na gestão dos
recursos humanos, materiais e financeiros que lhe forem colocados à
disposição a fim de que possa atingir os objetivos contratados;
c) para o controle ou cobrança a posteriori. Além disso, viabiliza
uma política de competição administrada no interior do próprio Estado,
quando há possibilidade de estabelecer concorrência entre as unidades internas.
O modelo apregoa que a reformulação do Estado vai além da
simples reforma administrativa78 . Implica, entre outras coisas, a quebra dos princípios diretores do Estado Moderno, na medida que coloca
em crise conceitos operacionais, tais como: bem comum, serviços públicos, cidadania, etc. 79
VISÃO HISTÓRICA DA REFORMA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O objetivo essencial da reforma da administração pública é uma
forma de adequar as velhas categorias da burocratização pública ao
modelo de economia global contemporânea. Eis que o Estado, como
centro decisório determinante e regulador da economia, perdeu o espa75
Petrucci e Chwarz (1999) organizam uma coletânea de trabalhos cujo tema é a tentativa de reforma
gerencial na administração pública em 1995.
76
Martins (1997) aborda mais detalhadamente essa questão.
77
Ver mais detalhes em Bresser Pereira (1998) e Bresser Pereira (2001).
78
Ver também FORUM DAS REFORMAS (1997).
79
Consta da Exposição de Motivos Interministerial n. 49, de 18.08.95, por meio da qual os Ministros de
Estado encaminharam ao Presidente da República proposta de emenda constitucional relativa às
disposições que regem a administração pública, o regime jurídico e a disciplina da estabilidade dos
servidores públicos civis, que: “A crise do Estado está na raiz do período de prolongada estagnação
econômica que o Brasil experimentou nos últimos quinze anos. Nas suas múltiplas facetas, esta crise se
manifestou como crise fiscal, crise do modo de intervenção do Estado na economia e crise do próprio
aparelho estatal.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
53
ço decisório para as instâncias contingentes do capital privado80 . Como
bem assinala Fiori (1995, p. 220):
(não) pairam mais dúvidas de que esta nova formatação econômica
envolve aspectos e dimensões tecnológicas, organizacionais, políticas, comerciais e financeiras que se relacionam de maneira dinâmica gerando uma reorganização espacial da atividade econômica e
uma claríssima re-hierarquização de seus centros decisórios.
O contexto econômico emergente virou ao avesso as formas
organizacionais e os valores que estruturaram e legitimaram o Estado
de Bem-Estar Social que, em linhas gerais, estava orientado da seguinte forma:
...(modificação) do jogo de forças do mercado em pelo menos três
direções: primeiro, garantindo aos indivíduo e às famílias uma renda mínima independentemente do valor de mercado de seu trabalho ou de sua propriedade; segundo, restringindo o arco de insegurança para os indivíduos e famílias em fazer frente a certas contingências sociais (doença, velhice, desocupação), que, de outra maneira, conduziriam a crises individuais ou familiares; e terceiro, assegurando que a todos os cidadãos, sem distinção de status ou classe, sejam oferecidos os padrões mais altos de uma gama reconhecida de serviços sociais.(BRIGSS & DRAIBE, 1989, p. 18)
É evidente que o Estado de Bem-Estar Social, apesar de suas
diferenças contextuais históricas e culturais (Welfare State, ÊtatProvidence, etc.)81 , foi identificado, dentro do interior do sistema econômico, como o modelo do mercado administrado, cujo suporte teórico era dado pela adoção da receita keynesiana82 .
A DESREGULAMENTAÇÃO DOS MERCADOS FINANCEIROS
NACIONAIS
Os mercados financeiros têm grande influência na exigência de
reformas na gestão pública, dada a sua relevância no contexto políticoeconômico atual. A ascensão do seu poder começa na década de sessenta, quando as economias nacionais deixaram de crescer e os Esta80
A esse respeito, ver a ótima discussão de Borón (2001).
Nesse sentido, ver Ramos (2001).
82
Freitas e Estevão (2002); Cardoso (2002) também tratam desse tema.
81
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54
dos perderam força ante as corporações empresariais, que começaram a se deslocar do setor produtivo para o financeiro, à procura do
lucro sem esforço e sem maiores preocupações. 83
Mercados administrados e fiscalizados, contratos de trabalho
fortemente regulamentados e a rigidez dos compromissos estatais com
os programas de seguridade social e defesa seriam as causas do colapso que levariam à desarticulação do sistema de taxas de câmbio
fixas e à cessação do crescimento econômico real. Harvey (1993)
contextualiza essa transição histórica do capitalismo fordista-keynesiano
(capital produtivo) para um novo sistema de acumulação flexível (Arrigui,
1997, p. 3), definitivamente nos inícios dos anos noventa.84
Porém, a origem da desregulação dos mercados foi a decisão
do presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, de suspender, no mercado interno de seu país, a convertibilidade ouro/dólar. Os
Estados Unidos, unilateralmente, desvincularam-se do sistema de taxas de câmbio fixas (gold exchange standard), que tinha sido acordado
em Bretton Woods, no crepúsculo da Segunda Guerra Mundial, quando, também, tinham sido criados seus guardiães internacionais, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
Nesse sentido, como bem esclarece Fiori (1995, p. 222), mesmo que a crise tivesse sido identificada, contextualmente, em 1973/
1975, foi somente na década de 80 que o movimento expansivo e
internacionalizante dos capitais financeiros começou a mostrar o
surgimento de uma nova face, que emergiu em conseqüência das
políticas desregulacionistas universalizadas desde então. Dito em outras palavras, a desregulamentação financeira só se tornou política
explícita no decorrer da década de oitenta.
As políticas desregulacionistas emergentes, desde então, assentam-se sob a égide de uma nova hegemonia liberal-conservadora
que, como assinala Dietrich, se autodenominou, propagandisticamente,
de neoliberalismo85 .
83
A respeito da estrutura socio-econômica do neo-liberalismo, ver Fortuny (2000) e também Fleury (2001).
Paes de Paula (2002) aborda mais especificamente esse problema.
85
DIETRICH, Heinz. Crise Capitalista na aldeia global. In: Revista Plural. Florianópolis, UFSC, n° 10, ago/
dez,1998, p. 15
84
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55
São muitas as leituras feitas sobre a crise da economia mundial
e suas conseqüências para os Estados e suas economias nacionais.
Nos anos oitenta, o ultraliberalismo econômico, ancorado, principalmente,
nas políticas dos governos de Ronald Reagan (Estados Unidos) e de
Margareth Thatcher (Inglaterra), com vistas a fundamentar a liberação
de todos os setores do mercado, ocupou-se em responsabilizar o
intervencionismo estatal keynesiano por todas as inflações, crises fiscais e recessões dos anos setenta e oitenta na Europa e nos Estados
Unidos.
Porém, as transformações assinaladas emergiram mais nitidamente na segunda metade da década de oitenta, por ocasião da
articulação dos novos centros de poder: Japão, Alemanha e Estados
Unidos. Como explicita Fiori (op. cit., p. 184):
Quando o cenário mundial se reordena e a estagnação é superada,
o quadro econômico estrutural está radicalmente modificado. É clara a existência, já em pleno funcionamento, de um novo padrão
tecnológico e organizacional da produção. O sistema financeiro internacional se altera radicalmente, e a divisão internacional do trabalho entre corporações, países, regiões etc. é redesenhada.
Paralelamente, com a queda do muro de Berlim – que funcionou como um ícone para o desmoronamento dos sistemas econômicos socialistas ou de tendências intervencionistas, e com a vitória quase universal dos liberais conservadores, na maioria dos países centrais,
a nova ordem econômica, aguda nos países industrializados, adquiriu
contornos mundiais e se projetou como indiscutível.
Nesse contexto, é possível observar-se que a
desregulamentação dos mercados financeiros nacionais acabou por
estabelecer um mercado financeiro internacional “livre”, no qual as empresas começaram a operar (investimentos especulativos de capitais
retirados do setor produtivo) à procura de lucros mais vantajosos a
curto prazo. As empresas em expansão apoiaram a ascensão de um
ideário neo-conservador que prometia, de um lado, a abstenção de
controles em todos os âmbitos e, de outro, liberdade de jogo para as
forças “naturais” do mercado.
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CONSEQÜÊNCIAS DA REFORMULAÇÃO DAS POLÍTICAS
ECONÔMICAS
A reformulação das políticas econômicas no mercado trouxe,
como conseqüência, a debilidade da política central dos Estados Nações. Não é em vão que o primeiro conceito posto em crise, no âmbito
da Teoria Política foi o de soberania. A crise do conceito de soberania
está intimamente associada à tese da morte do estado nacional como
conseqüência do deslocamento dos centros de poder do âmbito político
para o econômico. O autor que teve notável relevância por esta tese é o
japonês Kenichi Ohmae com a publicação de sua obra The End of de
the Nation State, em 1996.
Faria (1996, p. 31) sintetiza, claramente, a nova conformação das
instâncias decisórias, da seguinte forma:
Com a erosão das fronteiras, no âmbito da economia globalizada, a
política se “desterritorializa”. E com a proliferação de mecanismos
de auto-regulação econômica, perde seu papel como instância privilegiada de deliberação, decisão, direção e proteção, tendendo a
operar numa dimensão mais coordenadora, sob a forma de redes
formais e informais articuladas por empresas sindicatos e entidades
representativas preocupadas em negociar questões específicas e
assegurar interesses particulares.
Como conseqüência de tais mudanças, o espaço do público,
como representativo do “bem comum”, esvaziou-se de sentido, transformando os centros decisórios, antes políticos e públicos, em espaços privados de interesses definidos pelas contingências
macroeconômicas. Nesta perspectiva, a representatividade e a
legitimação das instâncias políticas, que tanto foram questionadas nos
debates sobre a natureza do Estado, simplesmente se esfumaram, convertendo os parlamentos em arenas de lutas dos grupos de interesses
estritamente econômicos. Nesse novo contexto, o que se altera não é o
papel do poder político, são suas formas de atuação e de proteção dos
espaços econômicos garantidos para seus capitais. (FIORI, 1997, p. 142)
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57
Conclui-se, então, que o referencial constitutivo das estruturas
sociais contemporâneas é dado pelo sistema econômico, porém, não a
partir da pura racionalidade do mercado (entendida como racionalidade
instrumental), mas sob a égide das contingências diárias baseadas,
exclusivamente, na movimentação dos principais mercados financeiros.86
O exemplo mais nítido, pelo qual se pode observar o ideário neoliberal
ascendente dos organismos internacionais, destinado à América Latina
é o denominado “Consenso de Whashington” de 1989 (AYERBE, 1998,
p. 28). Por ocasião de um seminário organizado pelo Institute for
International Economics para discutir o ajuste das políticas latino-americanas, com a participação do FMI, do Banco Mundial, do Banco
Interamericano de Desenvolvimento e representantes do governo dos
Estados Unidos e dos países de América Latina, surge uma espécie de
receituário para que os governos latino-americanos possam “consolidar” e, assim, ajustar a economia da região.
Os tópicos fundamentais podem ser agrupados em três cate87
gorias:
1. Equilíbrio das contas públicas, obtido a partir da redução de despesas e não pelo aumento de impostos.
2. Liberalização da economia pela abertura comercial e a
desregulamentação. Ou seja, abstenção de controles governamentais ao setor privado e a não-discriminação em face do capital estrangeiro.
3. Privatização das empresas públicas.
Essa retitude financeira (CHOMSKY: 2001) colocou os países
da região diante de um dilema insolúvel. Para sair da crise econômica
endêmica que afeta, há décadas, toda a América Latina e conseguir a
tão desejada estabilidade econômica, os governos precisam de mais
créditos externos e refinanciamentos de suas dívidas externas por parte
dos credores internacionais, porém, somente terão refinanciamento e
injeção de capitais externos se aplicarem as políticas corretas, debati86
Basta escolher qualquer canal de noticias para perceber que a comunicação sobre a movimentação
financeira ocupa o maior espaço na divulgação das informações quotidianas.
87
O Código de Conduta da Administração federal (2000) segue esse princípios.
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58
das e aprovadas em Washington. Mais ainda: a aplicação do receituário do consenso de Washington implica custos elevados a curto e médio
prazo como recessão, desemprego, eliminação de subsídios e recorte
de gastos governamentais e reforma social.88
Nesta perspectiva, se, por um lado, os países desenvolvidos
impõem, cada vez com mais força, uma visão elitista da agenda internacional com temas recorrentes como a desregulação dos capitais, a
geração de formas cooperativas de interdependência econômica, a
unificação monetária, a flexibilização dos sistemas de produção, a
estandardização dos mercados, a criação de grandes blocos comerciais e a defesa dos cortes drásticos nos gastos públicos dos Estados
nacionais, especialmente por meio de medidas tais como a privatização
dos serviços públicos essenciais; por outro lado, os países latino-americanos, ao estarem compelidos a aderir à agenda internacional, se
transformam em um contraponto explosivo ao processo de unificação
e flexibilização da economia mundial.
A REFORMA NA ALTA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DO BRASIL
É nesse contexto, então, que o Brasil tenta reformular os
parâmetros organizacionais da Alta Administração Pública. Entendese com o conceito de Alta Administração Pública o núcleo estratégico,
isto é, o setor onde as decisões estratégicas são tomadas, que
corresponde aos Poderes Legislativos e Judiciário, ao Ministério Público e, no Poder Executivo, ao Presidente da República, aos ministros e
aos seus assessores diretos, enfim todos aqueles sujeitos que participam do planejamento e da formulação das políticas públicas. (FARIA,
1996, p. 52) 89
No Brasil, como já foi visto, este plano foi implantado através da
Emenda Constitucional de 19 de junho de 1998 e está orientado, especificamente, ao plano da administração pública federal. Após aprovado
o programa de estabilidade fiscal que abrange a sustentabilidade fiscal,
a gestão dos gastos públicos e a gestão da dívida, foi liberado em janei88
É interessante o capítulo de Kliksberg (1989) que trata da crise econômica e da necessidade de
reformulação da máquina pública.
89
É interessante notar também a abordagem de Kelly e Wanna (2001).
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
59
ro de 2001, um empréstimo programático90 de reforma fiscal de
U$S757,58 milhões pelo Banco Mundial.
Embora nem o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e nem tampouco as Emendas Constitucionais contemplem os mecanismos da gestão jurídica na nova administração pública, impõe-se a
sua adoção, entre outras, no planejamento e na formulação das políticas
públicas e nos conselhos das agências públicas, na medida que se apresenta como técnica funcionalmente adequada para garantir direitos fundamentais.
O eixo principal da reforma gira em torno do conceito de eficiência, ou seja, do conceito de qualidade de serviço dentro do referencial
econômico91 . Desta forma, o tradicional espaço público da decisão
orientado pelo princípio político do bem comum é deslocado para o
âmbito do sistema econômico. Nesse contexto, as categorias que
determinavam a seletividade do código binário da política, isto é, poder/não-poder, ficam esvaziadas do sentido tradicional para determinar-se através de novos referenciais operativos: poder econômico/ausência de poder econômico.
A partir de tal deslocamento de significantes, os velhos
paradigmas da política carecem de sentido construtivo, pois deixaram
de ser aptos para provocar a funcionalidade do sistema através da
construção referencial. Nesse contexto emergente, os rumos da decisão na Alta Administração Pública são demarcados pelo significante do
sistema econômico.
CONSEQÜÊNCIAS DA REFORMA
O deslocamento referencial apontado trouxe como conseqüência a crise de outros significantes da área da administração pública na
90
Os Empréstimos Programáticos apóiam programas governamentais através de uma série de
empréstimos efetuados ao longo de 3 a 5 anos, cada um deles baseado no anterior, com vistas a apoiar
reformas estruturais e sociais sustentadas e seqüenciais. Eles atendem às necessidades dos países
de obterem financiamento e aconselhamento do Banco Mundial para apoiar reformas estruturais e
sociais que envolvam mudanças contínuas e incrementais nas políticas e fortalecimento institucional
durante vários anos. O enfoque desses empréstimos é em capacitação e reformas graduais, tipicamente
no setor público, com vistas as fortalecimento das gestão das despesas públicas e na melhoria da
alocação de recursos e na prestação de serviços públicos. Esses empréstimos baseiam-se em trabalhos
analíticos nessas áreas.
91
Bresser Pereira (1998) trata especificamente o assunto.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
60
medida em que estão direitamente vinculados ao componente referencial.
Bem público, lucro estatal, bem comum, políticas públicas, patrimônio
público, poder político, são todos referentes que se contrapõem em seu
sentido tradicional, ao novo referencial de eficiência.
Portanto, o grande desafio do Estado contemporâneo reside
na gestão desses novos referenciais como construtores de novos espaços estratégicos. Assim é que a gestão jurídica ocupa um papel
determinante para a construção da legitimidade do emergente poder
político.
Por outro lado, os Estados europeus determinados pela formação da Comunidade Econômica Européia, há algumas décadas vêm
deslocando os velhos referenciais políticos por novas categorias no
âmbito da construção da decisão pública. Especialmente a Itália, que
teve de superar sua política protecionista estatal para conseguir sanear as bases econômicas sociais dependentes do aparelho estatal.
A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ITALIANA
O novo modelo de administração pública gerencial italiana inspirou-se na administração privada. Uma revisão histórica do processo
de mudança é apresentado por Sabino Cassese em “Le trasformazioni
del diritto amministrativo dal XIX al XXI secolo”(2002). Contribui também para a construção do panorama da reforma o artigo de Giuseppe
Piperato (2002).
A administração pública italiana resistiu às diferentes tentativas de mudanças as quais foi submetida, como assinala Fedele (1998).
Com a crise da idéia de gestão pública e estado social, foi decisivo o
papel do programa de “endereçamento para a modernização”, o qual
delegou novas tarefas ao executivo, resumidas basicamente em simplificação, reforma dos aparatos ministeriais, separação entre política
e administração, definição dos standards de prestação de alguns serviços e incentivos de retribuição profissional do emprego público (FEDELE,
op. cit., p. 85).
Seguindo esse programa, foi suprimido o controle prévio do Tribunal de Contas; uma diretiva de princípios sobre a prestação de serviços públicos foi promulgada; a grande maioria dos processos adminisRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
61
trativos foram simplificados; novos critérios de distribuição de pessoal
entre as administrações foram estabelecidos; e foi confiada ao governo
uma delegação para reordenar as administrações sociais e as entidades de previdência e assistência.
Porém, como destaca Fedele (op. cit., p. 86), “nenhuma administração pode modificar o próprio rendimento, se não mudar, ao mesmo tempo, as prestações do pessoal que atua no seu interior. Isto porque a distinção entre emprego público e emprego privado é, hoje, cada
vez mais anacrônica”. Assim, a privatização da relação de trabalho dos
servidores públicos se faz necessária. Antes, cabe uma questão: o que
é oportuno que seja garantido pelo Estado e o que seria melhor confiar
ao mercado. Experiências européias demonstram que é positivo transferir ao setor privado alguns serviços, particularmente previdência e saúde. Na Itália, anteriormente à implementação do novo modelo de administração pública gerencial, estava sob a égide do Estado desde serviços de correio, assistência sanitária e transportes, até a produção de
tabaco em regime de monopólio. Com o advento do novo modelo, o
Estado diminuiu a sua participação na prestação de serviços, delegando tal tarefa ao mercado. Eis que a redução da intervenção estatal teve
como contrapartida a política de desconcentrar, descentralizar e
desestatizar. Nesse contexto, a privatização serviu como operação de
redução da função estatal e de transferência da propriedade e do controle de empresas estatais para o setor privado.
CONCLUSÕES
Todas as tentativas de implementar políticas de reforma na
gestão pública, necessariamente passam pelo conflito entre os aspectos jurídicos, na garantia de direitos fundamentais, e os aspectos administrativos, que prioriza a eficiência, a produtividade e a competitividade,
e nem sempre respeita os aspectos legais e os direitos fundamentais.
Outro grande impasse pelo qual passam as políticas de reforma na gestão pública é o fato de que o referencial constitutivo das
estruturas sociais contemporâneas é dado pelo sistema econômico, o
que não está de acordo com a Teoria dos Sistemas de Luhmannn.
Deste modo, para implementar de fato as reformas na gestão
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
62
pública, é preciso articular a proposta, no âmbito legal, com a prática, no
âmbito do management adminstrativo público. Uma proposta bastante
interessante é a do novo modelo de administração pública gerencial italiana - que apesar de ser fundamentada na administração privada92 - a
qual oferece à sociedade um serviço público de melhor qualidade, visando o cliente e não o dependente tutelado pelo Estado. A alternativa
italiana concilia os princípios da administração privada de eficiência,
produtividade e competitividade, aos princípios polítíco-institucionais de
qualidade, igualdade e eficácia, garantindo ao cidadão, e parece ser
uma excelente alternativa a ser aplicada nas reformas da gestão pública
no Brasil.
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92
As reformas da administração gerencial francesa também seguem o modelo privado, conforme
salienta Trosa (2001).
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66
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
67
CRITÉRIOS JURÍDICOS PARA A DISTINÇÃO ENTRE A
PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA RURAL E URBANA:
ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICAS
JOSÉ ROBSON DA SILVA
PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA.
DOUTOR EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS PELA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO PARANÁ. ADVOGADO DO INSTITUTO AMBIENTAL DO
PARANÁ - IAP
RESUMO ABSTRACT PALAVRAS CHAVE
Neste artigo tem-se a preocupação de investigar a interpretação e aplicação prática do conceito de propriedade, na Constituição,
no Código Civil e em outras normativas com o fito de estabelecer linhas entre o direito privado e público.
Para fins de análise optamos por um único conceito de direito
de propriedade. Não se desconsiderou, entretanto, que o direito de
propriedade projeta-se sobre uma variedade de bens que são regulados de modo diferente, porém, sem que com isso constituam distintos
conceitos de propriedade. Como se está a tratar de diferentes bens,
urbano e rural, parece coerente que se realcem os traços distintivos no
direito positivo de um e outro.
Reafirme-se que a separação entre o rural e o urbano deve
receber um novo aporte, que é o agrícola.93 Esse conceito abrange
cidades “onde o sistema urbano é modificado pela presença de indústrias agrícolas não urbanas, freqüentemente firmas hegemônicas, dotadas não só de capacidade extremamente grande de adaptação, como
da força de transformação da estrutura, porque tem o poder de mudança tecnológica e de transformação institucional”.94
93
94
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 9, 119.
Idem, ibidem, p. 51.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
68
Os espaços urbano e rural tornam-se fluídos,95 a adoção de critérios rígidos — como é o caso da definição do perímetro urbano pela
demarcação física do território — encontra-se em causa. O rural, condimentado pela exploração agrícola, projeta-se para dentro das cidades
depositando os seus trabalhadores, que provavelmente habitarão a periferia, e em espaços marcados pela frágil presença do Estado e pela
insegurança em relação à titularidade dominial.
A tendência é o aumento da população agrícola em relação à
população rural.96 Os dados estatísticos demonstram que tanto a população rural quanto a agrícola estão em declínio em relação à população urbana total do país, entretanto, a velocidade do decréscimo da
população agrícola é menor do que a população rural.
A definição jurídica do que sejam o imóvel urbano e rural deve
considerar, portanto, múltiplas variáveis e incorporar o fato de que não
mais se pode restringir o debate a conceitos inflexíveis entre urbano e
rural. É preciso reconhecer o surgimento de uma população que desenvolva atividades agrícolas e industriais e que, portanto, desborde do
âmbito rural.
No direito positivo, os critérios para se distinguir imóvel rural
do urbano são tradicionalmente reduzidos a dois: o da localização e o
da destinação. Essa proposição não tem apenas interesse acadêmico; repercute de modo decisivo no âmbito de variadas relações e situações jurídicas que se travam na sociedade: contratos, tributação,
usucapião, defesa do ambiente, Reforma Agrária, Reforma Urbana etc.
Nesses tópicos, diferentes normativas incidirão, caso se eleja um ou
outro critério; essas questões, portanto, encontram-se diretamente influenciadas pela determinação do critério distintivo entre imóveis rurais e urbanos.
Alguns elegem o critério da localização para definir o imóvel
rural, distinguindo-o do urbano. Se o imóvel encontrar-se-á no perímetro
95
Idem, ibidem, p. 36.
Esclarece-se que o conceito de população rural encontra-se marcado pela atividade e habitação da
pessoa, ou seja, pessoas que se encontram explorando atividade agrícola/rural e com residência no
campo. População agrícola é aquela que tem tal atividade, mas que reside nas cidades. Nos anexos,
apresenta-se tabela que demonstra a velocidade da evolução da população rural e agrícola.
96
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
69
urbano será assim considerado. Essa conclusão toma como parâmetro
legal o Código Tributário Nacional97 que, no artigo 32, utiliza o critério
localização para definir a incidência do imposto sobre a propriedade
predial e territorial urbana.
Intensa polêmica é travada na doutrina nacional acerca do assunto. Alguns entendem que esse critério foi revogado pelo Decreto-Lei
nº. 57 de 18 de novembro de 1966 que, no artigo 15 dispunha: se o
imóvel fosse utilizado para fins agrários mesmo que localizados no perímetro urbano, receberia a incidência do ITR.98 A Lei federal n. 5.868, de
12 de dezembro de 1972, criou o Sistema Nacional de Cadastro rural e,
no artigo 6º, faz menção ao artigo 29 da Lei n. 5.172, de 25 de outubro
de 1966, dispondo que imóvel rural será definido pelo critério da
destinação.
Esse dispositivo foi suspenso por inconstitucionalidade, através da Resolução do Senado Federal n.º 313, de 30 de junho de 1983.99
O Supremo Tribunal Federal concluiu que o dispositivo da Lei n.º 5.868/
72 é inconstitucional porque, não sendo lei complementar, não poderia
estabelecer critérios que dizem respeito à matéria tratada por essa
espécie de lei (lei complementar), como é o caso do Código Tributário
Nacional.
Com a promulgação da Constituição de 1967, a matéria apenas poderia ser tratada através de Lei complementar (artigos 18 § 1º e
19 § 1º). Nesse âmbito, como afirma Paulo Guilherme de ALMEIDA, a
decisão do Supremo Tribunal Federal é incensurável; entretanto: “Passou despercebido, porém no aludido julgamento, que o art. 12 da lei
5.868/72 revogara os arts. 14 e 15 do Decreto-Lei 57/66 [...]. A mesma
eiva de inconstitucionalidade viciava, entretanto, o art. 12 da lei 5.868/
72, por ser lei ordinária”.100
O Código Tributário Nacional e o Decreto-lei n.º 57 de 18 de
97
BRASIL. Lei Complementar n. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Dispõe
sobre o sistema tributário nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados
e Municípios.
98
ALMEIDA, Paulo Guilherme de. Aspectos jurídicos da reforma agrária no Brasil. São Paulo : LTR,
1990, p. 29-30.
99
OLIVEIRA, Juarez de [Org.]. Estatuto da terra. 6. ed. São Paulo : Saraiva, 1990, p. 236.
100
ALMEIDA, op. cit., p. 32.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
70
novembro de 1966, foram recepcionados pela Constituição de 1967
como normas complementares. Antes disso, o Decreto-lei n.º 57/66 já
havia revogado o Código Tributário Nacional e adotado o critério da
destinação para identificar o imóvel rural. A não percepção pelo Supremo Tribunal Federal dessa situação promoveu equivocada repristinação
do Código Tributário Nacional.
O paradoxal, como afirma Paulo Guilherme de ALMEIDA, é o
Supremo Tribunal Federal em acórdão prolatado na vigência da Lei n.º
5.869/72 reconhecer a prevalência do Decreto-lei n.º 57/66 sobre o
Código Tributário Nacional.101
A legislação atual, que regula o imposto territorial rural, utiliza
o critério da localização para definir o que seja imóvel urbano e rural;102 esclareça-se porém, que essa normativa refere-se a imposto, o
fim visado é precipuamente fiscal. Nesse âmbito, não se desconhece
muitos dos efeitos extrafiscais da lei.103
Para maior clareza, exemplifique-se que uma dada relação
jurídica contratual que tenha por objeto um imóvel explorado para fins
agrários, mas localizado no perímetro urbano, pela confusão de critérios, pode, quando da determinação das normativas que regulam tal
relação, ser orientada pelo critério da localização. Essa opção afronta
muitos princípios do direito agrário, v. g., função social da propriedade,
justiça distributiva, combate ao minifúndio e ao latifúndio.104
As normativas que regulam a posse e uso temporário do bem
101
“Recurso Extraordinário n. 76.057, do Paraná, recorrente: Jayme Canet Júnior e recorrido: a Prefeitura
Municipal de Bela Vista do Paraíso. Relator: Ministro Xavier Albulquerque, STF, 2.ª Turma, 10.5.74, in
RTJ, vol. 70 pág. 479”. ALMEIDA, Paulo Guilherme de, op. cit., p. 33.
102
Lei n.º 9.393 de 1996, regula a incidência do imposto territorial rural e elege o critério da localização na
definição imóveis que serão tributados. Essa, entretanto, é uma lei ordinária e pode repor a questão
acerca da constitucionalidade do critério utilizado para fixar imóvel urbano e rural para fins tributários, pois
a Constituição Federal dispõe no art. 146, I, II, III que essa matéria deverá ser tratada por lei complementar.
BRASIL. Lei n. 9.393, de 19 de dezembro de 1996. Dispõe sobre o imposto sobre a propriedade territorial
rural - ITR, sobre pagamento da dívida representada por títulos da Dívida Agrária e dá outras providências.
103
Na lei, a definição do imóvel como urbano está, entretanto, especificamente vincada por aspectos
fiscais. Sem entrar profundamente em questões relacionadas à pertinência lógica desse critério que,
considera-se, deveria ser substituído pelo critério da destinação do bem, pois muitos problemas são
produzidos quando se utiliza um critério estabelecido para determinados fins para regular outros. Um dos
efeitos extrafiscais que a lei visa alcançar, é a realização da Reforma Agrária através do princípio da
progressividade do imposto sobre imóveis improdutivos.
104
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 26.
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71
rural são marcadas por características específicas e apontam para uma
tutela diferenciada ao possuidor não proprietário. As leis agrárias que
regulam os contratos determinam que estes deverão ter um prazo mínimo de três a sete anos, dependendo da cultura e atividade a ser desenvolvida. Na hipótese vertida no texto, se prevalecesse o critério da
localização, poderia ter-se a incidência das leis civis e não das leis agrárias, o que é inaceitável, pois muitos direitos indisponíveis tornar-se-iam
disponíveis.105
Na definição do imóvel rural, quando este estiver sendo utilizado para a exploração agrícola, pecuária e florestal, deverá imperar o
critério da destinação. Nesse sentido, encontra-se uma das definições
fundamentais do Estatuto da Terra.106
Continuando na exemplificação dos efeitos dos critérios distintivos, tome-se o caso da usucapião especial. Essa modalidade de aquisição da propriedade encontra-se marcada pela posse-trabalho, posse qualificada pelo esforço do possuidor e de sua família. O critério da
destinação e/ou da localização tem, nesse assunto, uma importância
crucial. José Carlos de Moraes SALLES afirma que:
O art. 191 da Constituição federal de 1988 adotou, entretanto,
iniludivelmente, o critério da localização, ao utilizar a expressão “área
de terra em zona rural”. Por isso, para os efeitos do usucapião pró
labore ou especial rural, é a que se situa em zona rural, destarte, o
imóvel localizado em zona urbana, ainda que tenha destinação rural,
não poderá ser considerado área rural para fins de usucapião pro
labore.107
Com a devida venia, a interpretação do autor busca extrair da
Constituição conseqüências que não se harmonizam com o potencial
do instituto, além de implicitamente considerar que a Constituição de105
O artigo 13 do Decreto n. 59.566, de 14 de novembro de 1966, determina a proibição de renúncia de
direitos e vantagens consignados na lei que regula os contratos agrários, Lei n. 4.947 de 1966. A função
da indisponibilidade das vantagens e direitos que a lei determina alcança contratos típicos e atípicos do
direito agrário. É uma disposição legal que corrige as eventuais disparidades econômicas e sociais que
podem marcar as relações contratuais agrárias.
106
Inciso I do artigo 4. da lei n. 4.504 de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra e dá
outras providências.
107
SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis. 4. ed. São Paulo : 1997, p. 249.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
72
finiu o que seja zona rural e isto objetivamente não ocorreu. Antes de
deitar olhos sobre essa questão, cabe perfilhar a lição do professor Celso
Ribeiro BASTOS “interpretar é atribuir sentido — um processo marcado
pela criação —”.108 A usucapião especial tem por escopo a tutela do
homem, sendo esse o princípio hermenêutico que deve estar por detrás
da interpretação. A vinculação a um critério estrito de zona rural, possivelmente não se harmoniza com os princípios constitucionais da função
social da propriedade, da dignidade da pessoa humana e da redução
das desigualdades regionais e sociais.
Como visto anteriormente, com fundamento na Ciência da
Geografia, muito bem representada pelo doutor Milton Santos, o conceito de território é fluído e a rigidez da demarcação territorial não se
harmoniza mais com a realidade. O urbano e o rural se interpenetram
de tal modo que, aprisionar as relações sociais em critérios rígidos,
como é o caso da demarcação topográfica, pode provocar um
distanciamento do Direito das relações da vida.
Nessa perspectiva, uma questão se impõe: o artigo 191 da
Constituição, ao definir zona rural está vincado tão-somente por critérios topográficos? Pode-se responder com a análise do conceito da
localização, posto no Código Tributário Nacional (CTN). Esse conceito
anatômico, no que concerne à zona urbana foi mitigado no Estatuto da
Tributação predial contido no CTN e deve ser precisado.
O CTN no artigo 32, ao tratar do imposto que incide sobre prédios na zona urbana determina que, para a incidência do imposto territorial
urbano são necessários pelo menos dois dos equipamentos urbanos indicados nos incisos de I a V, quais sejam: meio-fio ou calçamento, com
canalização de águas pluviais; abastecimento de água; sistema de esgotos sanitários; rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para
distribuição domiciliar; escola primária ou posto de saúde, a uma distância máxima de três quilômetros do imóvel considerado.
O critério posto no Código Tributário Nacional, sabidamente topográfico, é temperado, portanto, por outros, com nítido caráter social e
de saúde pública. Restringir assim o dispositivo constitucional que regula
108
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo : C. Bastos, 1997.
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73
a usucapião especial e tomar o conceito de zona rural apenas no sentido
geográfico clássico (que se preocupa tão-somente com a demarcação
territorial do objeto), pode, repete-se, afastar o direito da realidade.
Nesse tópico, faz-se necessário esclarecer que não se perfilha
a idéia de que o Direito deve apenas se conformar à realidade, já que
isto seria retirar do Direito a possibilidade de interferir e contribuir para
o aperfeiçoamento das relações humanas. Assim, negar a usucapião
especial para pessoas que estão a trabalhar dando ao bem o atendimento à função social da propriedade, pelo fato de o imóvel localizarse em zona urbana e estar identificada apenas pelo critério topográfico, parece descaracterizar o instituto. Fica-se com a lição que assim
se configura: “Os limites urbanos nem sempre são definidos [...]. O
critério seguro é o da destinação do imóvel, geralmente acatado no
Direito Administrativo”.109
Entre o critério topográfico e o da destinação, o segundo é o
que melhor se adapta ao nosso ordenamento jurídico. Ulderico Pires
dos SANTOS, comentando o artigo 191 da Constituição, conclui que:
“o fato de determinada área encontrar-se geograficamente situada no
perímetro urbano por si só não quer dizer que ela se dispa de sua
característica rural [...]. Pouco importa, assim, para a área ser considerada rústica que ela esteja localizada na zona urbana; o que lhe empresta essa caracterização não é a sua localização geográfica e sim a
sua destinação”.110
Para ressaltar a importância da utilização dos critérios de distinção entre imóvel urbano e rural, menciona-se um último tópico: a
Reforma Agrária. José Bonifácio Borges de ANDRADA afirma que o
imóvel destinado à atividade agrícola, mas localizado em perímetro
urbano, não poderá ser desapropriado para fins de Reforma Agrária. O
autor conclui que o artigo 4.º da Lei n.º 6.829/93 (Esta Lei regula os
dispositivos constitucionais relativos à Reforma Agrária e o artigo estabelece que para os fins colimados na normativa imóvel rural se caracte109
FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea: uma perspectiva
da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: S. Fabris, 1988, p. 89.
110
SANTOS, Ulderico Pires dos. Usucapião constitucional, especial e comum: doutrina,
jurisprudência e prática. São Paulo: Paumape, 1991.
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74
riza pela destinação) é inconstitucional.111
Essa doutrina não se harmoniza com os princípios constitucionais da propriedade. A função social da propriedade tornar-se-ia letra
morta. Bastaria aos Municípios expandir os limites do perímetro urbano ou definir áreas de urbanização futura, para que imóveis rurais improdutivos ficassem a salvo da desapropriação para fins de Reforma
Agrária.
Em conclusão, destaca-se que o critério da destinação e o da
localização devem ser harmonizados. O descarte puro e simples de
qualquer um, pode afetar direitos fundamentais e/ou implicar em graves dificuldades de organização das cidades e do campo. A propriedade imobiliária rural e urbana deve ser trabalhada em uma perspectiva
harmônica que considere variáveis, ou seja, a aquisição, ocupação e
uso do solo.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Paulo Guilherme de. Aspectos jurídicos da reforma agrária no Brasil. São Paulo: LTR, 1990.
ANDRADA, José Bonifácio Borges de. A desapropriação para fins
de Reforma Agrária e a Constituição. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 193, p. 85-86, 1993.
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo: C. Bastos, 1997.
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 6. ed.
São Paulo: Saraiva, 1991.
FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto
Alegre: S. Fabris, 1988.
OLIVEIRA, Juarez de [Org.]. Estatuto da terra. 6. ed. São Paulo :
Saraiva, 1990.
111
ANDRADA, José Bonifácio Borges de. A desapropriação para fins de Reforma Agrária e a Constituição.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 193, p. 85-86, 1993.
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75
SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e
móveis. 4. ed. São Paulo: 1997.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1996.
SANTOS, Ulderico Pires dos. Usucapião constitucional, especial e comum : doutrina, jurisprudência e prática. São Paulo: Paumape, 1991.
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76
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77
VÍNCULO DE EMPREGO ENTRE POLICIAL MILITAR
ESTADUAL (COMO EMPREGADO) E EMPREGADOR
NO ÂMBITO PRIVADO
SILVANA SOUZA NETTO MANDALOZZO
DOUTORA EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS PELA UFPR.
PROFESSORA ADJUNTA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA
GROSSA. JUÍZA DO TRABALHO EM PONTA GROSSA.
RESUMO
O artigo aborda a questão da possibilidade ou não de reconhecimento de
vínculo empregatício em face de policiais militares (funcionários públicos)
que exercem outra atividade no âmbito privado. O trabalho é realizado em
perspectiva interdisciplinar, abordando aspectos de Direito do Trabalho, Direito
Constitucional, Direito Administrativo e Direito Processual Civil. A autora ressalta
a existência de divergências doutrinárias, mas, baseada em interpretação do
texto constitucional e de outras leis, defende a idéia de que, muito embora o
policial militar não possa acumular qualquer outra função pública, é possível
que tenha outro emprego particular, estando na ativa.
ABSTRACT
The article points to the issue of a possibility or not to recognize the
employment relationship when police officers (public employees) that have
other activity in private companies. The work is done in a interdisciplinary
way, reaching aspects of the Labor Law, Constitutional Law, Administrative
Law, and Civil Procedural Law. The author points to the existence of
doctrinaires divergences, but, based in the interpretation of the Constitutional
text and of other acts , she defends the idea that, although a police officer
cannot accumulate other public function , its possible to the police officer
have other job, even being in public activity.
PALAVRA CHAVE - Direito do Trabalho; policial militar; vínculo
empregatício e função pública.
INTRODUÇÃO
A opção se deu em relação a um tema que, invariavelmente,
comporta interpretações divergentes. Esta diversidade de entendimentos mostra-se salutar, principalmente no âmbito acadêmico, onde as
opiniões fundamentadas incentivam o contínuo estudo.
A nível prático a opção também se justifica, pois, no âmbito do
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
78
judiciário trabalhista, muitas vezes a questão se apresenta, e via de
regra, os “supostos empregadores” alegam a negativa de vínculo de
emprego.
A questão abordada neste pequeno artigo, é a possibilidade ou
não de reconhecimento de vínculo empregatício em face de policiais
militares – na qualidade de empregados, quando exercem outra atividade no âmbito privado.
A apreciação se fará em relação à legislação federal, com rápida incursão sobre a situação dos policiais militares no Estado do Paraná.
Atualmente, a análise de um tema não se pode fazer somente
em relação a uma disciplina, como por exemplo, sob o ângulo do direito
do trabalho, pois assim, a conclusão se mostraria indene de dúvidas. A
disciplina, direito do trabalho, está atrelada a um sistema, e será necessário, ainda que de forma rápida, uma incursão sobre o direito processual civil, direito administrativo, e direito constitucional.
Não se pretende esgotar o assunto, mas apresentar os marcos
fundamentais do mesmo, demonstrando os caminhos para um e outro
entendimento.
DIVERSIDADE DE OPINIÕES
Reina nos entendimentos judiciais uma discrepância de entendimentos em relação à questão proposta.
Uma das correntes, afirma que é possível o reconhecimento
de vínculo empregatício em face de policiais militares; e a outra opta
pela negativa. Ambas possuem sólidos fundamentos, que devem ser
apreciados.
Para se ter uma idéia da diversidade de opiniões, na Revista
LTr, de Janeiro de 1999, foram publicadas 2 (duas) ementas, em sentidos opostos, as quais são transcritas:
“A relação do Policial Militar com a instituição é exclusiva
porque a sua vinculação com a esfera privada induz à mercancia da
Segurança Pública, em total afronta aos princípios da legalidade e
da moralidade pública, pelo que não pode ser referendada pelo Judiciário qualquer pretensa relação empregatícia.” (TRT 2ª Região
RO 02970000894 – Ac. 02970664032, 18.11.97- Rel.: Juiz FrancisRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
79
co Antonio de Oliveira) 112
Tal decisão não foi unânime, mas por maioria de votos, restando vencidos 2 (dois) Juízes. Além dos princípios mencionados, a
decisão se baseou nas disposições contidas no artigo 3º, “a”; e artigo 22, ambos do Decreto-Lei 667/69. Foi citada uma ementa do E.
TST (Tribunal Superior do Trabalho), onde foi Relator o Exmo. Ministro Almir Pazzianoto Pinto, no mesmo sentido - Recurso de Revista
155.946/95.1, no Acórdão 3.518/95 da 4ª Turma. Neste sentido, outras decisões foram observadas, como as contidas no repertório de
jurisprudência da IOB, nº 18/96, p. 303; e no boletim informativo da
Juruá, nº 208/99, p. 23.
A outra ementa, em sentido contrário a anterior, assim ficou
redigida:
“Não há de se falar em impossibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício pelo fato de o trabalhador que prestou serviços
ser Policial Militar, pois o que deve ser observado é o contrato-realidade, e este demonstra, inequivocadamente, que se tratava de verdadeira relação de emprego. Recurso desprovido, neste aspecto,
por maioria.” (TRT 24ª Região RO 1.720/97 – Ac. TP 926/98, 29.04.98
– Rel.: Juiz Desig. Geralda Pedroso)113
Esta decisão, também, não foi adotada por unanimidade, mas
por maioria, como a anterior, estando baseada no contrato-realidade,
e na subordinação que existiu por parte do reclamante em face da
reclamada. Também houve citação de uma ementa, do E. TST, em
sentido contrário a já declinada, onde foi Relator o Exmo. Ministro
Ronaldo Leal - Recurso de Revista 156.012/95.9, no Ac. SBDI1 n. 2.526/
97. Outras decisões neste sentido, como as contidas no repertório de
jurisprudência da IOB, nº 16/96, p. 271; nº 9/96, p. 130; e no boletim
informativo da Juruá nº 196/98, p. 516.
Vislumbra-se que, a matéria está longe da possibilidade de
suscitar interpretação unânime, ou até mesmo dominante, eis que, a divergência reina, não só nos Tribunais Regionais, mas reinava também
perante a mais alta Corte do Judiciário trabalhista.
112
113
Revista LTr. 63 - 02/63. p. 63-64.
Revista LTr. 63 – 02/63. P.65.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
80
POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO
Faz-se necessária a abordagem, ainda que sucinta da seara
processual que envolve o assunto.
- Quando ajuizada uma ação onde o policial militar postula o
reconhecimento de vínculo empregatício na esfera privada, poder-se-ia
acatar a tese de impossibilidade jurídica do pedido, eventualmente argüida pelo Estado?
Como a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) é omissa
neste aspecto processual, deve-se buscar a solução no CPC (Código
de Processo Civil), até mesmo como impõe o artigo 769 do primeiro
diploma legal citado.
A possibilidade jurídica do pedido constitui uma das condições
da ação, como se denota pelo artigo 267, VI, do CPC; e a ausência da
mesma leva à extinção do processo sem julgamento do mérito, interpretação que se extrai também do artigo 301, X, do mesmo código.
A análise significativa da “possibilidade jurídica do pedido”, deve
ser efetuada em relação à noção atual que a matéria comporta.
Predominava na doutrina o exame de que, o pedido deveria
ser adequado ao direito material invocado. Logo: “...Juridicamente impossível seria, assim, o pedido que não encontrasse amparo no direito
material positivo”. Tal posicionamento não mais prevalece nos dias atuais, eis que, se assim fosse, ter-se-ia que adentrar no mérito da demanda. O correto é o atrelamento desta análise ao aspecto processual, ou seja, somente em relação ao pedido imediato, sendo este “...a
permissão, ou não, do direito positivo a que se instaure a relação processual em torno da pretensão do autor.”. Conclui Humberto Theodoro
Júnior: “...o que o juiz vai decidir é que o pedido de tutela jurisdicional
é insuscetível de apreciação pelo Poder Judiciário, sem cogitar da sua
procedência ou improcedência diante das regras substanciais da ordem jurídica”.114
Ovídio A. Baptista da Silva, cita exemplos onde existe a impossibilidade jurídica do pedido, ao abordar o tema “O conceito de condições da ação na teoria eclética”. Tal doutrinador menciona dentre ou114
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. p. 53-55.
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81
tros, o fato de um autor, que tenha sofrido lesão a seu direito líquido e
certo, tenha proposto ação de mandado de segurança contra um particular – e o direito positivo brasileiro só admite esta espécie de ação
contra atos de autoridade.115
Manoel Antonio Teixeira Filho, explica que, melhor seria a denominação pedido juridicamente “inatendível” ou “inapreciável”. Com
clareza peculiar, demonstra o alcance da expressa em enfoque:
“...Ora, para nós, o pedido somente poderá ser considerado juridicamente impossível quando houver, no tocante a ele, um veto, uma
proibição no ordenamento jurídico, quanto à sua formulação em juízo.
Se, por exemplo, alguém pleitear uma indenização não prevista em
lei, esse pedido deverá ser rejeitado por falta de previsão legal; caso,
todavia, se formule um pedido fundado em dívida de jogo, aí sim se
estará diante de um pedido juridicamente impossível, porquanto existe, na lei, um veto quando a essa formulação (CC, art. 1.147)”.116
Salvo melhor entendimento, que evidentemente comporta discussões, quando um policial militar ajuiza uma ação pugnando pelo
reconhecimento do vínculo de emprego, em face de um particular, não
existe impossibilidade jurídica do pedido, eis que, o direito positivo brasileiro assim não apresenta tal proibição.
Poderá existir sim, o não reconhecimento do vínculo de emprego, aspecto que atine ao pedido mediato, qual seja, o pleito de
direito material, e que levará à análise do mérito da demanda.
LEGISLAÇÃO FEDERAL APLICADA À ESPÉCIE
À União compete legislar sobre as “normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização
das polícias militares e corpos de bombeiros militares”, segundo preceito contido no artigo 22, XXI, da Constituição da República.
Saliente-se que, a Seção III, do Capítulo VIII, da Carta Maior,
que atine à “Administração Pública”, é reservada aos “Militares dos
Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”, com regras expostas no
artigo 42. A matéria foi regulada com nova redação conferida pela Emen115
116
SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de processo civil. p. 104.
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Jurisdição, ação e processo. p. 48.
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82
das Constitucionais 18, de 05.02.98; e 20, de 15.12.98. A princípio, a
norma maior não impõe a exclusividade como requisito para o exercício
da função de policial militar estadual. Mas, o artigo 42, § 1º, alude à
expressão “além do que vier a ser fixado em lei”. Este último dispositivo
legal citado, explicita que, aos policiais militares se aplicam as disposições do artigo 142, §§ 2º e 3º. Transcrevem-se os itens que embasam a
interpretação ora enfocada, do último dispositivo legal citado:
“§ 3º Os Membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as
seguintes disposições:
...
II – o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego
público civil permanente será transferido para a reserva, nos termos
da lei;
III - o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse em
cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ficará agregado ao respectivo quadro, e só poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antigüidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas
para aquela promoção ou transferência para a reserva, sendo depois de 2 (dois) anos de afastamento, contínuos ou não, transferido
para a reserva, nos termos da lei;
...”
Interpretando-se a lei maior, observa-se que, caso o policial
militar – evidentemente, após prestar concurso na forma do artigo 37,
II, do mesmo diploma legal; tome posse em cargo ou emprego público
civil, será transferido para a reserva.
Esta norma deve ser interpretada restritivamente, ou seja, que
não existe possibilidade – relacionada à matéria, de um policial militar
vincular-se a outra função pública, considerando-se esta, de qualquer
fonte pagadora – União, Estados, Distrito Federal e Municípios, quer
laborando para estas pessoas jurídicas, ou ainda para Autarquias e Fundações atreladas às mesmas, sem fins lucrativos, que fazem parte da
Administração Indireta.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
83
A princípio, a Constituição da República não veda o reconhecimento do vínculo empregatício no âmbito privado. No âmbito público a
situação não apresenta dúvidas, mesmo que se trate de emprego público, porque, principalmente com o princípio de moralidade, a intenção é
vedar o acúmulo de remunerações. Isto, viria inclusive de encontro com
a tendência política de combate ao “desemprego”, melhor traduzida,
possibilitando a ocupação remunerada do maior número de pessoas,
haja vista o crescimento da ausência de trabalho dentre a população.
A nível de legislação infraconstitucional, 2 (duas) abordagens
podem ser efetuadas, uma pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), e outra através do Decreto-Lei 667/69.
Pela CLT, segundo o artigo 3º, considera-se empregado aquele que preenche os requisitos ali estabelecidos, quais sejam, serviços
não eventuais, percepção de salário, e subordinação hierárquico-jurídica em relação ao empregador. Analisando-se esta norma, fria e secamente, o vínculo de emprego para os policiais militares poderia ser
reconhecido. Mas, além desta norma, existe a outra mencionada.
No Decreto-Lei 667/69, no artigo 3º, “a”, assim está disposto:
“Instituída para a manutenção da ordem pública e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, compete às
Polícias Militares no âmbito de suas respectivas jurisdições:
a) executar com exclusividade, ressalvadas as missões peculiares
das forças armadas e os casos estabelecidos em legislação específica, o policiamento ostensivo, fardado, planejado pelas autoridades
policiais competentes, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a
manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos;”
Tal preceito nada diz respeito a existência de vínculo de emprego dos policiais militares. No entanto, está disposto no artigo 22 do
Decreto-Lei:
“Ao pessoal das Polícias Militares, em serviço ativo, é vedado fazer
parte de firmas comerciais, de empresas industriais de qualquer
natureza ou nelas exercer função ou emprego remunerados”.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
84
Duas interpretações são efetuadas, levando em consideração
o último dispositivo legal.
Na primeira, poder-se-ia, até, questionar se tal norma foi ou não
recepcionada pela Constituição da República, já que a única vedação
existente na lei maior é quanto ao exercício simultâneo de cargo ou emprego público. Partindo-se desta premissa, não aprofundada, não existiria vedação ao reconhecimento de vínculo empregatício. A partir da última Constituição, os impedimentos via de regra, foram inseridos na
mesma, ante a forma detalhada e específica a cada caso, tornando-se
inclusive volumosa. Se existisse proibição de acúmulo com a remuneração na iniciativa privada, ali estaria consignado.
Na segunda, sob outro enfoque, como se trata de norma que
impõe limitações ao exercício de uma atividade, a interpretação deve
ser restritiva, e não ampliativa. Isto inclusive está em conformidade
com o artigo 1º, IV, da Constituição da República, sendo que o Brasil
possui como um dos fundamentos “os valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa”. Desta forma, a interpretação é que os policiais militares
não poderiam compor sociedades, de qualquer natureza, ou ainda
exercer emprego nas mesmas. Porém, a legislação não consegue
acompanhar os fatos. Cite-se como exemplo, o policial militar que possui, na realidade, uma empresa, mas que no contrato social não figure
como sócio, colocando outra pessoa como tal, somente utilizando o
nome da mesma. Mesmo interpretando-se literalmente a norma legal,
existiriam situações onde os policiais seriam considerados empregados, sem impedimento algum, como é o caso do labor como segurança em residências particulares, em condomínios, em entidades filantrópicas, em clubes sociais, já que estes são considerados empregadores, e não detém a qualificação de “firma comercial” ou “empresa
industrial”.
O primeiro entendimento é mais coerente com os dias atuais.
POSSIBILIDADE DA LEGISLAÇÃO ESTADUAL ABORDAR O
ASSUNTO
Os Estados, possuem competência para legislar sobre determinados assuntos, mormente porque são responsáveis pela manutenRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
85
ção da ordem interna. Podem assim estabelecer, a nível administrativo
imposições a serem cumpridas pelos policiais militares, mas sempre
em observância aos preceitos estabelecidos em legislação federal, e
jamais contra a mesma.
Vale a mesma orientação já esposada, ou seja, normas restritivas devem ser interpretadas de acordo com a Constituição da República.
A título de exemplo, a Lei Estadual do Paraná nº 1.943, de
23.06.54, relativa ao “Código da Polícia Militar”, assim dispõe:
“Art. 107. Ao militar no exercício da profissão é vedado fazer parte
ativa de firma comercial, de empresa industrial de qualquer natureza, nelas exercer função ou emprego remunerado.
§ 1º. O militar da reserva, quando convocado, fica inibido de tratar
nos corpos, repartições públicas civis e militares, e em qualquer estabelecimento militar, de interesse da indústria ou comércio a que
estiver associado.
§ 2º. Ao militar portador de diploma para o exercício de profissão
liberal é permitido desenvolver a prática profissional no meio civil
desde que haja correlação com suas atividades na Corporação e
não prejudique o serviço”.
O caput, é a cópia literal do artigo 22 do Decreto-Lei 667/69, e
existe inclusive uma nota de rodapé fazendo remissão ao mesmo.
Entende-se que, esta norma foi revogada com o advento da Constituição da República de 1988, pelos motivos já expostos. A norma estadual não teria o condão de modificar princípios constitucionais, e impor
restrições não mencionadas na Carta Maior.
Quanto aos parágrafos, o primeiro trata de situação excepcional, ou seja, militar de reserva, convocado, o que foge aos limites deste trabalho.
O segundo aborda a situação dos profissionais liberais, sendo
exemplos clássicos, advogados, médicos, cirurgiões-dentistas, engenheiros, dentre outros. Esta distinção remonta ao direito romano, que
fazia a distinção entre “liberais” e “iliberais”. Os serviços dos primeiros
não poderia ser objeto de locação, e também não existia salário, receRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
86
bendo honoraria ou numera. Esta noção foi demonstrada por Délio
Maranhão, que ensina:
“Mas os tempos mudaram. Os chamados profissionais liberais são,
hoje, verdadeiros empregados, quando prestam serviços, subordinados, juridicamente, a outra pessoa. Em sintonia com o art. 7º,
inciso XXXII, da nova Constituição, dispõe o parágrafo único do art.
3º da Consolidação que não haverá distinções relativas à espécie
de emprego e à condição do trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico ou manual. Negá-lo em nome de um conceito histórico da profissão liberal, ou invocando uma confiança que não é estranha, mas, ao contrário, própria do contrato de trabalho, é viver
fora da realidade, é desconhecer o fenômeno da proletarização do
profissional liberal, de que nos fala Mario de La Cueva, e que é uma
contingência dos dias que correm.”117
Duas situações podem existir como o profissional liberal. Podem ser empregadores, se contratarem empregados, como secretárias,
por exemplo, nos termos do artigo 2º, § 1º, da CLT. Podem também
laborar como empregados, mas com a mesma restrição constitucional
já aludida, desde que não desempenhem suas atividades no âmbito
público. A outra restrição imposta na lei estadual, de existência de correlação com suas atividades, não pode subsistir, uma vez que esta limitação não existe na Carta Maior. Aliás, esta vedação nem seria justa, eis
que, via de regra, o Estado não contribui de forma alguma para que o
policial adquira o diploma, estudando às expensas próprias.
ANÁLISE DOUTRINÁRIA E ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL
Georgenor de Sousa Franco Filho abordou a questão, de forma muito mais ampla do que a ora adotada, sob o título “Relação de
emprego com policial civil ou militar”. Elencou fator social pelo qual os
policiais procuram emprego, qual seja, levados pelo baixo soldo,
complementando a renda familiar. Com clareza e objetividade peculiar,
assim conclui o ser trabalho:
117
SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas. Instituições de direito do trabalho. p.
301-302.
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87
“Feitas essas considerações, é possível formar as conclusões a
respeito do assunto. Primus, é admissível a existência de vínculo
de emprego entre policial civil ou policial militar com empregador
privado, desde que presentes os pressupostos legais dos arts. 2º e
3º da CLT, em horário que atenda às conveniências das partes. Secundo, inexiste, à falta de vedação legal, acumulação de cargo,
emprego ou função pública com emprego na órbita privada. Tertius,
se a legislação estadual considera defeso ao policial militar ou civil o
exercício de atividade privada, sua ocorrência importa em ilícito administrativo, devendo ser apurado no âmbito da administração pública, sujeitando o infrator a sanções disciplinares, mas sem provocar
a nulidade do seu contrato de trabalho, contrato-realidade, regido
por legislação federal.”118
O entendimento mencionado está coerente com o pensamento ora adotado, para qualquer atividade de emprego exercida pelo policial no âmbito privado.
Mas, por argumentação, mesmo que se considerasse, pela
literalidade da norma, que ainda se aplica o disposto no artigo 22 do
Decreto-Lei 667/69, ou seja, quando um policial presta serviços em
uma empresa comercial, reputa-se que o reconhecimento do vínculo
de emprego é plenamente viável de ser reconhecido.
A primeira razão seria porque, em não sendo reconhecido o
vínculo, já que existiria a impossibilidade a tanto, declarar-se-ia a nulidade da relação que teria existido entre empregado e empregador. Sabese que, os atos nulos, a rigor, nenhum efeito produzem. Mas, no direito
do trabalho seria impossível que assim fosse considerado, como expõe
Orlando Gomes e Elson Gottschalk, na forma a seguir transcrita:
“A questão da ineficácia do contrato de trabalho seria resolvida em
termos tão simples se fora possível aplicar ao mesmo, com todo
rigor, a teoria civilista das nulidades. Mas a natureza especial da
relação de emprego não se compadece com a retroatividade dos
efeitos da decretação da nulidade. O princípio, segundo o qual o que
é nulo nenhum efeito produz, não pode ser aplicado ao contrato de
trabalho. É impossível aceitá-lo em face da natureza da prestação
118
FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Globalização & Desemprego. p. 20-23.
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88
devida pelo empregado. Consistindo em força-trabalho, que implica
em dispêndio de energia física e intelectual, é, por isso mesmo,
insuscetível de restituição Se a nulidade absoluta tem efeito retroativo, se repõe os contratantes no estado em que se encontravam ao
estipular o contrato nulo, como se não fora celebrado, nenhuma parte tem o direito de exigir da outra o cumprimento da obrigação. Donde se seguem que o empregado não tem o direito de cobrar o salário ajustado. Esta seria a conseqüência inelutável do princípio da
retroatividade da nulidade de pleno direito.”119
O vínculo de emprego deveria ser reconhecido, já que o trabalho foi despendido, não podendo retornar ao titular. Caso contrário,
existiria um enriquecimento ilícito de uma das partes, ou seja, do empregador. Adotar-se a teoria da nulidade, estaria incentivando os empregadores a contratarem os policiais, já que, nunca teriam que pagar
os direitos previstos na CLT e na legislação esparsa.
Uma alternativa seria a não consideração do vínculo de emprego, ante a nulidade mencionada, tendo o prestador de serviços direito a uma indenização. Sendo assim, o equivalente ao salário, que
serve para remunerar a atividade bastaria. Ocorre que, existia um problema a ser solucionado. Tal pedido, como não decorre de relação entre
empregado e empregador, não estaria inserido na competência da Justiça do Trabalho, como preceitua o artigo 114 da Constituição da República. Deveria ser ajuizada ação perante a Justiça Comum, postulando
tal indenização, o que acarretaria maiores ônus ao prestador de serviços, já que o processo civil não é regido pelo princípio da gratuidade,
peculiar este ao processo do trabalho.
Não reconhecer o vínculo de emprego, estaria contrariando um
dos princípios mais importantes, senão o mais essencial da disciplina
de direito do trabalho, qual seja, o princípio protetor. O significado deste,
é “...proteger uma das partes com o objetivo de, mediante essa proteção, alcançar-se uma igualdade substancial e verdadeira entre as partes”.120 O objeto deste princípio também é abordado por Alfredo J.
Ruprecht, nos seguintes termos: “...criar uma norma mais favorável ao
119
120
GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho. p. 124.
RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho. p. 28.
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trabalhador, procurando assim compensar as desigualdades econômicas e sua fraqueza diante do empregador”.121
Por este princípio, não seria viável, o não reconhecimento do
vínculo empregatício entre empregado e empregador. Caso contrário,
estar-se-ia deixando de lado uma das fontes que inspiram o direito
positivo brasileiro, como previsto no caput do artigo 8º da CLT, protegendo o empregador, que inclusive poderia estar agindo de má-fé.
Não se pode olvidar, ainda que, o contrato de trabalho, no direito positivo brasileiro, se trata de contrato-realidade, importando os fatos
que efetivamente ocorreram, segundo noção extraída do artigo 442 da
CLT. Sobre o assunto, Mozart Victor Russomano assim se manifesta:
“De qualquer modo, apesar de tudo, a lei trabalhista brasileira, dispondo como dispõe, está voltada para a realidade prática e procura evitar
que os excessivos formalismos exigidos para a contratação do empregado possam resultar em reiteradas nulidades.”122
Observando-se a realidade, o vínculo em discussão torna-se
flagrante, até mesmo que uma das partes insista na não existência do
mesmo.
Feitas tais considerações, é importante ressaltar que, sob o
ângulo do magistrado, deve ser observado, evidentemente, se seria
viável o exercício simultâneo das 2 (duas) atividades, a de policial militar – âmbito público, e a outra – âmbito privado, mormente levando
em consideração a compatibilidade de horários, e o desempenho a
contento de ambas, ou seja, sem prejuízo de nenhuma delas. A título
de exemplo, nas 2 (duas) atividades, o prestador dos serviços deveria
estar atento, acordado e diligente. Se em uma delas não estiver cumprindo com estas obrigações, ou outras contratuais, implicará nas punições administrativas e trabalhistas, conforme o caso.
Em sendo reconhecido o vínculo de emprego, transitada em
julgado a decisão, interessante se faz a comunicação de tal fato ao Comandante da Corporação ao qual o policial militar está vinculado. A
mesma servirá para efeitos administrativos, e eventualmente, a apura121
122
RUPRECHT, Alfredo. Os princípios do direito do trabalho. p. 9.
RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de direito do trabalho. p. 99.
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90
ção de algum ilícito neste nível, embora a princípio, esta última situação
não se verificaria.
Lembra-se que o reconhecimento do tempo de serviço como
empregado, nenhum benefício trará ao policial, uma vez que o mesmo, no âmbito público já estará contando tempo para a Previdência
Social. O interesse portanto, se fará mais em relação ao aspecto
pecuniário.
Vários argumentos poderiam ser levados em consideração,
no sentido contrário.
Um deles, e relevante é que, uma das funções do pessoal que
se discute é a “polícia ostensiva”, e para tanto, se exige um profissional atento, exclusivo, e capaz de gerar segurança. Outro, como exposto em uma das ementas citadas, é que, o exercício de outra função
levaria à mercancia da Segurança Pública, violando os princípios da
legalidade e moralidade.
Interessante artigo foi publicado pelo professor Ulysses Renato Pereira Rodrigues, abordando a situação do “policial militar da ativa
e prestação de serviços de segurança”, concluindo que, como agente
do Estado, este profissional tem o dever de prestar serviços relativos à
segurança do particular, sendo “verdadeiro braço armado da polícia do
Estado”, e o recebimento de valores pela atividade particular importaria em bis in idem.123 Não se concorda com tal posição, eis que, o
policial recebe o soldo especialmente pelo horário que está à disposição da Corporação, e caso detenha outra atividade particular, também
merece remuneração. Não se pode esquecer que, existe ainda a relação com o verdadeiro “empregador”, que estaria sendo beneficiado caso
o entendimento fosse contrário.
Mas, nenhuma das posições mencionadas se sobrepõem aos
argumentos já expendidos, analisados sob o ângulo do direito do trabalho, em confronto com as normas estabelecidas na Constituição da
República.
Nesta esteira de enfoque, o E. TST, através da SDI (Seção de
Dissídios Individuais), apresentou a orientação jurisprudencial nº 167,
123
RODRIGUES, Ulysses Renato Pereira. Repertório IOB de Jurisprudência nº 23/95. p. 322-323.
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inserido em 26.03.99, com o seguinte teor: “Preenchidos os requisitos
do art. 3º da CLT, é legítimo o reconhecimento da relação de emprego
entre policial militar e empresa privada, independentemente do eventual
cabimento de penalidade disciplinar prevista no Estatuto do Policial Militar.” Embora não possua força vinculante, demonstra o lado para o qual
pende a mais alta Corte trabalhista de nosso país.
CONCLUSÕES
Ante o enfoque atribuído ao assunto, ressalta-se que, a matéria é altamente discutível. As conclusões apresentadas podem e devem gerar polêmica, porque a questão envolve o exercício de função
pública, e as atribuições dos policiais militares estaduais, quais sejam,
polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, como definido no
artigo 144, § 5º, da Constituição da República.
Pelo estudo efetuado, chegam-se as seguintes conclusões,
ressalvando que, o entendimento é pessoal, existindo opiniões divergentes, cuja discussão só engrandece os operadores do direito:
- a análise da possibilidade ou não do reconhecimento de vínculo empregatício com policiais militares estaduais, não se insere nas
condições da ação, o que geraria a impossibilidade jurídica do pedido,
levando à extinção do feito sem julgamento do mérito; mas no mérito
do assunto, acarretando a procedência ou improcedência dos pleitos;
- os policiais militares estaduais não podem exercer cargo ou
emprego público, ante expressa vedação constitucional;
- uma interpretação é que, o artigo 22 do Decreto 667/69, está
derrogado pela Constituição da República, podendo existir o reconhecimento do vínculo de emprego dos policiais militares estaduais em
âmbito privado;
- mesmo que se entenda em vigor a norma citada anteriormente, nada impede que policiais militares trabalhem como empregados no âmbito privado, desde que não seja em firmas comerciais ou
empresas industriais;
- considerando-se correta a terceira premissa ora formulada,
nenhuma legislação estadual poderá dispor em contrário, eis que, estará impondo restrição não delineada na Carta Maior;
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92
- o profissional liberal, sendo policial militar, poderá ser empregado, nas mesmas condições mencionadas; bem como, poderá ser
empregador;
- para a configuração do vínculo de emprego, será necessária
a análise da compatibilidade em relação às funções exercidas, mormente em relação à disponibilidade de cumprimento de horário.
REFERÊNCIAS
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V. 1. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
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COMISSÕES DE CONCILIAÇÃO PRÉVIA: CULTURA E
AUTOCOMPOSIÇÃO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
VANDERLEI SCHNEIDER DE LIMA
PROFESSOR DE DIREITO DO TRABALHO NA FACULDADE MATER DEI.
MESTRE EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PELA UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE PONTA GROSSA
RESUMO
O artigo trata das inovações trazidas pela Lei nº. 9.958 de 2000, que
criou as Comissões de Conciliação Prévia. O autor desenvolve uma
reflexão crítica da nova legislação com o objetivo de diminuir as demandas na Justiça do Trabalho, mas por imprecisão técnica da lei,
acabaria por acarretar na supressão de vários direitos dos trabalhadores. O texto aborda outras impropriedades decorrentes da chamada “flexibilização do Direito do Trabalho”, enfatizando a afronta
ao artigo 5º, incisos XXXV e LV, da Constituição Federal. O trabalho
aborda, enfim, a questão da falta de normas jurídicas para disciplinar o processo de criação das comissões.
ABSTRACT
The article is about the innovations brought by act # 9.958 /2000, which has
created the Commissions for Previous Conciliation. The author makes a
critical thought of the new Laws with the goal to decrease the necessities in
Labor Courts, but because of technical imprecision of the Law, it would end
up to bring the suppression of several workers right. The text brings other
uncharacteristic come from the “flexibility of Labor Law”, emphasizing the
confront to the article 5th , paragraph XXXV and LV , of Federal Constitution.
The paper is about the lack of juridical rules to discipline the procedure of
creating commissions.
PALAVRAS CHAVE - Direito do Trabalho; Comissões de Conciliação
Prévia; flexibilização do Direito do Trabalho.
Tal como a Lei n.º 9.957124 de 2000, esta foi outra iniciativa do
124
De autoria do Poder Executivo, a Lei n.º 9.957 de 12 de janeiro de 2000 criou o procedimento
sumaríssimo na Justiça do Trabalho para as ações cujo valor não ultrapasse 40 salários mínimos no
momento da ajuização. A Lei 9.957 inovou apenas ao propor uma nova modalidade de rito processual
vinculando-o apenas ao valor da causa, o que não resolve o problema principal da Justiça do Trabalhista
que é o de acúmulo de ações, isto porque com este valor é a grande maioria dos processos. O mais
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Poder Executivo que se tornou lei, sob a justificativa de desafogamento da
Justiça do Trabalho.
A Lei nº. 9.958 de 2000, que criou as Comissões de Conciliação
Prévia explicita, sobremaneira, toda a problemática da flexibilização e da
desregulamentação do Direito do Trabalho nacional numa conjuntura desfavorável, pois se trata de forma de privatização da resolução das lides trabalhistas, que no seu bojo pode suprimir vários direitos dos trabalhadores.
Através da inserção dos artigos 625-A, 625-B, 625-C, 625-D, 625E, 625-F, 625-G e 625-H da Consolidação das Leis do Trabalho, possibilitou a criação de comissões paritárias de empregados e empregadores, a
funcionarem nas empresas ou nos sindicatos. Essas comissões analisarão os conflitos entre o empregado e seu patrão, na busca de conciliação, e
em caso de sucesso lavrar-se-á termo com eficácia liberatória geral, que
uma vez convalidado pelas partes não mais poderá ser reclamado na Justiça do Trabalho, salvo quanto às parcelas expressamente ressalvadas no
termo.
Essa possibilidade de autocomposição, tão ansiada pelos sindicalistas, acabou apenas compensando a extinção dos juízes classistas
da Justiça do Trabalho.
A imprecisão técnica e a impropriedade da Lei trouxeram muito
mais problemas para os conflitos trabalhistas - com longa margem para
ocorrência de inúmeras fraudes - do que solução para o sufocado
contencioso judiciário trabalhista.
Como bem expressa João Augusto da Palma (2000, p.122), “o
problema fundamental é que, além de estar maculada por imperfeições
técnicas e aberrações políticas graves, a Lei das Comissões de Conciliação Prévia também parece feita para outro país. Neste gigantesco
Brasil continental, com realidades regionais díspares e organizações
sindicais débeis, o novo modelo jurídico poderá ocasionar distorções e
problemas sociais graves”.
o.
grave na Lei n 9.957 de 2000 é que pode ocorrer condenação do reclamante que não cumprir os
requisitos mínimos para a formulação da reclamação trabalhista, principalmente quanto à liquidação dos
valores pedidos; nesse caso, além de ser arquivada a ação, o reclamante ainda pode ter de pagar
custas à Justiça. Saliente-se que, na exigência de cumprimento dos prazos para a resolução dos litígios
pelo Rito Sumaríssimo na Justiça do Trabalho, o legislador ignorou as dificuldades estruturais (falta de
juízes e servidores ou insuficiência técnica e material), que vêm prejudicando essa Justiça Especializada.
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A primeira impropriedade é a obrigatoriedade de o trabalhador
encaminhar a questão à Comissão de Conciliação, antes de acionar a
Justiça do Trabalho125 , o que confronta com o art. 5º, inciso XXXV, da
Constituição Federal de 1988, que dispõe que “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; e inciso LV,
“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios
e recursos a ela inerentes”;126
Todavia, Sérgio Pinto Martins entende que:
O procedimento adotado pelo artigo 625-D da CLT não é
inconstitucional, pois as condições da ação devem ser estabelecidas
em lei e não se está privando o empregado de ajuizar a ação, desde
que tente a conciliação. Ada Pellegrini Grinover menciona não ser
inconstitucional a proposta que estabelecesse a tentativa obrigatória
da conciliação prévia, que não iria contrariar o inciso XXXV, do artigo
5º da Constituição, pois “o direito da ação não é absoluto, sujeitandose a condições (as condições da ação), a serem estabelecidas pelo
legislador”. Não haverá o interesse de agir da pessoa, postulando a
tutela jurisdicional, se não for observado o caminho alternativo da conciliação prévia, que seria uma situação bastante razoável, não ficando mutilada a garantia constitucional do direito ao processo. Kazuo
Watanabe tem o mesmo pensamento. Se o empregado não tentar a
conciliação, o juiz irá extinguir o processo sem o julgamento do mérito, por não atender à condição da ação estabelecida na lei. A reivindicação só poderá ser feita diretamente à Justiça do Trabalho caso na
empresa não exista a Comissão, nem tenha sido instituída no âmbito
do sindicato da categoria, porque não haveria como se passar por
comissão conciliatória. (MARTINS, 2000, p.65-68)
Apontaríamos, como segunda inconveniência da Lei no. 9.958/
2000, a exigência da conciliação prévia em um contexto político desfavo125
De acordo com o art. 625-D da CLT, “Qualquer demanda de natureza trabalhista será submetida à
Comissão de Conciliação Prévia se, na localidade da prestação de serviços, houver sido instituída a
Comissão no âmbito da empresa ou do sindicato da categoria”.
§ 2º Não prosperando a conciliação, será fornecida ao empregado e ao empregador declaração da
tentativa conciliatória frustrada com a descrição de seu objeto, firmada pelos membros da Comissão,
que deverá ser juntada à eventual reclamação trabalhista”.
126
Redação de acordo com o artigo 5º, incisos XXXV e LV, da Constituição Federal de 1998.
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96
rável aos trabalhadores, ainda insuficientemente organizados.
Vejamos as considerações de Vicente José Malheiros da
Fonseca:
Creio, contudo, que não basta a simples previsão legal para instituição de meios extrajudiciais de solução de conflitos entre empregados e empregadores. Faz-se necessário o desenvolvimento de uma
cultura motivada para conduzir as partes aos mecanismos alternativos de pacificação das questões entre o trabalho e o capital, o que
não se consegue sem que os interessados, sobretudo os trabalhadores, tenham a confiança na atuação desses órgãos, tal como hoje
confiam na Justiça do Trabalho. (FONSECA, 2002)
Outra impropriedade é a falta de normas jurídicas para disciplinar o processo de criação das comissões na empresa e a eleição
dos representantes dos trabalhadores.
As Comissões de Conciliação Prévia podem tornar-se, no interior das empresas, ou em grupos de empresas, instrumentos concorrentes dos sindicatos, de forma a esvaziar a atuação sindical. Não
será difícil encontrar sindicalistas se queixando da dificuldade de acesso
aos trabalhadores de uma dada empresa, por lá funcionar uma estrutura paralela, formada a partir das comissões.
Poder-se-ia imaginar que, em algumas empresas, a Comissão de Conciliação Prévia não passaria de mera extensão do Departamento de Recursos Humanos.
Por último, e mais grave, apontamos a inversão da lógica da
quitação dos direitos trabalhistas, ao consagrar a eficácia liberatória
geral independentemente de demanda e transação expressa.
Observando-se o disposto no parágrafo único do artigo 625-E
- “O termo de conciliação é título executivo extrajudicial e terá eficácia
liberatória geral, exceto quanto às parcelas expressamente ressalvadas” - percebe-se uma inversão da lógica estipulada no enunciado 330
do TST127 , do qual se deduziria que a liberação diz respeito somente ao
127
“A quitação passada pelo empregado, com assistência de entidade sindical de sua categoria, ao
empregador, com observância dos requisitos exigidos nos parágrafos do artigo 477, da CLT, tem eficácia
liberatória em relação às parcelas expressamente consignadas no recibo, salvo se oposta ressalva
expressa e especificada ao valor dado à parcela ou parcelas impugnadas”.
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que foi pago e não ao contrato de trabalho, salvo se assim for descrito
no termo. Prevê, ainda, o Código Civil que a quitação designará o valor
e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este
pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor ou
do seu representante. Portanto, não há que se falar em eficácia liberatória
daquilo que não foi pago, ao contrário do que se deduz do dispositivo
legal supracitado.
Em análise ampla do assunto, pronunciou-se com muita propriedade Reginaldo Melhado:
Na realidade, seria tolerável e até desejável – com organizações
sindicais decentes, legítimas e representativas, ou comissões de
empresa legitimamente instituídas – que a prática da negociação
fosse revestida da maior autoridade. Nada obstante, nunca da forma como posta pelo legislador. A lei deveria estabelecer que a eficácia liberatória só ocorre em relação ao objeto da demanda submetida a comissão. Imagine-se, por exemplo, a hipótese de uma controvérsia banal sobre o acerto de contas na rescisão de um contrato de
emprego (muitas vezes marcada por certa intranqüilidade entre os
envolvidos). Para a composição acerca de valores ou critérios de
cálculo, haverá o trabalhador de ressalvar imediatamente no “termo” de conciliação todas as questões que pretende discutir em juízo.
E deverá fazê-lo de inopino, sem consultar advogado, sem meditar
sobre os anos passados do contrato ainda não alcançados pela prescrição qüinqüenal, sem trocar idéias com familiares. Se nada lhe
vier à memória, haverá quitação geral. A considerar constitucional a
referida Lei, por certo, doravante, muitos empregadores passarão a
exigir que a “homologação” das rescisões contratuais se realizem
perante as comissões. Tal como hoje em dia uns tantos já se valem
do artifício do aforamento de uma “demanda” judicial para o pagamento de verbas rescisórias, buscando exatamente a eficácia
liberatória genérica agora consagrada como regra, mais e mais empresários passarão a correr às comissões prévias de conciliação. O
resultado disso poderá ser o sacrifício dos direitos de milhões de
humildes trabalhadores. Por que não estabelecer que a conciliação
só implica eficácia liberatória – isto é, só exime o devedor de qualquer obrigação – quando pactuada expressamente? As razões são
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políticas, e seguramente inconfessáveis, ou são a manifestação da
ingenuidade coletiva de pelo menos uma parte dos membros do
Congresso Nacional. Até mesmo uma sentença judicial deve estar
limitada à chamada res in iudicio deducta (não vemos repisar aqui a
teoria da sentença, infra, ultra e extra petita, plasmada, grosso modo,
no art. 460 do CPC). Como posta na Lei 9.958/2000, o termo de
conciliação terá poder maior que aquele conferido à sentença, pois
produzirá a mesma conseqüência jurídica, sem qualquer formalidade, sem contraditório, sem ampla defesa e principalmente sem os
limites da demanda. (MELHADO, 2000, p. 331-409)
Ao examinar as inovações advindas da Lei no. 9.958, José
Salem Neto (2000, p. 50) assim emite o seu referendo: “concluímos
pela nossa experiência que foi mais uma lei imperfeita e infeliz do governo neoliberalista, que só provocará polêmica e debates no Poder
Judiciário para afinal decidir os temas controvertidos decorrentes do
conflito e atos das partes interessadas. O maior prejudicado será o
empregado hipossuficiente”.
Vale ressaltar que os efeitos do Procedimento Sumaríssimo e
das Comissões de Conciliação Prévia não puderam ser aprofundados
no parlamento devido ao regime de urgência. Aprovadas sem maiores
reflexões por parte da sociedade e especialmente pelos estudiosos e
principais usuários da Justiça Trabalhista, as leis deverão ser interpretadas no dia-a-dia jurisdicional, até que se solidifiquem como regras
jurisprudenciais. Até lá, muitas dúvidas de interpretação causarão prejuízo a trabalhadores e, em menor parte, a empregadores.
Muito grande é o número de denúncias de fraudes nas Comissões de Conciliação Prévia, que incluem, a saber: cobrança de valores
sobre as conciliações, com que os conciliadores chegam a ganhar até
50 mil reais por mês, conforme publicou a revista Consultor Jurídico,
de 03 de junho de 2002; quitação geral de direitos e não apenas de
parcelas objeto de transação, mediante pagamentos ínfimos, se comparados com o real crédito trabalhista; vedação do ingresso de advogados nos recintos das comissões; utilização de símbolos da República e do Poder Judiciário nas audiências e notificações expedidas; ausência de assistência sindical efetiva; falta de recolhimento de parcelas
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previdenciárias e fiscais incidentes sobre os valores pagos em virtude
da conciliação. Por isso o Ministério do Trabalho e Emprego expediu a
Portaria nº. 264, de 05 de junho de 2002, fixando normas para o acompanhamento e o levantamento de dados relacionados ao funcionamento
das Comissões de Conciliação Prévia, bem como para a fiscalização
do trabalho ligado ao FGTS e às contribuições sociais decorrentes da
conciliação.
Inclusive o Ministro do TST, Francisco Fausto, quando do lançamento da portaria mencionada, já admitia que “se mesmo assim, as
práticas irregulares persistirem e não houver sanções, sou favorável à
extinção das comissões e até mesmo à revogação da Lei que as criou.
Também podemos partir para uma nova legislação que acabe com as
Comissões de Conciliação Prévia e substituí-las por juízes do Trabalho especializados em conciliação prévia, remunerados pelo Estado,
ou seja, sem extorquir dinheiro dos trabalhadores” (TRIBUNAL, 2002).
Inegável que a negociação é o instrumento autônomo por excelência para solucionar conflitos oriundos da relação de trabalho, e
por muito tempo foi aclamada pela classe trabalhadora organizada em
sindicatos, já que nem sempre a jurisdição diz melhor o direito ou resolve melhor o conflito.
Às vezes, a jurisdição estatal não diz nem o melhor, nem o pior
direito. Simplesmente não o diz. Ou ainda, quando o diz, o faz tardiamente. E em alguns casos diz o direito, mas a efetiva e real entrega da
prestação jurisdicional, com a execução da sentença, é demorada, e
justiça tardia é injustiça (FONSECA, 2002, p. 2).
A solução extrajudicial dos conflitos individuais trabalhistas, por
intermédio de Comissões de Conciliação Prévia, portanto, seria, em
tese, uma alternativa válida para pacificar as questões entre empregados e empregadores, não só após a extinção da relação de emprego,
mas também durante o vínculo empregatício. Todavia não basta a simples previsão legal, ainda mais quando eivada de imprecisões, para a
instituição e legitimação de meios extrajudiciais de solução de conflitos trabalhistas.
Faz-se necessária a articulação de um complexo padrão de
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comportamento institucional e coletivo voltado para o uso eficaz e autêntico desses meios extrajudiciais de solução de conflitos entre empregados e empregadores. Tudo isso através da possibilidade de discussão
paritária dos interesses, sempre velando pela transparência, imparcialidade e segurança, para que as disparidades e contrastes dos órgãos
de classe das diferentes práticas sindicais do vasto território nacional
não comprometam os interesses mínimos assegurados à classe trabalhadora.
Portanto, na ausência dessa cultura de autocomposição entre
capital e trabalho, parece que essas Comissões estão fadadas a
inoperância, permanecendo apenas como um entrave burocrático ao
acionamento da jurisdição, cada vez mais afogada em processos. Desta
forma parece ficar evidente que a prática do direito não se constrói de
cima para baixo, mas sim da vivência social, de políticas públicas estruturais, da educação e do acúmulo de experiências entre os diversos
atores da sociedade.
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A RETROATIVIDADE BENIGNA DA LEI TRIBUTÁRIA E
O ATO NÃO DEFINITIVAMENTE JULGADO
CÉLIO ARMANDO JANCZESKI
ADVOGADO EM SANTA CATARINA, PROFESSOR DE DIREITO
TRIBUTÁRIO DA FACULDADE MATER DEI E PROFESSOR DA ESCOLA
SUPERIOR DA ADVOCACIA DA OAB/SC.
RESUMO
O artigo desenvolve a questão da retroatividade da lei tributária e do ato não
definitivamente julgado à luz do ordenamento constitucional e infraconstitucional. Primeiramente o autor faz uma reflexão a respeito do princípio
da irretroatividade da lei tributária como direito fundamental do contribuinte,
analisando de que maneira tal princípio não venha a impedir lei que conceda
uma vantagem ao contribuinte tenha incidência retroativa, seguindo
posteriormente para a discussão acerca dos casos de retroatividade da lei
mais benigna aos contribuintes e responsáveis, desde que não trate-se de
ato não definitivamente julgado.
ABSTRACT
The article develops the question of retroactivity of the tax law and the act not
definitively judged to the vision of Constitutional System and infra constitutional.
First the author makes a though about the principle of irretroactivity of the
Tax Law as a basic right of the taxpayer, analyzing in what way such principle
don’t disable the act that gives advantages to the taxpayer and have an
retroactivity incidence, following, after that, to the discussion about
retroactivity cases of a better act to the taxpayers, since it isn’t an act not
definitively judged(res judicata).
PALAVRAS CHAVE - Direito Tributário; retroatividade e irretroatividade
da lei tributária; defesa do contribuinte.
A IRRETROATIVIDADE DA LEI TRIBUTÁRIA
A regra geral, é que a lei tributária deve reger o futuro, sem se
estender a fatos ou circunstâncias ocorridas anteriormente ao início de
sua entrada em vigor. Só há legitimidade na norma se o contribuinte
conhece de antemão a sua obrigação tributária e todos os elementos
de mensuração. A certeza jurídica só é assegurada se os sujeitos sabem que todos os atos que praticarem durante a vigência de uma lei,
serão regulados por esta, que foi a levada em conta, quando do planejaRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
104
mento e da realização desses atos. Não faz sentido o sujeito levar a
efeito um empreendimento, planificando todos os custos e despesas do
mesmo, incluindo os reflexos tributários, se no futuro, lei poderá fazer
incidir sobre o mesmo, tributo não incidente quando de sua
implementação, tornando-o desvantajoso ao empreendedor. Ocorrido o
fato gerador, adquire o contribuinte o direito de se submeter ao regime
fiscal vigente quando da ocorrência deste.
A Constituição Federal, estabelece como norma geral, que a
lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada (inciso XXXVI, art. 5o.), estabelecendo que em matéria penal a
lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (inciso XL, art. 5o). O
Código Tributário Nacional, por seu turno, em seu art. 144, esclarece
que o lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da
obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente
modificada ou revogada. Ao tratar do Sistema Tributário Nacional, o
constituinte originário alçou o princípio da irretroatividade da lei tributária como direito fundamental do contribuinte (alínea a, do inciso III, do
art. 150), estando ao abrigo das chamadas cláusulas pétreas (inciso
IV, do parágrafo 4o., do art. 60) e como tal resguardado de qualquer tentativa de supressão (mesmo parcial) pelo poder constituinte derivado. O
princípio não impede lei que conceda uma vantagem ao contribuinte que
tenha incidência retroativa, já que como direito individual seu, só opera
como regra protetiva, isto é, quando a lei cria ou aumenta um tributo.128
128
Valdés COSTA apresenta bem elaborado panorama luso-hispano-americano a respeito da
irretroatividade: La Constitución de Bolivia dispone en general la irrretroactividad, excepto “en materia
social cuando la ley expresamente lo determine y en materia penal cuando beneficie al delincuente”.
Brasil, en su Constitución de 1988, establece como norma general, que la ley não perjudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; en materia penal, que “não retroagirá, salvo para
beneficiar o réu”(art. 5º, nums. XXXVI y XL); en materia tributaria, como limitación al poder de tributar,
prohíbe establecer tributos sobre hechos generadores ocurridos con anterioridad a la ley, o en el mismo
ejercicio financiero en que esta haya sido publicada, en este último caso, con excepciones taxativamente
enumeradas relativas a impuestos indirectos (art. 150). Colombia, en su Constitución de 1991, en materia
penal establece que “nadie podrá ser juzgado sino conforme a leyes preexistentes...” y que “la ley permisiva
a favorable, aun cuando fuere posterior, se aplicará de preferencia a la restrictiva o desfavorable”(art. 29).
En materia tributaria dispone que las leyes “no se aplicarán con retroactividad”(art. 363) con especificación
de la aplicación de este criterio a las normas “que graven hechos generadores periódicos (art. 338). Chile
admite expresamente la retroactividad de la ley que favorezca al afectado”(Constitución de 1980, art. 19).
Ecuador, en su Constitución de 1978, dispone que “no se dictarán leyes tributarias en perjuicio de los
contribuyentes”. La Constitución de España garantiza la irretroactividad de las disposiciones
“sancionadoras no favorables o restrictivas de derechos individuales”, debiendo anotarse la supresión
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
105
RETROATIVIDADE BENIGNA
O Código Tributário Nacional, em seu art. 106, II, estipula três
casos de retroatividade da lei mais benigna aos contribuintes e responsáveis, tratando-se de ato não definitivamente julgado. O que deve
ser compreendido como ato não definitivamente julgado, veremos adiante. Este tópico, portanto, se preocupa com as três hipóteses em que
a lei aplica-se a ato ou fato pretérito: a) quando deixaria de defini-lo
como infração; b) quando deixaria de tratá-lo como contrário a qualquer
exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e
não tenha implicado em falta de pagamento de tributo; c) quando lhe
cominaria penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao
tempo de sua prática.
As três hipóteses de retroatividade estampadas pela lei, acabam por beneficiar o contribuinte, sem empecilhos do ordenamento
constitucional, que só proíbe a retroação de lei que agrave sua situação. Manifestando-se sobre o assunto, é a doutrina abalizada de Héctor
Belisario Villegas, para quem la retroactividad es exigencia constitucional sólo en cuanto representa una tutela para los imputados. Si
después de cometido el hecho, el legislador modifica favorablemente
las consecuencias de la imputación, es objetivamente justo que no se
niegue el beneficio a quien esté en condiciones de ampararse en la
mayor benignidad. 129
de la referencia que el proyecto hacía a las disposiciones “fiscales”. México, en una disposición que ha
provocado discrepancias sobre su alcance, dispone que “a ninguna ley se dará efecto retroactivo en
perjuicio de persona alguna”(art. 14 de la Constitución). Paraguay, en su Constitución de 1992, en el
capítulo que regula la liberdad, dispone que “ninguna ley tendrá efecto retroactivo, salvo que sea más
favorable al encausado o al condenado”(art. 14), texto que se diferencia del anterior por suprimir la
mención de “leyes penales” en la segunda parte de la disposición. Perú, como ya se anotó, modificó el
régimen suprimiendo la referencia a la retroactividad de las leyes laborales y tributarias más favorables
a los trabajadores y contribuyentes, manteniéndola solo para la “materia penal cuando favorece al
reo”(art. 103). Igual solución rige em Portugal. Venezuela, en una solución similar a la de México, há
establecido en su Constitución, en forma general, que “ninguna disposición legislativa tendrá efecto
retroactivo”, com la única excepción de la que “imponga menor pena” (art. 44). Argentina y Uruguay no
tienen normas constitucionales expresas sobre retroactividad, pero en sus códigos civiles se consagra
el criterio de la irretroactividad como regla, que obviamente puede ser alterada por otras leyes, como há
sucedido con los códigos penales y el C.T.U. Curso de Derecho Tributario. Buenos Aires: Edicionés
Depalma, p. 244/245,1992.
129
a
VILLEGAS, Héctor Belisario. Curso de Finanzas, derecho financiero e tributário, 8 . ed., Buenos Aires:
Astrea, p. 243,2002.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
106
Como observa com razão Hugo de Brito Machado, não se há
de confundir aplicação “retroativa” nos termos do art. 106, II, com anistia,
regulada nos arts. 180 a 182 do Código. Embora em ambas as hipóteses ocorra a aplicação da lei nova que elida efeitos da incidência de lei
anterior, na anistia não se opera alteração ou revogação da lei antiga.
Não ocorre mudança na qualificação jurídica do ilícito. O que era infração continua como tal. Apenas fica extinta a punibilidade relativamente
a certos fatos. A anistia, portanto, não é questão pertinente ao direito
intertemporal.130
As hipóteses das alíneas a e b, do inciso II, do art. 106, do
CTN, autorizam a aplicação retroativa em casos de lei posterior deixar
de definir um ato como infração (alínea a) ou deixar de tratá-lo contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha
sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo (alínea b). Na hipótese da alínea a, não há condições exigidas
para a aplicação retroativa da lei, basta o desaparecimento da infração
no texto novo. Na hipótese da alínea b, por sua vez, há exigência de
que não tenha ocorrido fraude, nem omissão de pagamento de tributo.
Apesar da semelhança das duas situações, afinal quando a lei deixa
de definir um ato como infração, também está deixando de tratá-lo como
contrário a qualquer exigência de ação ou omissão. A hipótese da alínea a, só pode ter aplicação, quando não se caracterizar a hipótese da
alínea b, ou seja, a lei nova poderá ser utilizada pelo contribuinte sempre
que a mesma deixar de definir um ato como infração, mas desde que a
infração não resulte de fraude, nem omissão de pagamento de tributo
devido. Caracterizado fraude ou omissão de pagamento de tributo,
advindo da infração praticada, aplica-se a lei tributária vigente na data
da ocorrência do fato gerador, sem prejuízo de aplicação retroativa da
lei penal (inciso XL, art. 5o, CF). A alínea b, trata-se de norma específica
que excepciona a regra geral da alínea a.
A hipótese da alínea c, do citado dispositivo, a lei nova continua
prevendo penalidade para o ato levado a efeito pelo contribuinte, mas
comina a este ato uma pena menos severa. A penalidade mais severa
130
a
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 13 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 71.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
107
decorrente da lei vigente na data da ocorrência do fato gerador, é substituída por uma menos severa, advinda da lei nova.
No passado, a jurisprudência vinha distinguindo entre multa
moratória e multa punitiva, para autorizar a retroatividade benigna apenas para a última. Hodiernamente, no entanto, a distinção apresenta-se
superada na doutrina e na jurisprudência entende que uma vez assegurada correção monetária e juros moratórios, as sanções fiscais são sempre punitivas. É que, se já exigidos correção monetária e juros de mora,
qualquer acréscimo pecuniário implicará em penalidade, pouco importando a denominação utilizada. Se já não há dúvidas que a multa moratória constitui pena administrativa (Súmula 565, STF), como sanção fiscal punitiva, não há razoes jurídicas para se afastar a aplicação de lei
nova mais benéfica, nos termos do inciso II, do art. 106, do CTN.131
ATO NÃO DEFINITIVAMENTE JULGADO
Apesar de ainda perdurar em parte da jurisprudência pátria, o
entendimento de que, ato não definitivamente julgado, é aquele que não
foi solucionado de forma definitiva em razão de impugnação ou recurso
administrativo pendente de julgamento e que, não havendo feito judicial
pendente sobre a matéria, há ato administrativo perfeito e acabado, que
já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou, está
protegido contra a interferência da nova legislação pelo inciso XXXVI,
do art. 5o, da CF (ato jurídico perfeito), tal posicionamento é minoritário.
Mesmo aqueles que defendem este posicionamento, aceitam que a interpretação de ato não definitivamente julgado, compreende tanto o julgamento administrativo, como o judicial. Entendem, no entanto, que tendo sido solucionado o feito na esfera administrativa e não tendo o contribuinte aforado ação judicial com o objetivo de questionar o débito, restará impedido de se beneficiar de lei nova. É óbvio que não é esta a
interpretação que reclama o inciso II, do art. 106, já que não há qualquer
exigência de que o contribuinte, após resolvido o feito administrativamente, tenha que, em seguida, procurar o Poder Judiciário. É perfeitamente possível e inclusive é o caminho normalmente escolhido pelo con131
O Pretório Excelso em sessão plena já referendou a tese de inexistir base jurídica para a distinção,
como se verifica, p. ex. no julgamento do RE 79.625 in RTJ 80/104.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
108
tribuinte, o de esperar que o Fisco inscreva o título em dívida ativa e
promova a cobrança via executivo fiscal. Afinal, se a exegese que se
extrai do dispositivo legal é a de que prevalece, não só para a autoridade administrativa como para a judiciária, não há de se ter o ato como
definitivamente julgado. Ou como já se pronunciou o Pretório Excelso:
se ainda comporta o ato recurso ao judiciário não há como dizer-se estar ele definitivamente julgado. 132
Estando o crédito tributário impugnado judicialmente, via ação
anulatória de débito fiscal ou qualquer ação aonde o contribuinte demonstre seu inconformismo pela exigência, a retroatividade benigna
prevista pelo Código Tributário poderá ser implementada até a extinção
do feito. E na execução fiscal, quando é que o ato torna-se definitivamente julgado, impedindo a retroatividade benéfica da lei nova?
A matéria comporta duas correntes e ambas possuem defensores junto ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça. Uma das correntes, entende que o momento processual, limite para a retroação, é até
decorrer o prazo assinalado para os embargos, eis que após, prossegue a execução somente com a prática de atos materiais, não dando
mais lugar para incidentes próprios do processo de conhecimento.
Neste sentido o posicionamento da Segunda Turma, relatado
pelo Eminente Ministro Ari Pargendler, nos autos do Recurso Especial
n. 184.642/SP, verbis:
TRIBUTÁRIO. MULTA. REDUÇÃO. LEI MAIS BENIGNA. Constitui
ato não definitivamente julgado o lançamento fiscal impugnado por
meio de embargos do devedor em execução fiscal (CTN, art.106, II,
c), mas o lançamento fiscal que já não pode sofrer ataque por meio
de embargos de devedor, porque decorrido o prazo destes, é ato
definitivamente julgado, que não pode ser revisto por petição atravessada nos autos da execução fiscal. Recurso Especial conhecido e provido.133
A Primeira Turma, por sua vez, entende que o ato definitivamente julgado deve ser entendido como ato consumado por decisão
132
STF – RE 95.900-9, DJU 08.03.85, P. 2602.
Resp. 184.642/SP. Julgada pelo STJ, em data de 27 de outubro de 1998, Rel. Min. Ari Pargendler. DJU
07/12/1998, p. 78.
133
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
109
judicial, não necessariamente por sentença. Na execução fiscal, o processo só se finda com sua extinção na forma do art. 794, do CPC, ou
com a arrematação, adjudicação ou remição definitivamente realizados, mesmo que transitada em julgado eventual sentença prolatada em
embargos da executada.
A ementa do julgado, relatado pelo Eminente Ministro Demócrito
Reinaldo Recurso Especial n. 94.511/PR, porta a seguinte redação,
literis:
EXECUÇÃO FISCAL. REDUÇÃO DE MULTA EM FACE DO DECRETO – LEI N° 2.471/88. ART. 106, II, C, DO CTN. RETROATIVIDADE
DA LEI MAIS BENIGNA AO CONTRIBUINTE. POSSIBILIDADE.
O art. 106 do Código Tributário Nacional admite a retroatividade, em
favor do contribuinte, da lei mais benigna, nos casos não definitivamente julgados.
Sobrevindo, no curso da Execução Fiscal, o Decreto-Lei n° 2.471/
88, que reduziu a multa moratória de 100% para 20% e, sendo possível a aplicação da lei mais benigna, sem ofensa aos princípios
gerais do direito tributário.
Na execução fiscal, as decisões finais correspondem às fases da
arrematação, da adjudicação ou remição, ainda não oportunizadas, ou,
de outra feita, com a extinção do processo, nos termos do art. 794 do
Código de Processo Civil. Recurso improvido. Decisão unânime. 134
Restando incontroverso nas duas correntes que a retroação do
art. 106 pode atingir penalidades já em fase de cobrança executiva e
levando-se em conta que os embargos previstos no artigo 16, da Lei
6.830/80 têm a natureza de ação e como opção do devedor podem
não serem opostos, o que não impediria a retroação ser enfrentada na
própria peça executiva e levando-se em conta ainda que na execução
fiscal não há sentença. O limite temporal há que ser efetivamente as
decisões finais promovidas na execução, que corresponde às fases da
arrematação, da adjudicação ou da remição, ou com a extinção do
processo, na forma do art. 794, do CPC.
134
Recurso Especial n° 94.511-96/PR. Julgado pelo STJ em 21 de outubro de 1996. Rel. Min. Demócrito
Reinaldo, DJU 25/11/96, p. 46.154.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
110
É que, enquanto não extinto o crédito tributário o ato não pode
ser tido como definitivamente julgado, sendo irrelevante se já houve
ou não a apresentação de embargos ou se estes já foram julgados, já
que ainda pendente aquele.
Sobrevindo lei nova que beneficie o contribuinte pela caracterização de qualquer hipótese prevista em uma das alíneas do inciso II, do
citado artigo, o interessado, em qualquer grau de jurisdição, enquanto
não extinto o crédito, poderá apresentar petição demonstrando os fatos,
cuja matéria há de se sobrepor à análise do mérito do crédito (em caso
de anteceder o julgamento – sentença ou acórdão – em sede de embargos ou ação ordinária) ou, no caso da apreciação se implementar em
executivo fiscal, ser a manifestação conhecida como exceção de préexecutividade e anulado o débito fiscal excutido, já que há muito sepultado o posicionamento de inadmitir tal defesa em sede de execução
fiscal. Afinal, mesmo líquido e certo, o título tornou-se inexigível (art. 618,
I, CPC) por apresentar-se indevido em decorrência de expressa previsão legal que determina a retroatividade benigna. E mais: Sempre que
a lei nova não ressalve os efeitos da lei anterior, verificado uma das
hipóteses do art. 106, o juiz, de ofício, pode anular o débito fiscal (alínea
a e b, do inciso II) ou reduzir a penalidade (alínea c, do inciso II), sem
impingir máculas aos princípios gerais do direito tributário.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
111
O JUIZ CRIMINAL E O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO
CARLOS ALBERTO BAPTISTA
PROMOTOR DE JUSTIÇA NO PARANÁ, PROFESSOR DE DIREITO
PENAL, PROCESSUAL PENAL E INFANTO-JUVENIL NA UNIVERDIDADE
ESTADUAL DE PONTA GROSSA, NA ESCOLA SUPERIOR DA
MAGISTRATURA E NA ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
ESPECIALISTA EM DIREITO CONTEMPORÂNEO E SUAS
INSTITUIÇÕES FUNDAMENTAIS IBEJ/PR E MESTRANDO EM DIREITO
ECONÔMICO E SOCIAL PUC/PR.
RESUMO
O texto aborda a temática da postura do juiz criminal diante do princípio do
“devido processo legal substantivo”. O artigo aborda inicialmente a importância
dos princípios na construção do ordenamento jurídico, analisando,
posteriormente, o “devido processo legal”, em aspectos históricos e
conceituais, culminando com a análise do devido processo legal substantivo
e suas relações com os princípios da razoabilidade ou proporcionalidade,
inclusive as implicações para o Direito Penal.
ABSTRACT
The text is about the attitude of the criminal judge to the principle of “Obligated
Substantive Legal Proceeding”. The article is about the importance of the
principles of formation of legal system , analyzing , after that, “obligated legal
proceeding” ,in historical and concept ional aspects , ending with the analysis
of the Obligated Substantive Legal Proceeding and its relation with the
principles of reasonability or proportion, including the implications to the
Criminal Law.
PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; princípios jurídicos constitucionais
e legais; princípio do devido processo legal.
INTRODUÇÃO
Publicado no último boletim do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais (ano 8, nº 101, abril/2001), a declaração de voto vencido do
ínclito magistrado paulista Celso Limongi em revisão criminal onde o
mesmo busca o princípio do devido processo legal substantivo como
fundamento à absolvição do réu, constitui posicionamento de significativo avanço em sede de Direito Penal, ousadia da qual se furta a
maioria dos doutrinadores penalistas e processualistas e a quase totalidade dos operadores do direito.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
112
Trata a revisão criminal de fato histórico de “estupro” com “violência presumida” em “continuidade delitiva”.
Ora, o que tínhamos até então para fundamentar as absolvições
ocorridas em casos análogos, já considerando que a “presunção de violência” não era absoluta, referiam-se à realidade social hodierna; à
ausência da innocentia consilii da vítima; à experiência sexual anterior
da vítima; à iniciativa da própria vítima; à dúvida pelo réu quanto à idade
da vítima ( embora pudesse caracterizar o dolo eventual ); à aparência
de idade superior da vítima, etc. Neste sentido Luis Régis Prado e Cezar
Roberto Bitencourt135 ; Julio Fabbrini Mirabete136 ; Celso Delmanto137 ;
Damásio E. de Jesus138 ; Alberto Silva Franco139 , et alii.
Traz à baila, portanto, o magistrado do areópago paulista, inovação de análise de caso concreto, objeto de direito material, sob o
enfoque principialista constitucional, naquilo que J. J. Gomes Canotilho
denomina de principialização da jurisprudência.
A este respeito convém trazer a colação o seu ensinamento:
De igual forma, nestas obras mais representativas se encontrará a demonstração de que, hoje, a subordinação à lei e ao direito
por parte dos juízes reclama, de forma incontornável, a principialização
da jurisprudência, ou seja, a mediação judicativo-decisória dos princípios jurídicos relevantes para a solução materialmente justa dos feitos
submetidos à decisão jurisdicional.140
E prossegue o autor141 dizendo que o direito do Estado Constitucional Democrático e de Direito na atualidade; diferentemente do direito do Estado de Direito do século XIX e da primeira metade do século XX, onde predominava o direito das regras dos códigos; é um direito
que leva a sério os princípios sendo, portanto, um direito de princípios.
A figuração desempenhada pelos magistrados, máxime a partir
da década de noventa, sob o pálio da nova ordem constitucional institu135
Código penal anotado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 710 – 712.
Código penal interpretado. 1ª Edição, 3ª Tiragem. São Paulo: Editora Atlas, 2000, p. 1313 – 1324.
137
Código penal comentado. São Paulo: Edição Freitas Bastos, 1986, p. 361 –362.
138
Código penal anotado. 2ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1991, p. 597 – 599.
139
Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 3ª Edição. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
1990, p. 1170 – 1175.
140
A principialização da jurisprudência através da Constituição. RePro 98/83.
141
Ob.cit., p. 84.
136
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
113
ída com a carta de 1988, sobreleva de importância a atividade
jurisdicional na esfera processual, em atender o seu princípio político
consistente em atingir a máxima garantia social com o mínimo de ônus
à liberdade individual. Tal aprumo do magistrado densifica o estado constitucional democrático e de direito como quer Canotilho.
Interessante artigo de José Renato Nalini pode trazer mais luzes a tal assertiva, o qual, após evidenciar a importância do magistrado
em seu labor raciocinar constitucionalmente, assim preleciona:
Aprimorar o processo de maneira a torná-lo menos complicado, conferindo-lhe eficácia e racionalidade [sem grifo no original], conduz não apenas à maior efetividade das decisões judiciais, mas contribui para consolidação democrática.142
E prossegue o autor:
É o desempenho racional na condução do processo, assim
conceituado o labor de quem, por conhecer a substância de seu mister
e por imbuir-se de consciência de verdadeiro agente público – responsável pela reconquista da harmonia social – extraia de seu instrumento de trabalho todas as suas potencialidades como produto do saber
humano.143
Tais assertivas adquirem ainda maior importância na atualidade, onde verificamos que, das duas últimas décadas para cá, o legislador nacional tem se mostrado fugaz na edição de textos legais reconstruindo o sistema ao mesmo tempo em que desnorteia ainda mais o
cipoal jurídico do país, e acaba se afastando de primados técnicos e
constitucionais fundamentais. A tudo isto deve estar atento o operador
do direito no processo, pois este “tem passado por transformações
marcantes que o afastaram do formalismo da velha praxe, para o reforço de sua posição como garantia constitucional”.144
PRINCÍPIOS DE DIREITO
O vocábulo princípio provém do latim principium que quer dizer
começo, origem, ponto de partida.
142
O juiz e o processo constitucional. RT 687, jan/93, p. 243-246.
Ob. cit., p. 246.
144
OLIVEIRA BARACHO, José Alfredo. Processo e Constituição: o devido processo legal. RDP 68/55.
143
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114
Princípio é: “Ato de principiar; momento em que se faz alguma
coisa pela primeira vez ou em que alguma coisa tem origem; a primeira
formação de uma coisa; causa primária, origem, começo, razão fundamental; elemento que predomina na constituição de um corpo organizado; regra, teoria, preceito moral; estréia, germe, opinião; modo de ver.
S.m.pl. Os princípios da vida; as primeiras épocas em que a vida surgiu;
antecedentes, primícias, rendimentos; opiniões, convicções; regras fundamentais e gerais de qualquer ciência ou arte; regra fundamental, doutrina [sem grifos no original].”145
Toda forma de conhecimento filosófico ou científico implica na
existência de princípios.146
Em Direito, os princípios constituem-se em fontes básicas tanto
para a sua formação como para sua interpretação, exercendo função
ordenadora e função prospectiva no ordenamento jurídico. Na primeira,
se vinculam, mais essencialmente, por servirem de diretrizes para a fixação de critérios de interpretação e de integração do direito dando,
assim coerência geral ao sistema. Na segunda, pode-se afirmar que os
princípios têm capacidade de impor sugestões para a adoção de formulações novas ou de regras jurídicas mais atualizadas, tudo inspirado
pela idéia do aprimoramento do direito aplicado.147
Adquirem, assim, os princípios, papel fundamental dentro do
ordenamento jurídico nacional como instrumento colocado ao alcance
dos estudiosos e aplicadores do Direito para uma sua melhor compreensão e execução, máxime os que, implícita ou explicitamente, possuem assento constitucional. São eles, precisamente, a síntese dos principais valores da ordem jurídica.148
Sobre a importância dos princípios, em citação já clássica dos
doutrinadores, escreve Celso Antonio Bandeira de Mello:
Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre
145
Grande dicionário enciclopédico Rideel ilustrado. São Paulo: editora Rideel, 1980, vol. 8, p. 2162.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 19ª Edição. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 299.
MIRANDA, Jorge. Manuel de Direito Constitucional. 2ª edição. Lisboa: Coimbra Editora, 1988, Tomo II,
p. 199-200.
148
BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 3ª edição. Rio de
Janeiro: Renovar, 1996, p.287.
146
147
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115
diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério
para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a
lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a
tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios
que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo
unitário que há por nome sistema jurídico positivo.149
E prossegue o autor:
Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,
conforme o escalão do princípio atingido, porque representa
insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais...150
J.J. Gomes Canotilho151 ao traçar as distinções entre princípio
e regras, acaba densificando a importância daqueles. Diz ele que os
princípios possuem um caráter de fundamentalidade no sistema de
fontes do direito, tanto por sua posição hierárquica (princípios constitucionais), como por sua importância estruturada dentro do sistema jurídico (princípio do Estado de Direito). Ainda, que os princípios são “standars”
juridicamente vinculantes, radicados nas exigências de “justiça” ou na
“idéia de direito”. Por fim, para o autor lusitano, os princípios possuem
natureza normogenética por serem fundamento de regras, encontrandose na base ou constituindo a razão das regras jurídicas.
Assim, diante de tais inconcussas assertivas, constata-se a
relevância da construção principialista, máxime a constitucional, a
nortear todo ordenamento jurídico em não se afastar dos valores básicos do grupo social que por fim constituirá o seu destinatário.
A se prescindir dos princípios, resultaria um modelo ou sistema,
no qual, embora alcançada a propalada “segurança jurídica”, seria necessário um infinito legalismo a abarcar as infinitas situações da realidade decorrentes de uma sociedade pluralista e aberta como a nossa.
149
Elementos de direito administrativo. São Paulo: Editora RT, 1986, p. 230.
Ob. cit., p. 230.
151
Direito Constitucional . 6ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 166-168.
150
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
116
Este engessamento, temos que convir, não atenderia com justiça os
destinatários daquele modelo ou sistema.
A importância dos princípios assume mais destacado papel
dentro do sistema de garantias dos direitos fundamentais do homem a
fazer prevalecer os valores de proteção à vida, liberdade e propriedade.
José Augusto Delgado após identificar o fenômeno da complexidade
das relações sociais, econômicas, políticas, familiares, educacionais e
patrimoniais e dos desafios vividos pelo ordenamento jurídico para
observá-las, observa que:
A identificação da complexidade assinalada revela, conseqüentemente, não ser possível o estudo das regras jurídicas processuais
que garantem os direitos dos cidadãos, apenas à luz singela da norma positiva posta para execução, por exigir concepção muito mais
alargada, que passa, necessariamente, por uma visualização dos
princípios informativos do direito processual, por eles serem transmissores, de modo explícito ou implícito, das dificuldades já comprovadas de se tornarem eficazes às normas expressivas de tais
prerrogativas.152
DEVIDO PROCESSO LEGAL – BREVE HISTÓRICO
O devido processo legal, segundo a maioria dos doutrinadores
pesquisados, tem origem na Carta Magna de 1215 do rei João “Sem
Terra”, nos seguintes termos em seu artigo 39: “Nenhum homem livre
será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus direitos ou seus
bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu ‘status’ de
qualquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos proceder
contra ele senão mediante um julgamento legal pelos pares ou pelo costume da terra”.
Em 1066, os normandos, provenientes da França, invadiram a
Inglaterra, tendo à frente das tropas, constituídas de 5 mil cavaleiros e
6 mil soldados, o Duque de William da Normandia, denominado “O
Conquistador”, e puseram abaixo o reinado dos saxões, que findou
com Harold, Conde Essex. Não obstante reinar com mão-de-ferro,
152
A supremacia dos princípios nas garantias processuais do cidadão, trabalho publicado na coletânea
“As Garantias do Cidadão na Justiça”, coordenado pelo Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. São Paulo:
Saraiva, 1993, p. 63.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
117
William e seus barões franceses, bem como seus sucessores, os soberanos Henry I e Henry II, tiveram de conceder, de vez em quando, cartas
de franquias, a fim de evitar rebeliões.
Ricardo Coração-de-Leão (Richard Coeur-de-Lion), filho de
Henry II, que reinou no período de 1189 a 1199, participou da Terceira
Cruzada, indo combater os mouros, considerados infiéis, na Palestina.
Ao retornar, foi preso na Áustria, e solicitado seu resgate em dinheiro.
Aproveitando a ocasião para tomar o poder, seu irmão, o príncipe John,
chamado de Sem-Terra (lackland), estimulou rebeliões no reino, dizendo que Ricardo jamais retornaria. Após, sua libertação, Ricardo
voltou a reinar na Inglaterra, mas por pouco tempo, já que morreu em
virtude de um ferimento de flecha recebido em uma batalha.
Ao assumir a Coroa, John passou a exigir elevados tributos e
fez outras imposições decorrentes de sua tirania, o que levou os barões a se insurgirem.
No confronto levado a efeito nos relvados de Runnymede, a
15/6/1215, John foi obrigado a selar a carta que ficou conhecida como
Magna Carta, ou Great Charter, da qual ainda existem preservados
quatro exemplares originais. Por esse documento, o Rei John jurou
respeitar os direitos, franquias e imunidades que ali foram outorgados,
como salvaguarda das liberdades dos insurretos, entre eles a cláusula
do devido processo legal (due process of law).153
Inicialmente denominado de law of de land partiu-se para o due
process of law, expressão surgida em 1354, quando a Magna Carta foi
traduzida para o inglês por Eduardo III, consistente na garantia de lei
preestabelecida e juiz competente. Tal princípio, desde então espraiouse sendo inserto em vários textos constitucionais, inclusive o atual brasileiro, embora pela primeira vez de modo expresso, em seu artigo 5º,
inciso LIV.
Trata-se, o dispositivo, de marco decisivo “na definição do direito do homem de ser submetido, em qualquer conflito de interesses
em que se envolva, aos procedimentos de um justo processo, conforme
previsão legal”.154
153
154
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 17-18.
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Anotações sobre o princípio do devido processo legal. RePro 63/57.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
118
DEVIDO PROCESSO LEGAL – CONCEITO
Inicialmente, o princípio assumiu sua característica
marcantemente processual consistente no “conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas
faculdades e poderes processuais e, de outro, são indispensáveis ao
correto exercício da jurisdição”.155
Objetiva, assim, a garantia, tutelar a vida, a liberdade e a propriedade estabelecendo a necessidade de um justo processo. Como
em nosso país inexiste sanção que atinja a vida, dirige-se aos bens
jurídicos liberdade e propriedade conforme textualmente dispõe a Constituição Federal.
O devido processo legal consiste em assegurar à pessoa o
direito de não ser privada de sua liberdade e de seus bens, sem a
garantia de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei,
decorrendo do mesmo vários outros princípios, dentre os quais os
corolários da amplitude de defesa e do contraditório.
“No âmbito processual garante ao acusado a plenitude de defesa, compreendendo o direito de ser ouvido, de ser informado pessoalmente de todos os atos processuais, de ter acesso à defesa técnica,
de ter a oportunidade de se manifestar sempre depois da acusação e
em todas as oportunidades, à publicidade e motivação das decisões,
ressalvadas às exceções legais, de ser julgado perante o juiz competente, ao duplo grau de jurisdição, à revisão criminal e à imutabilidade
das decisões favoráveis transitadas em julgado.”156
Impõe-se o rigorismo de tal princípio máxime em seara penal
onde visualizamos duas pretensões: de um lado o jus puniendi e o jus
punitionis e do outro o jus libertatis. Incide, portanto, o processo em matéria penal sobre um dos valores mais fundamentais do homem, a sua
liberdade.
Vicente Greco Filho, ao tratar da garantia do processo penal o faz:
Apesar de o Estado Moderno ser intervencionista, sua interferência
155
ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de. GRINOVER, Ada Pellegrini. R. DINAMARCO, Cândido. Teoria geral
do processo. 12ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 82.
156
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 30.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
119
nos negócios jurídicos se dá no campo do domínio econômico, permanecendo resguardada a integridade do indivíduo como pessoa,
no campo penal. Na descrição dos delitos e cominação de penas, a
preocupação é a mesma; todavia, é no processo que ela se revela
com maior amplitude, porque, na verdade, no processo penal não
se julga apenas um fato delituoso, mas também uma pessoa.
O processo constitucionalmente estruturado, portanto, atua como
indispensável garantia passiva contra o arbítrio do que eventualmente representa o Estado, cabendo ao Poder Judiciário a efetivação
dessa garantia.157
Embora originariamente o princípio se referisse ao seu aspecto procedimental – procedural due process – como conjunto de garantias processuais da liberdade e da propriedade, passou-se a admitir
também o princípio em outro aspecto – substancial due process – que
é a aplicação do mesmo ao direito material analisando-se a sua
razoabilidade frente ao sistema constitucional.
DEVIDO PROCESSO LEGAL – CONCEPÇÕES
Inspirada na Carta Magna e por influência da common law, o
devido processo legal foi difundido inicialmente somente em sua concepção procedimental consubstanciada como garantia a ser observada, dirigindo-se à regularidade do processo penal, posteriormente também adotada no processo civil e no processo administrativo.
Recepcionado pelo sistema norte-americano, teve aplicabilidade
somente nesta concepção até 1856 quando o Judiciário (Wynehamer v.
People, New York, 1856 – neste passou-se a entender que o devido
processo não deveria restringir-se ao modo do procedimento, mas também atingir o conteúdo substantivo da legislação) passou a cunhar a segunda concepção em seu caráter substantivo, entendendo-o como “ferramenta viável e indispensável à proteção das garantias individuais básicas”158 com a jurisdicionalização constitucional.
Neste segundo tratamento do princípio enfocado, é tido o mesmo como instrumento colocado ao alcance do Poder Judiciário, que
157
158
Manual de processo penal. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p.53.
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido Processo legal. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1996, p.66.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
120
possibilita a análise dos atos emanados dos demais Poderes do Estado em sua substância com adequação ao texto constitucional dirigido à
garantia dos direitos fundamentais do homem. Trata-se de importante
limitador das atuações do legislativo e do executivo, aferido pelo judiciário na estrita observância destes direitos. Não basta, por esta segunda
concepção, que o ato oriundo de um destes poderes tenha observado o
devido processo legal quanto ao seu trâmite procedimental, apresentando-se como necessário, a lhe legitimar, esteja substantivamente dirigido ao respeito dos direitos à vida, à liberdade e à propriedade.
Luis Roberto Barroso sobre esta faceta do devido processo legal faz o seguinte comentário;
De fato, ao lado do princípio da igualdade perante a lei, essa versão
substantiva do devido processo legal tornou-se importante instrumento de defesa dos direitos individuais, ensejando o controle do
arbítrio do Legislativo e da discricionariedade governamental. É por
seu intermédio que se procede ao exame de razoabilidade
(reasonableness) e de racionalidade (rationality) das normas jurídicas e dos atos do Poder Público em geral.159
Desta maneira, qualquer restrição feita pelo legislador ou administrador a qualquer direito individual somente será reputada válida quando valorada a adequação entre os meios empregados por aqueles e os
fins objetivados com este emprego, adentrando-se, inclusive, no exame
da discricionariedade do ato do Poder Público.
Resumidamente pode-se dividir em três fases distintas a adoção do devido processo legal na sua concepção substantiva, a saber:
a. sua ascensão e consolidação, do final do século XIX até a década
de 30; b. seu desprestígio e quase abandono no final da década de 30;
c. seu renascimento triunfal na década de 50, no fluxo da revolução progressista promovida pela Suprema Corte sob a presidência de Earl
Warren.160 Para o mesmo autor, atualmente, a Suprema Corte reassumiu
um perfil conservador e o uso daquele vive um momento de refluxo.
Não obstante este refluxo, o princípio do devido processo le159
160
Interpretação e aplicação da Constituição, 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999, p.210.
BARROSO, Luis Roberto. Ob. cit., p. 211.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
121
gal atualmente é visto sob esta dupla concepção161 , devendo atuar
tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e propriedade quanto no âmbito formal, referente ao procedimento.162
DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO E OS PRINCÍPIOS DA
RAZOABILIDADE OU PROPORCIONALIDADE
“O princípio da proporcionalidade dizia primitivamente respeito ao problema da limitação do poder executivo, sendo considerado
como medida para as restrições administrativas da liberdade individual. É com este sentido que a teoria do Estado o considera, já no século
XVIII, como máxima suprapositiva, e que ele foi introduzido, no século
XIX, no direito administrativo como princípio geral do direito de polícia
(CFR, art. 272º/1). Posteriormente, o princípio da proporcionalidade
em sentido amplo, também conhecido por princípio da proibição de
excesso (übermassverbot), foi erigido à dignidade de princípio constitucional (CFR arts. 18º/2, 19º/4, 265º e 266º/2). Discutido é o seu fundamento constitucional, pois enquanto alguns autores pretendem deriválo do princípio do Estado de Direito, outros acentuam que ele está intimamente conexionado com os direitos fundamentais (CFR Ac TC 364/
91, DR I, Ac 23/8 – Caso das inelegibilidades locais).”163
Verifica-se, portanto, que embora o princípio que estará sob
comento já possua gênese remota, os doutrinadores pátrios do Direito
Constitucional e demais ramos do direito somente mais recentemente
vão se dando conta da necessidade de reconhecê-lo e empregá-lo
para o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito.164
O princípio da proporcionalidade (o princípio dos princípios –
segundo GUERRA FILHO) não possui expressa previsão no atual texto constitucional, no entanto, deve ser observado como “verdadeiro princípio ordenador do direito”165 cuja essência e destinação é a preservação dos direitos fundamentais.
161
ARRUDA ALVIM, Angélica. Princípios constitucionais do processo. RePro 74/21-22.
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Editora Atlas, 1997, p. 249.
163
CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito constitucional. 6ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 382.
164
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípios da isonomia e da proporcionalidade e privilégios processuais
da Fazenda Pública. RePro 82/74.
165
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ob. cit., p. 75.
162
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
122
Por decisão do STF prolatada em 11 de maio de 1994, foi este
princípio alçado à posição de postulado constitucional assentado na
cláusula do devido processo legal, em sua faceta de garantia material
(substantive due process).166
Através deste princípio é que se possibilita a racional ponderação sobre a situação conflituosa surgida entre princípios, direitos fundamentais, interesses e bens jurídicos, de modo a impor-se os menores sacrifícios às partes.
Importa o princípio da proporcionalidade na concreta avaliação a respeito da legitimidade dos meios e dos fins perseguidos como
também da adequação desses meios à consecução dos propósitos
desejados, da necessidade de sua utilização e da razoabilidade, como
justa medida do sacrifício de um direito em detrimento de outro.
Estes três momentos encontram-se esquematizados por
CANOTILHO167 quando trata do princípio da proibição de excesso, tido
por ele como super conceito, da seguinte maneira: princípio de conformidade ou adequação de meios; princípio da exigibilidade ou da necessidade e princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
Tanto a cláusula como o princípio são conceitos relevantes a
serem observados constantemente para a efetivação do “equilíbrio entre
o exercício do poder e a preservação dos direitos dos cidadãos”, servindo como parâmetros “dos atos do Poder Público para aferir se eles
estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça”.168
A atividade normativa do Poder Público parte de situações
fáticas (Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale – fato, valor,
norma), passando à eleição de meios para atingir determinados fins.
Estes – fatos concretos, meios e fins - constituem os elementos para a
criação do direito. Aqui surge a primeira função da razoabilidade ao
aferir a racionalidade e a proporcionalidade entre estes elementos,
dentro da própria lei; é a razoabilidade interna. Após, analisa-se a
166
Adin nº 958, rel. Min. Marco Aurélio, publicado no DJ de 16.5.94, p. 11.675, in A Constituição na visão
dos tribunais, TRF da 1ª Região, Gabinete da Revista, vol. 1, 1997, p. 368.
167
Ob. cit., p. 382-384.
168
BARROS, Luis Roberto. Ob. cit., p.215.
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123
razoabilidade externa consistente na compatibilidade normativa com os
valores que, explícita ou implicitamente, encontrem-se no texto constitucional. Por fim deve-se sopesar os danos resultantes com os objetivos
pretendidos, ou, no dizer de Canotilho “Meio e fim são colocados em
equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o
meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se,
pois, de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um
fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do
fim.”169
O princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, inicialmente, como já colocado, tinha aplicabilidade na área do Direito Administrativo, junto ao Poder Executivo, limitando sua potestade na relação com os indivíduos da sociedade. Também junto ao Poder Judiciário era utilizado para propiciar racionalidade e proporcionalidade nas
decisões, máxime quando da apreciação de medidas cautelares.
No entanto, já quanto a sua aplicabilidade referentemente aos
atos do Poder Legislativo, encontra resistência calcada nas posições
clássicas advindas da separação dos poderes. Ao apreciar o ato
legislativo sob o enfoque do princípio sob comento, considerando os
três momentos já mencionados, o operador do direito ultrapassa a mera
verificação de sua legalidade objetiva para analisar também o mérito
daquele, inserto já na discricionariedade do legislador. Esta atuação é
desaprovada sob o argumento de que não pode o julgador arvorar-se
na posição de legislador, o que estaria ocorrendo se fosse permitida
esta análise. Embora verdadeira esta assertiva dentro de um Estado
Democrático de Direito, não menos verdadeira é a necessidade de
que o Judiciário esteja sempre atento à elaboração legiferante a qual
deve ser resultante da observância dos valores fixados constitucionalmente, máxime aqueles garantidores dos direitos fundamentais.
Embora o princípio não encontre expresso assento constitucional nem mesmo no atual texto, como já dito, é ele extraído da cláusula do devido processo legal em seu caráter substantivo, esta expressamente prevista no artigo 5º, inciso LIV.
169
Ob. cit., p. 383-384.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
124
A jurisprudência caminha no sentido de adoção deste postulado, podendo ser citada a manifestação do Ministro Celso de Mello como
relator na ADIn nº 1.148-8- AM, STF:
A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra
qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como
no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade.
Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do
desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este
não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma
imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento
institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo,
de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.
O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO (RAZOABILIDADE
OU PROPORCIONALIDADE) E O DIREITO PENAL
Pois bem, se o princípio do substantive due process já vem,
embora de forma tímida, sendo aplicado na esfera cível, o mesmo não
se pode dizer da esfera penal, máxime com a conotação feita pelo magistrado em seu voto, tanto que foi vencido.
Cremos, no entanto, chegado o momento para ousadamente,
e utilizando-se deste dogma constitucional, analisar os novos textos
criminalizantes sob a ótica da razoabilidade de suas normas em buscar a garantia da justiça e da paz sociais e não como instrumento
opressor do Estado e prestidigitador das massas.
Em sede penal, máxime na segunda metade da década de 80
e década de 90, temos assistido a atabalhoada atividade legiferante
despida dos mais comezinhos princípios da matéria penal como o da
intervenção mínima, da fragmentariedade, da proporcionalidade das
penas, da ofensividade, da lesividade, etc.170
É o império do Movimento da Lei e da Ordem, onde cada vez
mais se criminalizam condutas até então tidas como indiferentes penais
e tornam-se mais rigorosas as penas com prevalência da privativa de
170
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoria del garantismo penal. Tercera edición. Madrid: Editorial
Trotta, 1998.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
125
liberdade, afastando-se ou dificultando benefícios de caráter prisional.
Cria-se o fantasioso discurso do controle da criminalidade171 , desacreditando o direito penal e tornando-o cada vez mais instrumento violento de controle social172 .
Consistirá o princípio, ora tratado, num instrumento de superação do juiz asséptico em busca de uma concreta realização dos direitos humanos.173
Significativo o papel do judiciário neste avanço conforme
assertiva de Cármen Lúcia Antunes Rocha174 : “Os sistemas constitucionais deste final de século encarecem o papel do Poder Judiciário
como aquele que se dota de melhores condições para assegurar a
eficácia jurídica dos direitos fundamentais, especialmente quando se
apresentar quadro de ameaça ou violação dos mesmos.”
É ele, o juiz, a quem cabe analisar o fato histórico tido como
delituoso, amoldando-o ao conjunto de elementos descritivos contidos
no tipo penal produzido pelo legislador. Mas, neste mister deve considerar aquele conjunto de princípios norteadores da elaboração e da aplicação da lei em sede penal, sob a mira dos direitos fundamentais
advindos dos mandamentos constitucionais. Se deles o legislador se
afasta, deve o juiz intervir.
Edmundo Oliveira em capítulo intitulado “Direitos Humanos e
Humanismo Jurídico”, assim se manifesta sobre a atuação do legislador em matéria penal:
Os elementos constitutivos do conceito contemporâneo de direitos humanos indicam que a ordem jurídica positiva não pode perder o
equilíbrio, nem contrariar esses direitos, visto ser inadmissível que a dimensão axiológica da lei, através da interpretação e da aplicação, entre
em choque com as exigências de preservação da individualidade existencial que o homem traz ao nascer para desenvolver no plano material,
171
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica, do controle da violência à violência
do controle penal.. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1997.
172
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de derecho penal, parte general. Sexta Edicion. Buenos Aires:
1996, p. 21-40.
173
KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. 2ª edição. Rio de Janeiro: Luam Editora, 1993, p. 93-117.
174
O constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais.
Revista Trimestral de Direito úblico 16/54.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
126
moral, psíquico e espiritual. No terreno, por exemplo, do efeito desejado
em função do objetivo sócio-cultural da lei penal, cabe, primeiramente,
ao legislador, cultivar a prudência de construir tipos penais que, efetivamente, além de espantar o marasmo decorrente da subida da
criminalidade, defendam também os valores inerentes aos direitos e
garantias individuais, seguindo a orientação do mandamento constitucional.175
Ainda, sobre a atividade do legislador, convêm trazer manifestação de Luiz Otavio de Oliveira Rocha,o qual após tratar dos avanços
nas concepções clássicas da ciência penal, assim se expressa:
A característica mais marcante desses avanços da ciência penal
talvez seja o intento que neles se assenta de fixar parâmetros para a
atividade legislativa em matéria penal – de modo a sujeitá-la de forma
inarredável ao rol de garantias individuais mundialmente aceitas a partir da criação da ONU – segundo a concepção de que a função proteção dos bens jurídicos elegidos pelo legislador – segundo um critério
de relevância social – que compete ao Direito Penal, somente se realiza em plano juridicamente viável se o meio plasmado na lei para concretizar essa proteção não é incompatível com os postulados do Estado
de Direito.176
A tarefa não é fácil. Ainda temos aplicadores do direito que,
mesmo sem serem expressamente sectários do Movimento da Lei e
da Ordem, adotam sua ideologia, embora de há muito o ensinamento
seja o contrário. Cabe àqueles a adequação do legislador aos cânones
constitucionais.
Veja-se que já Beccaria, como máximo representante ilustrado
no âmbito penal, tratava da necessidade de adequação legislativa entre
crime e pena: “para que uma pena seja justa não deve ter intensidade
em grau maior do que o que baste para separar os homens do
delito”.177 Também Montesquieu para quem: “é essencial que as penas
estejam proporcionadas entre si, porque é mais essencial que se evi175
Direitos humanos. Revista Cónsules, ano V, nº 100, p. 23.
O princípio de proporcionalidade como instrumento de controle constitucional das normas penais. RT
772/476.
177
De los delitos y de las penas. Madrid: Alianza Editorial, 1997, p. 84.
176
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127
tem os grandes crimes que os pequenos, o que ataca mais a sociedade
que o que a ofende menos”.178
Não podemos permitir a burocratização do segmento judicial
como condicionamento do sistema penal a que fazem menção Zaffaroni
e Pierangeli, após analisarem os outros dois condicionamentos consistentes na criminalização e na fossilização, nos seguintes termos:
Em outro nível, o sistema penal procura compartir essa
mentalização ao segmento de magistrados, Ministério Público e funcionários judiciais. Seleciona-os dentre as classes médias, não muito
elevadas, e lhes cria expectativas e metas sociais da classe média alta
que, enquanto as leva a não criar problemas no trabalho e a não inovar
para não os ter, cria-lhes uma falsa sensação de poder, que os leva a
identificar-se com a função (sua própria identidade resulta comprometida) e os isola até da linguagem dos setores criminalizados e
fossilizados (pertencentes às classes mais humildes), de maneira a
evitar qualquer comunicação que venha a sensibilizá-los demasiadamente com a sua dor.179
É o princípio da proporcionalidade. É a razoabilidade da pena
prevista, da aplicada e da executada, objeto de análise do substantive
due process.
As peias decorrentes do sistema do direito romano-germânico
(Civil law) adotado em nosso país precisam ser mitigadas para incluir
esta nova visão na esfera penal com revisitação da ordem constitucional em toda sua estrutura principialista.
Embora não sejam institutos recentes, somente em um tempo
mais próximo passou-se a debater novas concepções de aplicabilidade
da lei penal, mas todos partem da necessidade de adequação ao texto
constitucional como ora expendemos. Entre estes institutos, a exemplo
dos princípios sob comento, temos a concepção da imputação objetiva,
a qual nos leva a revisar os conceitos clássicos, máxime referentes à
tipicidade. Esta teoria, entre outras conseqüências, segundo Damásio
de Jesus, acarreta a seguinte:
178
De l’espirit de lois. Livro VI, Capítulo 16.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, parte geral.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 77.
179
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
128
O objeto jurídico é apreciado sob a ótica das normas constitucionais, delas seguindo para análise das descrições típicas delitivas. Com
isso se evita o mal clássico de interpretar as normas penais
incriminadoras a partir delas próprias, procurando auxílio nos preceitos
constitucionais somente nos casos de sérias dúvidas. E com a vantagem de poder apreciar o princípio da ofensividade num primeiro plano,
de ordem constitucional, e não sob a ótica da legislação incriminadora
ordinária.180
Assim proceder-se estaremos mais próximos de acompanhar a universalização dos direitos humanos com a compatibilização
do Direito Penal com o Direito Constitucional, este receptáculo dos
instrumentos de proteção das garantias fundamentais dos cidadãos,
hoje já globalizados.
Este é o desafio.
180
Imputação objetiva. São Paulo: Editora Saraiva, 2000, p.XVIII.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
129
OS PRINCIPAIS TRATADOS DA UNIÃO EUROPÉIA
HOMAR PACZKOWSKI ANTUNES PINTO
PROFESSOR DE FILOSOFIA JURÍDICA NO CESCAGE – DOUTOR EM
DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO PELA UNIVERSIDADED DE
LAS ISLAS BALEARES (PALMA DE MALLORCA, ESPANHA) –
ADVOGADO NO ESTADO DO PARANÁ.
RESUMO
O artigo trata dos dois principais tratados que constituem a União Européia,
o Tratado de Maastricht e o Tratado de Amsterdam. Em relação ao primeiro,
também chamado de Tratado da União Européia, assinado por doze EstadosMembros, o autor destaca que este veio a trazer respostas e soluções aos
desafios gerados pela criação da União Européia e do Mercado Interno,
principalmente no plano econômico e no plano político. O segundo Tratado,
chamado de Tratado de Amsterdam, veio a alterar vários artigos do primeiro
e de Tratados.
ABSTRACT
The article is about two main treats that represent the European Union , the
Maastricht Treat and Amsterdam Treat. In relation to the first one , also
called The European Union Treat, assigned by twelve State/Members , the
author says that this one came to bring answers and solutions to the challenges
risen by the creation of European Union and Intern Market, mainly in the
economical and political system. The second treat ,called Amsterdam Treat,
came to change several articles from the first one and others.
PALAVRAS CHAVE - Direito Internacional; União Européia; tratados
internacionais.
O TRATADO DE MAASTRICHT
Também chamado de Tratado da União Européia, foi assinado
pelos doze Estados-Membros da comunidade, no dia sete de fevereiro
de 1992, na cidade holandesa de Maastricht.
O início da década de 90, marca uma guinada fundamental na
história européia, tanto dentro quanto fora da comunidade. Tal guinada
se deve à uma série de fatores tais como:
1) O desaparecimento do bloco Leste, que gerou alterações no
equilíbrio geopolítico da Europa, tais como o aparecimento de novos
Estados no cenário Europeu.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
130
2) A concretização, em 01/01/93, do projeto do Mercado Interno
que, eliminando os óbices da livre circulação de mercadorias, pessoas,
serviços e capitais, encerra um ciclo no processo de integração européia.
3) O combate contra o terrorismo, a criminalidade e a droga,
que exige, no momento em que desaparecerem as fronteiras internas
da comunidade, um esforço conjunto dos membros para garantir a segurança e o bem-estar do cidadão.
4) A crescente agressividade dos principais parceiros comerciais da Comunidade, tais como os Estados Unidos da América e o
Japão, a qual denota uma necessidade de reforçar a coerência econômica global do espaço comunitário.
5) As grandes questões de defesa ambiental que, extravasando em muito as fronteiras internas da Comunidade, exigem um esforço
conjunto, não só da Europa, mas sim do mundo.
6) O grande desafio de a Comunidade se fazer representar no
cenário internacional, como um único Estado com uma única voz ativa e
solidária na defesa do interesse comum, seja na perspectiva dos valores da paz, democracia e Direitos do Homem, seja no flanco das relações econômicas internacionais.
7) A exigência de uma reforçada dimensão política que permita sustentando processo de integração econômica, consolidado com a
realização do Mercado Interno e da União Econômica e Monetária.
O Tratado de Maastricht veio trazer respostas e soluções aos
desafios gerados pela criação da União Européia e do Mercado Interno.
No plano econômico, através da criação de uma União Econômica e Monetária que surge imediatamente após a criação do Mercado
Único Europeu, a qual após uma delicada gestação, dará a luz em 01/
01/99 ao EURO, moeda única européia.
No plano político, a transformação da cooperação política entre
os membros comunitários, numa política comunitária, ou seja, a Política
Externa e de Segurança Comum (PESC), reflexo da necessidade de
dar à Comunidade uma voz única, mais forte e ativa na cena internacional; reforçando também a cooperação no domínio da justiça e dos asRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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suntos internos. Com estas duas medidas, a Comunidade inicia um processo condutor a uma União Política.
Com a União Econômica e Monetária e a União Política, a
Comunidade caminha em direção à União Européia, no quadro da qual,
cada cidadão, de qualquer Estado-Membro, terá uma cidadania européia. Esta cidadania européia é distinta da cidadania nacional, que assim se vê locupletada por um novo estatuto, mas não substituída.
Com o Tratado da União Européia, o processo de integração
ultrapassa formalmente o seu estágio econômico, ganhando um perfil
próprio nos âmbitos político e social. Esta evolução é correspondida
no plano das instituições pelo reforço do papel de liderança política do
Conselho Europeu, pelo acréscimo de funcionalidade do Conselho de
Ministros, pelo maior peso que passa a ter o Parlamento Europeu no
processo legislativo, pelo maior envolvimento dos parlamentos nacionais no processo comunitário e pela garantia do respeito das decisões
do Tribunal de Justiça.
O Tratado de Maastricht é um passo num processo evolutivo
que ganhou um ritmo acelerado nos anos 90. As Comunidades apresentam-se agora como o principal pólo de estabilidade no continente
europeu e como referência para muitos outros Estados europeus que
já solicitaram adesão ou a encaram como um objetivo a longo prazo. É
assim que novos alargamentos estão projetados para um futuro próximo, tais quais o último alargamento com as adesões da Suécia, Finlândia e Áustria e de um novo a ser concretizado até 1999, estando em
negociação as adesões da Polônia, Hungria e República Tcheca.
A União Européia instituída pelo Tratado de Maastricht assentou três “pilares”.
a) O 1º Pilar, corresponde três comunidades predecessoras, ou
seja, a Comunidade Econômica Européia (CEE), a Comunidade Européia do Carvão e de Aço (CECA) e a Comunidade Européia da Energia
Atômica (CEEA ou EURATOM) que se fortaleceram com o advento de
Maastricht.
A Comunidade Econômica Européia, pedra fundamental da
construção européia, é aquela que foi mais profundamente alterada,
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132
mudando a sua designação para simplesmente Comunidade Européia
(CE); tendo a sua intervenção ampliado em novos domínios como a
saúde, a educação e a cultura, a proteção ao consumidor, etc; vem
reforçar a política comunitária de cooperação para o desenvolvimento,
complementando as políticas dos Estados-Membros.
A Comunidade Européia vem a ter consolidada a sua ação no
que se refere à promoção da investigação e do desenvolvimento
tecnológico, reforçando o objetivo da melhoria da qualidade de vida dos
cidadãos, através de uma ação mais dinâmica na defesa do meio ambiente. A CE passou a promover uma maior proteção social dos
trabalhadores, através do apoio a ações dos Estados-Membros que
visem a melhoria das condições de trabalho, a proteção da saúde e
segurança dos trabalhadores, a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, além da integração das pessoas excluídas do mercado de trabalho, permitindo assim, responder com mais eficácia às realidades e necessidades do mundo trabalhista, estabelecendo uma competência no domínio industrial, orientada para reforçar a capacidade de
concorrência da indústria comunitária.
A introdução de uma nova competência comunitária, no domínio das redes transeuropéias de trasportes, energia e telecomunicações, com o objetivo de garatir a igualdade de condições de acesso ao
mercado comunitário pela atenuação das distâncias entre o centro e a
periferia.
A coesão econômica e social é um dos principais objetivos e
para isto é criado um fundo de Coesão a favor de Portugal, Espanha,
Grécia e Irlanda, o qual vem contribuindo para a realização de projetos
nos domínios do ambiente e das redes transeuropéias de transportes.
É instituída a cidadania européia criando direitos próprios aos
cidadãos comunitários, tais como o de votar e de ser eleito em eleições
locais e européias, com base no critério do local de residência e não da
nacionalidade; o direito de proteção diplomática em países terceiros,
onde, na ausência de uma Embaixada do seu Estado-Membro, o cidadão se pode dirigir à representação diplomática de qualquer um dos
demais Estados-Membros, reclamando a proteção a que passa a ter
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133
direito; o direito de petição direta ao Parlamento Europeu onde serão
ouvidas as suas opiniões, reclamações ou pretensões, além de um direito de acesso ao Provedor de Justiça Comunitária.
A instituição de uma União Econômica e Monetária, na sua
forma mais expressiva, consiste na criação de uma moeda única, atualmente chamada de ECU (Unidade de Conta Européia) sendo que a
sua futura designação, a partir de 1999, será EURO, para a Comunidade. A UEM, ou seja, o locupletamento da realização do Mercado Interno
e a adoção da moeda única permitirá potenciar as vantagens do mesmo, consubstanciadas nas quatro liberdades: livre circulação de pessoas, de bens, de serviços e de capitais.
A UEM carcteriza-se também, pela adoção de uma política
monetária única, da responsabilidade de uma instituição nova, o Banco
Central Europeu. Este, e o conjunto dos Bancos Centrais nacionais (que
constituem o Sistema Europeu de Bancos Centrais), assumiram assim,
como objetivo central da sua política a estabilidade dos preços no interior do Mercado Interno, como de um crescimento econômico duradouro,
criador de emprego e de bem-estar.
A moeda única européia, por sua vez, veio a ser mais um incentivo poderoso ao investimento, assegurando a transparência dos
mercados e habitará a participação da Comunidade Européia numa
economia mundial cada vez mais exigente em matéria de eficácia econômica e de capacidade concorrencial.
As decisões na Comunidade são tomadas por maioria qualificada, mantendo-se o recurso à rotação por unanimidade em alguns
casos de exceção. A maioria qualificada é um sistema de votação que
permite adotar decisões, desde que se reunam 62 votos dos 87 que
perfaz em o total dos votos ponderados dos quinze. Que estes 62 votos
sejam computados da soma dos votos, de pelo menos 10 Estados-Membros. Há também uma minoria de bloqueio, de 26 votos, que pode impedir a realização de um acordo. Este sitema de votação assenta na seguinte ponderação de votos:
·
·
·
Alemanha = 10
Áustria = 4
Bélgica = 5
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134
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
Dinamarca = 3
Espanha = 8
Finlândia =3
França = 10
Grécia = 5
Holanda = 5
Irlanda =3
Itália = 10
Luxemburgo =2
Portugal = 5
Reino Unido = 10
·
Suécia = 4
O alargamento das competências é acompanhado pela extensão da regra da maioria qualificada à generalidade das áreas de atuação da Comunidade, tendo-se salvaguardado, no entanto, aquelas que,
por razões de natureza política, se entendeu continuar a sujeitar a um
processo de decisão por unanimidade. É o caso de domínios que se
prendem com a identidade de cada país como por exemplo, a cultura.
Ao reforço das competências da Comunidade, a que corresponde
uma maior capacidade de intervenção da Comissão, no seu papel de
“executivo comunitário”, corresponde, igualmente, um aumento da participação dos cidadãos, representados pelos deputados com assento no
Parlamento Europeu. De fato, o Parlamento Europeu reparte, agora, com
o Conselho, o processo de decisão em matérias, tais quais o mercado
interno, o ambiente, a livre circulação dos trabalhadores, as redes
transeuropéias, a política de consumidores, a política de investigação, a
educação, a cultura e a saúde. Assim se assegura uma maior
democracidade do processo de decisão comunitário.
b) O 2º Pilar, corresponde à Política Externa de Segurança
Comum (PESC): A PESC cria um processo evolutivo e progressivo no
sentido de a Comunidade falar com uma só voz e de os Estados-Membros agirem em conjunto na cena política internacional. Até então havia um mecanismo de Cooperação Política Européia (CPE), traduzido
num processo de cooperação de informação e consulta em matéria de
política externa, o qual tem funcionado na base da busca de consensos.
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135
No âmbito da PESC, os membros da comunidade passaram a decidir
ações, sempre que reconhecessem, unanimemente, interesses importantes que quisessem prosseguir em comum.
O processo de adoção de uma “ação comum”foi estabelecido
por forma a garantir a proteção dos pontos de vista de cada um dos
Estados envolvidos e o respeito pelas respectivas vocações históricas
assim sendo, as orientações gerais da PESC serão dadas pelos Chefes de Estado e de Governo dos Países da Comunidade (Conselho
Europeu).
A implementação das ações comuns é realizada com base
num processo de dicisão por maioria qualificada reforçada, isto é, exigindo sempre a concordância de pelo menos, onze Estados-Membros.
c) O 3º Pilar, correspondente à cooperação nos domínios da
justiça e dos assuntos internos: Os crescentes desafios de uma
criminalidade e terrorismo internacionais, cada vez mais organizados,
as pressões migratórias que se exercem sobre a Comunidade e a abolição dos controles nas fronteiras internas, tornam necessário o reforço da cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos internos.
Em termos de substância, no âmbito deste pilar, as prioridades foram o estabelecimento de uma política de vistos, análise e
harmonização de certos aspectos das políticas de asilo dos EstadosMembros e o desenvolvimento da cooperação policial, particularmente pela criação do sistema europeu de intercâmbio de informações
criminais (EUROPOL).
O Tratado da União assinalou uma nova etapa no processo de
criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa,
em que as decisões passaram a ser tomadas ao nível mais próximo dos
cidadãos.
A existência destes três pilares resulta da necessidade de estabelecer métodos diferenciados de tomada de decisão, correspondendo
à variada natureza das matérias tratadas. À maior sensibilidade política
das questões envolvidas no segundo e terceiro pilares, corresponde uma
especial proteção dos pontos de vista de cada um dos Estados-Membros. A unidade e articulação de todo o sistema matém-se, porque são
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136
comuns aos três pilares as Instituições a quem cabe a faculdade de tomar decisões, o Conselho Europeu, o Conselho de Ministros, a Comissão, o Parlamento Europeu, o Tribunal de Justiça, o Tribunal de Contas;
sobre os quais já foi tratado em linhas anteriores
O TRATADO DE AMSTERDAM
Tal Tratado alterou vários artigos do Tratado da União Européia
(Tratado de Maastricht), além dos Tratados que instituiram as comunidades européias e alguns atos relativos a esses Tratados. Essas alterações ocorreram, principalmente, no direito substantivo, criado em
Maastricht em 1992.
Vale, aprioristicamente, salientar que, o Tratado de Amsterdam,
assinado em 07/06/97, não foi ainda ratificado e só quando isto acontecer é que ele realizará algumas das mudanças a serem citadas.
Amsterdam, tanto quanto Maastricht, são auxiliados pelos acordos de Schegen, 2 Tratados realizados em 1985 e 1990. O primeiro
dos acordos tem como marco um compêndio em matéria de estrangeria
(Direito Internacional Privado), criando um visto comum para toda Comunidade. Também tornam-se comuns os domicílios e a permanência
de extrangeiros.
Se por exemplo, Schegen for ratificado, é possível que um
estrangeiro precise de um único visto para entrar e permanecer em
todos os países da Comunidade que tenham participado e endoçado
os Acordos de Schegen.
Outro ponto fundamental é que todas as decisões tomadas em
Schegen passaram a fazer parte do Tratado de Amsterdam.
Entre outras coisas, o Tratado de Amsterdam atribui à União
Européia os seguintes objetivos:
a) A promoção do progresso econômico e social e de um elevado nível de emprego e a realização de um desenvolvimento equilibrado e sustentável, nomeadamente mediante a criação de um espaço sem fronteiras internas, o reforço da coesão econômica e social e o
estabelecimento de uma união econômica e monetária, que incluirá a
prazo, a adoção de uma moeda única, de acordo com as disposições
do Tratado de Amstendam;
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137
b) A afirmação de sua identidade, na cena internacional, através da execução de uma política externa e de segurança comum, que
inclua a definição gradual de uma política de defesa comum, que poderá conduzir à uma defesa comum;
c) O reforço da defesa dos direitos e dos interesses das nacionais dos seus Estados-Membros, mediante a instituição de uma cidadania da União;
d) A manutenção e o desenvolvimento da União enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada
a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controles de fronteira externa, imigração e asilo,
bem como de prevenção e combate à criminalidade;
e) A manutenção da integralidade do acervo comunitário e o
seu desenvolvimento, a fim de analisar em que medida pode ser necessário rever as políticas e formas de cooperação instituídas pelo
Tratado de Amsterdam, com o objetivo de garantir a eficácia dos mecanismos e das Instituições da Comunidade.
A União assegurará, em especial, a coerência do conjunto de
sua ação externa no âmbito das políticas que adotar em matéria de
relações externas, de segurança, de economia e de desenvolvimento,
cabendo ao Conselho e à Comissão a responsabilidade de assegurar
essa coerência, cooperando para o efeito. O Conselho e a Comissão
assegurarão a execução dessas políticas de acordo com as respectivas competências.
O Parlamento Europeu, O Conselho, a Comissão, o Tribunal de
Justiça e o Tribunal de Contas exercem as suas competências nas condições e de acordo com os objetivos previstos, por um lado, nas disposições dos Tratados que instituem as Comunidades Européias e nos
Tratados e atos subseqüentes que os alteram ou completaram e, por
outro, nas demais disposições do Tratado de Amsterdam.
A União assenta nos princípios da liberdade, da democracia,
do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais,
bem como do Estado de direito, princípios que são comuns aos Estados-Membros. A União também respeitará as identidades nacionais dos
Estados-Membros.
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138
VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS
O Conselho, reunido a nível de Chefes de Estado ou de Governo e deliberando por unanimidade, sob proposta de 1/3 dos EstadosMembros, ou da Comissão, após o parecer favorável do Parlamento
Europeu, poderá verificar a existência de uma violação grave e persistente, por parte de um Estado-Membro, de alguns dos princípios
supramencionados, após ter convidado o governo desse Estado-Membro a apresentar as suas observações sobre a questão.
Se tiver sido verificada a existência dessa violação o Conselho, deliberando por maioria qualificada, poderá decidir, suspender alguns dos direitos decorrentes da aplicação do Tratado de Amsterdam
ao Estado Membro em questão, incluindo o direito de voto do representante do governo desse Estado-Membro no Conselho. Ao fazê-lo,
o Conselho terá em conta as eventuais conseqüências dessa suspensão nos direitos e obrigações das pessoas, físicas ou jurídicas.
O Estado-Membro em questão, continuará, de qualquer modo,
vinculado às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado de
Amsterdam.
O Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode posteriormente decidir alterar ou revogar as medidas tomadas, se se alterar
a situação que motivou a imposição dessas medidas.
POLÍTICA EXTERNA E SEGURANÇA
A União Européia definirá uma política externa e de segurança
comum extensiva a todos os domínios da política externa e de segurança, que terá por objetivos:
a) A salvaguarda dos valores comuns, dos interesses fundamentais, da independência e da integridade da União, de acordo com os
princípios da Carta das Nações Unidas;
b) O reforço da segurança da União, sob todas as formas;
c) A manutenção da paz e o reforço da segurança internacional,
de acordo com os princípios da Carta das Nações Unidas, com os princípios da Ata Final de Helsinque que e com os objetivos da Carta de
Paris, incluindo o respeito às fronteiras extenas;
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139
d) O fomento da cooperação internacional;
e) O desenvolvimento e o reforço da democracia e do Estado
de direito, bem como o respeito dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais.
Os Estados-Membros apoiarão ativamente e sem reservas a
política externa e de segurança da União, num espiríto de lealdade e de
soliedariedade mútuas.
Os Estados-Membros atuarão de forma concertada a fim de
reforçar e desenvolver a soliedariedade política mútua e abster-se-ão
de empreender ações contrárias aos interesses da União, ou suscetíveis de prejudicar a sua eficácia como força coerente nas relações
internacionais. Sendo que o Conselho assegurará a observância destes princípios.
Os Estados-Membros que sejam igualmente membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, consertar-se-ão e manterão
os outros Estados-Membros plenamente informados. Os Estados-Membros que são membros permanentes do Conselho de Segurança das
Nações Unidas, defenderão no exercício de suas funções, as posições
e os interesses da União, sem prejuízo das responsabilidades que lhes
incumbem por força da Carta das Nações Unidas.
As missões diplomáticas e consulares dos Estados-Membros
e as delegações da Comissão nos países terceiros e nas Conferências internacionais, bem como as respectivas representações junto das
Organizações Internacionais, concertar-se-ão no sentido de assegurar
a observância e a execução das posições comuns e das ações comuns
adotadas pelo Conselho.
OUTRAS CONSIDERAÇÕES
A Comunidade tem como missão, através da criação de um
mercado comum e de uma união econômica e monetária e da aplicação das políticas ou ações comuns, promovendo em todo seu espaço,
o desenvolvimento harmonioso, equilibrado e sustentável das atividades econômicas, um elevado nível de emprego e de proteção social, a
igualdade entre homens, mulheres, um crescimento sustentável e não
inflacionista, um alto grau de competividade e de convergência dos
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comportamentos das economias, um elevado nível de proteção e de
melhoria da qualidade do ambiente, o aumento do nível e da qualidade
de vida, a coesão econômica e social e a solidariedade entre os Estados-Membros.
O Conselho adotará medidas relativa à elaboração de estatísticas, sempre que necessário, para a realização das atividades da Comunidade. A elaboração das estatísticas comunitárias far-se-á no respeito pela imparcialidade, fiabilidade, isenção científica, eficácia em
relação aos custos e pelo segredo estatístico, não devendo acarretar
encargos excessivos para os agentes econômicos.
A partir de 1º de janeiro de 1999, os atos comunitários relativos à proteção das pessoas físicas em matéria de tratamento de dados de caráter pessoal e de livre circulação desses dados passaram a
ser aplicáveis às Instituições e órgãos instituídos pelo Tratado de
Amsterdam, ou com base nele. Antes desta data, o Conselho havia
criado um órgão independente de supervisão, incumbido de fiscalizar
a aplicação dos citados atos comunitários às Instituições e órgãos da
Comunidade e tendo adotado as demais disposições o que se afigurassem adequadas.
Além das supramencionadas, o Tratado de Amsterdam alterou
também os Tratados que instituem a Comunidade Européia do Carvão
e do Aço (CECA), e a Comunidade Européia da Energia Atômica
(EURATOM).
Existem ainda alterações quanto ao Ato Relativo à Eleição dos
Representantes ao parlamento Europeu, mas até a entrada em vigor
de um processo eleitoral uniforme ou de um processo baseado em
princípios comuns, e sem prejuízo das demais disposições do presente Ato, o processo eleitoral será regulado, em cada um dos EstadosMembros, pelas disposições nacionais.
REFERÊNCIAS
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DROPA, Romualdo Flávio. Ética, política e justiça: mimeografado
1994.
DEL VECCHIO, Giorgio. Filosofia del derecho. Barcelona Libreria
Bosch/Ronda Univerdidad, 1930.
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GATTI, Vicente Paulo: A sociedade internacional. Rio de Janeiro:
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GINTNER, Luiz J. Em busca de liliput. Rio de Janeiro: Litteris Editora 1997.
MAIOR, Armando Souto. História geral. 25ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985.
MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. 15ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1984.
NOEL, Emile. As instituições da comunidade européia. Luxemburgo,
Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Européias, 1988.
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BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL
DO EMPREGADOR EM FACE DOS EMPREGADOS E A
OBRIGAÇÃO DE REPARAR OS DANOS
MARIA CLAYDE ALVES PACE
PROFESSORA UNIVERSITÁRIA. MESTRANDA E DOUTORANDA EM
DIREITO. ESPECIALISTA EM DIREITO PELA PONTIFÍCIA
UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ. ADVOGADA NO ESTADO DO
PARANÁ
RESUMO
O artigo aborda a responsabilidade civil do empregador, enfatizando a distinção
da responsabilidade subjetiva da objetiva, questionando qual das teorias seria
aplicável nos casos de pedidos de indenização por responsabilidade civil do
empregador. O tema é abordado mediante estudo do Direito Constitucional e
do Direito Civil, com análise da lei, da doutrina e da jurisprudência, culminando,
em suas conclusões, pela adoção da teoria objetiva da responsabilidade civil
quando o empregado sofrer danos decorrentes de acidentes do trabalho.
ABSTRACT
The article talks about the employer civil liability, emphasizing the distinction
between subjective and objective liability, questioning what theories would
be suitable in cases of pleading of indemnity by employer Civil Liability. The
issue is treated through a study of the Civil Law and Constitutional Law, with
an analysis of the act, of the doctrine and jurisprudence, ending with the
conclusion by the adoption of the objective theory of the Civil Liability when
the employee suffers damages because of labor related accidents
PALAVRAS CHAVE - Direito Civil; responsabilidade civil do
empregador; responsabilidade civil objetiva.
INTRODUÇÃO
A partir do advento da Constituição Federal de 1988181 , no tocante aos direitos sociais, nota-se um grande avanço legislativo em
matéria de responsabilidade civil a favor dos empregados urbanos e
rurais, com a instituição do seguro acidentário, a cargo do empregador,
sem prejuízo da indenização comum, por danos causados aos empre181
Constituição Federal no art.7º, inciso XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do
empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.
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gados, sejam patrimoniais e ou extrapatrimoniais.
É atual, na doutrina e na jurisprudência, o embate a cerca do
tema da responsabilidade civil do empregador, em face dos empregados, quando da ocorrência de danos aos últimos.
Pacífica a obrigação de indenizar quando o empregador, concorrendo com dolo ou culpa grave, causar dano ao empregado.182
A celeuma é travada sobre qual teoria – subjetiva ou objetiva –
seria a aplicável nos casos de pedidos de indenização por responsabilidade civil do empregador, do direito comum, por acidentes de trabalho.
Neste quadrante, estas breves anotações.
ACIDENTE DE TRABALHO
Estando o trabalhador atado a um contrato de trabalho e dada
a subordinação do negócio jurídico, todo e qualquer dano que advenha,
implícita ou explicitamente, deste liame poderá ser considerado acidente de trabalho.
Neste contexto, todo e qualquer evento danoso que sofra o
empregado,183 seja ou não no local de trabalho, gerará o direito a
indenização, desde que não ocorra uma das hipóteses de excludente
da culpa ou nexo de causalidade, ou seja, somente a ausência total de
culpa do patrão (em hipótese de caso fortuito ou força maior, ou de
culpa exclusiva da vítima) o desobrigará do dever de indenizar – para
a Teoria Subjetiva, ou, a total ausência de nexo de causalidade –
Teoria Objetiva.
Assim, poderá o empregado pleitear a indenização, mesmo
que o evento ocorra em tempo à disposição ou in itinere, seja em viagens a serviço do empregador; a estudo e ou a trabalho. Desde que
esteja atendendo aos interesses do empregador, ocorrendo o evento
danoso, haverá por si ou por seus herdeiros, o direito a indenização,
182
Art.159 do Código Civil - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência,
violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.
183
Art.19 a 21 da Lei 8.213/91, especialmente o art.21, inciso IV, letra “a” e “c”.
Art.21 - Equiparam-se também ao acidente de trabalho, para efeitos desta lei. IV - o acidente sofrido pelo
segurado, ainda que fora do local e horário de trabalho: a) na execução de ordem ou na realização de
serviço sob a autoridade da empresa; c) em viagem a serviço da empresa, inclusive para estudo quando
financiada por esta dentro de seus planos para melhor capacitação da mão-de-obra, independentemente
do meio de locomoção utilizado, inclusive veículo de propriedade do segurado.
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fundamentando o pedido na responsabilidade civil do empregador.184
RESPONSABILIDADE CIVIL
A responsabilidade civil é o corolário do viver gregário.
Desde os tempos mais remotos até passado próximo,185 nos
vem o preceito de direito que impõe o dever de indenizar a todo aquele
que se cause um dano ou uma ofensa. Origem no Direito Romano a
partir da Lex Aquilia.
O nosso Código Civil de 1916 manteve-se fiel à corrente
subjetivista, 186 adotando a noção de culpa, como elemento de fundo,
ao conceito de responsabilidade civil contratual ou extracontratual,
modernamente, extrapatrimonial ou dano moral.
A responsabilidade civil se assenta em três pressupostos, segundo a teoria clássica: um dano, a culpa do autor do dano e a relação
de causalidade entre o fato culposo e o mesmo dano187
Este, o fundamento da Teoria Clássica, advindo da evolução do
direito romano ao direito francês, notadamente, no Código de
Napoleão,188 aprimorando a concepção romana, a partir da Lex Aquilia.
A responsabilidade civil que gera o dever de indenizar decorre
da violação de um dever geral de não lesar, por ação ou omissão, que
o agente, por lei ou por contrato, detinha o poder de evitar a ofensa ao
patrimônio jurídico de outrem.
184
STF SÚMULA 229. A indenização acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa
grave do empregador.
185
NORONHA. Carlos Silveira. A responsabilidade de indenizar nas situações de perigo. Ajuris v.62
“Declaração das Liberdades Públicas, que embora tenha seus primeiros raios de luz na Idade Média com
a Magna Carta de 1215 e em outras manifestações do direito inglês, só veio efetivamente formalizar-se
na França, com a então chamada “Declaration des Droits de L’Homme et du citoyen”promulgada aos 2708-1789. Deste marco histórioco-formal, expandiu-se universalmente, passando para as Constituições
modernas e culminando com a Declaração dos Direitos do Hoem, pela ONU, em 10-12-48”
186
Apud NORONHA, ob.cit.pg.79. O nosso Código Civil, editado em 1916, a par de sofrer o influxo da
doutrina positivista que dominava o mundo das idéias filosóficas, notadamente nas Escolas de Recife e
São Paulo, e ainda influenciado pelos ideais liberais que na época estavam presentes na consciência de
homens de ciência e políticos, adota, como regra geral para a reparação de danos, a teoria da culpa,
como deflui da própria redação do art.159. Essa é a culpa aquiliana a que LIMONGI FRANÇA prefere
chamar responsabilidade aquiliana, que é definida por COLEHO DA ROCHA como “a omissão indeliberada
da diligência devida”, ou , como ensina SAVATIER: “ culpa é a violação (intencional ou não) de um dever
que o agente tinha possibilidade de conhecer e observar”.
187
BESSON.André. La notion de garde dans la responsabilité du fair des choses. Paris, Dalloz,1927.p.5.
188
Arts.1.382 e 1.383.
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146
O fundamento da responsabilidade civil, para a Teoria Clássica,
é a culpa.
TEORIA SUBJETIVA
A partir da Lex Aquilia, em Roma, operou-se mudanças no
quadrante da responsabilidade civil, passando-se a esboçar a idéia da
culpa, e dela surgem os primeiros passos para a formação da teoria
subjetiva baseada no elemento culpa.
Verifica-se a partir destas concepções, que o dever de indenizar os danos causados a outrem tem, a partir de Roma, o conceito de
reparação e não mais punição.
Passa-se, também, a desvincular a idéia de crime e a tomar
corpo a concepção da responsabilidade extracontratual e responsabilidade civil contratual.
Para a teoria subjetiva, somente haverá o dever de indenizar
se o causador do dano agir com culpa ou dolo.
Com efeito, para a teoria subjetivista, apenas cabe perquirir da
subjetividade do causador do evento danoso, se quis o resultado ou
atuou com negligência, imprudência ou imperícia.
Nesta esteira, os óbices para a ação da vítima é de grande
monta, pois acaba ela, isoladamente, suportando o ônus da prova,
muitas vezes de difícil realização.
A Lei de Acidente do Trabalho e dos Riscos das Atividades Nucleares tratam da inversão do ônus da prova, bastando no primeiro caso,
a comprovação do dano e o nexo de causalidade e no segundo caso,
provar-se-á apenas o acidente nuclear.
Em se tratando de responsabilidade civil do empregador, o
art.1.521,III do CCB, normatiza a presunção da culpa do empregador,
por atos praticados pelo empregado, no exercício do trabalho189 , causados a terceiros.
Concorrendo o empregador com culpa, mesmo que levíssima,
no evento danoso sofrido pelo empregado, será civilmente obrigado a
189
Art.1.521. São também responsáveis pela reparação civil:
III – o patrão, amo ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho
que lhes competir, ou por ocasião dele (art.1.522).
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
147
indenizar, eis que o legislador Constituinte e o Código Civil não tratam
dos graus da culpa.
Neste sentido é pacífica a jurisprudência que ora colacionamos
a título de ilustração ao estudo ora em curso.
Ementa IOB nº 15154 - caderno3/2/99-pág.27 - RESPONSABILIDADE CIVIL - ACIDENTE AÉREO - TRANSPORTE DE TRABALHADORES POR HELICÓPTERO - PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA CÓDIGO CIVIL - APLICAÇÃO.
Íntegra do voto do relator para o acórdão:
“ Não há que se confundir acidente decorrente de transporte de trabalhadores, ainda que por helicóptero, com transporte aéreo - acidente de vôo.
Embora sutil a diferença, não há dúvida que na hipótese tendo
o empregador escolhido esse tipo de transporte, tinha o dever de assegurar a incolumidade física de seus transportados, do local de origem até o destino.(grifamos).
A sua responsabilidade seria a mesma se tivesse escolhido
outro tipo de transporte, como lancha, navio ou até mesmo avião.(...)”
Ementa IOB nº 15549 - caderno3/10/99-pág.236 RESPONSABILIDADE CIVIL - ACIDENTE DO TRABALHO - MENOR - EMPREGADOR - CULPA “IN VIGILANDO” - INDENIZAÇÃO
DEVIDA.
“ Indenização - Acidente do Trabalho - Menor - Empregador - Culpa
“in vigilando” - Se o patrão permite que criança de apenas 12 anos
trabalhe próximo a máquina de alta periculosidade e execute tarefas a esta ligadas, é culpado por acidente sofrido pelo menor, residindo o nexo causal em sua atitude imprudente, ensejadora da perda do braço da criança, pouco importando o fato do pai da vítima
estar nas imediações, uma vez que é do empregador a obrigação
de exercer vigilância sobre os empregados e de bem distribuir as
tarefas” (Ac.una da 6ª C Civ. do TA MG - Ac 251.9633-5-Rel.Juiz
Belizário de Lacerda - j 10.08.98 - DJ MG 08.04.99,pp 16/7- ementa
oficial). (grifamos)
Fundamentado o pedido de indenização por acidente do traRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
148
balho em face da Previdência Social, a posição majoritária da doutrina
e da jurisprudência e a adoção da Teoria Objetiva, dada a Lei da
Infortunística.
Com efeito, a defesa da pessoa humana acidentada é corolário
dos direitos fundamentais e decorre da Lei a aplicação da Teoria Objetiva.
Porém, quando o pedido de indenização se dirige ao empregador, fundada na responsabilidade civil comum, a doutrina predominante
ainda é a da adoção da Teoria da Culpa190 , imputando ao empregado
vítima, o ônus da comprovação do dano, do nexo de causalidade e da culpa do patrão, na contra-mão da evolução da Teoria Geral da Responsabilidade Civil que caminha para a adoção da Teoria Objetiva.
Porém este posicionamento vem mudando gradativamente em
nossos Tribunais, dado o avanço da doutrina majoritária que pugna pela
190
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, apud GONÇALVES ob. cit. Refere que em artigo publicado na
RT,662:10, n.5, o Emérito Professor considerou o art.7º,XXVII, da nova Carta “uma grande e fundamental
inovação, pois, como ele, a responsabilidade civil do patrão caiu totalmente no regime do Código Civil.
Não se cogita mais do tipo de culpa para impor o dever de reparar o dano regulado pelo Direito Comum.
Qualquer que seja, portanto, o grau de culpa, terá o empregador de suportar o dever indenizatório,
segundo regras do Direito Civil, sem qualquer compensação com a reparação concedida pela Previdência
Social. Somente a ausência total de culpa do patrão(em hipótese de caso fortuito ou força maior, ou de
culpa exclusiva da vítima) é que o isentará da responsabilidade civil concomitante à reparação
previdenciária.” Aduziu ainda, que a “existência, enfim, de culpa grave ou dolo, até então exigida pela
jurisprudência para condicionar a responsabilidade civil paralela à indenização acidentária, foi inteiramente
abolida nos termos da inovação trazida pelo art.7º,XXVIII, da Constituição Federal. Qualquer falta cometida
pelo empregador, na ocasião de evento lesivo ao empregado, acarretar-lhe-á o dever indenizatório do
art.159 do CC, mesmo as levíssimas, porque ‘ IN LEGE Aquilia et levíssima culpa venit’ “.
(...) É essencial que ele tenha agido com culpa: por ação ou omissão voluntária, por negligência ou
imprudência, como expressamente se exige no art.159 do Código Civil. Agir com culpa significa atuar o
agente em termos de, pessoalmente, merecer a censura ou reprovação do direito. E o agente só pode ser
pessoalmente censurado, ou reprovado na sua conduta, quando em face das circunstâncias concretas da
situação, caiba afirmar que ele podia e devia ter agido de outro modo.
(...) O prejuízo de reprovação próprio da culpa pode, pois, revestir-se de intensidade variável,
correspondendo à clássica divisão da culpa em dolo e negligência, abrangendo esta última, hoje, a
imprudência e a imperícia. Em qualquer das suas modalidades, entretanto, a culpa implica a violação de
um dever de diligência, ou, em outras palavras, a violação do dever de previsão de certos fatos ilícitos e
de adoção das medidas capazes de evitá-los. O critério para aferição da diligência exigível do agente,
e, portanto, para caracterização da culpa, é o da comparação de seu comportamento com o do homo
medius, do homem ideal, que diligentemente prevê o mal e precavidamente evita o perigo. A culpa strictu
sensu é também denominada culpa aquiliana.
(...) O Código Civil, entretanto, não faz nenhuma distinção entre dolo e culpa, nem entre os graus de
culpa, para fins de reparação do dano. Tenha o agente agido com dolo ou culpa levíssima, existirá
sempre a obrigação de indenizar, obrigação esta que será calculada exclusivamente sobre a extensão
do dano. Em outras palavras, mede-se a indenização pela extensão do dano e não pelo grau de culpa.
Adotou o legislador a norma romana, segundo a qual a culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar(in
lege Aquilia et levíssima culpa venit).Assim, provado o dano, deve ser ele ressarcido integralmente pelo
seu causador, tenha agido com dolo, culpa grave ou mesmo gravíssima.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
149
adoção da Teoria Objetiva ou do Risco Criado ou do Risco Proveito191 .
A evolução passa pela inexigência da prova da subjetividade
do ato da vontade, culpa lato ou strictu senso para a teoria da assunção
dos riscos da atividade do empregador.
Assim libera-se a vítima do ônus da prova da subjetividade –
culpa – devendo apenas se desincumbir da prova do dano e do nexo
de causalidade.
TEORIA OBJETIVA
Nos dizeres de Carlos Alberto Bittar192 todo aquele assume o
risco da atividade que desenvolve, tem o dever de indenizar os danos
que causar a esfera jurídica de outrem.
A transformação do enfoque da idéia da culpa para a do risco
tanto na doutrina quanto na jurisprudência tem suas causas na evolução industrial, social, econômica e tecnológica, especialmente após a
II Guerra Mundial, ante as descobertas científicas e inventos tecnológicos
visando a preservação do SER, quando afetado pela invasão danosa
de outrem.
191
GONÇALVES.Carlos Roberto, Responsabilidade Civil. Ed.Saraiva.5ª Ed. Pg. 18 especialmente a 29 e
seguintes. Nota-se um grande avanço em termos de legislação, pois admitiu-se a possibilidade de ser
pleiteada a indenização pelo direito comum, cumulável com a acidentária, no caso de dolo ou culpa do
empregador, sem fazer qualquer distinção quanto aos seus graus de culpa.
O avanço, no entanto, não foi completo, adotada apenas a responsabilidade subjetiva, que condiciona
o pagamento de indenização à prova de culpa e ou dolo do empregador, enquanto a indenização
acidentária e securitária é objetiva. Os novos rumos da responsabilidade civil, no entanto, caminham no
sentido de considerar OBJETIVA a responsabilidade das empresas pelos danos causados aos
empregados, cabendo a estes somente a prova do dano e do nexo causal.
Estes dois requisitos não podem ser dispensados. Já se decidiu, com efeito, ser incabível a indenização
se não demonstrado que a vítima se encontrava em serviço e que tivesse se dirigido ao estabelecimento
comercial a mando ou no interesse da empresa, embora tivesse se apossado de trator desta para seu
transporte pessoal(RT,608:98)
192
BITTAR.Carlos Alberto, Responsabilidade Civil Teoria & Prática, Ed.Forense Universitária -1ªediçãoano 1989, ps..30 e 31.Com efeito, na teoria da culpa(ou “teoria subjetiva”), cabe perfazer-se a perquirição
da subjetividade do causador a fim de demonstra-se, em concreto, se quis o resultado(dolo), ou se
atuou com imprudência, imperícia ou negligência(culpa em sentido estrito). A prova é, muitas vezes, de
difícil realização, criando óbices, pois, para a ação da vítima, que acaba, injustamente, suportando os
respectivos ônus. Daí, o avanço representado pela teoria do risco “ou “teoria objetiva”), em que basta a
simples causação (causalidade extrínseca), sem cogitação da intenção do agente. (...) Assim, passouse da exigência de ato de vontade, contrário à ordem jurídica - com base no princípio do neminem
laedere - à admissão do risco, introduzido na sociedade pelo exercício de atividades perigosas, como
esteio para a responsabilização do agente. De uma conduta antijurídica chegou-se a ação legítima, mas
perigosa, na teoria em análise, com a aplicação do princípio do ubi emolumentum,ibi ius ( ou ibi onus),
de conformidade com a qual a pessoa que retira proveito dos riscos criados, deve arcar com as
respectivas conseqüências.”
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
150
Para uma grande gama de eventos danosos, o sistema da responsabilidade civil clássica tornou-se insuficiente para o devido ressarcimento.
A Teoria Objetiva, nos dizeres de Noronha193 , despreza o individualista e o liberalismo da teoria clássica para privilegiar o homem no
contexto de parte de uma coletividade em confronto com as individualidades que o cercam.
Enquanto a teoria clássica fundamenta-se na culpa do agente,
a responsabilidade objetiva vem hasteada na idéia de risco da atividade e na vantagem obtida com esta.
O fundamento da Teoria Objetiva está na assunção do risco
ou vantagem que, no caso em estudo, o empregador assume pela
atividade que desenvolve expondo a risco e causando danos,
patrimonial ou extrapatrimonial, a seus empregados.
Seja por exposição do empregado a agentes nocivos e ou agressivos prejudiciais à saúde deste, seja por acidente de trabalho, in itinere
ou não, seja por doença profissional que seja equiparada a acidente de
trabalho, tem o empregador o dever de indenizar quando ocorre o dano.
Pela Teoria Objetiva, o empregado deve provar apenas o dano
e o nexo de causalidade, ou seja, que aquele dano adveio do exercício
da função ou por atividade direcionada para uma vantagem ao empregador.
Não se cogita da idéia da culpa e sim da idéia do risco-criado
ou risco-proveito, pois todo aquele que tira proveito da atividade que
desenvolve e se a bem dela ocorre um dano, e neste caso, o empregador é que detém a vantagem da atividade que desenvolve, ou seja, a
lucratividade, tem o dever social de indenizar pelas regras da
responsabilização civil.
Neste sentido, Caio Mário Pereira da Silva194 pois a Teoria do
193
NORONHA, ob.cit.pg.80/A e 81. Em suma, enquanto a responsabilidade subjetiva esteia-se na culpa
do agente, a responsabilidade objetiva baseia-se no risco. E nesta o pólo divisor encontra-se na própria
natureza da atividade executada pelo agente, cuja distinção se opera no sentido de ser ou não de
caráter perigoso o obrar do agente, o que se verifica em face da sua natureza ou pelos meios empregados
para obter o resultado.
194
PEREIRA. Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, 13ª edição-Editora Forense, ano 1992,
págs.459 a 461 “Foi sob a inspiração de idéias que têm seguido esta linha de orientação, que nasceu a
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
151
Risco está fundada no princípio de solidariedade social eis que a vítima
não pode suportar o ônus de seu sofrimento por dano que não causou
ou não contribuiu.
No mesmo diapasão a SÚMULA STJ – 37 - São cumuláveis as
indenizações por dano material e moral oriundos do mesmo fato.
Colacionamos, a título de contribuição, alguns julgados que
apontam para a evolução da adoção da Teoria Subjetiva para a da
Teoria Objetiva:
chamada teoria da responsabilidade objetiva. Em verdade, a culpa, como fundamento da
responsabilidade civil, é insuficiente, pois deixa sem reparação danos sofridos por pessoas que não
conseguem provar a falta do agente. O que importa é a causalidade entre o mal sofrido e o fato
causador, por influxo do princípio segundo o qual toda pessoa que cause a outra um dano está sujeita
à sua reparação, sem necessidade de se cogitar do problema da imputabilidade do evento à culpa do
agente. O fundamento ético da doutrina está na caracterização da injustiça intrínseca, que encontra os
seus extremos definidores em face da diminuição de um patrimônio pelo fato do titular de outro patrimônio.
Ante uma perda econômica, pergunta-se qual dos dois patrimônios deve responder, se a vítima ou do
causador do prejuízo. E, na resposta à indagação, deve o direito inclinar-se em favor daquela, porque
dos dois é quem não tem o poder de evitá-lo, enquanto que o segundo estava em condições de retirar
um proveito, sacar uma utilidade ou auferir um benefício da atividade que originou prejuízo. O fundamento
da teoria é mais humano do que o da culpa, e mais profundamente ligado ao sentimento de solidariedade
social. Reparte, com maior dose de eqüidade, os efeitos dos danos sofridos, atendendo a que a vida em
sociedade se tornou cada vez mais complexa, e o progresso material a todo instante aumenta os riscos
a que estão sujeitos os indivíduos. No campo objetivista situa-se a teoria do risco proclamado ser de
melhor justiça que todo aquele que disponha de um conforto oferecido pelo progresso OU QUE REALIZE
UM EMPREENDIMENTO PORTADOR DE UTILIDADE OU PRAZER, DEVE SUPORTAR OS RISCOS A QUE
EXPONHA OS OUTROS. CADA UM DEVE SOFRER O RISCO DE SEUS ATOS, SEM COGITAÇÃO DA
IDÉIA DA CULPA, E, PORTANTO, O FUNDAMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DESLOCA-SE DA
NOÇÃO DE CULPA PARA A IDÉIA DE RISCO. Ao entendê-lo, os doutrinadores o encaram ora como
RISCO-PROVEITO, que se funda no princípio, segundo é reparável o dano causado a outrem em
conseqüência de uma atividade realizada em benefício do responsável. ( ubi emolumentun, ibi onus); ora
mais genericamente como RISCO-CRIADO, a que se subordina todo aquele que, sem indagação de
culpa, EXPUSER ALGUÉM A SUPORTÁ-LO.
(...)
A teoria da culpa, em nosso direito, continua a ser fundamental na definição da responsabilidade civil,
com os alargamentos que a jurisprudência lhe tem trazido.
Não se pode, contudo, dizer que a teoria do risco haja sido relegada. sua aceitação, limitada embora, é
uma realidade admitida no direito moderno, e que o nosso sistema acolhe francamente em alguns casos,
expressamente tratados na lei, em que o dever de reparação abandona totalmente a noção de culpa,
para fixar-se na idéia do risco, ou na definição pura e simples da responsabilidade sem culpa. Em futuro,
entretanto, é de se prever o desenvolvimento do princípio da responsabilidade para além da culpa.
Onde encontra mais sólido supedâneo entre nós, é na legislação quanto a acidentes do trabalho, cujo
raciocínio básico esta neste princípio: todo aquele que se serve da atividade alheia, e dela aufere
benefícios, responde pelos riscos a que expõe quem lhe presta aquela atividade. DAÍ A REGRA QUE
OBRIGA O PATRÃO A INDENIZAR OS ACIDENTES NO TRABALHO, SOFRIDOS POR SEUS EMPREGADOS,
definindo-se como acidente qualquer lesão corporal, perturbação funcional ou doença, que cause a
morte ou a perda total ou parcial, temporária ou permanente, da capacidade para o trabalho. Ninguém
cogita da culpa do patrão, QUE É SEMPRE OBRIGADO À REPARAÇÃO DO DANO SOFRIDO PELO SEU
EMPREGADO, POR OCASIÃO DO TRABALHO.” (grifos nossos).
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
152
ACIDENTE DO TRABALHO - ACIDENTE “IN ITINERE” - FATO
OCORRIDO DURANTE EXCURSÃO PROMOVIDA PELA EMPRESA EM DIA DE FOLGA POR ELA CONCEDIDO AOS EMPREGADOS - INFORTÚNIO CARACTERIZADO.
O Acidente sofrido pelo empregado, ainda que fora do local e horário
de trabalho, estando ele na prestação espontânea de qualquer serviço à empresa para lhe proporcionar proveito, deve ser equiparado
como acidente de trabalho, para fins de concessão dos previstos na
lei acidentária (Ap.Sum.143.944, 3ª Câm.,Rel.Juiz Murilo Pinto,
j.22.2.1983, JTACSP, Ed. Lex, 81:248).
ACIDENTE DO TRABALHO - ACIDENTE “IN ITINERE” - EVENTO
OCORRIDO EM VIAGEM A SERVIÇO DA EMPRESA - CARACTERIZAÇÃO.
Os acidentes ocorridos fora do local e horário de trabalho são alcançados pela lei Infortunística sempre que o empregado lá se encontra por exigência de sua atividade laborativa. Vale dizer, será tido
como acidente do trabalho o evento que, envolvendo o trabalhador,
possa ligar-se, ainda que indiretamente, aos interesses do
empregador.(EI 162.143, 4ª Câm.,Rel.Juiz Accioli Freire, j.7-8-1984,
JTACSP, Revista dos Tribunais, 93:330).
ACIDENTE DO TRABALHO - ACIDENTE IN ITINERE - EVENTO
OCORRIDO EM VIAGEM PARA A CIDADE ONDE TRABALHAVA CARACTERIZAÇÃO.
Tendo o obreiro que assumir sua função em cidade diversa da que
reside, configura acidente in itinere o evento ocorrido durante a viagem, sobretudo envolvendo o veículo da empresa que o transportava( Ap.s?Ver.250.969, 1ª Câm.Rel.Juiz Quaglia Barbosa, j.22-111989, JTACSP, Revista dos Tribunais, 123:336).
ACIDENTE DO TRABALHO - ACIDENTE IN ITINERE - PROVA TESTEMUNHA - COMPROVAÇÃO DO ACIDENTE - NÃO COMUNICAÇÃO AO INPS - IRRELEVÂNCIA.
Havendo prova oral positivando a existência do atropelamento do
trabalhador quando este saía do seu serviço, considera-se comprovado o acidente in itinere, sendo que a falta da comunicação deste
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
153
não pode ser interpretada contra o obreiro(Ap.Sum.198.200, 5ª
Câm.,Rel. Juiz Sebastião Amorim, j.8.7.1987).
ACIDENTE DO TRABALHO - MORTE - EVENTO OCORRIDO ESTANDO OBREIRO A SERVIÇO DA EMPREGADORA - CARACTERIZAÇÃO.
Caracteriza-se como acidente do trabalho a morte do obreiro ocorrida quando este se encontrava viajando, a serviço da empregadora
(Ap.Sum.191.242, 7ªCâm.Juiz Boris Kauffmann, j.24-6-1986.
( TST,RR 101.373/93.0 José Francisco da Silva, Ac.2ª T. 3.402/94).
”Os riscos da atividade econômica devem ser assumidos pelo empregador, sendo vedada a sua transferência, pura e simplesmente,
ao empregado. A responsabilidade por um ato qualquer não pode
ser atribuída abstratamente. A empresa deve provar que o dano foi
causado pelo empregado.”
CONCLUSÃO
Como dito, não se pretendeu estudo aprofundado sobre o
tema e sim breve anotações.
Conclui-se que, hodiernamente, tanto a doutrina quanto a jurisprudência caminham para a adoção da Teoria Objetiva quando o
empregado sofrer qualquer dano seja em trajeto destinado a caminho
da empresa, seja por viagens, em estudo ou a trabalho, aos interesses
dela, deve o empregador indenizar fundado na teoria do risco-criado
ou risco –proveito como se disse alhures.
Importante ressaltar que a Teoria Objetiva é mais justa, no atual contexto humanitário, para o ressarcimento, à pessoa humana, dos
danos que sofreu e não contribuiu para o evento dolosamente.
A inversão do ônus da prova, pela culpa presumida do empregador, é de suma importância na proteção do pólo mais fraco, o empregado, eis que, no mais das vezes, a prova da culpa é impossível
dada a subjetividade dos atos de vontade do empregador.
Encerrando estas breves anotações fica o convite para reflexão.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
154
REFERÊNCIAS
NORONHA. Carlos Silveira. in a responsabilidade de indenizar nas
situações de perigo. Ajuris v.62.
BESSON.André. La notion de garde dans la responsabilité du fair
des choses. Paris, Dalloz,1927.p.5.
GONÇALVES.Carlos Roberto, Responsabilidade Civil. Ed.Saraiva.5ª
Ed. Pg. 18 especialmente a 29 e seguintes.
BITTAR.Carlos Alberto, Responsabilidade Civil Teoria & Prática,
Ed.Forense Universitária -1ªedição-ano 1989, ps..30 e 31.
PEREIRA. Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, 13ª edição-Editora Forense, ano 1992, págs.459 a 461.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
155
CONFLITO APARENTE DE NORMAS E ART. 10 DA LEI
N° 9.437/97
RUDI RIGO BÜRKLE
PROMOTOR DE JUSTIÇA NO ESTADO DO PARANÁ. MESTRANDO EM
CIÊNCIAS JURÍDICAS [ FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO ] PELA
UNIVALI [ ITAJAÍ - SC ].
RESUM0
O artigo cuida da questão do aparente conflito de normas decorrente da Lei
nº 9.437/97, principalmente no que diz respeito à falta de critério objetivado
na legislação para a solução de tal conflito, já que a criação em torno do
instituto é meramente doutrinária e jurisprudencial. O autor aborda princípios
como o da alternatividade, o da especialidade, o da subsidiariedade e o da
consunção. Estudando a jurisprudência, conclui o autor pela não
caracterização de conflito aparente de normas, afirmando que o delito tipificado
no artigo 10 da Lei 9.437/97 deverá ser objeto de sanção autônoma como
regra e, excepcionalmente, quando descrito em algum outro tipo penal como
elementar ou circunstância do delito, deverá estar sujeito aos primados do
conflito aparente de normas e, por conseqüência, não será objeto de sanção,
restando absorvido.
ABSTRACT
The article takes care of the apparent conflict of rules coming from the Act #
9.437/97 , mainly about the lack of criteria goaled in statutes for the solution
of such conflict, since the creation about the institute is only doctrinaire and
jurisprudential. The author talks about some principles: the alternatively
principle, skill one, subsidiary and weakly principles.
Studying the
jurisprudence, the author concludes there is no characterization of apparent
conflict of rules, saying that the specific crime in article 10 from Act # 9.437/
97 must be object of autonomous sanction as a rule and, exceptionally ,
when described in another specific penal as elementary or circumstance of
crime , must be under the priority of apparent conflict of rules , and, as a
consequence , it won’t be object of sanction , being acquitted.
PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; conflito de normas; princípios de
Direito Penal.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Com a promulgação da Lei n° 9.437/97, retomou-se o debate
sobre o conflito aparente de normas, ou melhor, ganhou novo fôlego a
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
156
discussão, tendo em vista que os casos mais comuns de sua aplicação
estavam diretamente ligados ao instrumento do crime e, em especial,
as armas de fogo, pois que sempre teve regulamentação própria seu
porte e registro, assim como também sempre fora grande a preocupação das autoridades públicas em restringir o acesso dos cidadãos a
esses armamentos.
E foi exatamente essa preocupação com a segurança pública
que trouxe a lume novas discussões sobre a regulamentação da propriedade e porte de armas de fogo, na qual alguns sustentam a necessidade da proibição plena de propriedade e porte; outros, preocupados com
o aumento da violência pessoal, afirmam que se deveria possibilitar o
acesso de determinados cidadãos às armas de fogo, em razão, principalmente, de sua atividade, para segurança individual; e outros, ainda,
mais céticos e conscientes da ineficiência estatal em garantir a segurança pública, buscam a liberação ampla das armas de fogo.
Porém não é essa a abordagem que se pretende no presente
texto, busca-se, situar juridicamente, o resultado da reforma legislativa,
verificar qual deverá ser o alcance da norma que criminalizou a propriedade e o porte ilegal de arma de fogo, até então considerada apenas
contravenção penal, e a apenou mais severamente, prevendo a aplicação de pena privativa de liberdade de 1 (um) a 4 (quatro) anos de
reclusão.
De várias formas o tema já fora abordado após a entrada em
vigor da Lei n° 9.437/97, algumas, a meu ver, fogem diretamente do
problema, por exemplo, afirmando que não é necessário enfrentar o
conflito aparente de normas porque se pode e deve punir a conduta no
momento em que somente está a ocorrer o delito tipificado no art. 10
da referida lei195 e, no segundo momento, as demais condutas, portanto, desvinculando os atos antecedentes dos conseqüentes; enquanto
outros apenas o contornam, pois não analisam o próprio conflito de
normas, apenas qual das espécies entendem cabíveis ao caso, como
195
Lei 9.437/97
Art. 10 - Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter
em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob
guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação
legal ou regulamentar. Pena - detenção de um a dois anos e multa.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
157
se o instituto fosse regulamentado.
Conflito aparente de normas
Em se buscando enfrentar o tema, é preciso ressaltar, inicialmente, que não há critério objetivado na legislação para solução do conflito aparente de normas, a criação em torno do instituto é meramente
doutrinária e jurisprudencial, o que exige, portanto, que se faça uma revisão conceitual do instituto, inclusive o diferenciando do concurso de crimes que é exatamente o seu revés.
Pois, como bem ensina Damásio E. de Jesus, “a ordem jurídica,
constituída de distintas posições, é ordenada e harmônica. Algumas leis
são independentes entre si, outras se coordenam de forma que se integram ou se excluem reciprocamente. Não raro, precisa o intérprete resolver qual das normas do ordenamento jurídico é aplicável ao caso e
deverá fazê-lo para que torne o ordenamento completo196 .
Assim, é necessário definir se o que ora se perscruta é uma
situação que se “subsume efetivamente em diversos tipos penais concurso de crimes, ou se, ao revés, existe uma unidade típica que a
obriga, embora aparentemente haja uma concorrência de tipos legais
para a adequação”197 - concurso aparente de normas.
Refere Nelson Hungria: “Ou o fato, apesar de unitário no seu
processo material, é idealmente fragmentável, de modo que, considerado em suas partes representa violação concomitante de normas distintas e autônomas (concurso formal de crimes), e então não há falar-se
em conflito, pois todas as normas violadas têm aplicação simultânea
(embora unificadas as penas, segundo o chamado “cúmulo jurídico”); ou
o fato incide sob várias normas, mas estas apresentam entre si uma tal
relação de dependência ou hierarquia, que só uma delas é aplicável,
ficando excluídas ou absorvidas as outras”198 .
Ou ainda como lecionado por outros doutrinadores, de que tanto
no concurso aparente como no concurso formal, um mesmo fato está
conforme com dois tipos legais. No entanto, enquanto no concurso aparente as diversas partes do fato, correspondente, aos dois tipos legais
196
DE JESUS, Damásio E., Conflito Aparente de Normas, RT 415, maio 1970, p. 26;
PEDROSO, Fernando de Almeida, Conflito Aparente de Normas Penais, RT 673, p. 291/303;
198
HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal, pp. 118/119;
197
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158
são as mesmas, no concurso formal uma parte do fato corresponde igualmente aos tipos legais, e as outras partes do fato se conformam uma a
um tipo legal e a outra a outro. Quer dizer, no concurso formal as duas
disposições tomam em consideração uma mesma parte do fato, e, além
disso, cada uma distinta parte do fato mesmo.
Damásio E. de Jesus bem sintetiza o tema ao afirmar que dois
são os pressupostos da concorrência de normas: “1ª - a unidade de
fato; 2ª - pluralidade de normas identificando o mesmo fato como
delituoso” e que inexistindo qualquer deles, não há conflito aparente de
normas.199
Princípios norteadores do conflito aparente de normas
Para que, no entanto, haja melhor compreensão do conflito
aparente de normas, faz-se necessário o estudo dos princípios que o
norteiam, elencados, pela maioria da doutrina em número de quatro; o
da alternatividade, o da especialidade, o da subsidiariedade e o da
consunção.
O princípio da especialidade tem por base o aforismo “lex
specialis derogat generali, semper specialia generalibus insunt; generi
per speciem derogatur”. “Há relação de especialidade entre tipos legais delitivos sempre que um deles, comparado com o outro, contiver
os mesmos elementos descritivos e circunstâncias essenciais, com a
adição, porém, de outros caracteres, chamados elementos
especializantes. Estabelece-se, de tal arte, a correlação entre tipo geral e tipo especial, envergando este todas as características daqueles,
contudo com acréscimos especiais”200 .
Citam-se como exemplos da relação de especialidade: o
infanticídio (art. 123) em relação ao homicídio (art. 121); estupro (art.
213) em relação ao constrangimento ilegal (art. 146); peculato (art. 312)
em relação a apropriação indébita (art. 168)...(todos do Código Penal
Brasileiro).201
199
DE JESUS, Damásio E., Conflito Aparente de Normas, RT 415, maio 1970, p. 26;
PEDROSO, Fernando de Almeirda, Conflito Aparente de Normas, RT 673. p. 293. Nov. 1991;
201
Código Penal Brasileiro:
Art. 121 - Matar alguém:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após:
200
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
159
Já pelo princípio da subsidiariedade, “a norma primária prefere
a subsidiária. Esta é a que pré-figura como crime um fato que outra norma inclui na previsão legal de delito mais grave, como circunstância qualitativa, agravante ou meio prático do proceder. ‘Lex primaria derogat
legi subsidiariae’. O delito contemplado pela norma subsidiária não só
é menos grave do que disposto na principal, mas dele difere quanto ao
modo de execução, pois corresponde a uma parte desta. Nessas condições, a figura subsidiária está inclusa na principal”. 202
A subsidiariedade pode ser expressa, quando declarada formalmente em lei (ex.: arts. 238, 239, 249, 307, todos do Código Penal
Brasileiro) ou tácita, quando a norma não condiciona taxativamente à
insubsistência do delito principal [ex. o crime de dano (art. 163) é subsidiário do furto qualificado (art. 155, § 4º, I)...] (todos artigos citados
do Código Penal Brasileiro)203.
Pena - detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido,
por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que
ela não manda:
Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa;
Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou
particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
202
STEVENSON, Oscar. Conflito Aparente de Normas, Rev. Forense, p. 31;
203
Código Penal Brasileiro:
Art. 121 - Matar alguém: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
Art. 129 - Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1
(um) ano.
Art. 130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia
venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um)
ano, ou multa.
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: § 4º - A pena é de reclusão de 2 (dois) a
8 (oito) anos, e multa, se o crime é cometido: I - com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração
da coisa;
Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou
multa.
Art. 238 - Atribuir-se falsamente autoridade para celebração de casamento: Pena - detenção, de 1 (um)
a 3 (três) anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Art. 239 - Simular casamento mediante engano de outra pessoa: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três)
anos, se o fato não constitui elemento de crime mais grave.
Art. 249 - Subtrair menor de 18 (dezoito) anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em
virtude de lei ou de ordem judicial: Pena - detenção, de 2 (dois) meses a 2 (dois) anos, se o fato não
constitui elemento de outro crime.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
160
O princípio da alternatividade, ao contrário do que pensam alguns, incidirá no caso de concorrerem normas idênticas e não normas
que se opõem, porque aí bastaria recorrer à tipicidade para solução do
problema. Para reconhecê-lo é necessário que os valores assegurados pelas regras que concorrem sejam equivalentes.
Exemplificando, para melhor compreensão, podemos dizer que
são “absolutamente iguais, do ponto-de-vista fático e jurídico, a tentativa
de homicídio ou lesão corporal com dolo eventual e os crimes de perigo
concreto consumados do art. 130 e s.s. do Código Penal Brasileiro. Quem
quer causar perigo concreto à vida ou à saúde de alguém está assumindo o risco de praticar os crimes do art. 121 ou do art. 129 da legislação
penal pátria”.204 205
Já pela regra da consunção, “lex consumens derogat legi
consumptae”, ocorre uma continência de tipos, restando alguns tipos
absorvidos e consumidos por outros, denominados consuntivos, dentro de uma linha evolutiva ou de fusão, que os condensa numa relação
de continente e conteúdo.
“Pelo princípio da consunção ou absorção a norma definidora
de um crime, cuja execução atravessa fases em si representativas do
delito previsto em outra, exclui, por absorção, a aplicabilidade desta,
bem como de outras que incriminem fatos anteriores e posteriores do
agente, efetuados pelo mesmo fim prático”. 206
Exemplo da relação consuntiva é a absorção do delito tentado
pelo consumado ou do furto qualificado (art. 155, § 4º, I) pelo delito de
dano (art. 163),todos artigos do Código Penal Brasileiro207 .
Art. 307 - Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou
alheio, ou para causar dano a outrem: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa, se o
fato não constitui elemento de crime mais grave.
204
Código Penal Brasileiro:
Art. 121 - Matar alguém: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
Art. 129 - Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.
205
ROSA, Fábio Bittencourt da, Conflito Aparente de Normas, RT 537, julho 1990, p. 252;
206
STEVENSON, Oscar. Conflito Aparente de Normas, Rev. Forense, p. 31;
207
Código Penal Brasileiro:
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
§ 4º - A pena é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, se o crime é cometido:
I - com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;
Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:
Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
161
Vê-se, portanto, necessário para o reconhecimento da
consunção que o crime-meio integre ou seja caminho para o crime-fim
e que também esse crime-meio possa ser identificado nas elementares ou demais circunstâncias do crime-fim, ou seja, haja uma direta
relação entre ambos, tanto o é, que alguns autores não lhe reconhecem “substantividade própria e distinta do da especialidade e
subsidiariedade, porque os casos que envolve podem todos enquadrarem-se em um ou outro desses critérios”. 208
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não sendo o porte ilegal de arma de fogo elementar ou circunstância de outro crime, consumado ou tentado, em que pese possa, se o
reconhecer como crime-meio, uma vez praticado no desfecho dos fatos
que culminaram com o delito, não se o poderá considerar absorvido e,
portanto, não há carcaterização de conflito aparente de normas.
Outro já não era, inclusive, o entendimento esboçado pelos tribunais quando o delito de porte ilegal de arma ainda era contravenção
penal:
“As contravenções de porte de arma e de disparo de arma de
fogo são independentes, desde que, a última subsiste, ainda que não ocorra a primeira, não há como falar em absorção daquela por esta.” 209
“Só a licença da autoridade competente poderá retirar ao porte de arma a conotação da antijuridicidade. A infração do artigo 19 da
LCP não é absorvida pelo delito de lesões corporais culposas, praticadas com a arma portada ilegalmente.” 210
“O crime de roubo a mão armada não absorve a contravenção
de porte ilegal de arma, uma vez que se trata de infração anterior e
inteiramente autônoma.” (TACRIM - SP - AC - Rel. Ferreira Leite) 211
Outro argumento que se deve considerar é que a utilização de
arma, embora seja meio empregado para a prática delitiva, não estava
a exigir que a mesma fosse ilegal ou seu porte desautorizado, ou me208
ROSA, Fábio Bittencourt da, RT 537, julho 1990, p. 252;
RT 454/399;
210
JUTACRIM 12/178;
211
JUTACRIM 026/318;
209
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
162
lhor, o fato anterior impunível, restringe-se à posse de arma com registro e
autorizada, portanto, o detentor ou possuidor de arma de uso permitido
que não tenha autorização ou o faça em desacordo com determinações
legais ou regulamentares, pratica sim, em concurso material, o delito descrito no artigo 10 do supracitado diploma legal, pois que consideração
diversa implicaria em dar tratamento igualitário para o que pratica o crime
com a arma legal e aquele que já, inicialmente, agia na ilegalidade.
Caso não sejam os argumentos suficientes para firmar o convencimento sobre a correta aplicação dos princípios que dirimem o
conflito aparente de normas, ter-se-ia de questionar: aos que dão mais
amplitude ao instituto, qual o posicionamento quando alguém, utilizando-se de uma arma de fogo, sem registro ou porte, para praticar o delito
de lesão corporal leve? Punir-se-ia apenas a lesão corporal ou também
o porte ilegal de arma de fogo? Como seria enfrentado o fato de se
deixar de punir crime mais grave em razão da consunção? Pois senão
veja-se.
Código Penal:
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.
Lei n.º 9.437, de 20-02-97
Art. 10. Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor
à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder,
ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob
guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização
e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Pena - detenção de um a dois anos e multa.
Por este último argumento resta evidenciado que a compreensão, sobre o conflito aparente de normas, diversa da preconizada neste
texto, poderá nos conduzir ao absurdo de não punirmos delito mais
grave, como exemplificado, para que se puna o “delito-fim”, de menor
relevância e com menor pena prevista.
Feitas essas considerações é possível afirmar que o delito
tipificado no artigo 10 da Lei 9.437/97 deverá ser objeto de sanção auRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
163
tônoma como regra e, excepcionalmente, quando descrito em algum outro
tipo penal como elementar ou circunstância do delito deverá estar sujeito aos primados do conflito aparente de normas e, por conseqüência,
não será objeto de sanção, restando absorvido.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
164
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
165
OS FURTOS TENTADOS NOS MODERNOS
ESTABELECIMENTOS DE VENDA A VAREJO NA
REALIDADE ATUAL
SILVIO COUTO NETO
PROMOTOR DE JUSTIÇA EM PONTA GROSSA. ESPECIALISTA EM
DIREITO PROCESSUAL PENAL PELA PUC-PR. MESTRANDO EM
CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PELA UEPG. EX-PROFESSOR DE
DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITO
CONSTITUCIONAL DA UEPG, DA FEMPAR E DA ESCOLA SUPERIOR
DA MAGISTRATURA.
RESUMO
O artigo trata da aplicação do tipo penal do furto, em sua modalidade tentada,
em grandes estabelecimentos varejistas. O autor desenvolve o tema não a
partir de uma visão positivista do Direito Penal, mas destacando a necessidade
da observação do contexto social em que se dá a ação analisada e a posterior
aplicação da norma penal. Em sua conclusão, o autor culmina pela
configuração de um ato despido de potencial ofensivo, que não ofende a
nenhum bem jurídico relevante.
ABSTRACT
The article is about the application of what penal of larceny , in its tried
model, in big stores. The author develops the issue not from a positivist
vision of Criminal Law , but pointing to the necessity of observation of the
social context in which happens the analyzed action and posterior application
of the rule of penal . Concluding , the author points to the configuration of
an act without the offensive potential , it doesn’t offend any important juristic
property.
PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; furto; potencial criminal ofensivo.
INTRODUÇÃO
O objetivo destas linhas é uma breve reflexão a respeito da aplicação da lei penal, mais especificamente, da aplicação do tipo penal do
furto, em sua modalidade tentada, em uma situação bastante comum
com a qual se deparam no dia-a-dia os operadores do direito, que é
aquela, na qual se apresenta como vítima, um grande hipermercado ou
outro estabelecimento semelhante, que vende a varejo produtos indisRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
166
pensáveis à própria manutenção da vida e, ao lado disso, têm um sistema de segurança tão sofisticado e equipado que chega a lembrar a
obra “1984”, de George Orwell, que fala do “Big Brother”.
Mais que isso, buscamos a análise dessa conduta humana que,
em uma primeira observação nos leva a conclusão que se subsume a
um tipo penal (subsunção mediata pela aplicação do artigo 14, II do
Código Penal, é verdade), à luz de alguns fatores que serão comentados no desenvolvimento de nosso raciocínio.
Entre esses fatores, nos parece que três não podem ser, em
hipótese alguma, abstraídos do contexto em que, de regra, se dão tais
condutas, a saber: 1) a atual situação social vivida pela imensa maioria
da população brasileira, que podemos estabelecer, à luz dos mais
comezinhos dados empíricos e sem necessidade de muita demonstração e estudo, como de abandono pelos serviços estatais (apesar das
propagandas oficiais), de desesperança e falta de perspectiva de um
futuro mais digno, para cada indivíduo e sua família; 2) a natureza dos
produtos que se tenta subtrair de forma totalmente ingênua, e a efetiva
lesão – ou não - a um bem jurídico relevante, que mereça a tutela do
direito penal; e 3) a fantástica técnica de segurança empregada nesses
grandes estabelecimentos de venda a varejo, onde, entre outras coisas,
existem sistemas de monitoramento por câmeras de vídeo ligadas a
circuitos internos, vigiadas por pessoal treinado; circulação de seguranças ostensivos e dissimulados; existência de sensores que disparam o
alarme quando mercadorias são retiradas dos mercados sem passarem pelos caixas para terem seus sistemas de alarme desativados, bem
como seguranças que ficam nas saídas dos estabelecimentos para impedir que dali possam evadir-se pessoas que ao sair tenham disparado
o alarme (e que não raras vezes são responsáveis por situações de
enorme constrangimento, quando há falha na retirada dos alarmes de
mercadorias e clientes que pagaram, são publicamente tratados como
se estivessem tentando praticar furtos), ou surpreendidas pelas câmeras
de vigilância.
DOGMÁTICA PENAL E POLÍTICA CRIMINAL
Pela simples aplicação mecânica de subsunção das condutas
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
167
humanas às regras dispostas nas leis penais (no caso em análise, no
Código Penal), não haveria dúvida que por uma operação de subsunção
mediata, como afirmamos acima, a conduta de alguém que, v.g. ocultando de qualquer modo uma determinada mercadoria, de regra de pequeno valor, em suas roupas, sacolas, bolsas, etc, as tenta subtrair para
si de um determinado estabelecimento comercial, sendo surpreendido
por seguranças que invariavelmente frustram a ação e recuperam os
produtos, estaria praticando uma ação que poderia ser tipificada como
furto tentado.
Entretanto, não podemos compartilhar da clássica e já superada visão positivista do direito penal, que separa completamente essa
observação do contexto social real em que se dá a ação analisada e a
aplicação da norma penal.
A escola do positivismo jurídico, certamente tem como seu maior expoente o prestigiado Hans Kelsen que, embora autor de inúmeros
e brilhantes trabalhos, entre eles a “bíblia” do positivismo jurídico, a “Teoria Pura do Direito”, vem sendo há muito tempo contestado em sua
visão hermética do mundo do “dever-ser” alheio completamente ao mundo
real, ou seja o mundo do “ser”.
O positivismo jurídico, segundo depreendemos, surge a partir
da necessidade do direito se consolidar como uma ciência e, por isso
mesmo, com a necessidade de identificar seu “objeto próprio”. Tal escola jurídica foi inspirada, por um lado na visão cientificista do mundo,
que se dá principalmente no século XIX, onde o que não era conceituado ou conceituável como ciência não tinha prestígio junto à elite intelectual e perdia poder na própria sociedade e, por outro lado, encontrando respaldo no positivismo filosófico, que para dizermos de uma
maneira muito superficial, buscava explicações científicas de “causa e
efeito”; evidentemente que este, por sua vez, sofrendo influência das
ciências exatas, especialmente da física.
Assim, nada mais natural que transpor para o mundo jurídico
uma visão inflexível de que o direito e seus aplicadores, deveriam se
desvencilhar de qualquer visão da realidade exterior, concentrando-se
especificamente em seu objeto, que seriam apenas as normas jurídicas
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
168
positivadas, e fazer a aplicação mecânica dos casos apresentados ao
direito posto.
É bem verdade que o próprio Kelsen, nas várias reedições de
sua obra acima mencionada, vai flexibilizando tal posicionamento, admitindo a visão do real em alguns casos, segundo ele, em que não se
tratasse de uso científico do direito.
Todos sabemos que o próprio Kelsen é vítima de sua postura,
quando afirma que do ponto de vista científico, a própria legislação nazista era legítima, apesar de ser perseguido pelos nazistas e ter que
viver exilado nos Estados Unidos da América.
No direito penal, essa visão positivista encontra na época, por
óbvio, inúmeros e ilustres adeptos, que cuidam de difundi-la. Nesse pensamento, o social e o político são completamente afastados da aplicação da lei penal, restando ao operador do direito, tão só a analise do
fato e as normas penais atinentes à espécie. Dito de outro modo, a partir da criação do conceito de tipo penal e do nascimento da visão analítica de crime, o operador do direito penal deveria simplesmente, verificar se a ação se amolda às fórmulas, fórmulas estas que evidentemente
vão evoluindo com o passar do tempo.
Entre os expoentes do positivismo jurídico no direito penal,
vale lembrar o brilhante Franz von Liszt que - e sem que vá aqui nenhum desdouro à sua brilhante obra, condizente com a época em que
foi produzida e em muitos aspectos até hoje de inestimável valor afirmava, conforme nos demonstra ROXIN (2002)212 , que o direito penal só poderia ser considerado como ciência enquanto se ocupasse
da análise jurídico-conceitual das figuras positivadas no sistema e que
apenas a política criminal deveria se preocupar com os conteúdos sociais e fins do direito penal.
Superado o tempo em que havia a imperiosa necessidade de
estabelecer o direito como ciência, e mais, que para tal tarefa era mister manter-se o jurista preso àquilo que se considerava o objeto exclusivo do direito, qual seja, a norma positivada, não há mais razão para
212
ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico penal, tradução: Luiz Greco, Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, 118 pág.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
169
o medo das considerações políticas e sociais quando da aplicação da
lei, não há como deixar de observar-se a realidade que cerca o fato
aparentemente típico quando de sua subsunção às normas, sob pena
de estar-se incorrendo em enorme injustiça pela aplicação cega da lei
igualmente a situações desiguais.
Esse o entendimento também de um dos maiores (se não o
maior) doutrinador do direito penal da atualidade, o brilhante e já citado
ROXIN (2002, pág. 14-15 e 20), que afirma
“...deve ser reconhecido também no direito penal – mantendo
intocadas e completamente íntegras todas as exigências garantísticas
– que problemas político criminais constituem o conteúdo próprio
também da teoria geral do delito. O próprio princípio ‘nullum-crimem’
possui, ao lado de sua função liberal de proteção, a finalidade de
fornecer diretrizes de comportamento; através disto, torna-se ele um
significativo instrumento de regulação social.” E mais adiante prossegue “De todo o exposto, fica claro que o caminho correto só pode
ser se deixar as decisões valorativas político-criminais introduziremse no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação
legal, a clareza e a previsibilidade, as interações harmônicas e as
conseqüências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nada
à versão formal-positivista de providência lisztiana. Submissão ao
direito e adequação a fins políticos-criminais (kriminalpolitische
Zweckmässigkeit) não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que Estado de Direito e Estado
Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade
dialética: uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de
Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha
as garantias de liberdade do Estado de Direito.” 213
Desse modo, utilizando-nos das normas penais positivadas
como limite máximo de punição, ou seja, partindo-se da observação
do princípio constitucional da reserva legal, da impossibilidade de se
punir se não quando a lei antecipadamente o permita, acatando-se o
Código Penal como “a magna carta do delinqüente” como bem
213
Ob. cit., pág. 14-15 e 20.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
170
conceituou LISZT214 , podemos buscar efetivamente uma justiça substancial, apanhando dados da realidade em que ocorrem os fatos e adequando cada comportamento ao seu real contexto, com liberdade para
deixar de aplicar a norma positivada, quando razões de política criminal
assim demonstrem correto.
Por isso mesmo, nos casos em que miseráveis tentam subtrair pequenas mercadorias de grandes (hiper) mercados, não há como
deixar de observar a real situação em que tal conduta se deu, para somente depois, concluirmos se é ou não o caso de persegui-los buscando a aplicação da sanção penal.
E na busca dessa contextualização, necessariamente temos
que passar pela análise do perfil do indivíduo que, de regra, pratica tal
tentativa de subtração, bem como considerar os motivos que ordinariamente o levam a tomar essa atitude irregular.
A NORMA PENAL E A REALIDADE SOCIAL DA GRANDE MAIORIA
DOS AUTORES DE TAIS FURTOS TENTADOS
Também numa visão positivista (agora filosoficamente
positivista) do homem que tenta subtrair mercadorias em um estabelecimento comercial, poderíamos entendê-lo (aliás como faz mesmo a
criminologia clássica ou positivista) como alguém desprovido dos freios psíquicos que impedem a prática de atos reprováveis ou que,
deliberadamente, por ser uma pessoa que não tem apego às regras
de comportamento social, agindo impulsionado por uma tendência criminosa, por uma personalidade voltada ao crime, adota o comportamento “desviante”. Em síntese, por uma decisão individual, resolve
delinqüir.
A realidade, porém, é muito mais rica que essa pobre visão
mencionada. Assim, entendemos indispensável uma rápida análise
dialética do comportamento comentado, apresentando à tese positivista
uma despretensiosa antítese, mais harmônica, com o pensamento da
criminologia crítica, buscando os reais e múltiplos fatores envolvidos
no fenômeno, procurando ao menos as determinantes mais próximas
214
LISZT, Franz von, apud ROXIN, Calus. Ob. Cit. Pág. 3
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
171
envolvidas na gênese desse comportamento.
Primeiramente, enfocaremos o próprio indivíduo que age dessa maneira. Poderemos observar que, em muitos casos, é uma pessoa
primária e sem antecedentes, que apenas circunstancialmente se vê
envolvida com um comportamento teoricamente criminoso; é também,
de regra, alguém sem esperanças de uma vida minimamente digna, bem
como portador de uma idéia do Estado e da sociedade como inimigos,
conforme veremos logo adiante.
Tais ponderações, imediatamente nos remetem a uma próxima dimensão, na qual o fenômeno está inserido: o local em que vive
esse homem; veremos que de regra, mora na cidade. Certamente que
se pode, nessa dimensão, questionar o motivo que o faz um homem
urbano: raramente o será por livre opção, na maioria das vezes é por
nascimento e sem alternativas para deixar a cidade ou, quando nascido
no campo, dele foi “expulso” pela falta de condições de lá se fixar, sendo
um, ou descendente de um dos milhares que vieram para a urbe em
busca de uma vida melhor e que nunca a encontraram.
Não se pode deixar de considerar que a cidade em que vive, é
de médio a grande porte, diluindo os relacionamentos inter-subjetivos,
onde o indivíduo sente-se tão-somente mais um na multidão, um número nas estatísticas, perdendo a sensação de que é parte de algo
maior, cuja harmonia é indispensável para a felicidade de todos. E
mais, na sociedade atual, eufemisticamente chama-se competitividade
a necessidade de ser individualista, vale dizer, não se estimula real e
efetivamente os valores comunitários, antes se diluem tais valores,
acentuando-se o viés individualista.
Nesse mesmo contexto, é perceptível que, pelo fato de viver
na cidade, por um lado, ele torna-se alvo de inúmeras formas de publicidade, que lhe impõem maciçamente padrões de comportamento e
lhe desenvolvem no imaginário a necessidade de, como já afirmou
GALEANO215 “ter para ser” e, por outro, impede que satisfaça suas
necessidades básicas e as de sua família, através de sua própria inici215
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso, tradução de Sérgio Faraco,
Porto Alegre: L&PM, 1999.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
172
ativa, seja plantando ou criando animais.
Assim, vivendo na cidade, necessariamente terá que deter capital e, dessa maneira, explorar o trabalho alheio ou, ao contrário, vender seu próprio trabalho, buscando a remuneração com a qual poderá
satisfazer tais necessidades.
Tal assertiva nos leva ao próximo ponto a ser observado: a
classe social a que pertence o agente e o situaremos, com raríssimas
exceções, como integrante da classe economicamente (mas não só
economicamente) excluída, que não tem acesso aos mais básicos e
elementares direitos, assegurados retoricamente pela Constituição Federal como: educação, saúde, moradia, trabalho, etc.
Procuraremos, então, saber como produz seu sustento e de sua
família (em regra numerosa pela falta da assistência teoricamente garantida pela Carta Magna), e veremos que excluída a via ilícita da subtração, ora em observação, lhe restará apenas a esmola e as latas de
lixo. Ele não tem educação, ele não tem qualificação profissional e,
portanto, é um elemento descartável para a sociedade atual. Os empregos, ainda que mais simples, estão ocupados por pessoas mais
qualificadas.
Portanto, o mesmo sistema que lhe garante, em tese, todos os
direitos, lhe nega, na prática, esses mesmos direitos, e ainda lhe retira
qualquer possibilidade de vida digna. Por outro lado, exige-lhe o cumprimento de preceitos normativos, os quais, ele próprio, Estado, cria e
se encarrega de violar, com conseqüências trágicas para esse agente
da tentativa de subtração.
É a tirânica imposição de uma conduta com o exemplo de outra oposta. Ora, se o próprio Estado, que produz as normas não as
cumpre, que se dispõe a ser um Estado de Bem-Estar Social em sua
Carta Magna, mas nunca chega próximo a isso, como pode esse desesperado cidadão observar tais regras?
E ainda, a sociedade, pela mídia, impõe como meta de consumo e de felicidade a adoção de certos padrões: de beleza, de juventude eterna (certamente inatingível), da posse de determinados bens
(cada vez em maior número, mais caros e mais descartáveis) e lhe
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fecha as portas quando pretende obtê-los.
Daí o ódio e a revolta, a forma de ver a sociedade e o Estado
como inimigos, mencionada anteriormente, na análise do homem.
Sabe-se que essa postura de abandono pelo Estado, que só
age como repressor e não provê o bem estar constitucionalmente prometido; de descarte pela sociedade em que o indivíduo, não tendo
capacidade de consumo, é considerado um “não-ser”, estão motivadas por uma ideologia que se impõe na atualidade, o neoliberalismo,
cuja abordagem foge aos modestos propósitos deste trabalho, que
pretende se ater apenas às sobredeterminações mais próximas.
Dessa forma, observamos que com a junção de todas essas
determinantes, chegamos a uma imagem certamente diferente daquela que o concreto figurado inicial nos mostrava, voltando agora àquele
ponto de observação com outra forma de ver, podendo situar a ação do
homem que tenta furtar numa realidade mais conectada com as diversas causas que a produzem e ter um concreto, agora sim, muito mais
real, vez que pensado, conhecendo-o na sua essência, envolto por diversas totalidades.
Nota-se que as mercadorias que são objeto de tentativa de
furto, são sempre necessidades dos agentes que tentam subtraí-las,
sejam necessidades vitais e indispensáveis à sobrevivência animal,
como alimentos, sejam produtos de consumo “obrigatório” pelas necessidades psicológicas criadas pela grande mídia, pelos “magos do
marketing”.
Mas essas mercadorias, conquanto sejam necessidades para
esse homem, de regra são produtos de pequeno valor econômico, que
muito pouco podem representar para o patrimônio de uma grande
empresa.
Não há como deixar de se recordar, neste ponto, o adágio popular, utilizado pelo Desembargador Nogueira Camargo em lapidar
decisão, que afirma: “quem rouba um pão é ladrão, quem rouba um milhão é barão”216
Isso nos leva as considerações quanto ao bem jurídico lesado.
216
FRANCO, Alberto Silva, et alli. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, 3ª edição, pág. 876,
São Paulo: RT, 1993.
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O BEM JURÍDICO LESADO E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Longe vão os tempos em que se punia alguém pela prática de
um “pecado”. Como sabemos, em épocas passadas, marcadamente
na Idade Média, punia-se pelo simples fato de um comportamento contrariar as leis (à época do Estado teocrático), em que o comportamento
em desacordo com a norma era contrário “à vontade de Deus”, merecendo por isso mesmo castigo, que inclusive, se acreditava, eximia o
réu do pecado e lhe permitia a salvação da alma.
Em nossos dias, e desde o movimento Iluminista, dissocia-se
totalmente o direito dos embasamentos teológicos, somente se admite
punir com um fundamento social. Daí as diversas justificativas para a
aplicação da pena, seja de prevenção geral ou especial, seja de retribuição.
Mais do que isso, porém, além de uma função social da pena,
a própria eleição do comportamento a ser alçado à condição de crime,
como tipo penal, deve se fundamentar no fato de ameaçar algum bem
juridicamente relevante.
Tal formulação vem com as teorias neokantianas, quando passou-se a defender que na formulação do tipo deveria se ter em conta o
aspecto teleológico do direito penal, em seu sentido de proteção de
bens jurídicos.
No início desta (então) nova fase do Direito Penal, o conteúdo
que se apresenta é o do delito como violação de um direito subjetivo
variável, de acordo com a espécie do delito, pertencente à pessoa
física, individual, direta ou imediatamente ofendida por tal ato ilícito.
O Direito Penal iluminista se expressou na teoria jus-privatista,
da lesão de um bem/direito subjetivo. A conseqüência disso foi a afirmação do caráter acessório e sancionatório do Direito Penal e a noção da
ilicitude como a razão de ser do delito. Tal posição corresponde à ideologia liberal dominante à época.
Só posteriormente, desenvolve-se a concepção de que o decisivo para a tutela jurídica era a existência de um bem, assentado no
mundo da realidade, importante para a pessoa e para a coletividade,
que pudesse eventualmente ser lesionado por uma ação delitiva.
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175
Atualmente, conforme leciona PRADO (1997)217 , reconhece-se
de maneira pacífica que o objetivo primordial do direito penal é a proteção de bens jurídicos, essenciais aos indivíduos e à comunidade. Atua o
direito penal pelos princípios, dentre outros, da personalidade, da culpabilidade, pelo império da lei formal, como a “ultima ratio” em um Estado
Democrático de Direito, e não podendo vir dissociado da noção de bem
jurídico, sendo considerado legítimo constitucionalmente, quando socialmente necessário.
A noção de bem jurídico, implica a realização de um juízo positivo de valor, a respeito de uma determinada situação social ou objeto, e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano.
Não pode ser um paradigma abstrato, desvinculado do mundo
exterior, em respeito à dignidade da pessoa humana, que repousa sobre os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade.
Ao lado da noção de bem jurídico, indispensável lembrar outros dois princípios fundamentais das modernas doutrinas penais: a
subsidiariedade e a fragmentariedade do direito penal.
Para dizer muito rápida e superficialmente o que seria
subsidiariedade, vale lembrar-se que dentro dos diversos ramos do
direito, o direito penal é apenas uma das muitas formas de se qualificar como ilícita uma conduta. Assim, por exemplo, o adultério, ainda
que descriminalizado não seria lícito, vez que há preceitos cíveis que
disciplinam as obrigações de fidelidade recíproca entre os cônjuges.
De sorte que o direito penal, como “braço armado do direito” 218 ,
só deve ser chamado a atuar quando todos os demais ramos do direito
forem insuficientes para coibir ou reparar eventual conduta ilícita.
Além disso, existem ainda os diversos “filtros sociais” que limitam a ação das pessoas, como a moral, a religião etc. QUEIROZ (1998,
pág. 77) afirma que “Pode-se, assim, falar de subsidiariedade lógicosistemática, considerando-o (o direito penal) em face do próprio direito,
e em subsidiariedade sociopolítica, tendo-se em vista a ordem social, o
217
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e constituição, 2ª ed. revista e ampliada, São Paulo, Ed.
Revista dos Tribunais, 1997.
218
A expressão é de PEREZ, Luiz Carlos apud QUEIROZ, Paulo de Souza, Do caráter subsidiário do
direito penal, lineamentos para um direito penal mínimo, pág. 71, Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
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sistema social global de controle.”219
E por fragmentariedade, pode-se entender, dito também de maneira muito rápida, que o direito penal só deve ser chamado a agir, não só
respeitando o princípio da subsidiariedade, como exposto acima, em relação à ofensa a bens jurídicos em que a atuação dos demais controles
jurídicos e sociais não sejam suficientes, mas também somente em relação às ofensas mais graves aos mais importantes bens jurídicos.
O direito penal deve atuar, portanto, tão-somente quando esses
bens jurídicos sejam extremamente importantes para a vida em sociedade, e ainda, que a ofensa a eles seja de tal monta que justifique essa
grave intervenção. Como já afirmou BATISTA (1990, pág. 86), há mais
de um século Binding já registrou o caráter fragmentário do direito penal, constituindo-se “um sistema descontínuo de ilicitudes” (...) “e impõe
uma seleção seja dos bens jurídicos ofendidos a proteger-se, seja das
formas de ofensa”220
Portanto, quando falamos em fragmentariedade devemos nos
lembrar, como corolário, do princípio da lesividade ou ofensividade,
vale dizer, para que esse direito violento, que indiscutivelmente é o
direito penal, possa ter sua atuação legitimamente desencadeada contra
um indivíduo, o ataque a um relevante bem juridicamente tutelado deve
ser efetivamente lesivo ou, e o que é o mesmo, ofensivo, isto é, deve
causar uma lesão sensível em relação ao objeto dessa ação.
A moderna doutrina, acompanhada pela melhor jurisprudência, vem entendendo que sequer há tipicidade em crimes de ataque
mínimo, insignificante, a bens jurídicos, diante do princípio da insignificância. Como leciona SANTOS (2000, pág. 37), “ações abrangidas
pelo chamado ‘princípio da insignificância’ (Geringfügigkeitsprinzip), não
são típicas”.221
E como afirma com clareza meridiana QUEIROZ (1998)
“a redação do tipo penal pretende certamente só incluir prejuízos
graves à ordem jurídica e social, porém não pode impedir que en219
QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal, lineamentos para um direito
penal mínimo, Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
220
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, pág. 86, Rio de Janeiro: Revan, 1990.
221
SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.
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trem também em seu âmbito os casos mais leves, de ínfima significação social. Enfim, o que ‘in abstrato’ é penalmente relevante pode
não o ser verdadeiramente, isto é, pode não assumir, ‘in concreto’,
suficiente dignidade e significação jurídico penal. E esse exame particularizado e casuístico de valoração penal cabe, naturalmente, aos
intérpretes e aplicadores ‘vivos’ (Judiciário e Ministério Público) do
direito.” (...) “Por isso, qualquer lesão jurídica admite, em tese, que
se afaste a tipicidade – para cuja compreensão não há de se exigir,
assim, um mero juízo lógico-formal de adequação do fato à norma
penal abstrata – pela aplicação do que se vem chamando de ‘princípio de insignificância’, posto que, pode esse bem jurídico fundamental, protegido pela norma, não ser atingido ou ser atingido perifericamente, apenas, em mínima intensidade e grau de extensão.” (...) “E
é, realmente, preciso ir-se além do convencional automatismo que,
alheio à realidade, à gravidade do fato, à intensidade da lesão, concretamente valorados em função de suas conseqüências, sobretudo, se perde e se desacredita na persecução de condutas de mínima ou nenhuma importância social. A intervenção penal – traumática, cirúrgica e negativa – há de ficar reservada para a repressão de
fatos que assumam magnitude penal incontrastável; havendo-se,
assim, de recusar curso aos chamados delitos de bagatela.”
E para se ter noção da lesividade da conduta na realidade de
uma determinada ação concreta, há que se levar em conta não só o
bem jurídico atacado e a gravidade desse ataque, como exposto acima (e que no caso em análise, o primeiro de regra nem é afetado ou o
é de maneira insignificante), mas também, a real importância desse
mesmo bem jurídico para seu titular.
Indispensável um pequeno parêntesis aqui. O bem jurídico,
como leciona WELZEL, “é todo estado social desejável que o direito
quer resguardar de lesões”.222 E de se ressaltar, ainda, “que não se
confunde bem jurídico com objeto material, embora em geral coincidam
(a vida, no crime de homicídio). No crime de furto (CP. Art. 155), por
exemplo, o bem jurídico é o ‘patrimônio’, ao passo que o objeto material
é a ‘coisa alheia móvel.’” (QUEIROZ, 1998, 70-71). Assim, esclarecido
222
WELZEL, Hans, apud QUEIROZ, Paulo de Souza. Ob. cit. Pág. 70.
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que bem jurídico e objeto da ação nem sempre coincidem, podemos
fechar o parêntesis pois julgamos elucidado o motivo de acreditarmos
que não é afetado o bem jurídico (patrimônio) do proprietário do
hipermercado com o furto (ou tentativa) de , p. ex., um litro de leite.
E o Superior Tribunal de Justiça, assim já entendeu em diversos
julgados, inclusive conforme menciona JESUS (2001), “Como entendeu a
6ª Turma, no Recurso Especial 221.2929, rel. Ministro Fernandes Gonçalves, (...) é necessária a análise da relevância da lesão jurídica ‘sob o prisma do sujeito passivo do delito’ (j. 21.3.2000, DJU 10.4.2000, p. 138).” 223
E mais, o festejado professor e doutrinador ainda sustenta que, por coerência, salvo para ações em relação à vítimas de muito pequeno poder
aquisitivo, se considere furto ou apropriação indébita de bagatela, aquelas cujos objetos sejam iguais ou inferiores a R$ 1.000,00.
Como mencionamos no início deste trabalho, o furto de um objeto de pequeno valor pode significar algo para o dono de um pequeno
armazém, porém, dificilmente lesará gravemente uma grande rede de
venda a varejo.
De todo o exposto, não há como deixar de concluir-se, ao nosso ver, que a comentada tentativa de furto em grandes hipermercados,
tem todas as características de crime de bagatela, sendo substancialmente atípicas e impedindo-se, destarte, movimente-se a dispendiosa
e já abarrotada máquina do sistema penal, a pretexto de combatê-la.
Até mesmo por que a persecução de tais condutas bagatelares
comprometeria ainda mais o funcionamento do sistema penal - já dificultado pela conjuntura nacional - no combate à criminalidade séria,
muitas vezes violenta, contra bens jurídicos indispensáveis à sociedade e aos indivíduos.
A REALIDADE DOS GRANDES HIPERMERCADOS E A
IMPOSSIBILIDADE DE CONSUMAÇÃO DO FURTO TENTADO
Como um argumento final, mas não menos verdadeiro e importante, ainda que considerássemos errado todo o exposto antes, tería223
JESUS, Damásio Evangelista de. Crime de bagatela: reconhecimento do princípio da insignificância
no delito de descaminho e seu efeito nos tipos privilegiados do furto e da apropriação indébita, retirado
do “web site”: http://www.amperj.org.br/port/damasio2.htm, em 07.04.2001.
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mos que verificar da viabilidade da consumação do furto nos grandes
hipermercados.
É fato notório e que dispensa qualquer argumento no sentido
de demonstrar, com maior profundidade, a enorme quantidade de dispositivos de segurança que possuem as grandes redes de lojas de vendas a varejo (hipermercados, lojas de departamentos, etc.)
Começa-se pelos sistemas de câmeras de circuito interno,
monitoradas por seguranças treinados, durante todo o tempo de funcionamento das referidas lojas, colocadas em pontos estratégicos e que,
apesar de não percebidas pelos clientes, estão sempre “enxergando”
todos os seus movimentos, como já dissemos antes, tal qual o “Big
Brother” de George Orwell. Isso quando não são ostensivas e acompanhadas das irônicas placas de “sorria, você está sendo filmado”.
Seria até o caso de se indagar se tal exposição não fere o
direito à preservação da própria imagem que todos temos, mas isto
seria assunto para outro trabalho a ser escrito por um civilista. Apenas
registramos: são verdadeiras agressões à dignidade; por vezes até
mais as placas que propriamente as câmeras, vez que aquelas nos
dão a certeza que somos todos suspeitos.
Qualquer movimento considerado “diferente” de clientes é logo
informado aos seguranças que entram em ação.
Depois, existem os seguranças (muitos deles policiais treinados pelo Estado e que face aos “minguados” salários fazem “bicos”
nas empresas privadas); tanto os que ostensivamente portam rádiocomunicadores portáteis e coletes com as inscrições identificadoras,
que os fazem parecer mais membros de esquadrões de elite da polícia
que seguranças privados, quanto os que, dissimuladamente, se fazendo passar por clientes, circulam pelos estabelecimentos.
Referidos seguranças, verdadeiros “policiais privados”, também se fazem presentes, por todo o tempo de funcionamento das casas
comerciais e são devidamente treinados e equipados, no sentido de
perceber e vigiar atitudes consideradas suspeitas, impedindo qualquer
ataque ao patrimônio de seus empregadores. Quando ocorre o ataque
– tentativa de furto - logo entram em ação e impedem a consumação.
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Vale destacar que tais seguranças, de regra, logo que entra alguém que não se veste, no mínimo, de acordo com os padrões normalmente assimilados pela classe média, diante da pregação midiática, isto
é, alguém que se encontra despojadamente vestido, ou mesmo, demonstra pertencer a uma camada menos favorecida da população (que também tem que comer e, portanto, às custas de enormes esforços dá lucro
aos grandes hipermercados e congêneres), passam a vigiar tais pessoas “diferentes” com atenção redobrada. Não é incomum que, ostensivamente, e de maneira pouco educada, tratem essas pessoas “diferentes”
como “suspeitos”.
E há também os sensores de alarme, estrategicamente colocados nas saídas dos estabelecimentos comerciais e que disparam estridentemente tão logo passe por ali uma mercadoria sem que antes tenha
passado pelo caixa e tenha seus dispositivos de alarme retirados. Não
poucas vezes, tais sensores disparam, mesmo após o devido pagamento das mercadorias, por falha da retirada dos dispositivos acionadores de
alarme, colocando em situação extremamente vexatória o consumidor
“suspeito” que teve a infelicidade de ser uma vítima do aparato de segurança do estabelecimento. Recentemente houve a condenação de uma
loja de departamentos por danos morais a uma cliente, exatamente por
ter ocorrido uma situação dessa natureza.
Pois bem, considerando apenas os sistemas mencionados acima, percebe-se claramente que, é rigorosamente impossível ao
desavisado excluído consumar o ilícito quando, sem aptidão para o crime,
primário e de bons antecedentes que, premido por uma situação de absoluta necessidade, recorre à tentativa de furto para suprir uma carência
sua, seja material ou psicológica.
Encontramos nessa ação, mais um exemplo perfeito de crime
impossível, também chamado pela moderna doutrina de tentativa inidônea.
A respeito do crime impossível leciona BITENCOURT (2001, pág.
368) que “Muitas vezes, após a prática do fato, constata-se que o agente
jamais conseguiria consumar o crime, quer pela ineficácia absoluta do
meio empregado, quer pela absoluta impropriedade do objeto.”224
224
BITENCOURT, César Roberto. Manual de direito penal: parte geral, volume 1, 6ª ed. rev. e atual., São
Paulo: Saraiva, 2000.
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Ora, não pode haver meio mais absolutamente ineficaz que a
tentativa desastrada de alguém que, não sendo criminoso contumaz, tente
subtrair algo de uma loja tão vigiada quanto as modernas e grandes
redes varejistas. Certamente será apanhado e o bem será restituído ao
proprietário.
Como a teoria para a punibilidade da tentativa inidônea adotada pelo Código Penal brasileiro é a objetiva, entendendo que em se
tratando de crime impossível não há perigo para o bem jurídico tutelado e, de conseqüência, o agente não pode ser punido, está inviabilizada
qualquer possibilidade de persecução daquele que realiza tal conduta.
CONCLUSÃO
Diante dos argumentos acima esgrimidos, temos a pretensão
de haver demonstrado à saciedade que a tentativa de furto em grandes
lojas varejistas, dotadas dos modernos sistemas de segurança e com
um grande número de seguranças privados, é ato despido de potencial
ofensivo, que não ofende a nenhum bem jurídico relevante para a vítima
e que, de tal maneira, não merece a proteção do “braço armado do
direito” que é o direito penal. Inclui-se, certamente, no rol das ações
formalmente típicas, porém, de atipicidade substancial em face da realidade em que se processa e diante das condições da vítima.
Mais que isso, cremos haver demonstrado que, salvo se se
tratar de pessoa já acostumada à prática do crime, a tentativa de subtração de mercadorias de grandes lojas varejistas, é atividade impossível de se consumar, sendo por isso mesmo crime impossível.
Diante de todas essas constatações, não há porque se realizar prisão em flagrante como, lamentavelmente é de costume ocorrer
nesses casos (conduta que poderia ser evitada até pelo bom-senso
dos gerentes dos estabelecimentos que não teriam necessidade de
chamar a polícia num incidente despido de qualquer conseqüência), nem
tampouco instaurar inquérito policial.
Se realizados esses atos, na esfera da polícia, não há porque
o Ministério Público oferecer denúncia; sendo esta oferecida, não deveria ser recebida e, em última hipótese, havendo a instauração da ação
penal, impõe-se a absolvição do réu.
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É claro que adotamos como paradigma para estas reflexões –
e para a nossa atuação profissional - a moderna corrente do “Direito
Penal Mínimo” que é, ao nosso sentir, a única que pode ser assimilada
nestes tempos de neoliberalismo e de Estado Social Mínimo, especialmente para aqueles que, cada dia mais, são “empurrados” para a condição de excluídos - que em nossos dias é sinônimo de descartáveis –
justamente pelo discurso e prática do “Estado Mínimo” (social, é claro).
É certo, que tal pensamento é exatamente o contrário do que pregam os grandes meios massivos, que fazem questão de difundir a política
do medo da “criminalidade“ e postulam, num discurso maniqueísta, a punição “dura e exemplar” dos “inimigos da sociedade”.
A sustentação midiática é de que o Estado Social deve ser
mínimo e o Estado Penal máximo, como se o direito penal fosse a
panacéia aos problemas decorrentes de um absoluto abandono pelo
Estado das populações mais carentes, e o que é mais trágico, de um
total desmonte do Estado que um dia, teve a pretensão de vir a ser
Estado de Bem Estar Social e que nunca alcançou tal posição em
nosso país.
Evidente que o Estado não é um ente dotado de vontade própria, como os próprios discursos privatizantes e desestatizantes querem fazer crer, mas age de acordo com a vontade da classe dominante.
Se é ineficiente, não é por acaso ou acidente. Mas esse tema também
refoge aos modestos limites destas linhas
Entretanto, aos que labutamos na seara do direito penal, se
como cidadãos componentes de uma elite que tem, no mínimo, a formação em curso superior, temos a obrigação ética de lutar por condições sociais mais dignas a todos, temos, por outro lado, uma obrigação
inafastável de, com uma visão límpida e não alienada pelo discurso único, buscar uma justiça substancial na aplicação da lei penal.
E essa justiça somente se fará com a assimilação dos conceitos do direito penal mínimo, conceitos estes pouco (ou nunca) divulgados pela mídia por razões óbvias, vez que, como já afirmamos acima e
reiteramos, a um Estado Social Mínimo interessa um Estado repressor
forte, que possa calar as massas insatisfeitas.
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Entretanto, em sede de justiça penal, não há outro caminho para
aproximar nosso país de uma democracia material, real e efetiva, para
que possamos sonhar com um legítimo Estado Democrático de Direito,
efetivo para todos, que a adoção da prática de um direito penal conectado
com a realidade social, intercambiante com a política criminal e que assimile, de imediato, as constatações da criminologia, especialmente a
criminologia crítica.
E mais, que essas descobertas científicas e constatações sociais sejam aplicadas desde logo pelo operador do direito penal, especialmente pelo Promotor de Justiça e Juiz de Direito, não se colocando
estes em uma postura cômoda de esperar a iniciativa do legislador
que, por vezes, pode nunca vir, ou o que é pior, pode vir na contra-mão
das necessidades sociais num discurso demagógico de solução de
questões sociais com leis penais, como de resto já comentamos rapidamente.
Há que se posicionar o moderno operador do direito penal,
não mais numa atitude puramente dogmática, mas sim numa condição de verdadeiro observador e conhecedor da caótica realidade que
permeia a sociedade em nosso país (bem como a maior parte do mundo) e, a partir desse conhecimento, abandonando o paradigma
positivista de neutralidade, já há muito desmentido, respeitando o direito positivo no que diz respeito à possibilidade de imputação penal,
em atenção ao já mencionado princípio da anterioridade da lei e da reserva legal, buscar a consecução de uma justiça substancial.
Para os pobres, os excluídos, os descartáveis do cruel modelo
neoliberal, para eles também, e principalmente para eles, há que se
postular uma justiça material. Que não repitam os operadores do direito
penal, em relação a este sofrido segmento da população, a triste postura de outros setores sociais, de negar qualquer amparo, qualquer oportunidade e mostrar a existência do Estado apenas como repressor e
punidor.
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REFERÊNCIAS
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, Rio de
Janeiro: Revan, 1990.
BITENCOURT, César Roberto. Manual de direito penal: parte geral,
volume 1, 6ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2000.
FRANCO, Alberto Silva, et al. Código penal e sua interpretação
jurisprudencial, 3ª edição, São Paulo: RT, 1993.
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso, tradução de Sérgio Faraco, Porto Alegre: L&PM, 1999.
JESUS, Damásio Evangelista de. Crime de bagatela: reconhecimento
do princípio da insignificância no delito de descaminho e seu efeito
nos tipos privilegiados do furto e da apropriação indébita, retirado
do “web site”: http://www.amperj.org.br/port/damasio2.htm, em
07.04.2001.
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e constituição, 2ª ed. revista
e ampliada, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1997.
QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do direito penal,
lineamentos para um direito penal mínimo, Belo Horizonte: Del Rey,
1998.
ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico penal, tradução:
Luiz Greco, Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.
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185
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA EM
MATÉRIA DE LIMITAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS
SÍLVIA MARIA DERBLI SCHAFRANSKI
ESPECIALISTA EM DIREITO TRIBUTÁRIO - DOUTORANDA EM DIREITO
PÚBLICO PELA FACULDADE DE DIREITO DE EXTREMADURA-ES
(CONVÊNIO COM A UNORP-SÃO JOSÉ DO RIO PRETO/SÃO PAULO).
RESUMO
O texto analisa os Direitos Humanos e as possíveis limitações a que podem
ser submetidos, a partir da Convenção Americana de Direitos Humanos e da
jurisprudência da Corte Interamericana. Após afirmar a necessidade de
proteção dos Direitos Humanos, a autora assinala a posição da Corte
Interamericana, pela qual a suspensão de certas garantias, sob condições
excepcionais, seria lícita. O artigo exemplifica os direitos que se podem
limitar ou suspender, em situações especiais, como nos casos de guerra,
perigo público ou outra emergência, que ameace a independência ou
segurança de um Estado-parte da Convenção Americana.
ABSTRACT
The text analyses the Human Rights and possible limitations they can be
submitted, after the American Convention of Human Rights and jurisprudence
of Inter American Court. After saying the necessity of protection of Human
Rights , the author points to the position of Inter American Court , by who the
suppression of certain guarantee , under exceptional conditions, would be
lawful. The article gives examples of rights that can be limited or even
canceled, in special situations, as in the cases of war, public danger or another
emergency that can threat the independence or security of a State part of
American Convention.
PALAVRAS CHAVE - Direito Internacional; Direitos Humanos;
Convenção Americana de Direitos Humanos; Corte Interamericana.
INTRODUÇÃO
A questão relativa às limitações aos direitos humanos, deve
ser analisada em âmbito Interamericano, partindo-se do art. 27(1)225 da
225
“ Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou
segurança do Estado parte, este poderá adotar disposições que, na medida e pelo tempo estritamente
limitados às exigências da situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Convenção,
desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o Direito
Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma,
religião ou origem social”.
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Convenção Americana de Direitos Humanos, que assinala condições
estritas que devem observar-se a fim de que o Estado Parte possa suspender as obrigações contraídas em virtude da mencionada Convenção.
O artigo 27 faculta aos Estados-partes a suspensão das obrigações contraídas em virtude da Convenção em caso de guerra, de
perigo público ou de outra emergência que ameace a independência
ou segurança do Estado afetado e sempre que tal decisão não implique
a suspensão ou derrogação de certos direitos básicos ou essenciais
cujo rol é enunciado pelo parágrafo segundo do artigo 27:
Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica.
Direito à vida.
Direito à integridade pessoal.
Proibição de escravidão e servidão.
Princípio da legalidade e da retroatividade
Liberdade de consciência e de religião.
Proteção da família
Direito ao nome
Direitos da criança
Direito à nacionalidade
Direitos políticos
Garantias indispensáveis para a proteção destes direitos.
Conforme o entendimento da Corte Interamericana de Direitos
Humanos,226 o artigo 27.2 dispõe limites ao poder do Estado-parte no
tocante a suspensão de direitos e liberdades, ao estabelecer que há
alguns que não podem ser suspensos em nenhuma circunstância, bem
como ao incluir “as garantias judiciais indispensáveis para a proteção
de tais direitos”.
O artigo 27.2 trata dos direitos inalienáveis, isto é, os direitos
que não podem ser suspensos ou derrogados. Nenhum dos direitos ali
226
Opinião consultiva n. 8/87 de 30 de janeiro de 1987-0 habeas corpus sob a suspensão de garantias,
parágrafos 23 e 24.
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previstos podem ser suspendidos ou derrogados em um estado de exceção. Cada direito existe para todas as pessoas em todas as circunstâncias. Um Estado não pode, portanto, usar a imposição de um estado
de emergência como escusa por deixar de proteger e assegurar cada
um desses direitos inalienáveis.
Os vários instrumentos regionais de direitos humanos também
reconhecem estados de emergência. Enquanto o PIDCP somente menciona emergência pública, o artigo 15 da CEDH, o artigo 15 da Carta
Social Européia (CSE) e o artigo 27 da CADH todos também mencionam situações de guerra.
Segundo a Corte Interamericana, alguns destes direitos referem-se à integridade da pessoa, como são: o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (art. 3º); o direito à vida (art. 4º); o direito à
integridade pessoal (art. 5º); a proibição à escravidão e servidão (art.
6º) e o princípio de legalidade e de retroatividade (art. 9º) e que é também proibida a suspensão da liberdade de consciência e de religião
(art. 12); a proteção à família (art. 17); o direito ao nome (art. 18); os
direitos da criança (art. 19); o direito à nacionalidade (art. 20) e os direitos políticos (art. 23).
Na opinião da Corte a suspensão de garantias constitui uma
situação excepcional, pela qual é lícito ao governo aplicar determinadas medidas restritivas aos direitos e liberdades, que em condições
normais estão proibidas ou submetidas a requisitos mais rigorosos.
A Convenção Americana artigo (27(2)), não autoriza ainda, a
suspensão das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos, por que as suspensões transitórias não se aplicam a todos eles,
donde justifica-se a necessidade dos mesmos serem tutelados.
Da opinião consultiva n. 8/87227 , extraem-se importantes considerações:
1º) O artigo 27.2 não vincula essas garantias judiciais a nenhuma
disposição individualizada da Convenção, o que indica que o fundamental é que os referidos procedimentos judiciais sejam indispensáveis para garantir esses direitos.
227
Idem, ibidem- parágrafos 27 a 30.
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188
2º) A determinação de que as garantias judiciais são “indispensáveis” para a proteção dos direitos que não podem ser suspensos,
será diferente conforme os direitos afetados. As garantias judiciais
“indispensáveis” para assegurar os direitos relativos à integridade
da pessoa, necessariamente diferem daquelas que protegem, por
exemplo, o direito ao nome, que também não se pode suspender.
3º) Devem ser consideradas como indispensáveis, para os efeitos
do artigo 27.2, aqueles procedimentos judiciais que ordinariamente
são idôneos para garantir a plenitude do exercício dos direitos e liberdades a que se refere o mesmo e cuja supressão ou limitação
colocaria em perigo essa plenitude.
4º) As garantias devem ser não somente indispensáveis, mas também judiciais. O que implica na intervenção de um órgão judicial
independente e imparcial, pronto para determinar a legalidade das
atuações cumpridas dentro do estado de exceção.
O nono parecer da Corte Interamericana,228 pouco depois veio
não somente a reiterar estas considerações, bem como estabeleceu
critérios para precisar as características fundamentais das garantias judiciais.
Salientou que existe uma obrigação geral sob responsabilidade de todo Estado-parte na Convenção de respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e de garantir seu livre e pleno exercício a
toda pessoa que estiver sujeita à sua jurisdição” (art. 1º(1)), sendo que
desta obrigação deriva o direito de toda pessoa, prescrito no art.25.1.
Deste modo, precisamente sobre as garantias judiciais em
estado de emergência, a Corte concluiu que devem ser consideradas
além do habeas corpus e do recurso de amparo não suspendíveis ainda, qualquer outro recurso efetivo perante os juízes ou tribunais competentes ( art.25(1)), que tenha por escopo garantir direitos não
suspendíveis.
Estabeleceu ainda que também devem considerar-se como
garantias judiciais indispensáveis que não podem suspender-se os
228
Opinião consultiva n. 9/87, de 06 de outubro de 1987- Garantias judiciais em estado de emergênciaparágrafos 20 a 22.
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189
procedimentos judiciais inerentes a forma democrática representativa
de governo ( art.29.c), previstos no direito interno dos Estados Partes
como idôneos a garantir a plenitude do exercício dos direitos a que se
refere o artigo 27.2 da Convenção e cuja supressão ou limitação torne
tais direitos desprovidos de garantia.
E, finalmente, pronunciou-se no sentido de que tais garantias
devem exercer-se dentro do enunciado e segundo os princípios do devido processo legal, reconhecidos pelo artigo 8 da Convenção.
Assim, passaremos a análise desta questão, tendo em vista
que os direitos inderrogáveis são os direitos básicos e essenciais, bem
como as garantias judiciais indispensáveis à proteção destes direitos
cuja suspensão ou derrogação não está autorizada em nenhuma circunstância .
DIREITOS QUE SE PODEM LIMITAR OU SUSPENDER
A análise jurídica dos direitos que se podem limitar ou suspender, implica previamente na necessidade de se observarem algumas
questões terminológicas que já foram objeto de pronunciamento pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos:229
O artigo 27 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, traz em seus artigos, diferentes expressões que requerem atenção.
O título enunciado é “Suspensão de Garantias”, o parágrafo primeiro, refere-se a “Suspender as Obrigações Contraídas”, o parágrafo
segundo trata da “ Suspensão dos Direitos” e o parágrafo terceiro, do “
Direito de Suspensão”.
A interpretação dada pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos dos termos da Convenção no contexto destes, aponta portanto para o fato de que, efetivamente não se trata da suspensão de
direitos, já que “ sendo estes consubstanciais com a pessoa, o único
que poderia ser suspenso ou impedido seria seu pleno e efetivo exercício”, ou seja, trata-se da suspensão do exercício de direitos.
Do mesmo modo, quando a expressão garantia é utilizada no
parágrafo segundo, a mesma deve ser entendida como garantias judiciais indispensáveis à proteção dos direitos elencados.
229
Habeas corpus sob suspensão de garantias parágrafos 18 a 21.
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190
O art. 27, parágrafo primeiro, dispõe que: “ Em caso de guerra,
de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado Parte, este poderá adotar disposições
que, na medida e pelo tempo estritamente limitados às exigências da
situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as
demais obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social”.
Deste modo, o parágrafo primeiro do art. 27 enuncia uma regra
de caráter geral, a qual é complementada pela norma contida no parágrafo segundo, do art.27, que anuncia a vedação da suspensão de certos direitos.
Uma análise apressada do artigo 27 levar-nos-íamos a concluir
que todos os demais direitos cuja suspensão não está vedada pela Convenção seriam passíveis de limitações ou suspensões.
É preciso ter presente, todavia, que, o artigo 27.2, cria a possibilidade de que os Estados Partes tomem medidas derrogatórias de
suas obrigações contraídas em virtude da Convenção, mas somente em
estados de exceção.
Deste modo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos utilizando-se de uma interpretação sistemática e teleológica , orienta-se
no sentido de que o artigo 27 refere-se a um preceito concebido apenas para situações excepcionais, uma vez que a suspensão das garantias pode ser, em algumas hipóteses, o único meio para atender às
situações de emergência pública e preservar os valores superiores da
sociedade democrática.
Faz-se mister observar ainda que deve haver um requisito geral
de “proporcionalidade” entre a restrição e a razão justificadora da restrição.
Outrossim, a Corte prevendo os abusos a que pode dar lugar
a aplicação de medidas de exceção, quando não estiverem objetivamente justificadas em conformidade com os critérios estabelecidos no
artigo 27 e com os princípios que, sobre a matéria, são deduzidos de
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191
outros instrumentos interamericanos, acabou por destacar que, dentro
dos princípios que informam o sistema interamericano, a suspensão de
garantias não pode se desvincular do “efetivo exercício da democracia
representativa” aludida no artigo 3º da Carta da OEA.
Em conformidade com a interpretação da Corte Interamericana,
conclui-se, portanto, que nenhum direito reconhecido pela Convenção
pode ser suspenso, salvo se cumpridas as condições estritas trazidas
pelo art 27 (1)230 :
“ Por conseguinte, longe de adotar um critério favorável à suspensão de direitos, a Convenção estabelece o princípio contrário, ou
seja, de que todos os direitos devem ser respeitados e garantidos, a
menos que circunstâncias muito especiais justifiquem a suspensão
de alguns, enquanto que outros nunca podem ser suspensos, por
mais grave que seja a emergência.”
Disto resulta que as limitações somente devem ser utilizadas
como meio de proteger os direitos enunciados pela Convenção Americana tendo em vista a preservação do Estado Democrático de Direito
e não como meio de destruição destes direitos.
RAZÕES DESTAS LIMITAÇÕES
O artigo 27 da Convenção Americana, regula a suspensão de
garantias nos casos de guerra, perigo público ou outra emergência,
que ameace a independência ou segurança de um Estado-parte, sobre o que, este deverá informar aos demais Estados-partes, por intermédio do Secretário Geral da OEA, “das disposições cuja aplicação
tenha sido suspensa, dos motivos que tenham suscitado a suspensão
e da data na qual tenha sido dada por terminada a tal suspensão”.
As razões destas limitações estão adstritas à situações excepcionais, quais sejam: casos de guerra, de perigo público ou outra
emergência que ameace a independência ou segurança do Estadoparte.
Além deste requisito, as medidas tomadas não podem ser inconsistentes com as outras obrigações do Estado perante o direito in230
Habeas corpus sob suspensão de garantias- parágrafo 21.
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192
ternacional e não devem envolver discriminação fundada em motivos de
raça, cor, sexo, idioma, religião, ou origem social. As “outras obrigações
perante o direito internacional” referem-se tanto aos princípios do direito
costumeiro internacional quanto ao direito internacional de tratados (primariamente a outras convenções sobre direitos humanos e a tratados
no campo do direito internacional humanitário).
Cumpre salientar que, apesar de aparentemente restritas, tais
circunstâncias podem dar ensejo a uma diversidade de situações, em
razão de que, entende a Corte que as medidas que forem adotadas
em qualquer destas emergências devem ser ajustadas “ as exigências
da situação”, haja vista que o permissível em uma delas pode não ser
em outra.231
Esta é uma referência clara ao Princípio da Proporcionalidade
uma vez que o grau de interferência e o escopo da medida (ambos em
termos de território e duração) devem ser proporcionais ao que é realmente necessário para se combater uma emergência que ameace a
existência da nação.
Neste diapasão, para que se possa mensurar a juridicidade
das medidas de exceção, será necessária a análise particularizada do
contexto da emergência face à medida adotada232 :
“ A juridicidade das medidas que sejam adotadas para enfrentar cada
uma das situações especiais a que se refere o art. 27.1 dependerá,
então, do caráter, intensidade, profundidade e particular contexto da
emergência, assim como da proporcionalidade e razoabilidade guardadas pelas medidas adotadas quanto à mesma”.
CONTROLE DESTES MOTIVOS
O artigo 27.3 da Convenção Americana de Direitos Humanos
estipula que qualquer Estado Parte deverá informar imediatamente aos
outros Estados Partes, por intermédio do Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos, acerca das disposições suspensas,
bem como os motivos determinantes dessa suspensão isto é, deverá
notificar imediatamente o estado de exceção e da data em que haja
231
232
Idem, parágrafo 22.
Idem.
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193
dado por terminada tal suspensão.
Esta disposição visa portanto possibilitar aos demais Estados-parte
a fiscalização para prevenir derrogações de fato, bem como tentativas posteriores de justificar violações dos direitos humanos que já
tenham sido cometidas.
A maioria das constituições contém cláusulas de emergência que
conferem ao chefe de Estado ou de governo o poder de tomar medidas excepcionais (incluindo restrições ou suspensões dos direitos
básicos), com ou sem o consentimento do parlamento, em tempo de
guerra ou em outras situações de exceção. É óbvio que tal privilégio
está sob a ameaça de abuso ou de mau uso. Os que detêm o poder
podem usá-lo para manter sua posição ou para suspender os direitos de participação política e oposição de adversários.
O direito internacional, portanto, tem a tarefa de achar um equilíbrio
entre o reconhecimento do direito legítimo de Estados soberanos de
defender sua ordem constitucional e democrática e o mal uso do
direito de declarar um estado de emergência meramente para que
se mantenham posições de poder.
De acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, dentro de um Estado de Direito, torna-se necessário
o exercício do controle de legalidade das medidas por parte de um
órgão judicial autônomo e independente que verifique se a suspensão
de algum direito ocorreu em conformidade com a sua causa
autorizadora.
Neste sentido, pronunciou-se a Corte:233
“Assim sendo, é desde todo ponto de vista procedente, dentro de
um Estado de Direito, o exercício do controle de legalidade de tais
medidas por parte de um órgão judicial autônomo e independente
que verifique, por exemplo, se uma detenção, baseada na suspensão da liberdade pessoal, é adequada aos termos nos quais o estado de exceção o autoriza. Aqui, o habeas corpus adquire uma nova
dimensão fundamental.”
Este entendimento é reiterado ainda na opinião consultiva
233
Idem, parágrafo 40.
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n.9/87234 , que vem a salientar que para a preservação do Estado de
Direito faz-se necessário que haja um controle de legalidade das medidas tomadas em situação de emergência.
Diante do exposto, entende-se, portanto, que deve haver um controle por parte de um órgão judicial que vise preservar a legalidade das
situações excepcionais de emergência, a fim de impedir que sejam estendidos a,lém de seus limites temporários, ou que se originem de atos
desprovidos de causalidade ou oriundos de manifestações contempladas pelo abuso ou desvio de poder.
LIMITAÇÕES PROIBIDAS
As relações entre os direitos humanos e a democracia despertam grande interesse na atualidade, sobretudo do ponto de vista
jurisprudencial.
O conceito de Democracia deve ser analisado em uma perspectiva dialética, o qual, segundo Flávia Piovesan235 “ invoca um conceito aberto, dinâmico e plural, em constante processo de transformação”.
Para esta autora, na acepção formal a democracia compreende o respeito à legalidade, constituindo o chamado Governo das Leis,
marcado pela subordinação do poder ao Direito, sendo que esta concepção enfatiza a legitimidade e o exercício do poder político, avaliando
quem governa e como se governa.
Já, na acepção material a autora destaca que a democracia não se
restringe ao primado da legalidade, mas também pressupõe o respeito aos direitos humanos:
“Isto é, além da instauração do Estado de Direito e das instituições
democráticas, a democratização requer o aprofundamento da democracia no cotidiano, por meio do exercício da cidadania e da efetiva apropriação dos direitos humanos. Neste sentido, não há Democracia sem o exercício dos direitos e liberdades fundamentais. A
Democracia exige, assim, a igualdade no exercício de direitos civis,
políticos, sociais, econômicos e culturais.”
234
CIDH- opinião consultiva n. 9/87, de 06 de outubro de 1987. Garantias Judiciais em Estado de
Emergência, parágrafo 37.
235
Piovesan, Flávia. Democracia, Direitos Humanos e Globalização Econômica: Desafios e perspectivas
para construção da cidadania no Brasil. www.iedc.org.br
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Para Campos Bidart236 “ a democracia tem como núcleo essencial e constitutivo de seu conteúdo o reconhecimento, a tutela e a promoção dos direitos humanos”.
A democracia, pode ainda, ser invocada em uma dimensão social objetivando proteger os direitos humanos de limitações que sejam
indevidas de modo a assegurar sua plena vigência.
Os tratados de direitos humanos, e em especial a Convenção
Americana de Direitos Humanos237 trazem um liame de ligação dos
direitos humanos com a democracia, os quais segundo o Professor
Cançado Trindade238 “ ao dispor sobre limitações aos direitos consagrados, estabelecem como limites de discricionariedade estatal os imperativos e exigências de uma “sociedade democrática” .
Esta dimensão social da democracia tem sido utilizada portanto como modo de controlar as possíveis invocações de limitações ao
exercício dos direito humanos consagrados nos tratados.
Cançado Trindade239 ensina-nos que a inter-relação da democracia com os direitos humanos contribui para a necessária interpretação
restritiva das limitações permissíveis ao exercício dos direitos humanos,
sendo que tal interpretação restritiva foi reconhecida judicialmente.
Neste sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem
se manifestado tanto consultivamente como em exercício de sua competência contenciosa.
Na opinião consultiva referente ao habeas corpus sob suspen236
BIDART CAMPOS, German J. El Derecho Constitucional Humanitário. Sociedad Anónima Editora:
Buenos Ayres, 1996, p.95.
No original: “ que la democracia tiene como núcleo esencial y constitutivo de su contenido al reconocimiento,
la tutela y la promoción de los derechos humanos”.
237
Convenção Americana de Direitos Humanos, arts15 e 16 (2).
Art 15 “ É reconhecido o direito de reunião pacífica sem armas. O exercício de tal direito só pode estar
sujeito às restrições previstas pela lei e que sejam necessárias, numa sociedade democrática, no
interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a
moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas.”
Art 16 (2) “ O exercício de tal direito só pode estar sujeito ás restrições previstas pela lei que sejam
necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da
ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais
pessoas”.
238
CANCADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito internacional dos Direitos Humanos,
Vol. II, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 207.
239
Idem, p. 222.
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196
são de garantias, parágrafo 20 e 26, a Corte vem a esclarecer que a suspensão de garantias não pode dissociar-se do sistema democrático:
“. 20. A suspensão das garantias pode ser, em algumas hipóteses, o
único meio para atender às situações de emergência pública e preservar os valores superiores da sociedade democrática. Mas, a Corte
não pode abstrair-se dos abusos a que pode dar lugar, e os que de
fato ocorrerem em nosso hemisfério, a aplicação de medidas de
exceção, quando não estão objetivamente justificadas, de acordo
com os critérios que orientam o artigo 27 dos princípios que, sobre a
matéria, são deduzidos de outros instrumentos interamericanos. Por
isso, a Corte deve destacar que, dentro dos princípios que informam
o sistema interamericano, a suspensão de garantias não pode se
desvincular do “efetivo exercício da democracia representativa” aludida no artigo 3º da Carta da OEA. Esta observação é especialmente válida no contexto da Convenção, cujo Preâmbulo reafirma o propósito de “consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça
social, fundamentado no respeito dos direitos essenciais do homem”.
A suspensão de garantias carece de toda legitimidade, quando utilizada para atentar contra o sistema democrático, que dispõe limites
infranqueáveis quanto à vigência constante de certos direitos essenciais da pessoa.”
“26. O conceito de direitos e liberdades e, conseqüentemente, o de
suas garantias, é inseparável também do sistema de valores e princípios que o inspira. Em uma sociedade democrática, os direitos e
liberdades inerentes à pessoa, suas garantias e o Estado de Direito
constituem uma tríade, onde cada um dos componentes se define,
completa e adquire sentido, em função dos outros.”
Ainda neste sentido, pronunciou-se em opinião consultiva
requerida pelo governo do Uruguai a respeito da interpretação da expressão leis no art. 30,240 da Convenção Interamericana vindo a concluir
que a mesma refere-se a norma jurídica, oriunda dos órgãos legislativos
constitucionalmente previstos e democraticamente eleitos, o que signifi240
Art.30-“ As restrições permitidas, de acordo com esta Convenção, ao gozo e ao exercício dos direitos
e liberdades nela reconhecidos, não podem ser aplicadas senão de acordo com as leis que forem
promulgadas por motivo de interesse geral e com o propósito para o qual houverem sido estabelecidas.”
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197
ca que as limitações ao exercício dos direitos humanos só podem advir
de leis que estejam em consonância com a ordem democrática.
A mesma opinião consultiva em seu parágrafo 31, faz menção
ainda à opinião anterior exarada pela Corte em que esta determinou
que os conceitos de ordem pública e bem comum, quando invocados
como fundamentos de limitações aos direitos humanos, devem ser objeto de uma interpretação estritamente ligada às “justas exigências” de
“uma sociedade democrática”, que leve em conta o equilíbrio entre os
diversos interesses em jogo e a necessidade de preservar o objetivo e
finalidade da Convenção (A associação obrigatória de jornalistas arts.
13 e 29 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Opinião
Consultiva OC n. 5/85 de 13 de novembro de 1985, Série A, n. 5, parágrafos 66 e 67).
A proteção ao Estado de Direito241 é invocada novamente pela
Corte Interamericana ao decidir que as garantias que derivam da forma democrática de governo, devem entender-se como garantias judiciais destinadas ao controle da legalidade das medidas tomadas em
situação de emergência, em uma clara indicação que as limitações
aos direitos humanos, devem ser adequadas ao sistema democrático
e ao Estado de Direito.
Também em âmbito contencioso tem manifestado-se a Corte242
visando ressaltar o caráter limitado em que o Estado pode penetrar na
esfera dos direitos humanos asseverando que, “o exercício da função
pública tem limites derivados de que os direitos humanos são atributos
inerentes à dignidade humana e, em conseqüência, superiores ao poder do Estado.”
Deste modo, a Corte243 salienta que a proteção aos direitos
humanos implica na necessária restrição ao poder estatal, e o livre e
pleno exercício destes direitos implica no dever dos Estados-partes de
organizar todo o aparelho governamental e estruturas, através das quais
manifesta-se o exercício do poder público.
241
Neste sentido – Garantias Judiciais em Estados de Emergência, 1984, parágrafo 37.
Caso Velásquez Rodrigues (1988)- parágrafos 165 e 166.
243
Idem, ibidem.
242
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Diante de todo exposto, podemos concluir que apesar da jurisprudência da Corte Interamericana estar mais relacionada com situações que violam os direitos reconhecidos na Convenção, tais como
desaparição forçada de pessoas, violações à liberdade pessoal e devido processo, algumas opiniões consultivas, bem como casos
contenciosos trazem importantes delineamentos sobre o tema das limitações.
REFERÊNCIAS
BIDART CAMPOS, German J. El Derecho Constitucional Humanitário. Sociedad Anónima Editora: Buenos Ayres, 1996, p.95.
PIOVESAN, Flávia. Democracia, Direitos Humanos e Globalização
Econômica: Desafios e perspectivas para construção da cidadania
no Brasil. www.iedc.org.br em 02/04/2002.
CANCADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito internacional dos Direitos Humanos, Vol. II, Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 1999.
Convenção Americana sobre Direitos Humanos assinada em São
José da Costa Rica em 22 de novembro de 1969.
Opinião consultiva n. 8/87 de 30 de janeiro de 1987-0 habeas corpus
sob a suspensão de garantias, in www.corteidh.or.cr.
Opinião consultiva n. 9/87, de 06 de outubro de 1987- Garantias
judiciais em estado de emergência, in www.corteidh.or.cr.
Caso Velásquez Rodrigues (1988), in www.corteidh.or.cr.
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199
ENSAIO SOBRE O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
ANDREY HERGET
PROFESSOR NO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DA
FACULDADE MATER DEI E COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA
JURÍDICA. ESPECIALISTA EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL PELA
UNOESC. MESTRANDO EM DIREITO PROCESSUAL E CIDADANIA PELA
UNIPAR. ADVOGADO NO ESTADO DO PARANÁ.
Especialista em Direito Processual civil ( UNOESC/SC)
RESUMO
O texto aborda o princípio da publicidade a partir do sistema constitucional
brasileiro, um sistema aberto, composto por regras e princípios, tratando
desde a sua caracterização, as suas funções até as suas limitações. Fundado
em doutrina especializada, o autor ressalta a importância dessas limitações,
chamando-as também de “limitadores do princípio da publicidade”, como o
direito à intimidade, expresso na Constituição Federal brasileira.
ABSTRACT
The text points to the principle of advertising taking in account the Brazilian
Constitutional system, an open system, full of rules and principles, talking
about since its characterization, its functions until its limitations, calling them
as “Limiter of the principle of Advertising”, as the right to the relationship,
expressed in Brazilian federal Constitution.
PALAVRAS CHAVE - Direito Processual; princípio da publicidade.
INTRODUÇÃO
Configurar os principais contornos do princípio constitucional
da publicidade, será o principal desafio deste trabalho.
O tema, com todas as suas facetas, é deveras importante. Fonte
primária das normas, os princípios, axiomas e postulados são proposições não deduzidas de nenhuma outra dentro do sistema; são, por isso,
a própria essência do Direito; são o Direito essencial ou primordial. Por
isso qualquer estudo correto de uma disciplina jurídica deve iniciar-se
por eles.
Desta forma, inicialmente determinar-se-á algumas generalidades sobre o sistema constitucional assim como a importância e as funções dos princípios dentro do Ordenamento Jurídico brasileiro.
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Após, será delimitado o histórico do princípio em estudo e sua
evolução sócio-política até chegar-se aos seus limitadores – direito à
intimidade e o interesse social.
Ainda será estudado a tendência mundial de efetivação do
processo, analisando se o princípio da publicidade pode ser considerado obstáculo para tal busca.
Observa-se finalmente, que, a finalidade precípua desse trabalho não é, como nem seria possível ser, exaurir os assuntos apresentados, mas apenas estudar mais detidamente o princípio da publicidade,
seu conteúdo e aplicação dentro do sistema constitucional brasileiro.
DO SISTEMA CONSTITUCIONAL PRINCIPIOLÓGICO – NOÇÕES
PRELIMINARES
Para que o Direito, em geral, possa ser bem aplicado e que a
norma processual seja eficaz, o intérprete jurídico não pode prescindir
de uma visão principiológica, fundada sempre na Lei Maior. Assim,
todas as leis infraconstitucionais, inclusive as que nascem do poder constituinte derivado reformador através das emendas constitucionais, devem buscar validade na norma situada no ponto culminante da hierarquia, qual seja, a Constituição Federal.
Desta forma é imprescindível que antes da análise de um princípio específico, estude-se, mesmo que brevemente, sobre o sistema
constitucional em que está inserido, destacando ainda, a importância
dos princípios em geral.
DO SISTEMA CONSTITUCIONAL PROPRIAMENTE DITO
Tem-se sedimentado cada vez mais o entendimento de que o
Direito, como sistema, não prescinde de uma interpretação axiomática
e de uma hermenêutica que considere a Constituição como “norma-controle” da validade dos demais dispositivos que integram um dado
ordenamento jurídico.
Desta forma, não há como desconsiderar, por primeiro, os princípios fundamentais do Estado brasileiro para a boa aplicação do Direito neste País. Só assim será possível alcançar, na prática, um verdadeiro Estado Democrático de Direito, tanto mais, quando muitos dos
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
201
diplomas legais vigentes no Brasil são anteriores à Constituição de 1988,
que reformulou muitos conceitos, estabeleceu institutos processuais
democráticos, materializou outros tantos e introduziu uma verdadeira carta
de direitos constante de seu artigo 5º.
Portanto, a Constituição brasileira é colocada dentro do
ordenamento jurídico interno, como o último elemento de validade semântica, que irradia efeitos para todo ele, condicionando-o. Paulo de
Barros Carvalho1 conclui que o fundamento último de validade semântica é a constituição do Brasil.
Assim, impõe-se compreender o sistema constitucional como
aquele que fundamenta toda a ordem jurídica interna, dada a condição
de superioridade hierárquica de seus princípios e regras.
Ressalte-se, que a Constituição Federal, embora se constitua
como sendo um elemento sistêmico harmônico, não traduz uma
completude plena de seus dispositivos no ordenamento, denotando,
assim, a impossibilidade de compreender-se o sistema constitucional
de forma fechada, completa. Não pode ele ser tratado de forma estática, o que, sem dúvida, torna a Constituição um sistema aberto de normas e princípios.
É isto, inclusive, o que nos ensina o mestre Canotilho quando
afirma ser o sistema constitucional português um sistema aberto. Tal
ensinamento é totalmente aplicável ao ordenamento brasileiro, por suas
similitudes, veja-se2 :
(...) O sistema jurídico do Estado de direito democrático português é
um sistema normativo aberto de regras e princípios. Este ponto de
partida carece de descodificação:
(1) é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas;
(2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica (Caliess),
traduzida na disponibilidade e capacidade de aprendizagem das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da verdade e da justiça;
1
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito Tributário. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.137.
CANOTILHO, José J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Coimbra Ed.,
1994. p. 1085.
2
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202
(3) é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativas
referentes à valores, programas, funções e pessoas, é feita através
de normas; e,
(4) é um sistema de regras e de princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a
sua forma de regras.
Pode-se concluir, então, que o sistema jurídico constitucional
brasileiro, configura-se aberto justamente porque necessita, para sua
aplicabilidade, de se inter-relacionar com a realidade fática, estando
propenso às mudanças históricas e valorativas, pois não é a Constituição um fim em si mesmo, fechada às estruturas de interpretação
dialógicas, como bem ressaltou o mestre português Canotilho.
Por outro lado, é de suma importância ter consciência de que
não poderia um sistema constitucional ser meramente principiológico,
dotado apenas de pautas direcionadoras das condutas, pois os princípios, como é sabido, são dotados de conceitos jurídicos indeterminados,
ou seja, abstratos, que, apesar de possibilitar o contra-balanceamento
de valores, tornaria a segurança jurídica um fenômeno quase
inexistente.
É novamente o mestre Canotilho que de forma magistral, sintetiza a questão lecionando da seguinte maneira3 :
A existência de regras e princípios, tal como se acaba de expor, permite a descodificação, em termos de um ‘constitucionalismo adequado’ (Alexy: gemassigte Konstitutionnalismus), da estrutura
sistêmica, isto é, possibilita a compreensão da Constituição como
sistema aberto de regras e princípios.
Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática.
Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa - legalismo do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e
os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um ‘sistema de
segurança’, mas não haveria qualquer espaço livre para a
complementação e o desenvolvimento de um sistema, como o cons3
CANOTILHO, José J. Gomes. op cit. p.p. 1088-1089 passim.
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203
titucional, que é necessariamente um sistema aberto. Por outro lado,
um legalismo estrito de regras não permitiria a introdução dos conflitos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses,
de uma sociedade pluralista e aberta. Corresponderia a uma organização política monodimensional (Zagrebelsky).
O modelo ou o sistema baseado, exclusivamente, em princípios
(Alexy: prinzipien - Modell des Rechtssystems) levar-nos-íamos a
uma conseqüência também inaceitável. A indeterminação, a
inexistência de regras precisas, a coexistência de princípios
conflituantes, a dependência do ‘possível’ fático e jurídico, só poderiam conduzir a um sistema falho de segurança jurídica e
tendencialmente incapaz de reduzir a complexidade do próprio sistema. Daí a proposta aqui sugerida. Qualquer sistema jurídico carece de regras jurídicas. Contudo, o sistema jurídico necessita de princípios (ou os valores que eles exprimem)(...).
Portanto, outra não pode ser a conclusão, senão aquela que
leva a afirmar ser o sistema constitucional brasileiro, em face das premissas já expostas, um sistema aberto de regras e princípios, tendo a
inter-relação papel importantíssimo, quiçá, obrigatório.
DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
O professor Vicente Ráo4 , afirmava, já na década de 50, que a
ignorância dos princípios, quando não induz a erro, leva à criação de
rábulas em lugar de juristas. Contudo, não basta, ao operador do direito conhecer os princípios, insta saber o que são e para que servem,
como pré-requisitos de uma correta aplicação.
Celso Antônio Bandeira de Mello em relação aos princípios em
geral, leciona5 :
Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre
diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério
para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe con4
RAÓ, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. 5.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 48.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1981. p. 230.
5
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
204
fere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos
princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.
Os princípios constituem-se em fontes basilares para qualquer
ramo do direito, influindo tanto em sua formação como em sua aplicação. Em relação ao direito processual não poderia ser diferente, já que
os princípios estão presentes naqueles dois instantes, qual seja, em sua
formação como na aplicação de suas normas.
O professor Miguel Reale6 ao conceituar os princípios leciona
que estes são certos enunciados lógicos admitidos como condição ou
base de validade das demais asserções que compõem dado campo do
saber.
De Plácito e Silva7 , estudioso dos vocábulos jurídicos, defende
ser os princípios um conjunto de regras ou preceitos que se fixam para
servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando a conduta a
ser tida em uma operação jurídica.
Assim, é de fácil percepção a tamanha importância alcançada
pelos princípios dentro do ordenamento jurídico brasileiro, chegando
Marcelo Abelha Rodrigues8 a afirmar que, ao se ferir uma norma, diretamente estar-se-á ferindo um princípio daquele sistema, que na sua
essência estava embutido. Os princípios, portanto, afloram como pontos básicos que servem de base para a elaboração e aplicação do
direito.
DAS FUNÇÕES DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Sabe-se que os princípios, ao lado das regras, são normas jurídicas. Entretanto, princípios e regras, exercem funções diferentes dentro do
sistema normativo. Estas, por descreverem fatos hipotéticos, possuem a
nítida função de regular, direta ou indiretamente, as relações jurídicas que
se enquadrem nas molduras típicas por elas descritas. Já os princípios,
são normas generalíssimas dentro desse mesmo sistema.
6
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 300.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 3ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 447.
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1998. p. 50.
7
8
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
205
Para Canotilho9 , os princípios são “multifuncionais”, apontando
o ilustre mestre três funções, para ele, básicas:
a) função de fonte subsidiária1 0;
b) função fundamentadora1 1; e,
c) função orientadora da interpretação1 2.
9
ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
p. 46. No mesmo sentido, o jurista espanhol F. de Castro assim escreveu: a função de ser “fundamento
da ordem jurídica”, com “eficácia derrogatória e diretiva”, sem dúvida a mais relevante, de enorme
prestígio no Direito Constitucional contemporâneo, a seguir, a função orientadora do trabalho
interpretativo e, finalmente, a de “fonte em caso de insuficiência da lei e do costume (apud BONAVIDES,
Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7.ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998. p. 255).
10
O ordenamento jurídico brasileiro, positivou esses dois princípios gerais nos seguintes dispositivos: 1)
O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade na lei. No julgamento da
lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos
princípios gerais de direito (art. 126 do Código de Processo Civil); e, 2) Quando a lei for omissa, o juiz
decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (art. 4.º da Lei de
Introdução ao Código Civil). Então, na qualidade de fonte subsidiária do direito, os princípios serviriam
como elemento integrador ou forma de colmatação de lacunas do ordenamento jurídico, na hipótese de
ausência da lei aplicável à espécie típica. Portanto, caso o juiz não encontrasse disposições legais
capazes de suprir a plena eficácia da norma constitucional definidora de direito, deveria buscar outros
meios de fazer com que a norma atinja sua máxima efetividade, como a analogia, os costumes e, por fim,
os princípios gerais de direito. Os princípios seriam, assim, a ultima ratio: não há lei? Utilize a integração
analógica. Não é possível a analogia? Vá às regras consuetudinárias. Costumes não há? Ah, agora sim
vamos aplicar os princípios! Essa mentalidade, porém, parece estar ultrapassada. Ao conferir normatividade
aos princípios, estes perdem o caráter supletivo, passando a impor uma aplicação obrigatória. De fato,
não é mais tão correto assim considerar os princípios mera fonte subsidiária do direito. Aliás, é até um erro
utilizar o princípio como fonte subsidiária e não como fonte primária e imediata de direito. Ora, desde o
início deste estudo está-se enfatizando a força normativa dos princípios, de forma tal que não é de admitirse que o princípio seja subjugado à condição de mero instrumento supletivo em caso de lacuna de lei. É
exatamente o contrário: é a lei que deve suprir, ou seja, completar e esclarecer os mandamentos dos
princípios. É nesse sentido a lição de PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3.ª ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1999. p. 14 : os princípios não são meros acessórios interpretativos. São
enunciados que consagram conquistas éticas da civilização e, por isso, estejam ou não previstos na
lei, aplicam-se cogentemente a todos os casos concretos.
11
Para MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1980. p.p. 230-254 passim, o princípio, enquanto mandamento nuclear de um sistema, exerce
a importante função de fundamentar a ordem jurídica em que se insere, fazendo com que todas as
relações jurídicas que adentram ao sistema busquem na principiologia constitucional o berço das estruturas
e instituições jurídicas. Os princípios são, por conseguinte, enquanto valores, a pedra de toque ou o
critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada.
12
Pode-se dizer, assim, que o princípio é a melodia que inspira a dança do intérprete, que deve estar
sempre “afinado” com a música. A letra pode mudar. O compositor, também. E até o ritmo pode sofrer
alterações. Mas a melodia sempre será a mesma, e o intérprete, em sua dança hermenêutica, deverá
tentar acompanhá-la custe o que custar. Na concepção de BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e
aplicação da Constituição. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 141: o ponto de partida do intérprete há
que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia
da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios
constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte com fundamentos ou qualificações essenciais
da ordem jurídica que institui.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
206
Ao lado dessas três funções mencionadas por Canotilho, outras existem, como por exemplo, as enumeradas por José de Albuquerque
Rocha1 3, in verbis:
Os princípios têm a função de qualificar, juridicamente, a própria realidade a que se referem, indicando qual a posição que os agentes
jurídicos devem tomar em relação a ela, ou seja, apontado o rumo
que deve seguir a regulamentação da realidade, de modo a não
contravir aos valores contidos no princípio e, tratando-se de princípio
inserido na Constituição, a de revogar as normas anteriores e invalidar as posteriores que lhes sejam irredutivelmente incompatíveis.
Ademais, servem os princípios como limite de atuação do jurista.
Explica-se: no mesmo passo em que funciona como vetor de interpretação, o princípio tem como função limitar a vontade subjetiva do aplicador
do direito, vale dizer, os princípios estabelecem balizamentos dentro dos
quais o jurista exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e sua
capacidade de fazer a justiça no caso concreto1 4.
Trabucchi e Bobbio1 5, ainda, aludem que os princípios, podem
ser vislumbrados em distintas dimensões: fundamentadora, interpretativa,
supletiva, integrativa, diretiva e limitativa, contudo, não será analisado tal
concepção mais detidamente por fugir à alçada deste trabalho, restando
adentrar ao estudo do objeto específico que ora interessa.
DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
Entre os vários princípios existentes na Carta Máxima brasileira, um reluz com específica importância, podendo ser considerado conseqüência direta da existência de um Estado Democrático de Direito, a
publicidade dos atos processuais.
Pouco se comenta ou é questionado a respeito desse princípio,
supondo-se, talvez, que a apreensão de seu sentido e extensão sejam
claros, ou, ao menos, facilmente perceptíveis. Entretanto, esse estudo
se faz necessário ante sua grande importância dentro do Ordenamento
Jurídico interno como restará demonstrado, tornando-se nítida a riqueza
de seus desdobramentos.
13
14
15
ROCHA, José de Albuquerque. op. cit. p. 47.
BARROSO, Luís Roberto. Op. cit. p. 256.
apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7.ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998. p. 254.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
207
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, solenemente
proclamada pela Organização das Nações Unidas em 1948, no artigo
10 garante o princípio da publicidade popular. E hoje, a Constituição
brasileira consagra tal princípio nos artigos 5.º, inc. LX e 93, inc. IX,
antes assegurado apenas em legislações ordinárias como o CPC, art.
155; CPP, art. 792; e, CLT, art. 770 .
O princípio da publicidade dos atos processuais constituiu preciosa garantia do indivíduo em relação ao efetivo exercício da jurisdição, pois se por um lado, permite a fiscalização externa, por outro, via
de conseqüência, aumenta a responsabilidade das decisões judiciais.
Nesse sentido é a lição de Cintra, Grinover e Dinamarco1 6 quando
escrevem que realmente, o sistema da publicidade dos atos processuais situa-se entre as maiores garantias de independência, imparcialidade, autoridade e responsabilidade do juiz.
Na doutrina nacional, infelizmente, o que se encontra é o princípio da publicidade ligado na maioria das vezes ao campo de aplicação do direito administrativo. Não se pode olvidar que neste ramo do
direito também esse princípio tem grande importância, mas restringi-lo
à essa área é errôneo. Os doutrinadores constitucionalistas pouco se
ocupam dele, e quando a ele se referem, derivam da matriz constitucional de um princípio administrativo, sempre reportando ao artigo 37 da
Carta Magna, com raras exceções.
José Afonso da Silva1 7 leciona que:
A publicidade sempre foi tida como um princípio administrativo, porque se entende que o Poder Público, por ser público, deve agir com
a maior transparência possível, a fim de que os administrados tenham, a toda hora, conhecimento do que os administradores estão
fazendo.
Alexandre de Moraes1 8 afirma que o princípio é respeitado quando os atos da administração são inseridos no Diário Oficial do ente respectivo.
16
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
Geral do Processo. 19.ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 69.
17
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. p. 653.
18
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999. p. 295.
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208
Maria Sylvia Zanella di Pietro1 9, traz à colação a importância do
asseguramento, pelo dispositivo constitucional, do direito de informação do cidadão, com base no art. 5.º, incisos XIV e XXXIII da CF/88, não
só em face de interesse particular, mas, igualmente em face dos interesses coletivos ou gerais, de modo a operar uma forma mais eficiente de
controle popular da administração pública. Da mesma forma pensa Celso Antônio Bandeira de Mello2 0.
Já com base em Norberto Bobbio e Celso Lafer, Odete
Medauar2 1 ensina que: o tema da transparência e visibilidade, também
tratado como publicidade da atuação administrativa, encontra-se associado a reivindicação geral da democracia administrativa.
Entretanto, o âmbito no qual é tratado o princípio em estudo,
deve ser ampliado para compreendê-lo mesmo entre os Princípios
Gerais de Direito. Essa corrente, ainda que minoritária, vem conquistando inúmeros adeptos, como por exemplo Antônio A. Queiroz Teles2 2
que sobre o assunto assevera:
(...)ora, os atos administrativos são espécies do ato jurídico, logo,
nas mesmas condições, serão públicos. Basta tal raciocínio para
concluir-se que o princípio da publicidade também não é particular
do direito administrativo, embora nele se manifeste com toda evidência.
Assim, na verdade paira sobre este princípio dois
posicionamentos; os que sustentam que o princípio da publicidade se
retém no âmbito administrativo, como elemento essencial de controle
da Administração Pública, e de outro lado, os que vêem no referido
princípio um campo de aplicação bem mais amplo, encaixando-o como
um verdadeiro princípio geral de direito. Parece mais acertada esta ultima tese.
Tal assertiva, deve ser feita com muita cautela, pois, embora concorde-se que o âmbito de aplicação desse princípio deva ser
19
PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 1997. p. 68.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 59
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p.139.
22
TELES, Antônio A. Queiroz. Introdução ao Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1995. p. 42.
20
21
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
209
ampliado, não se pode abster de levar em consideração que as
normas constitucionais, assim como todas as demais, devam ser
interpretadas de forma conjugada, ou seja, não são, nem podem
ser tidas por absolutas, haja vista, estarem inseridas dentro de um
contexto, qual seja, o Ordenamento Jurídico como um todo, daí dizer-se que a Constituição Federal é um sistema normativo aberto
de regras e princípios, como já explanado.
O intérprete jurídico deve conciliar tal princípio dentro do sistema constitucional no qual encontra-se inserido, sob pena de desvio de
finalidade constitucional.
É nesse sentido que leciona Juarez Freitas, in verbis2 3:
A Constituição Federal há de ser sempre interpretada, pois somente
por meio da conjugação da letra do texto com as características
históricas, políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor sentido da norma jurídica, em confronto com a realidade
sociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia.
Assim, o intérprete jurídico deverá buscar a harmonia do texto
com suas finalidades precípuas, adequando-as à realidade e pleiteando a maior aplicabilidade dos direitos, garantias e liberdades públicas.
Desta forma, quando se diz em “ampliar o âmbito de alcance”,
não está a defender-se que tal princípio deverá se impor absoluto,
pelo contrário, o princípio da publicidade é limitado por vários outros
princípios, além dos direitos e garantias individuais, de suma importância, que devem ser respeitados; é o caso por exemplo do direito a
intimidade e do interesse social caracterizados como um dos mais proeminentes limitadores do princípio objeto desse estudo o que se verá
adiante.
Por agora, importante tratar-se de um ponto pouco explorado
dentro do princípio da publicidade, já que esta prestação de publicidade é obrigação de todas as funções da República – Judiciário, Legislativo
e Executivo. Deste último, explicitamente o caput do art. 37 trata, alinhando outros princípios a que deve obediência o administrador. Do
legislativo, espera-se prestação de contas tanto do dinheiro público gasto
23
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. São Paulo: Malheiros Editores, 1996. p. 149.
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210
no seu sustento como do mandato popular, legitimada pelo voto.
Quanto ao Judiciário, a própria Constituição estatui regramento
específico quanto à publicidade de seus atos conforme inscrito no inciso
IX de seu art. 93. Estatui assim, a necessidade de fundamentação dos
atos judiciais, pois é na publicidade destes atos que se constrói a ponte
entre o juiz e o cidadão.
Desta forma, todos os seus atos, com exceção dos que possam atingir a intimidade dos envolvidos ou quando o interesse social
assim o exigir, embora, seja forçoso admitir que o legislador deixou ao
magistrado um amplo poder para decidir o que seria este “interesse
social”, o que está entabulado no inciso LX ,do artigo 5.º, da Constituição é que a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais
quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.
No Judiciário, o princípio da publicidade deve estar presente
no processo. O artigo 155, do Código de Processo Civil, normatiza que
os atos processuais são públicos. Correm, todavia, em segredo de justiça, os processos (...) e no processo penal, o artigo 792, do Códex Criminal reafirma o caráter público das audiências, enquanto o parágrafo
primeiro deste artigo excepciona o princípio geral da publicidade, para
salvaguardar a ordem pública.
Essa dúplice vertente do princípio da publicidade no âmbito de
atuação de Judiciário, é muito bem explanado por Nagib Slaibi Filho,
veja-se2 4:
Vemos, assim, que o princípio da publicidade, no Poder Judiciário,
funciona em dois níveis: no primeiro, no sentido de publicidade ampla, absoluta ou externa em que a atuação do Estado-juiz deve ser
levada ao conhecimento de toda a sociedade, como fator de
legitimação do exercício do poder e, no segundo, como publicidade
relativa, restrita ou interna em que se restringe o conhecimento dos
atos processuais tão-somente às partes e advogados.
Outros dispositivos da própria Constituição Federal, reafirmam
direta ou indiretamente a obrigação de respeito ao princípio da publicidade. Da mesma forma o o ordenamento jurídico como um todo.
24
SLAIBI FILHO, Nagib. Sentença Cível. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 132.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
211
Em suma, têm-se que o controle dos atos públicos, sejam do
Executivo, do Legislativo ou do Judiciário, precisam ser de conhecimento
público, isto é, da coletividade que vê sua vida ser afetada por decisões
e atos tomados por aqueles cuja legitimidade está, em última análise,
na escolha do cidadão.
Contudo, é de crer-se que o legislador constituinte, quando instituiu o princípio da publicidade, não teve em mente apenas a formalidade da publicação da atuação dos três poderes, pelo contrário, o seu
conteúdo também é de suma importância, pois o cidadão precisa compreender o que está publicado. Se for publicado, mas não for entendido,
é como se público, não fosse. Muito embora a Constituição Federal não
seja expressa quanto a isto, basta uma interpretação sistemática, para
se concluir que, a publicação de quaisquer atos públicos deve ser clara,
e eficaz.
Desta forma, há que se concluir que as leis, principalmente as
que contêm comandos dirigidos diretamente aos cidadãos, devem ser
claras, para que cumpra sua finalidade que é o de comunicação entre
o Estado e o cidadão, por meio da publicação.
Na jurisprudência pátria, inclusive do Supremo Tribunal Federal, assim como a do Superior Tribunal de Justiça, está em discussão
exatamente a questão ora tratada.
A título de exemplo, traz-se a colação o REsp. 254710/PR (2000/
0034508-3), relatado pelo ilustre Ministro Hamilton Carvalhido, julgado
em 11/10/2000, veja-se:
RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. DELEGADO DA POLÍCIA FEDERAL. EXAME PSICOTÉCNICO. LEGITIMIDADE.
REVERSIBILIDADE E PUBLICIDADE. 1. O exame psicotécnico é
legítimo haja ou não previsão legal, desde que subsista a necessidade de se proceder a avaliação psíquica do candidato aspirante a
um cargo público. 2. Em face do objetivismo, o seu resultado é passível de reversibilidade e publicidade, de modo a se excluir a subjetividade do avaliador e a ofensa aos princípios constitucionais da legalidade e da impessoalidade. 3. Recurso não conhecido.
Neste julgado, o eminente Ministro vislumbrou a ofensa ao princípio da publicidade; foi observado, ainda, que o próprio edital, como
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212
norma abstrata, já deveria ser claro o suficiente para que o candidato
pudesse ser avaliado por critérios claros, objetivos, a possibilitar a análise do desempenho do candidato com base nestes mesmos critérios,
sem necessidade de anulação do certame ou repetição do exame, o
que conspira contra a economia, celeridade e eficiência da Administração, com prejuízo último ao próprio cidadão, diretamente ao candidato
e indiretamente à coletividade.
Assim, constata-se que, o legislador constituinte originário não
se preocupou apenas com que os atos dos três poderes da República
fossem publicados, mas antes, quis também que tais publicações sejam compreendidas pelos seus destinatários finais, os cidadãos em
geral, servindo assim de ponte entre o Estado e o povo.
LIMITADORES DO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE – DIREITO À
INTIMIDADE E O INTERESSE SOCIAL
Ao tratar do princípio da publicidade, não há como deixar de
evidenciar sua limitações, ou melhor, seus limitadores, por não se tratar, como já dito, de direito absoluto.
É nesse sentido a afirmação de Cintra, Grinover e Dinamarco2 5,
veja-se:
(...), todas as precauções hão que ser tomadas contra a exasperação do princípio da publicidade. Os modernos canais de comunicação de massa podem representar um perigo tão grande como o
próprio segredo. As audiências televisionadas têm provocado em
vários países profundas manifestações de protestos. Não só os juízes
são perturbados por uma curiosidade malsã, como as próprias partes e as testemunhas vêem-se submetidas a excessos de publicidade que infringem seu direito à intimidade, além de conduzirem à
distorção do próprio funcionamento da Justiça através de pressões
impostas a todos os figurantes do drama judicial.
Publicidade, como garantia política – cuja finalidade é o controle da
opinião pública nos serviços da justiça – não pode ser confundida
com o sensacionalismo que afronte a dignidade humana. Cabe à
técnica legislativa encontrar o justo equilíbrio e dar ao problema a
25
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. op. Cit. p. 70.
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213
solução mais consentânea em face da experiência e dos costumes
de cada povo.
Atento a este, porém, o legislador constituinte de 1988 elencou
diversos regramentos limitadores desse princípio, entre eles encontrase o direito de defesa da intimidade e o interesse público, expressos
no artigo 5.º, inciso LX, da Constituição Federal dispondo que a lei só
poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a
defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;
Sob o mesmo prisma normatiza no inciso X do mesmo artigo
5.º que:
são invioláveis à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das
pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação;
Na mesma linha de pensamento encontra-se o artigo 93, inciso
IX da Carta Maior:
todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade,
podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em
determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;
Assim, no Brasil, em regra, o processo é público. A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais, quando a defesa da
intimidade ou o interesse social o exigirem.
Em verdade, é interesse da própria justiça que seus trabalhos
sejam públicos. A publicidade é um anteparo a qualquer investida contra
a autoridade moral dos julgamentos. O ato praticado em público inspira
mais confiança dos que o praticado às escondidas. Rui Portanova2 6 diz
que a publicidade dos atos processuais, portanto, interessa igualmente
ao Poder Judiciário e aos cidadãos em geral. A publicidade garante
mais confiança e respeito, além de viabilizar a fiscalização sobre as
atividades dos juízes.
Mas como visto, a publicidade não é absoluta. O interesse público que embasa a regra da publicidade, em algumas hipóteses pode
26
PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 4.ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 168.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
214
estar melhor resguardando se o conhecimento do processo for “à portas
fechadas”. Com a vigência da atual Constituição, as regras de processo
devem ser interpretadas e aplicadas de modo que resguardem a proteção do direito à intimidade. Este, segundo José Augusto Delgado2 7,
encontra-se a cada ato processual praticado, ameaçado, pela possibilidade de pessoas não envolvidas com o litígio terem conhecimento de
fatos concernentes à esfera íntima das partes.
Rui Portanova2 8 leciona que alguns temas costumam ensejar
a exceção ao princípio da publicidade. São exemplos: a defesa nacional, a ordem pública, a intimidade dos interessados, a moral, os bons
costumes e a defesa da família.
Busca-se, com a restrição da publicidade, evitar a curiosidade
geral, as conseqüências desastrosas, a perturbação da ordem, a apreensão do povo, o alarme, o tumulto, o apavoramento, a marca negativa e a afronta à dignidade das pessoas físicas e jurídicas, sejam de
direito privado ou público.
Fadel escreve sobre o assunto que2 9:
o segredo de justiça pode ser ordenado sempre que se trate de
matéria que humilhe, rebaixe, vexe ou ponha a parte em situação de
embaraço que dificulte o prosseguimento do ato, a consecução da
finalidade do processo, ou possa envolver revelação prejudicial à
sociedade, ao Estado, ou a terceiro.
Para proteger tais situações, a mesma Constituição que institui a regra da publicidade, viabiliza a exceção. Assim, a lei, se o direito a
intimidade ou o interesse público o exigir, poderá, inclusive, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados,
ou somente a estes. (CF., art. 93, inc. IX, Segunda parte).
Para Rui Portanova3 0:
diz-se que corre em segredo de justiça os processos com publicidade restrita. O CPC optou por dividir em dois incisos as hipóteses
27
DELGADO, José Augusto. Alguns aspectos controvertido no processo de conhecimento. São Paulo:
Revista dos Tribunais. v. 664, 1991. p. 31.
28
PORTANOVA, Rui. op cit. p. 169.
29
FADEL, Sérgio Sahione. Código de Processo Civil Comentado. 3.ª ed. v.1, 1975. p. 265.
30
PORTANOVA, Rui. op cit. p. 170.
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215
de exceção à publicidade. A primeira utiliza-se de acepção ampla.
Cada caso dirá, a critério do juiz, quando o interesse público exige
segredo (CPC., art. 155, inc. I). Na Segunda hipótese, o legislador
optou pela enumeração legal de critérios objetivamente considerados. Assim, é limitado às partes e aos advogados o acesso às ações
que dizem respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges,
conversão desta em divórcio, alimento e guarda de menores.
Além dessas hipóteses, que atingem o processo em todos os seus
atos, o CPC prevê outras em que o segredo é limitado a determinados atos. Assim, o interesse em que não se frustem medidas
liminares, são previstos casos de restrição à publicidade na justificação prévia para o arresto (CPC., art. 815), para seqüestro (CPC.,
art. 823) e para a busca e apreensão (CPC., art. 841).
Por outro lado, em processos que despertam muito interesse
na sociedade, tem-se garantido o princípio da publicidade, limitandose o acesso ao público ao número de lugares em determinado recinto.
Fora dessa hipótese, interessa à publicidade o livre acesso do público
à audiência. Admite-se a porta esteja encostada, seja para impedir a
comunicação entre as testemunhas, seja para o funcionamento do ar
condicionado3 1.
Enfim, ao sistema processual democrático, a publicidade é
essencial. Assim, garante-se às partes uma participação efetiva no
processo e respalda-se o direito de peticionar e de provar. A par disso,
obriga o Poder Judiciário a prestar contas de seus atos.
Finalizando, o autor Arruda Alvim3 2 qualifica o princípio da publicidade dos atos no processo, antes de mais nada como um princípio
ético, mencionando que:
A publicidade é garantia para o povo de uma justiça justa, que nada
tem a esconder; e, por outro lado, é também garantia para a própria
Magistratura diante do povo, pois agindo publicamente, permite a
verificação de seus atos.
31
veja-se: Revista dos Tribunais. v. 684, p. 331.
ALVIM, José Manoel Arruda. Manual de Direito Processual Civil (ampliado a atualizado de acordo
com a Constituição de 1988). 4.ed. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p.84.
32
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
216
Pode-se assim, sintetizar o exposto afirmando que a publicidade dos atos processuais está elencada como direito fundamental do
cidadão, mas a própria Constituição Federal faz referência aos casos
em que a lei admitirá a restrição desse princípio, quais sejam entre outros o direito à intimidade e o interesse social.
CONCLUSÃO
O mundo moderno impõe a busca de novas alternativas condizentes com o turbulento e dinâmico macroambiente desta “aldeia global” (Mcluhan), que tem no signo do efêmero sua qualificadora
indissociável.
Realmente, o impacto revolucionário das novas tecnologias internet correio eletrônico, telefone celular, computadores portáteis, fax,
software - e dos mais modernos meios de comunicação - TV a cabo,
via satélite, videoconferência, etc - parecem ser incompatíveis com a
segurança jurídica, que é a razão de ser do Ordenamento Jurídico e
quiçá do próprio direito em sua essência.
E é nesse conturbado cenário que surge a importância maior
dos princípios constitucionais: servir justamente para dar o norte para
onde o hermeneuta deve seguir nessa difícil atividade de adaptação
do direito posto às novas situações jurídicas que vão surgindo num
planeta globalizado, completamente diferente de tudo que já existiu.
Os princípios são, pois, neste momento de incertezas e transformações, o estado da arte na interpretação evolutiva, a única capaz
de dar vida ao direito. E eles (os princípios) estão aí espalhados por
todo o Ordenamento Jurídico.
A Constituição está cheia deles, já que é Lei Fundamental a
“ambiência natural dos princípios”, segundo Willis Guerra Filho. Cabe
a nós “descobri-los” e utilizá-los de forma adequada e satisfatória. Parafraseando J. J. Calmon de Passos, diríamos que, assim como os
mandamentos de Deus de nada valem para os que não têm fé, de
nada valem os princípios constitucionais para os que não têm a consciência de sua potencialidade.
Nesse contexto que se insere, o princípio da publicidade; este
princípio está sempre em conflito com o seu oposto, que é o segredo;
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
217
de um lado, interessa que o público saiba tudo o que ocorre nos tribunais, mas, de outro lado, não deixa de ser prejudicial a curiosidade gratuita; a Constituição Federal assim como o Código de Processo Civil e
as demais normas infraconstitucionais, ficam no meio-termo e adotam o
princípio da publicidade restrita; a regra é serem os atos judiciais públicos, mas certas causas correm em segredo de justiça, “à portas fechadas”, como as referentes a casamento, união estável, filiação, separação judicial, alimentos etc.
Desta forma, é forçoso reconhecer a existência de limites constitucionais ao princípio da publicidade. De acordo com nossa Lei Maior, ele jamais poderá vir a ser compreendido, de modo a que propicie a
violação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das
pessoas (art. 5.º, X, c/c. art. 37, § 3.º, II (32), da CF), do sigilo da fonte
quando necessário ao exercício profissional (art. 5.º, XIV, da CF), ou
com violação de sigilo tido como imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (art. 5.º, XXXIII, c/c. art. 37, § 3.º, II, da CF).
Assim, muito claro e objetivo é o inciso LX do artigo 5.º da
Constituição Federal, que estatui ser a publicidade dos atos processuais a regra, só podendo ser restringido quando a defesa da intimidade
ou o interesse social o exigirem.
Crendo ter contribuído, ao menos um pouco, para maior
compreensão do princípio da publicidade, finalizo este ensaio,
apropriando das palavras do brilhante Rui Barbosa: Pouca importância
dão, em geral, os nossos publicistas às “questões de princípios”. Mas
os princípios são tudo. Os interesses materiais da nação movem-se de
redor deles, ou, por melhor dizermos, dentro deles.
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221
O CORRETOR DE IMÓVEIS E O NOVO CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO
ERLON ANTONIO DE MEDEIROS
PROFESSOR DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DA
FACULDADE MATER DEI. ESPECIALISTA EM DIREITO PROCESSUAL
CIVIL PELA UFPR-MATER DEI. ADVOGADO NO PARANÁ.
RESUMO
O artigo cuida da criação de uma nova figura jurídica com o advento do novo
Código Civil brasileiro (Lei 10.406/2002), o “corretor”, não apenas o corretor
de imóveis, mas corretores em geral, matéria que era tratada em legislação
esparsa. O texto inicia caracterizando quem seja considerado legalmente
corretor, diferenciando este da figura do mandatário, e explicando as distinções
existentes, inclusive entre “corretagem” e “prestação de serviços”.
ABSTRACT
The article is about the new juridical figure that appeared with the new Brazilian
Civil Code ( act # 10.406/2002), the “broker”, not only the real state broker
but all kinds of brokers , issue that was treated in a dispersive statute. The
text begins characterizing who is considered legally a broker, different from
the figure of a sender and explaining the differences between what is brokerage
and rendering of services.
PALAVRAS CHAVE - Direito Civil; novo Código Civil brasileiro;
corretagem e corretor.
Em razão do bastante próximo advento do Novo Código Civil
Brasileiro (Lei 10.406/2002), que se dará a partir da zero hora (começo) do dia 11 de janeiro de 2003, e considerando que tal legislação
passa a contemplar a figura do Corretor, embora não apenas o de
imóveis e sim dos corretores em geral, procuramos traçar neste
brevíssimo estudo algumas idéias gerais acerca do tema, debruçandonos, porém, especificamente sobre a corretagem de imóveis.
Para facilitar o entendimento e evitar alongamentos desnecessários, as referências a artigos, quando não especificadas sobre a qual
legislação pertencem, e estando separadas por barra, serão sempre
nesta ordem: Código Civil atual (Lei 3.071/1916) / Novo Código Civil
(Lei 10.406/2002).
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222
Como já se disse, a figura do Corretor não vinha contemplada
na legislação civil até a promulgação e publicação da lei 10.406/2002244 .
Antes, vinha regulada em legislação esparsa (lei 6.530/78 e Dec. 81.871/78) e
principalmente, no Código Comercial, nos arts. 36 a 67.
O Novo Código Civil, nos arts. 722 a 729, traz disposições gerais sobre o que chama de Contrato de Corretagem, definindo-o como
quando “uma pessoa, não ligada a outra em virtude de mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência, obriga-se a
obter para o segundo um ou mais negócios, conforme as instruções recebidas” (NCC, art. 722).
Já que o Código as diferencia, mister definir o que seja a relação de mandato e a de prestação de serviços (além das “relações de
dependência”), para marcar definitivamente sua distinção com a corretagem.
O mandato, definido no Código Civil atual nos arts. 1.288 até o
1.330, com correspondência nos arts. 653 a 692 do Novo Código Civil,
em que pesem as várias alterações, está definido em ambos como “a
prática de atos ou a administração de interesses de uma pessoa por
outra, mediante poderes conferidos em um instrumento”. “A procuração é o instrumento do mandato” (art. 1.288 / art. 653).
Assim, sempre que houver uma procuração estabelecendo poderes para efetuar a venda ou a compra (ou permuta, etc., conforme art.
3.º da Lei 6.530/78) de determinado imóvel (ou imóveis), esta relação
estará dissociada da corretagem, não incidindo, portanto, nenhuma das
prerrogativas conferidas aos corretores, as quais, ainda que de forma
breve e sucinta, serão adiante abordadas.
Interessante mencionar que, atualmente, o procurador encarregado de vender um imóvel, não poderá comprá-lo jamais, sob pena de
nulidade absoluta, proibição esta que desaparecerá com o advento do
Novo Código Civil (art.1.133 / art. 497).
O mandato, pois, ou mais especificamente, a procuração outorgada pelo vendedor ou pelo comprador (permutantes, locador, etc.) exclui
244
O Novo Código Civil já foi promulgado, ou seja, em linhas gerais, já existe, ante a sanção presidencial,
e já é obrigatório, o que se dá pela publicação. Apenas não terá vigência, isto é, aplicação efetiva, antes
de 11/01/2003.
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223
a prática da corretagem e seus efeitos, isso lógico, sendo perfeitamente
constituído, ou seja, não padecendo o mandato de quaisquer dos vícios
que possam inquinar a prática de um ato ou negócio jurídico, tais como
erro, dolo, coação, simulação, lesão, estado de perigo, etc.
De outro lado, a simples prática de atos distintos pelo mandatário, e não abrangidos na procuração outorgada, quais sejam, de um lado
a atividade própria do Corretor, e de outro, absolutamente distinta, a
atividade de mandatário, poderá, frise-se bem, poderá fazer com que
coexistam as duas figuras, e bem assim as remunerações específicas
de cada uma delas, na medida em que, embora o art. 722 do Novo Código Civil deixe genérica a definição, referindo-se apenas a “uma pessoa, não ligada a outra em virtude de mandato”, não se poderá conceber que efetuando trabalhos distintos não possa a mesma pessoa ser
remunerada por ambos, desde que não decorrentes, especificamente,
de obrigatoriedade originada em um ou em outro vínculo.
Não é, pois, qualquer ato outorgado, por meio de mandato, que
fará desaparecer a relação de corretagem. E vamos mais longe: apenas o mandato que efetivamente prever atribuições relacionadas com
a mediação da corretagem é que poderá expungi-la, por incompatível.
Caso contrário, permanecerão hígidas as disposições acerca da corretagem.
Em linhas gerais, são estas as diferenças entre mandatário e
corretor. Há outra, importantíssima, que será mencionada adiante, na
conclusão deste ensaio, eis que necessária, para melhor delinear-lhe
os contornos, a abordagem do tema “prestação de serviços”:
Aparentemente, mais difícil é a diferenciação da Corretagem
com a Prestação de Serviços, e bem assim quando é que uma exclui
ou não a outra.
A par de poder caracterizar uma relação própria de emprego,
se encontrar correspondência fática na definição de empregado do art.
3.º, da Consolidação das Leis do Trabalho, a Prestação de Serviços é
para o direito civil um instituto que se define como a cessão temporária
de trabalho em alguma especialidade técnica do locador, que a empregará com liberdade na busca de um resultado ou de uma obra certa,
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
224
embora sem vinculação com o resultado do empreendimento, mediante
remuneração paga pelo locatário.
Aparentadas, sem dúvida, a Prestação de Serviços e a Corretagem. Em ambas “alguém” “contrata” outro alguém para conseguir determinado fim, sendo a especialidade técnica uma evidente decorrência dessa contratação. Melhor traduzindo, o “alguém”, para a mediação
da corretagem, contratará pessoa habilitada para tanto, assim como em
qualquer prestação de serviço se dará. Às escâncaras se poderá dizer
que Corretagem é uma espécie do gênero Prestação de Serviços.
Diferem, porém, os institutos, no seguinte: a Prestação de Serviços é de unânimes Doutrina e Jurisprudência definida como sendo
uma obrigação de meio, isto é, não está obrigado o locador de serviços
a alcançar um fim, ainda que tal fim venha determinado no contrato, mas
apenas obrigado a empregar seus esforços e sua especialidade da
busca do objetivo indicado. Assim é, em regra, a obrigação do médico
(prestação de serviços médicos): não estará ele obrigado à cura do
paciente, mas apenas obrigado a empregar seus esforços, seu conhecimento, os meios que tiver à disposição (sua especialidade), na busca
dessa cura (objetivo). Se o próprio objetivo é o objeto da contratação,
como por exemplo, ainda no campo da medicina, a cirurgia plástica, na
qual ao profissional médico não basta o simples emprego de seus esforços, não basta a simples busca do resultado, mas precipuamente
importa o próprio resultado, temos figura que refoge ao conceito de prestação de serviços, beirando, ainda que não exatamente, ao de empreitada, embora esta seja quase especificamente ligada à construções ou
execuções de obras.
Na obrigação de meio, prestação de serviços, o profissional é
remunerado proporcionalmente “ao tempo que dedicou ao trabalho,
independente do sucesso do empreendimento”245 .
245
RODRIGUES, Silvio.(Direito Civil, v.3. Dos contratos e das declarações unilaterais da vontade – São
Paulo: Saraiva, 2002. Com o perdão do grande mestre, acredito que a afirmação do trecho que transcrevo,
quando se faz na obra em questão a diferenciação entre Prestação de Serviços e Empreitada, é por
demais sumária. O simples “tempo” empregado na prestação de serviço não é exatamente o escopo da
remuneração do contrato em questão. Melhor andaríamos, concessa maxima venia, se definíssemos
que o profissional prestador de serviços é remunerado pela sua especialidade; ou pelo tempo do
contrato ou o que a prestação do serviço requer; ou por atos efetivos desenvolvidos na execução
desses serviços, ou por tudo isso somado – tema de ensaio próximo, aliás.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
225
A corretagem, por sua vez, tem previsão especial na codificação
civil como sendo um contrato de resultado, o que deflui expressamente
do art. 725 do Novo Código Civil, com a seguinte redação: “A remuneração é devida ao corretor uma vez que tenha conseguido o resultado previsto no contrato de mediação, ou ainda que este não se efetive em
virtude de arrependimento das partes”.
Ora, se somente com o “resultado previsto no contrato de
mediação” é que se torna obrigatória a remuneração do corretor, evidente que o contrato de Corretagem somente se aperfeiçoa com a consecução desse resultado, vale dizer, apenas com as partes, comprador
e vendedor, permutantes, etc., ajustados, ligados por meio de um contrato de compra e venda ou de um compromisso de compra e venda (ou
outros, previstos na legislação especial ou no contrato de corretagem),
é que o corretor fará jus a percepção da comissão, ante o cumprimento
de sua obrigação no liame contratual que oportunizava seus serviços.
Da mesma maneira que o problema gerado com o mandato, é
certo que se irá instaurar celeuma apenas quando o contrato de prestação de serviços prever funções referentes à corretagem. Do contrário,
como já afirmado para o mandatário, se o prestador de serviços executar trabalho dessemelhante ao do corretor, as duas figuras poderão coexistir pacificamente, sem nenhum óbice de direito, devendo ser remunerada cada qual isoladamente.
Quando conflitam as duas funções, de prestador de serviços e
de corretor, a única resposta plausível e sustentável juridicamente para
a solução do problema é encontrada na legislação especial. Vejamos:
Dispõe a Lei 6.530, de 12 de maio de 1978, que regulamenta a
Profissão de Corretor de Imóveis, disciplinando ainda o funcionamento de seus órgãos de fiscalização, logo no seu art. 2.º, que “O exercício
da profissão de corretor de imóveis será permitido ao possuidor de título de técnico em transações imobiliárias”.
Determina ainda, a obrigatoriedade de inscrição perante o Conselho Federal de Corretores de Imóveis, que é, juntamente com os
Conselhos Regionais, órgão “de disciplina e fiscalização do exercício
da profissão de corretor de imóveis, constituídos em autarquia, dotada
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
226
de personalidade jurídica de direito público, vinculada ao Ministério do
Trabalho, com autonomia administrativa, operacional e financeira” (arts.
4.º e 5.º da Lei 6.530/78).
Também o art. 20, inc. II, da Lei 6.530/78, prevê expressa vedação
ao corretor de imóveis no sentido de “auxiliar, ou por qualquer meio facilitar, o exercício da profissão aos não inscritos”.
Assim, pode-se dizer que o Novo Código Civil veio disciplinar a
necessidade de permitir apenas ao técnico corretor de imóveis regularmente inscrito no órgão de classe, a execução da mediação referente
ao contrato de corretagem.
A medida é extremamente salutar, ao tempo em que traz segurança nas relações jurídicas desenvolvidas em função de um efetivo exercício técnico e profissional da corretagem, já que a Lei 6.530/78, prevê
cominação de sanção (multas, perda de registro, responsabilização por
perdas e danos, etc.) em caso de inexecução das obrigações referente
à profissão, ou mesmo desídia, entre outras figuras típicas que possam,
eventualmente, causar algum prejuízo ao cliente do corretor regularmente inscrito.
Às pessoas não registradas no Conselho Federal dos Corretores de Imóveis, não obstante, é permitida a prestação de serviços da
mesma natureza, já que não há vedação legal ao exercício da atividade apenas aos ali inscritos, como ocorre, por exemplo, com os membros da Advocacia, que têm privativas as funções inerentes à profissão
(Lei 8.906/94). O contrato, porém, para o qual concorrerão tais pessoas, jamais será um contrato de corretagem, com as disposições a ele
referentes no Novo Código Civil e na lei 6.530/78, mas apenas e tão
somente pelas disposições concernentes ao mandato (art. 1288 e ss /
art. 653 e ss.), como já visto, ou da prestação de serviços (art. 1.216 e
ss. / art. 593 e ss.), ou ainda, em uma relação de emprego, gerada pelo
desvirtuamento de um contrato de prestação de serviços.
Dessa maneira, conflitando as duas figuras, ou seja, coexistindo em uma única pessoa o contrato de prestação de serviços e a regular inscrição como corretor, prevendo ambos o exercício da mediação
para a aquisição, permuta, locação e outros serviços inerentes a funRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
227
ção de Corretor de Imóveis, prevalecerá sempre as disposições específicas da função de Corretor de Imóveis, de nada valendo eventual exclusão contratual dessas disposições.
Por último, cabe explicitar o princípio de direito enunciado pela
locução latina lex specialis derrogat lex generalis, que significa,
conceitualmente, que uma lei especial que regulamente determinados
casos específicos prefere as leis gerais que eventualmente regulamentem, somente que em maior âmbito, a mesma situação.
Assim é, por exemplo, com as relações de consumo. Em que
pesem encontrarem disposições no Código Comercial e no Código Civil, são reguladas pela Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, que é a lei especial para as estritas relações entre fornecedores e
consumidores. Encontrando disposição no Código de Defesa do Consumidor, não se aplicam as disposições do Código Comercial ou do
Código Civil. Não havendo regulação do fato em si na lei especial, a
competência novamente será das leis gerais, , para o caso, ou Código
Comercial ou Código Civil.
O mesmo ocorre com relação aos corretores de imóveis. Havendo lei especial regulando tal atividade, que no caso é a Lei 6.530/78,
as disposições do Novo Código Civil (e de outras leis quaisquer) somente terão aplicabilidade se não houver nada específico na lei especial.
Isto está, inclusive, explícito no art. 729 do Novo Código Civil, que dispõe
o seguinte: “Os preceitos sobre corretagem constantes deste Código não
excluem a aplicação de outras normas da legislação especial”.
Com relação as “outras relações de dependência” que o art. 722
do Novo Código Civil menciona como excludentes da atividade do corretor, mencionamos apenas a questão do desvirtuamento do contrato de
prestação de serviços, transmudando-se em relação de emprego propriamente dita, ou seja, contrato de trabalho. Fica valendo, de qualquer modo,
as considerações exaradas sobre a prestação de serviços.
Em conclusão, asseveramos que o Novo Código Civil trouxe a
certeza de que o contrato de corretagem, na essência entendido como
a mediação efetuada por uma pessoa em benefício da outra para a
obtenção de um ou mais negócios, no campo de imóveis, somente
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
228
poderá ser validamente executado por Corretores de Imóveis devida e
regularmente cadastrados no Conselho Federal dos Corretores de
Imóveis.
As pessoas comuns, não regularmente inscritas como Corretores de Imóveis, é permitida a intermediação nesse mesmo sentido, desde que, não com regularidade e habitualidade, já que assim estariam
praticando a profissão sem inscrição regular, podendo sofrer sanções
administrativas, civis e penais, a serem postuladas pelos órgãos
fiscalizadores da classe, Conselho Federal e Conselhos Regionais. Todavia, salvo nestes casos: habitualidade e burla a lei, jamais aos não
inscritos poder-se-á atribuir as disposições referentes ao Contrato de
Corretagem ou aos Corretores de Imóveis propriamente ditos (com inscrição regular), mas apenas, e tão somente, aquelas referentes ao contrato de prestação de serviços, ao mandato, ou ainda, outras legislações que, eventualmente, regulem a situação especial na qual esteja
inserido o indivíduo.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
229
O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO FUTURO DO
DIREITO PENAL BRASILEIRO
PAULO CÉSAR BUSATO
PROMOTOR DE JUSTIÇA NO ESTADO DO PARANÁ. PROFESSOR DE
DIREITO PENAL NA FUNDAÇÃO ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO
ESTADO DO PARANÁ, NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA
GROSSA E NA FACULDADE DE DIREITO DOS CAMPOS GERAIS.
DOUTORANDO EM PROBLEMAS ATUAIS DO DIREITO PENAL PELA
UNIVERSAIDADE PABLO DE OLAVIDE, EM SEVILLA, ESPANHA.
RESUMO
O artigo trata da evolução institucional do Ministério Público Brasileiro e o
seu novo perfil à luz da Constituição Federal de 1988. O autor destaca a
independência institucional do Ministério Público e suas novas atribuições,
tais como a atuação de fiscalização no emprego do dinheiro público, a defesa
dos direitos e garantias constitucionais do cidadão e do meio ambiente,
dentre outras. O texto desenvolve reflexão crítica acerca da necessidade dos
profissionais que trabalham com o Direito Penal optarem por uma nova “política
criminal” face aos problemas que se apresentam na atualidade.
ABSTRACT
The article is about the institutional evolution of the Brazilian Department of
and its new function to the Federal Constitution of 1988. The author points to
the institutional independence of the Department of Justice and its new
attributions , as the action in inspecting about where the public money is
used, the defense of Constitutional rights and guarantee of the citizen and
environment, among others. The text develops a critical thought about the
necessity of professionals that work with the Criminal Law choose a new
“criminal politics” because of the problems that appear nowadays.
PALAVRAS CHAVE - Direito Penal; Ministério Público; política criminal.
A RECENTE EVOLUÇÃO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO
PÚBLICO BRASILEIRO
O CRESCIMENTO DO PERFIL INSTITUCIONAL MINISTERIAL
DEPOIS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Certamente não constitui nenhuma novidade comentar a recente evolução do Ministério Público em termos institucionais. Dizer que
se trata de uma instituição que recebeu um espaço constitucional ímpar
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
230
na história da sociedade brasileira, tampouco constitui algo que já não
tenha sido esgotado em sucessivos e intensos debates dentro e fora do
próprio Órgão.
Ao invés de repisarmos estes aspectos que já fazem parte de
um discurso esgotado, convém medirmos, isto sim, as conseqüências
dessas mudanças. Basta condizer que a Carta Magna brasileira determina ao Ministério Público, instituição independente dos poderes e essencial à prestação jurisdicional, deveres como a salvaguarda do regime democrático.
Para o concreto desenvolvimento de atividades, no âmbito
institucional do Ministério Público, que possam corresponder a essa atribuição, é mais que nunca, imprescindível a elaboração de políticas
institucionais voltadas claramente para dito propósito.
É sabido que a eleição de uma adequada política institucional é
medida necessária para corresponder à responsabilidade social outorgada aos Promotores e Procuradores pela via constitucional.
Essa política vem sendo intensamente debatida e posta em
prática, de modo a tornar o Ministério Público uma constante presença
nas movimentações sociais em busca de um país mais equilibrado,
mais humano, mais justo. A formação de Conselhos Municipais fomentada pelos agentes ministeriais em distintos pontos do país, é um exemplo claro de que o Órgão serve de catalisador de uma sociedade melhor, orientada, politicamente, no sentido da participação social. As atuações em áreas de interesse coletivo como o meio ambiente, o bem
estar dos menores, das pessoas portadoras de deficiências, de fiscalização da gerência da rés pública vêm mostrando a atual amplitude e
importância que tomou a Instituição.
De outro lado, inclusive em virtude da dimensão do alargamento do perfil ministerial, parece-me que não foram ainda exploradas
adequadamente, algumas das fronteiras dessa expansão. Há pontos
de necessárias eleições de políticas institucionais que resultarão decisivas não só em termos institucionais como, principalmente, em termos
sociais.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
231
AS NOVAS ATRIBUIÇÕES
Convém ressaltar, antes de mais nada, que o perfil institucional
de que o Ministério Público brasileiro foi dotado pela Constituição Federal de 1988 é impar. Foram congregadas em uma mesma figura o
prosecutor americano e o umbudsman nórdico e ademais, acrescidas
outras funções que nenhuma das duas figuras possui.
Temos um órgão de acusação criminal que ao mesmo tempo é
encarregado de fiscalizar a atuação dos demais poderes, com absoluta independência institucional. Ademais, este mesmo órgão pode disparar distintos mecanismos de investigação e inclusive propor ações
civis públicas. Pode atuar em defesa de interesses coletivos e individuais homogêneos.
A atuação de fiscalização do emprego do dinheiro público é o
ponto chave da persecução de um ideal de representatividade política
séria e adequada. As investigações disparadas pelos agentes do Ministério Público têm valorizado a classe política, livrando-a de pessoas
que denigrem a imagem de nossas instituições, e pela via de exclusão, elevando o valor daquelas que nelas são preservadas.
Além disso, o Ministério Público foi dotado de um claro espírito
político democrático, na medida em que entendemos democracia como
uma expressão de governo que respeita os interesses dos grupos sociais oprimidos. Isso se identifica na medida em que se lhe incumbe a
defesa dos interesses dos menores, das pessoas portadoras de deficiência, da saúde dos trabalhadores, dos consumidores, entre outros.
Ora, bem se vê, que nesses casos, o interesse político constitucional
foi de fazer com que o Ministério Público atuasse ombro a ombro em
favor dos pólos considerados frágeis dentro das relações sociais.
Incumbe ainda, ao Ministério Público pós-Constituição de 1988,
a defesa de alguns pontos considerados essenciais à sobrevivência
da própria nação brasileira, como os direitos e garantias constitucionais do cidadão e o meio ambiente.
A defesa do meio ambiente no Brasil, é tarefa das mais árduas.
De um lado, pelo estupendo manancial biológico de que somos dotados, que nos situa em patamar de importância planetária nesse aspecRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
232
to, e de outro, pelas dificuldades operacionais de coadunar nossas aspirações de progresso como nação e da proteção desse manancial.
Cumpre ressaltar que mesmo os países dotados de largos recursos
econômicos têm imensas dificuldades na proteção do meio ambiente.
A atribuição de proteção dos direitos e garantias individuais
constitucionais do cidadão se traduz, acima de tudo, em um símbolo da
confiança que o Brasil deposita na instituição.
Ou seja, o Ministério Público pretendido pela nação brasileira
é de tal magnitude que a própria segurança dos cidadãos, em seus direitos mais fundamentais, lhe é entregue nas mãos.
Todas estas orientações devem estar em harmonia e equilíbrio
com a garantia do próprio regime democrático, que culmina por ser o
ponto determinante e referente máximo da política institucional.
A dose de responsabilidade que acompanha esta decisão constitucional é de larga envergadura. Convém lembrar, a esse propósito,
que as convulsões sociais e agruras econômicas que são suportadas
no cotidiano do hemisfério sul, fomentam, constantes turbulências políticas que não raro irrompem em quedas bruscas de regimes e eclosão
de revoluções patrocinadas por grupos de insatisfeitos. Estas atrocidades foram, recentemente, e ainda são vividas inclusive, em alguns
países fronteiriços ao nosso. Basta lembrar, a respeito, como exemplos, o opressor governo Fujimori no Peru e o atual cotidiano de guerrilhas na Colômbia, sem falar, é claro, nas turbulências dos governos
argentino e venezuelano.
Ser o responsável pela preservação do regime democrático é
uma evidente mostra do legislador constituinte de que o Ministério Público deve ser a instituição mais operante, mobilizada e atenta do país.
NOVAS PERSPECTIVAS DAS ATRIBUIÇÕES CLÁSSICAS
Um Ministério Público, até então historicamente dependente dos
demais poderes, com não mais que a singela preocupação da liça forense, manejada então nos estreitos limites da mera aplicação ipsis literis
da lei foi colhido de chofre por esse repentino alargamento de funções.
Está fora de qualquer dúvida que as atenções teriam que ser,
como foram, divididas e espalhadas para os distintos novos campos de
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
233
atuação institucional. Estas tarefas vêm sendo desempenhadas de maneira cada vez melhor, com a galhardia institucional que guindou o Ministério Público a esta posição de destaque que hoje ocupa, ainda que
claramente as dimensões dessa responsabilidade apontam haver muitíssimo por fazer. Não se vê, a curto ou médio prazo, a possibilidade de
que se alcance um equilíbrio de recursos humanos e materiais suficientes a suprir as necessidades que demandam as estupendas atribuições
ministeriais atuais. É bastante evidente que a atuação do Ministério
Público em seus novos campos de intervenção, ainda demanda muito
crescimento e melhoria de qualidade. E também é certo que esta expansão toma muito da concentração de forças institucionais.
Porém, este crescimento não livra o Ministério Público de uma
revisão de suas clássicas atribuições. Já não é aceitável que o aumento
de áreas de atuação, que já dura treze anos, sirva de escusa para justificar a falta de uma revisão na política institucional, no âmbito penal.
O ALARGAMENTO DE RESPONSABILIDADES SOCIAIS DO
MINISTÉRIO PÚBLICO NO ÂMBITO PENAL
Com esta nova perspectiva de perfil institucional, a atuação do
Ministério Público, no campo penal, tende a uma clara mudança de rumos. É que se agrega à missão de vigília pelo controle da intervenção
penal limitativa dos excessos nas interrelações sociais, mediante intransigente defesa do princípio da legalidade, cuja perspectiva é obviamente neutral, a necessidade de fazer uma clara opção em defesa de outros
caracteres principiológicos próprios do Estado social e democrático de
Direito, cuja perspectiva é marcadamente política.
Nesse sentido, para além da correta aplicação da lei, o Ministério Público passa a representar uma instância com claro
direcionamento ideológico em favor de uma igualdade material, que é
requisito básico de admissão dos níveis de liberdade, exigidos por um
regime verdadeiramente democrático.
Na seara penal, isso significa a adoção de uma perspectiva igualitária, transcendente à mera dogmática, que admita vieses criminológicos
e político criminais como filtros interpretativos do papel do Promotor de
Justiça no processo penal.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
234
Torna-se indispensável a adoção de certos referentes como uma
postura de mínima intervenção, de consideração de fatores sociais como
filtros interpretativos e ampliação da perspectiva de defesa individual,
frente ao interesse coletivo.
Para um desenvolvimento de uma política institucional que alcance as dimensões propostas, convém volver os olhos às perspectivas
de atuação, que oferece o direito penal moderno, situando os pontos
em que a dogmática expressa, pela legislação e jurisprudência pátrias
devem ser abandonadas em prol de um redimensionamento do fenômeno do controle penal.
UMA PERSPECTIVA DA EVOLUÇÃO DO DIREITO PENAL PÓS
FINALISMO.
Não há nenhuma dúvida a respeito de que a luta de escolas
entre o finalismo e o causalismo contribuiu enormemente para o desenvolvimento da dogmática jurídico penal, legando às futuras gerações um instrumento sistemático de manejo do jus puniendi de grande
serventia246 .
De outro lado, também é certo que a obediência cega a um
sistema, por mais perfeito que pareça, nunca é capaz de fazer frente à
realidade social com todos os matizes que apresenta.
O manejo cotidiano da dogmática jurídico penal vai gerando
nos operadores do direito, reações automáticas e raciocínios que tendem a ser tanto menos refletidos quanto mais aperfeiçoado é o sistema empregado.
Acontece que, na medida em que nos especializamos em um
determinado estudo específico, tendemos a esquecer-nos do contexto
em que se produzem as teorias.
246
Nesse sentido reconhecem ROXIN, Claus, (1998), “Contribuição para a crítica da teoría final da
acção”, em Problemas básicos de Direito Penal, trad. de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz, 3ª
Ed. Veja, Lisboa, p. 95, e o mesmo em (1997), Derecho penal, Parte General, Tomo I. Fundamentos. La
estructura de la teoría del delito, trad. da 2ª edição alemã por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y
García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Editorial Civitas S.A., Madri, p. 244; JAKOBS, Günther,
(1997, 2ª Ed.), Derecho Penal parte general. Fundamentos y teoría de la imputación, trad. de Joaquin
Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo, Marcial Pons, Madri, p. 162; e DIAS, Jorge de
Figueiredo, (1999), “Sobre a construção dogmática da doutrina do fato punível”, em Questões
fundamentais do Direito penal revisitadas, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 198-199.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
235
Por isso, parece-me oportuno lembrar que a discussão
causalismo-finalismo, trabalhada no ensino acadêmico do Direito penal,
vem sendo abordada, de modo geral, sem nenhuma consideração a respeito do contexto geográfico e histórico em que se produziu a mencionada discussão. E mais ainda, graças à intensa influência exercida até hoje
por Nélson Hungria sobre boa parte da doutrina penal brasileira, permanecemos ancorados naquele ponto da evolução da ciência penal marcado pelo isolamento nefando do estudo dogmático das considerações
criminológicas e principalmente de política criminal.
O discurso pesado e influente de Nélson Hungria, no 1o Congresso Nacional do Ministério Público, no Teatro Municipal de São Paulo,
Julho em 1942, cujos excertos são citados por Nilo Batista,247 em mais
de uma obra, como “um texto brasileiro que não apenas propôs o divórcio irremediável entre os saberes criminológicos e os jurídico-penais,
mas também influenciou – no foro e na academia – diversas gerações
nesse sentido”, verbis:
“Referindo-se à criminologia como “hipótese de trabalho”, Hungria
frisava que sua conjugação à reflexão jurídica implicaria na criação
de um “produto híbrido, infecundo, maninho, estéril”. Uma filosofia
do direito penal produziria tão somente “devaneios”, e a própria história do direito penal – talvez o único lugar da verdade, em todas
essas construções – estaria reduzida a mero “subsidio ao estudo
das normas penais vigentes””, complementando que “essa teia de
Penélope que se intitula criminologia nenhuma afinidade ou relação
necessária”. Naturalmente, não podíamos “dispensar o auxílio de
outras ciências”, que seriam, claro, a medicina legal e a psiquiatria
forense, desde que tratassem de “acomodar-se aos critérios jurídicos” - coisa que, diga-se de passagem, era tudo o que elas sempre
pretenderam, desde sua invenção. No fecho da conferência, a “nossa doutrina de Monroe: o direito penal é para os juristas, exclusivamente para os juristas” e uma advertência severa quanto a “qualquer indébita intromissão em nosso Lebensraum, em nosso
247
Em BATISTA, Nilo, (1999, 5ª Ed.) Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, Revan, Rio de Janeiro,
p. 28, nota 9, também do mesmo autor, o Prefacio de SANTOS, Juarez Cirino dos, (2000), A moderna
teoria do fato punível, Livraria Freitas Bastos Editora, Rio de Janeiro, p. IX-X.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
236
indeclinável espaço vital”, advertência que, devidamente
contextualizada – estávamos em 1942 – sugere mais acerca de las
brumas ideológicas daquela conjuntura do que acerca de algum
compromisso, que a obra fecunda do conferencista não permitiria
reconhecer.”
Evidentemente, um discurso tão incisivo proferido por pessoa
tão respeitada e influente, fez com que centrássemos o estudo jurídico
em uma dogmática alijada de quaisquer considerações político criminais. Estudamos “como responsabilizar penalmente alguém”, e nos
esquecemos de considerar “porque aplicamos pena a alguém”. O estudante de direito é condicionado a justificar a aplicação da pena pelo
simples enquadramento da conduta ao tipo, sem qualquer consideração com respeito aos fins da pena, é dizer, com respaldo unicamente
do sistema dogmático, sem considerações de política criminal.
Ocorre, que esse isolamento, por influência do discurso científico de antanho, não foi devidamente contextualizado.
Recentemente, trabalhos investigativos realizados por Muñoz
248
Conde revelaram que, o isolamento dogmático em considerações
abstratas e totalmente desvinculadas da política criminal promovido
pelas discussões encetadas por Mezger (causalista) e Welzel (finalista)
tinham como objetivo central desviar a discussão penal para um campo
avalorativo, que permitisse cair no esquecimento o então recente passado nazista do primeiro. Muñoz Conde, em seu livro, principalmente na
segunda edição, lançada já em 2001, apresenta diversos trabalhos jurídicos de Mezger, perfeitamente conjugados com o estado nacional-socialista.
A par da evidentemente positiva colaboração da discussão
dogmática causalista-finalista para o crescimento do estudo de um sistema jurídico-penal, não se pode esquecer que o direito penal não pode,
simplesmente, isolar-se de considerações políticas. Aliás, se pode dizer justamente o contrário, que o Direito penal é a parte mais ideologizada
do direito249 .
248
MUÑOZ CONDE, Francisco, (2ª ed. 2001), Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo. Los
orígenes ideológicos de la polémica entre causalismo y finalismo, Tirant lo Blanch, Valencia.
249
Conforme MUÑOZ CONDE, Francisco, (2000), Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo. Los
orígenes ideológicos de la polémica entre causalismo y finalismo, Tirant lo Blanch, Valencia, p. 48.
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237
A SUPERAÇÃO DO MODELO FINALISTA
A discussão entre o modelo causal e o finalista de ação, tiveram
como campo de discussão, a dogmática jurídico penal. Por cerca de
cinqüenta anos, os principais juristas do mundo tentaram demonstrar a
prevalência desta ou daquela proposta de ação, mediante a demonstração de que sua escolha levava a melhores soluções pelos efeitos que
tinha na configuração sistemática. Assim que sucessivamente as categorias do delito se foram aprimorando mediante constantes e sucessivas lapidações. O resultado final foi a existência hoje de um modelo
dogmático bastante aperfeiçoado, com prevalência da tese finalista.
O finalismo, em termos estritamente “welzelianos”, ainda mantém importância dogmática, ademais de possuir respeitados defensores como Juarez Cirino dos Santos250 , Hirsh, Zafaroni251 e Cerezo Mir252 .
Mas, de todo o modo, a maioria da doutrina penal espanhola e
alemã, que hoje são, reconhecidamente, as mais desenvolvidas do mundo, vem apontando para uma superação desse modelo, menos por questões internas do próprio sistema e mais por outras relacionadas com os
resultados de sua aplicação.
É que a inegável perfeição interna do sistema dogmático não
livrou-o da produção de resultados práticos que podem ser qualificados, historicamente, como nada menos do que «injustos». A face do
amargor prático restou evidenciada, conforme narra Hassemer253 , na
situação do pós 2a Guerra Mundial, na Alemanha, com a impossibilidade de buscar a punibilidade de “delatores cujos informes expuseram os
denunciados à violência estatal e a punibilidade dos juízes que aplicaram “leis injustas” então vigentes”.
Ora, era evidente que os que atuaram de acordo com o sistema, nem sequer chegaram a praticar delitos por falta de ação típica.
250
SANTOS, Juarez Cirino dos, Op. cit., p. 31.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, (1996, 6ª Ed.), Manual de Derecho Penal – parte general, Ediar, Buenos
Aires, p. 338 y ss.
252
CEREZO MIR, José, (1995), “O finalismo, hoje”, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 12,
Outubro-Dezembro de 1995, p. 39-49, trad. de Luiz Régis Prado, Editora Revista dos Tribunais, São
Paulo, pp. 42-43.
253
HASSEMER, Winfried, (1994), “História das idéias penais na Alemanha do Pós-Guerra”, em Revista
Brasileira de Ciências Criminais, n. 06, Abril-Junho de 1994, p. 36-71, trad. de Carlos Eduardo
Vasconcelos, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 38.
251
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238
Assim, a base positivista que vincula o sistema legal a postulados de verdade absoluta e irrenunciável, que no caso nazista, foram as
noções de raça e povo, não tem como criticar o resultado da aplicação
do sistema. Menciona ainda Hassemer,254 que “quem não estiver disposto, pelas mais variadas razões, a reconhecer uma diferença entre lei
(positiva) e Direito (justo), não consegue discutir o fenômeno [...] não
consegue sequer ver onde está o problema”.
Justamente, considerações dessa ordem deram seguimento à
evolução do Direito penal que encontrou um importante marco com a
edição, em 1970, da famosa monografia de Claus Roxin Kriminalpolitik
und Strafrechtssystem, na qual o brilhante jurista alemão propõe uma
releitura da dogmática jurídico penal, a partir de considerações político
criminais. O trabalho de Roxin segue sendo um marco do que se denominou “funcionalismo”, e que se traduz na elaboração dogmática do
Direito penal que leva em conta as conseqüências de sua própria aplicação. O controle social expresso pelo sistema penal carecia de uma
justificativa, ou seja, tinha que identificar-se com uma função útil para
a sociedade e não com uma mera forma de dominação.
Esta proposta funcionalista, no dizer de Figueiredo Dias255 , é o
que “alavancou” um novo Direito penal.
As propostas de Roxin põem em cheque a utilidade e justiça
de um “sistema penal”, incitando-nos perguntar até que ponto é vantajosa a utilização de um sistema, na medida em que ele não produz resultados justos. A dogmática se decantou então pela recuperação de um sentido axiológico das premissas sistemáticas, o que originou um giro à
perspectiva funcionalista. O reconhecimento de que um sistema, por
perfeito que pudesse ser, gerava decisões injustas, fez com que se concluísse pela falsidade das premissas absolutas de cunho positivista que
nutriam o sistema e se voltasse a propor o reconhecimento de categorias básicas de cunho valorativo, dando ensejo ao giro fincionalista.
Evidentemente, a interpenetração de considerações políticos
criminais no sistema dogmático, não significa anarquismo. Quer dizer, a
254
255
Ibid., p. 38.
DIAS, Jorge de Figueiredo, Op. cit., p. 204.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
239
proposta funcionalista não implica no abandono completo do sistema
herdado do finalismo. Inclusive, porque é absolutamente necessária uma
“gramática jurídica” que possa gerar decisões coerentes. A proposta do
funcionalismo consiste em valorar as conseqüências da aplicabilidade
desse sistema, procurando interpretar os indispensáveis conceitos sistemáticos de acordo com uma política criminal situada em critérios de
justiça, que se encontram nos princípios básicos do Direito penal.
Assim, para Roxin, o tipo penal deve ser estruturado a partir do
principio de legalidade ou reserva legal. Quer dizer, é atípica a conduta
que não obedeça estritamente às quatro vertentes desse princípio256 . A
antijuridicidade é vista como o “âmbito de solução dos conflitos de interesse”257 , onde importa fixar a existência da antijuridicidade material,
configurada a partir do dano ou do perigo a um bem jurídico fundamental
para o desenvolvimento social do indivíduo. Finalmente, a culpabilidade
se traslada para o campo estritamente normativo de considerar “como e
até que ponto é preciso aplicar a pena a um comportamento em princípio punível”258 .
Um estudo moderno de Direito penal não pode deixar de ocupar-se de considerações político criminais.
Finalmente, com o sustentáculo filosófico das obras de
Habermas e Wittgenstein, se pode pensar hoje, como faz Vives Antón259 ,
em propostas sistemáticas para o direito penal cujas categorias básicas estão situadas de modo eqüidistante do ponto de vista do sujeito e
do objeto.
A CRISE DO DIREITO PENAL MODERNO
A vida do homem em sociedade tem algumas peculiaridades.
Existem limites de tolerabilidade. Ou seja, os homens, vivendo em sociedade, se inter-relacionam, o que faz com que as esferas de direitos e
obrigações entrem em sucessivas interseções.
256
Para uma análise detalhada das vertentes do princípio de legalidade recomenda-se TOLEDO, Francisco
de Assis, (1994) Princípios básicos de Direito Penal, Editora RT, São Paulo.
257
ROXIN, Claus, (2000), Política criminal y sistema jurídico-penal, trad. Luís Greco, Renovar, Rio de
Janeiro, pp. 30 e ss.
258
Ibid., p. 31.
259
Para mais detalhes a respeito desta proposta, ver VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, (1996), Fundamentos
del Sistema Penal, Tirant lo Blanch, Valencia.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
240
Evidentemente, que esta sociedade, para se manter viva, tem
que lançar mão de alguns mecanismos, para regrar estes pontos de
interseção de modo a evitar que sua principal característica se converta
em causa de sua destruição. Assim se criam as normas. O controle social é exercido por várias instâncias como família, religião, ambiente de
trabalho, etc., e é exercido em diferentes graus de profundidade. Quanto
mais grave o desvio de comportamento, mais grave a resposta.
Evidentemente, neste sentido, a organização mais complexa
gerada pela sociedade, que é o Estado, acaba encarregado de ser o
responsável pelo controle social, nos casos, em que os desvios, em relação ao comportamento indesejável, atingem os níveis mais arriscados
e insuportáveis para essa mesma sociedade. Com isso se formaliza a
norma e as regras de controle, através da realização do Direito. E dentre todas as situações submetidas ao regramento normativo estatal, são
aquelas mais intoleráveis e agressivas de bens mais essenciais que
vem a merecer a intervenção do Direito penal.
Acontece que, o Direito penal, com o tempo, passou a viver sucessivas modificações de seu campo de incidência que foram impulsionando, como já mencionamos, sucessivas mudanças estruturais e de configuração.
Atualmente, as exigências sociais levaram o Direito penal moderno a um ponto de quase saturação.
A doutrina tem apontado para alguns focos que tem levado o
Direito penal a perder suas características de instrumento de última intervenção, seu perfil de formalização e certeza e se convertendo em
um instrumento meramente simbólico e com reduzida efetividade.
O primeiro ponto é a questão do bem jurídico. A sociedade encontra, no Direito penal, a expressão mais contundente do controle estatal e postula que sua intervenção se espraie, cada vez mais por setores
que já não correspondem mais aos bens jurídicos de cuja proteção, classicamente, ele se encarregava. Agora, já não se trata mais de proteger
a vida, a saúde, a liberdade ou o patrimônio individual, mas sim de proteger a saúde pública, o meio ambiente, o correto funcionamento do
mercado, um sistema econômico. Isso porque, ao contrário do clássico
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
241
perfil de cirtério negativo, limitador da intervenção estatal, o bem jurídico
“se converteu em critério positivo para justificar decisões
criminalizadoras”260 .
Evidentemente, como anota Hassemer261 , “esta política tem
como fundamento a idéia de que o Direito penal é um instrumento
normativamente aceitável e realmente efetivo de condução”, no sentido de levar a uma obediência à proibição normativa.
Aqui, não se trata de questionar, até que ponto os novos bens
jurídicos coletivos são ou não “essenciais ao desenvolvimento individual do cidadão” para justificarem uma intervenção do Direito penal,
mas isto sim, constatar como é levada a cabo dita proteção.
É cediço, que as mudanças de conceitos operadas em campos
tão vastos como podem ser considerados conceitos como “meio ambiente” ou “economia popular”, são velocíssimas. Estas mudanças levariam a um anacronismo precoce e indesejado dos tipos penais eventualmente centrados em uma disposição precisamente determinada. Essa
realidade conduz o legislador a lançar mão da técnica das normas penal
em branco com assustadora freqüência. A par disso, a dificuldade de
reparação e a extensão dos danos identificados em bens jurídicos, metas individuais têm levado os legisladores a recorrerem também amiúde, ao recurso do adiantamento das barreiras político criminais através
da tipificação penal de condutas de perigo, notadamente de perigo abstrato. A tudo isso, Hassemer, nomina “exacerbo da idéia de prevenção”262 .
A par disso, a busca de uma justiça penal mais eficiente se tem
traduzido, também, em uma desformalização do processo263 que conduz, de um lado, à redução das garantias processuais, onde o princípio
da legalidade cada vez mais cede espaço às idéias de oportunidade,
de outro, à busca de uma efetividade que é mais simbólica do que efetiva, uma vez que conduz a, rapidamente, a uma pena que, de regra é
inepta a alcançar os objetivos a que se propõe.
260
Assim em HASSEMER, Winfried, (1999), Persona, Mundo y Responsabilidad, trad. de Francisco
Muñoz Conde e María del Mar Díaz Pita, Tirant lo Blanch, Velencia, p. 47.
261
HASSEMER, Winfried, (1996), Crítica al Derecho penal de hoy, Trad. de Patrícia S. Ziffer, Ad-Hoc,
Buenos Aires, p. 59.
262
HASSEMER, Winfried, (1999), Op. cit., p. 49.
263
HASSEMER, Winfried, (1994), Op. cit., p. 63.
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242
Finalmente, convém observar que o discurso da “necessidade
de providências” nas áreas de meio ambiente, criminalidade organizada, delitos informáticos e outras, corresponde a um Direito penal meramente simbólico, que tem levado à substituição de um modelo de ultima
ratio a uma intervenção máxima, com sucessivas legislações nestes
campos, procurando dar algum tipo de proteção à áreas tão amplas
quanto inabarcáveis pelo instrumental manejado pelo Direito penal.
Porém, esse mesmo direito penal moderno, em cada um desses pontos chega a não cumprir seus objetivos e ademais, arrasta a
ciência penal a um sumidouro.
Hassemer264 apresenta os problemas do Direito penal moderno como situações que são produtos do funcionalismo, da orientação
da dogmática às suas conseqüências, que conduziram a própria proposta funcionalista a uma crise, chegando a afirmar que “[...] o Direito
penal funcional despedaçou a ratio original da orientação para as conseqüências”.265
Segundo nos parece, estes mesmos problemas evolutivos do
Direito penal, sempre estiveram presentes, claro que cada qual com suas
vicissitudes próprias do momento histórico-social vivido, com a diferença que sob um referente positivista, eles simplesmente eram desprezados. Os conflitos vividos pelo Direito penal moderno não são pois, propriamente, “produtos” do direcionamento funcionalista, senão que assim é sua percepção.
De outro lado a orientação às conseqüências, mais do que
localizar os problemas que vive o direito penal, nos incita a propor
soluções para eles, ao contrário de simplesmente esquecê-los ou volver-lhes as costas, soluções estas que devem ser buscadas no próprio
modelo funcionalista.
OPÇÕES POLÍTICO CRIMINAIS DO DIREITO PENAL MODERNO.
A partir dessa situação de crise dos paradigmas penais,
estamos, claramente, vivendo um momento histórico, em que se faz necessário, que cada operador do Direito penal anuncie sua opção políti264
265
Ibid., p. 69.
Ibid., p. 70.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
243
co criminal. A crise de paradigmas determina, no dizer de Kuhn266 o aparecimento de um novo referente para solucionar o problema apresentado.
Dada a necessidade de superação do isolamento da dogmática
e da política criminal, as modernas correntes doutrinárias do Direito
penal apontam para a necessidade de fazer escolhas entre distintas
direções, com vistas a responder duas perguntas principais.
Em primeiro lugar, incumbe decidir: o moderno Direito penal
deve intervir nos novos campos de atuação que para ele reserva a
sociedade moderna, ou deve ceder passo a outros mecanismos de
controle?
Em segundo lugar, se propondo a intervir, constatada a evidente contradição entre o tradicional sistema dogmático e a
modernidade dos objetos sobre os quais se debruça, que tipo de postura sistemática melhor responde a estes desafios?
Com relação à primeira pergunta, convém ressaltar que não
são poucos os juristas de renome que, diante do evidente conflito entre
a dogmática tradicional do Direito penal e as modernas exigências que
lhe têm sido lançadas, entendem que estes novos campos não devem
fazer parte das preocupações do Direito penal.
Entre os que assim entendem, a proposta é, que campos como
o meio ambiente, as relações de consumo e outros cuja maleabilidade
conceptual e imprecisão de bens jurídicos torna difícil o encaixe de seus
dispositivos nas garantias da parte geral do Direito penal legislado, devem ser transferidos para uma outra esfera de intervenção estatal, gerando um formado de um Direito de intervenção267 , ou mesmo um novo
e diferente Direito penal, mais ágil e menos rígido quanto a garantias,
266
Para Kuhn, quando um problema científico apresenta características de ser insolúvel mediante as
regras dominantes da ciência que se ocupa de seu estudo, se instaura uma crise que origina um cambio
de paradigmas, o o que finalmente conduz à «ciência extraordinária», ou seja, à reordenação dos
padrões científicos para o estabelecimento de novos paradigmas. Para comentários em detalhes, ver
KUHN, Thomas S., (1989), ¿Qué son las revoluciones científicas? y otros ensayos, trad. de José Romo
Feito, Ediciones Paidós, Barcelona, pp. 21 e ss., e o mesmo, (1987), La estructura de las revoluciones
científicas, Ed. Fondo de Cultura Económica, Madri, pp. 26 e ss.
267
Nesse sentido HASSEMER, Winfried, (1999), P. Cit., p. 67, menciona que “A solução está em eliminar
uma parte da mordernidade do atual direito penal, levando a cabo uma dupla tarefa: por um lado,
reduzindo o verdadeiro direito penal ao que se denomina «direito penal básico», y, por outro,
potencializando a criação de um «direito de intervenção» que permita tratar adequadamente os problemas
que só de maneira forçada se podem tratar dentro do direito penal clássico.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
244
fazendo com que fiquemos com um Direito penal de duas velocidades268 .
De outro lado, caso se entenda que o Direito penal deve aceitar
a missão que a sociedade moderna dele vem solicitando, incumbe resolver as inegáveis incompatibilidades, por exemplo, entre a insegurança do uso freqüente e desmedido de normas penais em branco e os
tipos de perigo e as garantias oriundas do princípio de legalidade. Incumbe revisar e definir, claramente, os fins da pena, e finalmente, incumbe fazer uma clara abordagem do conceito de bem jurídico que deve
merecer a proteção penal.
Assim, uma vez que se opte pelo enfrentamento do desafio do
moderno direito penal, através de uma dogmática funcionalista, incumbe saber de que modelo de funcionalismo estamos falando.
Se apresentam, aqui, duas vertentes que podem ser
identificadas como funcionalismo sistêmico ou estratégico e funcionalismo teleológico.
A idéia de funcionalismo sistêmico provém, principalmente, da
obra de Günther Jakobs, que se baseando nas concepções sociológicas de Luhmann, transfere a teoria dos sistemas para o campo do
Direito. Propõe, portanto, uma reorientação do sistema desde o ponto
de vista do indivíduo para o ponto de vista do próprio sistema. Ou seja, a
estabilização normativa passa a ser o objetivo principal da aplicação do
sistema jurídico. Com isso, a fundamentação da pena, o que justifica a
punição, é a busca de afirmação de validade da norma, posto que sua
violação é disfuncional ao sistema.
Resolve-se a questão do bem jurídico convertendo a norma em
centro de interesse. Ou seja, independentemente, do bem jurídico violado pela conduta incriminada, esta sempre se traduzirá em lesão da própria norma, justificando a reação do sistema com vistas a afirmar a validez
da norma e motivar a confiança da sociedade, no sentido de sua confirmação.
268
Nesse sentido SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, (1999), La expansión do Derecho penal. Aspectos de
la política criminal en las sociedades post-industriales. Cuadernos Civitas, Civitas Ediciones, Madri,
propõe a adoção de um “Direito penal de duas velocidades”, mantendo, de um lado, a estrutura do Direito
penal clássico e de outro, acrescentando um “novo Direito penal”, mais flexível, encarregado de lidar
com as exigências atuais.
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245
O grau de legalidade ou ilegalidade das técnicas de
incriminação, finalmente, também terá pecessor referente estabilização
social pela via da estabilização normativa. Ou seja, toda técnica de
incriminação que produza uma norma não conflitiva com o sentido de
estabilização do sistema será válida. Somente cobrará ilegitimidade a
norma criada mediante uma técnica de incriminação que gere resultados, sistematicamente, disfuncionais, independentemente da necessidade ou não de flexibilização principiológica. Até porque, os próprios
princípios podem, eventualmente, conflitar com o sentido de confiança
da sociedade na efetividade normativa, caso em que, deverá ceder o
espaço à norma.
A outra opção, traduzida no chamado funcionalismo teleológico
parte da concepção de uma necessidade revisional do sistema com
base em seus resultados, propondo um método, a um só tempo dedutivo e indutivo. Roxin, o principal defensor desta postura, propõe desde seus primeiros trabalhos, que se mantenha o sistema sob permanente correção de seus resultados. Assim, entende que deve haver aplicação de um sistema geral ao caso concreto, após o que, analisar os desvios produzidos pela aplicação do sistema ao referido caso,
realimentando o sistema com as correções de rumo necessárias à produção do resultado justo, desde um ponto de vista principiológico.
Segundo esta concepção, deve haver uma constante revisão
categorial da sistemática do delito, sem que isso implique na migração
para uma total casuística.
Assim, segundo Roxin, e os partidários desta vertente, os princípios orientadores da política criminal penetram e influenciam o próprio sistema dogmático, pelo que, as técnicas de incriminação que eventualmente conflitarem com os princípios e garantias devem ser
rechaçadas.
De outro lado, o bem jurídico individual, enquanto imprescindível ao desenvolvimento social do indivíduo, segue sendo o ponto de referência de proteção do Direito penal, posto que se trata de uma conseqüência direta do princípio de intervenção mínima.
Finalmente, a pena deve orientar-se também
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246
principiologicamente, excluindo de sua fundamentação tudo o que não
corresponda à função de garantia dos limites mínimos de progresso
social dos cidadãos. Nesse sentido, Roxin anuncia que “se o Direito
penal tem que servir à proteção subsidiária de bens jurídicos y com isso
ao livre desenvolvimento do indivíduo, assim como à manutenção de
uma ordem social, baseada neste princípio, isso só; e bastante para
determinar que conduta o Estado pode punir”269 .
Estas são, em suma, as questões de que a política criminal em
geral, deve ocupar-se no tocante ao Direito penal moderno.
O MINISTÉRIO PÚBLICO E O FUTURO DIREITO PENAL
BRASILEIRO
A NECESSIDADE DE UMA OPÇÃO POLÍTICO CRIMINAL
INSTITUCIONAL DENTRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
É possível e necessária uma revisão da política institucional
do Ministério Público, no que se refere à sua atuação no processo penal. Mais que isto, é urgente para adequar-se à função primordial de
guardião do regime democrático, à vista de que o Direito penal é justamente a arma mais contundente de que dispõe o Estado para manter
um grau de controle necessário sobre as inter-relações sociais.
Não é aceitável que a complexidade do atual perfil de atribuições converta os agentes de execução do Ministério Público em simples “despachantes criminais”, ocupados de pleitear meramente o
emprego do rigor sistemático de dogmática jurídico penal, ademais de
meros fiscais da aplicação sistemática e anódina da pena.
É justamente o amplo perfil constitucional conferido à Instituição
ministerial que lhe empresta o mesmo cariz que se pretende do Estado
brasileiro como um todo. Pode-se dizer, dado o volume e importância
das atribuições conferidas ao Ministério Público, atualmente, que ele é
responsável por grande parte da configuração da postura da sociedade
brasileira, frente ao Direito, notadamente, frente ao Direito penal.
Porém, esta relação é de mão dupla. Do mesmo modo que a
intervenção do Ministério Público brasileiro determina, politicamente, o
269
ROXIN Claus, (1997), Op. cit., p. 81.
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247
perfil social do país, esta mesma atuação deve estar sintonizada aos
anseios populares. Da mesma maneira com que a atuação dos Promotores de Justiça e Procuradores politiza a sociedade brasileira, a sociedade, por seu turno, exige que os seus defensores mais ferrenhos e
poderosos batalhem pela consecução dos objetivos que realmente lhe
interessam, e da forma que lhe interessa.
Ao assumir cargo da defesa do regime democrático, o Ministério Público fez uma necessária opção em favor da sociedade brasileira,
e os pontos de insatisfação social passam a ser prioridades. Onde a
sociedade não está satisfeita com o sistema, incumbe ao Ministério
Público convertê-lo em um modelo correspondente àquelas aspirações.
Nesse ponto, convém ressaltar a clara insatisfação social para
com o modelo penal que manejamos atualmente. A Justiça penal no Brasil, tem funcionado majoritariamente mediante a pura e simples aplicação sistemática da lei ao caso concreto, seguindo um modelo herdado
da tradição positivista mais arraigada. Com exceção das propostas de
direito alternativo ou de uso alternativo do direito, muito pouco se tem
feito no sentido da adoção de uma alteração real de perspectivas na
seara penal.
Se faz oportuno lembrar que nosso modelo legislativo confere
primazia à ação penal pública incondicionada. Ainda que a Lei 9.099/95,
tenha conduzido aos Juizados Especiais Criminais, uma boa parte das
demandas, as chamadas “de menor potencial ofensivo”, abrindo espaço,
lá, para matizações da implacável aplicação sistemática da lei, grande
parte da “demanda criminal” segue nas varas da Justiça comum. Ademais, mesmo nos Juizados Especiais, o Ministério Público goza de atuação preponderante e é muito reduzido o espaço de intervenção que
exclui sua participação.
Diante de um quadro com estas dimensões, fica evidente que
os Promotores e Procuradores de Justiça têm decisiva influência nos
rumos político criminais brasileiros e não podem fugir, portanto, à definição muito clara de suas propostas institucionais nesse campo.
Não é aceitável justificar uma inércia mediante a afirmação de
que a legislação é que determina o modelo político criminal e que esta é
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248
anacrônica. Isso por dois motivos. Primeiro que o anacronismo legislativo
é genérico e não específico, é congênito e não passageiro. Digo isso
porque as legislações de que dispomos não são inadequadas e/ou insuficientes somente no âmbito penal, senão em todas as esferas, inclusive naquelas outras áreas em que o Ministério Público atua desde há
pouco. É também impossível que a legislação acompanhe o atual ritmo
de desenvolvimento científico das demais áreas da ciência, onde este
crescimento ocorre de modo exponencial. A regulação legislativa sempre se encontrará muitos passos atrás da evolução social e tecnológica.
Basta ver, a esse respeito, as dificuldades em regular os negócios e os
delitos cibernéticos. O segundo motivo resulta também evidente: é que
por mais que se a legislação possa ser vinculante, a eleição a respeito
da oportunidade de sua efetiva aplicação é prerrogativa exclusiva e
inarredável dos agentes de execução ministeriais e mais, nenhum conceito jurídico penal pode ser considerado absolutamente isento de critérios de interpretação, já que a ciência penal é criação humana.
Uma postura de inação quanto ao estabelecimento de diretrizes político criminais, não pode ser considerada confortável, na atualidade. Os criminólogos há muito tempo, e os penalistas mais recentemente, vêm apontando com estarrecedora freqüência para o inegável
fato de que o sistema penal tem contribuído historicamente para a
manutenção do sistema de poder e para a preservação de desigualdades sociais270 . Ora, uma postura de conformismo quanto às revisões
das políticas institucionais, no campo penal, converte o Ministério Público em uma entidade conivente com um sistema díspar que se opõe justamente à função de guarda do regime democrático.
Se ao Ministério Público incumbe tomar a frente da responsabilidade pela política criminal, e se esta atuação deve corresponder aos
anseios sociais de um Estado democrático de Direito, convém estabelecer escolhas modernas e adequadas nesse âmbito, revisando por
completo os posicionamentos a respeito da aplicação sistemática da
lei, no campo penal.
270
Ver, neste sentido, com mais detalhes, SANTOS, Cláudia, (2001), O Crime do colarinho branco (da
origem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça
a
penal), Coimbra Editora, pp. 132 e ss. e ZAFFARONI, Eugenio Raúl, (1996, 6 Ed.), Op. cit., p. 34 e ss..
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249
Como já referido, a existência de um sistema, em si, não é má.
O problema está em que este sistema não corresponda aos anseios
sociais de Justiça. Não é aceitável mais que a simples vigência de um
Código Penal, inspirado por um modelo finalista, datado de um período
de exasperação dogmática signifique a presença de grilhões político
criminais que impeçam o Ministério Público de dar resposta aos deveres que têm perante a Justiça social penal.
OS EFEITOS DE UMA OPÇÃO POLÍTICO CRIMINAL MINISTERIAL
PARA O DIREITO PENAL BRASILEIRO
Como já mencionado alhures, o Ministério Público detém uma
absoluta primazia no manejo do instrumental penal. O perfil de nossa
legislação transpira a clara intenção de manter a vítima afastada do conflito, mediante a intervenção estatal. O Estado manifesta, com isso, a
intenção clara de reservar a si próprio, com quase exclusividade, a
concreção do jus puniendi. A maioria dos processos criminais segue
sendo de iniciativa do Ministério Público.
É sabido que a realidade social é a mola impulsora do desenvolvimento das ciências sociais entre elas o Direito. O Direito penal, em seu
estudo dogmático responde, à toda evidência, principalmente aos fatos
reais com que se depara a jurisprudência. O estudo sistemático do Direito penal ganha vida somente em sua aplicação ao caso concreto.
Logo, as questões dogmáticas e político criminais que vão sendo trazidas ao processo penal são os pontos de referência para o debate e aperfeiçoamento dogmático.
Assim que as eleições de diretrizes político criminais referentes
à atuação do Ministério Público, tem necessariamente grande influência
nos rumos que seguirá o Direito penal brasileiro, tanto no estudo da
dogmática, da política criminal como no desenvolvimento de uma necessária linguagem própria que corresponda aos objetivos visados pelo
Estado com a aplicação das conseqüências jurídicas do delito. Não tenho qualquer dúvida de que cada Promotor de Justiça, em sua atuação
político criminal cotidiana, onde decide a respeito dos rumos
interpretativos de cada impulso da Justiça Criminal, traz a lume os pontos que vão ser objeto de discussão técnico-jurídica.
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250
Vivemos em um momento de superação de um modelo de sistema jurídico-penal, encerrado em grades ontológicas, para a passagem
a um Direito penal “vivo”, que tem em conta sua capacidade de dar uma
adequada resposta social ao problema da criminalidade (sua funcionalidade).
Assim é muito importante que o Ministério Público esteja consciente do papel determinante que exerce na evolução do desenvolvimento dogmático do Direito penal brasileiro, dado que suas opções
político-criminais representam um papel de verdadeiro “filtro” das questões que doravante tendem a ser postas em discussão.
ODE EM DEFESA DE UM DIREITO PENAL GARANTISTA
Ressalto antes de tudo, neste ponto da análise, que as próprias características da instituição ministerial revelam a mais absoluta independência dos seus membros quanto à escolhas e opiniões, o que
gera uma saudável e constante divergência.
De qualquer modo, nossa pretensão ao passar às considerações seguintes não é – longe disso – de buscar uma uniformização de
pensamento, no campo de atuação criminal. O que se pretende é tão só
pôr a lume alguns tópicos merecedores de atenção dos órgãos responsáveis pela política institucional do Ministério Público. Ao lado disso, se
oferece um ponto de vista a respeito das questões postas, com tão só o
propósito de oferecer um ponto de partida para as discussões.
Para isso voltamos aos dois pontos de enfrentamento.
Quanto ao primeiro, a questão do chamamento do Direito penal
ao enfrentamento de novos fronts e, com isso, o reconhecimento de que
se amplie o seu âmbito de aplicação, cumpre fazer algumas reservas.
Parece que o temor a respeito do chamado fenômeno de «expansão» do Direito penal271 , merece ser esmiuçado. A análise realizada
pela doutrina européia, ao trasladar-se para a nossa realidade, procede
apenas em parte. Silva Sánchez situa a origem do referido processo mais
além de uma perversidade estatal em legislar com o simbólico, mais exa271
Segundo Silva Sánchez um tal fenómeno se traduz na “Criação de novos “bens jurídico-penais”, ampliação
dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização
dos princípios jurídico-criminais de garantia”. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María, Op. cit., p. 17-18.
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251
tamente no modelo social que se formou nos últimos decênios,272 originado da chamada Risikogesellschaft (sociedade de riscos) e da crise do
modelo de bem estar social. Ocorre que, na verdade, na América Latina
este duplo fundamento não pode ser apontado.
O que sucede é, desde o ponto de vista cultural, que a América Latina ainda se debate por livrar-se do estigma colonial, e isso é
retratado, claramente, nos modelos de Estado adotados, sendo que não
se pode falar absolutamente, em termos de Brasil, na falência de um
Estado Social que, historicamente, não foi vivido.
Assim, a justificativa da expansão parece não ser a mesma.
As críticas quanto à expansão do modelo penal provêm mais uma vez
de estarmos procedendo uma nociva «importação de conceitos».
Ademais, o Direito penal, como outra qualquer ciência sofre
constantes modificações e se vivemos um fenômeno de neocriminalização, também vivemos, paralelamente, um movimento de
descriminalização. Parece, isto sim, que mais que um movimento de
expansão, o Direito penal vive um fenômeno de «migração», posto que
ao mesmo tempo que surgem novas áreas de interesse penal como o
meio ambiente, a economia popular, se debate à possibilidade de diminuir a intervenção em outros campos como os crimes contra os costumes, o uso de entorpecentes, o aborto, etc..
Convêm admitir, porque é absolutamente verdadeiro, que em
termos brasileiros, os processos de novas incriminações têm sido fartamente mais extensos e rápidos que os de descriminalização. Porém,
este fato, que sem dúvida merece ser atacado, é um fenômeno à parte,
ligado com o que foi muito bem identificado por Zaffaroni273 como «injusto jushumanista», e não tira a característica migratória dos campos
de interesse do Direito penal.
272
Ibid., p. 19-20.
Zaffaroni explica que “Toda a América Latina está sofrendo as conseqüências de uma agressão aos
Direitos Humanos (que chamamos de injusto jushumanista), que afeta o nosso direito ao desenvolvimento,
que se encontra consagrado no Art. 22 (e disposições concordantes) da Declaração Universal dos
Direitos Humanos.” E continua, afirmando que “este injusto jushumanista de violacão do nosso direito ao
desenvolvimento não pode ser obstaculado, una vez que pertence à distribuição planetária do poder.
Todavia, faz-se necessário que se resguarde de seus efeitos”. Ver ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI,
José Henrique, (1997), Manual de Direito Penal Brasileiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, pp. 80 e ss.
273
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252
Assim sendo, vista a migração dos interesses jurídico penais
como característica permanente, própria da evolução social, não é possível amparar-se nela para justificar que o Direito penal não deva seguir
atuando nos campos cujas agressões sejam consideradas as mais importantes, desde um ponto de vista da proteção dos bens jurídicos essenciais, ao desenvolvimento do cidadão na sociedade.
Importa acrescentar que a alternativa, quer seja a adoção de
um sistema de dupla via (ambas penais) ou a criação de um novo ramo
de direito público sancionador implica, necessariamente, na criação de
um híbrido entre o atual direito administrativo e o direito penal.
Entretanto, nada garante que este híbrido responderá às aspirações vaticinadas, já por um longínquo Radbruch274 de “alguma coisa
de melhor que o direito penal, e simultaneamente, de mais inteligente
e mais humano do que ele”. Na verdade, o temor é que ocorra justamente o contrário, ou seja, que este “novo ramo do direito” que venha
a intervir nos novos campos de proteção, combine não já a leveza das
sanções administrativas e as garantias dos princípios penais, mas a
contundência da pena e a falta de garantias da intervenção administrativa.
Assim, se não por outra, por razões de simples medo de ver
acentuada a divisão entre poderosos e subjugados, convém rechaçar a
adoção de um novo Direito de intervenção.
Ademais, o mundo mudou desde o ponto de vista da ciência.
Da lógica cartesiana à biología, todas as ciências foram afetadas pelas
mudanças do mundo. Não se trata de uma escolha sobre “se ” o Direito
penal deve ou não mudar de perfil e sim uma decisão sobre “para que”
perfil o Direito penal mudará. Assim, mesmo que nós entendamos que
ele não deve atuar no âmbito de proteção que lhe cobra a sociedade
moderna, de qualquer modo seu conteúdo não seguirá sendo o de três
séculos atrás, pelo que, o mais sábio é desde logo promover sua adaptação preservando ao máximo suas garantias e tratando seu âmbito de
aplicação como resultado e não determinante de tal câmbio.
Pois bem, uma vez que se confirma a opção pela manutenção
274
RADBRUCH, Gustav, (1979, 6ª Ed.), Filosofia do Direito, trad. por L. Cabral de Moncada, Armênio
Amado Editor, Coimbra, p. 324.
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253
do chamado “Direito penal moderno”, é o momento de optar por um
modelo de sistemática funcionalista que melhor responda aos desafios
trazidos pelos novos problemas dogmáticos.
É decisão inserta na Constituição Federal que o órgão representativo do Estado, nos misteres de comando da persecutio criminis
será o Ministério Público. Este fato, posto ao lado do perfil que a Lex
maxima dá ao referido órgão, permite, desde logo, duas conclusões.
A primeira, é que, o legislador constituinte entendeu não haver
contradição entre a intervenção estatal referente à persecução criminal e a preservação do Estado democrático ao elencar no mesmo dispositivo constitucional, entre todas as atribuições do Ministério Público,
o exercício exclusivo da ação penal pública e a salvaguarda do mencionado regime.
A segunda, é que, se não pode haver contradições entre as funções entregues ao Parquet, o desempenho de todas e cada uma destas
atribuições deve corresponder, internamente, a um perfil de defesa da
democracia.
Assim, as decisões político criminais referentes à atuação do
Ministério Público, no tocante ao exercício da ação penal pública devem
corresponder a uma orientação claramente adequada à defesa de um
Estado social e democrático de Direito.
Nesse sentido, tendo em vista os rumos tomados pela moderna
dogmática jurídico penal, convém fazer uma opção clara pelo modelo de
orientação dogmática a seguir que dê melhor guarida a uns tais interesses.
Se este é o perfil que se espera da instituição ministerial, não
se pode, de entrada, abrir mão dos princípios iluministas. Evidentemente, uma vez que estamos falando – ao menos teóricamente - de um Estado social e democrático de Direito, a intervenção punitiva deve restringir-se aos ataques mais graves aos bens jurídicos mais importantes para
o desenvolvimento do cidadão na sociedade (princípio de intervenção
mínima)275 .
Um breve repasso entre as concepções já descritas como
275
MUÑOZ CONDE, Francisco e GARCÍA ARÁN, Mercedes, (2000, 4ª Ed.), Direito penal, parte general,
Tirant lo Blanch, Valencia, p. 88.
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254
modelos de tendências modernas da interpretação dogmática aponta
induvidosamente, para a existência de uma única opção que corresponde
às aspirações democráticas pretendidas por nosso modelo de Estado:
o funcionalismo teleológico.
Isto porque queda clara a opção radical que hace Jakobs por
estabelecer as bases de sua teoria em fundamentos eminentemente
normativos. Vives Antón se dá tem clara percepção do fato, quando
reflete que “Jakobs se desfez de todo compromisso ontológico em um
sentido muito mais radical”276 partindo para justificar o sistema de modo
totalmente axiológico. Ou seja, trasladou o fundamento da estrutura
sistemática para dentro dela mesma. A validez da própria norma justifica sua imposição. A conseqüência inevitável disso é que seu sistema
se torna compatível com quaisquer orientações político criminais, posto
que, na medida em que a norma não carece de justificativa de fundo
senão que justifica a si mesma, ela é válida, independentemente, de sua
origem. Com isso, ainda que estejamos diante de regras impostas por
um Estado totalitário, despótico, a norma não perde sua capacidade de
auto justificar-se. Logo, um conjunto de regras normativas que sustente
um sistema aflitivo de um Estado social e democrático de Direito também se encontraria justificado.
Muñoz Conde277 aponta os riscos de assunção da proposta
funcionalista sistêmica em razão de sua compatibilidade com “sistemas
políticos ditatoriais, brutalmente negadores dos direitos humanos mais
elementares”. Assim entende que “desde o ponto de vista de uma concepção político-criminal característica de um Estado de Direito”, uma
proposta como esta deve ser rechaçada, posto que “converte a Dogmática
jurídico-penal em um instrumento de legitimação de ditos sistemas, quando não em cúmplice servil de seus excessos”.
O mesmo aspecto é também percebido por Baratta278 que alerta, referindo-se à proposta luhmaniana, que serve de base às conside276
VIVES ANTÓN, Tomás Salvador, Op. cit., p. 443.
MUÑOZ CONDE, FRANCISCO, (2000), Edmund Mezger[...] Op. cit., p. 75.
278
BARATTA, Alessandro, (1984), “Integración-prevención: una “nueva” fundamentación de la pena
dentro de la teoría sistémica”, en Cuadernos de política criminal, n. 24, 1984, Edersa editoriales de
Derecho reunidas, Madrid, p. 533-551, p. 534.
277
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
255
rações de Jakobs279 , que “se o direito garante um grau indispensável de
orientação da ação e de estabilização das expectativas, sua função resulta independente do conteúdo específico das normas”.
O própio Jakobs deixou transparecer os tons absolutistas de
sua concepção jurídica baseada na obediência irrestrita à norma quando, em uma conferência que proferiu na Universidad Pablo de Olavide,
en Sevilha, Espanha, em 2000, qualificou a reação do Direito penal
moderno contra aquele que não se porta dentro de um padrão esperado de uma pessoa, ou seja, o autor de delito como “uma reação contra
um inimigo”280 .
Observa Muñoz Conde281 que “desde logo, em um Estado de Direito democrático e respeitoso com a dignidade do ser humano nem o «inimigo», nem ninguém pode ser nunca definido como «não pessoa»”.
Isto posto, parece claro que o funcionalismo sistêmico não pode
servir de via corretiva da dogmática político criminal institucional de uma
instituição responsável pela salvaguarda do regime democrático.
Assim, resta propor, como resultado de depuração, a necessidade de rever as posições da política institucional do Ministério Público, no
campo criminal, com base em um funcionalismo teleológico. Nesse sentido, em clara opção pelo Estado de Direito, comenta Roxin282 a respeito de
suas propostas que “uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Estado Social, um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito”.
Isso significa, dentro dos tópicos principais, já referenciados,
que os agentes de execução desta política devem primar, em sua atuação, pela preservação dos princípios gerais de um Estado democrático de direito, notadamente, o princípio de intervenção mínima e o princípio da legalidade.
No campo do moderno direito penal, isso se traduz em uma
279
MUÑOZ CONDE, Francisco, (2000), Edmund Mezger[...] Op. cit., p. 73.
JAKOBS, Günther, (2000), “La ciencia del Derecho penal ante las exigencias del presente”, Seminário
proferido na Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, España, trad. de Teresa Manso Porto, Sevilla, 2000, p. 15.
281
MUÑOZ CONDE, Francisco, (2000), Edmund Mezger[...] Op. cit., p. 75.
282
ROXIN, Claus, (2000), Op. cit., p. 20.
280
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256
postura crítica das modernas técnicas de imputação, consistente, primeiramente, na rejeição da atribuição de responsabilidade penal por
condutas cuja tipicidade esteja definida por figuras que dada sua
volatilidade pelo exacerbo do emprego da norma penal em branco percam o conteúdo de certeza, afligindo o princípio de legalidade (lex certa); em segundo lugar, em idêntica rejeição de aplicabilidade das normas que representem um avanço de proteção exacerbado (tipos de
perigo abstrato), cujo emprego signifique uma afronta ao princípio de
mínima intervenção do Direito penal. A rejeição das normas, nestes dois
casos, pode se dar pela via da inconstitucionalidade, na medida em que
sua aplicação é aflitiva dos princípios de proteção do regime democrático, cuja defesa incumbe ao Ministério Público.
Mais ainda, a adoção de uma política criminal consentânea
com o funcionalismo teleológico significa, ter em conta, o bem jurídico
como referência normativa, ou seja, significa rejeitar in limine, o emprego de toda a norma incriminadora, que não corresponda à proteção
de um bem jurídico que seja indispensável ao desenvolvimento social
do indivíduo. Ou seja, a interpretação de proteção aos bens jurídicos
meta individuais trazidas à baila pelo moderno Direito penal, deve sofrer as filtragem do princípio da fragmentariedade, incumbindo reconhecer como válida somente a proteção a um bem jurídico coletivo, por trás
do qual se possa identificar, claramente, o interesse de indivíduos determinados.
Finalmente, esta opção se traduz em utilizar a proteção do bem
jurídico essencial ao desenvolvimento social do indivíduo, como função
primordial do direito penal e logo, como fundamento da aplicação da
pena. A aplicação da pena só pode ser justificada enquanto o fim buscado não é conflitivo com a defesa desses bens jurídicos, inclusive no que
se refere à própria pessoa do apenado.
Enfim, o Ministério Público, com sua metamorfose institucional
oriunda da carta penal de 1988, tem, hoje, missões mais importantes do
que simplesmente vigiar a aplicação da lei. Isso, no campo penal, representa a necessidade de uma revisão de suas bases dogmáticas fundamentais. O direito penal moderno apresenta novos problemas a serem
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257
enfrentados. Da leitura político-institucional que o Ministério Público fizer desta nova situação, depende, em grande parte, o rumo do estudo
da dogmática jurídico penal do futuro. Esta opção institucional não deve
ser de transferência de foco para uma nova disciplina incriminadora e
sim de abordagem dos temas, no próprio campo do direito penal. E,
finalmente, a adoção dessa postura representa a necessária opção pela
revisão interpretativa da dogmática jurídico-penal segundo os cânones
do funcionalismo teleológico.
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261
A SÚMULA 233 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E
O DESTINO DOS PROCESSOS DE EXECUÇÃO EM
CURSO *
ADRIANA TIMÓTEO DOS SANTOS
PROFESSORA COLABORADORA NO CURSO DE DIREITO DA UEPG MESTRANDA EM DIREITO PELA PUC-PR - ADVOGADA NO PARANÁ.
RESUMO
A autora aborda algumas das alterações havidas no Código de Processo
Civil desde 1994 e a nova postura do STJ, mediante a edição da Súmula 233,
que trata da execução de título extrajudicial embasada em contrato de abertura
de conta corrente, o que acabou por uniformizar o entendimento de que referido
contrato, ainda subscrito pelo devedor e por duas testemunhas e acompanhado
dos extratos de conta-corrente, não é considerado título executivo.
ABSTRACT
The author talks about some of the modifications happened in Civil Procedure
Code since 1994 and the new function of the Supreme Court of State (SCS)
, because of the edition of Stare Decisis 233 , what is about the execution of
an extra judicial paper based in contract to the current account opening , and
it ended by equaling the understanding of the referred contract , subscribed
by the debtor and two testimonies and accompanied by current account
resumes is not considered executive paper.
PALAVRAS CHAVE - Direito Processual Civil; reforma do Código de
Processo Civil; processo de execução;
INTRODUÇÃO
O Código de Processo Civil tem sofrido alterações a partir de
1994, objetivando-se alcançar aquilo que se convencionou denominar
de ‘efetividade processual’. Também no âmbito da tutela executiva algumas alterações legais ocorreram, porém, não só a lei foi alterada, como
também alterou-se a posição do Superior Tribunal de Justiça a respeito
da execução de título extrajudicial embasada em contrato de abertura
de conta corrente.
* Trabalho apresentado junto ao Mestrado em Direito Econômico e Social da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná – PUC/PR na disciplina Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais II ministrada
pelo Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier
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Face a quantidade de ações desse tipo em trâmite e a repercussão que as decisões do STJ têm provocado, relevante mostra-se o
estudo do tema.
O TÍTULO EXECUTIVO
O título executivo é criação legal-processual, logo, é a lei processual que elenca quais são os títulos executivos, porém, o art. 585 CPC
não é exaustivo, leis esparsas podem criar novos títulos, mas somente a
lei pode reconhecer (e qualificar) um documento como hábil a ensejar o
processo de execução. É a regra “nullus titulus sine lege”283 .
A Lei 9.307/96 alterou a redação do art. 584 CPC e a lei 8953/
94 operou inovações no processo de execução no tocante aos títulos
executivos, incluindo-se o instrumento de transação assinado por defensores públicos e advogados das partes e os documentos relativos à
obrigações de entregar coisa infungível, fazer e não fazer. Dessa forma, documentos, antes não autorizadores da ação executiva, com tal lei
passaram a sê-lo.
O DIREITO INTERTEMPORAL E A AÇÃO EXECUTIVA
Considerando-se as recentes alterações legais sobre a matéria, relevante o estudo das regras de direito intertemporal.
Relativamente ao direito processual (como o caso em tela), referidas regras dispõem que aplica-se a lei vigente no momento da prática do ato processual.
Desta forma, conforme ensinam WAMBIER, TALAMINI E
ALMEIDA284 “se a ação de execução vai ser proposta agora, o relevante é que, agora, aqueles atos sejam título executivo, pouco importando que antes não fossem. Do mesmo modo, caso a lei elimine alguma
hipótese de título executivo, todos os atos que nela se enquadravam,
283
Conforme ensina Cândido Rangel Dinamarco, “em hipótese alguma é lícito ao intérprete acrescer, sob
pena de legítima violação da esfera de direitos do (suposto) devedor. Sequer o próprio obrigado pode
conferir executividade aos seus atos com que constitui ou reconhece dívida, a cláusula executiva (...)
é absolutamente incompatível com o sistema e por isso inadmissível”. Face esse posicionamento o autor
não reconhece como título executivo os contratos de abertura de crédito em conta-corrente bancária. In
Execução Civil, São Paulo, Malheiros,1998. p.459.
284
WAMBIER, Luiz Rodrigues, TALAMINI, Eduardo e ALMEIDA, Flávio Renato Correia. Curso Avançado
de Processo Civil. 3ª ed., vol. 2, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 60.
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263
mesmo os formados antes da alteração legislativa, não possibilitarão
mais pedido de execução”.
Desta forma, importa a lei vigente à época da propositura da
ação para verificar se o título é executivo ou não. As ações ajuizadas
com fulcro em título executivo que deixa de sê-lo face a revogação da lei
que o considerava como tal, deverão subsistir, pois à época do
ajuizamento, a lei qualificava o documento como título executivo. Podese falar em direito adquirido processual, onde a regra do art. 1211 do
código processual é relativizada.
Já as ações ajuizadas, posteriormente à nova lei, serão extintas, pois houve a desqualificação do documento como título executivo,
tornando nulo285 o processo de execução pela ausência de seu requisito
essencial: o título executivo (conforme artigo 618, I CPC - nulla executio
sine titulo).
Havendo nulidade processual, cabe ao próprio juiz, de ofício ou
a requerimento da parte (via embargos ou objeção de executividade)
extinguir o processo executivo em curso.
A EDIÇÃO DA SÚMULA 233 STJ E OS PROCESSOS DE EXECUÇÃO
EM CURSO
A propositura de ação executiva, fundada em contrato de abertura de crédito rotativo, sempre suscitou dúvidas na doutrina face a sua
não inclusão expressa no rol dos títulos executivos extrajudiciais previstos no art. 585 CPC.
HUMBERTO THEODORO JUNIOR286 , em análise sobre o tema,
afirma que até a edição da Súmula 233, notava-se “um dissídio entre a 3ª
e 4ª Turmas do STJ, acerca da possibilidade, ou não, de qualificar-se o
contrato bancário de abertura de crédito como título executivo judicial”. A
questão girava em torno da iliquidez de referido documento eis que nele
não se encontra a obrigação de pagar determinada quantia em dinheiro e
não se poderia completá-lo pelo extrato de conta porque este seria documento unilateral do credor (vide REsp 36.981-8-MG, publ. DJU 23.05.94).
285
Conforme SERGIO SHIMURA in Título executivo, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 136.
HUMBERTO THEODORO JUNIOR. O contrato de abertura de crédito e sua natureza de título
executivo. In Processo de Execução e assuntos afins. Coord. Teresa Arruda Alvim Wambier. São
Paulo, Revista dos Tribunais, 1998
286
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Após a edição da Súmula 233 do STJ (em 08.02.00), uniformizouse o entendimento de que referido contrato, ainda que subscrito pelo
devedor com duas testemunhas e acompanhado dos extratos de contacorrente, não é título executivo. Desta forma, inexistindo título, para o
STJ, a execução é nula, determinando-se a sua extinção por ocasião do
julgamento de recurso, ainda que, a parte não tenha argüido a matéria
em razões recursais.
Observa-se que no REsp 280.995-RS, o STJ enfrentou a questão afirmando que, na espécie, não haveria reformatio in pejus eis que
a falta de uma das condições da ação é matéria de ordem pública, podendo ser analisada de ofício.
EVARISTO ARAGÃO FERREIRA DOS SANTOS287 analisando acórdão onde o Tribunal, em julgamento de agravo referente a decisão sobre a penhora de bens, decidiu pela extinção da execução com
base na Súmula 233 STJ (pois a carência da ação poderia ser decretada de ofício, a qualquer tempo), afirma: “o problema, no entanto, é que
esse é o atual entendimento do STJ. Ou seja, trata-se apenas de interpretação do STJ, para determinada situação em determinado momento
histórico. (...) Isso é suficiente para significar, porém, que nenhum magistrado está adstrito a decidir nesse mesmo sentido, quando deparar-se com situação semelhante”.
GLAUCO GUMERATO RAMOS 288 , ao comentar a referida
Súmula afirma que, padecendo o processo de execução de nulidade
absoluta, pois aparelhado em documento que não representa um título executivo, a rigor, o juiz já deveria ter extinto o processo, o que permite ao executado lançar mão da objeção de pré-executividade.
Outrossim, em que pese a existência da Súmula 233 STJ, em
nosso sistema, a mesma não tem efeito vinculante289 , o que significa
287
EVARISTO ARAGÃO FERREIRA DOS SANTOS. Possibilidade de o Tribunal julgar agravo e
extinguir o processo conhecendo matéria não objeto do agravo. In RePro 99/295.
288
GLAUCO GUMERATO RAMOS. Contrato de abertura de crédito em conta corrente. In RePro 102/317.
289
Ao analisar o recurso de agravo e os poderes do relator ante a existência de súmula em entendimento
289
contrário, VALENTINA J. C. ALLA , afirma que “o art. 557 deve ser interpretado no sentido de que
poderá (e não deverá) o relator negar seguimento ao agravo naqueles casos, sob pena de se configurar
indevida e inconstitucional a atribuição de efeito vinculante à súmula”. (sem destaque no original)
No mesmo sentido TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER afirma que “embora pareça-nos positiva a adoção
da súmula vinculante pelo nosso sistema, parece que está na dependência de reforma constitucional”.
Ob. Cit., p.444. (sem destaque no original)
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265
que o julgador não é “obrigado” a extinguir eventuais execuções em curso, ante a existência da Súmula.
Entendimento contrário não é o que melhor se harmoniza com o
princípio da efetividade do processo, eis que, as ações foram ajuizadas à
época onde referido título era considerado executivo pela maioria da doutrina e havia considerável divergência na jurisprudência.
Por estas razões, MARCOS PAULO FÉLIX DA SILVA290 pugna
pela “sobrevivência da execução quando a mesma foi instaurada antes
da uniformização do entendimento jurisprudencial do STJ” eis que, “a
opção do credor pela via executória deu-se à época em que prevalecia
considerável vacilação jurisprudencial a respeito do cabimento ou não
da execução” arrimada em referido documento.
Os juízes não devem simplesmente extinguir a execução tão
somente pela mudança de entendimento do STJ, eis que a mesma não
vincula os juízes de 1º grau ou 2º grau, veja-se que, mesmo quando a
lei é alterada (o que é muito mais grave, face a imperatividade legal)
prevalece a disposição legal vigente à época da propositura da ação,
logo, o entendimento atual do STJ, jamais deveria ser suficiente para
por fim às ações executivas em curso.
Ad argumentandum, caso o tribunal opte pela extinção da execução e não havendo sucesso em grau recursal, seria cabível a conversão da execução embargada em ação monitória – o que é admitido por
parte da doutrina291 -292 – ou em ação de cobrança, porém, não deverá o
Tribunal extinguir a ação em curso por carência da ação e conseqüente
nulidade processual.
Esta posição justifica-se ante o princípio da instrumentalidade
das formas e do aproveitamento dos atos processuais já praticados,
evitando-se a repropositura de ações, agora sob o procedimento
monitório ou ação de cobrança, onerando-se as partes com novas cus290
MARCOS PAULO FÉLIX DA SILVA. Inexequibilidade do contrato de abertura de crédito rotativo em
conta corrente e a possibilidade de adequação da forma processual. In RT 788/137.
291
Vide MARCOS PAULO FÉLIX DA SILVA, Ob. Cit. , p. 140-142.
292
Contra, entendendo ser incabível a conversão em ação monitória na hipótese prevista na Sumula 233
STJ, ver: SANDRO GILBERT MARTINS. O contrato de abertura de crédito em conta corrente –
como objeto do procedimento monitório. In RePro 100/247.
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266
tas processuais e indo de encontro à efetividade e celeridade processual, tudo em conformidade com o art. 250 CPC293 .
Ínsito ao princípio da instrumentalidade está a idéia de prejuízo
processual, pois, na sistemática vigente, somente serão declarados nulos aqueles atos que não possam ser aproveitados e que causem prejuízos às partes (arts. 244 e 249, § 1º do CPC294 ).
GLEYDSON KLEBER LOPES DE OLIVEIRA295 , citando LUIZ
GUILHERME MARINONI afirma que a teoria das nulidades deve estar
inserida na idéia de instrumentalidade concluindo que, deverá o tribunal “verificar se a finalidade a que estava destinado o citado ato foi
concretizada, uma vez que, atingida aquela, embora de forma viciada,
não há que se cogitar a decretação do vício em atenção ao princípio
da instrumentalidade”.
No caso presente, questionável é a extinção do processo por
nulidade processual, matéria não sujeita à preclusão e examinável
de ofício, pois não verifica-se de imediato a carência da ação, tampouco
pode-se afirmar de plano a violação de norma de interesse público,
havendo na espécie apenas entendimento jurisprudencial acerca da
inexistência do título executivo.
CONCLUSÃO
A alteração do entendimento do Superior Tribunal de Justiça e
conseqüente edição da Súmula 233, não vinculam os juízos de 1º e 2º
graus, não devendo os processos de execução em curso serem extintos.
Pelo princípio da máxima utilidade da execução entende-se que
o credor deverá receber tudo aquilo a que faria jus se não houvesse a
293
Art. 250 – O erro de forma do processo acarreta unicamente a anulação dos atos que não possam
ser aproveitados, devendo praticar-se os atos que forem necessários, a fim de se observarem, quanto
possível, as prescrições legais.
294
Art. 244 – Quando a lei não prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz
considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.
Art. 249 – O juiz, ao pronunciar a nulidade, declarará que atos são atingidos, ordenando as providências
necessárias, a fim de que sejam repetidos, ou retificados.
§ 1º - O ato não se repetirá nem se lhe suprirá a falta quando não prejudicar a parte.
295
GLEYDSON KLEBER LOPES DE OLIVEIRA. Recursos de efeito devolutivo restrito e a possibilidade de
decisão acerca de questão de ordem pública sem que se trate da matéria impugnada. In Aspectos
polêmicos e atuais dos recursos. Coord. Eduardo Pellegrini de Arruda Alvim, Nelson Nery Júnior e
Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 268.
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violação ao seu direito, ou o mais próximo disso possível. A análise do
princípio leva a uma contradição: imagina-se que, ajuizada ação executiva embasada em título executivo (entendido como tal até então), julgada
procedente e rejeitados os embargos do devedor, o credor, após toda
demora própria do processo, poderá ver desconstituída tal decisão.
Como fica a efetividade, segurança e economia processual especialmente num país onde as partes sofrem com as dificuldades financeiras para suportar as altas custas processuais e a demora quase
insuportável das decisões proferidas pelo Poder Judiciário abarrotado
de processos?
Na hipótese do credor eleger um determinado título executivo
para representar seu crédito, orientado pela lei vigente à época ou
pela reiterada posição do tribunal, vendo sua ação de execução declarada nula, com conseqüente condenação na sucumbência, implicará,
conforme menciona MARCOS PAULO FÉLIX DA SILVA296 , “autêntico
enriquecimento ilícito do devedor-embargante, à medida que, além de
beneficiar-se da anulação da execução, permanecerá inadimplente sabese lá por mais quanto tempo.”
Pode-se afirmar que a extinção do processo na hipótese, remetendo-se o credor à via ordinária de cobrança ou monitória, fere o
princípio da máxima utilidade da execução.
Finalmente, conclui-se que, ainda que se entenda que o contrato de conta corrente não é título executivo, os atos processuais praticados deverão ser aproveitados face o princípio da instrumentalidade. A
conversão da ação executiva embargada em monitória ou ação de cobrança é possível porque trata-se de processos de conhecimento interpretando-se, sistematicamente, o art. 295, V, CPC, que estatui somente
ser indeferida a petição inicial, quando o tipo de procedimento escolhido pelo autor não puder adaptar-se ao procedimento legal.
296
MARCOS PAULO FÉLIX DA SILVA, Ob. Cit., p. 140.
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SOBRE O PAPEL E ORIGENS DA SOCIOLOGIA
GUILHERME G. TELLES BAUER
PROFESSOR DE SOCIOLOGIA JURÍDICA NA UNIVERSIDADE TUIUTI
DO PARANÁ. DOUTOR PELA UNIVERSIDADE RUPERT KARL EM
HEIDELBERG - FACULDADE DE FILOSOFIA E HISTÓRIA (1990), COM
DIPLOMA REVALIDADO PELA UNIVERSIDADE DE CAMPINAS COMO
DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS (1998-1999)
RESUMO
O texto, subdividido em quatro partes, procura demonstrar que a Sociologia,
mesmo havendo nos últimos anos perdido seu prestígio e relevância, continua
sendo um instrumento válido para a interpretação crítica da realidade social.
ABSTRACT
The text, subdivided in four parts, wants to demonstrate that Sociology, even it
has lost its prestige and importance during the last years , keeps on being a
valid instrument to the critical interpretation of the social reality. Analyzing the
pieces of knowledge nowadays, the author questions the function of Sociology,
talking about the importance of a sociological thought to the comprehension
of social power which has been changing so deep human life.
PALAVRAS CHAVE
se quisermos, como devemos, ser sociólogos de nossa circunstância,
deveremos começar pelo contexto sócio-temporal de que emergem as
nossas perplexidades. (...) A rapidez e a intensidade que tudo tem
acontecido se, por um lado, torna a realidade hiper-real, por outro lado,
trivializa-a, banaliza-a, uma realidade sem capacidade para nos surpreender
ou empolgar. (...) A tradição da sociologia é neste domínio ambígua. Tem
oscilado entre a distância crítica em relação ao poder instituído e o
comprometimento orgânico com ele, entre o guiar e o servir. Os desafios
que nos são colocados exigem de nós que saiamos deste pêndulo. Nem
guiar nem servir. Em vez de distância crítica, a proximidade crítica. Em vez
de compromisso orgânico, o envolvimento livre. Em vez de serenidade
autocomplacente, a capacidade de espanto e de revolta. 297
INTRODUÇÃO
O presente texto, baseado em apontamentos para a sala de
aula, derivados de leituras diversas, pretende realçar alguns aspectos
297
Sousa Santos, Boaventura – Pela Mão de Alice, 5ª ed., 1999, São Paulo, Cortez Editor
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270
que podem demonstrar que, a “ciência da sociedade”, apesar de seus
tropeços e impasses, continua a ter importância para a ação dos homens, atuando e interagindo na sociedade.
Apesar de a Sociologia haver nas últimas décadas perdido o
seu élan, sua relevância e prestígio como o alcançado à época da rebelião estudantil dos anos 60 e 70, continua sendo, como em seus
primórdios, um instrumento válido para a compreensão crítica da realidade social, fornecendo subsídios para sua transformação.
Buscando demonstrar esse papel, que faz parte das próprias
origens da Sociologia, o texto foi subdivido em quatro partes.
A primeira, aborda aspectos tratados pela Sociologia, que possibilitam um engajamento maior e autêntico dos indivíduos em sua atuação na sociedade.
A segunda, aponta para a crise enfrentada pela sociedade
globalizada, tocando em aspectos relevantes que fazem parte da análise sociológica.
A terceira parte busca refletir a perplexidade decorrente do processo da globalização no âmbito individual, ocasionando mudanças nos
valores e no comportamento dos indivíduos.
A última parte discorre sobre as origens, papel e promessas da
Sociologia.
OBSERVAÇÕES INICIAIS SOBRE SOCIOLOGIA
Essa palavra híbrida, meio grega e latina, cunhada a contragosto por Auguste Comte em meados do século 19 (ele preferia a designação “física social”), trata afinal do quê?
Do homem. Não do homem como indivíduo, mas do homem
social, do homem coletivo, do homem vivendo em sociedade, dos seus
atos, suas ações, dos efeitos desses atos e ações, das instituições,
regras e normas, dos relacionamentos e inter-relacionamentos sociais
entre homens, grupos e sociedades.
Como nos lembra Peter Berger298 , a Sociologia trata dos fatos
que cativam as convicções supremas dos homens, de seus momentos
298
Perspectivas Sociológicas, uma visão humanística, 19ª ed., 1986, Petrópolis, Vozes
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de grandezas, tragédias e êxtases. Mas também das trivialidades da
vivência cotidiana. Ou seja, a Sociologia observa os homens, procura
compreender as coisas humanas, a sociedade. E toda e qualquer sociedade é constituída por uma rede de papéis sociais. Nossa existência
permanece vinculada a diversos papéis sociais que desempenhamos,
cotidianamente, e no decorrer de nossas vidas, amarrados a localizações sociais específicas. Representamos esses papéis de forma consciente ou inconscientemente, sendo que muitas vezes sequer nos apercebemos deles. Mas, se os desempenhamos com convicção, cônscios
deles, podemos transformá-los num instrumento de nossas decisões,
assumindo a responsabilidade pelo que fazemos. Somente assim não
estaremos escudando-nos nos costumes, nas tradições, nas regras e
determinações burocráticas ou ideológicas, refugiando-nos por trás de
uma Charaktermaske que encobre nossa responsabilidade tal como
descrito por Hannah Arendt299 , no caso da figura cruelmente banal de A.
Eichmann. Esse ex-comandante da SS, raptado por um comando do
Mossad, na Argentina, onde estava refugiado, foi o burocrata responsável pela organização do transporte dos milhões de judeus para os campos de concentração nazistas e, portanto, para a morte. Surpreendentemente, durante todo o desenrolar do processo contra ele movido em
Israel por suas ex-vítimas (aliás, H. Arendt questiona veementemente a
legitimidade do processo), mal conseguia entender o que estava ocorrendo, considerando-se, até no momento de sua execução, tão somente um funcionário exemplar, mero cumpridor de seus deveres, não conseguindo enxergar ou perceber sua responsabilidade moral, incapaz de
assumir qualquer sentimento de culpa pelos crimes e atrocidades cometidas direta ou indiretamente sob suas ordens.
Na verdade, a própria sociedade auxilia-nos a escamotear a
realidade das coisas, protegendo-nos dos questionamentos, mais profundos, dos porquês. Se nos questionamos eventualmente, as respostas acabam sendo rapidamente sufocadas pelas explicações convencionais: a sociedade oferece-nos sistemas religiosos, mitos sociais e
299
Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal, 1999, São Paulo, Companhia das
Letras
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políticos que nos libertam dos questionamentos, possibilitando-nos aceitar o mundo sem questionamentos. A vivência num mundo socialmente
construído e justificado se impõe como a normalidade de nossa vivência
cotidiana e assim, mais aceitável, menos problemático.
A vida humana, exercida e praticada como uma existência
autêntica e livre, só é possível, no entanto, na convivência com os
outros, dentro da sociedade. Somos o que somos, inseridos na vivência
social, somos o produto das relações sociais, da cultura, da história,
da sociedade em que vivemos e atuamos. Nossos valores, seus significados nos são transmitidos através de processos sociais. A Sociologia pode auxiliar-nos a obtermos uma visão mais clara dessa realidade,
na qual estamos inseridos, contribuindo na desmistificação das
autojustificações, e, sobretudo, das falácias, dos engodos e mitologias,
e mais, revelando-nos também, relações de poder e opressão e as manipulações delas decorrentes, às quais estamos submetidos, muitas
vezes sem delas nos apercebermos mais claramente. Ela pode contribuir para nos revelar a realidade tal como ela de fato é, mostrando-nos
que o homem é aquilo que a sociedade faz dele e que ele, dispondo
desse conhecimento, pode tentar ser outra coisa, alguém que ele mesmo possa escolher ser. Pode lançar luz sobre as mistificações que encobrem muitas vezes as ações humanas, revelando seu real caráter,
esclarecendo o que se esconde por traz das aparências, justificativas,
convenções, muitas vezes utilizadas como instrumento inclusive de autoengano, quando não de manipulação e opressão300 .
A Sociologia ocupa-se, como afirma Peter Berger, de um tema
principal que é a própria condição humana. Trata dos homens inseridos e interagindo no meio social, buscando compreender suas ações,
reações, interações dentro da sociedade.
Ocorre que a vivência em sociedade, de uns com outros, implica, necessariamente, na observância de regras e normas que permitem
o conviver de pessoas dotadas das mais diversas necessidades e as300
Esses, aliás, são temas recorrentes na filosofia e moral sartreana, permeando todo o texto de P.
Berger, que nos serviu de subsídio nesta parte do trabalho. Ver Sartre, Jean-Paul – Questão de Método,
1987, São Paulo, Abril Cultural
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pirações, tantas vezes divergentes, seja no grupo familiar, no trabalho,
no lazer, na sociedade em geral.
No entanto, deparamo-nos sempre com nossas tendências de
cunho mais individualista, com nossa vontade de romper com normas
e regras, de refugiarmo-nos vez ou outra em algum isolamento (como
nossos filhos, os jovens, nós mesmos). Mas se o fazemos, é apenas
temporariamente.
Não estou referindo-me, certamente, ao jovem norte-americano, como noticiado na imprensa, algum tempo atrás, que, na tentativa de
comprovar a eficiência da tecnologia moderna, sobretudo da Internet,
buscou isolar-se, fisicamente, do mundo dos homens, durante um ano
todo, reduzindo seu relacionamento e interação social aos encontros
cibernéticos. Há, inegavelmente, uma tendência muito forte nas sociedades contemporâneas das pessoas isolarem-se ou circunscreverem
seus inter-relacionamentos ou interações sociais, apenas aos seus
“iguais” (como nos condomínios fechados), buscando reduzir ao mínimo, a própria convivência humana. O sociólogo Robert Castells, num
seminário ocorrido em 1997 sobre a Globalização (PUC São Paulo,
1997), fez um relato pungente sobre os efeitos sociais e psicológicos do
processo da globalização, no mundo do trabalho da sociedade francesa, refletindo-se, tragicamente, na esfera pessoal daqueles que vieram
a perder seu emprego. Exemplificou o problema no caso de um ex-mineiro de 44 anos de idade, que, ao mesmo tempo, muito jovem para
parar de trabalhar e muito velho para reaprender outra profissão, encontrava-se, no contexto do final dos anos 90, após haver sido expelido do
seu lugar de trabalho, definitivamente condenado ao desemprego. Sem
qualquer perspectiva, sente vergonha de si mesmo. Teme e evita o contato com os outros, isolando-se cada vez mais dentro das quatro paredes de sua sala. Cerra as cortinas como a querer distanciar-se do mundo externo, largando-se frente à televisão, num universo reduzido à imagens fugidias. Sente-se inútil, imprestável, descartável. Seu mundo não
tem mais sentido. Depressivo e sem saída, torna-se um candidato e
vitima potencial do suicídio.
No entanto, o homem continua sendo um ser social. Algo nos
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impulsiona, nos obriga à vivência com os outros. Como se fosse um
instinto, algo atávico, genético, oriundo de nossos antepassados
paleolíticos (o filme Guerra do Fogo aponta para isso). E essa vivência
implica, necessariamente, numa permanente adequação à regras de
convivência, as quais nos submetemos, como nos submetemos a determinados padrões comportamentais que possibilitam, viabilizam nosso
relacionamento e inter-relacionamento com os outros. Cada um de nós
desenvolve tendências comportamentais das mais variadas, exigindo
regras e normas de comportamento, que nos são ensinadas, impostas,
e as quais nos submetemos, justamente para permitir a adequação de
nossas condutas ao grupo social em que atuamos. Sem essa adequação, não subsiste um entendimento mais geral, que permite a sobrevivência no grupo e do próprio grupo. Cada grupo social inculca em seus
integrantes, padrões de comportamento, buscando uma maior
homogeneidade social. Assim, cada um de nós, aprendendo, aceitando
os valores, regras e normas prevalecentes no grupo, mais facilmente
estaremos nos habilitando a satisfazer nossas próprias necessidades e
aspirações, que não entrarão em choque com os anseios e padrões
comportamentais, usuais no grupo, pois estaremos utilizando meios,
modos e maneiras de agir socialmente reconhecidos. No decorrer do
tempo, acabamos reconhecendo que isolados, pouco se alcança e que
somente em conjunto com outros poderemos mais facilmente atingir
nossos fins. Para nossa vivência (ou sobrevivência) em grupo, acabamos entendendo ser necessário submetermo-nos às regras e maneiras
de ser, adequadas a como o grupo vive e age. Aprendemos esses comportamentos e regras num processo educacional contínuo, através do
processo de socialização, que nos acompanha desde a infância. Regras para comer, dormir, direitos, normas e deveres nos são inculcados,
somos forçados a segui-los sob pena de sanções, sendo que acabamos internalizando-os. Eles passam a fazer parte de nossa vivência, do
nosso cotidiano301 . Percebemos que crianças, em seu processo de socialização, mesmo nas suas brincadeiras, buscam imitar o que conside301
Esses seriam fatos sociais como quer Émile Durkheim. Ver seu texto As Regras do Método Sociológico,
1983, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
275
ram ser o comportamento de adultos, assumindo e antecipando, até certo
ponto, papéis sociais, mesmo que estereotipados, típicos do que imaginam ser o comportamento feminino ou masculino, identificando-se com
eles. Aprendem, às vezes, a duras penas, que seu comportamento, sua
maneira de agir, deve ser aquela mais aceita pelo grupo. Castigos ou
afagos, reprimendas ou louvores, ensinam crianças a distinguirem entre
o certo e o errado, criando nelas hábitos e maneiras de agir adequadas
à vivência no grupo, em que estão interagindo (na família, na escola, no
grupo de amigos).
Ora, o processo de adequação à regras e normas de convivência, que são aceitas e defendidas pelo grupo, não implica necessariamente que essas regras, normas e valores, sejam de fato os mais adequados ou moralmente defensáveis. Basta lembrarmo-nos dos padrões
comportamentais decorrentes de uma cultura racista, da intolerância
religiosa ou político-ideológica, amplamente aceitos e praticados por
determinados agrupamentos sociais, justificando inclusive ações cruéis
e desumanas.302 Por outro lado, um processo de adequação permanente, subentende, de certa forma, também, uma supressão da nossa livre
escolha, até certo ponto, de nossa própria liberdade. Por isso, a rebeldia dos filhos adolescentes, não é apenas a busca da própria identidade, de sua afirmação como indivíduo, mas também uma espécie de protesto, inconsciente na maior parte das vezes, contra aquilo que é sentido como a “tirania” dos pais, contra a supressão de sua liberdade (a
Carta ao Pai de Franz Kafka é um exemplo belo e trágico da tentativa de
um acerto de contas, tardio e frustrado, do filho com o pai) 303 .
Mesmo que já tenhamos nos acomodado de tal modo às
injunções, aceitando inconscientes e, passivamente, o que ocorre, os
padrões estabelecidos vistos como imutáveis (“é assim mesmo”), acabamos em determinados momentos de discernimento, percebendo a
pressão e o desacerto das coisas. Nem sempre, mas muitas vezes acabamos levantando a cabeça, rebelando-nos contra a situação, como que
buscando reafirmar nossa dignidade, lutando por nossa liberdade.
302
Ver Arendt, Hannah – Origens do Totalitarismo, São Paulo, Companhia de Letras; e o instigante
Baumann, Sygmund – Modernidade e Holocausto, 1998, Rio de Janeiro, JZE
303
Coleção A Obra Prima de Cada Autor, 2001, São Paulo, Martin Claret
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
276
J. P. Sartre304 , autor que com sua obra e atuação pessoal, marcou profundamente o século XX;305 Afirma que os homens foram condenados a serem livres. Ele refere-se à liberdade de escolha, de se optar,
de determinar nosso próprio caminho. Mas esse caminho é sempre um
caminhar junto com outros. Fazemos nossas escolhas e arcamos com
suas conseqüências, com a responsabilidade de nossa decisão. E essa
escolha repercute na nossa vida e na vida de todos os outros. Em O
Existencialismo é um Humanismo Sartre exemplifica a questão, relatando
sobre um aluno que o procurou à época da ocupação alemã na França,
perguntando-lhe o que fazer. Pois, ao mesmo tempo em que queria engajarse na Resistência a fim de combater os nazistas, o que implicaria na sua
ida imediata para a Inglaterra, sua mãe, muito doente, necessitava de sua
presença ao seu lado. Sartre respondeu-lhe que ele já havia, antecipadamente, tomado sua decisão ao procurá-lo e não a um padre. A decisão
era dele e apenas a ele cabia a responsabilidade por ela.
É nesse sentido também que a Sociologia pode contribuir para
clarear nossa situação, auxiliando-nos assumir efetivamente, sem escamotear, a responsabilidade de nossas decisões, muitas vezes dolorosas, na medida que fornece os subsídios necessários para um melhor entendimento do contexto em que vivemos e atuamos.
A CRISE DO MUNDO MODERNO
Como afirma Boaventura de Souza Santos306 o mundo moderno encontra-se em crise. Desde a década de 80 vem aprofundando-se
nos países metropolitanos a crise do Estado do Bem-Estar Social, agravando-se as desigualdades e os processos de exclusão social. Muitas
vezes, esses países estão apresentando características típicas de países periféricos. Já nos países periféricos, as condições sociais, de si
tão precárias, agravaram-se ainda mais brutalmente. Ao lado do crescimento do endividamento externo, acentua-se a desvalorização dos produtos de exportação, com a marginalização cada vez maior dos países
304
Sartre, Jean Paul – O Existencialismo é um Humanismo, São Paulo, Coleção Os Pensadores, 1987,
São Paulo, Abril Cultural
305
Conforme Lévy, Bernard-Henri –O Século de Sartre, 2001, Rio de Janeiro, Nova Fronteira
306
Pela mão de Alice, 5ª ed., 1999, São Paulo, Cortez Editor
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
277
periféricos no mercado mundial. Como se não bastasse, foram restringidos, drasticamente, os subsídios vindos do exterior, estagnando as
atividades econômicas. São fatores que levaram alguns dos países periféricos à beira do colapso, ou a enfrentarem dificuldades muito sérias,
ultrapassando o âmbito social e econômico, pondo em risco a própria
governabilidade (o que vem ocorrendo na Argentina neste começo do
ano 2002, e agora, mais recentemente, pelo Brasil e Uruguai, são exemplos disso). Não por acaso, designou-se os anos 80 como “a década
perdida”, acentuando-se as disparidades entre os países periféricos e
centrais, dentro da lógica da nova ordem econômica mundial. Por sinal,
não há ainda nenhuma designação para caracterizar as agruras enfrentadas pelos países do Cone Sul, neste começo de século.
De fato, os efeitos do novo processo de acumulação a nível internacional, designado como “globalização” ou “mundialização” , como
quer François Chesnais307 , vem provocando profundas modificações
e restruturações nos mecanismos de funcionamento das sociedades e
Estados. Exige-se, não apenas dos indivíduos, mas dos segmentos
organizados da sociedade, como dos próprios governos, adequações,
revisões profundas em suas práticas, ações e modos de agir, mudanças em seus conceitos, valores, normas e regras308 .
Transformações aceleradas nos sistemas produtivos e nas
relações de trabalho e sociais e no exercício do próprio poder político,
nas funções do Estado e no papel do cidadão, mal acompanhando os
avanços tecnológicos e das ciências, estão modificando as regras, normas, direitos e deveres das pessoas, dos grupos e classes sociais.
São mudanças que tornam as questões sociais cada vez mais
problemáticas.
307
Ver seu elucidativo e didático texto A Globalização e o Curso do Capitalismo de fim-de-século, in
Economia e Sociedade n° 5, Dezembro 1995, Campinas. Sobre a Globalização existe hoje vasta bibliografia,
vale destacar Beck, Ulrich O que é Globalização, UNESP, 2000, o interessante estudo de Dupas,
Gilberto – Ética e Poder na sociedade da Informação, 2ª ed., 2001, São Paulo, UNESP e Castro, Claudio
Henrique de – A Globalização: definição, efeitos e possibilidades no Direito, 2001, Curitiba, Ed. I.
Scherer Ltda. Sobre o impacto da Globalização no Direito, ver especialmente Faria, José Eduardo – O
Direito na Economia Globalizada, 1999, São Paulo, Malheiros Editores
308
Ver a primeira parte de Fukuyama, Francis – A Grande Ruptura, a Natureza Humana e a Reconstituição
da Ordem Social, 2000, Rio de Janeiro, Rocco
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
278
Encaramos impotentes e perplexos o declínio de empresas que,
no atual contexto, se não estão falindo, buscam fusões, “racionalizações”,
“modernizações”, que resultam em violenta retração no nível de emprego. As carreiras tradicionais, no mundo do trabalho, que avançavam, há
alguns anos atrás, pelos corredores de uma ou duas empresas / instituições estão a fenecer cada vez mais; mesmo o conjunto de qualificações
obtidas no decorrer de uma vida de trabalho e aprendizado, perde sua
função, uma vez que o mercado vem impondo trocas nas aptidões básicas adquiridas, de acordo com sempre novas necessidades da organização da produção e da economia. Cresce o trabalho de curto prazo e
episódico, adequado às exigências das organizações ditas
“flexibilizadas”. Como nota Richard Sennett309 “as condições da nova
economia alimentam (...) a experiência com a deriva no tempo, de lugar
em lugar, de emprego em emprego”. As classes médias estão encolhendo, apertando os cintos, frustrando suas aspirações consumistas,
buscando manter minimamente seus padrões de vida anteriores. Os
setores vitais da economia, na indústria, comércio e agricultura, não
apenas estão “modernizando-se”, deixando assim de absorver mão de
obra formal, mas, crescentemente, estão excluindo enormes contingentes populacionais do próprio mundo do trabalho310 . Crescem, assustadoramente, os índices de desemprego em todos os setores da economia, atingindo não apenas a mão-de-obra braçal, mas os próprios quadros técnicos especializados. Como as empresas se dividem ou fundem-se em ritmo acelerado, empregos surgem e desaparecem, como
fatos desconexos, e sobre os quais, a sociedade ou os diretamente atingidos não exercem qualquer influência311 . Amplia-se o desemprego estrutural, expandindo-se a economia informal, os “bicos”, os vendedores
ambulantes, a prestação de serviços eventuais, etc.. O setor terciário
informal que vem crescendo, assustadoramente, nos centros urbanos
brasileiros, e que encontra seu correlato de longa data (desde 1962) no
setor rural, na figura do “bóia-fria”, constitui uma das formas mais co309
A Corrosão do Caráter, 1998, Rio de Janeiro, Record
Ver no contexto dos países metropolitanos FORRESTER, V. - O Horror Econômico, 1997, São Paulo, UNESP
311
A obra de R. Sennett acima citada é bastante elucidativa sobre os efeitos sociais e psicológicos das
transformações estruturais em andamento no mundo do trabalho.
310
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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muns atualmente de se enfrentar a crise do desemprego. De forma
concomitante, cresce o volume de pessoas pobres e miseráveis (basta
um olhar para as periferias urbanas em expansão). A ascensão dos índices de criminalidade e violência é assustador. Tráfico e consumo de
drogas florescem em todos os segmentos sociais, atingindo cada vez
mais jovens e crianças. Com o retrocesso das atividades econômicas,
o Estado arrecada menos, diminuindo ainda mais os recursos para a
manutenção da infra-estrutura e serviços urbanos básicos, contribuindo
para a deterioração da qualidade de vida nas cidades. No entanto, as
discussões e propostas políticas parecem passar ao largo dessas questões, circunscrevendo-se a temas periféricos e paroquiais, deixando de
lado o que realmente seria importante para a sociedade e o País. Em
que pese nos encontrarmos às vésperas de eleições, o clima, sintomaticamente, é de quarta-feira de cinzas, nenhum dos candidatos certamente consegue acender qualquer fagulha de emoção ou interesse, cada
qual com propostas e idéias decalcadas umas nas outras, imperando
uma sensação modorrenta do deja vue, de falta de perspectivas. Uma
característica, aliás, que não é privilégio brasileiro, mas tônica inclusive
de países centrais.312
As questões citadas revelam uma situação de crise que vem
crescendo assustadoramente, ameaçando com uma deterioração cada
vez maior da vivência social, pondo em risco, não somente o já precário
jogo democrático, mas a própria estrutura da sociedade civil e política.
São questões que exigem um aprofundamento na capacidade
de se buscar compreender o que ocorre e por que está ocorrendo, visando detectar o rumo dos acontecimentos, para não sermos apanhados, como diz Boaventura de Sousa Santos313 , na armadilha da aceitação passiva e autocomplacente dos fatos.
A FRAGMENTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA
A busca dessa compreensão é uma empreitada difícil, sendo
que muitas vezes parece-nos não haver saídas plausíveis para proble312
Ver Génereux, Jacques - O Horror Político, o horror não é econômico, 1998, Rio de Janeiro, Record,
que traça um painel assustador do esvaziamento de conteúdo na política num país metropolitano até
recentemente altamente politizado como a França.
313
Pela Mão de Alice
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
280
mas que se apresentam como crônicos e incuráveis. Ainda mais que a
experiência nos chega de forma mais e mais fragmentada, aos pedaços. Basta observarmos mais atentamente os programas e notícias
divulgadas pelos meios de comunicação de massas, ou a possibilidade
de pular, instantaneamente, de canal, escolhendo entre milhares de imagens fugidias, despejando sobre nossos olhos e mente, um fluxo de informações que mal conseguimos absorver. Basta ligarmos a televisão
para obtermos uma gama infinda de informações em centenas de canais, com enorme oferta de programas variados, inibindo qualquer processo reflexivo. É diante desse quadro que Giovanni Sartori314 chega a
afirmar que “a televisão criou e está criando um homem que não lê, que
revela um alarmante entorpecimento mental, um ‘molóide criado pelo
vídeo’, um viciado na vida dos videogames.” Pois, prossegue ele, “a
televisão produz imagens e apaga conceitos; mas desse modo atrofia a
nossa capacidade de abstração e com ela toda a nossa capacidade de
compreender”. Percebemos tão somente imagens, pedaços de informações visualizadas e não refletidas, inibindo qualquer senso mais crítico. Mesmo as chamadas artes modernas refletem sensivelmente essa
fragmentação (um Pollock nas artes plásticas, o Concretismo na poesia, entre outras tantas expressões). Os próprios alimentos passam a
serem absorvidos em porções balanceadas e embalados para serem
consumidas rapidamente, perdendo-se cada vez mais os ritualísticos e
demorados atos de união e fraternização contidos nas refeições
efetuadas nas famílias, cada vez mais esfaceladas. Especialistas tratam de partes do corpo, num todo constituído de corpo e mente (talvez
daí o enorme crescer na busca de práticas alternativas na área da saúde). Os jovens, exímios internautas, reduzem a convivência e interação
social aos encontros cibernéticos e virtuais, ou às demoradas visitas
aos novos templos da religião consumista dos shopping‘s center.
Inegavelmente, através da Internet, o processo de acesso à informação e comunicação entre as pessoas, cresceu de forma inimaginável,
todavia ao preço de evitar-se e inibir-se o contato pessoal. Desse modo,
cria-se, como que uma nova “cultura juvenil”, pela qual, como observado
314
Homo Videns,Televisão e pós-pensamento, 2001, Bauru, EDUSC
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por arguto crítico italiano, “os jovens caminham no mundo adulto da
escola, do estado [...] da profissão como clandestinos. Na escola ouvem, preguiçosamente, lições [...] que rapidamente esquecem. Não
lêem os jornais [...] Ficam trancados no próprio quarto junto com os
pôsteres dos seus heróis, olham os próprios programas, andam pela
rua mergulhados na sua música preferida. Despertam novamente só
quando, de noite, encontram-se na discoteca. Finalmente, quando saboreiam a ebriedade de estarem juntos, experimentam a satisfação
de existir como um único corpo coletivo dançante”315 .
Dificilmente conseguimos uma percepção mais geral e ampla
dos acontecimentos. É como se estivéssemos perdendo o sentido de
coesão da vida, reduzida a pedaços de sensações, fragmentos de
vivência, arrancados do fluxo das experiências, do contexto de significados mais abrangentes que decorrem da vivência histórica, do interrelacionamento dos homens entre si. Numa sociedade composta de
episódios e fragmentos, como poderá o homem manter intacta sua
história de vida e sua própria identidade? Cada vez mais, aqueles que
podem, amedrontados pelo crescimento exacerbado da violência e
criminalidade, refugiam-se em “enclaves fortificados”, nos condomínios fechados, convivendo entre iguais, separados do restante da sociedade ameaçadora, sem aperceberem-se de seu isolamento e alienação, criando uma cultura segregacionista em relação aos de fora, aumentando o fosso que distancia as classes sociais.316 Até que ponto o
ódio revelado pelos filhos da classe média e alta na queima do índio
pataxó, em Brasília, não é fruto dessa segregação?
Em parte, essa fragmentação e alienação decorre da demanda
manipulada de necessidades, criadas muitas vezes, artificialmente317 .
Há um incentivo e valorização exaltada da novidade, do atual, do moderno, refletindo, culturalmente, no crescente desapego pela história,
pelos valores, normas e regras que compõem o convívio social, que
315
conforme artigo citado em Sartori, pg. 25
ver o artigo de Tereza Pires do Rio Caldeira - Enclaves Fortificados: a nova segregação urbana, in
Novos Estudos CEBRAP n°47, março 1997, São Paulo
317
ver a análise de Herbert Marcuse em sua crítica demolidora à ideologia da sociedade capitalista
industrial, em A Ideologia da Sociedade industrial, 1982, Rio de Janeiro, Zahar
316
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282
moldam e caracterizam o modo de ser de uma sociedade, de um povo.318
Entretanto, em meio à frenética busca de sensações e emoções fugidias, que meramente preenchem, momentaneamente, o prazer hedonista, de consumo imediato e descartável, emerge a sensação de angústia, de perda, de insatisfação, a falta de sentido, o vazio
de vidas que se revelam ocas, destituídas de perspectivas, além do
próximo momento e sensação319 . São aspectos de vivência que atingem, sobretudo, os segmentos altos e médios da estrutura social (um
retrato cruel e irônico dessa vivência nos é transmitido pelo filme Beleza Americana), refletindo-se, perversamente, nos anseios dos segmentos mais pobres da população, que induzidos pela cultura
consumista, almejam dela participar. O crescimento da violência e da
criminalidade e sua banalização tem, aí, em parte, sua origem. Como
também a busca de amparo emocional nas seitas religiosas em expansão, que representam um refúgio num mundo cada vez mais frio e
cruel.
A questão que se coloca então, é como procurar entender e
atuar sobre um mundo que se nos apresenta fragmentado e caótico e
tantas vezes opressivo? Uma maneira poderia ser a de buscarmos um
nexo por detrás dos acontecimentos, começando “pelo contexto sócio
cultural de que emergem nossas perplexidades”, como proposto por
Sousa Santos na epígrafe inicial deste texto.
ORIGENS E PROMESSAS DA SOCIOLOGIA
A sociologia propõe-se a buscar compreender a sociedade, a
ação dos homens vivendo em sociedade. Busca descobrir semelhanças
e diferenças nessas ações, perceber contigüidades, causalidades, relações entre fatores, tentando vislumbrar uma ordem, uma lógica, um sentido no caos que constitui a vida em sociedade. Apenas a partir dessa
compreensão, seria possível ao homem poder atuar, agir sobre o mundo,
fornecendo os conhecimentos necessários para sua transformação.
318
Ver Lasch, Christhopher – A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia, 1995, Rio de Janeiro,
Ediouro
319
A análise de Christopher Lasch em A Cultura do Narcisismo, 1987, Imago, sobre a sociedade norte
americana apresenta semelhanças gritantes com o contexto brasileiro. O filme Psicopata Americano, é
revelador, de forma irônica e perversa, dessa tendência na sociedade norte americana.
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283
A busca do conhecimento, o pensar sobre o que ocorre, pressupõe haver um mínimo de regularidade nos acontecimentos. Que existem
causas, fatores que impelem, possibilitam, que podem adequar os acontecimentos, que influenciam o agir, a ação humana. Ou seja, que na vivência
dos homens em sociedade ocorrem padrões e uniformidades no comportamento e ação humana, que se modificam, transformam-se, adequados à interação das pessoas, grupos e classes sociais (exemplo: as modificações ocorridas no papel e comportamento das mulheres nos últimos
20 anos) de acordo com novas necessidades decorrentes de mudanças
estruturais e culturais na sociedade.
As sociedades humanas não são entidades estáticas, organismos parados no tempo. Sem uma compreensão mais clara de como
a sociedade transforma-se, historicamente, dificilmente conseguiremos entender os efeitos e influências das modificações, na vivência
dos homens, que também se modificam.
Como nos lembra Bottomore320 , por milhares de anos, os homens vêm observando e refletindo sobre o meio social, sobre os agrupamentos humanos, sobre as sociedades em que vivem. No entanto,
a Sociologia constitui uma ciência nova, com pouco mais de cento e
cinqüenta anos.
Certamente, encontramos em autores clássicos, filósofos, mestres religiosos, legisladores nas mais variadas civilizações e épocas,
preocupações relativas a aspectos da convivência humana em suas
respectivas sociedades, desenvolvendo reflexões teóricas sobre o modo
de vida em suas comunidades. Muitas de suas observações e idéias
continuam sendo relevantes para o conhecimento sociológico. De fato,
a reflexão sobre a vida dos homens na sociedade, acompanha o pensamento ocidental, pelo menos desde a Grécia antiga. No entanto,
essas observações e idéias, como observa Franco Ferrarotti321, não
forjaram uma reflexão sociológica. Sociologia não é um nome novo,
uma nova etiqueta para o pensamento e reflexão social praticada, no
decorrer dos séculos, pelos estudiosos. Nenhum deles chegou a enunciar com clareza o pressuposto básico da Sociologia: a possibilidade
320
321
Sociology, a guide to problems and literature, 1966, Londres, Unwin university Books
Sociologia, 1986, Lisboa, Editorial Teorema
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284
implícita na própria sociedade de desenvolver um processo de conhecimento crítico sobre si mesma, sobre suas funções, comportamentos, instituições, etc..
A Sociologia, como ciência da sociedade, representa a tentativa de encontrar respostas aos problemas e necessidades historicamente determinados. Surge como produto e resultado da necessidade da própria sociedade de se entender a si mesma.
Como ciência institucionalizada, a Sociologia surgiu em conseqüência de um determinado desenvolvimento histórico, em cujo desenrolar, a própria sociedade passa a ser questionada. Até então, até o
alvorecer da sociedade industrial, as sociedades possuíam uma tal sociabilidade que lhes permitia não serem questionadas. A questão, portanto, não é apenas buscar esclarecer porque as sociedades européias
do final do século 18, e no decorrer do século 19, passaram a experimentar e refletir sua sociabilidade como questionável, mas entender
também, porque as sociedades anteriores não expressaram essa necessidade.
O conhecimento clássico falava em termos de evidências e
inevitabilidades, ancoradas no que ocorria no seu meio. As sociedades tradicionais pré-industriais eram baseadas na tradição e nos costumes, assentadas numa economia de subsistência. A essas sociedades, bastava a referência à “autoridade do eterno ontem” (F. Ferrarotti),
no sentido de que “sempre fora assim e assim continuaria sendo”.
Eram sociedades tradicionais e por isso mesmo, amplamente
estáticas, repetitivas, regidas por uma economia fechada, com funcionamento cíclico e previsível. Prevalecia uma concepção orgânica do tempo, amarrada à própria atividade rural, baseada na mudança das estações e no crescimento cíclico das plantas e animais.
Eram sociedades socialmente rígidas, nas quais o indivíduo tinha poucas chances de romper caminhos, fora e além do seu grupo de
origem ou de posicionar-se contra ele. Nascia-se com o destino previamente traçado. Eram as instituições, os costumes e a religião que determinavam as fases previsíveis da vida, verificadas na placidez das rotinas, seguidas, tradicionalmente, pelas gerações que se sucediam.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
285
Não havia a necessidade da Sociologia nessas sociedades.
Bastavam-se a si mesmas.
É apenas quando a tradição, os costumes e a religião como
fontes de obrigações e legitimação começam a perder terreno, quando já não bastam mais como respaldo, explicação e consolo, é que a
Sociologia começa a emergir como um instrumento de auto-auscultação da sociedade. As necessidades da economia e sociedade burguesa em gestação, estavam a exigir, crescentemente, transformações profundas e abrangentes, nos modos tradicionais de vida, colocados cada vez mais de pernas para o ar. Refletia a decadência do
sistema de produção feudal, estruturado até então através de ligações
com o solo e de relações de parentesco, embasadas em relações extra-econômicas, unindo os senhores feudais com os servos das glebas.
Revelava o deslocamento do eixo das atividades e do pensamento
econômico, do espaço agrário, para o tempo urbano-mercantil, condizente às modificações profundas em andamento, nos novos métodos
de fazer comércio e nas formas de produção.322
A ética escolástica, que até então determinara a economia, foi
sendo paulatinamente substituída pela noção pura e fria do cálculo. O
apego a valores morais eternos deu lugar ao cálculo de ganhos e perdas, à avaliação de interesses e à projeção de cálculos sobre lucros e
perdas futuras.
Começam a surgir as primeiras manufaturas (já em Veneza do
século 14!), depois os barracões fabris, transferindo a produção caseira familiar e auto-suficiente, para unidades produtivas fora dos lares,
visando o “mercado”. Os ex-camponeses, expulsos de suas glebas,
num processo de séculos de duração, iriam aos poucos, constituir um
novo tipo de mão-de-obra, empregada nas manufaturas e fábricas,
trabalhando sob condições ignóbeis e vilmente explorada. Introduz-se
uma nova noção e experiência de tempo, que é mecânica. O tempo do
trabalho passa a ser determinado pelo espaço de tempo utilizado no
trabalho, que seria cada vez mais vendido e comprado como mera
322
Para uma compreensão mais aprofundada do desenvolvimento do capitalismo, ver o clássico Dobb,
Maurice – A Evolução do Capitalismo, Coleção Os Economistas, 1983, São Paulo, Abril Cultural
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mercadoria. Para tanto, fez-se necessário um novo disciplinamento dos
homens, novas regras de convivência, novas formas de relações sociais, novas formas de ordenação e organização da sociedade (o filme
Daens, um grito de Justiça, é revelador dessas mudanças).
Não é um processo abrupto, imediato, mas que iria cristalizarse aos poucos, acompanhando a evolução e maturação da sociedade
cada vez mais cindida entre classes antagônicas.
A Sociologia que começa a despontar no final do século 18 e no
decorrer do século 19, constitui uma tentativa da sociedade em transformação, de encontrar respostas aos problemas e necessidades históricos emergentes, surgindo como um produto e resultado da própria sociedade de entender-se a si mesma. A Sociologia nasce da crise, da gigantesca ruptura histórica que possibilitou o surgimento da sociedade
industrial moderna.
A Sociologia é a ciência da sociedade. Não de qualquer sociedade, mas daquela que em função de suas transformações, renunciou
às certezas recebidas do passado, passando a exprimir por si, do seu
interior, valores novos, mundanos, materiais. Equivale a um momento de
profundas transformações, quando se faz a travessia do conceito de
sociedade como dado imutável, para o de sociedade como projeto racional e como produto da cultura.
O nexo entre a sociedade industrial e o surgimento da Sociologia, não é meramente cronológico. Corresponde a características próprias da sociedade industrial. Ao contrário da sociedade tradicional, estática e essencialmente repetitiva, a sociedade que se estava formando
era dinâmica, inovadora, revolucionária. Enquanto a sociedade tradicional tinha em vista o consumo, não o lucro, imperando o costume e não
se calculando o tempo, a sociedade industrial iria colocar por terra a
pasmaceira bucólica de que nos fala Marx no Manifesto, transformando-a radicalmente, criando novas classes e relações sociais, novos problemas e impasses. O impulso inovador partiria, sobretudo dos próprios
locais de produção, das manufaturas e das incipientes indústrias.
Face às mudanças revolucionárias no processo produtivo, às
profundas transformações sociais, à ascensão da burguesia como clasRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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se dominante da sociedade, ao surgimento do trabalhador fabril como
novo segmento social, constituindo-se como classe – o proletariado –
que começa a questionar as relações sociais e a própria sociedade, a
questão social transforma-se em força propulsora da nova ciência.
A crescente dissolução dos sistemas tradicionais de
ordenamento social, o pauperismo e gritante exploração de amplos
segmentos sociais, o surgimento e a transformação das organizações
políticas, os incipientes agrupamentos políticos sociais emergentes no
seio das camadas mais pobres da população, constituíram fatores que
exigiam o questionamento do desenvolvimento social. O saber, os conhecimentos, as concepções de mundo foram atingidas pelas transformações que ocorriam na sociedade. Conceitos científicos, a avaliação
da própria concepção de ciência, precisavam ser revistos. A revolução
científica, as transformações econômicas, tecnológicas e sociais em
andamento, libertou a sociedade das concepções de ordem e valores
metafísicos prevalecentes, até então, percebidos cada vez mais como
ultrapassados ou insuficientes. Quando as ciências da natureza alcançaram, no decorrer do século 19, seu apogeu, aumentando a confiança do homem em conhecer e dominar a natureza, a concepção
religiosa de mundo, até aí prevalecente, seria duramente questionada. A religião como fonte e suporte do saber, como base explicativa do
mundo, perde cada vez mais sua razão de ser.
A Sociologia, a nova ciência que começa a se impor nesse
contexto, buscava analisar as causas e conseqüências das transformações socioeconômicas, tentando elaborar propostas para possíveis
soluções das questões sociais que corroíam a sociedade.
A ciência da sociedade não surge repentinamente, pronta e
acabada. Percorre um longo e árduo processo de gestação, embasada
em conhecimentos anteriores. Surge com e através da reflexão sobre
saberes anteriores, estimulados pelas necessidades sociais e culturais do meio em que emerge.
T. Bottomore323 acentua que a Sociologia encontra suas origens no século 18, sobretudo na filosofia da história, nos levantamen323
Sociology, a guide to problems and literature, 1966, Londres, Unwin university Books
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tos estatísticos sobre as condições sociais das populações urbanas
inglesas e nas idéias gerais do Iluminismo. A Sociologia surge enraizada
nos saberes de diversas áreas do conhecimento, utilizando-os na tentativa de entender e solucionar os problemas sociais. Miséria e desespero crescentes nos centros urbanos, paralelamente, ao aumento vertiginoso do potencial produtivo e das riquezas concentradas nas mãos
de poucos, gerariam atritos, frustrações, rebeldias e ódios contra o status
quo que desembocariam em tentativas de auto-organização dos trabalhadores fabris324 , aderindo aos incipientes agrupamentos anarquistas
e socialistas em gestação, recorrendo em seus ideais às premissas da
Revolução Francesa. A pobreza cessa de ser considerada e aceita como
fenômeno natural, condição pré-determinada, desígnio divino, destino.
Transforma-se em problema social, aberto ao estudo, a exigir medidas
e soluções. Passa-se a questionar o ordenamento social, a própria sociedade, procurando desenvolver uma concepção mais precisa do que
era ou poderia ser o inter-relacionamento entre os homens e as classes sociais. A sociedade transforma-se em objeto de estudos, buscando desenvolver princípios e métodos adequados para sua interpretação. As atenções voltam-se, principalmente para os problemas decorrentes da estrutura e desenvolvimento do capitalismo industrial, procurando encontrar respostas às mudanças ocorridas na vida dos homens, aos crescentes questionamentos provocados pelo avolumar do
movimento operário e à disseminação das idéias socialistas (a extensa
e riquíssima obra de Marx constitui um exemplo dessa tendência de buscar compreender e transformar essa nova realidade).
A questão de como entender e analisar a sociedade acentuese, contrapondo-se a análise histórico-estrutural efetuada por Marx325 ,
foi inicialmente tentada buscando-se aplicar métodos de pesquisa de324
“A fúria não é de modo nenhum uma reação automática diante da miséria e do sofrimento em si
mesmos; ninguém se enfurece com uma doença incurável ou um tremor de terra, ou com condições
sociais que pareçam impossíveis de mudar. A fúria irrompe somente quando há boas razões para crer
que tais condições poderiam ser mudadas e não o são. Só manifestamos uma reação de fúria quando
nosso senso de justiça é injuriado; tal reação em absoluto não se produz por nos sentirmos pessoalmente vítimas da injustiça, como prova toda a história das revoluções, nas quais o movimento começou por
iniciativa de membros das classes superiores, conduzindo à revolta dos oprimidos e miseráveis”. Arendt,
Hannah – Crises of the Republic, 1969, Nova York, Harcourt Brace Jovanovich; ver também Moore Jr.,
Barrington – Injustiça, as bases sociais da desobediência e da revolta, 1987, São Paulo, Brasiliense
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
289
senvolvidos no âmbito das ciências naturais. Como nestas, buscou-se
analisar, avaliar, comparar o que existe e a partir daí, tecer previsões.
Em parte, esse viés iria mostrar-se bastante pernicioso, pois dificilmente poderemos reduzir a vivência humana à experiências de laboratório ou a fórmulas matemáticas e correlações estatísticas. Foi o
que tentou fazer Auguste Comte, com um agravante. Sua pretensão,
como nota Peter Berger326 , de transformar a Sociologia em “doutrina
do progresso, sucessora secularizada da teologia como senhora das
ciências”, aspirando transformar a Sociologia em coroamento de todas as ciências, reflete essa tendência, que se revelaria como pretensiosa e inócua. A busca incessante de E. Durkheim327 no final do século 19, certamente uma das mais criativas e frutíferas tentativas de desenvolver métodos e regras próprias, fornecendo à Sociologia status
de ciência autônoma, não conseguiu tampouco superar o viés
metodológico derivado das ciências naturais, procurando adequá-las
à pesquisa sociológica, revelando desse modo, o enorme complexo
de inferioridade, até hoje não totalmente superado, que acompanha a
ciência em gestação, incapaz de alcançar o nível de exatidão das ciências da natureza. Desde o início, enfrentando enormes dificuldades
para constituir-se como ciência, espelhou-se e buscou nos métodos
de pesquisa desenvolvidos nas ciências naturais, os instrumentos iniciais para averiguar e interpretar a sociedade. Entretanto, dificilmente
poderemos querer igualar fenômenos que ocorrem na natureza com a
vivência social dos homens, reduzindo a vivência humana a fórmulas
matemáticas e a correlações estatísticas, desconsiderando-se o que
não se pode quantificar, como tentado ainda hoje, de forma preponderante, por amplos setores da Sociologia norte-americana328 , aspecto
tão duramente criticado por Wright Mills329 já nos anos 50.
Dos autores clássicos da nova ciência apenas Max Weber, ao
lado de Marx, iria de fato buscar uma metodologia nova, desvinculada
325
Ver O Capital, vol. I, na excelente tradução coordenada por Paulo Singer, Coleção Os Economistas,
São Paulo, Abril Cultural
326
Berger, Peter – Perspectivas Sociológicas, 19ª ed., 1986, Petrópolis, Vozes
327
Ver seu texto As Regras do Método Sociológico, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural
328
GIDDENS, A –Em Defesa da Sociologia, Ensaio, interpretações e tréplicas, 2001, São Paulo, UNESP
329
A Imaginação Sociológica, cap. 3, 1969, Rio de Janeiro, Zahar
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
290
de métodos derivados das ciências naturais, buscando compreender
e interpretar a sociedade, a partir da ação social dos homens330 . Como
Marx, considerava a história como fator imprescindível para essa compreensão. Mas ao contrário dele, apesar de reconhecer a importância
do fator econômico no desenvolvimento das sociedades, não o considerava como primordial, desdenhando o que ele criticava como
monocausal na teoria marxista331 .
Em que pese suas divergências, toda a discussão posterior
sobre a Sociologia, seus métodos, papel e relevância, assenta-se basicamente nos pressupostos teóricos desenvolvidos, inicialmente, por
Marx, Durkheim e Weber, considerados como os pais fundadores da
nova ciência.
Desde seus primórdios, e os textos desses autores é testemunho disso, a Sociologia vem preocupando-se, sobretudo, com os problemas derivados da modernidade, com o caráter e a dinâmica das
sociedades modernas industrializadas, buscando entendê-las,
interpretá-las, dar-lhes sentido e apontar seus rumos. A partir da década de 50/60 até meados dos anos 80, a preocupação sociológica (como
também da economia e ciência política) voltou-se, ao lado da questão
do Estado, em especial o Welfare State, sobretudo para a problemática dos países periféricos, buscando-se desvendar os mecanismos e
os efeitos da sua inserção desigual no sistema capitalista internacional, através de laços de dependência. A contribuição das ciências sociais latino-americanas, sobretudo a brasileira, foi nessa época extremamente fecunda, marcando e dando novos rumos à interpretação e
entendimento da sociedade. Foi a época áurea da Sociologia, mas de
curta duração. Desde o final dos anos 80, a ciência da sociedade entra em recesso, como que fazendo eco aos novos paradigmas que
vêm impondo-se e acompanhando, aparentemente, a marcha triunfal
330
Em seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Coleção A Obra Prima de Cada Autor, 2001, São
Paulo, Martin Claret, o método compreensivo weberiano é utilizado de forma exemplar, constituindo sua
interpretação, uma complementação interessantíssima à obra de Marx sobre a gênese do capitalismo.
331
Sobre as divergências e complementação entre Weber e Marx ver Giddens, Anthony – Política, Sociologia e Teoria Social, Encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo, cap. 1 e 2, 1998,
São Paulo, UNESP
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
291
do neoliberalismo e da globalização332 . Decai seu prestígio e importância,
refletida na diminuição de sua demanda, cursos e departamentos sendo
eliminados, proeminentes cientistas sociais debandando para outras áreas mais específicas como planejamento urbano, criminologia, jurisprudência, etc., diminuindo a capacidade da Sociologia de oferecer-se como
pólo aglutinador para as diversas áreas da pesquisa social.333
Estará então a Sociologia fadada a desaparecer? Consideramos que não. Mais do que nunca a reflexão sociológica se faz necessária para a compreensão das forças sociais que vêm transformando de
forma tão profunda a vida humana. Como observa Anthony Giddens,334
“a maior parte dos debates que ‘fazem as manchetes’ intelectuais de
hoje, nas ciências sociais e mesmo na área de humanidades, é dotada
de forte carga sociológica. Os autores da sociologia foram os pioneiros
em discussões sobre o pós-modernismo, a sociedade pós-industrial e
da informação, a globalização, a transformação da vida cotidiana, do
gênero e da sexualidade, a natureza mutável do trabalho e da família, a
‘subclasse’ e a etnia”.
Nesse sentido, retomando a questão colocada no início, o que
poderia e deveria ser então a essência da reflexão e do saber sociológico? Nas palavras de Theodor Adorno,335 não deveria ser outra coisa
senão a busca do conhecimento sobre a sociedade, sobre o que lhe é
fundamental, o conhecimento sobre o que é. Mas sempre no sentido
de que esse conhecimento seja crítico, enraizado historicamente. Pois,
segundo ele, “não existe nada sob a luz do sol transmitido pela inteligência e pensamento humano, que não fosse transmitido pela sociedade”. De relevância fundamental para o saber sociológico, seriam,
portanto, “as leis objetivas de movimento da sociedade, que decidem
sobre o destino das pessoas”. Essa compreensão implica por sua vez,
na percepção que “existe a possibilidade das coisas (dos aconteci332
Ver Heller, Agnes et allii – A Crise dos Paradigmas em Ciências Sociais e os Desafios para o século
XXI, 1999, Rio de Janeiro, Contraponto; Giddens, Anthony – Em Defesa da Sociologia,
Ensaios,Interpretações e tréplicas, 2001, São Paulo, UNESP
333
Giddens, Anthony – Em Defesa da Sociologia, Ensaios, Interpretações e Tréplicas, 1998, São Paulo,
UNESP
334
Em Defesa da Sociologia, cap. 1
335
Vorlesung zur Einleitung in die Soziologie, 1973, Junius Drucke, Frankfurt
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
292
mentos) virem a ser diferentes do que são, que a vivência dos homens
poderá vir a ser outra, que a sociedade poderá deixar de ser uma
associação forçada e na qual fomos lançados”. Dotados dessa compreensão, estaremos, efetivamente, mais habilitados a comparar o que
é a realidade social com o que a própria sociedade aspira ser. Pois “é
dessa contradição, a partir dela que se deverá buscar descobrir as
potencialidades, as possibilidades de transformação da totalidade
constitutiva da sociedade”. E para isso, se faz necessário recorrer àquilo
que tempos atrás C. Wright Mills denominou de imaginação sociológica336 , buscando “conhecer o sentido social e histórico do indivíduo na
sociedade e no período no qual sua qualidade e seu ser se manifestam”, impedindo que o homem torne-se presa fácil e impotente de
forças acima de seu controle. Mas ao contrário, dotando-o do conhecimento necessário para controlar de forma consciente seu próprio destino.
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
295
ASPECTOS COMPORTAMENTAIS DAS EMPRESAS:
ENFOQUE NA RESPONSABILIDADE JURÍDICA E
SOCIAL DAS EMPRESAS
MAGDA DEMARTINI TASCA
PROFESSORA DE DIREITO EMPRESARIAL NA FACULDADE MATER DEI
- ESPECIALISTA EM ADMINISTRAÇÃO PELO IBPEX - M.B.A.
EMPRESARIAL PELA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS - MESTRANDA EM
CIÊNCIAS SOCIAIS APLICÁVEIS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
PONTA GROSSA - ADVOGADA E CONSULTORA NO ESTADO DO
PARANÁ.
RESUMO
O artigo cuida do perfil das empresas a partir das inovações do novo Código
Civil Brasileiro, com a inclusão do capítulo denominado Direito Empresarial.
Segundo a autora, este novo capítulo está baseado na valorização do homem
e evidencia a necessidade das empresas agirem com “responsabilidade
social”, principalmente quanto à valorização dos empregados, clientes,
fornecedores, consumidores, meio ambiente, bem como para com a
comunidade onde está inserida.
ABSTRACT
The is about the function of companies from the innovations of the new
Brazilian Civil Code , with the inclusion of a chapter called Commercial
Law. According to the author , this new chapter is based on human valorization and points to the necessity of companies act with “social liability” ,
mainly to the valorization of employees, clients, consumers, environment,
as well as to the community where the company is settled.
PALAVRAS CHAVE - Novo Código Civil brasileiro; Direito Empresarial;
responsabilidade social das empresas.
INTRODUÇÃO
As empresas, nos últimos tempos, necessitam de adaptação,
é o impõe o desenvolvimento da humanidade, principalmente por meio
da tecnologia que expandiu a comunicação mundial entre os povos.
Métodos modernos e rápidos, capazes de interligar em tempo
real diversos países, diversas culturas, possibilitando o raciocínio da
comparação que tiveram grande influência na evolução transformadora
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
296
do pensamento da sociedade como povo.
Uma postura responsável está sendo cobrada das empresas.
A sociedade organizada (associações, sindicatos, soc. civis, etc) já
conseguiu muitos progressos quanto às ações éticas pelas empresas.
Novas regras administrativas e comportamentais estão sendo
desenvolvidas, uma delas é justamente a cobrança para que as empresas pratiquem atos com responsabilidade social. Muitas conquistas já ocorrera, é o caso do meio ambiente que hoje é protegido pela
lei.
Neste contexto, observa-se que a responsabilidade social já
tem suas primeiras manifestações protegidas e exigidas pela lei. A própria legislação trabalhista poderia se dizer que é uma das imposições
de condutas responsável das empresas para com seus funcionários.
Portanto, neste texto serão discutidas algumas destas transformações, com ênfase na responsabilidade da empresa, perante a
comunidade, onde ela está inserida, bem como dos reflexos gerados
pelo seu comportamento positivo e negativo.
Serão abordadas algumas transformações do direito, como o
novo enfoque deste que passa para a defesa da pessoa humana e
não mais do patrimônio da pessoa. Logo, em seguida serão abordadas algumas transformações, ocorridas no âmbito empresarial, como
efeito da globalização, novas técnicas administrativas são elaboradas.
É neste universo que a responsabilidade social inicia a sua
jornada, por mais que ainda não exista uma definição única, as empresas têm voltado a sua atenção para atitudes mais responsáveis.
Quais são os objetivos das empresas? Será que ela está, finalmente,
criando consciência de sua posição na comunidade, ou mais uma vez,
como um camaleão, procuram uma nova aparência como instinto de
sobrevivência?
A PESSOA COMO O NÚCLEO DO DIREITO
Toda a transformação, gerada pela evolução da sociedade, tem
reflexos diretos na legislação brasileira, a qual tem emitido considerável
esforço para cumprir sua finalidade que é regular, de conformidade
com a segurança da maioria, a vida do homem em sociedade.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
297
Neste sentido é que, em janeiro de 2003, entrou em vigor o
novo Código Civil Brasileiro (CCB), o qual vem como necessidade de
adaptação de nossas leis civis à luz dos novos conceitos.
O novo CCB substituiu conceitos construídos a partir de um
modelo social refletido em meados dos anos 1916, ou seja, numa sociedade ruralista e conservadora, hoje ultrapassada. Neste sentido o
Professor Luiz Edson Facchin (FACCHIN, 2000, p. 288) comenta sobre a sua eficácia : “Se o Código não é apto a ensejar a discussão e o
reconhecimento das transformações da realidade, é um instrumento
de sua conservação”.
Os valores que se buscavam proteger, naquela época
(1916), estavam ligados, basicamente, a proteção da propriedade,
restando pouca proteção ao indivíduo como ser humano, razão de
ser da sociedade.
Sobre o código da época (1916) e sua elaboração escreve
Facchin (FACCHIN, 200, p. 287) : “À época da elaboração do Código
Civil estava em conflito um conjunto de idéias que permite afirmar-se
que ele não foi, em sua derradeira formulação, obra e graça da palavra intelectual de um homem insular, mas um produto de valores dominantes”.
O novo CCB transforma tais valores, valorizando como prioridade a pessoa humana, o que se constata através da leitura do
novo capítulo intitulado “Dos Direitos da Personalidade”, ao mesmo
tempo que protege o patrimônio como direito do homem, limita este
direito a uma finalidade social.
Com isto, a nova legislação veio sacramentar que o
patrimônio serve ao homem, devendo sempre ter uma finalidade social
e útil para que toda a sociedade se desenvolva.
Este pensamento também é observado na obra do Professor Facchin ( FACCHIN, 2000, p. 78), onde ele expõe:
“...recolhendo traços pretéritos, pretendem decodificar o presente e
vislumbrar o porvir, diz respeito, de perto, à própria fundamentação
do privado e de seu Direito, o direito dos civis. Por isso, tem relevo,
nessa perspectiva, conferir passagens e compreensões do mundo
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
298
como tal recriado para a ordem jurídica. É que o sujeito medieval
remetido somente a uma essência teocêntrica, apta a conferir-lhe
universalidade, instaura a moderna razão da igualdade formal entre
todos os seres humanos a partir dos conceitos. O conceito de sujeito passa a ocupar esse lugar de universal, deixando para o singular
o concreto do indivíduo. Liberdade e igualdade formal, mesmo iluminadas por tal racionalidade, fundam, na associação humana e no
exercício das autonomias individuais, um novo medievo, projetandose, para o Direito, bases do positivismo jurídico.”
Toda essa transformação, desde a valorização do homem até
a globalização desenfreada, influenciou diretamente nos conceitos
essenciais do homem. Neste sentido diz José Carlos Figueiredo
(FIGUEIREDO, 1999, p. 92):
“É o homem que faz o mundo girar e todo movimento é feito à base da
emoção do sentimento. O que são as grandes mudanças a não ser o
produto da emoção de seres humanos? O que são as grandes invenções a não ser o resultado de grandes emoções em forma de inspiração? O que seria o mundo se a emoção humana não existisse?”
Com base na valorização do homem, a responsabilidade social das empresas está ficando evidente, principalmente quanto à valorização de seus funcionários, clientes, fornecedores e consumidores,
meio ambiente, bem como para com a comunidade onde está inserida.
Hoje, poucas empresas têm se destacado neste sentido, muitas ainda estão presas ao velho individualismo do lucro sem finalidade
social, mas isto está mudando.
Algumas, para que seus funcionários acompanhem o desenvolvimento global, utilizam métodos motivacionais, principalmente com
a prática do voluntariado visando a mudança da comunidade, onde a
empresa está inserida.
Esta interação, empresa comunidade tem sido cada vez mais
exigida, seja pela imposição da lei seja pela cobrança da sociedade,
originando o despertar das empresas para a realidade social. É neste
sentido que surge o novo direito empresarial.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
299
O DIREITO EMPRESARIAL
Dentre as diversas modificações sofridas pelo novo CCB, a
inclusão do capítulo denominado Direito Empresarial, foi outra das grandes novidades, pois sugere a mudança de denominação de comerciante para “empresário”, bem como transporta conceitos antes pertencentes ao direito comercial para o direito civil.
O CCB inseriu novos conceitos, e considera “empresário quem
exerce, profissionalmente, atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. É o que diz o artigo 966
do Novo Código Civil Brasileiro.
Mesmo sendo objeto de evolução da sociedade, o novo CCB
ainda traz muitas omissões. Uma delas é que o novo CCB não define
o que seja empresa, deixando em aberto para que os analistas do
direito a conceituem de diferentes formas.
Esta omissão fez com que vários conceitos fossem formulados e colocados em discussão, muitos estão diretamente ligado a definição de empresário, o que nem sempre é viável, pois empresa vai
além. Ela é a atividade, que é dimensionada tendo em vista sua importância na comunidade onde está inserida.
Muitos entendem que o único objetivo das empresas seria a
obtenção do lucro, como anota o jurista Fábio Ulhoa Coelho (COELHO, 1994, p. 12), para quem tais atividades têm como: “marca essencial à obtenção de lucros com o oferecimento ao mercado de bens
ou serviços gerados mediante a organização dos fatores de produção,
os quais, no capitalismo, compreendem a força de trabalho, a matériaprima, o capital e, segundo alguns enfoques, também a tecnologia”.
Mas, outros doutrinadores, principalmente da área de administração de empresas como Eric Klei e John B. Izzo, entendem que o lucro
é uma conseqüência do sistema estrutural de que é composta a empresa. No mesmo sentido diz John (KLEIN & IZZO, 1998, p. 08):
“Aqueles momentos de reflexão me conduziram a uma percepção
que iria representar uma mudança de vida: as organizações precisavam de uma alma. E o mais importante, eu queria ajudá-las a
obtê-la. Não se tratava de querer que elas tivessem uma religião. O
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
300
que mais precisavam era algo mais que lucro, mais do que o desenvolvimento de equipes, mais do que uma mudança de atitude. Havia
necessidade de se criar um ambiente que pudesse alimentar a alma.”
Para que isto seja possível, a empresa deverá, em primeiro
lugar, praticar a responsabilidade social combinada com a ética, criar
valor à instituição que vai além do simples mercantilismo de produtos.
Isto é o que nos ensina Maria Cecilia Coutinho de Arruda (ARRUDA,
2002, p. XII) quando diz: “Hoje os dirigentes de empresas e outras
instituições brasileiras já se deram conta de que a ética é algo sério
que começa a fazer sentido. Poderíamos ir mais longe, dizendo que
agora a ética significa a sobrevivência das organizações”.
Mas, tais ações são praticadas por poucos empresários visionários. A realidade é que por uma questão de sobrevivência, as empresas
estão tentando caminhos mais responsáveis para conquistar seu consumidor, estão demonstrando maior interesse para com o ser humano.
As empresas iniciaram este processo evolutivo por meio do reconhecimento de seu capital humano, o qual até então só havia conseguido alguma dignidade diante da imposição da legislação trabalhista.
As diversas legislações hoje existentes, como direito ambiental,
trabalhista, consumidor, dentre outras, têm tido real influência na transformação dos conceitos empresariais.
Ressaltando a relevância assumida pelo novo direito de empresa, na forma que escreve Fábio Konder (COMPARATO, 1990, p. 03):
“caso deseja-se indicar uma instituição social que, pela sua influência,
dinamismo e poder de transformação, sirva de elemento explicativo e
definidor da civilização contemporânea, a escolha é indubitável: essa
instituição é a empresa”.
A valorização dos direitos coletivos tem conquistado muitos espaços no contexto do direito, e os empresários sabem disto. A principal
fonte vem das legislações que têm sido adotadas em nosso país, com
destaque para o Código do Consumidor e a Lei Ambiental.
O direito ambiental trouxe maior responsabilidade para as empresas, em razão das pesadas multas impostas para aqueles que violarem o meio ambiente, as empresas vêm se adaptando a estas normas.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
301
Na verdade, as multas são estímulos que despertam os empresários para a verdadeira função do negócio que fundou. Alguns não
estão pensando na comunidade que está sendo beneficiada com esta
conduta, mas nas pequenas fortunas que terão que desembolsar, caso
venham a sofrer punições em razão de danos ao meio ambiente.
Mesmo que por coação (aplicação das multas), a norma tem
gerado reflexos reais nas organizações, mudando o perfil do suposto
futuro do nosso planeta, que terá maiores chances de permanecer
preservado para a gerações seguintes.
No mesmo sentido, o Código de Defesa do Consumidor (CDC)
veio para revolucionar a relação entre as empresas e seus clientes.
Como conseqüência da mudança de mentalidade da sociedade esta
legislação defende os direitos do consumidor e regula a relação entre
o consumidor final e as empresas.
Considerado hipossuficiente pelo CDC, o consumidor conquistou algumas garantias, e às empresas foram impostas algumas responsabilidades.
De um modo geral as legislações seguem o ritmo do desenvolvimento da sociedade, sendo apenas um reflexo desta.
Neste sentido, outros fatores também têm influenciado na mudança comportamental das empresas, um destes fatores é justamente a globalização, que traz consigo uma nova forma de visualizar as
responsabilidades de uma empresa. É a chamada responsabilidade
social.
A RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS
Neste contexto é que surge a chamada responsabilidade social. O tema é novo, ainda pouco debatido. Por não ter uma definição
certa, alguns autores entendem que ele apresenta várias faces.
A Professora Patricia Ashley (ASHLEY, 2002, p. 37/38) comenta a respeito de orientações sobre o tema:
Na orientação para os acionistas, a responsabilidade social da
empresa é entendida como a maximização do lucro... na orientação para o Estado ou governo, a responsabilidade social da empresa está no estrito cumprimento de suas obrigações definidas e
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302
regulamentadas em lei...na orientação para a comunidade, a responsabilidade social da empresa é vista como um ato voluntário da
direção, de forma esporádica ou estratégica...orientação para os
empregados vê a responsabilidade social como forma de atrair e
reter funcionários com qualificação, além de alcançar mercados com
barreiras não tarifárias.
Em razão de uma maior conscientização das pessoas, a cobrança exercida sobre as empresas privadas também cresceu nos últimos anos e isso levou-as a um repensar.
Os órgãos de proteção da sociedade, sejam eles representantes dos consumidores (Procons), dos trabalhadores (sindicatos) ou dos
ambientalistas, tiveram um papel preponderante para o início desse
questionar da empresa quanto à sua responsabilidade social.
Há estudiosos do tema cujo entendimento salienta que a prática da responsabilidade social não representa benefício somente para a
sociedade, mas também traz benefícios para a própria organização,
melhorando sua imagem e contribuindo para o bem-estar dos empregados, por meio de incentivo à ações voluntárias.
Tais atos poderiam ainda servir de propaganda para atrair novos consumidores, principalmente os preocupados com a proteção do
meio ambiente ou com a qualidade dos produtos que são colocados à
disposição para o consumo.
As empresas fazem parte de uma grande rede de relações
que com ela interagem, e em tal sentido elas devem procurar tratar
seus empregados, fornecedores e consumidores de forma ética.
Mas nem sempre isso ocorre, muitas vezes as empresas atuam
mais eticamente com aqueles stakeholders que possuem alguma influência sobre a organização, como fornecedores, sem os quais não é
possível fabricar seus produtos, ou mediante a intervenção de empregados chaves.
Diante disso, será que as empresas agem devido à
conscientização de responsabilidade, perante a sociedade, onde estão inseridas? Ou as empresas praticam a responsabilidade social tendo em vista a manutenção ou a conquista de mercados?
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
303
Difícil responder, mas caso a resposta à última indagação seja
positiva, a sociedade estaria novamente à mercê do mercado, pois
seria ele quem ditaria as ações que deveriam ser praticadas, mas não
a sociedade em relação às suas reais necessidades.
A questão é complexa, pois às vezes podem ser impostas condutas dispendiosas em termos financeiros, sem que a empresa possa
vislumbrar um meio de aumentar seu capital. Afinal, a empresa está
inserida no sistema capitalista, onde impera a lei do mais forte.
Neste contexto, a legislação obriga algumas condutas por parte das empresas, é o caso das regulamentações ambientais, trabalhistas, etc. Mas o direito também vem se transformando em relação às
empresas, constatado quando se fala em função social da empresa.
A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
Muito se discute sobre qual seja a função social que a empresa
deve exercer, procurando identificar os limites de suas responsabilidades, mas como já exposto anteriormente ainda não se tem um consenso sobre o assunto.
Hoje, uma empresa não pode mais, simplesmente, retirar recursos naturais do meio onde está localizada sem oferecer nenhuma
retribuição, ela tem uma obrigação maior, ou seja, a de zelar e preservar o meio onde se encontra.
Quanto a isto, pode-se dizer, em primeiro lugar, que a principal função de uma empresa é gerar empregos para a sociedade, mas
não se resume a isto, pois o trabalhador brasileiro não estava preparado para a grande transformação imposta pela globalização, não possuía especialização diante da informatização do processo de produção das grandes empresas que chegaram ao mercado. Isto fez com
que, até hoje, sobrem trabalhadores no mercado, ao mesmo tempo
em que sobram vagas para serem preenchidas.
A grande maioria das empresas, nacionais ou multinacionais,
não encontra mão-de-obra qualificada para assumir as novas funções
criadas pela nova tecnologia lançada ao mercado. Em razão do alto
índice de analfabetos, ou da baixa escolaridade dos alfabetizados, os
trabalhadores brasileiros não se enquadram nos novos padrões exigiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
304
dos pelo mercado, ficando, ou continuando, excluídos.
O que vem ocorrendo é que as empresas buscam em outros
mercados, mesmo que internacionais, profissionais qualificados para
desempenharem as funções necessárias para o andamento da empresa, causando com isto um desvirtuamento da primeira função social da empresa, criação de empregos para a comunidade onde está
inserida.
E aí, de quem é a responsabilidade pela educação desta comunidade? Aqui poderia estar a segunda função social da empresa,
que é a de proporcionar o desenvolvimento humano, na comunidade
onde ela está, mais conhecida como responsabilidade social da empresa. Isto poderá ser alcançado por meio de planos desenvolvidos
pela empresa a qual motiva seus funcionários ao trabalho social,
disponibilizando pessoas qualificadas para fazer palestras sobre educação, higiene, meio ambiente, etc, cursos profissionalizantes e por que
não oferecer o ensino básico para as pessoas e crianças carentes da
região?
Sobre o assunto escreve a Professora Dra. Maria Cecília
Coutinho de Arruda (ASHLEY, 2002, p. XVI): “O equilíbrio de uma sociedade, em última instância, depende de três grandes fatores: governo, família e empresa. Em minha modesta opinião, o futuro do Brasil
está na mão das empresas.”
Para Patrícia Almeida Ashley (ASHLEY, 2002, p. 8), o público
beneficiado com a responsabilidade social empresarial é amplo, abrangendo “funcionários, clientes, fornecedores, competidores e outros com
os quais a empresa mantenha transações comerciais”.
O mundo dos negócios exige crescente e elevado padrão ético
dos partícipes do processo econômico, pois, como adverte Maria Cecília
Coutinho de Arruda (ARRUDA, 2002, p. 8), “hoje, os dirigentes de empresas e outras instituições brasileiras já se deram conta de que a ética é
algo sério que começa a fazer sentido. Poderíamos ir mais longe, dizendo
que agora a ética significa a sobrevivência das organizações”.
Enriquecendo a compreensão da nova realidade empresarial, insere-se a obra de John Elkington (ELKINGTON, 2001, p. 45), alertando que:
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
305
“...em todo o mundo, os executivos estão acordando para o fato de
que os mercados-chave estão às margens de uma rápida mudança
de direção devido aos padrões ambientais e exigência dos clientes.
Como resultado, novos pilares estão sendo acrescentados às antigas instruções de lucros e perdas.”
Trata-se de uma nova postura das empresas, frente aos negócios, na qual o “capital humano” é valorizado,337 tanto no âmbito
interno das empresas, colaboradores e fornecedores, quanto externamente, clientela em geral, gerando empregos; respeitando direitos trabalhistas; valorizando direitos do consumidor; respeitando e protegendo o meio ambiente; contribuindo para a arrecadação pública pelo pagamento de tributos; colaborando com a sociedade civil em projetos
assistenciais; além de outras posturas e ações que, efetivamente, contribuam para a prática da responsabilidade social.
Mas estas iniciativas ainda não são tomadas pela minoria das
empresas atuantes, a maioria se restringe a obrigação de cumprir as leis.
As empresas têm o poder de modificar o ambiente onde vivem, mas para isto é necessário que se tenha vontade e ética nas
suas condutas.
Saber com exatidão quais as responsabilidades a que as empresas estariam sujeitas, ainda está longe de ser definida, mesmo porque vários fatores influenciam nas ações empresariais. Neste contexto, estudar a globalização é um fator importante para a compreensão
do tema.
A GLOBALIZAÇÃO E AS EMPRESAS BRASILEIRAS
A grande transformação econômica vivida desde o início do milênio, trouxe como destaque a globalização, como anuncia Liszt Vieira
(VIEIRA, 1998) “ao lado de uma sociedade global, entendida como sociedade internacional, haveria hoje uma comunidade global emergente,
entendida como comunidade planetária em processo de formação”.
Sobre as modernas tendências econômicas observa José
Carlos Figueiredo (FIGUEIREDO, 1999, p.13), para quem “o processo
de globalização impõe regras totalmente inéditas na relação das empresas com seus colaboradores”, causando, com a crescente e aceleRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
306
rada internacionalização dos negócios, “impactos nas economias, hábitos, valores, emoções e comportamento dos seres humanos”.
O mesmo autor (FIGUEIREDO, 1999, p. 14), ressalta que:
“...não se pode mais negar a globalização. Por mais que alguns
provem seus movimentos cíclicos, ela é uma realidade num mundo
conectado por redes de computador e alimentado por informações
online. A globalização está conectando raças e culturas complementares diferentes, que buscam o mesmo objetivo. Independentemente do estágio atual em que se encontram, todas se unem pela presença de seres humanos que lutam pela sua felicidade e realização
profissional.”
Em razão da comunicação entre os povos, e da diversidade de
informações disponíveis, as empresas sentiram necessidade de mudança para que pudessem competir no mercado internacional, influenciando diretamente no seu comportamento perante a sociedade.
Quando o processo de globalização tornou-se inevitável, e as
nossas fronteiras foram abertas ao mercado internacional, as empresas brasileiras não estavam preparadas para este desafio, devido ao
excessivo protecionismo estatal de que gozavam as empresas (altas
taxas de importação), vem como pela falta de planejamento (pelo Estado) para a abertura do mercado.
Como conseqüência, várias empresas foram obrigadas a fechar
as portas, incapazes de adaptar-se ao novo modelo econômico, várias
pessoas foram demitidas elevando o número de desempregados.
Mas hoje, já em busca do novo modelo exigido pelo mercado,
as empresas se deparam com outros problemas, gerados principalmente
pelos incentivos abusivos às multinacionais em detrimentos das empresas nacionais.
Não é novidade que as empresas multinacionais, após a abertura das fronteiras para o mercado internacional, instalaram-se no Brasil,
em busca de mão-de-obra barata, mercado consumidor suficiente, isenções de impostos, incentivos como terrenos, dentre outros benefícios.
Mas, as empresas brasileiras não recebendo o mesmo incentivo sofrem para competir.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
307
A globalização é inevitável, é uma das conseqüências da evolução da sociedade, contudo o direcionamento que lhe é dado, pode-se
questionar. Por que multinacionais recebem tantos benefícios e as empresas nacionais são cada vez mais taxadas por impostos?
O que se prega é o livre comércio, mas vemos que aqueles
que assim pregam (EUA), assim não fazem, pois protegem seu mercado interno de concorrentes mais competentes.
Portanto, a globalização é um fenômeno extremamente importante e que não deve e não pode ser bloqueado, porém o que se
deve ter é um controle, como ocorre nos países de primeiro mundo,
onde suas empresas são a base do crescimento do país, e por isto,
são colocadas em primeiro lugar.
Este pode ser o caminho para uma relativa independência econômica.
CONCLUSÃO
As empresas estão inseridas num mundo global, sendo assim
estão sujeitas às inovações. E é neste sentido que o comportamento
das empresas se amolda.
No século XX muitas transformações ocorreram, todavia a
conscientização da sociedade, quanto à responsabilidade social, que
as empresas devem desenvolver é uma das mais difundidas.
Esta idéia já tem ganhado forças, para isto pode ser comprovado com as legislações atuais que passaram a valorizar o homem
como principal fonte de proteção do direito, e conseqüentemente, o
meio onde ele vive, também deve ser respeitado. Neste sentido, as
leis ambientais, que impõem às empresas uma conduta eticamente
responsável para com a natureza, pode ser citado como um dentre
inúmeros exemplos.
A sociedade, é a principal interessada, por isto interage através
dos chamados stakerolders (rede de relacionamento da empresa), em
como através de entidades públicas e privadas (Procons, sociedades
civis, associações, sindicatos, etc), que impõem limites ao poder desenfreado das grandes empresas.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
308
Mesmo assim, observa-se, que muitas empresas, ainda cumprem somente aquilo que a legislação assim determina, com medo
das punições que possam sofrer, mas isto está mudando.
Não se pode definir quais sejam todas as responsabilidades
sociais das empresas, mas seus dirigentes já possuem o conhecimento
para saber que, brevemente, ações responsáveis farão parte da sobrevivência das empresas e não mais de mera opção. As empresas
mudarão seu comportamento tendo em vista a sua sobrevivência no
mercado.
REFERÊNCIAS
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ASHLEY, Patrícia Almeida (coord.). Ética e responsabilidade social nos negócios. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 8.
COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 12.
COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens
de produção. In Direito empresarial: estudos e pareceres. São
Paulo: Saraiva, 1990, p. 03.
DAVENPORT, Thomas. Capital humano. O que é e por que as pessoas investem nele. Trad. Rosa S. Krausz. São Paulo: Nobel, 2201.
ELKINGTON, John. Canibais com garfo e faca. “Seria um sinal de
progresso se um canibal utilizasse garfo e faca para comer?”Trad.
Patrícia Martins Ramalho. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 45
FACCHIN, Luiz Edson. “Teoria crítica do direito civil”. Rio de Janeiro:
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FIGUEIREDO, José Carlos. O ativo humano na era da
globalização. São Paulo: Negócio, 1999, p. 92.
KLEIN, Eric & IZZO, John B. O despertar da alma da empresa.
Redescobrindo a confiança, a paixão e o desempenho das pessoas no trabalho. Trad. Eidi Baltrusis C. Gomes. São Paulo: Cultrix, 1998.
VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização, 2 ed. Rio de Janeiro:
Record, 1998.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
309
TRABALHO, LIBERALISMO E IDEÁRIO NEOLIBERAL
LINEU FERREIRA RIBAS
ESPECIALISTA EM ECONOMIA DO TRABALHO PELA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO PARANÁ. ESPECIALISTA EM DIREITO E PROCESSO DO
TRABALHO PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA.
MESTRANDO EM CIÊNCIAS SOCIAS APLICADAS PELA UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE PONTA GROSSA. ADVOGADO NO ESTADO DO PARANÁ.
RESUMO
O artigo trata das origens de fenômenos como o liberalismo, o neoliberalismo
e a globalização, contextualizando-os com o trabalho humano e com o Direito
do Trabalho. Partindo de uma análise histórica, o autor ressalta o surgimento
do liberalismo como um movimento que enfraqueceu o feudalismo e fortaleceu
a burguesia. O texto realiza, em seguida, crítica do neoliberalismo em relação
às suas conseqüências para o mercado de trabalho, fazendo surgir um
“exército industrial de reserva”.
ABSTRACT
The article is about the origins of currents as liberalism and new liberalism
and the globalization , putting it together with human labor and with Labor
Law. From a historical analysis , the author points to the happening of
liberalism as a current that made Feudalism weak and made burgess strong.
The text brings a critics to the new liberalism in relation to its consequences
to the labor area , making the appearance of a big industrial reserve .
PALAVRAS CHAVE - Direito do Trabalho; liberalismo; neoliberalismo;
globalização.
INTRODUÇÃO
Sempre que tratamos de liberalismo e neoliberalismo, somos
reportados, quase que, instantaneamente, ao mundo do trabalho e, em
particular, ao campo do Direito do Trabalho.
É de grande atualidade o tema que ora nos propomos a dissertar, pois muito se fala e ouve-se falar em “neoliberalismo” e
“globalização”, sem contudo ater-se às suas diferenças, nem tampouco
levantar uma maior reflexão acerca de sua existência e, até mesmo,
sobre possíveis imposições econômicas e políticas.
Diante disso, chamamos a atenção para uma contemporização
do tema, para que então o pesquisador possa ater-se a seus verdadeiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
310
ros contornos, percebendo seus objetivos e criando uma idéia de perspectivas, especialmente na esfera do trabalho e desdobramentos no
Direito do Trabalho.
PONTOS COMUNS ENTRE LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO
Ambas as ideologias têm pontos comuns, daí porque, evidentemente, uma ser o espelho da outra, dando ensejo ao nome da segunda, conhecida como “neoliberalismo”.
Ocorre que, em virtude do contexto histórico acabam por diferenciar-se bastante, distanciando-se uma da outra. Por isso, de suma
importância para o pesquisador ter em mente, com clareza, quais os
pontos comuns e quais a divergências entre essas ideologias.
Assim, destacando primeiramente os pontos comuns entre liberalismo e neoliberalismo, podemos afirmar que ambas as ideologias pregam um “Estado”, como ente governamental, afastado das relações interpessoais, deixando que os sujeitos tenham plena “liberdade”, ou seja, pregam que há maior igualdade entre as partes na medida em que há o afastamento da intervenção Estatal.
O slogan dessas ideologias pode ser assim sintetizado: O melhor Estado é o Estado que menos governa.1
No que interessa ao campo da Economia e do Direito do Trabalho, prega-se um afastamento do Estado na tutela do salário, deixando
com que o sistema financeiro “naturalmente” regule os níveis salariais.
Nesta linha de raciocínio, quando as empresas estivessem em
situações mais favoráveis economicamente, naturalmente que os salários dos trabalhadores também seriam elevados. Ao passo que, quando
em situações desfavoráveis, ditadas pela conjuntura econômica, como,
por exemplo, em tempo de grande competitividade no mercado interno e
externo, aberturas alfandegárias, quedas nos câmbios, supervalorização
da moeda nacional e outras, os salários teriam que ser compactados, a
fim de viabilizar a permanência das empresas no mercado.
Desta forma, os salários dos trabalhadores seriam sempre regulados pelo mercado e nunca pelo Estado, como acontece com o salá1 PETRAS, James. Os fundamentos do neoliberalismo. In: RAMPINELLI, et al (orgas.) No fio da navalha: críticas das reformas neoliberais de FHC. p 16.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
311
rio mínimo, no qual o Estado regula um piso mínimo a ser respeitado
pelo capital, o que não deveria ocorrer em ambas as ideologias, cabendo aos trabalhadores, individualmente, ou organizados por meio de sindicatos a negociação para diminuição ou aumento desses salários, dentro de um contexto conjuntural econômico.
Para viabilização desse afastamento do Estado das relações
interpessoais, faz-se necessária uma desregulamentação do
ordenamento legal existente, flexibilizando as leis para que a “liberdade”
almejada seja possível.
Tanto uma como outra ideologia defendem a derrubada das
barreiras comerciais, sejam internas ou externas, para que as empresas possam participar de um mundo globalizado, vendendo seus produtos e serviços a outros países de forma livre e sem empecilhos,
bem abrir seu mercado interno para os produtos desenvolvidos e fabricados em outros países.
Desta forma, liberalismo e neoliberalismo alcançariam seus
principais objetivos, pautados na livre circulação de bens e capitais.
DIFERENÇAS ENTRE LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO PELO
CONTEXTO HISTÓRICO
Como sugerido acima, liberalismo e neoliberalismo têm pontos comuns, mas à medida que se contextualiza uma e outra ideologia
passa-se a perceber suas diferenças, que são bastante marcantes.
Assim, podemos lembrar que o liberalismo teve maior evidência entre meados do séculos XVII e XVIII, época em que eram fortes
os modelos econômicos feudais, aos quais o liberalismo combateu,
pois o feudalismo opunha restrições ao novo modelo que se implantava
na sociedade, mais tarde conhecido como “capitalismo”. 2
O neoliberalismo, por sua vez, combate a existência de sindicatos de trabalhadores fortes, que impõem restrições aos objetivos do
capitalismo já enraizado na sociedade contemporânea.
Busca combater os sindicatos, de forma a não permitir a continuidade de conquistas no campo social e econômico, que poderiam
dificultar ou impedir o desenvolvimento das empresas. Para tanto en2 ZARPELLON, Carlos Fernando. Curso de relações do trabalho para pequenos e médios empresários. p 32.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
312
contra formas de enfraquecer o sistema sindical.
O liberalismo pregava a necessidade de exportação do produto
interno. Para tanto prejudicou a economia agrícola dos pequenos camponeses, os quais foram transformados em empregados das indústrias.
Por outro lado, o neoliberalismo, que também prega a exportação, como necessidade de desenvolvimento e fortalecimento da economia nacional, 3 acaba por desmantelar sua própria indústria nacional,
pública e privada. 4
Acaba com a indústria pública porque nesse modelo neoliberal,
onde se busca um afastamento do estado, não cabe um estado protetivo,
o qual deve deixar a indústria ao capital privado administrar e, no caso
brasileiro, de preferência ao capital privado internacional, com o fim
de atrair moeda estrangeira, mais precisamente o “dólar”.
Paralelamente, o modelo neoliberal, também afeta a indústria
nacional privada, pois ao abrir as barreiras comerciais, ao invés de beneficiar a indústria nacional para competir no exterior - o que só ocorre na
teoria, pois no caso do Brasil, nossa indústria acaba por não encontrar
mercado consumidor, pois já saturado e sedento apenas de novas
tecnologias o que não é nossa produção -, oferece na verdade um mercado consumidor interno, rico de consumidores sedentos por bens primários, tais como eletrodomésticos, acesso à saúde, moradia, e outros.
Neste contexto, o liberalismo acabou com o feudalismo, pautado no mercado interno entre feudos vizinhos, expulsando os camponeses do campo para as cidades, aglomerando-os nos burgos, enquanto
que o neoliberalismo quebrando com as barreiras alfandegárias, abre
as portas do país para o mercado internacional, visando a criação de
um “mercado globalizado”.
No liberalismo, aqueles camponeses, que foram para as cidades, acabaram-se tornando a massa de trabalhadores explorados na indústria, especialmente com elastecidas jornadas de trabalho, que iam do
nascer ao pôr do sol, o que só piorou com o advento da luz elétrica, a qual
3 BEIJAMIM, Cesar. O Plano Real: Componentes estruturais e consequências. Palestra proferida no VII congresso da APP-Sindicato de 24 a 26 de outubro de 1996.
4 PETRAS, James. Os fundamentos do neoliberalismo. In: RAMPINELLI, et al (orgas.) No fio da navalha:
críticas das reformas neoliberais de FHC. p 17.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
313
possibilitou ao capital a exploração do trabalhador até que suas forças
se esvaíssem.
Houve também intensa exploração da mão-de-obra feminina e
infantil, ao passo que o neoliberalismo transformou trabalhadores empregados em desempregados, empurrando-os para o “exército industrial de reserva”, 5 ou até mesmo para a “massa marginal”, 6 composta
por aqueles trabalhadores que já não são aproveitados pelo sistema
capitalista por uma série de fatores, tais como idade ou falta de qualificação profissional.
Desta forma, o neoliberalismo transfere esses trabalhadores
do exército industrial de reserva e da massa marginal, da situação
anterior de assalariados para uma nova posição, a de trabalhadores
autônomos ou informais, além de causar uma pressão aos trabalhadores empregados, que diante do alto nível de desempregados, acabam por sujeitar-se a aceitar condições mais precárias de trabalho, com
maior intensidade de afazeres.
Nesta esteira, grande é a diferença que se visualiza entre o liberalismo e o neoliberalismo, porque aquele quando reuniu trabalhadores
dentro da indústria foi impelido a aceitar e legislar acerca de um Direito
do Trabalho, pois possibilitou o surgimento de classes sociais bem
delineadas, que se fortificaram por uma série de fatores, como por exemplo: a encíclica papal Rerum Novarum do Papa Leão XIII, pela qual a
Igreja fez despertar um espírito de solidarismo e de necessidade de divisão de riquezas. Além disso, tais trabalhadores foram fortificados
com a primeira grande guerra mundial, quando então o capital dependeu da força de trabalho para a indústria pesada e mobilização de
recursos humanos para o campo de batalha. 7
Já o neoliberalismo, ao contrário do anterior movimento que aceitou o Direito do Trabalho, o desestrutura mediante políticas de
flexibilização e de desregulamentação, afastando o Estado das relações de trabalho e deixando que o mercado dite as normas a serem
5 MARX, Karl. Apud NUN, José. La Marginalid en América Latina, p 5.
6 Idem.
7 MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao Direito do Trabalho. Apud. ZARPELLON, Carlos
Fernando. Curso de relações do trabalho para pequenos e médios empresários. p 36.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
314
observadas por empresas e empregados.
As cidades foram beneficiadas com o advento do liberalismo,
pois houve grande movimento demográfico do campo para as cidades,
que acabaram por formar os burgos, os quais ensejaram o surgimento
de uma nova classe social: a burguesia.
Por outro lado, essas mesmas cidades foram prejudicadas pelo
neoliberalismo, visto que este movimento transforma muitos centros
urbanos em enormes favelas, evidenciando as diferenças entre classes sociais, fortalecendo os ricos e deixando os pobres cada vez mais
pobres, com a paulatina eliminação da “classe média”. 8
Na verdade, o neoliberalismo faz com que tudo o que era considerado sólido, já não o seja mais, 9 como, por exemplo, a formação
profissional em nível de graduação (terceiro grau regular), como requisito para encontrar trabalho empregado, ensejando uma vida estável
e confortável, o que já não ocorre com tranqüilidade e já não pode ser
mais considerado como objetivo único de vida, pois, a graduação já não
oportuniza de imediato a conquista de emprego, tampouco garante o
ingresso do profissional no mercado de trabalho.
ELEMENTOS ESTRUTURAIS E CONJUNTURAIS DO PAÍS
Nesta análise somos arremessados a uma observação dialética
da sociedade brasileira, numa estrutura onde se observa que da junção de povos indígenas e portugueses nasceu um novo povo, uma
nova nação, denominada Brasil, com um processo histórico de construção nacional ainda em desenvolvimento.
Esta mesma dialética nos mostra que passado e presente estabelecem um relacionamento marcante, especialmente no delinear
do futuro do Direito do Trabalho.
Assim, uma nação que surgiu como território colonizado, com
característica econômica de fornecedora de produtos para exportação, desenvolveu-se para um crescente mercado interno.
Desta maneira, o país surgiu com um povo aberto para o mun8 PETRAS, James. Os fundamentos do neoliberalismo. In: RAMPINELLI, et al (orgas.) No fio da navalha:
críticas das reformas neoliberais de FHC. p 17.
9 MARX, Karl. O manifesto comunista. p 14.
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315
do, demográfica e culturalmente, o que continua e continuará presente
em nossas raízes, como um relacionamento entre o passado e o presente, ditando contornos para o futuro, o que se desvirtuou com a implantação do Plano Real, quando então o país obrigou-se definitivamente a observar as regras neoliberais de abertura comercial e estagnação
da economia.
Oportuno ressaltar que, uma verdadeira nação, necessariamente,
precisa ter quatro pilares, um calcado num território nacional reconhecido pelo mundo, outro num povo (cidadãos), outro num grau suficiente de
autonomia decisória e, o último, num Estado que expresse uma ordem
jurídica-política legítima e eficaz, expressando, em outros termos, toda a
soberania nacional. 10
Desta forma, ressalte-se que, os dois primeiros pilares já foram
assentados pelo Brasil, ao passo que os outros dois últimos pilares vêm
sofrendo fortes impactos, principalmente decorrentes da estagnação do
desenvolvimento, ocorrida para (em tese) conter a inflação e
supervalorizar a moeda nacional em relação ao dólar.
Com a industrialização ocorrida no campo, a migração de trabalhadores rurais para as cidades foi imensa, pois não encontrando mais
trabalho foram para as cidades, as quais tornaram-se muito cheias, e
nas últimas décadas deixaram de assimilar essa mão-de-obra e passaram igualmente a reduzi-la.
CONCLUSÃO
O Brasil assumiu a posição periférica, espontaneamente, impedindo o desenvolvimento de sua indústria nacional privada e acabando com a pública.
Isso fez com que os trabalhadores dessas empresas fossem
parar na informalidade, seguindo exatamente a cartilha ditada pelo
neoliberalismo, criando um tumulto social nas cidades e no campo, o
que agrava o problema fiscal nacional, fazendo com que o Estado precisa de mais dinheiro para solucionar tais questões e nunca o faz,
porque se assim o fizer, importaria tirar dinheiro das mãos de investido10 BENJAMIN, César et al. A opção brasileira. p 71.
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316
res estrangeiros, aumentando o “risco Brasil”, o que provavelmente afastaria o capital volátil de forma tão rápida que desencadearia, provavelmente, uma crise, ainda pior.
Essa dinâmica, deveras complexa, acaba por atingir a parte
mais fraca na escala de poderes, qual seja, a classe dos trabalhadores.
Os operários ficam sem emprego. Procuram qualificar-se profissionalmente para um “fictício” mercado de trabalho, já saturado e sem postos
para todos, o qual, ao revés, está cada vez mais a reduzir postos de
trabalho sob o pretexto da competitividade internacional, para enfrentar
a globalização.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Lúcio Flávio Rocrigues de. De JK a FHC: apontamentos
para a análise das lutas sociais no Brasil contemporâneo. Apud.
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HAYEK, F. A. O caminho da servidão. 5. ed. Rio de Janeiro: Instituto
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NUN, José. La Marginalidad en América. Revista Latinoamericana
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PETRAS, James. Neoliberalismo: América Latina, Estados Unidos e Europa. Blumenau: EFURB, 1999.
ZARPELLON, Carlos Fernando. Curso de relações trabalhistas
para pequenos e médios empresários. São Paulo: LTR, 1996.
===============================================================
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317
O DIREITO À DIFERENÇA, À IGUALDADE E À
LIBERDADE DOS HOMOSSEXUAIS
JULIANE MAYER GRIGOLETO
RESUMO
O texto analisa o surgimento do Estado moderno como o ambiente necessário
à proliferação do individualismo, o qual fundamentou o aparecimento de
declarações de direitos dos indivíduos, adotados pelas constituições do
Estados modernos em maior ou menor grau. Atualmente, no Brasil, o Direito
Civil, após sofrer um processo denominado repersonalização, abrangeu na
categoria dos direitos de personalidade os direitos individuais. Na esfera da
individualidade e da especificidade, nasceu o direito à diferença. A autora
procura enfatizar o direito à diferença como direito individual, tendo como
principais destinatários, dentre outros, os homossexuais.
ABSTRACT - RIGHT TO THE DIFFERENCE, TO THE IGUALITY AND
THE LIBERTY OF THE HOMOSEXUALS
The text analyses the happening of a modern state as the place necessary
to the proliferation of the individualism , which fundament the appearance of
individuals Bill of Rights , adopted by the modern State Constitutions . Nowadays, in Brazil, Civil Law , after a process called personalization, has covered in the category of entity rights the individual rights. In the individuality
part and its specification , the right for the difference has born. The author
wants to emphasize the right for the difference as an individual right , having
as destiny , among others, the homosexual people.
KEY-WORDS - individual rights, right to the difference, homosexuals.
PALAVRAS CHAVE - Direito Civil; declarações de direitos individuais;
direitos dos homossexuais.
INTRODUÇÃO
A existência de direitos humanos individuais remonta a formação do Estado Moderno e da filosofia de pensamento que conduziu as
revoluções históricas, como a Revolução Francesa.
Para este estudo foram analisadas as teorias de Hobbes e
Locke e suas contribuições para o nascimento do Estado.
O Estado moderno frutificou com a constitucionalização dos direitos individuais, os quais, atualmente, fazem parte da codificação braRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
318
sileira de Direito Privado, o Novo Código Civil.
A repersonalização do Direito Civil e a inclusão de direitos de
personalidade serão examinados no decorrer deste ensaio, a fim de
fundamentar a existência de uma quarta geração de direitos, o direito
à diferença.
O direito à diferença é tema relevante e atual no que concerne
aos direitos dos homossexuais.
Assim, para tratar de igualdades e liberdades dos homossexuais foi traçado um panorama histórico da formação do Estado moderno
e o surgimento dos direitos individuais, perpassando pela análise da
repersonalização do Direito Civil e da nova categoria de direitos, o
direito à diferença, enfocando como atores a que estes direitos se
destinam os homossexuais.
SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO E O NASCIMENTO DOS
DIREITOS INDIVIDUAIS
Na Antigüidade, o Estado se caracterizava pelo absolutismo e
o rei era elevado à categoria de Deus. Com essa forma endeusada o
soberano garantia a paz, mantendo um exército de soldados profissionais, enquanto os cidadãos cuidavam de si próprios e de gozarem as
suas vidas. (SCHILLING, 1966, p. 102)
Dizia-se, portanto, que as pessoas na Antigüidade desconheciam direitos individuais. Possuíam liberdades políticas, pois os cidadãos
gregos, por exemplo, participavam do governo, votando e sendo votados. Os demais habitantes gregos eram os estrangeiros, considerados
inimigos ou semi-escravos e os escravos, os quais tampouco poderiam ser considerados sujeitos de direitos. Assim, o Direito Público ou
do Império era o Direito Administrativo do monarca e o Direito Privado
era o dos homens reduzidos a si mesmos e às suas relações, para as
quais não havia interferência do Estado. Os interesses individuais eram
resolvidos pelos envolvidos e conforme suas necessidades e as decisões
não eram tomadas com base na igualdade. (SCHILLING, 1966, p. 103)
Em Roma também o povo participou do governo durante a República. Entretanto, com o Império, a liberdade política dos romanos foi
sufocada pela lei do imperador.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
319
A queda do Império Romano fez ruir a liberdade política e esvair
outras oportunidades de exercício da liberdade. Conseqüentemente, os
homens fracos, desguarnecidos de um Estado que lhes oferecesse segurança, buscavam a proteção dos mais fortes. As relações de proteção
serviram de base para o feudalismo. Os senhores feudais protegiam os
servos em troca dos serviços destes. (AZAMBUJA, 1969, p. 155 e 156)
Durante o século XVII, o confronto entre o rei e o parlamento
gerou correntes de pensamento político que se dividiam na defesa de
um e de outro lado. Destacaram-se os filósofos Thomas Hobbes (1588/
1679), ferrenho defensor do absolutismo e John Locke (1632/1704), teórico do liberalismo.
Hobbes ensina que, no início, todos os homens viviam no estado natural, sem estarem sujeitos a qualquer lei. Por isso, não havia
segurança, pois a luta de uns contra os outros era constante. Para
escapar a esse estado de guerra, os indivíduos estabeleceram entre si
um ‘’contrato”, pelo qual cediam todos os seus direitos a um só ente,
suficientemente forte para protegê-los contra a violência, dando origem a uma sociedade política, o Estado. A vontade única do soberano
vai representar a vontade de todos.
O Estado permanecia absoluto e o poder do príncipe arbitrário,
pois todo e qualquer direito era uma concessão do príncipe. Por conseqüência gerava-se uma resistência individual e o indivíduo não era visto
como portador de direitos em relação ao Estado. (DIREITO MENEZES,
1968, p. 80)
Já o escritor inglês John Locke (1632/1704) personificou, na
Inglaterra do final do século XVII, as tendências liberais opostas ao
absolutismo de Hobbes.
O ponto de partida de Locke é mesmo de Hobbes, ou seja, o
estado de natureza ao que se segue um contrato entre os homens,
que criou a sociedade e o governo civil. Mas, Locke chega a conclusões
opostas às de Hobbes, pois, sustenta que, mesmo no estado de natureza, o homem é dotado de razão. Dessa forma, cada indivíduo pode conservar sua liberdade pessoal e gozar do fruto de seu trabalho. Entretanto, nesse estado natural faltam leis estabelecidas e aprovadas por todos e um poder capaz de fazer cumprir essas leis. Os indivíduos então
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320
consentem em abrir mão de uma parte de seus direitos individuais, concedendo ao Estado a faculdade de julgar, punir e fazer a defesa externa.
Porém, se a autoridade pública, a quem foi confiada a tarefa de a todos
proteger, abusar de seu poder, o povo tem o direito de romper o contrato
e recuperar a sua soberania original. Assim, Locke defendia o direito do
povo em se sublevar contra o governo e justificava a derrubada e a substituição de um soberano legítimo por outro.
A passagem do “estado natural” para o “estado social” só pode
ser feita pelo consentimento dos homens e se todos os homens são
iguais e livres, nenhum pode ser tirado desse estado e submetido ao
poder político de outrem, sem o seu próprio consentimento.
Entre os direitos que, segundo Locke, o homem possuía quando no estado de natureza, está o da propriedade privada que é fruto
de seu trabalho. O Estado deve, portanto, reconhecer e proteger a
propriedade. Locke defende também que a religião seja livre e que
não dependa do Estado. (BOBBIO, 1980)
E é desta maneira que a sociedade civil substitui o estado natural. Esta sociedade possui dois poderes essenciais: o Legislativo, que
determina como o Estado deve agir para a conservação da sociedade
e de seus membros e o Executivo, que assegura a execução das leis
promulgadas, sendo que ambos devem estar em mãos diferentes para
evitar possíveis abusos.
Dessas correntes de enfrentamento do absolutismo surgiram
os movimentos revolucionários na Inglaterra (1688), na América do Norte (1776) e na França (1789). O saldo destas revoluções foram o Bill of
Rights (Inlgaterra, 1688), a Declaração de Direitos do Bom Povo da
Virgínia (Estados Unidos da América, 1776) e a Declaração de Direitos
do Homem e do Cidadão (França, 1789) que previam medidas
assecuratórias de direitos fundamentais individuais limitando os poderes da monarquia constitucional; considerando todos os homens livres,
iguais e independentes; garantindo a democracia e que o Estado/governo deve ser instituído para o bem comum do povo; o direito de defesa criminal, com juiz imparcial; a liberdade de imprensa e de religião; o
direito de propriedade; o habeas corpus e o voto das mulheres, para
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
321
citar alguns. Todos esses direitos vigoraram sob as premissas da liberdade, da igualdade e da fraternidade e com o intuito de uma sociedade
mais humana e justa. (SILVA, 1993, p. 144)
Após este marco, as Constituições dos Estados modernos passaram a conter em maior ou menor número a declaração dos direitos individuais, sendo a diferença primordial entre o Estado Antigo e o Estado Moderno a inclusão da pessoa humana como ente de direitos frente ao Estado,
sendo que estes direitos não podem ser violados pelo Estado.
OS DIREITOS INDIVIDUAIS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 E OS DIREITOS DE
PERSONALIDADE NO NOVO CÓDIGO CIVIL
A origem dos direitos do homem como pessoa considerada
em si mesmo remonta o surgimento do Estado Moderno e as Constituições. E esses, como os demais direitos, sempre surgiram das necessidades de cada tempo e da luta empreendida para conseguir
efetivá-los através de leis.
Quando o homem vivia em pequenos grupos, as dificuldades
que emergiam eram resolvidas ou pela ardilosidade ou pela força bruta. Conforme as sociedades foram tornando-se mais complexas, foi evidenciando-se a necessidade do estabelecimento de normas, de pactos
para a sua organização econômica, política, social e até religiosa.
Como se percebe, depois das revoluções e para atender aos
anseios do indivíduo, corroborado pelo pensamento de Hobbes, Locke
e Rousseau, surgiram os direitos individuais. Entende-se por direitos
individuais “os direitos do indivíduo isolado. Ressumbra individualismo
que fundamentou o aparecimento das declarações do século XVIII. É a
terminologia que a doutrina tende a desprezar cada vez mais. Contudo,
é ainda empregada para denotar um grupo dos direitos fundamentais,
correspondente ao que se tem denominado direitos civis ou liberdades
civis.” (SILVA, 1993, p. 162)
Esses direitos estão assegurados no caput do artigo 5° da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988: direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Com a chamada repersonalização do Direito Civil que ocorre
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322
com a gradativa transmutação do ter, de origem patrimonialista, para o
ser, os direitos do homem vêm superando o materialismo do Código
Civil de 1916 (TASCA, 2003, p. 10)
O fenômeno da repersonalização338 do Código Civil está acompanhado da constitucionalização deste direito. No Brasil, a Constituição
é chamada de Carta Magna ou Lei Maior e, portanto, figura como a mais
importante codificação do País, fundamentando os demais
ordenamentos. Fato este que enseja a que os direitos de personalidade emanem dos direitos fundamentais individuais assegurados pela
Constituição.
Os direitos de personalidade estão enunciados no Novo Código Civil, a partir de seu artigo 11, e mantém as características inerentes
aos direitos individuais como a intransmissibilidade e a
irrenunciabilidade. São considerados direitos de personalidade, consoante o Novo Código Civil: a) a disposição do próprio corpo gratuitamente para fins humanísticos como transplante, objetivo científico, ou
altruístico, pós-morte; b) a proteção do nome, sobrenome e pseudônimo; c) honra; d) boa fama; d) imagem e e) vida privada.
Em que pese as inovações trazidas por este novo ordenamento
jurídico, algumas questões relativas aos direitos de personalidade ainda ficaram de fora. Entretanto, já está em trâmite, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei n. 6920/02, de iniciativa do Deputado Ricardo Fiúza,
o qual visa proceder algumas modificações no que concerne aos direitos de personalidade relativos, especificamente, ao comportamento sexual. É intenção deste projeto que se inclua a possibilidade de livre manifestação da sexualidade para se assegurar aos homossexuais a liberdade de expressão de sua sexualidade assim como a possibilidade de
reconhecimento de sua união civil.
Já que o Novo Código Civil busca a aproximação entre os direitos fundamentais e os direitos de personalidade, bem como, dado
338
O DIREITO À DIFERENÇA, À IGUALDADE E À LIBERDADE DOS HOMOSSEXUAIS338 Repersonalização
– preocupação em valorizar o sujeito como ser humano e em salvaguardar sua dignidade, colocando o
indivíduo como centro, como principal destinatário da ordem jurídica. (SZANIAWSKI, E. Limites e
possibilidades do direito de redesignação do estado sexual: estudo sobre o transexualismo –
aspectos médicos e jurídicos. Tese de Doutorado da Universidade Federal do Paraná, 1997, p. 14)
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
323
que em matéria de lei os brasileiros são extremamente positivistas, necessitando sempre de uma lei para garantir direitos, mister se faz pensar nos direitos dos homossexuais. E, para tanto, como entende FIÚZA
(2003) “é preciso, todavia, que se afastem as posturas farisáicas ou
simplesmente ortodoxas e que se atente que em todo o Capítulo da Família o Novo Código dá especial ênfase às relações afetivas. Nesse
caso, deveríamos reconhecer que a busca da felicidade entre duas
pessoas extrapolou a rigidez e o engessamento do direito positivo.”
Trabalhando neste sentido, estão os movimentos homossexuais que buscam assegurar o direito à diferença.
O DIREITO À DIFERENÇA, À IGUALDADE E À LIBERDADE DOS
HOMOSSEXUAIS
O direito à diferença se situa na quarta geração de direitos.
Houve a necessidade de criação desta quarta categoria porque até
então os direitos anteriores (liberdade, econômico-sociais e qualidade
de vida) se dirigiam a todos os indivíduos de forma grupal. Entretanto,
existem direitos que surgem “de um processo de diferenciação de um
indivíduo em relação ao outro.” (LORENZETTI, 1998, p. 154). É o caso,
por exemplo, dos portadores de deficiência, das pessoas que desejam trocar de sexo, daquelas mulheres que querem abortar, das pessoas que recusam tratamentos médicos que levem à morte e dos homossexuais.
Algumas pesquisas mostram que os homossexuais sentem a
necessidade humana de afeto e de viver a vida com um parceiro. Em
seu Relatório sobre s Homossexualidade, BON e D’ARC (1979, p. 235
e 237) chegaram ao percentual de 61% dos entrevistados que desejam um parceiro para a vida e 56% que lastimam a inexistência do
casamento homófilo. Juntando esses dados, à referência de que 10%
da população brasileira é homossexual, em torno de 16 milhões de pessoas (fonte www.terra.com.br/istoe/1604/brasil/1604/luzrosa.htm e Grupo Gay da Bahia), o número de famílias homossexuais é considerável,
para que a legislação demore tanto tempo para se adequar a esta realidade. CASTELLS (1999, p. 262) aponta alguns números sobre a quantidade de lares homossexuais nos Estados Unidos e segundo sua estiRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
324
mativa, cerca de 20% da população masculina gay já foi casada e entre
20 e 50% tiveram filhos. Muitas vezes lésbicas são mães, quase sempre em conseqüência de casamentos heterossexuais anteriores. Uma
avaliação bastante abrangente indica que o número de crianças, nos
Estados Unidos, que vive com mães lésbicas varia entre 1,5 e 3,3 milhões. O número de crianças que vivem com pai gay ou mãe lésbica
situa-se entre 4 e 6 milhões.
Por isso, a necessidade de se pensar no direito à diferença, pois
dada a diversidade de manifestações da sexualidade (heterossexuais,
bissexuais, transexuais, homossexuais) não se pode reivindicar direitos
iguais para todos, é necessário a especificidade, pois “ ... temos o direito
de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e a ser diferentes quando
a igualdade nos descaracteriza.” SANTOS (2002, p. 75), pensamento
corroborado por TOURAINE (1998, p. 72): “Somos iguais entre nós somente por que somos diferentes uns dos outros.” Até porque “a graça não
está na diversidade?” (PEREIRA, 2002, p. 23)
O direito à diferença para os homossexuais representa a possibilidade de serem tratados com dignidade e porque: “a sexualidade é,
assim, um elemento integrante da própria natureza humana, seja individualmente, seja genericamente considerada. Sem liberdade sexual,
sem o direito ao livre exercício da sexualidade, sem opção sexual livre, o indivíduo humano – e, mais amplamente, o próprio gênero humano – não se realiza, resta marginalizado, do mesmo modo quando
lhe falta qualquer outra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais.” (DIAS, 2000, p. 164)
O Brasil, por meio do Programa Nacional de Direitos Humanos busca assegurar a todas as pessoas: mulheres, negros, índios, idosos, portadores de deficiências, estrangeiros, imigrantes, refugiados,
portadores de HIV positivo, crianças e adolescentes, policiais, presos,
despossuídos e os que têm acesso à riqueza, a proteção do direito à
vida, à liberdade, ao tratamento igualitário perante a lei, entre outros
direitos fundamentais (ALVES, 2002, p. 10).
A própria Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III faz
referência a que o Brasil é um Estado Democrático de Direito, o qual
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
325
tem como um de seus princípios a dignidade da pessoa humana, não
podendo, portanto, haver qualquer discriminação por causa da orientação sexual. (RIOS, 2002, p. 13)
Para o ordenamento jurídico brasileiro a Constituição está elevada à categoria de conjunto de normas e princípios que não podem ser
infringidos por normas inferiores sob pena de lhes serem argüidas a
inconstitucionalidade. Portanto, com base nos postulados constitucionais, as leis devem ser escritas e interpretadas de forma a não divergirem da Carta Magna. Nesse sentido, é pertinente que:
a interpretação da legislação infraconstitucional e a proposição
de projetos de lei (campos de claríssima manifestação do poder político) não podem ignorar o respeito às diversas modalidades de orientação sexual, socialmente presentes, dentre as quais a homossexualidade se insere. Isso seja pelo respeito à vida privada e à intimidade, seja
pelo caráter plural e participativo inerentes ao Estado Democrático de
Direito delineado constitucionalmente. (RIOS, 2002, p. 2)
Há quem acredite que não ocorre a discriminação e que os homossexuais já são tratados com igualdade por comungarem de que o
princípio da igualdade é obedecido toda vez que se trate com igualdade
aos iguais e com desigualdade aos desiguais. Utilizar esta linha de raciocínio é dar margem ao preconceito porque os homossexuais são diferentes dos heterossexuais apenas na orientação do seu desejo sexual,
no mais podem ser ricos, pobres, letrados ou analfabetos, desempregados ou trabalhadores, é anular a diversidade.
As leis, devido à sua casuística, procuram regular situações
previsíveis para que se estabeleça a boa convivência, mas não prevendo tudo o que possa acontecer, não traz definições para tudo. Então, cabe
ao operador do direito analisar o fato concreto e buscar a integração da
norma jurídica por meio da interpretação. E a interpretação mais adequada para se garantir o direito aos homossexuais é aquela que busca enquadrar o direito à realidade social, “sustentando que a obediência à norma decorre do respaldo social para sua eficácia e não da determinação
advinda da criação formal.” (FIGUEIRÊDO, 2002, p. 54)
A realidade social mostra que “em graus variados, a maioria
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
326
dos países adotou leis de proteção às diferenças.” (ANTUNES, 2003, p.
78) A França, por exemplo, em 1999, legalizou a união entre pessoas do
mesmo sexo denominando-a de pacto civil de solidariedade. A Holanda
também prevê casamento entre homossexuais e o direito à adoção de
crianças desde 2000. Ainda na Europa, a partir de fevereiro de 2003
será admitida aos casais homossexuais suecos a adoção de crianças.
Na Dinamarca a união civil entre homossexuais foi legalizada em 1989
e na Noruega, em 1992. E, é possível que outros países europeus aprovem leis semelhantes, “principalmente pela necessidade de igualdade
de direitos dentro da União Européia, e pelo processo de globalização
da economia.” (FARIAS, 2002, p.11). Nos Estados Unidos dezenas de
cidades, entre elas Nova Iorque (1993) e São Francisco (1991) reconhecem direitos patrimoniais, seguro saúde e outros a casais homossexuais. Na América Latina, a Argentina foi pioneira, aprovando no dia 13
de dezembro de 2002, em Buenos Aires, uma lei que autoriza a união
civil entre homossexuais, que entrará em vigor em abril de 2003.
Percebe-se que, da mesma forma que a aquisição de direitos
individuais pelo cidadão foi conseguida após intensas batalhas, os
homossexuais estão no mesmo caminho:
Os gays já foram considerados criminosos – e julgados por
isso. A Inglaterra do século XIX enforcou dezenas deles. Na mesma
época, as autoridades russas mandavam o muzhelozhstvo (que quer
dizer ‘homem que dorme com homem’) passar até cinco anos na
Sibéria. A Alemanha nazista deu aos homossexuais o mesmo tratamento reservado aos judeus. Num dos mais famosos julgamentos da
história, ocorrido em 1895, o escritor irlandês Oscar Wilde foi acusado
de sodomia e comportamento indecente. Diante do juiz, definiu a atração física entre dois homens como o ‘amor que não ousa dizer o nome.’
Wilde acabou condenado e sentenciado a dois anos de prisão e trabalhos forçados. Numa fase seguinte, os homossexuais passaram a ser
tratados não mais como criminosos, mas como doentes, ‘portadores
de uma anomalia’ que podia conduzi-los à depressão e ao suicídio,
donos de uma propensão especial à prática de crimes. Somente há
pouco mais de dez anos, a Organização Mundial de Saúde retirou a
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
327
homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças. Atualmente os especialistas já não discutem o que leva alguém ao
homossexualismo. Trata-se de uma mistura de fatores, resultado de
influências biológicas, psicológicas e socioculturais, sem peso maior
para uma ou para outra – nunca uma determinação genética ou uma
opção racional. (ANTUNES, 2003, p. 75)
Portanto, os homossexuais existem, são pessoas e merecem
ter seus direitos assegurados como qualquer outro ser humano. Dado o
fato de que ainda não existe aceitação maciça da sociedade os homossexuais, assim como as demais minorias, se organizaram em
movimentos que buscam melhorar suas condições psicológicas, sociais e jurídicas.
Em relação à garantia do Direito à Liberdade de Orientação
Sexual, por exemplo, as propostas dos movimentos homossexuais são:
a) emenda à Constituição Federal para incluir a garantia do direito à livre orientação sexual e a proibição da discriminação por orientação sexual;
b) apoiar a regulamentação da parceria civil registrada entre
pessoas do mesmo sexo e a regulamentação da lei de redesignação
de sexo e mudança de registro civil para transexuais;
c) aperfeiçoar a legislação penal no que se refere à discriminação e à violência motivadas por orientação sexual;
d) excluir o termo “pederastia” do Código Penal Militar;
e) incluir nos censos demográficos e pesquisas oficiais dados
relativos à orientação sexual. (fonte: http://www.mj.gov.br/pndh/
index.htm In:http://www.redesaude.org.br/jr24/html/body_jr24-pndh.html)
No que se refere aos Direitos de Igualdade, os Gays, as Lésbicas, os Travestis e os Bissexuais (GLTTB) buscam:
Promover a coleta e a divulgação de informações estatísticas
sobre a situação sociodemográfica dos GLTTB, assim como pesquisas que tenham como objeto as situações de violência e discriminação
praticadas em razão de orientação sexual.
Implementar programas de prevenção e combate à violência
contra os GLTTB, incluindo campanhas de esclarecimento e divulgação
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
328
de informações relativas à legislação que garante seus direitos.
Apoiar programas de capacitação de profissionais de educação, policiais, juízes e operadores do direito em geral, para promover a
compreensão e a consciência ética sobre as diferenças individuais e a
eliminação dos estereótipos depreciativos com relação aos GLTTB.
Inserir, nos programas de formação de agentes de segurança
pública e operadores do direito, o tema da livre orientação sexual.
Apoiar a criação de instâncias especializadas de atendimento
a casos de discriminação e violência contra GLTTB no Poder Judiciário, no Ministério Público e no sistema de segurança pública.
Estimular a formulação, implementação e avaliação de políticas
públicas para a promoção social e econômica da comunidade GLTTB.
Incentivar ações que contribuam para a preservação da memória e fomento à produção cultural da comunidade GLTTB no Brasil.
Incentivar programas de orientação familiar e escolar para a
resolução de conflitos relacionados à livre orientação sexual, com o objetivo de prevenir atitudes hostis e violentas.
Estimular a inclusão, em programas de direitos humanos estaduais e municipais, da defesa da livre orientação sexual e da cidadania
dos GLTTB.
Promover campanha junto aos profissionais da saúde e do direito para o esclarecimento de conceitos científicos e éticos relacionados à comunidade GLTTB.
Promover a sensibilização dos profissionais de comunicação
para a questão dos direitos dos GLTTB. (fonte: http://www.mj.gov.br/pndh/
index.htm In:http://www.redesaude.org.br/jr24/html/body_jr24-pndh.html)
A falta da garantia dessas igualdades e liberdades para os homossexuais compromete a vida afetiva deles que querem casar, adotar
crianças, receber e transmitir direitos hereditários, declarar imposto de
renda em conjunto, adquirir a casa própria com o mesmo financiamento,
que é assegurado aos casais heterossexuais, ter direitos previdenciários
de casal. Enfim, eles querem o direito de ser feliz a dois, com ou sem
filhos, podendo ser considerados família para gozarem de todas as prerrogativas que o Estado e a sociedade asseguram a esta instituição.
Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
329
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo estudo realizado, pode-se concluir que há necessidade de
se repensar a legislação brasileira, principalmente pela ótica dos direitos da personalidade no Novo Código Civil e da inclusão, na categoria
dos direitos individuais constitucionais, do direito à diferença, para assegurar igualdades e liberdades aos homossexuais.
A homossexualidade é uma orientação sexual de um indivíduo para outro do mesmo sexo, portanto, uma manifestação da sexualidade, não é doença ou opção. Os homossexuais são pessoas como
os heterossexuais, os bissexuais que se casam ou vivem solteiros,
trabalham, estudam, ajudam a eleger os membros do Poder Legislativo
que fazem as leis que não os incluem.
Demonstrou-se que existem países considerados desenvolvidos que já adotaram leis de proteção à diversidade e que estas sociedades modificaram o seu pensamento e buscaram a inclusão dos homossexuais, por meio do direito à diferença, respeitando a manifestação da sexualidade.
Assim, o Brasil também pode dar efetividade à Constituição,
no que se refere à dignidade da pessoa humana, à liberdade e à igualdade, ao se assegurar aos homossexuais, que vivem em união estável ou criam filhos, o direito de serem abrangidos no conceito jurídico de
família. E que esta inclusão possibilitaria às famílias homossexuais gozarem de todas as prerrogativas legais a que faz jus esta instituição.
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Revista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
333
REALIDADE E REPRESENTAÇÃO
RAFAEL AUGUSTUS SÊGA
PROFESSOR NO CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA,
UNIDADE DE PATO BRANCO. DOUTOR EM HISTÓRIA PELA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
RESUMO
O artigo faz um paralelo, uma contraposição, entre o estilo homérico e o
relato bíblico. Esclarece o autor que no estilo homérico os instrumentos
sintáticos são delimitados e graduados, não deixando nada do que é
mencionado na penumbra ou inacabado, e por assim dizer, não existindo
dessa forma, fenômenos obscuros ou fragmentados. Já no relato bíblico, ao
contrário, não se tem a função de manifestar ou exteriorizar pensamentos,
pois se procura aludir algo tácito, que continua inexpresso.
ABSTRACT
The article makes a comparison between the Homeric stile and the Biblical
Stile. The author makes clear that in Homeric Stile the syntactic instruments are delimitated and graduated , not leaving anything of what is mentioned in doubt or not finished, and , this way, it doesn’t happen to occur any
obscure information or piece of it . In the Biblical Stile , on the other hand,
there is not the worry of manifestation or exteriorization of thoughts , because it makes an illusion of a tacit act that is still inexpressive.
PALAVRAS CHAVE - Filosofia; literatura; estilo homérico e relato bíblico;
realidade e representação.
Em seu livro Mimesis, no texto “A cicatriz de Ulisses”, Eric
Auerbach refere-se a uma passagem da “Odisséia”, quando Ulisses regressa à casa e sua antiga ama o reconhece através de uma cicatriz na
coxa. Analisando o estilo homérico, vê-se que a epopéia decisivamente
influenciou os escritores da Antigüidade, não deixando nada do que é
mencionado na penumbra ou inacabado. Todos os instrumentos sintáticos são delimitados e graduados, assim como os personagens e as
coisas vêm à luz, perfeitamente, modelados, não existe, dessa forma,
fenômenos obscuros ou fragmentados. Esse desfile de fenômenos são,
em um presente espacial e temporal, nem por isso o texto fica repleto de
interpolações.
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334
Para contrapor a singularidade do estilo homérico, Auerbach utiliza outro texto antigo: o relato do sacrifício de Isaac. Essa contraposição
de estilos é fundamental para entender tais representações da realidade,
se uma descreve os acontecimentos através de suas exteriorizações, o
outro vai procurar sugerir o que não foi expresso.
No relato desse episódio do antigo testamento, os interlocutores
não se manifestam abertamente, as palavras se chocam sem nenhuma
preparação anterior, tornando a representação obscura.
O relato bíblico não tem a função de manifestar ou exteriorizar
pensamentos, como no relato homérico. Pelo contrário, procura aludir
algo tácito, que continua inexpresso. Deus dá ordens através de discurso indireto...
Os poemas homéricos procuram expressar a relação dos homens com a realidade da vida que descrevem, isto já não acontece nos
relatos bíblicos, o encantamento sensorial não importa tanto, mas sim o
caráter ético e religioso que se concretiza na realidade da vida.
Os relatos da Bíblia, segundo Auerbach, pretendem ser uma
realidade histórica, a única verdade, ai daquele que duvidar! Sua intenção é fazer o crente sentir-se membro de uma estrutura histórico-universal, preocupação que não aparece em Homero, uma vez que seus relatos permanecem no campo do mítico, do lendário.
A contraposição desses dois estilos representa, por um lado, a
descrição modeladora, uniforme, sem interpolações e por outro, a
problematicidade (sic) humana, o obscurecimento e a falta de conexão. Os dois estilos influenciaram fortemente a noção corrente de realidade e representação literária.
Já em “Fortunata”, no mesmo livro, Auerbach se refere a um
trecho do romance de Petrônio, o banquete de Trimalcião.
A descrição de Encólpio também retrata a si próprio, sua linguagem e escala de valores que utiliza e dão uma clara idéia de sua personalidade. Também há diferenças com o estilo homérico, o estilo de Encólpio
é extremamente subjetivo e a realidade objetiva é influenciada pelos seus
devaneios. Esse processo cria uma ilusão mais sensível e concreta da
vida, o ponto de vista é introduzido na narrativa, ganhando profundidade.
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335
Em Fortunata, a vulgaridade da linguagem não está destinada
a ser apreciada pela multidão, mas pela elite. Em sua descrição é ressaltada a história pregressa de seus personagens. Com isto, a intenção não é provocar a impressão de uma mudança histórica e sim a ilusão de uma fundamentação firme e imutável da constituição social.
A peculiaridade mais significativa desse relato reside no fato de
ser a representação da realidade que mais se aproxima da moderna representação, sobretudo pela fixação exata, nada esquemática, do meio social.
Petrônio, assim como um realista moderno, tece uma representação não estilizada de seu meio cotidiano, deixando que os personagens falem sua própria linguagem, gírias, cacoetes verbais, etc. No entanto, quando Petrônio retrata seus personagens, tudo é colocado como
se seus vícios ou manias fossem facetas estritamente individuais, o pano
de fundo histórico não é levado em consideração.
Auerbach associa Petrônio a Tácito em oposição ao evangelho de São Marcos. Tácito caracteriza a retórica da historiografia da
Antigüidade e evidencia os limites históricos desse realismo.
São Marcos ignora a regra da separação dos estilos, onde a
representação do cotidiano é incompatível ao Sublime (Deus). O estilo
elevado, divino, é diferente do estilo baixo. A tragédia prende-se ao primeiro e a comédia ao segundo.
Nesse sentido, a vulgarização da linguagem em São Marcos
está destinada aos homens individualmente. As diferenças de estilo
entre os textos antigos em os primeiros textos cristãos se devem ao
fato de que foram escritos a partir de diferentes pontos de vista e destinados a homens diferentes. Além disso, as representações realistas
greco-romanas ignoravam o antagonismo entre a aparência sensível
e o significado, o que já caracteriza a visão da realidade própria do
cristianismo primitivo, ou até mesmo do cristianismo em geral.
Se Auerbach tem por objetivo a interpretação da realidade através da literatura, Gombrich vai procurar interpretar a realidade por meio
da representação “fictícia” da imagem pictórica.
Em seu livro “Arte e ilusão”, no texto “Verdade e estereótipo”,
Gombrich ressalta a importância do temperamento ou da personalidaRevista Jurídica Mater Dei - Volume 3 - Número 3
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de do artista, na produção de um quadro, por exemplo, suas preferências seletivas, seu “estilo”. A esse ajustamento natural ao qual todos nós
fazemos mudanças quando olhamos uma ilustração, o autor chama de
“contexto mental”.
Comparando diversas reproduções pictóricas com fotografias,
Gombrich ressalta as diferenças, todavia ele frisa que não pretende provar com os exemplos que toda representação é necessariamente inexata
ou que todos os documentos visuais anteriores à invenção da fotografia
são enganosos. O que ele quer provar é que tal modificação é um processo paulatino, cuja dificuldade depende da schemata (esquema mental) a
ser adaptada para o objetivo de servir como retrato. A informação visual
individual, as características distintivas, são acrescentadas à obra como
se o artista estivesse preenchendo um formulário, o artista olha para um
motivo e busca classificá-lo e enquadrá-lo em uma schemata.
O familiar é o ponto de partida para a representação do desconhecido, uma representação que já existia sempre exerce um fascínio
sobre o artista.
Já em seu outro texto, no mesmo livro, “Condições de ilusão”,
Gombrich coloca que toda representação depende do prévio conhecimento daquilo que se está representando. A esse fenômeno ele chama
de “projeção dirigida”.
Mais ainda, quando estamos apreensivos com um resultado
ou quando somos sugestionados a uma percepção fantasmagórica,
esse contexto cria condições de ilusão. Existe, hoje em dia, uma tendência de tomar as coisas como elas literalmente são, o que pode levar
as pessoas a inusitadas ilusões, onde a mente é induzida a anteciparse aos fatos, buscando um nexo que não é tão fácil de ser encontrado.
O artista, ao tentar reproduzir uma realidade, parte de uma “faculdade imitativa” da mesma para que a ilusão funcione. Por isso que a
pintura contém uma quantidade enorme de informações, ajudando na
persuasão da ilusão. É preciso acreditar na adivinhação, na aferição de
possibilidades e nessa atitude reside uma interpretação do material simbólico da nossa vida real. Ao que se chama de “contexto mental”, pode
ser aquele estado de prontidão para se começar a projetar e captar
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cores e imagens fantasmáticas (sic) que adejam à nossa percepção.
Muitos são os relatos da grande variedade de coisas contraditórias que
observadores comuns “juram ter visto”.
Por fim, podemos concluir que a ambigüidade é a chave de
todo processo de representação da realidade, quer seja literária, quer
seja pictórica. Nas palavras do próprio Gombrich: “A representação é
sempre uma rua de mão dupla, pois cria um elo e ensina-nos a passar
de uma interpretação para outra.”
REFERÊNCIAS
AUERBACH, Eric. A cicatriz de Ulisses e Fortunata. In: Mimesis.
São Paulo: Perspectiva, 1971.
GOMBRICH, Eric. Verdade e estereótipo e Condições de Ilusão. In:
Arte e ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
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DIREITO, JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO DO
ADVOGADO339
ROBERTO ANTONIO BUSATO
ADVOGADO E VICE PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL
RESUMO
O texto é iniciado por uma leitura crítica do Poder Judiciário no Brasil na
atualidade, com a análise de alguns problemas vividos por este Poder, muitos
dos quais decorrentes de atitudes do Poder Executivo e do Poder Legislativo.
Partindo desse diagnóstico, o autor aborda aspectos da Advocacia,
ressaltando a função social do Advogado e a importância de sua atuação
para a defesa da sociedade e para a efetivação dos direitos fundamentais
dos cidadãos.
ABSTRACT
The text is begun by a critical reading of Judicial Department in Brazil nowadays, with an analysis of some problems in this Department , many of them
come from Legislative Department and attitudes of Executive Department.
Taking as basis this diagnostic , the author points to the aspects of Advocacy, calling attention to the social function of the Lawyer and the importance of his/her job for the defense of the society and for the effectuation of
the fundamental rights of the citizens.
PALAVRAS CHAVE - Advocacia; Poder Judiciário; função social do
Advogado; Ordem dos Advogados do Brasil.
TEM FÉ - tem fé no direito, como o melhor instrumento para a convivência
humana; na justiça, como destino normal do direito; na paz, como substituto
benevolente da justiça, e sobretudo, tem fé na liberdade, sem a qual não há
direito, nem justiça, nem paz. EDUARDO COUTURE - 8º mandamento.
Já disse igualmente o festejado jurista uruguaio autor do pensamento ora lido que DIREITO é CIÊNCIA - JUSTIÇA é RELIGIÃO - ADVOCACIA é ARTE.
Na sociedade desigual e conflitiva em que vivemos, permeada
por interesses antagônicos, em que o descrédito atinge e solapa as
instituições, a Justiça não poderia ficar à margem e protegida deste
339
Conferência proferida em 29/11/2002, no Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Mater Dei,
Pato Branco, Paraná.
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processo degeneratório.
Como todo aglomerado humano e moldado pelo mundo que
o cerca, o Judiciário apresenta virtudes e defeitos, acertos e erros,
altivez e mesquinharias, facetas por certo vivenciadas por todos nós.
As mazelas estão presentes no largo espírito corporativista,
no intrincado modelo dos ritos processuais, na estreita porta de
acesso à população, a pouca sensibilidade aos anseios sociais e a
reiterada barreira para um controle externo por parte da sociedade.
No dizer de CALHEIROS BONFIM, há Juizes e Serventuários
que se portam de forma tão pretensiosa e autoritária que parecem
convencidos de que a Justiça existe para que eles tenham seus
cargos e empregos, e não para que a ela recorram aqueles que se
sentem lesados em seus direitos. Esquecem que não é o Judiciário
que justifica a existência da população, mas são os interesses
desta que justificam sua existência.
A par disso, outros problemas afligem o Judiciário. No
Brasil, a prática reiterada de abusos, ilegalidades e
inconstitucionalidades cometidas pelo Executivo e Legislativo, o primeiro deságua inúmeros projetos de leis eivados dos adjetivos
afirmados, enquanto que o segundo se submete a vontade daquele,
aprovando projetos que violam garantias constitucionais, como a
igualdade, o devido processo legal, os princípios sociais, os tributários, a hierarquia dos diplomas legais e outros.
A cada insensatez destes poderes, milhares de processos
dão entrada no foro já entulhado e desestruturado e aí vem a
União Federal e suas Autarquias a fazer
Advocacia de má-fé, praticando chicanas visando procrastinar
o pronunciamento jurisdicional. Este quadro, eminentes participantes
desta Sessão podem ter certeza grassa em toda a América Latina,
conforme testemunhei como representante da Ordem dos Advogados do Brasil em Congresso patrocinado pela New York Bar Association,
realizado no Rio de Janeiro com presença de advogados latinoamericanos.
Ao contrário desta realidade, na França, aprovada uma Lei
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no Parlamento, ela é imediatamente remetida a um Conselho Constitucional que decide logo se ela é ou não inconstitucional. Considerada uma lei constitucional, os franceses não podem mais questionála em Juízo. O Conselho Francês é constituído de três membros
nomeados pelo Presidente da República, três pelo Presidente da
Assembléia Nacional e três pelo Presidente do Senado, sem nenhum membro do Judiciário, pois este não é Poder na França.
Diga-se, aqui, que o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, tem manejado bastante o instituto da Adin
(Ação Direta de Inconstitucionalidade), sendo vencedora na sua
grande maioria, o que comprova o lamentável quadro ora retratado.
Outra questão que atinge o Judiciário é a aprovação de leis
processuais complexas. A morosidade do processo civil é culpa
direta e final dos congressistas, mas, os culpados de origem são os
juristas teóricos que adoram firulas do direito processual e se
deleitam em conferências, palestras, simpósios e mantêm um processo civil complicado e cheio de armadilhas. Já se diz que no
Brasil, conseguimos “inventar” um processo que não acaba nunca.
Já se disse também, que sendo as normas processuais
complexas, acarretou a existência de uma indústria editorial de
livros processuais, que devem ser os de maior número de livros
jurídicos.
Aparelha-se o Judiciário com alguns verdadeiros palácios,
principalmente em Brasília e nas Capitais dos Estados, enquanto
de outro lado, remunera-se mal o Magistrado, não se destina, para
sua função, de meios adequados de trabalho, principalmente no
interior o que torna mais caótica a situação, sem se falar do
paupérrimo número de Magistrados em nosso gigantesco Brasil,
onde temos, cotejando o número de habitantes, um décimo dos
Magistrados existentes, por exemplo, da Alemanha.
Senhoras e Senhores:
Quando fui convidado para, hoje, aqui estar e abordar o
tema ‘Direito Justiça e Participação do Advogado’, procurei no
Conselho Federal obras e matérias afins ao tema para alinhavar
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meus pensamentos e encontrei um texto intitulado “O JUDICIÁRIO
NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS”, sem menção de seu autor.
Trabalho este que abordava desde a Carta de 1824, até a atual
Constituição de 1988, retrata ao fazer uma digressão histórica sobre o assunto “direito e judiciário”, que a situação está em nosso
país cristalizada, desde os tempos dos eminentes Juristas Euzébio
de Queiróz e Nabuco de Araújo. O texto, após abordar cada uma
das Constituições Brasileiras, em sua conclusão assim grafava:
“... Um confronto das sucessivas Constituições que regeram a
vida brasileira parece deixar evidente que os sucessivos textos
constitucionais sob os quais vivemos, em quase dois séculos
de vida independente, nada mais fizeram do que incorporar à
vida institucional do país, em relação ao Poder Judiciário, os
modelos criados, adaptados ou instituídos pelo Executivo que
as Constituintes nada fizeram do que aceitar sem virtualmente
discuti-los. Assim é que a de 1824 simplesmente transplantou
para o Brasil o modelo português, da mesma forma como, com
o advento do federalismo segundo o viés norte-americano, a de
1891 nada mais fez que incorporar as inovações decretadas
durante o governo republicano provisório, em 1890. A Constituição de 34 inspirada no modelo alemão de Weimar, apenas
aceitou, também sem maior discussão, a elevação à dignidade
constitucional, da justiça militar, da mesma forma como a de
1946 incorporou à estrutura judiciária, a justiça do trabalho
criada pelo Estado Novo. Nem mesmo a Constituinte de 88 foi
capaz de se livrar das inovações decorrentes do regime militar,
cujo maior exemplo é a manutenção da justiça militar estadual
de segunda instância.”
Este traço da cultura jurídica do país terminou por refletir no
próprio ordenamento jurídico, cujos principais códigos e consolidações resultaram, com a exceção dos Códigos Penal e de Processo
de 1830 e 1832, do Comercial de 1850 e o do Civil de 1916, de
atos do Executivo. A dificuldade de se modernizar as práticas,
processos e instituições judiciárias encontrou sempre, na resistência do Legislativo, as inovações, a consagração de mudanças muito
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limitadas, através de pequenas alterações que Euzébio de Queiróz,
um dos grandes reformistas brasileiros, denominou de carretilha, o
recurso para consumar pequenas reformas, sem despertar o imobilismo
e o conservadorismo que se tornaram clássicos no Brasil.
A tendência a “constitucionalizar” as estruturas judiciárias, como
de resto ocorreu também com tantas outras instituições jurídicas e
políticas no país, tornou as mudanças cada vez mais difíceis. A
criação de novos Tribunais e a incorporação de novas justiças
especializadas, que se generalizaram, nos últimos 60 anos, dificultaram a modernização face a interesses de segmentos.
As sucessivas pesquisas de opinião apontam, invariavelmente, os poderes do Estado como os de menor credibilidade e
aqueles em que a população menos confia. Mais significativa ainda
é a persistência dos problemas decorrentes da crescente complexidade do sistema legal brasileiro, como o da impunidade a que se
referia Nabuco de Araújo, outro dos grandes reformadores brasileiros, quando apontava para essa circunstância que, um século
após, continua a pôr em risco a própria coesão e a solidariedade
social.
Lamentavelmente, é cada vez mais procedente outra não
menos relevante constatação, quanto ao imobilismo do sistema político brasileiro, diagnosticada pelo Senador Melo Matos que, em
sessão de 16 de março de 1943, concluía com inteira razão ...”o que
eu vejo é que, quando se dá o caso da necessidade, ou quando
aparece a urgência de uma medida, tudo se pode fazer, tudo se
quer fazer e por fim nada se faz; toma-se uma medida interina e
essa fica para sempre, porque, passada a crise se esquece a urgência”. Quase 60 anos após a situação é semelhante.
Num país, em que até boa parte das normas legais se
tornou provisória, talvez seja chegada a hora de, finalmente, trocarmos as meias medidas provisórias e limitadas a maioria delas, por
um grande pacto político que, finalmente, contribua para legitimar as
instituições nacionais, não apenas pelas boas idéias e belas intenções, mas sobretudo por seu procedimento, colocando-as a serviço
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da sociedade brasileira.
O texto, em sua última linha sentencia “ATÉ AGORA, NOS
TEM FALTADO DECISÃO E CORAGEM.”
Afigura-me que apenas falta abordar, nesta noite a última
parte do tema a que me propôs esta instituição de ensino e a valorosa
Subseção de Pato Branco, que é a PARTICIPAÇÃO DO ADVOGADO.
Diga-se desde logo, a advocacia não é neutra, indefinida,
mas um instrumento de aperfeiçoamento jurídico e de transformação da sociedade.
Cabe a nós advogados a ousadia, a utilização de novos
meios e institutos jurídicos procurando sempre em seus postulados
buscar a dignidade da pessoa. Deve procurar sempre a solução
pacífica dos conflitos, buscar a redução das desigualdades sociais,
procurar a adequação maior possível entre a Lei dissociada dos
princípios gerais de direito. Provocar os Juízes com este objetivo é
tarefa e dever dos advogados, que assim estarão contribuindo para
crítica à legislação existente, o aprimoramento da ordem jurídica, o
cumprimento da Constituição e a efetiva realização da Justiça, pois
nós, os advogados, temos a nos diferenciar dentro da Sociedade o
“munus publicum” que caracteriza nossa função perante os demais
concidadãos.
CALHEIROS BONFIM, falando da advocacia, traçou o seguinte quadro ... “ É comum o advogado preocupar-se apenas com
sua profissão, isolar-se em seu escritório, voltado unicamente para
os processos e a clientela, indiferente ao mundo que o cerca. O
profissional que assim procede é meio advogado e meio cidadão”.
Continua o eminente advogado:
“É preciso formar a consciência de que a advocacia é uma
atividade política-jurídica, possui munus público, conteúdo ético
e social, constitui uma forma de participação, de inserção na
comunidade, de opção pela Justiça, de luta pelo direito e pela
liberdade, de tutela dos interesses da sociedade, de defesa dos
direitos jurídicos e princípios fundamentais do homem e da
dignidade do trabalho”.
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O advogado é o palanque mais avançado na defesa da
Sociedade, que consiste em tornar concretos os direitos fundamentais dos cidadãos. A indispensável presença do advogado é que
permite o equilíbrio das relações jurídicas, quer nas composições
das lides, quer na composição dos litígios, contribuindo, decididamente, para a paz social.
Ao dizer-se que o advogado é o defensor da Sociedade,
significa dizer que é através de sua ação positiva que os direitos e
garantias individuais, se efetivam e se concretizam. É, desse modo,
um agente indispensável à paz social. Ele é o primeiro formador da
opinião, o formador da jurisprudência e da ação da justiça. É o elo
criativo, que faz aplicar a abstração da norma ao fato, tem portanto
uma relevante função social.
Ressalte-se que a advocacia brasileira sempre participou
das memoráveis páginas da vida institucional do Brasil, mesmo
antes da criação da Ordem dos Advogados do Brasil, como a
Independência do país, a abolição da escravatura, a proclamação
da República, a produção de nossas Constituições, as lutas contra
o autoritarismo e em favor do estabelecimento de um Estado de
direito democrático; pela ética na política, contra os atos de
improbidade administrativa e de corrupção.
No dizer de FABIO KONDER COMPARATO, “o papel social
do advogado está ligado à própria evolução da noção da cidadania”.
De outro, MIGUEL REALE JÚNIOR, quando da sua posse na
cadeira de titular de Direito Penal na Universidade de São Paulo,
definiu a importância da participação da advocacia no plano constitucional, aliás, a única é a brasileira em todo o mundo. Afirmou o
renomado professor: “Mais que um espírito corporativo de restritas
repercussões classistas, a consagração constitucional da dignidade,
imprescindibilidade, relevância e inviolabilidade da advocacia interessa à plenitude de proteção, à personalidade humana, centro de
valores, fonte de expressão de cultura e seu ponto de convergência.”
A advocacia brasileira luta bravamente para manter suas
prerrogativas o que é seu dever já que as mesmas existem em
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favor da sociedade que dela se socorre.
Há alguns dias, acompanhei a direção da Seccional da
OAB do Rio Grande do Norte para entrega de um memorial ao
Eminente Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ministro Peçanha
Martins, oriundo da classe dos advogados e que ainda não desvestiu
a beca, mas sobrepôs a esta, a toga de Magistrado e defendeu,
naquela ocasião veementemente, as prerrogativas do advogado de
participar, sempre, do julgamento dos processos, em todos os
graus de jurisdição, afirmando que hoje dois terços dos julgamentos
no STJ são realizados de forma monocrática, deles não participando
os advogados o que segundo ele acarreta prejuízo à defesa, com a
supressão da publicidade e do uso da tribuna pelos advogados,
afetando por último, a prestação da justiça.
Em trabalho escrito, o Eminente Ministro citado afirma a
imoportância prática da advocacia no manejo do processo e de
suas prerrogativas:
A presença dos advogados na tribuna conduz, não raro, ao
reexame de votos pré-elaborados pelos Relatores e, sobretudo,
a um melhor exame pelos componentes da Turma ou Seção.
Não foram poucas vezes que tive que proferir novo voto ou de
emendá-lo diante das ponderações tribunícias do advogado. E
não há negar da atenção maior dos julgadores quando na
tribuna está o causídico. Demais disso, a jurisprudência não é
imutável. A inteligência dos advogados, promotores e magistrados conduz invariavelmente à descoberta de facetas antes
desconhecidas e mesmo ignoradas na hipóteses julgadas e
formadora de súmulas.
Este pensamento do Eminente Ministro Peçanha Martins é
bastante significativo quanto à participação do advogado no dizer
do direito pelo Judiciário, aliás, negar a participação do advogado,
lembra-nos a definição do insigne Jurista Prado Kelly: “Só há Justiça
onde possa haver o magistério independente, corajoso e probo dos
advogados. Os Tribunais de onde eles desertem serão menos o
templo do que o túmulo da Justiça.”
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Tendo iniciado citando um mandamento do Decálogo de um
Jurista Uruguaio, Eduardo Couture, encerro com o décimo mandamento do decálogo de nosso patrono Rui Barbosa. Este
dedico aos advogados aqui presentes : “Não ser baixo com os
grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade. Amar a pátria,
estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no
bem.”
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