UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Serviço Social Programa de Pós-Graduação em Serviço Social Camila Silva Brandão PRAGMATISMO E SERVIÇO SOCIAL: elementos para a crítica ao conservadorismo RIO DE JANEIRO Outubro de 2010 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 2 CAMILA SILVA BRANDÃO PRAGMATISMO E SERVIÇO SOCIAL: elementos para a crítica ao conservadorismo Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Serviço Social. Orientadora: Profª Drª Yolanda Guerra Rio de Janeiro Outubro de 2010 Camila Silva Brandão 3 PRAGMATISMO E SERVIÇO SOCIAL: elementos para a crítica ao conservadorismo Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Serviço Social. Dissertação aprovada em ____ de _____________ de _______. Banca examinadora: ______________________________ Profª Drª Yolanda Guerra (Orientadora/ Presidente da banca – ESS/UFRJ) _____________________________ Profª Drª Cláudia Mônica dos Santos (FSS/UFJF) ______________________________ Profª Drª Fátima Grave (ESS/UFRJ) 4 À minha mãe, Carmen, pelo apoio incondicional. 5 AGRADECIMENTOS À minha orientadora, Yolanda Guerra, pelos diálogos que travamos, por tornar o processo de elaboração da minha dissertação mais instigante e desafiador e por estimular a minha constante busca pelo processo de conhecimento. À minha família, pela compreensão e apoio. Em especial em memória de meu pai, por todo o investimento em meus estudos, por ter me incentivado a “ir mais longe”. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, pelo incentivo através da bolsa de mestrado possibilitando minha dedicação exclusiva aos estudos. Aos professores, que sempre nos instigam em nossas buscas teóricas. Aos meus amigos, sempre disponíveis e solícitos a dividir e compartilhar bons momentos; em especial a Nadjara Luana por termos caminhado juntas desde o processo de seleção do mestrado, pelas nossas conversas e debates; a Camila Ottoni, a quem sempre dividi minhas inquietações, pelo companheirismo e amizade; a Hudna, sempre presente e amiga, uma pessoa que admiro pela sua luta e dedicação; a Carolina e ao Caio, sem palavras para descrever o apoio de sempre. A todos que estiveram, de certa forma, presentes desde o início dessa jornada. 6 Mas ele desconhecia Esse fato extraordinário: Que o operário faz a coisa E a coisa faz o operário. De forma que, certo dia À mesa, ao cortar o pão O operário foi tomado De uma súbita emoção Ao constatar assombrado Que tudo naquela mesa - Garrafa, prato, facão – Era ele quem os fazia Ele, um humilde operário Um operário em construção. Olhou em torno: gamela Banco, enxerga, caldeirão Vidro, parede, janela Casa, cidade, nação! Tudo, tudo que existia Era ele quem o fazia Ele, um humilde operário Um operário que sabia Exercer a profissão. (Fragmento do poema “Operário em Construção” 1956 - Vinícius de Moraes) 7 Resumo A dissertação, que ora apresentamos, tem como centro de seu debate a análise do pragmatismo norte-americano e sua relação com o Serviço Social brasileiro partindo de uma crítica da sociedade capitalista. Buscamos questionar a cultura dos resultados imediatos, da negação das teorias, da “relatividade da verdade”, da busca por uma prática vantajosa e utilitária. Nossa hipótese é a de que o conservadorismo pragmático possui elementos de caracterização que se atualizam no Serviço Social brasileiro. A profissão apresenta características do pragmatismo que incidem de forma incisiva configurando uma determinada forma de ser. Nosso objetivo é analisar o conservadorismo pragmático e suas refrações no Serviço Social apresentando seus traços conservadores e sua expressão como um modo de ser e de pensar da cultura norte-americana. Destacamos que nossa preocupação surge da necessidade de entendermos as questões postas ao Serviço Social na contemporaneidade. 8 Abstract The thesis that we are presenting have the center of his debate the analysis of northamerican pragmatism and its relationship with the brazilian Social Work based on a critique of capitalist society. We seek to challenge the culture of instant results from the denial of theories of "relativity of truth," the search for an advantageous and useful. Our hypothesis is that conservatism has a pragmatic characterization elements which update in brazilian Social Work. The profession has features of pragmatism that focus starkly configuring a particular way of being. Our goal is to analyze the pragmatic conservatism and its refractions in Social Work conservatives showing their traits and their expression as a way of being and thinking of northamerican culture. We stress that our concern stems from the need to understand issues pertaining to social service in contemporary. 9 SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................................... 10 1 – As bases do pensamento conservador: elementos para uma compreensão crítica do conservadorismo no Serviço Social ........................................................................................... 19 1.1.Crítica ao conservadorismo: a contribuição de György Lukács ............................................. 20 1.2. O debate da “questão social”: bases para a compreensão da relação do conservadorismo no Serviço Social ............................................................................................................................... 40 1.3. A sociologia em xeque: expressão do conservadorismo ....................................................... 56 2 – O debate do conservadorismo no Serviço Social ............................................................... 69 2.1. A tensa relação do Serviço Social como reformismo conservador ....................................... 70 2.2. O debate do sincretismo: elementos para análise do conservadorismo no Serviço Social .... 75 2.3. O conservadorismo romântico como uma das expressões da ideologia dominante .............. 83 2.4. O debate das duas teses: da compreensão conservadora a compreensão crítica do Serviço Social ............................................................................................................................................ 96 3 – A racionalidade conservadora de origem pragmática: aspectos e características para o debate crítico .............................................................................................................................102 3.1. A leitura de Pogrenbinschi sobre o pragmatismo clássico .................................................. 116 3.2. A experiência como conhecimento: a crítica do pragmatismo ao racionalismo e ao materialismo ............................................................................................................................... 137 Considerações finais ................................................................................................................. 148 Referências ................................................................................................................................ 154 10 INTRODUÇÃO O debate do conservadorismo no Serviço Social foi objeto de diversas análises ao longo da produção bibliográfica da área. Podemos considerar que a preocupação em compreender a relação da profissão com o conservadorismo tornou-se mais latente no período do movimento de reconceituação. Este marco foi importante, pois possibilitou o questionamento das bases tradicionais nas quais o Serviço Social esteve ancorado e permitiu um amadurecimento intelectual de um segmento significativo dos assistentes sociais. No Brasil, a conjuntura dos anos 60 e 70 do século passado apontou para avanços dos movimentos questionadores da ordem social capitalista (reprimidos no período da ditadura militar). Nesse momento, houve um ambiente propício para o desenvolvimento das lutas sociais. Por outro lado, ocorreram perseguições e coerções àqueles que questionavam a tomada do poder pelos militares. Segmentos do Serviço Social se atentaram ao movimento da época e participaram ativamente tanto da militância política contra a ordem social estabelecida quanto voltaram-se para reavaliar os laços conservadores presentes na profissão. A preocupação dessa dissertação não consiste apenas em compreender essa base conservadora, mas sim em sinalizar elementos que nos permitam entender como o conservadorismo se reatualiza e de que forma se expressa no Serviço Social. A análise que pretendemos traçar busca contribuir para problematizar o Serviço Social frente ao avanço de tendências conservadoras na atualidade. Nosso questionamento parte da inquietação de apontar como o Projeto Ético-Político do Serviço Social se estrutura na contracorrente das tendências capitalistas ou como o Projeto Ético-Político do Serviço Social se coloca como uma forma de resistência às tendências conservadoras da ordem social burguesa. É consenso que a profissão deu um salto de qualidade após a década de 1980, o que representou um avanço em sua produção teórico-bibliográfica, em sua perspectiva ético-política e no nível de organização da categoria frente à análise da realidade, o que poucas profissões 11 conseguiram, efetivamente, realizar. Por outro lado, o Brasil é um país que recebe facilmente a cultura imperialista, com poucos questionamentos e críticas; seja pela sua histórica ausência de movimentos questionadores e revolucionários, seja pela sua capacidade econômica de ser explorado pelas ditas “grandes potências” mundiais. Nesse sentido, o modo de ser e de pensar norte-americano possui certa influência nas esferas da vida social, cultural e cotidiana dos brasileiros. Por ser uma profissão inserida nesta realidade, o Serviço Social brasileiro recebe os influxos desta conjuntura. Dessa forma, o centro do nosso debate consiste em abordar o pragmatismo (como uma das influências norte-americana) e sua relação com o Serviço Social brasileiro. Trata-se de questionar a cultura dos resultados imediatos, da negação das teorias, da “relatividade da verdade”, da busca por uma prática vantajosa e utilitária; de criticar as características do pragmatismo. Partimos da hipótese de que o conservadorismo pragmático possui elementos de caracterização que se atualizam no Serviço Social a partir da influência da cultura norteamericana. A profissão apresenta características do pragmatismo que incidem de forma incisiva na profissão configurando uma determinada forma de ser como a busca desenfreada por resultados e intervenções imediatas. Mesmo apresentando estes traços conservadores o Serviço Social se coloca como uma profissão vinculada a um projeto de orientação progressista. Essa contraditoriedade é uma característica própria da profissão que surge como uma demanda do capital e do trabalho. Assim, o Serviço Social brasileiro expressa diversas contradições, sendo esta também uma característica própria de sua constituição. As atuais expressões do pragmatismo também apresentam aspectos diferentes daqueles manifestados originalmente na Escola de Chicago. Essa nova configuração está muito atrelada às requisições do período da financeirização do capital que precisa se valorizar a todo custo. Todos os aspectos que contribuam para o crescimento do capital fictício são considerados como úteis. Essas novas expressões do pragmatismo se distinguem em certa medida das concepções elaboradas por James, Pierce e Dewey; três dos principais precursores do pragmatismo. 12 Compete destacar que não iremos abordar as várias tendências do pragmatismo, e, sim, nos deteremos no chamado “pragmatismo clássico”, ou seja, o originado na Escola de Chicago por James, Pierce e Dewey. Optamos pelo entendimento de sua forma original, pois sabemos que há uma lacuna no Serviço Social quanto ao estudo do pragmatismo e resgatar sua origem e sua fundamentação nos parece de suma importância. O nosso objetivo é analisar o conservadorismo pragmático e suas refrações no Serviço Social apresentando seus traços conservadores e sua expressão como um modo de ser e pensar da cultura norte-americana. Partimos de uma crítica da sociedade em que vivemos, ou seja, através da leitura crítica do modo de produção capitalista. Este modo de produção, que atingiu uma globalidade mundial, propõe um modo de ser que está presente em nossa vida social e cotidiana. Para compreender a realidade da sociedade capitalista e as bases que geraram as condições para a propagação do pragmatismo nos reportamos, nesse momento, a Ianni (1988), pois ele mostra que as análises de Marx apresentam a preocupação de discorrer sobre a historicidade por meio da análise do capitalismo. Através de uma apropriação das relações, dos processos e das estruturas sociais é possível compreender a forma de organização capitalista e seu modo de ser. Segundo Ianni, Marx apontou as tendências do modo de produção capitalista através da perspectiva dialética que consiste em captar “a articulação presente-passado-presente de uma forma singular” (Ianni, 1988, p. 33). Isso significa que Marx parte do presente em suas analises com vistas a uma práxis transformadora para o futuro. A história é compreendida a partir do presente, dos problemas e questões pensadas no presente. Porém, para entender o presente é necessário conhecer o movimento histórico nos reportando ao passado. A pesquisa do passado permite o estudo de estruturas e categorias que são essenciais para conhecer a organização do presente. Por isso, a relação ocorre de forma a articular presente-passado-presente com vistas a um futuro transformador. Para Marx a história é dada a partir do presente, pela análise dialética do presente. O presente do capitalismo ‘repõe’ toda a sua história, na medida em que todo o passado indispensável ao entendimento do presente ‘resurge’ no interior das relações presentes. Toda a história do capitalismo parece surgir no curso da análise da mercadoria. Muitas vezes, temos a impressão de que toda a obra de Marx é o produto de uma ampla, sistemática, demorada e obstinada reflexão sobre o presente. O presente põe e repõe 13 relações, processos e estruturas que exigem a pesquisa do passado (Ianni, 1988, p. 36). As bases de fundamentação e de sustentação do capitalismo estão manifestadas no presente. Ao nos remetermos ao passado é possível desvelar suas origens com mais propriedade para avançarmos na possibilidade de ruptura futura. A história do capitalismo é reposta no presente porque sua estrutura está baseada em uma forma de organização específica do modo de produção capitalista com uma ideologia dominante que se recria e se reinventa em suas crises, mas que mantém seu cerne estrutural. Ianni (1988, p. 37) diz que “o passado que operou na produção do presente aparece na pesquisa do presente e exige a sua pesquisa”. Ao pesquisarmos o presente necessitamos nos reportar ao passado para compreender sua estrutura e fundamentos. As questões e problemáticas aparecem no presente e demandam uma resposta; mas essa resposta não é dada por si só nem é desvelada em sua aparência. É quando surge a necessidade de se estudar o passado a partir das articulações e mediações necessárias que ele estabelece com o presente para atingirmos sua essência. Reportamo-nos ao passado para buscar respostas a problemas ou questões expressas na esfera da vida cotidiana, nas esferas da vida social, da política e da vida econômica. Conforme Ianni (1988) aponta, nos interessa tratar da historicidade do modo de produção capitalista. O autor diz que a análise dialética apresenta a historicidade a partir dos antagonismos produzidos pelas forças produtivas e pelas relações de produção e possuem relação com as contradições do modo de produção capitalista. As relações sociais são uma expressões antagônicas do desenvolvimento capitalista porque elas não se dão de formas iguais entre os sujeitos sociais, já que estes ocupam lugar na sociedade de acordo com a classe social na qual estão inseridos. Ianni (1988, p. 34) diz que “o segredo da historicidade do capitalismo está no divórcio entre a produção e a apropriação do valor”. Isso acontece porque o próprio trabalhador que produz o valor é totalmente alienado do produto de seu trabalho. É ele quem gera a riqueza social no modo de produção capitalista através da apropriação da mais-valia1, mas ele não tem 1 Para uma análise detalhada sobre a mais-valia ver as terceira, quarta e quinta partes do livro “O Capital” in: Marx, Karl. O capital: crítica da economia política. 12ª edição. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988. Em poucas 14 consciência desse processo. A maior parte dos capitalistas percebe a mais-valia como se ela fosse lucro obtido. O trabalhador passa a ser reconhecido pelo seu valor de troca, pois vende sua força de trabalho em troca de um salário. Assim como ocorre com as mercadorias, a força de trabalho é comprada pelo seu valor de uso. O primeiro momento do antagonismo é a alienação do trabalhador em relação à mercadoria. O segundo momento consiste na forma de compreensão da mais-valia. Para o capitalista ela aparece como lucro e para o operário ela aparece como trabalho não pago. Segundo Ianni (1988, p. 35) diz que “essa relação do capitalista com o produto do trabalho operário o leva a tomar o tempo como uma entidade conjuntural, que permeia apenas as relações presentes para aperfeiçoá-las”. Para o capitalismo, o importante é o presente, são os resultados imediatos, as respostas emergenciais para que seja possível acrescentar mais valor ao capital inicialmente investido. A busca é por uma produção mais vantajosa para a ampliação de seu capital inicial. Essa forma de pensar irá se refletir em um modo de ser da sociedade capitalista que faz com que os indivíduos sociais pensem apenas no presente. Esse modo de pensar estará intimamente relacionado ao pragmatismo, por isso podemos tratar o pragmatismo como uma ideologia, já que ele surge atrelado a um propósito: manter a lógica capitalista, especialmente na sociedade norte-americana. Ianni (1988) aponta como possibilidades de ruptura o momento em que a classe operária percebe as contradições e antagonismos de suas relações com o modo de produção capitalista. Nesse instante, a classe operária projeta sua prática política com o fim de mudar a estrutura social, ou seja, ela projeta uma sociedade sobre novas bases e fundamentos. É quando o operário busca entender a historicidade do capitalismo, sem se limitar a compreensão das aparências de suas relações. Esse processo ocorre quando a classe trabalhadora adquire consciência de classe linhas destacamos a seguinte passagem: “na produção de mercadorias, nosso capitalista não é movido por puro amor aos valores-de-uso. Produz valores-de-uso apenas por serem e enquanto forem substrato material, detentores de valor-de-troca. Tem dois objetivos. Primeiro, quer produzir um valor-de-uso que tenha um valor-de-troca, um artigo destinado a venda, uma mercadoria. E segundo, quer produzir uma mercadoria de valor mais elevado que o valor conjunto das mercadorias necessárias para produzí-la, isto é, a soma dos valores dos meios de produção e força de trabalho, pelos quais antecipou seu bom dinheiro no mercado” (Marx, 1988, p.210); e “o processo de produzir valor simplesmente dura até o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um equivalente. Ultrapassando esse ponto, o processo de produzir valor torna-se processo de produzir mais valia (valor excedente)” (idem, p.220). 15 para si, através de um movimento reflexivo e crítico. Este autor diz que: A história não é nem unilinear nem evolutiva; e muito menos cronológica. Fundamentalmente, a historicidade do capitalismo é dada pelo caráter essencialmente antagônico das suas categorias. Por isso é que há ocasiões em que a história parece precipitar-se, num ritmo que sobrepassa o andamento cronológico e em direções radicalmente novas. Ocorre que, de fato, ela se acelera, conforme se agudizam e explicitam as contradições de classes. Reciprocamente, há ocasiões em que a história parece adquirir outro andamento, mais lento. Isto também está relacionado ao caráter, à expansão e à profundidade das contradições de classe (idem, p.38) (grifo nosso). Ianni (1988, p. 39), na direção de Marx, trata ainda da existência e da consciência. Diz que “a consciência social, ao mesmo tempo, exprime e constitui as relações sociais”. O lugar social ocupado e o posicionamento de classe social permitem a manifestação da consciência social. Para o autor a forma como os homens pensam em relação aos outros e em relação a si mesmos define a existência de uma autoconsciência. A compreensão da existência de cada classe social no capitalismo depende da forma como elas se compreendem e como elas percebem uma a outra. Não se completa a compreensão da existência do operário e do capitalista a não ser quando a análise passa pela forma pela qual um e outro se compreendem a si próprios e reciprocamente. Para reconhecer-se como operário, é indispensável que o operário reconheça o capitalista como tal; e vice-versa. Esse reconhecimento é, ao mesmo tempo, uma condição fundamental da existência e negação recíprocas (Ianni, 1988, p.39). A classe operária só existe em relação à classe burguesa e vice-versa. Para se reconhecer como classe é necessário reconhecer a existência da outra classe social e a forma como ela se estrutura. É importante que a análise dialética apreenda as condições de existência social e as formas de consciência. Com base nisso a existência e a consciência possuem uma relação intrínseca, pois as condições de existência determinam o nível de consciência, não de maneira direta e imediata, mas por meio de mediações. A sociedade é compreendida a partir de suas relações sociais, políticas, econômicas, de produção, mas também, como destaca Ianni (1988) a realidade possibilita a determinação da consciência. Isso pode ocorrer devido às condições materiais, sociais, políticas e individuais dos sujeitos históricos. Por isso, o autor trata da relação das ciências com a consciência. As formas de consciência constituem-se a partir do lugar ocupado pelos sujeitos nas relações nas quais estão inseridos. “A finalidade precípua das idéias, conceitos, doutrinas ou teorias é exprimir e constituir 16 as relações sociais” (idem, p. 41). Ianni (1988) também destaca a importância de distinguir a concepção de essência da concepção de aparência. Muitas vezes as coisas aparentam ser algo diferente ou superficial de sua essência. Por isso, é importante uma análise dialética já que no cotidiano as coisas não aparecem transparentes, mas são escamoteadas. E por termos essa visão aparente das coisas, por estarmos imbuídos da ideologia capitalista, prevalece a perspectiva burguesa da compreensão das relações estabelecidas socialmente. “Na consciência burguesa, a maior parte dos problemas tende a ser equacionada a partir do princípio da mercantilização geral das relações, pessoas e coisas” (idem, p. 42) (grifo nosso). Essa forma de consciência ocorre porque as mercadorias expressam o produto do trabalho do operário e a fonte de riqueza do capitalista. Há uma impressão aparente de que a mercadoria final é a principal parte do processo de produção, pois ela será vendida no mercado por troca de um valor monetário. Importante destacar que para o modo de produção capitalista a mercadoria aparece como o principal resultado de todo seu processo. Nesse sentido, o que pesa no resultado final é a utilidade das mercadorias, seu valor de uso e sua funcionalidade imediata. Assim, a tendência é transformar tudo que gira em torno da produção capitalista em mercadoria, inclusive as relações sociais. Essa leitura de Ianni nos permite afirmar que o debate que travaremos perpassa por uma compreensão da estrutura do modo de produção capitalista e de seus processos constitutivos. Não é possível compreendermos o Serviço Social de forma isolada de toda essa dinâmica e, por isso, apresentamos essa dissertação de forma a articular a análise da estrutura social do capitalismo, passando pelo Serviço Social, até chegarmos ao debate do pragmatismo. Também é necessário destacarmos que mesmo nos reportando ao surgimento do pragmatismo e sua forma clássica, nossa preocupação parte da necessidade de entendermos as questões postas ao Serviço Social na contemporaneidade, especialmente ao que diz respeito às influências conservadoras como a pós-modernidade. A partir da análise da leitura de Ianni reconhecemos a relevância de buscarmos no passado os fundamentos do conservadorismo para entender essa relação presente na profissão, assim como para propor possibilidades de 17 intervenção. Cabe destacar, que minha aproximação com o tema do pragmatismo não provém de inquietações recentes, ela se manifesta desde o período da graduação, especialmente com minha inserção na iniciação científica através do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre os Fundamentos do Serviço Social na Contemporaneidade – NEFSSC – que estimulou minha capacidade crítica e questionadora e foi o grande impulso para aprofundar meus estudos e culminou na elaboração do estudo sobre a modernidade e a pós-modernidade para o meu trabalho de conclusão de curso na graduação e, principalmente, no desejo de aprofundar meus estudos na pós-graduação. Dessa forma, no primeiro capítulo intitulado “As bases do pensamento conservador: elementos para uma compreensão crítica do conservadorismo no Serviço Social” temos como objetivo abordar uma leitura crítica da sociedade capitalista questionando seus elementos conservadores e sua base de sustentação. Traremos para o debate a análise de György Lukács sobre a crítica ao conservadorismo na sociedade capitalista, sobre seu modo de pensar, sobre a ideologia dominante. A partir da leitura que o autor realiza da obra de Marx podemos destacar o surgimento de algumas manifestações e propostas de aplicação de conhecimento como funcionais à ideologia que sustenta as bases do capitalismo. Por fim, versaremos sobre o surgimento da sociologia como uma expressão dessa forma de pensar que produz e reproduz a lógica da estrutura da sociedade burguesa. Apontaremos algumas questões abordadas por Gouldner quanto a sociologia acadêmica e a cultura norte-americana. Sua análise nos fornece aportes para atrelarmos o surgimento da sociologia ao aparecimento do pragmatismo, ao considerarmos como expressões de um mesmo contexto societário, ou seja, ambos defendem interesses que permitem justificar as bases de sustentação do modo de produção capitalista. Por fim nesse capítulo, nos reportamos ao debate da “questão social” e sua relação com o surgimento da profissão. Consideramos a “questão social” como uma expressão das consequências oriundas da relação capital/ trabalho no modo de produção capitalista. Por ser um debate relevante a compreensão do significado da profissão e de sua relação com o conservadorismo, abordamos diversos autores que tratam da “questão social” e as diversas perspectivas do debate. No segundo capítulo apresentaremos “O debate do conservadorismo no Serviço Social”. 18 Apresentaremos as bases da relação da profissão com o pensamento conservador. Trataremos das contribuições dos autores que partem do estudo do Serviço Social através de uma leitura crítica da sociedade capitalista analisando as tensões pelas quais a profissão passou e passa em sua relação com o pensamento conservador e a apropriação da perspectiva marxista. De tal modo, nos baseamos nas leituras de Iammamoto sobre o reformismo conservador, de Netto sobre o sincretismo, de Machado sobre o conservadorismo romântico e de Montaño sobre o debate das duas teses no Serviço Social. Consideramos importante dizer que há outros autores que tratam do conservadorismo na profissão, assim sinalizamos uma síntese do debate apresentado considerando os elementos que nos permitem pensar a relação do Serviço Social com o pragmatismo. No terceiro capítulo abordaremos “A racionalidade conservadora de origem pragmática: aspectos e características para o debate crítico”. Realizamos uma aproximação à discussão do pragmatismo a partir da leitura de Pogrenbinschi. Consideramos que há uma lacuna no Serviço Social quanto aos estudos relacionados ao pragmatismo, assim nossa proposta foi realizar um panorama geral do debate, das características e da origem do pragmatismo. Neste capítulo esperamos oferecer um aporte inicial para a crítica ao conservadorismo pragmatista, especialmente no trato da relação dessa expressão ideológica no Serviço Social. Diante da estrutura apresentada não pretendemos levantar conclusões sobre o debate que apresentamos e sim algumas considerações observadas ao longo das leituras que realizamos, pois, sabemos que iremos destacar notas preliminares acerca de um assunto tão denso que requer uma leitura de um aporte teórico crítico capaz de permitir uma apreensão do significado do pragmatismo na sociedade capitalista. Ainda que nos pareça distante, o pragmatismo se expressa com uma intensidade cada vez maior quando se exige a busca por resultados imediatos, a exigência desenfreada da prática pela prática, a necessidade de se buscar uma utilidade teórica, a relatividade da verdade, a negação práxis. Se o debate que apresentamos instigar a busca por um aprofundamento deste estudo consideraremos que nossa proposta tenha atingido seu objetivo. 19 1 - As bases do pensamento conservador: elementos para uma interpretação crítica do conservadorismo no Serviço Social Este capítulo visa apresentar algumas analises tanto de autores que possuem como preocupação estudar o Serviço Social, como de importantes pensadores da área da filosofia e das ciências humanas e sociais. A leitura que iremos fazer desses autores não esgota o debate do conservadorismo, mas permite apresentar um subsídio para a compreensão de seu significado. Iniciaremos tratando do pensamento de György Lukács analisando a estrutura da sociedade capitalista e seus elementos conservadores. Nossa preocupação é pontuar a análise crítica de Lukács, como ele percebe a cultura norte-americana através de seu modo de ser e de pensar colocando os Estados-Unidos como centro da potência mundial hegemônica no capitalismo. Através de suas elaborações poderemos sinalizar os traços de imediaticidade, de individualização, a busca pelo conhecimento utilitário no qual o modo de produção capitalista se baseia e que se caracterizam como aspectos do pragmatismo. Por fim, abordaremos a consolidação da sociologia acadêmica como uma expressão da necessidade do pensamento capitalista produzir conhecimento que seja funcional a sua estrutura para reprodução de sua ordem social. É da base da constituição da sociologia acadêmica que emanará as possibilidades de determinadas formas de pensar contribuindo para a configuração da lógica capitalista, como é o caso do pragmatismo. Dessa forma, apresentaremos o pensamento de Gouldner para analisarmos a sociologia acadêmica e sua relação com nosso objeto de estudo. Ainda que saibamos das críticas feitas e da pouca proximidade que Gouldner possui com o marxismo, não desmerecemos sua análise visto que ela apresenta uma importante apreensão da constituição da forma de ser e de pensar da sociedade norte-americana. A partir destas considerações resgataremos o debate sobre a “questão social” destacando a perspectiva crítica e a perspectiva conservadora. Iremos apresentar o debate a partir de diversos autores, principalmente no Serviço Social. Dessa forma poderemos expor a crítica do surgimento 20 da profissão e entender a relação do conservadorismo no/ do Serviço Social. 1.1. Crítica ao conservadorismo: a contribuição de György Lukács Lukács, baseado em uma apreensão da teoria marxiana, realizou a crítica a sociedade capitalista e a seus traços conservadores. O autor nos possibilita uma leitura densa e crítica, pois tem como fonte teórica a ontologia do ser social de Marx. Para ele, todo intelectual que busque uma análise, de forma séria e crítica, da realidade na qual vive, deve se apropriar de um referencial teórico metodológico marxiano. Essa apreensão parte da preocupação com “sua própria concepção de mundo e do desenvolvimento social, particularmente a situação atual, a sua inserção nela e seu posicionamento frente a ela” (Lukács, 2008, p. 36). Lukács parte da análise de Marx, pois ele elaborou uma teoria da mais-valia, uma concepção de história como a história da luta de classes, além de demonstrar a existência da sociedade dividida em classes sociais antagônicas, de interesses divergentes. Ou seja, Marx apresentou uma teoria a partir de uma perspectiva dialética baseada numa noção de totalidade e de práxis. Ele realizou uma análise dos problemas do presente, mas sempre resgatando o passado histórico com o objetivo de atingir um futuro transformador, que superasse a sociedade capitalista. A partir desta análise, Lukács (2008) demonstrou a real articulação entre teoria/ prática e a existência de uma práxis revolucionária. A intensidade de seu compromisso e da apropriação da obra de Marx lhe permitiram entender que a realidade é sempre mais complexa e dinâmica do que a capacidade do homem de apreendê-la. Sua apropriação de Marx possibilitou uma análise consistente ao atingir a compreensão de que a teoria revolucionária torna-se vazia sem uma prática que a acompanhe e esta articulação só torna-se possível através da práxis. Esse entendimento parte da contribuição de Marx que se propôs a realizar a crítica da sociedade capitalista e a busca do pleno desenvolvimento do homem. Sua análise é rica em detalhes da história, da apreensão das contradições capitalistas, das lutas de classes, do trabalho como 21 expressão do livre desenvolvimento do homem e como direção de sua existência - mas que apresenta formas degradantes e alienantes no capitalismo. A transformação desta realidade só é possível através de uma apropriação crítica dialética e uma perspectiva de totalidade, mas não apenas, é necessário transformar essa realidade através da ação dos homens. O materialismo dialético, a doutrina de Marx, deve ser conquistado, assimilado, dia a dia, hora a hora, partindo-se da práxis. Por outro lado, a doutrina de Marx, na sua inatacável unidade e totalidade, constitui o instrumento para a intervenção prática, para o domínio dos fenômenos e de suas leis. Se separarmos desta totalidade um só elemento constitutivo (ou, simplesmente, se o descurarmos), novamente teremos rigidez e unilateralidade. Se não apreendermos, nesta totalidade, a relação entre seus momentos, perderemos o chão da dialética materialista (Lukács, 2008, p. 41). Lukács também chamou a atenção para o fato de que as ciências naturais tiveram amplo espaço favoráveis a seu desenvolvimento, mesmo apresentando conflitos e crises, mas seu progresso era uma questão tão importante para o desenvolvimento capitalista que ela foi amplamente incentivada e estimulada. Por outro lado, no campo das ciências sociais, a política e a filosofia tiveram dificuldades de expandir-se. Isso ocorreu, e de certa forma ainda ocorre, porque para o capitalismo é importante o desenvolvimento das forças produtivas, e para tanto, são necessários estudos nas áreas da física, matemática, química, enfim, na área das ciências naturais. Quanto aos estudos desenvolvidos sobre as relações humanas, o incentivo capitalista ocorre apenas quando há interesse em desvendar os processos de exploração do capitalismo com o objetivo de aprimorar as formas de dominação e alienação. O investimento de pesquisas na área das ciências humanas não ocorre no sentido de desvendar as bases do sistema capitalista. Interessa apenas o investimento que permita manipular e incentivar o homem ao consumo criando constantes e novas necessidades. Para o capitalismo não interessam estudos sobre as relações humanas no sentido de tornar o homem emancipado e independente, e nem interessa as pesquisas que possuem objetivo de desvelar os processos de exploração. Nesse sentido, o capitalismo se desenvolve a partir de suas próprias leis2. Estas se 2 Lukcás (2008, p. 62) acrescenta que “Marx formulou tais leis mais corretamente que os teóricos da sociedade burguesa”, ou seja, ele as compreendeu em sua essência e totalidade a partir da perspectiva da qual defendiam: a classe burguesa. E mais, “a lei jamais opera diretamente, sem a superação de contradições dialéticas, e até pode ocorrer que, em certos casos, não atue em sua direção fundamental, mas, de fato, seja temporariamente travada por condições desfavoráveis” (Lukács, 2008, p. 56). 22 desenvolvem de acordo com os interesses da sociedade em questão postos pela classe dominante. Basta ressaltar que para o capitalismo é importante seu desenvolvimento a partir de suas próprias leis, mas ele necessita da ideologia para obter aceitação na sociedade. Na fenomenalidade da apreensão da lógica capitalista, o mercado aparece como um “modelo universal de toda práxis humana” (Lukács, 2008, p. 101). A mercadoria aparece de forma fetichizada e cria novas necessidades de consumo para que novos produtos possam ser produzidos e vendidos no mercado capitalista. As propagandas comerciais parecem apresentar produtos inovadores e de utilidade necessária. Rapidamente um produto entra em circulação e passa a ser um falso artigo de necessidade para a vida humana. Esse comportamento consumista e utilitarista, de compra de produtos a partir de sua utilidade para a vida cotidiana, passa a ser cobrado também na vida pública e nas relações sociais. Todo conhecimento produzido no sentido de fortalecer essa lógica será útil para fomentar o domínio capitalista sobre as esferas da vida humana. Com efeito, as relações sociais do capitalismo manipulado, a busca de prestígio através do consumo que ele necessariamente estimula, tornam esta relação [do homem com a mercadoria] extremamente problemática até mesmo para o mercado. A manipulação sutil consiste precisamente em sugerir aos compradores a aquisição de uma determinada mercadoria de tal modo que cada um deles imagine que a posse de tal mercadoria é o resultado de uma decisão livre, ou melhor, a expressão da própria personalidade (Lukács, 2008, p. 101). Ao destacar a relação teoria/ prática, diz que no plano do cotidiano há uma tendência a “relacionar imediatamente os fundamentos da teoria com os problemas do dia-a-dia” (Lukács, 2008, p. 58). Essa relação imediata é própria das exigências da cotidianidade que não requer a realização de mediações ou de críticas, que permitam buscar a essência e o fundamento das coisas. Quanto a ideologia e a necessidade de uma relação com o compromisso prático, Lukács destaca, que existe uma ideologia com fim de manter os interesses da classe dominante, mas também se expressa como fruto de conflitos. É preciso entender ideologia em seu exato sentido marxista. No prefácio à Contribuição à crítica da economia política, as formas ideológicas são definidas como o meio social que permite ‘aos homens conceber este conflito [no nível da economia] e levá-lo até o fim’. Nesta definição, chama atenção a duplicidade de sua dialética interna. Por um lado, os conflitos a resolver se formam em função da lei necessária objetiva que faz surgir 23 contradições entre forças produtivas e relações de produção; por outro, e ao mesmo tempo, toda ideologia é um conjunto de meios através dos quais os homens tornam-se capazes de tomar consciência de tais conflitos e de enfrentá-los na prática (Lukács, 2008, p. 142). O autor prossegue dizendo que o desenvolvimento das forças produtivas também acarreta em implicações aos conflitos ideológicos. Ele demonstra que o processo de constituição e expansão do capitalismo aparece como um processo de democratização constituído de determinada ideologia. Ao mencionar Marx, Lukács demonstra que a ideologia é uma forma de travar a luta no interior dos conflitos que se manifestam na esfera econômica e social. Como a sociedade de classes produz conflitos ela apresenta uma contínua batalha ideológica. Na leitura de Lukács (2008) Marx considera que quando uma ideologia desaparece significa que ocorre um processo socialmente determinado que apresenta uma movimentação de acordo com a função do desenvolvimento social. Ou seja, uma ideologia pode ser superada através de um processo social e histórico e não desaparece abruptamente. Assim, na sociedade capitalista a ideologia dominante tem relação com uma determinada forma de ser de acordo com interesses de uma classe específica. A ideologia deve sempre ter um fundamento material, o que naturalmente não anula sua ação prática como potência social, mas, ao contrário, reforça-a extensiva e intensivamente, emprestando-lhe uma base real no interior do concreto serprecisamente-assim (Lukács, 2008, p 182). Em suas análises, Lukács destaca que após a ascensão da burguesia ao poder não tardou para que ela se mostrasse como uma classe que apresenta um projeto societário voltado para si mesma. O autor destaca um pensador burguês que considera relevante para apresentar a crise da filosofia burguesa. Segundo Lukács (2008, p. 72) Sartre afirmou que “toda a ciência burguesa se encontra em crise, que a filosofia burguesa não está em condições de criar novos conceitos nem de promover de modo exitoso o progresso científico”. Lukács acrescenta que mesmo sendo um pensador burguês, Sartre afirma que a única concepção de mundo capaz de desenvolver uma ação com resultados mais profundos seria o marxismo, mas que este não o fez, pois, segundo sua crítica, o marxismo não foi capaz de produzir nenhum trabalho cientifico de fôlego para atender a tais expectativas. 24 Depois da guerra, a ideologia burguesa não mais foi capaz de dar vida a uma concepção de mundo de tal magnitude. O fato de ser precisamente Sartre a proclamar a crise da filosofia burguesa, de ser precisamente ele a indicar no marxismo o caminho de resolução desta crise, tem um enorme significado, de ressonância internacional 3 (Lukács, 2008, p. 73). Lukács tenta demonstrar como o pensamento burguês entrou em crise e apresentou-se de forma decadente. Aquela classe social, que buscou superar o feudalismo em prol da liberdade, da razão e da justiça humana em busca da emancipação do feudalismo - reivindicando pela razão humana - mostrou-se, a partir de então, como uma classe social em busca de seu enriquecimento pessoal e que, para atingir seus objetivos pessoais, universalizou seus interesses pessoais. Uma crítica realizada pelo autor está na compreensão de que “na teoria dos clássicos do marxismo, o ser-precisamente-assim dos fenômenos histórico-sociais e as leis que os regem, formuláveis em termos universais, não constituem nunca antíteses metodológicas, mas, ao contrário, formam uma indivisível unidade dialética” (Lukács, 2008, p. 84). Nesse aspecto manifesta-se sua crítica: não basta ser marxista, ser adepto desta perspectiva, é necessário compreender categorias e direções nas quais se baseiam a perspectiva marxista. Lukács (2008) trata, especificamente, da importância de se compreender a categoria de “ser-precisamenteassim”. Esta compreensão é tão importante quando o estudo das particularidades e das universalidades. Ele explica essa categoria da seguinte forma: o ser-precisamente-assim é, antes de mais nada, uma categoria histórico-social, ou seja, o modo necessário pelo qual se apresenta o jogo contraditório das forças socioeconômicas que operam em determinado momento no interior de um complexo social situado num estágio específico de seu desenvolvimento histórico (Lukács, 2008, p. 84). Quanto a esta contraditoriedade das forças socioeconômicas, Lukács (2008) irá destacar como fato importante na Revolução Francesa a relação estabelecida entre Estado e sociedade civil, característica até então inexistente nas sociedades anteriores. Essa relação objetiva tornar a vida política como um interesse de toda população e não mais de um grupo ou segmento restrito da sociedade. Assim, a “batalha ideológica” realizada pela burguesia em busca do “reino da razão” passa a constituir a base da vida social. Mesmo que tenha ocorrido uma busca pela 3 Aqui, Lukács (2008) trata da Guerra Fria. 25 unidade da relação entre Estado e sociedade civil, os interesses defendidos não eram sempre os mesmos. Lukács destaca que “o Estado de toda sociedade é uma arma ideológica para travar os conflitos de classe segundo o modo de pensar da classe dominante” (Lukács, 2008, p. 92). Posição, esta, apresentada por Marx no “Manifesto do Partido Comunista”. Na leitura que realiza de Marx, Lukács (2008) destacou que o idealismo produzido em torno do Estado e da vida política, após o feudalismo, buscou uma realidade baseada no materialismo da sociedade civil. Ou seja, esse idealismo deveria ser ancorado nas expressões reais de relação entre sociedade civil e Estado, como foi o caso das Constituições estabelecidas posteriormente. A realidade capitalista estabeleceu um patamar no qual o sujeito da práxis é um homem egoísta, incapaz de se sobrepor a particularidade. Essa característica do capitalismo afasta as possibilidades do homem se realizar em seu sentido mais amplo, em se constituir como homem genérico. A sua vida material se opõe a sua vida genérica e isso o distancia de sua essência emancipadora. Lukács (2008) tratou da concepção de liberdade e de igualdade para demonstrar as bases das relações sociais na sociedade capitalista. Vale destacar que, nessa conjuntura, ambas as concepções estão, de certa forma, atreladas a circulação de mercadorias e ao aspecto econômico. Isso significa, que liberdade e igualdade possuem um sentido específico dentro do marco capitalista, que pouco está relacionado a liberdade e igualdade humana, a emancipação dos homens. “O que hoje se costuma chamar de liberdade é o resultado da indiscutível vitória das forças capitalistas” (Lukács, 2008, p. 94) (grifo nosso). A liberdade nos marcos do capitalismo tem um sentido restrito, mas que apresenta uma falsa aparência de ampla liberdade. No entanto, ela está sempre atrelada ao aspecto econômico. Isso ocorre porque nos marcos do capitalismo a liberdade está, inicialmente, atrelada a possibilidade do homem poder vender livremente sua força de trabalho a outro homem detentor dos meios de produção. Ou seja, ele não é mais um escravo obrigado a sofrer determinada condição de sobrevivência, ele pode optar se vende ou não sua força de trabalho em troca de um salário. Essa liberdade é restrita porque o homem precisa vender sua força de trabalho para sobreviver e há uma série de fatores que implicam na forma como esse processo ocorrerá. 26 Vejamos: é sabido que na sociedade na qual estamos organizados, todos possuem o direito à igualdade e a liberdade. Características, inclusive, que diferenciam a sociedade capitalista de outras formas de organização social como o escravismo e o feudalismo. Mas a liberdade está associada ao trabalho. O homem passa a ter “liberdade” de escolha, pois ele decide se quer ou não trabalhar para determinado indivíduo possuidor dos meios de produção. Nas demais sociedades, o homem era forçado a trabalhar, independente de sua vontade. No escravismo, a relação se estabelecia entre “dono” e “escravo”. A relação era degradante, inclusive, o senhor, dono dos escravos, tinha “direito” a impetrar castigos severos, desumanos, degradantes. No feudalismo, o homem trabalhava para o senhor feudal em troca de casa e comida. A grande diferença no capitalismo é que o homem passa a vender sua força de trabalho, ele recebe um valor monetário e agora a relação passa a ser entre patrão e empregado. Essa aparente liberdade escamoteia as reais relações capitalistas que não se expressam na sua essência. O fato é que a essência humana é ligada a totalidade real das relações sociais e ao desenvolvimento dessas relações. Lukács (2008, p.98) parte da afirmação de que “a vida genérica do homem está em contradição com sua vida material [isso] implica uma inter-relação ontológica e, por isso, histórico-social entre o indivíduo e o gênero”. A unidade entre individualidade e genericidade não é naturalizada, mas sim resultado de um processo sócio-histórico. Para tanto, é necessário que a sociedade se socialize de forma que o homem saia de sua origem animal, de sua socialização primária para atingir sua genericidade. De certa forma, é o capitalismo que inicia esse processo rumo a genericidade dos homens porque ele permite o desenvolvimento das forças produtivas. Toda a análise apresentada por Lukács demonstra a relação da sociedade capitalista com as possibilidades de elevação social. O capitalismo possui limites reais em suas estruturas que não permitem superar barreiras como a desigualdade, a miséria, o individualismo. A base da sociedade capitalista está em fomentar mais valor no processo de produção, em multiplicar as mercadorias para o consumo, em criar necessidades, muitas vezes superficiais. Assim, Lukács (2008) esclarece de forma clara uma categoria muito constante na relação entre indivíduo e sociedade capitalista, que é exatamente a categoria do “ter”. Esse “ter”, associado ao consumo 27 desenfreado, a posse de bens materiais; acarreta em consequências para as relações sociais entre os homens. “Não é casual que o fenômeno da alienação, ao mesmo tempo econômico, social e humano-individual (...) tenha hoje se tornado um problema sócio-humano universal” (Lukács, 2008, p. 100) (grifos nossos). No capitalismo a liberdade e a igualdade não desaparecem, mas elas adquirem formas cada vez mais próximas dos conteúdos ideológicos da classe dominante. Quanto mais a liberdade está atrelada aos ideais originários da burguesia, mais ela assume uma forma vazia e repleta de fetiche. Assim, o fetiche da liberdade não pode estar vinculado apenas ao aspecto ideológico, ele passa a ter que ser operado, efetivado na vida cotidiana. Ao citar Marx, Lukács destaca que o aspecto econômico é extremamente importante na análise de qualquer sociedade – apesar de não ser o único relevante. Isso significa que a liberdade do homem está vinculada a sua condição diante da realidade econômico-social. Para que essa liberdade de fato seja exercida é necessário criar condições de igualdade econômica entre os homens, diferente do que o ocorre no sistema capitalista que gera a desigualdade social. Cabe destacar uma citação do autor que apresenta uma síntese das questões apontadas: A economia é e permanece o processo de reprodução material da sociedade e dos homens, processo no qual o indivíduo, no final das contas, resulta ser um objeto; sua consciência não vai além da compreensão o mais possível correta das possibilidades objetivas mais favoráveis. Neste terreno, não há espaço para atividades que funcionem como atividades do gênero humano tomado como fim em si mesmo. Mas isso não anula o salto que tem lugar quando se socializam os meios de produção: em primeiro lugar, elimina-se assim o fenômeno social pelo qual indivíduos ou grupos conseguem pôr as funções sociais da economia a serviço de seus interesses privados egoístas; e, em segundo, em estreita conexão com este primeiro ponto, surge a possibilidade objetiva de pôr conscientemente o desenvolvimento econômico a serviço dos interesses superiores do gênero humano, o que, no quadro da propriedade privada dos meios de produção, sempre foi, quando muito, um subproduto não intencional (Lukács, 2008, p.113). A estrutura da sociedade na qual o homem está inserido tem como necessidade adaptá-los a determinados tipos de comportamentos coerentes com a ideologia dominante de uma época. Em sua análise marxista Lukács também destaca que as grandes decisões históricas são realizadas de acordo com a práxis relacionada à vida cotidiana dos homens, ou seja, não são apenas tomadas a partir de uma leitura teórica, mas também de problemas em torno da vida cotidiana. Principalmente, as grandes decisões estão articuladas a mudanças de fato através da ação 28 humana. Lukács (2008) irá tratar da luta contra as tendências burocráticas. A burocracia é identificada como uma tendência que consolida o passado em detrimento do presente. A busca pelo passado ocorre pela rotina que se estabelece nas práticas burocráticas que não requerem nenhum rigor ou relação com atitudes presentes ou atualizadas. Este é um aspecto brevemente abordado em suas análises, mas não menos importante. Para o capitalismo as práticas burocráticas terão uma importância essencial para a organização estatal, muito em decorrência dessa busca pelo passado e pela manutenção do instituído pela ideologia dominante. Esse debate tem relação com a leitura marxista do trabalho feita por Lukács (2008) porque em alguns momentos a exigência é por um trabalho burocratizado ou ainda a burocracia instituída em algumas esferas da produção dificultam uma apreensão crítica do modo de produção capitalista. Quanto mais elevada for a forma econômica assumida pelo trabalho, mais se dará atenção para aqueles que vivem da venda de sua força de trabalho, ou seja, os trabalhadores. No capitalismo, o trabalho possui um sentido puramente econômico. Marx defende que o trabalho para ser emancipador não pode estar submetido a qualquer tipo de divisão que gere relações desiguais. O trabalho é uma questão central quando se trata da humanização do homem. Sobre o marxismo recaem diversas críticas, dentre elas a concepção de verdade. Lukács (2008) nos aponta com precisão crítica a importância do método marxista. O marxismo afirma a existência, para cada questão, de apenas uma resposta correta, aquela adequada à realidade objetiva. Mas tal resposta não se forma a partir das deliberações de uma instância qualquer, mas por meio da pesquisa, da análise etc.; e, quando formulada, deve ser criticamente avaliada com exatidão através de discussões, o que faz com que seja necessário frequentemente um certo tempo antes que uma verdade seja universalmente reconhecida como tal. (Lukács, 2008, p.188). Lukács (2008) também trabalha com a concepção de racionalismo e irracionalismo. Destaca que esta análise não deve ser feita de forma isolada e sim histórica, relacionada a uma junção de teorias irracionalistas que predominaram na esfera social e moral. Para o autor a crise do racionalismo decorre do triunfo da Revolução Francesa, precisamente porque esta vitória permitiu a vigência da Revolução Industrial e, consequentemente, conduziu às contradições capitalistas. “A conseqüência deste processo, do ponto de vista ideológico, foi a instauração de 29 uma situação que implica, simultaneamente e inseparavelmente, uma realização e uma refutação das idéias do Iluminismo” (Lukács, 2008, p.27). Ao tratar da crise da democracia Lukács demonstra sua origem através da contradição entre liberdade e igualdade. Ao serem instauradas na vida social, a liberdade e a igualdade apresentaram seu caráter contraditório e se expressaram nas esferas político-sociais do século XIX. Ou seja, foi a formalização da igualdade e da liberdade na vida social que aguçou tais contradições e gerou a crise ora destacada. A democracia, da qual o projeto de modernidade de característica emancipadora trata, não pode estar ligada ao capitalismo, por isso o motivo desta crise. Lukács (2007) irá abordar a conformação das relações sociais a partir do desenvolvimento da sociedade de classes, ou seja, do capitalismo. Ele destaca que quanto mais se desenvolve a teoria econômica capitalista, mais as relações são caracterizadas pelas consequências do viés explorador. A proposta capitalista é de que o homem necessita sempre de uma dimensão concreta para configurar as coisas e as relações humanas, trata-se de atribuir características da mercantilização e das mercadorias a todas as esferas da vida. Essa característica não aparece de forma clara e sólida, ela aparece de forma fetichizada. As formas de exploração do homem pelo homem manifestam-se fetichizadas, sua socialização aparece como uma forma de destruição de sua personalidade. Todos estes aspectos acarretam em uma direção: a ideologia irracionalista. A presença e o vigor do irracionalismo estão relacionadas a condições e espaços propícios para a emergência do questionamento do racionalismo. Ao tratar da concepção irracionalista, Lukács (2007, p. 41) diz que: A ideologia irracionalista nasceu opondo-se à Revolução Francesa e, por isso, dirige-se energicamente contra o conceito de progresso, contra a necessária destruição do velho pelo novo. Constitui, desde o início, uma defesa da velha sociedade aristocrática – e não só no plano político. Está voltada ideologicamente contra o reino da razão postulado pela Ilustração e quer tão-somente manter as instituições etc., simplesmente porque parecem vivas, independentemente do seu caráter racional ou não. Trata-se, pois, de um repúdio da razão como critério. A independência assim estatuída das instituições, tradições etc. em face da razão converte-se em concepção positiva: justamente porque tais instituições, tradições etc., representam algo mais elevado que qualquer racionalidade, nelas se manifesta o núcleo supra-racional ou o irracional da realidade em geral. A propagação do irracionalismo decorre da decadência ideológica que se estabelece 30 devido ao distanciamento da cultura em relação aos interesses da classe trabalhadora. Com o avanço do imperialismo há um estímulo a ideologias decadentes que incitam o embrutecimento das massas. O período da decadência ideológica se inicia exatamente com o avanço do imperialismo quando filosofias reacionárias ganham espaço e são oriundas das conquistas científicas. Lukács (2007) também trata do método marxista. Destaca que Marx e Engels se empenharam para constituir o materialismo dialético. A filosofia marxista prioriza o conteúdo sobre a forma, por isso, a tarefa da filosofia marxista é estabelecer uma dimensão dialética em relação ao conteúdo e à forma. Isso não significa desconsiderar a forma e sim considerar o conteúdo sobre a perspectiva de totalidade4 através de um critério concreto e histórico. O marxismo apresenta inovações na leitura da realidade e na perspectiva de apropriação desta realidade. A práxis ocupará um lugar de destaque e um lugar inovador. A concepção filosófica marxista do mundo é algo novo, possui como herança: “a grande filosofia materialista dos séculos XVII e XVIII, o desenvolvimento do método dialético na filosofia clássica alemã, a economia política até Ricardo, a dissolução de sua escola, os clássicos do socialismo utópico, os grandes historiadores do início do século XIX e as correntes democrático-revolucionárias na Rússia” (Lukács, 2007, p. 68). Ao tratar do método e da dialética marxista, Lukács (2007) resgata a contribuição de Hegel e realiza uma crítica da perspectiva e da leitura de Marx. Aponta Hegel como o precursor da dialética materialista de Marx. Ao analisar a contribuição de Hegel, Lukács sinaliza para a própria dialética que envolve a importância de resgatar o passado para compreender o presente. Diz que a filosofia é importante para a compreensão do movimento da história, dessa forma, o presente pode necessitar de um resgate de tendências do passado. Ao ser considerado o precursor 4 Lukács (2007, p. 59) explica a dialética da totalidade da seguinte forma: “A verdadeira totalidade, a totalidade do materialismo dialético, (...), é uma unidade concreta de forças opostas em uma luta recíproca; isto significa que, sem causalidade, nenhuma totalidade viva é possível e, ademais, que cada totalidade é relativa; significa que, quer em face de um nível mais alto, quer em face de um nível mais baixo, ela resulta de totalidades subordinadas e, por seu turno, é função de uma totalidade e de uma ordem superiores; segue-se, pois, que esta função é igualmente relativa. Enfim, cada totalidade é relativa e mutável, mesmo historicamente: ela pode esgotar-se e destruir-se – seu caráter de totalidade subsiste apenas no marco de circunstancias históricas determinadas e concretas” (grifos nossos). E acrescenta: “... os filósofos marxistas devem precaver-se para não transformar esta relatividade necessária em relativismo metodológico”. 31 de Marx, Hegel apresenta uma contribuição relevante para os estudos da teoria marxiana. Ele desvendou a relação entre economia e dialética como uma questão essencial do método. Essa relação entre dialética materialista e contradições da economia capitalista foi um aspecto essencial na obra de Marx. Em outro momento, Lukács relembra que Hegel foi um defensor fervoroso da Revolução Francesa e de seus ideais revolucionários. Hegel apontou na economia política um caminho importante para compreender as contradições da atividade social do homem e da propriedade privada no capitalismo. O essencial no processo desta análise é o fato de ele considerar o trabalho como atividade fundamental da humanidade, ou seja, como uma relação essencial entre o homem e a natureza. Disse que o trabalho possui uma estrutura teleológica. Essa concepção do trabalho em Hegel foi reforçada e aprofundada pela teoria marxiana. A importância dessa contribuição pode ser elucidada por uma passagem de Lukács (2007, p. 97) ao tratar da relevância do trabalho para o homem: O trabalho, por sua essência, é uma atividade teleológica; mas esta atividade teleológica é inseparável da categoria da causalidade, já que somente se conhecermos as relações causais entre as coisas, a qualidade de matéria com a qual trabalhamos, a qualidade dos instrumentos de que nos valemos, somente assim é que um trabalho efetivo é possível. Quanto maior for nosso conhecimento, tanto mais amplo será nosso trabalho. Existe uma verdadeira e uma falsa antologia em Hegel. A verdadeira é o método porque ele permite ver o movimento, a contradição, as particularidades. Por outro lado, o sistema hegeliano é fechado, dando possibilidades para a manifestação do conservadorismo. Aqui Hegel é usado pelo pensamento conservador como seu aliado, como seu mentor. Ele pode ser usado tanto pelo conservador como pelo progressista. Lukács mostra como Marx supera Hegel. É importante destacar que o trabalho possui uma finalidade. A princípio esta finalidade aparenta ser um aspecto particular do sujeito que realiza o trabalho, entretanto, há trabalho que torna-se essencial, universal, geral, que ultrapassa a finalidade particular e torna-se uma necessidade coletiva. Por isso, segundo Hegel, “o meio é algo mais elevado, mais geral, mais universal do que as finalidades individuais dos homens” (Lukács, 2007, p. 98). Para Hegel, o homem torna-se homem através do seu trabalho, ou seja, ele é capaz de desenvolver suas potencialidades e evoluir seu ser genérico através do trabalho. Entretanto, o principal destaque de Lukács (2007) a Hegel é para a aplicação de seu 32 método. Ele afirma que a história apresenta todo fenômeno de forma abstrata para em seguida torna-se concreto. Hegel é idealista, para ele a consciência determina a existência, posteriormente, Marx demonstra como Hegel abordou o método de forma invertida, partindo do abstrato para o concreto, enquanto Marx, apropriando-se da dialética hegeliana realizou o caminho de ida e de volta, pois partiu do concreto para o abstrato retornado ao concreto a partir da captação das determinações da realidade. Marx faz o processo do abstrato ao concreto, a diferença de Marx para Hegel é que o primeiro faz o caminho de volta. Marx apreende o concreto, mas ele parte de um concreto caótico, é um todo caótico que não se apresenta em sua aparência, é necessário desvendá-lo para atingir sua essência. Ele supõe que seja concreto porque o concreto é síntese de determinações, a unidade de várias determinações. Ele supõe que pode ir além da mera aparência, então ele investiga quais são as determinações concretas desse todo caótico, por isso ele parte do pensamento para a concreção, do abstrato para o concreto. É no caminho de volta que ele consegue apreender a totalidade. O método em Marx parte da aparência, do concreto, chega ao conhecimento crítico de forma a superar a positividade do real e enfrentar a ideologia. A positividade do real é a aparência, aquilo que está na positividade, por isso, é necessário negar aquilo que se vê a fim de desvendar sua essência. Lukács ressalta que Marx desenvolveu uma ontologia histórico-materialista que objetivava superar o idealismo-lógico-ontológico de Hegel. Hegel concebeu a ontologia como uma história em contraste com a ontologia religiosa. “A ontologia religiosa, a de Hegel partia de ‘baixo’, do aspecto mais simples, e traçava uma história evolutiva necessária que chegava ao ‘alto’, às objetivações mais complexas da cultura humana” (Lukács, 1978, p.2). Em Hegel o homem é criador de si mesmo, ou seja, traça sua própria história. Hegel não valoriza o trabalho, ele valoriza o intelecto. Mas para Marx o ser que trabalha é o ser que transforma a si mesmo, que transforma a sociedade. A ontologia marxiana se afasta desse idealismo lógico-ontológico de Hegel, do elemento lógico dedutivo. Para Marx o ponto de partida é sempre objetivo, parte de um complexo concreto. Já Hegel parte do simples ser abstrato. Marx vê o ser como um processo histórico e considera as categorias como moventes e movidas pela matéria, pois elas não são estanques, podem ser 33 alteradas de acordo com o movimento histórico. A consciência para Marx é produto do desenvolvimento do ser material. Reflete a realidade e pode intervir na mesma para modificá-la. A consciência tem poder no plano do ser. O pensamento conservador suprime o papel da consciência, o ser humano passa a ser considerado como um ser que recebe uma inspiração de seres superiores, como a religião e as doutrinas, ou ele é um ser alienado e não consciente. No pensamento conservador, ignora-se o potencial do homem como um ser capaz de alcançar a consciência de si e de classe. O amadurecimento do pensamento de Marx, até atingir o desenvolvimento do materialismo histórico e dialético, ocorreu através da sua preocupação em estudar os elementos centrais e decisivos para a compreensão da sociedade. Ele se reportava à universalidade para aprofundar o conhecimento sobre os fenômenos em sua totalidade e, assim, se debruçava na atividade de pesquisa. Essa busca incessante pela pesquisa demonstra a importância desta atividade para se atingir um amadurecimento intelectual, mas não só, também é necessária uma perspectiva que confira ao pesquisador um norte em suas análises. Marx desenvolve sua perspectiva a partir da realidade concreta. O amadurecimento intelectual de Marx e sua ampliação de concepção de mundo foram acompanhadas por mudanças sociais, políticas, culturais e econômicas (Lukács, 2007). Hegel exerceu influência na vida de Marx ainda muito cedo. Em 1839, Marx se dedicava a sua tese de doutorado e realizava uma crítica a Hegel. Lukács (2007) destaca uma diferença essencial do resultado desta tese: seu trabalho não se restringia apenas a uma crítica da ideologia de Hegel5, mas apresentava um pensamento crítico denso e profundo; fato que o diferenciava dos demais críticos da época. Ainda que Lukács advirta para o fato de Marx não ter apresentado em sua tese de doutorado uma crítica ao núcleo central da filosofia hegeliana, ao seu idealismo e as suas contradições no método dialético, considera que Marx não deixa de ter apresentado uma 5 Lukács (2007, p. 125) trata da filosofia Hegeliana. Marx foi capaz de criticá-la de forma distinta dos críticos da época, pois percebeu que “em seu idealismo e no caráter metafisicamente fechado de sua sistematização, estavam previamente contidas as premissas que haviam tornado possível a acomodação de Hegel diante do Estado reacionário prussiano, ou melhor, que a tinham tornado necessária precisamente em virtude da própria essência de seu sistema filosófico”. 34 crítica densa à obra de Hegel. Nesse sentido, para Lukács, uma das principais contribuições de Marx nesse período de sua produção foi resgatar o materialismo e realizar uma abordagem dialética. Ele trabalhou com o objetivo de elaborar uma perspectiva universal da história e de apreender os aspectos dialéticos da tradição materialista. Marx realizou uma crítica a situação histórica e social da Alemanha conservadora em sua época. “O motivo de fundo desta crítica e desses ataques era o desmascaramento implacável não só de todas as instituições feudal-corporativas e absolutistas da Alemanha da época, mas também de todas as tentativas de conciliação com tais instituições, por mais bem intencionadas ou romântico-demagógicas que fossem” (Lukács, 2007, p. 138). Marx realizava uma crítica ao conservadorismo romântico existente na Alemanha, sua crítica se volta contra o feudalismo e a manutenção de instituições feudais ou a tentativa de recuperá-las. Ele defendia a democracia e o direito das massas populares oprimidas, apresentava uma concepção de Estado e de direito oposta a de Hegel6. Em 1843, Marx tinha a preocupação em mostrar as contradições e as desigualdades da sociedade capitalista. Ou seja, Ele esboça um grandioso quadro do caráter dilacerado e contraditório do capitalismo, mostrando como, nesta formação social, o trabalho aliena o trabalhador do seu próprio trabalho, torna o homem alienado do homem, da natureza, do gênero humano. (Lukács, 2007, p. 183). Lukács (2007) destaca a leitura realizada por Marx quanto a esfera social como determinação do homem e de sua relação com os demais homens. A relação entre capitalista e operário consiste em uma síntese desse processo social. Trata-se de ação dos homens que realizam sua própria história, “são os próprios homens que fazem a sua história; que eles mesmos e o sistema de relações em que vivem com seus semelhantes são produtos da sua própria 6 Em outro momento Lukács (2007) irá explicar a concepção de direito e de Estado de Hegel. Ele demonstra que a crítica de Marx centra-se na luta contra a monarquia constitucional e ao fato de Hegel justificar esse tipo de organização. O principal problema da filosofia hegeliana sinalizado por Marx foi a idéia de direito baseada na relação sociedade civil, burguesia e Estado. Concomitantemente a esta questão Marx critica o idealismo de Hegel “por atribuir uma existência autônoma aos conceitos, por inflar as abstrações até atribuir-lhes uma realidade independente, ele se baseia em sua crítica da filosofia hegeliana do direito e do Estado de 1843. Esta é a premissa para que a unidade de universal e particular possa ser concebida pelo marxismo de modo dialético-materialista, ou seja, pela primeira vez de modo científico” (Lukács, 2007, p. 150). 35 atividade” (Lukács, 2007, p. 219). Para explicar a relação do homem com a realidade, Lukács (2007) parte dos fundamentos do trabalho. É o trabalho que produz e reproduz, cria, desenvolve suas faculdades e sua consciência. Ele é capaz de projetar o resultado de suas ações ao agir de forma teleológica, mas para concretizar as ações projetadas ele necessita de condições objetivas e de intervir na realidade a partir de suas ações. É importante entender a ontologia do ser social porque seu surgimento está relacionado ao desenvolvimento com base em um ser orgânico que se manifesta e se desenvolve a partir do ser inorgânico. Entre a forma mais simples do ser e a mais complexa ocorre um salto. Em seguida há um aperfeiçoamento da nova forma que aparenta ser uma simples variação dos modos relativos do ser. O trabalho expressa uma base dinâmico-estruturante do ser social. Para trabalhar é necessário um grau de desenvolvimento do processo de produção orgânica, é desse processo que surge a divisão social e técnica do trabalho. A essência do trabalho consiste em ir além da competição biológica com o ambiente e o movimento que realiza essa separação é a consciência (Lukács, 2007). A essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa fixação dos seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da reprodução biológica: o produto, diz Marx, é um resultado que no início do processo existia ‘já na representação do trabalhador’, isto é, de modo ideal (Lukács, 1978, p. 4). Nesse sentido podemos destacar que a consciência confere ao homem um conhecimento parcial ou total do seu trabalho e faz com que ele se percebera como produtor e reprodutor. Na sociedade burguesa podemos afirmar que o trabalho é alienado, pois o trabalhador não se vê como produtor da mercadoria final produzida. O trabalho é não apenas o modelo objetivamente ontológico de toda práxis humana, mas também – nos casos aqui mencionados – o modelo direto que serve de exemplo à criação divina da realidade, onde todas as coisas aparecem como produzidas teleologicamente por um criador onisciente (Lukács, 1978, p. 8). O trabalho é um ato de pôr consciente que pressupõe um conhecimento concreto. Ocorre uma autonomização das atividades preparatórias do trabalho que se desenvolvem. Quanto mais as ciências se aperfeiçoam, mais elas incidem no trabalho, mais desenvolvem as técnicas e mais 36 aperfeiçoam e dinamizam a produção. A matemática, a geometria, a física, a química etc., eram originalmente partes, momentos desse processo preparatório do trabalho. Pouco a pouco, elas cresceram até se tornarem campos autônomos de conhecimento, sem, porém perderem inteiramente essa respectiva função originária. Quanto mais universais e autônomas se tornam essas ciências, tanto mais universal e perfeito torna-se por sua vez o trabalho; quanto mais elas crescem, se intensificam etc., tanto maior se torna a influência dos conhecimentos assim obtidos sobre as finalidades e os meios de efetivação do trabalho (Lukács, 1978, p. 9). O homem que trabalha - podemos dizer que é um animal que se torna homem através do trabalho, por isso o trabalho é ontológico - é um ser que dá respostas. O trabalho surge como uma necessidade de conferir respostas às necessidades dos homens. “Tão-somente o carecimento material, enquanto motor do processo de reprodução individual ou social, põe efetivamente em movimento o complexo do trabalho; e todas as mediações existem ontologicamente apenas em função da sua satisfação” (Lukács, 1978, p. 5). É exatamente o processo que de mediação permite ao homem transformar a natureza e a sociedade. O trabalho permite um desenvolvimento superior, que é o desenvolvimento dos homens. Ele se expressa na nova peculiaridade do ser social e se converte no modelo da nova forma do ser em seu conjunto. Ele é constituido pela teleologia. Teleologia é o modo de pôr, realizado por uma consciência. É uma expressão teleológica, é a possibilidade de projetar os resultados de nossas ações, de conhecer as conseqüências futuras de determinada intervenção. A teleologia é utilizada pelo homem de forma consciente, mas ele não consegue ver todos os condicionamentos da própria atividade, ou seja, ele não consegue captar a perspectiva de totalidade de forma imediata. Isso gera duas conseqüências. A primeira tendência é a dialética do constante aperfeiçoamento do trabalho, pois, enquanto o trabalho é realizado, seus resultados são observados por ele mesmo (o homem busca aperfeiçoar seu trabalho constantemente). A segunda consequência consiste no trabalho se tornar mais variado, abarcar campos maiores, subir de nível em extensão e intensidade (isso ocorre conforme o homem vai aperfeiçoando seu trabalho). Através da teleologia surge o ato social que faz parte da práxis e consiste em uma decisão a ser tomada entre alternativas distintas. A práxis possui um caráter contraditório (a contradição aqui faz parte da ontologia humana), pois em determinadas situações os homens realizam suas próprias ações, mesmo que atuem contra sua própria convicção. Ela é uma decisão entre 37 alternativas, mas nem sempre podemos implementar a alternativa que escolhemos, por isso, mesmo que tenhamos a capacidade teleológica, muitas vezes projetamos nossas ações, mas o resultado delas não correspondem ao esperado. Todos os problemas reais do complexo da liberdade derivam do homem que vive em sociedade. O conhecimento se distingue em duas formas em relação ao trabalho: a primeira é o ser-em-si que existe objetivamente; o segundo é o ser-para-nós que existe de forma pensada. É o ser-para-nós que faz com que surjam valores no processo de trabalho, ou seja, é a consciência coletiva e principalmente do resultado final do trabalho. No trabalho, ao contrário, o ser-para-nós do produto torna-se uma propriedade objetiva realmente existente: e trata-se precisamente daquela propriedade em virtude da qual o produto, se posto e realizado corretamente, pode desempenhar suas funções sociais. Assim, portanto, o produto do trabalho tem um valor (no caso de fracasso, é carente de valor, é um desvalor). Apenas a objetivação real do ser-para-nós faz com que possam realmente nascer valores (Lukács, 1978, p. 7). Como conseqüência principal do trabalho, temos sua divisão social e técnica. Quando surge uma nova forma de posição teleológica, o homem é induzido a realizar posições teleológicas segundo um modo predeterminado. Ele projeta o resultado de seu trabalho de acordo com a necessidade vigente dos meios de produção. Com o surgimento de classes sociais de interesses antagônicos essa nova posição teleológica faz surgir a ideologia. A ideologia consiste na produção de formas através das quais os homens tornam-se conscientes dos conflitos e se inserem em lutas. Ela está diretamente relacionada com as posições teleológicas, se relaciona a uma classe social, por exemplo: ideologia burguesa e ideologia proletária ou revolucionária. Entre as conseqüências importantes da gênese teleológica para os processos sociais podemos destacar que ela produz objetos que não podem ser obtidos pela natureza e que o nível da necessidade deixa de operar de maneira mecânico-espontânea, pois o homem passa a pensar naquilo que irá realizar. A forma de manifestação da necessidade passa a ser o de estimular ou impedir os homens de tomarem certas decisões teleológicas. A razão ontológica fundamental é a causalidade posta em movimento por razões teleológicas alternativas. Algumas tendências gerais são visíveis, mas, às vezes, elas se traduzem de modo desigual, portanto, em um segundo momento conseguimos perceber seu caráter 38 concreto. É por isso que achamos que na prática a teoria é outra, pois, normalmente, no plano da imediaticidade, não conseguimos realizar esse momento de desvendar o real. No desenvolvimento econômico há três exemplos de orientações que se manifestam independentemente da vontade e do saber dos homens, que serviram de fundamento às posições teleológicas. Ou seja, os homens passaram a pensar seu trabalho a partir de tais posições. A primeira consiste na tendência de diminuir o tempo de trabalho socialmente necessário à reprodução dos homens. A segunda trata-se da tendência de tornar o processo de produção cada vez mais social. A vida humana não se desvincula dos processos naturais, mas o papel puramente natural diminui. A terceira tendência consiste no desenvolvimento econômico criar ligações intensas entre as sociedades. É importante destacar que o progresso econômico aparece na forma de conflitos sociais. Essas tendências alteraram as posições teleológicas dos homens no seu processo de trabalho, momento no qual o homem deixa de se expressar como um ser individual para se apresentar um ser social. O homem deixa a condição de ser natural para tornar-se pessoa humana, transforma-se de espécie animal que alcançou um certo grau de desenvolvimento relativamente elevado em gênero humano, em humanidade. Tudo isso é o produto das séries causais que surgem da sociedade” (Lukács, 1978, p. 13). Destacamos que o trabalho na sociedade capitalista exige muito menos um trabalho teleológico em si no sentido de desenvolver todas as faculdades dos homens. Visto que: Só quando o trabalho for efetiva e completamente dominado pela humanidade e, portanto, só quando ele tiver em si a possibilidade de ser ‘não apenas meio de vida’, mas ‘o primeiro carecimento da vida’, só quando a humanidade tiver superado qualquer caráter coercitivo em sua própria autoprodução, só então terá sido aberto o caminho social da atividade humana como fim autônomo (Lukács, 1978, p. 16). O pensamento conservador suprime o papel do sujeito que faz história (Lukács, 2007). Os homens fazem história, mas não em condições por eles escolhidas. Nisso se expressa a unidade entre liberdade e necessidade que opera como unidade contraditória entre alternativas com as premissas e conseqüências ineliminavelmente vinculadas por uma relação causal. As leituras que realizamos de Lukács foram extremamente relevantes para uma análise crítica e para uma compreensão da estrutura e da base de sustentação do capitalismo. Lukács nos fornece um aporte marxista denso e rico para criticarmos o conservadorismo. Ao trazer suas 39 analises para o centro do debate conseguimos captar o movimento histórico que fornece bases para a sustentação do pragmatismo, ou seja, as necessidades da sociedade capitalista. E conseguirmos também entender a influência internacional exercida pelos Estados-Unidos por ser a grande potência ideológica de propagação e fortalecimento do capitalismo. A lógica da sociedade capitalista é baseada em interesses da classe dominante e visa defender suas individualidades de classe, seus objetivos de produção e reprodução do capital e a manutenção do seu poder sobre o domínio das esferas da vida em sociedade. Dessa forma, a requisição por um conhecimento instrumentalizável e formal torna-se funcional a toda essa lógica. Para a lógica capitalista, a busca por uma prática desatrelada da análise crítica e da apropriação de uma teoria rica de possibilidades de apreensão do movimento real e dialético é totalmente relegada e descartada. A intenção é manter uma prática funcional aos interesses da classe dominante, reforçando o discurso de fragmentação entre teoria e prática. O conservadorismo se expressa de forma a sustentar essa lógica, de manter instituições e formas de pensar presas ao passado e refuncionalizadas no presente. As desigualdades sociais e as latentes contradições do capitalismo possuem em sua aparência formas naturalizadas e impossíveis de serem modificadas. A práxis é desconsiderada e aos que estão inseridos na lógica formal do trabalho cabe serem colaboradores dos interesses capitalistas conforme a lógica da reestruturação produtiva que objetiva manter os interesses que se manifestem como úteis ao capitalismo. Toda essa lógica é difícil de ser apreendida sem um aporte que subsidie uma análise crítica. Ele apresenta uma falsa aparência de estar “enraizada” na vida do homem. Assim acontece com o pragmatismo. Tratamos pouco sobre seus elementos, mas em muito os reproduzimos. Por não o conhecermos em sua densidade e em suas propostas não conseguimos captar todos os elementos que estão presentes nessa ideologia. Dessa forma, a exposição do pensamento de Lukács permitiu apresentar as mediações necessárias para realizarmos o debate sobre a relação do Serviço Social como pragmatismo frente a lógica capitalista. Assim, partimos para uma análise da “questão social” e os debates abordados 40 pelo Serviço Social. Dessa forma, o conservadorismo torna-se expressão de uma necessidade do sistema capitalista para manter a reprodução de sua lógica e de seus valores. Para entendermos a relação do conservadorismo com o Serviço Social é necessário nos reportarmos ao debate da “questão social”, pois ele nos permite entender a gênese da profissão e os interesses aos quais o Serviço Social foi requisitado a servir. A contraditoriedade da profissão expressa em tais interesses é reflexo das contradições da própria sociedade capitalista. Assim, apresentaremos os diversos debates em torno da chamada “questão social” que versam desde a perspectiva conservadora até a perspectiva crítica. 1.2. O debate da “questão social”: bases para a compreensão da relação do conservadorismo no Serviço Social Até este momento, buscamos tratar do pensamento conservador e de suas manifestações na sociedade capitalista. Torna-se relevante trazer o debate da “questão social” para compreendermos a relação do conservadorismo no Serviço Social. Assim conseguiremos resgatar as bases que possibilitaram o surgimento da profissão. Consideramos a “questão social” como expressão das contradições oriundas da relação entre capital e trabalho do modo de produção capitalista. Historicamente, e desde seu reconhecimento oficial, pelas instâncias governamentais e pela classe dominante, buscou-se o seu enfrentamento a partir de respostas imediatas e no sentido de conservar a ordem dominante. Diante dessa considerações, o Serviço Social não pode ser compreendido a partir do debate do pragmatismo sem uma nítida apreensão do significado da “questão social”. É importante mencionar a relevância do debate da “questão social” para a proposta de estudos que apresento. A origem da profissão está diretamente relacionada ao movimento da expansão capitalista na década de 1930 e ao afloramento da “questão social”. A relação do 41 Serviço Social com a “questão social” nos permite pensar nos elementos que reafirmam o conservadorismo existente na profissão. Segundo Netto (2001), a expressão “questão social” surge em decorrência do embate político entre as classes sociais (trabalhadores e capitalistas), momento em que a desigualdade social se tornava cada vez mais latente. No século XIX a “questão social” passa a adquirir uma conotação conservadora, pois, aponta-se a necessidade de manutenção e permanência da ordem capitalista, assim, a “questão social” passa a ser naturalizada, ou seja, pelas expressões são consideradas aspectos naturais do desenvolvimento da sociedade. O autor afirma, ainda, que somente a supressão da sociedade capitalista possibilitaria a superação da “questão social”, pois, O desenvolvimento capitalista produz, compulsoriamente, a ‘questão social’; esta não é uma seqüela adjetiva ou transitória do regime do capital: sua existência e suas manifestações são indissociáveis da dinâmica específica do capital tornando potência social dominante. Não se suprime a primeira conservando-se o segundo (Netto, 2001, p. 157). Remetendo-se a Marx, Netto afirma que “a ‘questão social’ está elementarmente determinada pelo traço próprio e peculiar da relação capital/ trabalho – a exploração” (Netto, 2001, p. 157). Podemos perceber que o tratamento que se dá atualmente a “questão social” é de duas concepções. Uma compreende de forma crítica como decorrente das transformações do capitalismo da década de 1930 expressando-se como produto da luta de classes. Outra compreende a partir da perspectiva conservadora e busca naturalizá-la como se ela fosse expressão de toda e qualquer forma de desigualdade, a naturalizando, a desestoricizando e a deseconomizando. Nesse sentido, há dois debates teóricos. Ressaltamos a importância de nos remetermos aos debates provenientes da concepção de “questão social”, pois ela é vista como fundamento de existência da profissão. A “questão social” recebeu esta designação a partir do momento em que os interesses da classe trabalhadora se tornaram conscientemente antagônicos aos interesses da burguesia, ou melhor: com o desenvolvimento do capitalismo os antagonismos, as contradições e as consequências da relação capital e trabalho, expressos pela classe trabalhadora e pela classe burguesa, se tornam evidentes. A população trabalhadora passou por um processo acentuado de 42 pauperização, que já existia antes da sociedade capitalista, mas possuiu em sua particularidade o fato de o capitalismo necessitar dos pauperizados para a sua reprodução e valorização. Conforme salientamos na leitura de Lukács, no período da Revolução Francesa a burguesia se declarava portadora dos interesses universais. Ela fez a revolução com a ajuda da classe trabalhadora e do proletariado, ganhou a luta contra o clero e a aristocracia e assim se tornou classe dominante. Ao chegar ao poder passou a defender os interesses particulares de sua classe social. Nesse momento, a classe trabalhadora se tornou antagônica ao interesse da burguesia, pois possuiam projetos societários distintos. A análise de Marx sobre “A lei geral da acumulação capitalista” nos remete a realidade da classe trabalhadora diante o acúmulo e crescimento do capital. O autor tratou da composição do capital a partir do valor e da matéria. No século XVIII, por se ter um capitalismo em desenvolvimento de suas forças produtivas, havia uma perspectiva afirmando que a acumulação do capital dependia do aumento do proletariado. E de fato isto ocorria naquela época. O mercado de trabalho rapidamente se expandiu e a classe trabalhadora cresceu em proporção massiva. Quando a chamada “questão social” começou a ser considerada uma ameaça à ordem social ela demandou uma intervenção profissional, ou melhor, reivindicou uma profissão que se dedicasse a intervir nas expressões da “questão social”. No Brasil, isso ocorreu na década de 1930. Sobre essa conjuntura iremos nos debruçar a partir de autores que trataram da realidade social, política, econômica e cultural deste movimento do capitalismo. Nesse sentido, de acordo com o crescimento do processo de acumulação e com a expansão do capital, ao comprar a força de trabalho o capitalista apresenta um objetivo: aumentar seu capital, produzir mercadorias com mais valor do que o inicialmente investido, ou seja, apropriar-se da mais-valia. A condição de miserabilidade na qual é relegada a classe trabalhadora ocorre diante do processo de extração da mais valia. O capitalista sempre paga um salário menor do que realmente compete à força de trabalho despendida. E esse salário tem relação com os mínimos necessários para a reprodução da força de trabalho. Isso significa que o trabalhador vende sua força de trabalho ao capitalista. Ele oferece determinadas horas de seu dia e só recebe uma parte dessas horas. O valor recebido corresponde, supostamente, ao suficiente para a 43 reprodução de sua subsistência. Marx (1988) também demonstra que o capital social cresce conforme o capital individual de cada capitalista. Os meios de produção não são sociais e sim privados, pertencem a uma classe social que se apropria em benefício próprio. A acumulação é concentrada por muitos capitalistas individuais que centralizam o capital7. Desta forma de acumulação produz-se uma população trabalhadora supérflua que torna-se excedente, logo Em todos os ramos, o aumento do capital variável, ou seja, do número de trabalhadores empregados está sempre associado a flutuações violentas e à formação transitória de superpopulação, pelo processo mais contundente de repulsão dos trabalhadores já empregados, ou pelo menos visível, porém não menos real, da absorção mais difícil da população trabalhadora adicional pelos canais costumeiros (Marx, 1988, p. 732). Isso significa que a existência de desempregados é condição para a manutenção do modo de produção capitalista; é o que, na época Marx, chamou de exército industrial de reserva. O autor sinaliza que a indústria moderna surge quando parte da população trabalhadora está desempregada. Para se desenvolver a indústria moderna precisa de uma superpopulação relativa, pois a lógica capitalista funciona no sentido de pressionar os que estão no mercado de trabalho a se sujeitarem às suas requisições e condições e a baixa dos salários. Isto permitirá o enriquecimento individual do capitalista. Assim também, cresce o pauperismo que “constitui o asilo dos inválidos do exército ativo dos trabalhadores e o peso morto do exército industrial de reserva” (Marx, 1988, p. 747). Marx define a lei geral absoluta da acumulação capitalista: quanto maior o exército industrial de reserva maior será o pauperismo. Ao criticar o artigo “O rei da Prússia e a reforma social”, Marx (1995) publicou em 1844 uma análise da situação política e social da Alemanha e da Inglaterra e apresentou particularidades na realidade dos dois países. Primeiro ele destacou que a miséria é uma questão geral e consiste em um problema para a sociedade capitalista. A revolta dos trabalhadores expressa pela destruição de máquinas e fábricas não consistiu em uma ameaça ao governo, como se costumava imaginar, mas sim à burguesia. Acrescentou que na Inglaterra essa miséria não era parcial como na Alemanha, que se restringia aos pólos industriais, mas sim geral porque 7 Marx (1988) distingue concentração de centralização. Resumidamente, a concentração depende do capital social, é uma expressão para a reprodução em escala ampliada. A centralização aumenta e acelera a acumulação, implica em mudanças na composição técnica do capital. 44 englobava também os trabalhadores agrícolas. A compreensão da miséria na Inglaterra pelos representantes políticos e pelos partidos não atingiu a causa na política, apesar de assumirem que o pauperismo é uma responsabilidade política. Isso significou que sequer uma reforma da sociedade foi cogitada. O que expressou a interpretação inglesa do pauperismo foi a economia política inglesa. Vale destacar que Marx analisou que tanto a Inglaterra quanto a Alemanha possuiam uma análise fragmentada e parcial do que seria a “questão social”. Buscava-se atribuir a causa do pauperismo a uma falha na administração política e da assistência. A grande diferença foi que o parlamento inglês não se restringiu a uma reforma da administração e pensou em recorrer a assistência. Porém, propagou-se a idéia de que a assistência favoreceria a miséria porque essa seria considerada um estímulo aos pauperizados para se manterem na condição em que se encontravam. Especialmente na Inglaterra, surgiu a concepção de que o pauperismo era fruto da culpa dos trabalhadores e que, portanto, deveria ser prevenido através da repressão e da punição. A Inglaterra buscou combater o pauperismo através da assistência e das medidas administrativas, depois buscou aplicar o imposto para os pobres, em seguida, entendeu a miséria como uma particularidade inglesa e, por fim, culpabilizou os pobres por sua condição e buscou puní-los. Depois de várias tentativas de eliminar e prevenir a pobreza, a Inglaterra aplicou a disciplina como solução para conter a situação de miséria. Seguindo a análise de Marx, Engels (1974) tratou das condições e possibilidades de uma revolução por parte da classe trabalhadora, mas para tanto apresentou um panorama da condição dos trabalhadores de sua época. Primeiro, os impostos eram aplicados pelo Estado como uma forma de se apropriar de parte do salário dos trabalhadores urbanos e de se apropriar indiretamente das terras dos trabalhadores rurais. Segundo, a situação do campesinato russo se agravava. Aumentava a pobreza e a miséria. Tal condição tornava-se insustentável. A divisão das terras em propriedades privadas acirrou as desigualdades sociais. “Em quase todos os lugares há, entre os membros da comunidade, campesinos ricos, às vezes milionários, que se dedicam a usura e a tirar o sangue da massa campesina” (Engels, 1974, p. 7) (nossa tradução). Terceiro, Engels mostra que a Rússia apresentava uma questão política e que a “questão social” estava posta. Ele 45 afirmou que na Europa Ocidental a sociedade capitalista apresentava contradições próprias de seu desenvolvimento, entre elas a “questão social”. Para ele o real desenvolvimento só ocorreria quando a economia capitalista fosse superada e as desigualdades sociais próprias de seu desenvolvimento deixassem de existir. A partir das leituras de Marx e Engels podemos confirmar a leitura crítica realizada sobre o significado da “questão social”. A “questão social” em si mesma é expressão das relações entre capital e trabalho, da subordinação do trabalho ao capital, de suas contradições que geram desigualdades e resistências. Ela expressa a exploração e as consequências dos interesses antagônicos de duas classes sociais: a burguesia e o proletariado. Suas conseqüências se manifestam de diversas formas como na pobreza, na miséria, na fome, nas doenças, nas condições de subsistência precarizadas, entre tantas outras. Todas estas são conhecidas como expressões da “questão social” por se tratarem de um reflexo de um modo de produção específico, o capitalismo, que gera riqueza para poucos e socializa a miséria para muitos. A partir dessa concepção de “questão social” iremos tratar dos autores e dos debates apresentados articulando com o Serviço Social. Abordaremos especificamente a leitura de Castel (2008), Cerqueira Filho (1982), Netto (2001) e Iamamoto (2005), pois eles permitem uma leitura do conjunto do debate sobre a “questão social”. Entretanto, há outros autores no Serviço Social que realizam esse debate, mas não iremos aprofundar nas diversas polêmicas que eles envolvem. Nosso objetivo é permitir uma compreensão do significado da “questão social” para o debate que estamos travando. O entendimento da “questão social” está relacionada ao debate sobre a ordem social capitalista. Muito se polemizou sobre em qual momento surgiu, de fato, a “questão social” e qual o seu significado. Por muito tempo a “questão social” era considerada como o acirramento da pobreza e das “mazelas sociais”. Pouco se remetia sobre o estudo de sua origem, sobre a análise de seus fundamentos. Entretanto, há que se destacar que a interpretação sobre o surgimento da “questão social” é muito vasta. Há autores que demarcam seu surgimento atrelado a formas de pobreza, a naturalizam ou realizam um resgate da sociedade feudal de forma a entendê-la a partir da evolução das formas de ajuda como é o caso de Robert Castel. Nesse sentido, é relevante 46 resgatar um pouco do debate desses autores. Robert Castel sinaliza que a “questão social” surge na Europa em um determinado momento da sociedade feudal. Castel realizou uma análise conservadora ao dizer que os pobres buscavam viver à custa dos ricos, que eles se acomodavam na condição social em que se encontravam, que não gostavam de trabalhar e que eles eram o ópio da sociedade. Ele fez um resgate da assistência considerando que no século XVIII a proteção era destinada para os que não estavam no mercado de trabalho, era destinada aos excluídos sociais. Para entender a assistência, Castel afirmou que era necessário retomar a situação histórica da Idade Média. Essa não deixava de ser uma forma de naturalizar a “questão social”, pois a remetia a antigas formas de ajuda e filantropia, a antigas formas de intervenção nas mazelas sociais, ou seja, ele desestoricizava e deseconomicizava8. Castel (2008, p. 51) demonstra uma clara concordância com a idéia de Durkheim de integração, solidariedade, harmonia social, coesão social ao dizer que: “Há risco de desfiliação quando o conjunto das relações de proximidade que um indivíduo mantém a partir de sua inscrição territorial, que é também sua inscrição familiar e social, é suficiente para reproduzir sua existência e para assegurar sua proteção”. Para Castel as práticas protetoras e integradoras sinalizam uma especialização que permite pensar na possibilidade de uma profissionalização. Acrescenta que o atendimento social nunca é 8 Um autor que também aproxima sua leitura a naturalização da “questão social” é Wanderley (2000). Ele realiza leituras sobre o significado e a emergência da “questão social” ao tratar de suas particularidades na América Latina e afirmar que essa se faz presente desde a colonização até a existência das políticas sociais. Qualquer expressão de desigualdade para ele pode ser considerada “questão social”. Vale mencionar que Wanderley (2000) destaca o pensamento de Castel. Ele concorda com Castel quando afirma que a “questão social” surgiu atrelada a questão do pauperismo, mas ele diz, ainda que, a trata de uma maneira muito mais ampla, pois a considera desde o período da colonização. Sua concepção é a de que: “A questão social significa, desde logo, saber quem estabelece a coesão e em que condições ela se dá numa determinada sociedade. Como é sabido, no caso latino-americano, ela foi imposta pelos colonizadores por meio do pacto colonial, e segue dirigida pelo pacto de dominação burguesa” (Wanderley, 2000, p. 56). Wanderley associa a “questão social” a existência de diversos modos de produções já que ela deriva de uma falta de coesão social. Para ele não trata-se apenas da pobreza, mas sim das desigualdades e das injustiças sociais. Ele diz que a “questão social” só se torna pública quando um setor da sociedade decide torná-la uma demanda política. Isso só ocorre no capitalismo, por isso que ela é associada a esse modo de produção. Porém, ela existe bem antes disso. Para ele, “a questão social implica questões de integração e inserção, reformas sociais ou revolução, e correntes de idéias as mais diversas que buscam diagnosticar, explicar, solucionar ou eliminar as suas manifestações” (Wanderley, 2000, p. 60). 47 feito em domicílio, mas sempre é realizado em um local institucionalizado especializado como em um hospital, essas práticas sempre apresentam pelo menos esboços de especialização, núcleos de uma profissionalização futura. Não é qualquer um, de qualquer modo, em qualquer lugar, que tem a responsabilidade desse tipo de problemas mas, sim, indivíduos ou grupos mandatados, ao menos parcialmente, para fazê-lo e identificados como tais. Por exemplo, o pároco, o fabriqueiro, um oficial municipal (...) já são, à sua maneira, “funcionários” do social à medida que seu mandato é, ao menos em parte, assegurar esse tipo de atividade especial. A delimitação de uma esfera de intervenção social suscita, assim, a emergência de um pessoal específico para instrumentalizá-la. É o esboço da profissionalização do setor social (Castel, 2008, p.57). Um dos equívocos de Castel é pensar que, como ele diz, o “social” possa ser compreendido de forma igual em sociedades com modos de produções diferentes. A grande diferença é que no modo de produção capitalista é necessário a pobreza e a miséria, os “sobrantes” do mercado de trabalho, para a própria reprodução do sistema, o que não era uma necessidade posta em outros modos de produção. Ele também associa a profissionalização do social a tipos de intervenções sistemáticas como as da Igreja e a dos donos dos meios de produção. Para ele, o fato de intervirem no “social” já os tornam um profissional dessa área. Castel irá fazer uma distinção entre capazes para trabalhar e os incapazes para o trabalho. Aos últimos sobraria o assistencial9. O autor trata de um aspecto social-assistencial que depende da territoriazição do atendimento para se efetivar, ou seja, do domicílio. Esse tipo de atendimento é voltado para os incapazes de trabalhar. Por isso, escamoteado nesse debate há ainda a questão do trabalho. A princípio, a assistência tinha uma relação próxima com a Igreja que pregava a pobreza como uma forma de redenção. Para tanto, o autor resgata o pensamento da Igreja em seus primórdios. “O cristianismo medieval elaborou, dessa maneira, uma versão fascinante, e única, da exaltação da pobreza baseada na consciência exarcebada da miséria do mundo” (Castel, 9 Vale a pena resgatar um pouco desse debate, pois ele possui tênue relação com o Serviço Social. Houve uma forte concepção na profissão, e de certa forma permanece, de que o Serviço Social era a racionalização da assistência. Cabe destacar que o Serviço Social apresenta-se polarizado por duas concepções, a concepção crítica e a que entende o Serviço Social como decorrente da racionalização da assistência. Há também aqueles que pensam existir ambas, ou seja, é uma continuidade da assistência e uma profissão que surge no capitalismo monopolista, isso ainda se manifesta como algo confuso na profissão. Essa imagem estava muito relacionada ao debate sobre a origem do Serviço Social e foi discutida a partir da perspectiva endogenista. Hoje, retoma-se essa concepção devido ao fortalecimento da política de assistência social e desta se constituir como um vasto campo de inserção profissional. 48 2008, p.68). Entre os critérios que permitem a situação de assistido estão: “a incapacidade física, a velhice, a infância abandonada, a doença – de preferência incurával – e as enfermindades – de preferência insuportáveis ao olhar” (Castel, 2008, p. 68). Ou seja, critérios voltados para os considerados os “frágeis” na sociedade. Os discursos moralizadores, carregados de julgamentos em relação aos assistidos, perpassam esse momento histórico e chegam aos dias atuais. A reprodução da idéia de que “viver da assistência pode virar uma quase-profissão” (Castel, 2008, p.71)(nosso grifo) é muito comum ainda em nossos dias. Castel (2008, p. 72) demarca o século XIII como o século em que “o exercício da caridade tornou-se uma espécie de serviço social local que recebe a colaboração de todas as instâncias que dividem a responsabilidade pelo ‘bom governo’ da cidade”. É importante destacarmos que o autor trata da assistência como algo que se desenvolveu e atingiu o formato atual. Entretanto, o século XIII não apresentou política de assistência e sim ações pontuais e emergenciais. Entretanto, percebermos associações dessa concepção ao formato da política assistencial no sentido de moralizar e julgar a pobreza e conceber a assistência social como uma forma de ajuda aos que necessitam. Não existe uma evolução de formas anteriores do que ele denomina de social-assistencial para o que hoje chamamos de política de assistência social. São concepções diferentes em sociedades diferentes. Não podemos identificar ações sociais voltadas para amenizar as mazelas sociais com a política social pública voltada para amenizar a “questão social”. Mas podemos constatar que o autor concebe de forma diferente ao dizer que a assistência “deve ser lida como continuidade e não como ruptura no que diz respeito às políticas do século XVI, das quais representa uma fase de organização ulterior mais elaborada, para se entender o fracasso das primeiras políticas municipais” (Castel, 2008, p. 74). Na nossa análise, a concepção do autor é de que há um desenvolvimento de práticas assistenciais que parte da Igreja, pois esta foi por muitos anos administradora da assistência. Ele confunde formas de ajuda e de caridade com assistência, além de sua concepção de assistência ser equivocada. Castel (2008, p. 84)) demonstra como a cultura da ajuda aos pobres perpassa por todos 49 esses séculos ao dizer que “em toda sociedade, e uma sociedade cristã não constitui exceção, o pobre deve demonstrar muita humildade e exibir provas convincentes de seu infortúnio para não ser suspeito de ser um ‘mau pobre’”. Isso significa a necessidade de comprovação de pobreza, mas não é só isso, é necessário estar inapto ao trabalho essa é a primeira condição para ser assistido. Essa idéia é muito forte na política assistencial que se desenvolve atualmente no Brasil, não basta ser pobre tem que ser miserável e provar tal situação para se ter “direito” a política de assistência. Dentre as perspectivas críticas sobre a “questão social” podemos mencionar a de Gisálio Cerqueira Filho (1982). O autor preocupa-se em fazer uma análise do Brasil e ao apresentar “a ‘questão social’ como um problema concreto no Brasil e, de resto, no mundo, no quadro do processo de industrialização e de implementação do modo de produção capitalista e do surgimento do operariado e da fração industrial da burguesia” (Cerqueira Filho, 1982, p. 57). O autor concebe a “questão social” a partir da conjuntura de surgimento da industrialização capitalista, ou seja, no quadro da sociedade capitalista e não como uma expressão existente em vários tipos de sociedades distintas. Ele afirma que esse processo ocorre na década de 1930. Assim, para o autor a “questão social” aparece como “expressão concreta das contradições entre capital e trabalho no interior do processo de industrialização capitalista” (Cerqueira Filho, 1982, p. 58). Ele ainda complementa dizendo que inicialmente a “questão social” era tratada como caso de polícia através da repressão. Isso acontece quando ela passa a ser reconhecida pela classe dominante e é considerada uma ameaça à sociedade. Cerqueira Filho (1982) mostra como a “questão social” é reconhecida pelos diversos setores da sociedade brasileira. A compreensão de seu significado assume instâncias diferenciadas, mas vale destacar que apenas para a classe operária esta é uma questão central. O autor demonstra que quando a classe dominante reconhece que a “questão social” tem relação com a questão política desenvolvem-se formas de enfrentá-la e de combatê-la. Na década de 1930 a “questão social” apareceu como algo novo que seria reconhecido e legitimado pelo Estado e nesse momento ela foi apreendida em sua relação com as questões trabalhistas. “A ‘questão social’ havia se transformado em questão eminentemente política, num fenômeno que requeria 50 soluções mais sofisticadas de dominação e que não podia se resumir a ‘chamar a polícia’” (Cerqueira Filho, 1982, p. 75). Ainda nessa década aumentou o número de trabalhadores, por isso a “questão social” tornou-se mais latente e seu reconhecimento tornou-se cada vez mais necessário por parte do Estado e da classe dominante. Por isso, ocorreu uma ampliação das intervenções em relação a “questão social”. Quanto a classe dominante cabe questionarmos como ela apreendia a “questão social”. Assim, vale destacar a seguinte passagem: O discurso burguês liberal típico tem sempre uma margem possível real e concreta de ilusão ideológica quando, absorvendo e lidando com o conflito social, afirma a sua inexistência. O discurso burguês autoritário/ totalitário se afirma nos momentos de crise e esta é culpabilizada pelo conflito, que afinal, deve ser evitado por um discurso e uma prática autoritários/ totalitários. Isso se passa nos contextos europeu e americano de industrialização, e também aqui no Brasil (Cerqueira Filho, 1982, p.91). Isso significa dizer que a classe dominante assumiu que existia uma “questão social” devido a pressão da classe trabalhadora que crescia numericamente e expunha as condições sociais nas quais vivia. Como as manifestações da “questão social” tornavam-se cada vez mais evidente, ela passou a ser reconhecida pela classe dominante dentro de sua perspectiva de classe. Portanto, não poderia reconhecer que a “questão social” estava associada aos conflitos da relação entre o capital e o trabalho. O autor sinaliza que mesmo dentro da perspectiva da classe hegemônica os posicionamentos quanto ao tratamento oficial que deveria ser dado a “questão social” não eram unânimes. Havia divergências, mas que não se constituiram como uma oposição. Nesse sentido, uma das formas de enfrentamento por parte da classe dominante, via ações estatais, era através do autoritarismo e do paternalismo, acarretando em impactos diretamente sobre a classe trabalhadora. “De fato, a forma como o Estado legislou e agiu autoritária/ paternalisticamente com relação à ‘questão social’ obstaculizou a expansão do movimento operário autônomo e independente que se restringiu a protestos isolados pela imprensa, esta também isolada” (Cerqueira Filho, 1982, p. 102). As intervenções estatais no plano da “questão social” foram no sentido de enquadrar e moralizar a vida dos trabalhadores. A tentativa era desarticular os movimentos da classe trabalhadora e abafar toda e qualquer manifestação de reivindicações sociais. Por isso, 51 A partir de 37, porém, o Governo, através dos Aparelhos de Estado, notadamente o Ministério do Trabalho, conjugará os efeitos ideológicos e repressivos e procurará circunscrever as soluções trabalhistas à ótica dos grupos sociais dominantes. Nesse sentido, e particularmente na visão das classes trabalhadores, a “questão social” será tratada como caso de polícia, como já o fora antes de 1930 (Cerqueira Filho, 1982, p. 108). O autor sinaliza ainda que antes de 1930 a “questão social” era tratada como uma questão ilegal e após a década de 1930 como uma questão de polícia sendo duramente reprimida. Havia o reconhecimento das reivindicações dos trabalhadores no sentido de serem considerados uma ameaça à ordem dominante. Essa repressão apareceu de diversas formas, seja como expressão física, como um discurso ideológico, como uma repressão legal (através de leis). Dentre as principais leis que visavam restringir os direitos dos trabalhadores e seu poder de mobilização destacaram-se as leis trabalhistas que restringiram o direito de greve e o sindicalismo autônomo, não vinculado ao Estado (Cerqueira Filho, 1982). A forma como a “questão social” aparece no discurso dominante na sociedade brasileira permite compreender as atuais formas de enfrentamento da “questão social” e como ela é tratada, pois O discurso político dominante sobre a ‘questão social’ é o discurso político do capital, adaptado às condições conjunturais da formação histórica brasileira; vale dizer, calcado no autoritarismo e na conciliação, isto é, no paternalismo. Aliás, em nenhum momento o discurso político dominante perde o seu caráter elitista, autoritário, presente de forma específica na formação social brasileira, aliado a uma interpretação fundada no sistema do favor (Cerqueira Filho, 1982, p. 119). Entendemos a “questão social” nos marcos do pensamento de Cerqueira Filho (1982, p. 122) ao dizer que: “quanto maior o desenvolvimento da forma especificamente capitalista de produção mais nítido o antagonismo entre o capital e o trabalho; mais claramente eles tendem a se opor de maneira radicalmente antagônica”. A “questão social” é, na realidade, expressão dessa relação. Enquanto houver exploração capitalista haverá “questão social”, suas expressões podem mudar de acordo com as mudanças do modo de produção capitalista, mas as origens da “questão social” em si não são alteradas. Pelo exposto constatamos que são muitas as interpretações sobre o significado da “questão social” que perpassam por naturalização, moralização, individualização no atendimento 52 e psicologização da “questão social” até as que a concebem sob uma perspectiva crítica. Todas elas assumem a existência de uma “questão social”, mas, geralmente, tem-se uma leitura equivocada e fragmentada da realidade na sua compreensão. A perspectiva dominante a reconhece no sentido de amenizá-la, de apaziguar suas expressões. Somente a classe trabalhadora é capaz de enfrentá-la em suas raízes. Dessa forma, é no Estado que se percebe a principal tensão, pois ele atende a ambos os interesses. A partir dessa perspectiva geral sobre a forma como a “questão social” é concebida iremos tratar da contribuição do Serviço Social sobre esse debate. Netto (2001) constata que após a ditadura militar vigente no Brasil o debate sobre a “questão social” entra na academia, mais especificamente, o Serviço Social passa a ancorar sua formação e intervenção profissional a partir da compreensão e da intervenção sobre a “questão social”. O autor demarca cinco pontos para discorrer sobre o que compreende a respeito da “questão social”. Primeiro ele sinaliza que a expressão “questão social” começa a ser utilizada no século XIX e aparece quase que simultaneamente com o surgimento da palavra socialismo. É uma expressão usada para tratar do pauperismo proveniente do desenvolvimento industrialconcorrencial do capitalismo. Nesse período a expressão “questão social” se remetia as desigualdades sociais, apesar de aparecer como algo novo, as desigualdades sociais e a pobreza já existiam antes mesmo desse estágio do capitalismo. Entretanto, a forma como a pobreza se expressava parecia inédita: “a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas” (Netto, 2001, p. 153) e com esta nova dinâmica os pauperizados se manifestavam e apareciam como uma ameaça a ordem social. O segundo ponto que Netto (2001) levanta refere-se ao fato de que, a partir do século XIX, a expressão “questão social” passa a ser usada pelo pensamento conservador. Isso ocorre após a revolução de 1848 quando a burguesia finda sua posição progressista e assume uma posição conservadora. Torna-se difícil compreender a “questão social” a partir de seus fundamentos econômicos, sociais e políticos, por isso ela não manifesta na aparência seu caráter histórico e é naturalizada. Ela passa a ser percebida como uma questão ineliminável de toda e qualquer ordem social, porém pode ser reduzida e minimizada. Busca-se uma reforma moral do 53 homem e da sociedade. Nesse sentido, a “questão social” é desvinculada de qualquer problematização da ordem econômico-social. O terceiro ponto, que o autor levanta, trata da compreensão do significado da “questão social”. Esta só é possível de ser entendida através da lei geral da acumulação capitalista, ou seja, por uma leitura marxista da realidade social. A “questão social” é uma expressão para tratar de algo maior, ou seja, da dinâmica da sociedade capitalista e das suas consequências sociais. Marx não usa essa expressão, mas através de suas leituras é possível conhecê-la. Ela é determinada pela relação capital/ trabalho, ou seja, pela exploração, ela está posta no marco das contradições e antagonismos do sistema capitalista e só é suprimível se as condições nas quais o sistema capitalista geram a riqueza social for findada. No quarto ponto Netto trata do debate sobre a “nova questão social”. O autor diz que com o Estado de bem estar social a “questão social” é remetida como um problema dos países “subdesenvolvidos”. Com a globalização e o neoliberalismo constata-se que o capitalismo não tem nenhum compromisso com o “social” e nesse sentido a “questão social” continua cada vez mais acentuada e se manifestando com novas expressões. Dessa reconfiguração surgem aqueles que concebem a existência de uma nova “questão social”, entretanto a “questão social” mantém seu significado ao refletir as contradições da relação capital/ trabalho. Por fim, Netto nega a existência de uma nova questão social e diz que, existem novas expressões da “questão social”, mas não uma nova “questão social”. Para compreendê-la é necessário uma leitura das particularidades histórico-culturais e nacionais de determinada realidade e conjuntura. O autor afirma que o Serviço Social não tem sentido sem a existência da “questão social” e que esta só é suprimível com o fim da sociedade capitalista. Algumas considerações precisam ser pontuadas acerca deste texto. Primeiro, o autor apresenta um panorama do debate sobre a “questão social”. É importante destacar que a expressão “questão social” por si só nada explica. Ela pode ser remetida a uma compreensão crítica sobre a sociedade capitalista ou ser utilizada sobre a ótica de uma apreensão conservadora. Netto nos demonstra que na realidade a “questão social” expressa as contradições da relação capital/ trabalho. Ao mesmo tempo em que o capitalismo se reproduz e acumula riqueza ele gera 54 também uma população que vive da venda de sua força de trabalho e que não está inserida no mercado de trabalho, encontrando-se cada vez mais pauperizada. Essa parcela da população pressiona os que estão inseridos no mercado de trabalho a venderem sua força de trabalho pelas condições impostas pelo empregador. Além disso, para o capitalismo a miséria cresce de forma a ameaçar a ordem através de reivindicações dos que se encontram em estado de pobreza, ou seja, da organização e luta da população por mudanças na sociedade. Diante do exposto, consideramos que a “questão social” se acentua em proporção ao desenvolvimento das forças produtivas, quanto mais se desenvolve as formas de se obter a acumulação do capital mais ela se torna latente, mais ela se constitui como uma ameaça a ordem social, porém esse processo não ocorre de forma natural e sim permeado de contradições. Nesse sentido, várias são as formas de enfrentá-la, seja através das políticas sociais seja através da repressão e da violência policial. O Serviço Social trabalha com as expressões da “questão social” e é demandado tanto por parte de seus empregadores quanto por parte da população usuária dos serviços com os quais trabalha, a dar respostas imediatas as suas demandas. O que diferencia tais demandas por parte do empregador e por parte da população é o interesse político, social e econômico. Por parte do empregador a pretensão é não desestabilizar a produção capitalista e manter a propriedade privada dos meios de produção. Por parte da população é manter condições dignas de existência nas quais suas necessidades sociais sejam supridas e para tanto é necessário a redistribuição de riquezas. Outra autora que trata deste debate é Iamamoto (2005) ao discorrer sobre a relação do Serviço Social com a “questão social”. Ela aborda a incorporação do debate da “questão social” na profissão à luz do contexto de globalização do capitalismo mundial. Para Iamamoto a “questão social” é a base de requisição da profissão como uma especialização do trabalho e é entendida como um conjunto de expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, portanto, ela é produção de desigualdade e de rebeldia. São as expressões da “questão social” que constituem o objeto de trabalho cotidiano do profissional. Nesse sentido a autora trabalha com a idéia de que a “questão social” é a matéria-prima do trabalho do assistente social. Ela expressa as formas de luta da população através da resistência material e simbólica, “apreender a questão social é também 55 captar as múltiplas formas de pressão social, de invenção e de re-invenção da vida construídas no cotidiano” (Iamamoto, 2005, p. 28). Iamamoto pontua que nesta conjuntura o Estado se retrai e confere espaço para a intervenção empresarial que resgata a “tendência à refilantropização social”, assim, por mais que haja uma maior inserção de assistentes sociais nas organizações não governamentais (ONG) e nas empresas, tal inserção ocorre sobre a perspectiva de resgatar uma visão conservadora. É sobre o discurso da solidariedade social que cresce a filantropia e gera uma privatização dos serviços públicos. Por outro lado, na esfera estatal os postos de trabalho são reduzidos, pois o Estado passa a se responsabilizar apenas pela camada mais pauperizada da população, já a maior parte das necessidades sociais são atendidas pelo mercado. A análise da autora é pertinente e nos faz refletir sobre o significa social da profissão. O Serviço Social é requisitado para trabalhar diretamente com as expressões da questão social, mais do que uma análise sobre o período histórico em que tal requisição se tornou uma necessidade, é importante pensar a profissão inserida em um contexto de capitalismo maduro e consolidado. Não é só a “questão social” que se torna condição para a existência da profissão, é também o estágio avançado do desenvolvimento das forças produtivas que acentuam as expressões da “questão social” e as tornam latentes. Tanto Netto quanto Iamamoto apresentam a preocupação em recorrer a uma leitura da “questão social” que permite uma compreensão do Serviço Social, por isso recorrem a uma análise do Estado e das políticas sociais. As obras destes autores demarcam análises ricas de conteúdo crítico que auxiliam ao leitor a compreender a “questão social” como uma expressão ineliminável da sociedade capitalista, que gera suas contradições, mas sempre entendida dentro de um movimento complexo e rico de mediações. Mesmo a partir da perspectiva crítica podemos perceber que há divergência na concepção de “questão social” dos autores citados. A amplitude de concepções acerca do significado da “questão social” nos remete a pensar que a mesma só pode ser compreendida a partir das relações que se estabelecem em um determinado tipo de sociedade. A “questão social” em si é expressão dos antagonismos e contradições das relações estabelecidas na sociedade capitalista. Ela provém 56 da relação capital e trabalho e se reflete de diversas formas como no desemprego, na pobreza, na miséria, na fome, nas condições de sobrevivência. A compreensão dessas relações permite o entendimento do significado da “questão social” e nos permite analisar seus rebatimentos para o Serviço Social. 1.3. A sociologia em xeque: expressão do conservadorismo Após realizarmos uma análise do pensamento de Lukács sobre a organização da sociedade capitalista e seus elementos de fundamentação, assim como da breve apresentação do debate da “questão social” pelo Serviço Social, cabe discutir quais são as manifestações intelectuais que contribuem para a manutenção dos interesses da classe dominante. Nesse sentido, iremos tratar do surgimento da sociologia como uma proposta alternativa a crise do pensamento crítico, como disse Lukács, momento de expressão da razão miserável. Machado (1997) discorre sobre a contribuição de Gouldner acerca da análise da sociologia. Ela destaca a posição de pesquisadores e sociólogos quando ao pensamento de Gouldner e o apontam por suas influências distintas, o que o coloca em um campo de pensamento eclético. Gouldner aborda a sociologia como uma resposta à cultura utilitária. Machado aponta uma conseqüência entre a relação da sociedade norte-americana e o utilitarismo: a sociedade de classe média desenvolve uma visão instrumental das instituições sociais. Em sua análise de Gouldner, a cultura utilitária condiciona a sociedade em dois sentidos: primeiro, a força a estudar problemas sociais limitados (no caso, o empirismo) e segundo, busca preencher um “vazio conceitual” a levando a procurar uma “grande teoria”. Para Gouldner, a cultura utilitária está relacionada à classe média articulada como um estrato social autônomo em relação aos detentores do poder político econômico – a burguesia – e possui um peso considerável com características da modernidade. “A cultura utilitária é a cultura da sociedade burguesa na transição do século XVIII ao XIX” (Machado, 1997, p. 127). A cultura utilitária se 57 mantém a partir do programa da modernidade quando a sociedade burguesa se constitui e passa a ser internalizado por ela. Ao citar Goudner, Machado diz que o autor pontua características marcantes do surgimento da sociologia. Primeiro, ela não teve aceitação da classe média. Segundo, a sociologia realizou, em seu campo, uma separação entre o econômico e o social. A relação entre pragmatismo, positivismo, sociologia e conservadorismo fica clara quando constata-se que a sociologia surge a partir do positivismo no século XIX e passou a reger o conjunto da perspectiva sociológica, exigindo do sociólogo uma postura objetiva. Pela leitura de Gouldner podemos destacar que o surgimento da sociologia parte do interesse de segmentos antigos da sociedade que perderam seu poder social assim como de novos estratos sociais que não estavam totalmente desenvolvidos. Em comum tais segmentos apresentavam a característica de não se identificarem com as necessidades da propriedade burguesa. O reconhecimento da sociologia só ocorreu a partir do momento em que a industrialização se aprofundou. Ainda na análise de Gouldner é com a articulação do funcionalismo à sociologia que ocorreu uma compatibilidade desta com a ordem burguesa. O funcionalismo respondeu pela relação da sociologia à cultura utilitária, expressando o conservadorismo sociológico e articulando a sociologia acadêmica e a sua profissionalização. Machado ressalta que Gouldner trata do romantismo e percebe um caráter ambivalente, pois ele pode servir à direita como pode associar-se a uma crítica proletária à constituição da classe média. Dessa forma, demonstra que Weber10 não foi adepto da cultura utilitária e ressaltou 10 Há de se destacar que Weber foi influenciado pelo materialismo histórico e pelo positivismo, porém criticou os limites de ambos. Sua proposta era dar continuidade ao materialismo histórico visando compreender a relação entre a estrutura e a superestrutura. Questionava o poder da estrutura sobre a superestrutura. Seu objetivo era construir um método de análise da história, era trazer a questão dos valores. Criticou o fato de se explicar a sociedade apenas através da economia, pois era necessário buscar também os valores sociais. Por isso ele investigou as razões do capitalismo ter se iniciado em alguns países e concluiu que a ética protestante favoreceu o comportamento econômico racional. É importante destacar que Weber era de família protestante e burguesa e que desenvolveu também discussões sobre o patriarcalismo e sobre o feminismo. Ele se opõe a Durkheim e a Marx porque acreditava que nenhuma ciência pode dizer como os indivíduos devem se comportar, nem como devem se organizar. A ciência também não pode projetar o futuro para os homens, estes, através de suas ações, que deverão fazer isso. Weber distingue ação de ação social. Por ação ele compreende a conduta humana com significado para o sujeito. A ação social é a ação que tem em vista outros agentes, refere-se ao comportamento humano. Assim, a sociologia tem como 58 os valores morais e os conflitos decorrentes de tais valores. Weber desenvolveu uma concepção pessimista do desenvolvimento da sociedade capitalista. Concordamos com Machado quando esclarece que Gouldner tem por objetivo nesta obra “livrar sua ciência [a sociologia] da acusação de reacionarismo e/ ou de conservadorismo” (Machado, 1997, p 137). Ele realiza essa busca porque, segundo suas leituras, a sociologia se desenvolveu em três direções: o funcionalismo, o marxismo e o weberianismo. No centro dessa análise, Gouldner situa o conservadorismo sociológico não como um simples conteúdo teórico ou uma mera inclinação política (...): o pensamento conservador na sociologia se expressa, sobretudo, numa perspectiva metodológica que permite (re) conciliar a teoria social como ethos utilitário da sociedade capitalista na sua configuração mais acabada [os Estados Unidos] (Machado, 1997, p. 138). E prossegue mais adiante: Ao deslocar a análise do conservadorismo para o interior da sociologia, num procedimento autocrítico, Gouldner levou a sociologia do conhecimento ao extremo da objetivo interpretar e compreender a ação social e seus efeitos sobre os indivíduos. Os tipos ideais são construções hipotéticas, são classificações do sentido subjetivo dos indivíduos para seus atos. Estão ligados a noção de compreensão e ao processo de racionalização que é típico da sociedade moderna. É a expressão do esforço de todas as disciplinas científicas e está vinculado a concepção de causalidade permitindo perceber indivíduos e grupos históricos. O tipo ideal é uma percepção parcial de um conjunto global, mesmo que aparente abranger toda a sociedade. Sua sociologia é compreensiva porque ele afirma que a postura do sociólogo deve ser compreensiva, deve compreender como as ações sociais dos indivíduos se desenvolvem. A tarefa do sociólogo é tornar inteligível a ação social. A sociologia é considerada a ciência da ação social fundamentada na compreensão, na interpretação e na explicação. Ela tem a preocupação de produzir generalizações. A sociologia, diferente do que afirma Durkheim, não lida com explicações funcionais e sim com explicações causais. Ela busca no significado das ações conexões, causas que se sucedem. A sociologia compreensiva está baseada na análise social, esta não possui relações com as leis naturais, diferente do que afirma Durkheim. Weber distingue as ciências da história e da sociedade com as ciências da natureza. A sociologia compreensiva conta com hipóteses sobre aspectos da realidade. Isso quer dizer que a ciência visa compreender a ação social de forma interpretativa. Diferente de Durkheim, Weber considera as experiências pessoais e os aspectos subjetivos na análise da realidade. O objetivo da ciência é atingir a evidência. Esta é complicada de se entender quando são diferentes de nossos valores. A compreensão pode ter caráter racional ou ser intuitivamente compreensiva, entretanto, o método da sociologia compreensiva é racionalista. Aqui, a racionalidade resulta do respeito pelas regras, da lógica e da pesquisa para que os resultados sejam válidos. A ação orientada por um fim de forma racional se apresenta à sociologia como um tipo ideal. É por isso que ele afirma que a princípio o conhecimento existiu baseado em observações empíricas para em seguida ser realizada a interpretação. As interpretações pretendem alcançar evidências, mas não podem, por esse motivo almejam se constituírem uma interpretação causal válida. Ela é na realidade uma hipótese causal de evidência particular. Para uma leitura aprofundada da obra de Weber ver Aron. As etapas do pensamento sociológico (1997), Cohn. Weber – sociologia. (1991), Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo (1996), Weber. Economia e sociedade (1994). 59 sua radicalidade, construindo, com referências mais amplas e distintas, uma sociologia da sociologia que se, na sua ótica, é a condição elementar para a “sociologia reflexiva”, para nós representa o máximo de crítica possível ao conservadorismo a partir das próprias fronteiras da sociologia (Machado, 1997, p. 139). Assim, podemos dizer que Gouldner se preocupa em constituir e consolidar a sociologia crítica como uma alternativa a sociologia acadêmica. Esse é seu principal esforço. Ainda assim, o autor nos permite uma leitura das influências sociológicas e nos fornece possibilidades de entendimento do surgimento da sociologia. Nesse contexto, apresentaremos algumas notas de análise do pensamento de Gouldner. O autor citado não distingue o marxismo da sociologia acadêmica, pois, para ele ambos são divisões dentro da sociologia. Por outro lado, Gouldner apresenta um panorama do surgimento da sociologia acadêmica, apresenta seus limites, sua relação com o modo de ser norte-americano e defende a possibilidade de se consolidar uma sociologia crítica. Seu trabalho torna-se importante para o nosso debate, pois ele apresenta um claro panorama da cultura norteamericana e da leitura realizada pelos pensadores provenientes dos Estados Unidos sobre a relação teoria/ prática. Conforme sinalizamos, com a chegada da burguesia ao poder, seus interesses de classe passaram a ser o centro de seu domínio. A defesa dos interesses do conjunto da sociedade deixaram de ser prioridades para a classe dominante. Abre-se caminho para uma forma de pensar atrelada a uma nova organização social proposta pela burguesia. O espaço é propício para o desenvolvimento de pensamentos conservadores e irracionalistas. Goulner (1970) tratou desse momento ao destacar o surgimento da sociologia. O objetivo do autor foi produzir uma leitura crítica da missão social da sociologia acadêmica e formular algumas idéias sobre a esfera social, as ideologias que expressam e o vínculo que mantém com o conjunto da sociedade. Ele realizou algumas críticas que cabem ser destacadas. Goulnder (1970) demonstra que no século XIX há um abismo entre teoria e prática muito comum nos movimentos radicais norte-americanos. Apontou que esse período foi marcado pelo pragmatismo e por influências conservadoras. Mesmo que o descuido com a teoria não seja peculiar dos norteamericanos, uma de suas causas é também o fato de que os radicais desse país pensam ser mais norteamericanos 60 do que supõem e tendem a preferir os resultados concretos da política pragmática aos produtos intangíveis da teoria (Gouldner, 1970, p. 13) (tradução nossa). Gouldner (1970) demonstra como é compreendida a relação teoria e prática nos Estados Unidos. Um dos fatores que pode ter contribuído para esse distanciamento foi o surgimento da sociologia entre as décadas de 1940 e 1960, que se expressou como parte da cultura popular devida a influência acadêmica e a vasta produção da área. A sociologia passou a fazer parte da cultura cotidiana e teve um efeito paradoxo frente às atitudes adotadas por alguns pensadores em relação à teoria social e aos problemas sociais. Passou a fazer parte de uma cultura global junto com as ciências sociais e com a literatura popular. Os norte-americanos pensavam as ciências sociais como um aspecto da cultura cotidiana. Começaram a substituir a ação pela discussão da natureza dos preconceitos e da pobreza. Aqui entra o debate da relação teoria/ prática. Segundo a análise de Gouldner esta é uma relação que pode aparentar ser fragmentada, mas ele entende que mesmo quando não se opta por expressar uma teoria, ela se faz presente no posicionamento do pesquisador. “Aqueles radicais que crêem poder separar a elaboração teórica das modificações da sociedade não atuam, na realidade, sem teoria, mas sim com uma que é implícita e, por fim, não analisável nem aprimorada. Se não aprendem a utilizá-la conscientemente, serão utilizados por ela” (Gouldner, 1970, p. 14) (tradução nossa). Gouldner (1970) realiza uma crítica da apropriação do marxismo pelos norte-americanos. Ele diz que muitos pesquisadores e pensadores se satisfizeram mediante o marxismo vulgar que se expressou de forma regressiva e primitivista, pois, segundo sua análise, em um país como os Estados Unidos que formava poucos economistas e historiadores o marxismo pouco se desenvolveu. O marxismo que conseguiram produzir foi na década de 1930, quando extirparam com o stalinismo, mas sequer assimilaram as contribuições de Georg Lukács e Antonio Gramsci. Os marxistas norte-americanos foram os menos originais e criativos e se limitaram a aplicar a teoria marxista sem jamais aprofundá-la. Na análise de Gouldner fica claro que o pensamento norte-americano esteve pouco próximo das apropriações críticas e ficou mais suscetível as influências conservadoras que confirmassem a lógica de dominação capitalista. Isso demonstra, de certa forma, a profunda influência do pragmatismo na cultura norte-americana. 61 Na leitura de Gouldner (1970) parte da nova geração de pensadores norte-americanos manifestou repúdio, indiferença e hostilidade às teorias. Apareceu um abismo que separou os jovens pensadores das velhas linguagens das teorias. Parte desses jovens consideravam as velhas teorias como erradas e criticáveis, ou as consideram irrelevantes. Eles desconfiavam das teorias porque a consideravam como algo recebido do passado visto como velho e errôneas e também com pouco vigor buscando ridicularizá-las ou evitá-las e não realizar uma crítica ou discussão sobre as mesmas. Gouldner (1970) destaca o movimento que possibilitou o surgimento da sociologia acadêmica nos Estados Unidos. Ele se posiciona quanto as críticas à sociologia como um instrumento conservador de uma sociedade repressiva. Questiona “como pode a sociologia ser uma expressão absoluta do conservadorismo político?” (Gouldner, 1970, p. 19). Ou seja, ele deixa claro suas raízes sociológicas, mesmo assim, reconhece que há uma tendência conservadora predominante na sociologia norte-americana. Essa possibilidade da sociologia permitir o desenvolvimento do conservadorismo e do radicalismo é vista pelo autor como uma contradição interna. Em suma, e para dizer na linguagem da sociologia acadêmica, considero que a sociologia apresenta suas próprias ‘contradições internas’, as quais, apesar do seu poderoso vínculo com o status quo e seu profundo traço conservador, ela tem como conseqüência – involuntária, mas inerente – favorecer as tendências radicalizadoras e contrárias a ordem estabelecida, em especial entre os jovens” (Gouldner, 1970, p 20) (tradução nossa). Gouldner percebe na sociologia uma série de possibilidades de traços conservadores e críticos, e defende a idéia de que é possível a sociologia se apresentar como alternativa de pensamento. Um aspecto importante sinalizado é sobre o debate da validade de uma teoria. Para Gouldner (1970) não é possível supor que a única questão importante seja a validade empírica dos sistemas intelectuais e que as partes viáveis de cada sistema teórico podem ser selecionadas por uma mera investigação. A questão não é simplesmente saber quais partes de um sistema intelectual são verdadeiras ou falsas, mas sim quais são libertadoras e quais são repressivas e suas consequências. “Em suma, o problema é: quais são os resultados sociais e políticos do sistema intelectual que examinamos? Libertam ou reprimem os homens? Os prendem ao mundo social 62 existente ou lhes permitem transcendê-lo?” (Gouldner, 1970, p. 21) (tradução nossa). As implicações ideológicas e as conseqüências sociais de um sistema intelectual determinam sua validez, pois a teoria é de certa forma autônoma. Em certa passagem, Gouldner deixa claro que compreende a sociologia acadêmica e o marxismo em limitações parecidas, os aproximando em suas análises. A investigação por si só não poderá revelar o potencial libertador da sociologia acadêmica ou do marxismo histórico. Isto exige também ação e crítica, intenção de modificar o mundo social e intenção de modificar a ciência correspondente, um e outro profundamente entrelaçados, mesmo que apenas seja porque a ciência social é tanto parte do mundo social como uma concepção deste” (Gouldner, 1970, p.22) (grifos do autor) (tradução nossa). O autor diz que os críticos mais respeitáveis são aqueles que não se condicionam aos benefícios imediatos dos resultados e valorizam outros aspectos. Isso só é possível para aqueles que possuem um sentido vivo da história, se consideram atores políticos e partem de uma tradição social e intelectual mais prolongada. Gouldner desta que em um período anterior, antes da intenção em grande escala de profissionalizar a sociologia, os jovens buscavam o êxito profissional para manifestar sua perspectiva atacando as idéias de seus antecedentes e dos sociólogos clássicos. Ao ampliar a profissionalização, os jovens sociólogos foram estimulados cada vez mais a buscar acertar em suas proposições e análises, a adotarem uma atitude construtiva, positiva, no lugar de uma crítica negativa e ao invés de atacar a crítica anteriormente elaborada. A principal influência, senão a mais decisiva, da sociologia acadêmica norte-americana foi o funcionalismo de Talcott Parsons. A obra de Talcott Parsons “A estrutura da ação social” foi uma expressão de tal enfoque, seus discípulos retomaram e ampliaram sua ideologia da continuidade. Essa ideologia é, em essência, uma extensão da perspectiva elaborada pelo positivismo sociológico do século XIX no curso de sua oposição ao que o autor considera como crítica negativa da Revolução Francesa e dos filósofos. A convergência resulta em uma maneira de submeter à prova as concepções, mesmo que ela contradiga o método cientifico formalmente aceito pela comunidade científica. A ideologia da convergência implica constatar se é possível demonstrar que os grandes teóricos chegaram a coincidir sem saber que o aspecto produtivo da 63 teoria são os acordos tácitos e não as polêmicas aos quais aqueles poderiam dedicar sua atenção. Implica assim, que apesar dos aparentes desacordos da teoria, a história produziu um resíduo de consenso intelectual. Essa é uma versão norteamericana do hegelianismo para o qual o desenvolvimento histórico se produz, não mediante a polêmica, luta e conflito, mas sim mediante o consenso. O teórico que assim atuasse encontraria uma forma de vincular sua posição com o passado, ao mesmo tempo em que se manifestava superior a ele. Ele se apresentaria não como criador de idéias, mas como descobridor de consensos. O ato de descobrir convergências e continuidades teóricas com a obra de seus antecessores e, em particular, ao atribuir-lhe um caráter intencional, permitiria ao teórico moderno se apresentar como se ele revelasse aspectos até agora ocultos de seus precursores, e como se expressasse outra maneira mais precisa e clara. Ou seja, de acordo com essa perspectiva se buscaria uma forma de manter os ideais já instituídos através de uma roupagem que escamoteasse as contradições, seria uma forma clara de propagar o conservadorismo. Gouldner explica o motivo pelo qual a convergência teve grande entrada nos Estados Unidos: O chamado à convergência e a acumulação intelectual começou a cristalizar-se nos Estados Unidos em condições sociais específicas. Surgiu junto com sentimentos adequados a solidariedade de ‘frente unida’ da luta política e militar contra o nazismo. Foi, na prática, o equivalente acadêmico da unidade interna em tempo de guerra, assim como da unidade internancional entre as potências ocidentais e a União Soviética. Em suma, o chamado norteamericano a convergência e a continuidade com a teoria social, esteve socialmente baseado em sentimentos coletivos favoráveis a todo tipo de unidade social que surgiram em resposta as exigências militares e políticas da Segunda Guerra Mundial. Com a ruptura da unidade nacional depois da guerra e a posterior generalização dos conflitos radicais e rebeliões estudantis, a ideologia da convergência e a continuidade deixou de corresponder ao sentimento coletivo (Gouldner, 1970, p. 26) (tradução nossa). Gouldner (1970) demonstra que a sociologia acadêmica foi desenvolvida nos Estados Unidos por acadêmicos universitários orientados pela classe média estabelecida. Eles procuravam pragmaticamente a reforma no lugar de revoltar-se ou buscar uma crítica a sociedade na qual viviam. Interessante destacar que, segundo a análise apresentada por Gouldner (1970), a origem da sociologia se desenvolveu no mesmo local da origem do pragmatismo, ou seja na 64 Universidade de Chicago nos Estados Unidos. “Depois da Primeira Guerra Mundial, a sociologia norteamericana se consolidou na Universidade de Chicago, em um ambiente metropolitano no qual havia prosperado a industrialização e onde proliferaram problemas aos que se consideraram peculiares das ‘comunidades urbanas’ “(Gouldner, 1970, p. 27) (tradução nossa). Essa relação nos permite afirmar que o pragmatismo, assim como a sociologia, surgem através de demandas que visam reforçar os interesses em prol da reprodução capitalista. A sociologia acadêmica sustenta, em suas primeiras formulações que a sociedade moderna apresentava problemas que não podiam ser resolvidos sem construir ou adotar novas pautas. Ela não atribuía os problemas de sua cultura a manifestação de elementos alheios, nem ao abandono do mal uso de velhos elementos tradicionais suscetíveis de restauração. “Mesmo que a sociologia acadêmica se voltasse às vezes nostalgicamente ao passado em busca de modelos para o futuro e julgava a cidade fragmentada, segundo os critérios da zona rural, porém coesiva, sabia que não podia voltar atrás” (Gouldner, 1970, p. 28) (tradução nossa). A sociologia acadêmica era propagada como se tivesse algo novo para apresentar. Para a sociologia acadêmica os problemas expressos na sociedade seriam resolvidos em seu devido tempo pela própria sociedade que daria respostas aos problemas que produzia. Goulner faz uma interpretação que aproxima a sociologia acadêmica do marxismo colocando ambos no mesmo patamar e nas mesmas limitações, como se fossem um paradigma, enquanto, que em nossa análise, o marxismo não se constitui na mesma base e nos mesmos pressupostos em que se sustenta a sociologia, nem nos mesmos fundamentos, nem na mesma base de justificação da sociedade, ao contrário, compreendemos o marxismo a partir de crítica a sociedade capitalista. Gouldner faz uma comparação entre sociologia acadêmica e marxismo; da mesma forma que a sociologia acadêmica aparece nos Estados Unidos e na França, o marxismo aparece no Leste Europeu com o mesmo fim: justificar a sociedade. Nós entendermos que Marx realiza a crítica da sociedade burguesa e não cria bases para justificar e legitimar o capitalismo. Retomemos nossa análise: a sociedade acadêmica originou-se na Europa Ocidental, alcançou influência e impacto na Europa Oriental, entretanto obteve ambiente propício nos Estados Unidos, onde se institucionalizou no sistema universitário. “O enorme desenvolvimento 65 da sociologia nos Estados Unidos é uma manifestação dos constantes esforços da cultura norteamericana para explorar, enfrentar e controlar sua mudança no meio social” (Goulder, 1970, p. 28) (tradução nossa). Gouldner realiza um panorama sobre a configuração da sociedade acadêmica nos Estados Unidos. Cabe destacar uma passagem sinalizada por ele. Nos Estados Unidos, a sociologia se firmou como disciplina academica durante a década de 1920, sob o incentivo da Universidade de Chicago. Começou a propagar-se desde o leste durante a década de 1930, e em seu contínuo desenvolvimento, entre 1940 e 1960, predominaram as Universidades de Harvad e Columbia. Para meados da década de 1960, a sociologia norte-americana, financiada pelo Estado-de-bem-estar-social (Welfare State), se tornou mais institucionalmente policêntrica; o surgimento de centros rivais em outras partes do país tornou menos articulada a hegemonia daqueles importantes focos sociológicos. Segundo muitos sociólogos norte-americanos, o principal centro da sociologia em seu país voltou a constituir-se durante a década de 1960, desta vez na Universidade da Califórnia, em Berkeley (Gouldner, 1970, p. 28) (tradução nossa). Ou seja, Gouldner demonstra como a sociologia constituiu escolas e grupos. Era nas universidades que se desenvolvia todo o conhecimento para consolidar o momento em que o capitalismo estava vivendo, sendo a Escola de Chicago o primeiro pólo que agregou adeptos a sociologia acadêmica. Não por acaso, foi na Universidade de Chicago que surgiram as primeiras idéias do pragmatismo. Os sociólogos norte-americanos idealizaram diversas técnicas de investigação e inventaram um conjunto de perspectivas teóricas, publicaram diversas pesquisas, formaram um quadro de especialistas com dedicação exclusiva cujo número só aumentava, criaram periódicos, institutos de investigação e novos departamentos, estenderam a influência acadêmica e conquistaram uma ampla atenção pública. Cometeram todas as formas de equívocos e vulgaridades previsíveis. Diante dessa conjuntura, a sociologia acadêmica foi se firmando como parte da cultura norte-americana e a cada ano se institucionalizou de forma mais incisiva nos Estados Unidos (Gouldner, 1970). Sobre o crescimento da sociologia acadêmica, Gouldner (1970, p. 29) assim considera: Depois da Segunda Guerra Mundial a sociologia norteamericana, estimulada pelo Estado de Bem Estar Social, cresceu a um ritmo mais rápido que em nenhuma outra época anterior. Ao amadurecer, foi abandonando seu isolamento acadêmico e os sociólogos ficaram expostos a novas prisões, tentações e oportunidades. Com uma freqüência crescente, começaram a investigar as “brechas e rachaduras” de sua própria cultura, ao menos não advertidas por outros profissionais de classe média. Ao mesmo tempo começaram a viajar para o exterior com mais freqüência e a experiementar os profundos 66 efeitos do “choque cultural” resultante. De tal forma, os sociólogos se multiplicaram, se tornaram mais mundanos, mais experientes, mais poderosos e mais seguros academicamente. Escalaram posições no mundo, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial (tradução nossa). Sobre a concepção que Gouldner tem da sociologia ele esclarece que muitos pensam tratar-se de uma ciência social e consideram o aspecto científico seu traço mais específico e importante. Para estes, o método cientifico de estudo em si, e não o objeto estudado ou a maneira de concebê-lo, é a característica decisiva da sociologia, se não a definidora. Para o autor, independente da concepção que se tem da sociologia, a maioria concorda que o conhecimento da vida social exige que em algum momento se realizem investigações e que seus supostos sejam submetidos a algum tipo de prova empírica e as inferências lógicas a observações sensoriais, trata-se de um teste de variáveis. A maioria admite que é necessário observar e escutar as pessoas, além de provar suas experiências e pressupostos teóricos. Tal suposição nos parece próxima a defesa das idéias pragmáticas, já que há uma necessidade de se colocar à prova as teorias elaboradas. Os sociólogos devem ser guiados pelos resultados das investigações realizadas. Eles precisam destacar o papel da teoria e a necessidade dela ser guiada por uma teoria articulada, explícita e passível de prova. Nesse sentido, os sociólogos tentam empregar um método que permita obter uma base para submeter à prova uma teoria depois de formulada. Importante destacar uma passagem na qual o autor aponta uma possível relação entre pragmatismo e sociologia, segundo nossa análise. O fato de que os sociólogos se contentem com tal concepção da prova de que não temos conseguido adquirir consciência de nós mesmos nem levar a sério nossa própria experiência; pois, como se sabe todo aquele que alguma vez denunciou teorias, sabe que algumas são aceitas como convincentes e outras criticadas por serem inconvenientes muito antes de que se disponha os elementos de prova apropriados. Os estudantes o fazem com freqüência. Ainda que os sociólogos experientes simplesmente aceitem como convincentes certas teorias e não outas, de maneira intuitiva (Gouldner, 1970, p. 35) (tradução nossa). Pela passagem exposta, o autor elucida a relevância da experiência e das provas científicas para a sociologia. Ao tratar da teoria esclarece a necessidade de se obter uma validade teórica, atingida através de utilidade prática. Essa idéia se assemelha ao pragmatismo pela sua 67 necessidade de produzir resultados válidos praticamente11. Gouldner (1970) irá abordar o processo de conhecimento dos sociólogos relacionando a experiência e as teorias sociais. Assim, diz que os sentimentos surgem da experiência das pessoas com o mundo, quando, com freqüência, necessita-se apreender coisas que diferem um pouco do que se supunha que necessitava ou de que foi ensinado. As teorias sociais podem relacionar-se com sentimento de diversas maneiras e inibir ou estimular em níveis diferentes a expressão de certos sentimentos. Como caso limite, o nível em que incidem sobre os sentimentos pode ser tão pequeno que, para todos os fins práticos permite classificá-los como neutros. Isso influi na teoria, pois a teoria que trata dos sentimentos pode estar suscitando simplesmente respostas apáticas ou indiferentes, a sensação de que a teoria é de certo modo irrelevante, induzindo assim a evitá-la, quando não a opor-se ativamente. Assim, no caso, uma teoria pode exercer um efeito estimulador de coerência, ou integrador, enquanto que em outro pode exercer um efeito gerador de tensões ou conflitos; cada um tem diferentes consequencias para a possibilidade de que o indivíduo adote no futuro determinados cursos de ação, e distintas implicações para diversas linhas de conduta política (Gouldner, 1970, p. 44) (tradução nossa). O autor compreende a sociologia a partir da elaboração de experiências pessoais do sociólogo. Ele diz que se toda teoria social é tacitamente política, ela é também pessoal, já que inevitavelmente expressa a experiência pessoal de seus autores, a elabora e está impregnada dela. Uma parte da sociologia deriva do esforço do sociólogo para explorar e universalizar algumas de suas experiências mais pessoais. Em grande parte, o esforço de qualquer homem para conhecer o mundo social que o circunda é incentivado pela intenção de conhecer coisas que são pessoalmente importantes para ele. Trata-se de conhecer a si mesmo e conhecer as experiências que tem no mundo social. Assim, como modificar, de alguma forma essas relações. Todos os sociólogos tratam de estudar algo no mundo social que consideram como real e qualquer que seja a filosofia da ciência procuram explicá-lo em função de algo que eles sentem como real. Igual a outros homens, os sociólogos atribuem realidade a certas coisas de seu mundo social. A ideologização da sociologia é uma característica também presente nos sociólogos 11 No terceiro capítulo iremos apresentar uma análise do pragmatismo a partir da leitura de Pogrebinsch (2005) sobre a obra de James, Pierce e Dewey, os precursores do pragmatismo clássico - assim aprofundaremos esse debate em outro momento. 68 modernos. Na verdade, se manifesta com plenitude na escola de pensamento que mais insistiu na importância de profissionalizar a sociologia e de manter sua autonomia intelectual: a que foi elaborada por Talcott Parsons. A sociologia se repõe e se manifesta atualmente com as propostas ora apresentadas e também exerce influência no meio acadêmico. Pela leitura que realizamos de Gouldner podemos dizer que não por acaso a sociologia acadêmica possui articulação com o pragmatismo. A experiência, a necessidade de por à prova todas as proposições, a importância de verificar a validade das teorias, são todos pressupostos que se apresentam como características comuns tanto da sociologia como do pragmatismo. O debate da sociologia acadêmica nos demonstra como foi necessário o desenvolvimento de uma forma de pensar a teoria e de formular a ciência a partir das necessidades da sociedade posta nos Estados Unidos. Todo conhecimento que esteja favorável a um tipo de organização que permite fortalecer a lógica da organização social do capitalismo terá ampla possibilidade de propagação na cultura norte-americana e, consequentemente, em outros países. Postas as observações que destacamos neste primeiro capítulo iremos nos reportar ao Serviço Social. A partir da exposição que apresentamos iremos abordar no próximo capítulo o debate do conservadorismo no Serviço Social. Partimos de uma apropriação da análise crítica do conservadorismo, desta forma nos reportamos à literatura crítica do Serviço Social. Os autores que iremos tratar fazem a apreensão da relação do Serviço Social com o pensamento conservador e as possibilidades da profissão apresentar alternativas para consolidar a perspectiva crítica no Serviço Social. Partimos do pressuposto de que na esfera da fenomenalidade o conservadorismo se expressa de alguma forma na intervenção profissional. Por outro lado, a apropriação do pensamento conservador, de suas expressões e influências na profissão nos permitem pensar em estratégias de intervenção profissional que superem as requisições postas com base no pensamento conservador. 69 2 - O debate do conservadorismo no Serviço Social Com a crítica da sociedade capitalista, através da análise de Lukács, pudemos apresentar um panorama das condições sociais que possibilitaram o surgimento da sociologia. Compreendemos que a sociologia surge da necessidade de se firmar um tipo de pensamento que legitimasse os interesses da sociedade que se consolidava. Assim, Gouldner nos mostrou como os Estados Unidos estabeleceu um ambiente propício para a consolidação da sociologia acadêmica. Neste capítulo, resgataremos o debate do Serviço Social já que este nos possibilita uma apreensão crítica dos antagonismos e contradições da sociedade e nos esclarece as bases de requisição da profissão. É do agravamento da “questão social” no Brasil que se explicita a necessidade de uma profissão que intervenha nas mediações necessárias para amenizar as expressões da “questão social”. Entretanto, apenas com o reconhecimento e o entendimento do significado da “questão social” que a categoria profissional conseguiu questionar o conservadorismo presente na profissão e pontuar outras possibilidades de intervenção que atendessem as demandas da classe trabalhadora. Muitos autores se preocuparam em trazer para o centro de suas análises os desafios e possibilidades do Serviço Social frente a perspectiva conservadora. Dentre as principais questões levantas pela categoria profissional podemos destacar: o Serviço Social rompeu com o pensamento conservador? Se sim, em que medida rompeu? Há alguma expressão da reatualização do conservadorismo? Se não houve ruptura, quais as possibilidades de esta ruptura se efetivar? Ao buscar respostas às indagações mencionadas, os assistentes sociais, de certa forma, nos reportam a pensar na relação teoria/ prática, pois realizam questionamentos não apenas de seu cotidiano de trabalho, como também indagam qual a apropriação necessária para se pensar nas questões levantadas ao longo de sua intervenção profissional. Sabe-se que muito se avançou na leitura crítica da categoria profissional na década de 1990, mas também é perceptível os inúmeros desafios postos pela realidade para o exercício profissional do assistente social. Nossa proposta não é responder a estas indagações, mas apontar elementos que permitam 70 subsidiar uma leitura desta tensa relação entre perspectiva crítica e conservadorismo no Serviço Social. Dessa forma, apresentaremos as críticas feitas pelos assistentes sociais a partir da análise da profissão com o conservadorismo. 2.1. A tensa relação do Serviço Social com o reformismo conservador Segundo Iamamoto (2002) o Serviço Social possui uma relação próxima com o reformismo conservador. Essa relação é perceptível quando a profissão repensa e refuncionaliza sua prática e sua base teórico-ideológica. Entretanto, a influência do conservadorismo é mantida na profissão. Isso é constatado na origem e nos fundamentos do Serviço Social, visto que esta é uma profissão que surge no Brasil em um determinado momento histórico, mais precisamente na década de 1930. A relação do Serviço Social com a Igreja Católica foi muito próxima na origem da profissão. A Igreja apresentou-se como uma das principais instituições que investiu na preparação de assistentes sociais. Ela incentivou diretamente seu crescimento, inclusive com escolas de formação profissional. Um dos motivos pelos quais a Igreja teve tal preocupação na intervenção da área social foi o surgimento da chamada “questão social”. “Para a Igreja, ‘questão social’, antes de ser econômico-política, é uma questão moral e religiosa” (Iamamoto, 2002, p.18). Diante desta compreensão da Igreja, o Serviço Social desenvolveu uma ação moralizadora e conservadora junto à classe trabalhadora no sentido de “higienizar” a vida da classe operária para que ela vivesse e se dedicasse com prioridade ao trabalho. Não foi apenas a Igreja Católica que teve grande influência no Serviço Social. O seu principal empregador e um dos demandantes da profissão - o Estado - também contribuiu de forma decisiva para reafirmar a ideologia da qual a profissão se apropriou naquele momento. A ideologia da qual tratamos é aquela da classe dominante, que visa defender seus interesses particulares e conservar a ordem no sentido de reproduzir a acumulação do capital, mas sem que haja uma redistribuição da riqueza socialmente produzida. Nesse momento de constituição do 71 Serviço Social o Estado assumiu a função de “preservar e regular a propriedade privada, impor limites legais aos excessos da exploração da força de trabalho e, ainda, tutelar os direitos de cada um, especialmente dos que necessitam de amparo” (Iamamoto, 2002, p.18). O assistente social, inserido principalmente nas instituições estatais, irá trabalhar para atender as demandas da classe trabalhadora e da classe burguesa, além de ser requisitado pelo aparato estatal. Essas demandas, contraditórias entre si, não são atendidas de forma igual, por isso, o Serviço Social trabalhou mais no sentido de enquadrar a classe trabalhadora e moralizá-la para reproduzir a ideologia dominante. Vale destacar que nesse momento o Serviço Social não questionava a sua funcionalidade nem a ordem socioeconômica vigente, sua preocupação era apenas atender emergencialmente as demandas, principalmente as da classe dominante. A origem conservadora do Serviço Social no Brasil está, portanto, intimamente relacionada ao movimento histórico da década de 1930, visto que: O Serviço Social surge da iniciativa de grupos e frações de classes dominantes, que se expressam através da Igreja, como um dos desdobramentos do movimento do apostolado leigo. Aparece como uma das frentes mobilizadas para a formação doutrinária e para um aprofundamento sobre os ‘problemas sociais’ de militantes, especialmente femininas, do movimento católico, a partir de um contato direto com o ambiente operário. Está voltado para uma ação de soerguimento moral da família operária, atuando preferencialmente com mulheres e crianças. Através de uma ação individualizadora entre as ‘massas atomizadas social e moralmente’, busca estabelecer um contraponto às influências anarco-sindicalistas no proletariado urbano (Iamamoto, 2002, p.19). Se não for analisada a fundo, a origem conservadora da profissão confere espaço para uma interpretação superficial e aparente sobre o Serviço Social, como o desenvolvido pela perspectiva endogenista. Isso ocorre porque, à primeira vista, a profissão aparenta ser uma alternativa profissionalizante às atividades do apostolado social da Igreja, conforme sinaliza Iamamoto (2002). A profissão se reveste da falsa aparência de ser uma forma avançada e desenvolvida de ajuda, como uma alternativa a manifestações profissionalizantes de solidariedade. Nesse momento, é difícil perceber o Serviço Social como uma profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho que possui um componente ideológico e político. As análises iniciais sobre a profissão se mantinham na aparência e não na essência de sua inserção social. Na perspectiva de Iamamoto (2002) o Serviço Social se ancorou em uma ação educativa 72 de fim moralizador com o intuito de prevenir problemas sociais. Sua atuação girou em torno do Estado e de entidades filantrópicas para individualizar as demandas sociais. A atitude moralizadora ocorreu através de um tratamento sócio-educativo para reproduzir a ideologia dominante de forma a “enquadrar” a classe trabalhadora. A relação da profissão com o conservadorismo pode ser constatada por ser o Serviço Social uma “atividade reformista-conservadora” (Iamamoto, 2002, p.21). É reformistaconservador porque objetiva uma mudança nas relações sociais e no comportamento individual, mas no sentido de conservar a ordem social vigente e não de questioná-la. A proposta não pode ser uma ruptura de fato, pois não compete a uma profissão evocar rupturas sociais, no máximo, ela é capaz de sinalizar algumas mudanças. E mais, é essa sua origem conservadora que “ao invés de produzir rupturas profundas com as tendências pragmatistas da profissão, as reforçam e atualizam” (Iamamoto, 2002, p.21) (grifos nossos). Isso ocorre porque o profissional busca respostas práticas e imediatas para os problemas da realidade. Essa preocupação se manifesta, dentre outros motivos, porque o assistente social trabalha essencialmente com a esfera do cotidiano, com os problemas da vida social dos indivíduos, ou melhor: o Serviço Social intervém nas expressões da “questão social”, expressões que requerem respostas imediatas e emergenciais, mesmo que seja no sentido de escamotear as reais relações que se manifestariam diante das contradições sociais. A partir das análises de Iamamoto (2002) o conservadorismo, do qual o Serviço Social se funda e se constitui, decorre da forma de organização capitalista dividida em classes sociais. O tradicionalismo aparece como um contra movimento em oposição ao projeto da ilustração relacionado ao projeto da modernidade. Vale destacar que “a fonte de inspiração do pensamento conservador provém de um modo de vida do passado, que é resgatado e proposto como uma maneira de interpretar o presente e como conteúdo de um programa viável para a sociedade capitalista” (Iamamoto, 2002, p.22). Os conservadores reivindicam formas e estilos de vida provenientes do passado que antecede a sociedade capitalista para que voltem a vigorar no presente de forma reatualizada sobre a lógica e a ideologia do capital. Ocorre um escamoteamento das contradições do 73 capitalismo a fim de conservar e manter a ideologia dominante, ou seja, é uma lógica funcional ao sistema. O conservadorismo é “uma forma de agir e de pensar a sociedade” (Iamamoto, 2002, p.23) a partir de uma perspectiva de classe favorável a reprodução do capitalismo. O conservadorismo não é assim apenas a continuidade e persistência no tempo de um conjunto de idéias constitutivas da herança intelectual européia do século XIX, mas de idéias que, reinterpretadas, transmutam-se em uma ótica de explicação e em projetos de ação favoráveis à manutenção da ordem capitalista. (Iamamoto, 2002, p.23). Iamamoto (2002) destaca características importantes do conservadorismo como sua vocação para o passado. Isso significa pensar e analisar o presente através do passado e resgatar idéias e atitudes que já foram aparentemente superadas. Outra característica é a reação contrária a “igualdade externa”, nesse sentido não são consideradas as particularidades individuais. O indivíduo é sempre visto como parte de um coletivo sem particularidades. Há ainda o fato de que os conservadores consideram a liberdade como subjetiva, isso significa reproduzir a idéia de que a condição social do indivíduo depende de seu esforço pessoal em se desenvolver. Essa lógica acarreta na culpabilização do indivíduo pela sua condição social. A liberdade, diferente da concepção propagada pelo projeto da modernidade, pertencerá à esfera privada e subjetiva da vida. O conservadorismo se reflete da seguinte forma: O conservador reage aos princípios universalizantes e abstratos do pensamento dedutivo: seu pensamento tende a aderir aos contornos imediatos da situação com que se defronta, valorizando os detalhes, os dados qualitativos, os casos particulares, em detrimento da apreensão da estrutura da sociedade. A mentalidade conservadora não possui predisposição para teorizar. Sendo a organização da sociedade fruto de uma ordenação natural do mundo, o conhecimento visa a um controle prático das situações presentes. O conservador elabora seu pensamento como reação a circunstâncias históricas e idéias que se afiguram ameaçadoras à sua influência na sociedade. O conservadorismo torna-se consciente, no plano da reflexão, como defesa, decorrente da necessidade de armar-se ideologicamente para enfrentar o embate das forças oponentes (Iamamoto, 2002, p.24). Chamamos atenção para uma passagem que será criticada por Machado (1997), qual seja, a afirmação de que o pensamento conservador não possui predisposição para teorizar. Machado (1997) considera esta afirmativa como um grande equívoco de Iamamoto. No Serviço Social, a relação com o conservadorismo é estabelecida a partir da influência européia e da influência norte-americana. A profissão também incorpora a filosofia social humanista-cristã. Ao mesmo tempo em que há uma reatualização para atender às demandas que 74 lhe são postas, ela também mantém o conservadorismo na sua base de ação profissional. Por isso, “os efeitos da ação profissional aparecem como uma negação dos propósitos humanistas que a orientam. Torna-se palpável a defasagem entre propósitos e resultados da ação, entre teoria e prática” (Iamamoto, 2002, p.28). Isso implica em uma visão desistoricizada da sociedade, pois os efeitos das relações de trabalho na vida da população são revertidos como problemas pessoais e há uma tentativa de humanizar o capitalismo. Essa tentativa é expressa, por exemplo, na busca de uma relação harmônica e solidária entre os homens a fim de que o trabalhador e o capitalista convivam pacificamente em prol da produtividade. Nesse sentido, o Serviço Social tem como papel fundamental amenizar os conflitos sociais, visto que “como as bases da organização social são tidas como dadas e não são questionadas em suas raízes, a solução entrevista limita-se à reforma do homem dentro da sociedade, para o que deve contribuir o Serviço Social” (Iamamoto, 2002, p.29). Muito desse trabalho é realizado a partir da ótica da família, dos papéis de cada membro familiar e através de ações que fortalecem o núcleo familiar. Para o pensamento conservador, a família é colocada no centro da sociedade, pois ela é uma instituição importante para a reprodução da ideologia capitalista, por transmitir valores e normas de condutas legitimados culturalmente. Um exemplo interessante que aponta o sincretismo da ação profissional, e que em certa medida ainda perdura na profissão, diz respeito a forma como o assistente social se relaciona com a resposta as demandas dos usuários e com os próprios usuários dos serviços prestados. Ao mesmo tempo em que individualiza e particulariza os casos conferindo aos indivíduos responsabilidades por sua condição e situação social, o profissional também requer modelos de intervenção e de encaminhamentos para casos semelhantes. Isso significa que, geralmente, as demandas não são analisadas em suas complexidades e densidades, como demandas de determinada forma de organização da sociedade com suas determinações particulares e de natureza coletiva. Ora se transita entre uma resposta à particularidade do caso, como nos atendimentos individuais, sem articulá-los à realidade social e percebê-los como demanda coletiva; ora se transita para uma tentativa de fornecer resposta padrão através de modelos de 75 intervenção, sem considerar as particularidades dos casos. Iamamoto (2002) destaca a tendência empiricista e pragmatista da prática profissional. Uma expressão dessa tendência é a pesquisa com o intuito de classificar e hierarquizar a condição social de miserabilidade da população. O objetivo é inserir determinado segmento social em programas sociais. Essa atitude também se reflete, muitas vezes, nas visitas domiciliares quando o profissional apresenta um perfil fiscalizador. A crítica não é feita à pesquisa em si, mas sim a forma como ela é utilizada e aos métodos empregados. A contribuição de Iamamoto não se esgota aqui. A autora possui uma série de publicações que tratam do Serviço Social inserido na divisão sócio-técnica do trabalho. O livro “Relações Sociais e Serviço Social no Brasil”, produzido junto com Raul de Carvalho é um marco na crítica ao pensamento conservador, por trazer para o centro do debate a perspectiva marxista. Ressaltamos que para além das polêmicas e dos debates acerca de perspectivas dos assistentes sociais que contribuíram de forma significativa para uma análise densa da profissão, a leitura de Iamamoto é de extrema relevância. 2.2. O debate do sincretismo: elementos para análise do conservadorismo no Serviço Social Para entender o pragmatismo como expressão conservadora no Serviço Social, precisamos conhecer como os profissionais se aproximam das teorias. Esta análise é importante porque nos permite compreender os nós da relação do Serviço Social com as teorias e com a leitura crítica da realidade As primeiras tentativas de aproximação do Serviço Social com as teorias sociais em busca de esclarecer a posição do Serviço Social na sociedade ocorreram de forma enviesada. Buscou-se a vinculação do Serviço Social ao desenvolvimento de um estatuto teórico-científico, através da elaboração de uma teoria própria da profissão no sentido de profissionalizar as protoformas 76 presentes na origem do Serviço Social. A busca era para transcender e para racionalizar as protoformas em busca de uma profissionalização às protoformas da profissão. Ao invés de uma compreensão do Serviço Social a partir de teorias sociais macroscópicas, a fim de apreender as requisições que lhe conferiram um estatuto de profissão a partir de demandas históricas, a profissão reivindicava um sistema próprio de saber para lhe conferir um sentido na sociedade. O objetivo não era romper com as protoformas, mas dar a elas um estatuto teórico através da profissionalização das formas de caridade, por isso buscou-se uma teoria e um conjunto de técnicas. Era um movimento de continuidade e não de ruptura. Para Netto (2001), a intervenção profissional não depende da consideração de um sistema de saber, mas sim do fato de fornecer respostas às demandas histórico-sociais. Vale destacar que tais respostas não são no sentido de superar a ordem capitalista, pelo contrário, são no sentido de amenizar ou escamotear as expressões da “questão social”, pois o Serviço Social surge vinculado às necessidades do sistema capitalista. Por outro lado, segmentos da profissão foram ao longo do tempo questionando sua funcionalidade à ordem do capital e configurando seus princípios como aqueles que defendem os interesses da população usuária dos serviços sociais e da classe trabalhadora. Isso significa que o Serviço Social avançou em sua direção ético-política dada pelo processo de renovação decorrente da intenção de ruptura com o conservadorismo profissional, mas não no sentido de superar totalmente as bases que lhe conferiram legitimidade, pelo fato de não ser um profissional autônomo e sim um profissional que tem vínculo de assalariamento junto a instituições empregadoras. Não só o Serviço Social surge como demanda da sociedade capitalista, há outras profissões que se inserem neste contexto e as possibilidades e os limites postos a estas profissões estão na própria sociedade burguesa ou na tentativa de superar as suas bases. Netto (2001) identificou duas influências provenientes dos Estados Unidos. Uma foi a influência psicologista com o Serviço Social de Caso e a outra foi a organização e desenvolvimento de comunidades no segundo pós-guerra. Já nesse caso, é o Serviço Social que passa a se basear nas teorias funcionalistas e na mudança social, pelo simples fato de se inserir em ações interdisciplinares e/ou multidisciplinares (Netto, 2001). Netto (2001) acrescenta ainda a 77 visão dessas perspectivas serem um “ilusionismo ideológico”, já que, a profissão considerava possível alterar o caráter de suas intervenções, através de um sistema de saber, negligenciando a compreensão de que sua natureza está atrelada à necessidade de dar respostas às demandas histórico-sociais. O equívoco da profissão foi não ter percebido que a única forma de se aproximar-se de uma compreensão da sua relação com o conservadorismo e de avançar no sentido de buscar outra direção, seria através do referencial teórico crítico-dialético. Esta complexa relação com as teorias sociais decorre do fato de a própria categoria profissional não ter uma análise de fundo do significado da profissão na sociedade capitalista. Uma apreensão densa e apropriada pelos assistentes sociais permitiria fornecer bases para esclarecer os equívocos ora citados. Primeiro, porque se entenderia que o Serviço Social é uma profissão; e segundo, porque seria compreensível que as profissões precisam se relacionar com teorias sociais para interpretar a sociedade à luz de determinada visão de mundo, mas também, para legitimar-se, para fundamentar sua prática profissional, para entender a realidade. Isso não significa desenvolver uma teoria própria. Nesse sentido, Netto (2001) destaca que o Serviço Social apresenta elementos sincréticos que são expressos nestas contradições que a profissão apresenta e no ecletismo teórico. Como sincretismo, o autor concebe: O fio condutor da afirmação e do desenvolvimento do Serviço Social como profissão, seu núcleo organizativo e sua norma de atuação. Expressa-se em todas as manifestações da prática profissional e revela-se em todas as intervenções do agente profissional como tal. O sincretismo foi um princípio constitutivo do Serviço Social (Netto, 2001, p. 92). Netto (2001) destaca como elementos constitutivos do Serviço Social o contexto em que a profissão aparece como eixo norteador de demandas histórico-sociais, ou seja, a profissão provém de uma demanda da sociedade capitalista decorrente dos antagonismos da luta de classe e do surgimento da “questão social”. Outro elemento consiste no horizonte do exercício profissional, que está vinculado a instituições e a ação direta com políticas sociais que têm como objetivo o enfrentamento da “questão social”. Por fim, o autor destaca a modalidade específica de intervenção da profissão. O assistente social, em seu cotidiano de trabalho, esbarra em uma heterogeneidade de 78 situações possíveis de serem refletidas. Apesar de requerer modelos de intervenção, o profissional não consegue dar respostas críticas, nem captar as mediações necessárias que lhe permite passar das análises macrosocietárias para as situações do seu cotidiano. É nesse momento que se faz importante ter uma interpretação e uma leitura acerca da realidade com aporte de um arsenal teórico crítico, assim como a mobilização de meios para responder as demandas de maneira competente e compromissada. Por isso, Netto (2001) afirma que os elementos que requerem a intervenção do Serviço Social configuram uma estrutura sincrética que relega uma categoria ontológica central da realidade social, segundo a perspectiva marxista: a totalidade. Isso significa que os assistentes sociais não conseguem intervir a partir de uma perspectiva de totalidade, eles conseguem realizar uma relação da parte com o todo, mas sem apreender e explicitar as mediações necessárias e as contradições existentes do processo. Os profissionais conseguem compreender que o Serviço Social está inserido na lógica do sistema capitalista, que as demandas com as quais trabalham são frutos de expressões da “questão social”, mas eles não conseguem compreender a totalidade a partir da perspectiva dialética. Ao analisar a realidade, fazendo o caminho de volta, captando a totalidade em movimento, o profissional seria capaz de fazer uma avaliação das condições de seu trabalho, seria capaz de identificar as demandas e saber quais as possibilidades de intervenção e caso não houvesse possibilidade de dar respostas imediatas ele saberia identificar as limitações. O assistente social tem a visão das partes inseridas em um todo, mas não da totalidade. Não estamos dizendo que ele perceba apenas fragmentos de uma realidade, mas ele não consegue fazer esse movimento a partir da análise dialética e da perspectiva de totalidade. Também não afirmamos que conseguirão apreender as demandas em que atuam no seu cotidiano profissional, que conseguirão articular as demandas particulares às reivindicações que são necessidades sociais. A intervenção profissional do assistente social se dá na esfera do cotidiano “seu material institucional é a heterogeneidade ontológica do cotidiano” (Netto, 2001, p.96). É na esfera do cotidiano que se requer respostas imediatas e eficazes. Pela pressão do cotidiano e das demandas institucionais muitos assistentes sociais recaem no equívoco de pensar em homogeneizar as respostas que darão às demandas. Isso significa recorrer a manuais de intervenção e a 79 padronização do atendimento. Esta é uma das contradições presentes na profissão devido ao fato de o assistente social trabalhar diretamente com o cotidiano ele possui dificuldades para ultrapassar a esfera da cotidianidade e refletir criticamente sobre sua prática, ou melhor, lhe sobram poucos momentos ou nenhum para realizar tal exercício e quando consegue fazer tal reflexão, na maior parte das vezes, o faz de forma muito superficial e sem considerar a dimensão de totalidade. A análise mais a fundo da realidade pode ser feita e apreendida pelos profissionais quando há uma reatualização profissional capaz de permitir uma leitura crítica. Entretanto, na intervenção profissional, quando os assistentes sociais não conseguem romper com a fenomenalidade, eles não alcançam a perspectiva de totalidade, exatamente por trabalharem diretamente com o cotidiano que é um espaço propício à reprodução do pragmatismo. Para Netto (2001) o Serviço Social é uma profissão que possui funções essencialmente, mas não exclusivamente, executivas. Nesse sentido ele está vinculado a uma subalternidade técnica e a uma determinada modalidade de intervenção “no centro desta modalidade de intervenção situa-se, com invulgar ponderação, a manipulação de variáveis empíricas de um contexto determinado” (Netto, 2001, p. 97). Isso significa dizer que os assistentes sociais, seus empregadores e os usuários das políticas sociais com os quais trabalham não consideram sua prática profissional conclusa. A manipulação de variáveis empíricas ocorre quando o assistente social responde às demandas existentes no momento, na imediaticidade. Na manipulação de variáveis o trabalho desenvolvido ocorre a partir dos fatos já dados e não de uma projeção da totalidade de seu trabalho e das consequências de suas decisões no exercício profissional. Nesse sentido, o importante na manipulação de variáveis são as alterações que possam resultar em respostas imediatas. Ocorre quando o profissional desconsidera a dinamicidade do real e quando ele padroniza sua ação profissional no sentido de conferir as mesmas respostas para casos que considera semelhantes isolando e desconsiderando as demandas coletivas. É do exposto que Netto (2001) apresenta duas implicações. A primeira é que, nesse sentido, demanda-se do assistente social um conhecimento sobre o social que é instrumentalizável, no qual a intervenção manipuladora requer explicações que permitem 80 direcionar os processos sociais de forma segmentares, por isso, busca-se uma relação com o pensamento positivista a partir de referenciais das perspectivas empiricistas e pragmáticas. O segundo trata da “reprodução intelectual do sincretismo”, a intervenção profissional passa a ser pautada a partir da manipulação de variáveis empíricas, “é supérfluo fazer notar que o sincretismo, na sua reposição intelectual, traz como inevitável acólito o ecletismo teórico” (Netto, 2001, p. 98). Netto (2001, p. 98) demonstra que a influência do pragmatismo e do empiricismo no Serviço Social nos conferiu marcas na configuração da profissão que, de certa forma, ainda se fazem presentes, pois: Com freqüência, a crítica ao empiricismo e ao pragmatismo do Serviço Social perdeu de vista que suas fontes não se esgotam nas influências teóricas exercidas sobre a profissão, mas, com evidente profundidade, mergulham raízes neste componente de sua prática [pragmatismo], determinado socialmente. O sincretismo apontado por Netto (2001) tem relação direta com a prática profissional do Serviço Social. Logo se percebe uma diferença entre o Serviço Social da década de 1930, muito ligado a práticas assistencialistas e moralizadoras; e o Serviço Social após a década de 1940, quando começam a se consolidar as políticas sociais. Para alavancar a profissão, os assistentes sociais começaram a se preocupar em buscar articulação com as ciências sociais, estabelecer parâmetros mínimos para a formação profissional, desenvolver uma documentação própria e criar vinculações entre intervenções e formas de organização institucionais e públicas (Netto, 2001). Nesse sentido podemos afirmar que a profissão passou por um significativo avanço da compreensão de sua relação com as ciências sociais e de sua produção intelectual, principalmente da aproximação com a teoria marxista. Contudo, esse avanço não se refletiu de forma tão consistente na intervenção profissional dos assistentes sociais. Aí reside o sincretismo. Ou ainda, como sinaliza Netto (2001) o Serviço Social mudou a forma de inserção sócio-ocupacional dos profissionais, mas não sua prática profissional interventiva. Mudou no sentido de que os profissionais passaram a desenvolver seu trabalho ligados a instituições, principalmente estatais, voltadas para o desenvolvimento de políticas, programas e projetos sociais. Antes havia uma forte vinculação com as ações da Igreja Católica. A profissão instaurou um quadro de referência e de 81 inserção prático-institucional que se desvinculou das protoformas do Serviço Social. Esse equívoco em muito se relaciona às condições de intervenção dos assistentes sociais – geralmente precárias, com poucos recursos institucionais, que os obrigam a criar espaços menos informais de intervenção, burlando normas institucionais e até direitos como é o caso de dar um “jeitinho” para solucionar uma demanda – e com a forma como o Estado enfrenta a “questão social”. Ocorre que na sociedade capitalista as relações sociais são substituídas por relações entre coisas e as coisas adquirem formas de relações sociais, é um processo de fetiche e de reificação que escamoteia a essência pela aparência das relações sociais prevalecendo o superficial. Há uma “destruição da razão” e uma predominância da razão formal-abstrata (Netto, 2001). Para que o sincretismo tratado por Netto fique esclarecido, é importante destacarmos que o Serviço Social é uma profissão que surge na sociedade capitalista em seu estágio monopolista e está inserido no movimento da realidade, na busca por uma intervenção eficiente que dê respostas às demandas apresentadas. A profissão encontra-se vinculada à lógica da sociedade capitalista e, por isso, seus profissionais visam realizar a crítica no sentido de compreender a lógica que a rege. Este é um exercício mais profundo e denso, o que não é possível realizar em uma análise superficial e simples. Nessa relação entre necessidade de intervir nas demandas apresentadas e importância de se realizar uma análise crítica, a relação teoria/ prática, muitas vezes, não é apreendida de forma articulada através das mediações podendo resultar na prevalência do sincretismo no momento da intervenção. Um aspecto que reforça o sincretismo consiste no fato de o Serviço Social se valer constantemente da prática burocratizada, por ser esta uma exigência das instituições e também das políticas sociais. Mesmo que haja uma direção ético-política da profissão que objetiva desburocratizar a prática profissional, o assistente social não consegue romper com esse norte porque a razão formal-burocratizada está no plano da imediaticidade e o Serviço Social trabalha diretamente com o cotidiano que é o plano privilegiado da imediaticidade. Uma forma de tentar refletir sobre o cotidiano, sobre a imediaticidade e sobre o senso comum é através da sistematização da prática profissional. A inserção dos assistentes sociais se dá no espaço das políticas sociais, estas são formas 82 de enfrentamento da “questão social” e não possuem o objetivo de superar a origem da “questão social” e sim de amenizá-la. Isso não retira seu caráter contraditório: as políticas sociais são uma expressão das lutas políticas e sociais da classe trabalhadora e também uma forma de concessão do Estado e do empresariado para o atendimento das reivindicações da mesma e para suprir um mínimo das necessidades sociais das classes subalternas. É por isso que a intervenção do assistente social se realiza através das políticas sociais, ou seja, ela não se dá diretamente nas expressões da “questão social”, mas sim de forma mediatizada. O Serviço Social é a profissão que mais acumula tensões porque sua intervenção tem relação com as resultantes empíricas. O máximo que o profissional consegue é racionalizar recursos e se esforçar no enfrentamento das expressões da “questão social”. O limite apresentado não é endógeno ao Serviço Social, mas aparece como se fosse porque a sua funcionalidade sócioocupacional consiste em enfrentar e tratar as refrações da “questão social” (Netto, 2001). Como os assistentes sociais precisam desenvolver papéis diferentes, a profissão acaba por recair em uma aparente polivalência, que configura uma falsa idéia de que o assistente social é um profissional que “faz um pouco de tudo”. Entretanto, essa aparência se manifesta como uma peculiaridade da prática profissional. Ela não foi uma opção profissional, ela é um padrão prático-empírico de procedimentos dos profissionais e uma demanda das classes sociais das quais atende com seu trabalho a partir de duas condições: a expectativa social dos primeiros encaminhamentos profissionais e os recursos necessários para poder intervir profissionalmente. Entretanto, foi essa aparente polivalência que permitiu aos assistentes sociais ocuparem diversos espaços sócio-ocupacionais e, por isso, se configura também como uma estratégia profissional. Esse é mais um elemento sincrético presente no Serviço Social (Netto, 2001). Nas palavras de Netto (2001, p. 107): Combinando senso comum, bom senso e conhecimentos extraídos de contextos teóricos; manipulando variáveis empíricas segundo prioridades estabelecidas por via de inferência teórica ou de vontade burocrático-administrativa; legitimando a intervenção como um discurso que mescla valorações das mais diferentes espécies, objetivos políticos e conceitos teóricos; recorrendo a procedimentos técnicos e a operações ditadas por expedientes conjunturais; apelando a recursos institucionais e a reservas emergenciais e episódicas – realizada e pensada a partir desta estrutura heteróclita, a prática sincrética põe a aparente polivalência. 83 O sincretismo ideológico está presente no Serviço Social desde sua protoforma e tem relação com o pensamento conservador a partir da Igreja Católica. O sincretismo da prática ocorre pela defasagem de articulação entre a leitura e apropriação teórico-crítica e a intervenção cotidiana dos assistentes sociais. Nesse sentido, podemos dizer que o sincretismo não foi superado no Serviço Social e, por isso, repõe elementos conservadores e aparentemente superados pela profissão. A partir das considerações de Netto constatamos que o Serviço Social possui uma relação com o pensamento conservador que se expressa através do sincretismo da intervenção profissional. Para entendermos como se dá tal relação é necessário abordarmos as bases do pensamento conservador. Assim, seremos capazes de pensar em alternativas críticas com vistas a propor estratégias de intervenção. 2.3. O conservadorismo romântico como uma das expressões da ideologia dominante O trabalho elaborado por Leila Escorsim Machado (1997) aborda as bases de constituição do pensamento conservador clássico. A autora apresenta uma preocupação em compreender a gênese do pensamento conservador e suas mudanças de perspectivas. Em sua argumentação fica claro que o conservadorismo não é apenas uma forma de pensar, mas também uma ação intencional que busca produzir determinado tipo de conhecimento. Apesar de Machado utilizar a expressão “pensamento conservador” ao longo de seu trabalho, ela nos deixa claro que o conservadorismo não é apenas um pensamento, nem um pensamento único; ele apresenta múltiplas expressões, se manifesta em atitudes e possui uma série de intelectuais em sua defesa. Apresentaremos a leitura da autora com o objetivo de desvelar a origem do pensamento conservador na sociedade capitalista para que dessa forma possamos analisar o Serviço Social. Machado (1997) realiza uma pesquisa na qual resgata autores considerados conservadores, autores que realizam a crítica ao conservadorismo e ainda; aqueles que não estão 84 no campo da perspectiva crítica, mas também não podemos considerar conservadores, como é o caso de Gouldner. Sua preocupação parte do Serviço Social. Assim, ao longo deste tópico iremos apresentar um breve esboço da produção de Machado (1997), pensando sempre na crítica ao conservadorismo realizado pela autora. Para ela, o movimento de reconceituação permitiu superar carências no tratamento histórico do Serviço Social através das produções daí derivadas. A reconceituação foi expressão de um processo de renovação profissional relacionada a conjuntura dos anos 60 do século XX e às suas circunstâncias históricas, sociais e políticas. Na América Latina o movimento de contestação do Serviço Social tradicional apresentou particularidades, pois, na época, pautava-se a questão do desenvolvimentismo social com o fim de promover o acesso de minorias aos direitos de cidadania. Essa conjuntura chocava-se com as políticas sociais restritivas. As elites excluíam econômica, social e politicamente as massas. Assim, a autora destaca a particularidade do movimento de reconceituação: Enquanto movimento especificamente latino-americano – mesmo levando-se em conta a diversidade continental -, ela se recobriu com um conteúdo nitidamente antiimperialista e, nas suas correntes mais radicais, anticapitalista – e, neste último caso, não foram poucas as suas projeções socialistas. É compreensível, pois, que uma das mais salientes dimensões da Reconceituação tenha sido a dimensão político-ideológica: mesmo nas suas vertentes que não punham em questão, substancial e estruturalmente, a ordem capitalista, a crítica e a denúncia dos valores do Serviço Social ‘tradicional’ foram uma constante (Machado, 1997, p. 11). Cabe destacar a dimensão político-ideológica, o que não necessariamente se reflete na prática. Trata-se de uma crítica e denúncia dos valores do Serviço Social tradicional. O movimento de reconceituação não se restringiu a uma crítica político ideológica do tradicionalismo, mas certamente esta foi sua principal manifestação. Machado (1997) demarca como auge da reconceituação os anos de 1965 – quando ocorre o Seminário Regional Latino-Americano de Serviço Social – a 1975 – momento de crise política na Argentina. As principais críticas ao Serviço Social tradicional são destacadas pela autora como: A vinculação do Serviço Social ‘tradicional’ aos interesses das classes dominantes, a sua legitimação prático-pedagógica da ordem burguesa, o seu papel disciplinador e ‘integrador’ frente às classes e camadas subalternas, a sua funcionalidade na reprodução do status quo – estes foram os alvos prioritários dos intelectuais da reconceituação (Machado, 1997, p. 13). 85 Outro aspecto de crítica foi o tipo de aproximação realizada pelos assistentes sociais ao marxismo. Era uma leitura estruturalista do marxismo que o confrontava ao positivismo ratificando a dicotomia entre “metafísica/ dialética”12. Isso implica em uma falta de aprofundamento da problemática questionada na reconceituação. A interlocução do Serviço Social com o marxismo ocorreu através de partidos políticos e movimentos sociais recorrendo a fontes secundárias e com base em um forte ecletismo e voluntarismo. Por outro lado, foi a crítica político-ideológica de base marxista que permitiu um tratamento histórico do Serviço Social. Buscou-se uma interpretação do desenvolvimento do Serviço Social na sua origem (Europa e Estados Unidos) e na América Latina. Essa busca permitiu a concretização das primeiras leituras históricas do Serviço Social latino-americano. No período pós-reconceituação - segunda metade dos anos 70 - o Serviço Social latinoamericano conseguiu realizar uma auto-crítica. Papel importante teve o Centro Latino-Americano de Trabalho Social (CELATS). O CELATS foi responsável por um projeto de pesquisa multinacional sobre as histórias nacionais do Serviço Social latino-americano. Ainda assim, ocorre um tardio tratamento histórico do Serviço Social. Contraditoriamente 12 No terceiro capítulo iremos demonstrar a relação do pragmatismo com a metafísica. Desde já cabe elucidar que de acordo com Japiassu e Marcondes (1991) Metafísica é um termo que remete à obra de Aristóteles e aos estudos da física, refere-se a algo que está além da física. Já na tradição clássica está relacionada a uma parte mais central da filosofia, a ontologia do ser enquanto ser. “A metafísica define-se assim como filosofia primeira, como ponto de partida do sistema filosófico, tratando daquilo que é pressuposto por todas as outras partes do sistema, na medida em que examina os princípios e causas primeiras, e que se constitui como doutrina do ser em geral, e não de suas determinações particulares, incluindo ainda a doutrina do Ser Divino ou do Ser Supremo” (idem, p. 165). Há também uma definição a partir da tradição escolástica que trata de uma metafísica geral (ontologia) e metafísica especial (domínios específicos do real e apresenta subdivisões). É com o pensamento moderno que a metafísica perde espaço e nisso reside a crítica dos pragmatistas, pois, questões referentes a consciência e a subjetividade ganham relevância fundamentais. Mora (1996) trata do pensamento de Aristóteles para permitir chegar ao conhecimento do significado da metafísica. Para Aristóteles existe uma ciência que trata do ser enquanto ser para investigar os primeiros princípios e as causas mais elevadas, por isso é chamada de filosofia primeira. A parte da ciência que irá tratar da natureza será a física. Entretanto, esta filosofia primeira ao abordar o ser como ser, irá tratar também de algo que é superior ou supremo. A metafísica está relacionada a uma investigação formal vinculada a uma lógica a respeito de assuntos como: o ser, o transcendental, a substância, o modo, a essência, a existência. “A metafísica trata do ser, o qual é ‘conversível’ com a verdade, mas sendo Deus a fonte de toda verdade, Deus é o objeto da metafísica. Por outro lado, a metafísica é a ciência do ser como ser e como substância” (Mora, 1996, p. 471). A crítica ao pragmatismo se iniciou nos Estados Unidos, partiu da Escola de Chicago, quando um grupo de pensadores iniciou um movimento chamado “Clube da Metafísica” como uma forma de criticar e se opor a idéia de filosofia primeira. 86 as primeiras escolas de Serviço Social surgem na segunda metade dos anos 30, quando a pesquisa histórica brasileira entra em sua fase crítico-científica. Isso foi resultado em parte, do norte ídeopolítico da profissão que estava ancorado no conservadorismo. Esse norte só é questionado quando o Serviço Social passa a ter condições de pensar-se histórico-criticamente. A perspectiva histórica do Serviço Social não é restrita a análise da sua origem e da sua evolução, mas está relacionada a uma perspectiva de totalidade. “O tratamento histórico do Serviço Social (...) demanda não só a crítica e a denúncia ideo-política do tradicionalismo profissional, mas, ainda e sobretudo, a crítica dos seus fundamentos teóricos” (Machado, 1997, p. 21). Na leitura de Machado, Iamamoto vincula a crítica ídeo-política do tradicionalismo do Serviço Social a uma crítica teórica e cultural. A profissão surge e se desenvolve a partir do conservadorismo moderno funcional à sociedade capitalista. Ainda em suas análises, Machado (1997), destaca que Netto recupera o debate iniciado por Iamamoto anos depois (em 1992) baseado na perspectiva marxista desenvolvendo uma análise histórico-sistemática do Serviço Social nos planos sócio-político e histórico-cultural. Netto distinguiu as bases européias e norteamericanas que possuíram influência no Serviço Social brasileiro. Na primeira, prevaleceu a vinculação com o catolicismo social marcado pelo anticapitalismo romântico. No segundo, a profissão surgiu vinculada ao individualismo liberal e ao capitalismo. A relevância das análises de Netto e de Iamamoto são destacadas na seguinte passagem: A partir das análises de Iamamoto e Netto, largamente divulgadas no debate profissional e consideradas quase unanimamente, na categoria dos assistentes sociais, como altamente qualificadas, a relação Serviço Social/ pensamento conservador tornou-se como que uma conquista da massa de conhecimentos desenvolvida pelos intelectuais da profissão. Não é exagerado dizer-se que, para as correntes profissionais críticas, está posta como um dado esta relação – e tanto que se tem reiteradamente afirmado que um Serviço Social crítico é função de uma inteira ruptura com o pensamento conservador (Machado, 1997, p. 30) (grifos da autora). A autora destaca que é importante conhecer o pensamento conservador, visto que, aparecem na profissão perspectivas que afirmam a possibilidade de uma reatualização do conservadorismo ou um neoconservadorismo, as caracterizando como uma continuidade do conservadorismo tradicional. 87 A preocupação de Machado será com o estudo do conservadorismo clássico. Para ela, há algumas dificuldades para aqueles que se propõe a estudar o conservadorismo: a primeira é a delimitação histórica, a segunda é a caracterização do pensamento conservador, a terceira é a relação entre os momentos evolutivos do pensamento conservador. São características que se não forem consideradas colocam o pensamento conservador em um patamar único e hegemônico. Dessa forma, existe uma noção do conservadorismo difundida pelo senso comum. É uma noção que busca preservar idéias que são valorizadas social e culturalmente, está atrelada ao pensamento cotidiano e por isso não aprofunda nem explica o pensamento conservador. No debate das ciências sociais e da teoria política, a noção de conservadorismo apresenta um sentido mais técnico e é datada a partir da Revolução Francesa. Acerca dessa limitação Machado (1997) apresenta duas questões. A primeira é: até quando o pensamento conservador irá manter-se no processo de desenvolvimento das formas sócio-políticas que sucederam a velha ordem (ou seja, que sucederam ao feudalismo); a segunda é: o estabelecimento de uma tradição conservadora não soluciona as transformações sofridas pelo conservadorismo, em outras palavras: nem o conservadorismo se expressa como um pensamento único. Nenhuma das duas questões é clara nas respostas dos pensadores conservadores estudados por Machado. O pensamento conservador, tal como o entendemos aqui, não é um ‘estilo de pensamento’ intemporal, ahistórico, encontrável em qualquer tempo e em qualquer sociedade. Nem se confunde com quaisquer formas intelectuais e comportamentais que valorizam, sancionam e defendem o existente – formas a que cabe a denominação de tradicionalismo. Antes, o pensamento conservador é uma expressão cultural (...) particular de um tempo e um espaço sócio-históricos muito precisos: o tempo e o espaço da configuração e da consolidação da sociedade burguesa – configuração que deve ser tomada como ‘uma rica totalidade de determinações e relações diversas’ e em que operaram movimentos e tensões em todas as esferas e instâncias sociais (Machado, 1997, p. 43). Esta concepção do conservadorismo da autora mostra que o pensamento conservador é relacionado a concepções históricas e conjunturais. O processo geral da revolução burguesa não foi hegemônico. Ele ocorreu entre os séculos XVI e XVIII. Na revolução política, a burguesia destruiu o Estado feudal para criar e moldar o Estado capitalista. Neste período, em que a sociedade burguesa toma forma com a consagração da burguesia no poder, é que surge o pensamento conservador. 88 A autora destaca Burke como pensador conservador da época. Ele critica a forma de ação política do desenvolvimento capitalista através de mobilização de massas e a destruição de instituições sociais existentes até então (trata-se daquelas provenientes do período feudal). As novas instituições instaladas partem de uma racionalidade anti tradicionalista. Burke recusa as consequências sócio-culturais do capitalismo. Ele propõe o desenvolvimento econômico capitalista sem a ruptura com as instituições pré-capitalistas, como “o privilégio da família, as corporações, o protagonismo público-temporal da Igreja, a hierarquia social cristalizada” (Machado, 1997, p. 50). Essa forma de pensar apontada por Burke apresenta seus traços no anticapitalismo romântico que se articula a uma perspectiva restauradora da ordem social. A função social do pensamento conservador, tal como aparece nos imediatos continuadores de Burke, é inequívoca: o conservadorismo expressa os interesses dos privilegiados do Ancien Regime, a nobreza fundiária e o alto clero. O pensamento conservador exprime, assim, um projeto de restauração que, em pouco tempo, revela-se inviável: entre 1815 (o Congresso de Viena, que consagra a Santa Aliança) e 1830 (a revolução de julho, que derruba, na França, Carlos X, o último Bourbon), o que se manifesta, na Europa Ocidental, é a irreversibilidade das transformações que o desenvolvimento do capitalismo impõe às instituições sociais. As perspectivas restauracionistas, que, até então, pareciam viáveis, tornam-se claramente delirantes (‘utópicas’) (Machado, 1997, p. 51). Após cumprir sua missão histórica revolucionária, a burguesia torna-se classe dominante em uma nova estrutura social. Nesse momento, deixa de ser a classe que se reivindicava como representante do conjunto dos interesses da sociedade. No poder político e econômico passa a voltar-se para si mesma e a defender seus interesses particulares. A cultura moderna, que fora outrora reivindicada pela burguesia, deixa de ser funcional a ótica desta classe social e precisa ser redimensionada. Seu objetivo será “eliminar ou neutralizar os conteúdos subversivos da cultura moderna, especialmente aqueles vinculados à sua dimensão emancipadora” (Machado, 1997, p. 53). A burguesia, pressionada pelo movimento operário e socialista, abdica da cultura progressista (decorrente do período da ilustração) e busca uma ideologia racionalizadora que legitime seu domínio e seu poder. A classe que chega ao poder outrora contribuiu para fortalecer os ideais da Ilustração, vive agora o período da decadência ideológica13. É no período de 1830 a 13 Sobre o período da decadência ideológica podemos destacar a leitura de Machado ao livro “A destruição da razão” de Lukács, pois ele trata do período fascista alemão. Lukács aponta que o desenvolvimento capitalista na Alemanha 89 1848 que a burguesia vive seu período de crise decisiva. A partir desse momento o conservadorismo apresenta uma alteração de função e de significado: Se, originalmente, o pensamento conservador é, como vimos, restaurador e anti-burguês, na reviravolta referida por Lukács este caráter se transforma: o que tende a se desenvolver no seu interior, mais que aqueles dois traços, é o seu eixo contrarevolucionário. Nos primeiros conservadores, a recusa da revolução expressava um repúdio à revolução burguesa (...); nos conservadores que trabalham nas condições pós48, com a evidência da inviabilidade da restauração, o conservadorismo passa a expressar o repúdio a qualquer revolução – ou seja, o pensamento conservador passa a se definir explicitamente como contra-revolucionário. É assim que ele tem substantivamente mudada a sua função social: de instrumento ideal de luta antiburguesa, converte-se em subsidiário da defesa burguesa contra o novo protagonista revolucionário, o proletariado. Porém, a mudança da sua funcionalidade sócio-política afetará, como veremos, a sua própria estrutura teórica (Machado, 1997, p. 57). Essa mudança ocorre no período compreendido entre 1830/ 1848. Machado cita dois autores - Comte e Tocqueville - como expressão de tal mudança do conservadorismo antiburgues e do conservadorismo antiproletário. Não cabe neste trabalho esmiuçar a obra de tais autores, mas vale destacar que em Comte o positivismo passa a garantir a estabilidade social. Tocqueville atingiu a forma imperialista precocemente, sem ter ocorrido uma revolução democrática. Por outro lado, o capitalismo alemão se expressou como potência européia. A cultura alemã se desenvolveu no século XX de forma expressiva através de um combate entre racionalistas e irracionalistas. Havia uma tendência que objetivava compreender os processos histórico-sociais e uma tendência que percebia os processos histórico-sociais como um confronto. Machado (1997) destaca que Lukács analisa a obra de Hegel como a mais expressiva do programa da modernidade. Assim, Machado sinaliza que o pensamento anti-revolucionário, na Alemanha, se desenvolverá como uma negação ao pensamento de Hegel e irá se desenvolver como “negação irracionalista da dialética” (Machado, 1997, p. 199). Sobre as determinações do irracionalismo, Lukács irá tratar do conceito de decadência ideológica. Ambos os conceitos estarão compatíveis com o período da decadência pós-1848. “Com efeito, Lukács reconhece uma espécie de profunda afinidade entre o romantismo e o irracionalismo; mais exatamente, é da síntese entre reação romântica e irracionalismo que redundará na filosofia irracionalista burguesa, própria do período da decadência na Alemanha, cuja primeira expressão será A. Schopenhauer e cujo corifeu será F. Nietzche, um dos precursores do fascimo” (Machado, 1997, pag. 203). Após 1848 a crítica romântica torna-se reacionária. O período da decadência expressa uma apologia simples e direta do capitalismo e uma apologia indireta de origem romântica e irracionalista. Lukács reconstrói o processo do irracionalismo alemão. Ele demonstra a filosofia que sintetiza o anticapitalismo romântico e o irracionalismo associado a rebeldia e a insatisfação contra o movimento socialista revolucionário. “A abordagem lukacsiana diz respeito exatamente ao processo do conservadorismo clássico na particularidade histórica alemã; aqui, a evolução do conservadorismo foi abertamente no sentido da contra-revolução – a extrema ‘pureza’ da reação romântica ao Iluminismo e à Revolução conduziu ao extremo reacionarismo que, nas condições da unidade nacional pela ‘via prussiana’, derivou no fascismo”. (Machado, 1997, p. 206). Vale destacar uma nota na qual Machado afirma que Lukács reconhece que o irracionalismo é uma tendência do período da decadência ideológica. Lukács se preocupou com a análise da sociologia e em demonstrar que ela passou por um processo de destruição da razão. A sociologia se constitui na base de um movimento de deseconomização e buscou seus fundamentos nas ciências naturais. A sociologia surge como ciência comprometida com a apologética burguesa. No período da decadência suas pretensões universalistas se debilitam; pois tende a se desenvolver como ciência especializada. 90 busca uma democracia controlada articulando liberdade com igualdade para evitar a “tirania da maioria”. O pós-48 apresenta um quadro sócio-cultural de mudança da função social do pensamento conservador. Tal mudança será no sentido de defender a ordem burguesa contra a ameaça revolucionária-socialista, “ele tende tanto a estruturar-se como filosofia social quanto como conhecimento científico-social, seja sob a forma de ciência social, seja sob a forma de teoria política” (Machado, 1997, p. 60). Na filosofia social, o anticapitalismo romântico do pensamento conservador se associou ao irracionalismo moderno e implicou em uma apologia indireta da ordem burguesa. Os conservadores buscarão produzir um conhecimento voltado para o favorecimento da ordem burguesa que permita uma compreensão e um controle de suas crises. “Estes dois fenômenos – crise social e revolução – polarizarão todo o pensamento conservador pós-48: estão na raiz da ciência social que é a filha direta do conservadorismo pós-48, a sociologia” (Machado, 1997, p. 62). O principal autor que expressa o pensamento conservador nesse momento é Durkheim14. 14 Dentre os principais trabalhos de Durkheim (1858/ 1917) destacamos: “As regras do método sociológico”, “Da divisão do trabalho social”, “O suicídio” e “Formas elementares da vida religiosa”. Segundo a análise que fizemos das referências citadas, Durkheim tentou pensar os conflitos do mundo industrial através da relação entre os indivíduos e a coletividade. Ele foi um filósofo por formação e uma de suas principais influências foram de Augusto Comte, o fundador do positivismo. Durkheim aprofundou a visão de Comte ao dizer que a consciência coletiva no mundo industrial estava relacionada a valorização do indivíduo. Ele considerava que a sociedade fazia parte da natureza e, portanto, propões a utilização dos métodos de estudo das ciências naturais para abordar os fatos sociais que são causais por possuírem uma relação entre variáveis, entre dimensões da realidade social; e são funcionais, pois as necessidades da sociedade são diferentes das necessidades dos indivíduos isoladamente. Assim, Durkheim compreendeu a sociedade como um organismo no qual cada parte possui uma função para formar o todo. Ao tratar da divisão social do trabalho afirmou que sua função é criar a coesão social necessária para a manutenção da unidade social. A divisão do trabalho social permitiu o crescimento da população e forçou os grupos sociais a estabelecerem contatos entre si. As funções em contato umas com as outras tendem a se equilibrar. Segundo sua lógica, a sociedade vive um estado de anomia social porque esta integração é cada vez mais frouxa e fraca. Portanto, é necessário um grupo que estabeleça um conjunto de regras e isso só pode ocorrer através das profissões. Assim, para Durkheim, o único grupo que pode exercer essa função é o grupo profissional, é a corporação. Assim, em linhas gerais a vertente funcionalista de Durkheim está diretamente relacionada ao estudo da sociedade, da divisão social do trabalho e da solidariedade. Essa vertente funcionalista visa compreender a diferença das profissões e a multiplicação das atividades industriais. A sociologia para ele é uma prioridade do todo sobre as partes, é a explicação dos elementos pelo todo. Para uma leitura aprofundada da obra de Durkheim ver Aron, R. As etapas do pensamento sociológico (1997), Durkheim. Da divisão do trabalho social (1995), Durkheim. As regras do método sociológico (1999). 91 Machado indica uma questão relevante: o importante da obra de Durkheim em relação ao conservadorismo é que ele consolida plenamente o pensamento conservador refuncionalizado ao não apresentar nenhum elemento que seja possível questionar a ordem burguesa. O anticapitalismo conservador deixa de ser restaurador e mobilizador, ele passa a ser uma crítica da ordem burguesa. A autora caracteriza como período clássico do conservadorismo aquele dotado de otimismo por parte dos conservadores. Havia uma confiança de que a história futura seria positiva para os homens. Do pensamento conservador anticapitalista resignado ao anti-socialista, havia uma concepção otimista dos rumos da história. Durkheim é o último pensador a defender esta perspectiva otimista, após sua morte esta confiança em um desfecho positivo da história não se manifestaria mais. Por isso, esse é o período considerado como conservadorismo clássico. Um dos sentidos da evolução do conservadorismo, passado o seu período clássico, é associar-se ao reacionarismo moderno; o otimismo perdido é substituído pelo desespero – a angustia (...) favorece a sua vinculação às filosofias da vida tão funcionais (...) ao fascismo (Machado, 1997, p. 69). Para a autora, ao se combater os valores da Ilustração, o conservadorismo explicitou sua referência, que permaneceria a mesma por mais de um século. Após 1848 alterou-se o significado sócio-político do referencial conservador. O primeiro traço expressado pelos conservadores sobre sua posição social diante das mudanças apontadas no período foi terem sido contrários à separação entre Igreja e Estado, sob a alegação de que tal separação desfavoreceria a legitimidade da religião e que a sociedade não poderia existir sem uma religião que se expressasse nos aparatos do Estado. O segundo traço foi quando os conservadores posicionaram-se contra a liberdade na autonomia dos indivíduos, pois defendiam que isso acarretaria em implicações para a unidade social. De fato, o pensamento conservador recusa os valores e princípios da modernidade e os fundamentos democratizantes. Nota-se que não se trata, necessariamente, de um embate direto do conservadorismo com valores e/ ou princípios revolucionários que estivessem em vigor, mas sim de toda e qualquer expressão que pudesse propiciar espaço para o crescimento revolucionário. 92 Em suma, significa dizer que os fundamentos democratizantes não estavam, necessariamente, a serviço de uma proposta revolucionária. Ou melhor: a classe dominante também reivindica a democracia, porém trata-se de uma democracia restrita. Os conservadores apresentam uma preocupação em como se consolida a relação entre homem e sociedade. Assim, difundem a constituição da família como central para a harmonia social, pois ela é a base moral da sociedade e formadora de valores dos indivíduos. Essa formação dos indivíduos ocorrerá na família e também partirá de “grupos intermediários” (podem ser associações, corporações, abrigos). Estes traços constitutivos do conservadorismo percorrem o conjunto do pensamento conservador em seu período clássico – o único deles que, no pós-48, tenderá a perder sua importância é o componente clerical, cada vez menos visível. Entretanto, a mudança da função sócio-política do pensamento conservador (...), acarretando também alterações na sua estrutura interna, subordinará esses traços à articulação científico-sociológica propiciada pela combinação com o positivismo (Machado, 1997, p. 87). Em síntese, o pensamento conservador, em seu período clássico (período da Revolução Francesa – 1789 – a Primeira Guerra Mundial – 1914) partiu da recusa à ordem social estabelecida pela burguesia revolucionária para uma atitude de defesa da ordem burguesa consolidada. O desenvolvimento do pensamento conservador ocorre entre 1830 e 1848, quando há um esgotamento do ciclo revolucionário burguês. Machado (1997, p. 91) destaca dois marcos importantes do pensamento conservador: Enquanto recusa original da ordem burguesa, o pensamento conservador propôs-se como projeto restaurador, anti-racionalista e antidemocrático, rechaçando a cultura da Ilustração e os traços mais salientes da Modernidade (secularização, industrialização, urbanização), em defesa de valores e instituições pré-capitalistas (grifos da autora). Depois de 1848, o conservadorismo, confrontado com a ‘questão social’ e o movimento socialista revolucionário de base operária, rendeu-se à irreversibilidade do desenvolvimento capitalista e assumiu uma perspectiva especialmente contrarevolucionária, oferecendo alternativas reformistas para preservar a ordem estabelecida e, incorporando, em sua tendência predominante, a racionalidade instrumentalpositivista, mobilizou-se para elaborar a representação teórico-sociológica da sociedade burguesa. Machado irá analisar a obra de Manheim, pois ela está atrelada a uma especialização sociológica que atingiu um estatuto acadêmico. Trata-se da sociologia do conhecimento. Para Manheim, a sociologia do conhecimento tem por objetivo compreender o pensamento em um 93 contexto histórico-social. Os homens inseridos em grupos desenvolvem uma forma de pensamento particular em busca de respostas a situações consideradas comuns. Manheim afirma que a história do pensamento é uma análise de estilos de pensamento. O aspecto importante para entender as mudanças são os grupos ou classes sociais. Ao estudar o conservadorismo alemão, Manheim aponta dois aspectos. Primeiro, o pensamento conservador alemão esteve envolvido com o romantismo, expressando-se na filosofia. Segundo, o historicismo é uma contribuição ao pensamento conservador. Em outro momento Machado (1997) destaca a obra de Nisbet, pois ele é um autor que esteve atento ao pensamento conservador. Ele tem como objeto de interesse a investigação do conservadorismo. Nisbet buscou analisar a relação entre o pensamento conservador e a sociologia, relação esta que ele considerava como genérica e constitutiva, ou seja, elas possuem relação entre si. Nisbet abordou a perspectiva conservadora atrelada à sociológica. Ele relaciona análise conservadora com tradição sociológica, articulou a sociologia como expressão científica do pensamento conservador. Nisbet entendeu a sociologia como uma ciência social que dá corpo teórico e continuidade ao conservadorismo. Ele assumiu que quando o conservadorismo converte-se em discurso científico origina-se a sociologia. Após a análise dos autores que acabamos de elencar, Machado realiza uma análise sobre as críticas marxistas ao conservadorismo. É no período clássico do conservadorismo (1789 – 1914) que surge o marxismo. A mudança de função do conservadorismo implicou em um combate ao marxismo, já o marxismo se empenhou em denunciar o conservadorismo. No século XX apareceu uma análise mais sistemática do pensamento conservador pelos marxistas, e foi tratada como teoria da contra-revolução. O marxismo e o conservadorismo se expressam como vertentes do pensamento e da prática política de forma “antípodas e antagônicas”. O conservadorismo repudia na sociedade burguesa características que o marxismo apresenta como essenciais para a libertação da humanidade. A autora resgata a obra de Lênin para mostrar que o marxismo se constitui e se articula a partir da economia política inglesa, a filosofia clássica alemã e o socialismo utópico, ou seja, a partir da cultura moderna. Aspectos que se contrapõem ao conservadorismo. “A base fundante do 94 antagonismo entre marxismo e conservadorismo reside na avaliação histórica do Iluminismo e da Revolução” (Machado, 1997, p. 163). O antagonismo entre pensamento conservador e marxismo manifestou sua força no plano político e, nesse aspecto, em todos os conflitos apresentados, a posição dos marxistas foi contrária a posição dos conservadores. Após a revolução de 1848, Marx e Engels enfrentaram mais diretamente o conservadorismo. É importante destacar que Marx e Engels apresentam ao longo de suas obras e de seus combates políticos, posições contrárias e antagônicas ao conservadorismo, porém não foi preocupação deles formular: Uma crítica sistemática do conservadorismo. Envolvidos como estavam na elaboração teórica e na organização do movimento operário, seus esforços de crítica sistemática se dirigiram, sobretudo às correntes que poderiam afetar diretamente essa organização, a que desejavam dar caráter revolucionário e de massas – daí o tratamento muito mais detalhado de seus oponentes no campo reformista (Proudhon) e revolucionário (Bakunin) do que o dedicado aos seus antagonistas (Machado, 1997, p. 171). Marx e Engels apresentaram elementos fundamentais que permitiram embasar uma crítica ao conservadorismo a partir da concepção da qual se apropriaram, concepção que se expressou nas relações entre cultura e desenvolvimento econômico. Machado destaca que os marxistas, diante da conjuntura do século XX, são direcionados a realizarem uma crítica ao conservadorismo, seja pela derrota da revolução proletária, seja pela chegada do nazi-fascimo ao poder político, seja pela ditadura stalinista na União Soviética. Ao relatar tais fatos, Machado sinaliza que a crítica ao conservadorismo se deu menos por motivos teóricos e mais por questões de ordem prático-política. Isso significa que a conjuntura conservadora da época demandava uma resposta dos marxistas à realidade. Machado finaliza apresentando a leitura de Löwy sobre o conservadorismo. As respostas românticas não tiveram sentido ideo-político e cultural. Elas foram formuladas de maneiras diversas para apontar comportamentos conformistas ou revolucionários. A visão do mundo romântica não é suporte do conservadorismo nem do reacionarismo. Para Löwy não há uma relação antagônica entre romantismo e Iluminismo. A autora acrescenta que existem seis tipos de romantismo: “o restitucionista, o conservador, o fascista, o resignado, o reformador e o 95 revolucionário e/ou utópico” (Machado, 1997, p. 220). Machado apresenta uma contribuição importante para o Serviço Social. Sua preocupação em resgatar a compreensão do conservadorismo romântico nos aponta dois aspectos: o primeiro, trata-se de fundamentar e caracterizar o conservadorismo, sua heterogeneidade, pois frequentemente, tendemos a tratar de “um conservadorismo” e não de “uma das expressões do conservadorismo”; o segundo aspecto refere-se a densidade de suas análises e a preocupação em esmiuçar a leitura de diversos pensadores sobre as bases do conservadorismo. A partir da leitura de Machado pudemos constatar e reafirmar a crítica a sociedade capitalista – ora tratada no primeiro capítulo através do pensamento de Lukács – e também, constatamos que a sociologia possui uma relação com o conservadorismo – conforme sinalizado no primeiro capítulo na leitura que fizemos de Gouldner. As reflexões de Machado confirmam nossa análise da conjuntura na qual o conservadorismo surge como uma contra proposta ao pensamento crítico marxista de análise da sociedade capitalista. Não basta o Serviço Social pensar nas expressões do conservadorismo de forma endógena, mas sim compreendê-la em sua totalidade e conjuntura histórica. Ao abordar uma análise do pensamento conservador a proposta de Machado ultrapassa uma simples associação da profissão aos limites do pensamento conservador. A autora consegue capturar a dialética e contradições desta relação ao mesmo tempo em que aponta a sociedade capitalista como um marco importante para a configuração do conservadorismo. Sendo a ideologia da classe dominante a principal expressão de um modo de ser e de pensar da sociedade capitalista, Machado mostra que este pensamento está ancorado em bases conservadoras. Sua principal preocupação é compreender o conservadorismo romântico, pois ele é uma expressão da reprodução da ideologia dominante e de seus interesses de classe. 96 2.4. O debate das duas teses: da compreensão conservadora a compreensão crítica do Serviço Social Após discutirmos as influências conservadoras no Serviço Social e sua expressão através do sincretismo, apontaremos um debate relevante para o entendimento do significado e surgimento da profissão. Sem essa apropriação e sem uma leitura crítica do movimento histórico, que permitiu o surgimento do Serviço Social no Brasil, os assistentes sociais podem recair em diversas leituras equivocadas e também podem sofrer influências do pensamento conservador sem ao menos terem a apropriação necessária para serem capazes de criticá-lo. A compreensão da origem do Serviço Social foi muito debatida e polarizada em torno de duas idéias. Mesmo que atualmente tenhamos atingido uma leitura crítica da inserção da profissão na sociedade capitalista e que tal leitura seja hegemônica, embora não a única, na formação profissional dos assistentes sociais, há, ainda, outras compreensões sobre a gênese do Serviço Social. Tais leituras apontam duas perspectivas divergentes que se manifestaram na profissão de formas diferenciadas. A importância de entender tais visões nos esclarece a imagem historicamente configurada da profissão e nos permite perceber os elementos constitutivos que configuraram o Serviço Social. Existem duas perspectivas sobre a origem da profissão que demarcam o surgimento do Serviço Social na sociedade capitalista que são a perspectiva endogenista e a perspectiva histórico-crítica. Montaño (2007) situa a perspectiva endogenista como predominante até o período caracterizado como movimento de reconceituação. Já a perspectiva histórico-crítica vigorou de forma mais ampla a partir da segunda metade da década de 1980. Sinalizo ainda que a primeira perspectiva está vinculada a uma concepção conservadora da profissão e a segunda está atrelada a uma visão crítica da origem do Serviço Social, exatamente por se configurar em um momento de questionamento das bases e da origem da própria profissão. A perspectiva endogenista concebe a profissão como uma forma de evolução, de organização, de profissionalização e de reorganização da ajuda, de caridade e da filantropia. A 97 profissão é vista a partir de si mesma, sem relação com o contexto social, com o movimento da história ou com a perspectiva de totalidade. O movimento da realidade não é apreendido como um fundamento essencial, ele é visto como etapas de desenvolvimento de formas de caridade e filantropia. Seria uma forma de ajuda mais organizada e sistematizada, e também mais avançada. Dentro desta perspectiva há autores que divergiram acerca da gênese do Serviço Social. Alguns concebem o Serviço Social como proveniente de qualquer tipo de ajuda como as de origem das relações entre os homens desde o surgimento de sua história, de sua humanidade. Outros distinguem a profissão de certas práticas de ajuda como a caridade, a filantropia muito atrelada ao surgimento do capitalismo. Não há divergência entre os autores que defendem essa perspectiva, isso porque eles apontam a seguinte tese: “o Serviço Social é a profissionalização, organização e sistematização da caridade e da filantropia” (Montaño, 2007, p. 26). Montaño (2007) discorre acerca de diversos autores que concebem a profissão a partir de si mesma como se o Serviço Social surgisse de forma natural na sociedade, como uma evolução de práticas de ajuda pré-existentes. Nessa concepção não há uma análise da realidade social nem do contexto histórico em que o Serviço Social é requisitado. Não cabe aqui tratar de cada autor particularmente, já que nosso objetivo é entender a percepção na qual se desenvolveu a profissão e os elementos que compõem sua origem. De uma forma geral, é possível dizer que sobre a perspectiva endogenista: A história e a sociedade são postas apenas como o cenário de desenvolvimento profissional (...), como uma maquete onde se insere uma peça autônoma do contexto. Nessa crônica historiográfica realiza-se, portanto, uma descrição dos eventos históricos e neles, como autônomos, se situam os eventos profissionais, sem relação imanente visível entre o desenvolvimento do Serviço Social e a história da sociedade. Desta forma, os fatos, tanto do Serviço Social quanto da história, são naturalizados; constrói-se a ‘história’ (...) sem recuperar a processualidade histórica, num claro etapismo (Montaño, 2007, p. 28). Netto (2001) trata a perspectiva endogenista como a “tese simples”. O simples refere-se justamente ao fato de se realizar uma leitura simplista do surgimento do Serviço Social, sem passar por uma análise crítica da história na qual a profissão se insere, sem entender o movimento do capitalismo nem suas contradições e requisições. É simples porque visa entender o surgimento da profissão a partir de um referencial teórico-científico e da necessidade de se apropriar de um 98 instrumental operativo de origem técnica. O norte teórico-científico defende que o Serviço Social conseguiria superar sua origem baseada em formas de ajuda se fosse capaz de desenvolver um arsenal teórico próprio. Ou seja, se a profissão portasse certa cientificidade, se fosse reconhecida como uma área da ciência com teoria própria. Já a necessidade de se apropriar de um instrumental operativo refere-se ao fato de tal perspectiva prioriza instrumentos de intervenção profissional. A busca por instrumentos de intervenção ocorre porque os profissionais reivindicam arsenais materiais para sua atuação profissional. Ao tratarem da realidade social e das expressões da “questão social” os assistentes sociais apresentam dificuldades de trabalhar com as respostas que devem dar a suas demandas. Ao trabalharem com políticas sociais os assistentes sociais devem ter uma boa análise da realidade, das respostas possíveis a serem dadas e dos limites de sua intervenção. Não se trata simplesmente de materializar o resultado de sua intervenção. O Serviço Social é uma profissão que exige de seus profissionais um exercício constante de seu intelecto. Se os profissionais não conseguem compreender que a existência de um instrumento material não determina sua inserção e intervenção profissionais, ele poderá recair em uma série de equívocos. Não se trata de negar o aporte instrumental, mas sim de percebê-lo como um meio de intervenção que por si só não confere respostas às demandas apresentadas. É importante destacar que Netto (2001, p. 70) trata da complexidade de se entender a origem do Serviço Social. Ele diz que esse equívoco de compreensão sobre a origem da profissão ocorre porque: Trata-se da relação de continuidade que efetivamente existe entre o Serviço Social profissional e as formas filantrópicas e assistenciais desenvolvidas desde a emergência da sociedade burguesa. Esta relação é inegável e, em realidade, muito complexa; de um lado, compreende um universo ideo-político e teórico-cultural, que se apresenta no pensamento conservador; de outro, envolve modalidades de intervenção características do caritativismo –ambos os veios cobrindo igualmente a assistência ‘organizada’ e o Serviço Social. A partir da perspectiva histórico-crítica a origem da profissão é analisada na processualidade social, política e econômica do desenvolvimento histórico da sociedade na fase do capitalismo monopolista quando se agrava e acirram as expressões da “questão social” e o 99 Estado passa a intervir sobre a mesma através de políticas sociais. Montaño (2007) apresenta uma série de autores que defendem essa perspectiva e que também divergem entre si, mas em comum concordam com o fato de que o assistente social é um executor terminal de políticas sociais, é um ator subalterno. O assistente social possui como campo de trabalho privilegiado a esfera estatal, que é constituída por políticas sociais. Portanto, o Serviço Social é uma profissão tensionada, repleta de contradições (assim como a lógica da ordem social na qual se insere). Para Montaño a profissão emerge no momento em que o Estado se enfrenta com a “questão social” através de políticas sociais que requerem agentes técnicos para sua formulação e sua implementação. O assistente social é um agente executor de políticas sociais e não desempenha funções produtivas15. A intervenção profissional reproduz as dimensões da resposta integradora das políticas sociais. A partir dessa polarização de concepções (perspectiva endogenista e perspectiva históricocrítica) Montaño (2007) destaca dois pontos importantes sobre a necessidade de se analisar o surgimento do Serviço Social de forma crítica. O primeiro, refere-se à necessidade da apreensão da particularidade do Serviço Social, a partir de um processo histórico englobando uma perspectiva de totalidade. O segundo, consiste no fato de que é necessário reconhecer a participação dos primeiros agentes profissionais. Estes aspectos iniciais devem ser apreendidos de forma crítica, pois permitem a compreensão dos fundamentos da profissão. Outro aspecto relevante é entender o Serviço Social como parte de um processo que se gesta na ordem burguesa e, nesse sentido, a profissão tem um papel nesta ordem social. Concordamos com Montaño (2007) quando o mesmo diz que a legitimidade da profissão está atrelada à função que executa e não à sua especificidade. Isso é importante porque historicamente o Serviço Social busca conhecer qual é sua especificidade, o que o diferencia de outras profissões que intervém na esfera social. A legitimidade de uma profissão decorre do fato de ela dar 15 É importante destacar que para Iamamoto (2007) o Serviço Social pode desenvolver funções produtivas, mas isso não é uma regra. A autora apresenta uma perspectiva diferente ao defender o Serviço Social como uma forma de trabalho. Sua inserção na divisão social e técnica do trabalho através de diversas áreas irá determinar se o assistente social desenvolve uma função produtiva ou não. Ela dá o exemplo do assistente social inserido na empresa e que contribui com a produção da mais-valia, por isso ele teria uma função produtiva. Já o assistente social inserido na esfera estatal trabalharia com a distribuição da riqueza produzida e não teria uma função produtiva. Este é um debate que requer muitos cuidados. 100 respostas às necessidades sociais, ou seja, de surgir como uma requisição do tensionamento entre a relação capital/ trabalho manifestada pela chamada “questão social” e pelo fato de se estruturar e se efetivar em instituições e organizações que demandem o trabalho deste profissional e organismos que desenvolvam políticas sociais. Isso significa que é um conjunto de elementos e fatores que conferem legitimidade a uma profissão, inclusive o aparato institucional, visto que o assistente social não é um profissional liberal. Precisamos considerar ainda que a profissão é demandada em dois aspectos: pela população usuária dos serviços sociais e das políticas sociais; e pelo Estado e instituições do capital. Esses atores defendem interesses antagônicos e, por isso, o Serviço Social apresenta uma feição contraditória. Essa dupla requisição à profissão não significa que os profissionais tenham que dar respostas a ambas as demandas na mesma intensidade. Ora o profissional atende mais as demandas do capital, ora atende mais as demandas dos usuários. O que define qual o ator prioritário é a inserção profissional, o campo de trabalho, a conjuntura, a leitura da realidade, e a correlação de forças. Em linhas gerais: são diversos fatores de diferentes ordens. Vale ressaltar que em nenhum momento o profissional deixa de atender uma requisição em detrimento de outra, elas estão sempre sendo polarizadas. Nisso consiste um dos aspectos contraditórios do exercício profissional. A análise feita pela perspectiva histórico-crítica é embasada em uma leitura marxista da realidade e, hoje, é a perspectiva hegemônica na formação profissional dos assistentes sociais e nas deliberações das entidades político-representativas da categoria profissional. Travar o debate da natureza do Serviço Social e as compreensões sobre sua origem é importante, pois permite entender quais ou qual base/s teórica/s incidem na profissão, ou seja, como os assistentes sociais lidam com o fato de o Serviço Social ter uma origem de base conservadora que demanda uma ação profissional mais imediatista e pragmática e, ao mesmo tempo, buscam uma leitura crítica-dialética referenciada pela teoria marxista. Ao entendermos os elementos que compõem o Serviço Social é possível pensar nos limites e possibilidades de ruptura com o conservadorismo. O debate da natureza do Serviço Social tem relação com a forma como os profissionais se 101 aproximaram das teorias sociais, da capacidade de realizarem uma análise crítica da realidade social e de compreenderem a lógica da sociedade capitalista. Para tanto, é necessário uma leitura crítica da realidade que só é possível através do pensamento crítico-dialético. As leituras que realizamos e as perspectivas dos autores que apontamos nos permitiram apresentar um panorama geral do debate do conservadorismo no Serviço Social. Esse debate é relevante para discutirmos tanto as relações que se fizeram presentes na profissão quanto os desafios e reatualizações do conservadorismo que se põem na contemporaneidade. Ao nos preocuparmos em aprofundar um entendimento do pragmatismo e sua possível relação com o Serviço Social nos reportamos a questionamentos que nos acometem diariamente quanto às exigências postas à profissão em seu cotidiano. Nossa principal preocupação consistiu em conseguir identificar os elementos pragmáticos e sua possível influência no Serviço Social. Partindo dessa preocupação apresentaremos no próximo capítulo algumas considerações sobre o pragmatismo clássico. Sabemos que estas são notas iniciais, uma proposta emergente de estudar uma das expressões que consideramos conservadoras, tão desconhecidas pelo Serviço Social, mas que não lhes são estranhas às requisições postas pela prática profissional. 102 3 - A racionalidade conservadora de origem pragmática: aspectos e características para o debate no Serviço Social No Brasil, a conjuntura da década de 1990 foi de aprofundamento das propostas neoliberais. As contradições do capitalismo foram enfrentadas de forma a enxugar os investimentos nas políticas sociais e a priorizar as ações que valorizassem a reprodução do capitalismo. As precárias condições de vida da massa da população tornaram-se mais evidentes e mais difíceis de serem escamoteadas. A desigualdade econômica e social se acirrou em decorrência da concentração de renda e de riqueza sobre o poder de uma elite econômica. Diante da precarização das políticas públicas, o Estado reduziu seu investimento na área social, ao mesmo tempo em que valorizou a área econômica. A conjuntura do momento apresentou um quadro complexo para o desenvolvimento do exercício do trabalho profissional dos assistentes sociais. A realidade social da população agravou-se continuamente e, assim, permaneceu com a virada do século XXI. Ao invés de manter direitos garantidos constitucionalmente e de se assegurar políticas públicas eficientes, houve um retorno do assistencialismo e da filantropia como forma de atender às demandas sociais existentes. Iniciouse um processo de parcerias entre o Estado e a sociedade civil que passou a se organizar através de Organizações Não Governamentais – ONGs – e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs. Ocorreu uma retomada do pensamento conservador, tanto do conservadorismo romântico – no sentido de manter um saudosismo às instituições e a um modo de pensar do passado précapitalista – como do conservadorismo tradicional – de manter a ordem social vigente. Este capítulo trata do pragmatismo a partir do debate realizado por Pogrebinschi (2005) pautado na leitura que a autora realizou de James, Dewey e Pierce, três dos principais precursores do pragmatismo. Nossa preocupação é apresentar as características deste modo de pensar e conceber as pesquisas e as teorias. Através da autora mencionada poderemos apresentar um panorama dos principais aspectos deste debate. Posteriormente recorremos a James, pois 103 consideramos sua leitura relevante para articular o debate do pragmatismo ao Serviço Social. Ao abordar o pragmatismo pretendo mostrar o significado desta racionalidade para a sociedade. Pretendo tratar não apenas de seu significado, mas também de sua essência, de sua origem, de seus precursores. Parto do suposto de que é inviável considerar o pragmatismo sem antes relacioná-lo a um modo de ser e pensar de determinado modo de produção e cultura. Tal proposição significa dizer que o pragmatismo está atrelado a uma determinada ideologia, portanto, possui uma função ideológica. Trato especificamente de uma perspectiva relacionada à sociedade norte-americana. Iremos tratar do pragmatismo a partir de algumas considerações que merecem ser destacadas. Primeiro, abordaremos um modo de ser e de pensar a sociedade e a realidade a partir de um movimento que surgiu nos Estados Unidos. Para tanto será necessário a apropriação dos autores e pensadores que trataram o pragmatismo, pois este não se expressa de forma homogênea entre seus adeptos. Ocorre justamente o contrário: há diversos autores que tratam do pragmatismo e o fazem de formas e perspectivas diferenciadas. Em segundo lugar, nos interessa conhecer quais as características deste modo de ser e pensar e suas implicações para a práxis e para o conhecimento teórico. Por fim, iremos tratar do pragmatismo clássico, aquele que consistiu em um movimento inicial do pragmatismo manifestado na Universidade de Chicago como uma oposição e uma crítica à metafísica. Tratar o pensamento conservador requer um rigor teórico e uma cautela nas análises a serem apresentadas. Isto porque o movimento da realidade é mais denso e complexo do que nossa capacidade de apreendê-lo. Podemos observar que ao longo do movimento histórico o conservadorismo se põe e se repõe; ele se expressa de determinada forma, é questionado em diversos momentos, sofre tentativas de ruptura, mas ele se repõe de outras formas como se fosse um novo elemento, por vez apresentando uma falsa aparência. Assim, ora o conservadorismo manifesta-se de forma dominante, ora ele é objeto de críticas; mas este movimento não se coloca de forma polarizada de uma ou de outra maneira. A história nos mostra que ao mesmo tempo em que conserva e repõe aspectos da sociedade que parecem ter sido superados, ela também coloca a possibilidade de superação desses elementos. O conservadorismo não está presente de forma que 104 seja impossível estabelecer sua superação. Por isso, a necessidade de atenção na análise: as rupturas dificilmente serão totais e o conservadorismo também não será insuperável. O conservadorismo não desaparece, mas pode ser subsumido pelo pensamento crítico. Compreender a constituição do modo de pensar no capitalismo nos permite entender como o pragmatismo se propagou com facilidade, não apenas nos Estados-Unidos, como também por outros países, influenciando em suas culturas. Vázquez é um dos autores que permite a compreensão da dinamicidade desse processo. Ele parte de uma análise do papel da consciência para a ação do homem. Para desenvolver a consciência individual e de classe há alguns fatores determinantes, diz Vázquez (2007, p. 42) “a perspectiva de classe não é a única, mas tende a ser a determinada, na produção da consciência das pessoas e grupos sociais. O operário não pode elidir a alienação do produto do seu trabalho excedente (não-pago), da mesma forma que o capitalista não pode elidir essa alienação”. As idéias da classe dominante tendem a ser as idéias dominantes de uma época, as tornando generalizadas como se fossem interesses coletivos de uma sociedade em seu conjunto e aparecem assim como “idéias ‘naturais’ ou ‘definitivas’” (Vázquez, 2007, p.43) de toda sociedade e de todas as classes. A ciência pode servir como propagadora e defensora dos interesses da classe dominante. Podemos incluir o pragmatismo como expressão de uma forma de propagar, uma forma de ser, de pensar e de se expressar da sociedade capitalista. Mas, a classe operária através de sua organização e luta vai adquirindo consciência de classe para si. É quando a experiência adquire um papel central, entendendo experiência, nesse caso, decorrente do processo de reflexão. “À medida que socializam as suas experiências comuns, no contexto das suas relações de trabalho e de suas experiências da vida cotidiana, os operários compreendem, de modo cada vez mais claro, o caráter alienado e antagônico da sua condição” (Vázquez, 2007, p. 45). A experiência tem uma relevância quando se efetiva na práxis da classe trabalhadora, quando ela se insere na luta contra a alienação. “A classe operária não se constitui apenas porque o regime capitalista se desenvolve; ela se forma na medida em que luta contra as relações de alienação em que se acha inserida” (Vázquez, 2007, p. 46). Não é apenas a consciência e a reflexão teórica que configuram a práxis revolucionária, mas também a luta efetiva dos 105 trabalhadores, sua ação prática. Vázquez (2007, p. 219) diz que “toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis”. Isso significa dizer que práxis é um tipo de atividade específica que requer alguns critérios. Atividade não é sinônimo de práxis, esta articula a apreensão teórica e a atividade. O autor esclarece o que considera por atividade. A atividade implica em um resultado final que modifica uma matéria-prima. Atividade é tudo aquilo que é efetivado no sentido de produzir um resultado que modifique sua matéria original, implica em uma mudança final do produto. Nesse sentido, tanto o homem quanto o animal realizam atividades. Entretanto, há uma diferença entre a atividade do homem e a atividade do animal. “A atividade propriamente humana apenas se verifica quando os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado ideal, ou fim, e terminam com um resultado ou produto efetivo, real” (Vázquez, 2007, p. 220). A diferença perceptível é que o homem é capaz de antecipar em sua mente o resultado final de sua atividade. O homem consegue projetar a possibilidade de mudança na matéria inicial com a qual trabalha. Ele antecipa o resultado que pretende obter no futuro. Trata-se de projetar o resultado final de suas ações. Nesse caso trata-se da atividade teleológica16. Nesse caso, os atos não só são determinados causalmente por um estado anterior que se verificou efetivamente – determinação do passado pelo presente -, como também por algo que ainda não tem uma existência efetiva e que, no entanto, determina e regula os diferentes atos antes de desembocar em um resultado real; ou seja, a determinação não vem do passado, mas sim do futuro (Vázquez, 2007, p. 220). O homem é capaz de utilizar sua consciência para pensar no resultado de suas ações. Dessa forma é possível obter o resultado em duas formas: de forma ideal e de forma real. Isso porque nem tudo aquilo que projetamos como resultado final será de fato o produto real. É essa 16 Retomamos ao pensamento de Lukács para dizer que a teleologia como uma forma de aprofundar esse debate. De antemão vale destacar que teleologia para Lukács (2007) consiste em um momento da concepção de trabalho em Marx. O trabalho humano difere-se dos demais tipos de trabalho porque a projeção intelectual do resultado final do produto se faz presente durante todo o processo de produção do trabalho. “O caráter teleológico do trabalho é, por seu turno, um componente do processo total do trabalho; de um lado, este pressupõe o reconhecimento, para a sua realização, de todos os aspectos objetivos independentes da consciência do homem (as qualidades da matéria, as propriedades dos instrumentos etc.); de outro, a própria determinação do objetivo é produto da situação social objetiva, do desenvolvimento das forças produtivas etc” (idem, p. 59) e ainda “do ponto de vista metodológico, nenhum plano é possível sem uma teleologia precisa; mas uma verdadeira teleologia só pode ser viável sobre o fundamento das leis objetivas e concretas da economia, com sua base e orientação extraídas das condições e possibilidades políticas reais das classes e de seus desenvolvimentos previsíveis” (idem, p. 61). 106 relação que dá ao homem um caráter consciente de suas atividades. A atividade do homem passa por um processo consciente de projeção do resultado e de efetivação do resultado. “Para que se possa falar de atividade humana é preciso que se formule nela um resultado ideal, ou fim a cumprir, como ponto de partida, e uma intenção de adequação, independentemente de como se plasme, definitivamente, o modelo ideal originário” (Vázquez, 2007, p. 221). Vale destacar que não é só o fato de o homem conseguir imaginar o resultado final de sua ação que lhe confere uma atividade consciente. É também o conhecimento que ele possui dos processos econômico-sociais que lhe permitem chegar o mais próximo do resultado final que ele terá. O próprio processo histórico tem relação com a intencionalidade humana, pois os homens são sujeitos históricos. A atividade humana é, portanto, atividade que se orienta conforme a fins, e estes só existem através do homem, como produtos de sua consciência. Toda ação verdadeiramente humana exige certa consciência de um fim, o qual se sujeita ao curso da própria atividade (Vázquez, 2007, p. 222). Isso significa que o homem é o único ser capaz de intervir na realidade de forma consciente de modo a pensar no resultado final que pretende obter. O resultado final implica, entre outros fatores, em escolha de opções entre alternativas possíveis. O fim tem relação com aquilo que se pretende concretizar, por isso, é produto da consciência. “Não se trata da atividade de uma consciência pura, mas sim, da consciência de um homem social que não pode prescindir da produção de fins em nenhuma forma de atividade, incluindo, certamente, a prática material” (Vázquez, 2007, p.222). Para o autor, o fim está presente no resultado da atividade real e da atividade da consciência. A atividade do homem pressupõe uma relação de interioridade - projetar o resultado final de sua ação - e não apenas de exterioridade - transformar a matéria inicial - como ocorre nas atividades da natureza. Por exemplo: os animais não são capazes de imaginar o resultado final de suas atividades, eles apenas as transformam externamente. Para Vázquez (2007), o homem pode ajustar suas escolhas e seus atos para atingir o fim desejado, fato que não é capaz de ser feito pelos animais. A consciência é o que diferencia o homem dos demais animais, ela possui uma relação com a produção de conhecimento por ser uma forma de o homem compreender a 107 realidade. Assim “a atividade da consciência, que é inseparável de toda verdadeira atividade humana, apresenta-se a nós como elaboração de fins e produção de conhecimentos em íntima unidade” (idem, p. 224). Muito importante destacar a relação que Vázquez (2007) faz entre conhecimento e ação. O conhecimento permite a transformação da natureza e a transformação do próprio homem, “mas o conhecimento não serve diretamente a essa atividade prática, transformadora; coloca-se em relação com ela por meio de fins. A relação entre pensamento e ação requer a mediação dos fins que o homem propõe” (idem, p. 224). A existência de uma relação entre conhecimento e ação deve perpassar por meios até atingir o resultado almejado. Para transformar a realidade a atividade da consciência possui uma relação com a teoria. É a teoria que permite estabelecer as finalidades através dos meios. Na atividade prática a ação ocorre independentemente da consciência do sujeito, a ação é sobre a matéria que já existe. A mudança da matéria ocorre para se atender determinada necessidade humana que acarreta em mudança da natureza ou da vida social. Ocorre a existência de uma nova realidade. Vázquez (2007) tem a preocupação de tratar da práxis humana a considerando uma atividade consciente orientada por um processo de conhecimento que visa intervir na realidade com determinado fim. O autor sinaliza que a práxis é “a atividade prática material, adequada a fins, que transforma o mundo” (idem, p. 234). Por isso, ele irá tratar de diversos tipos de práxis de acordo com os fins a que elas se propõem como a práxis produtiva, a práxis artística, a práxis experimental, a práxis política. Nosso objetivo não é tratar especificamente de cada tipo de práxis, mas sim sinalizar que a práxis é uma atividade orientada para um fim, que terá um resultado final no futuro já que é previamente imaginada e idealizada voltada para a transformação. Isso significa uma mudança na realidade, uma mudança decorrente de uma atividade planejada intelectualmente, de uma ação humana. Nesse sentido, sinalizamos que a atividade teórica tem relevância fundamental para a práxis, pois tem relação direta com a prática e “nela encontra seu fundamento, seus fins e critério de verdade” (idem, p.232). A teoria permite adquirir conhecimentos para transformar a realidade, mas sem ação essa realidade não é modificada. Da mesma forma que uma ação sem uma direção teórica torna-se uma ação sem 108 intenção transformadora. Isso significa que a teoria não é práxis, não modifica a realidade. A teoria permite transformar a consciência, mas não transforma a realidade; ela é um norte, uma direção para a ação consciente em busca de determinados fins. A teoria e a prática possuem bases que se complementam, ou seja, a teoria precisa vincular-se à prática e a prática precisa ligar-se a teoria para que, de fato, haja uma perspectiva de mudança da realidade com mudança de consciência. No caso do senso comum, a prática pode se sustentar sem a teoria e, inclusive, opõe-se a ela. O prático adquire valor utilitário e é esvaziado de valor teórico. “A prática se basta a si mesma, e o ‘senso comum’ situa-se passivamente em uma atitude a-crítica em relação a ela” (Vázquez, 2007, p. 240). Há uma valorização do praticismo. Nesse sentido, o pragmatismo ganha espaço, principalmente em sua percepção de verdade associada ao praticismo. O pragmatismo está vinculado à necessidade de conhecimentos práticos no qual o verdadeiro se reduz ao que é útil e vantajoso para determinada situação. “O pragmatismo reduz o prático ao utilitário, com o qual acaba por dissolver o teórico no útil” (idem, p. 241). Isso pode resultar em alguns equívocos muito sérios como destaca Vázquez (2007, p. 241): O pragmatismo identifica o verdadeiro com o útil. Essa tese da utilidade poderia confundir algumas pessoas se se levar em conta que o marxismo não vê no conhecimento um fim em si, mas sim uma atividade do homem vinculada a suas necessidades práticas às quais serve de forma mais ou menos direta, e em relação com as quais se desenvolve incessantemente. A verdade para o pragmatismo depende da perspectiva individual, depende daquilo que se concebe individualmente como verdade, do que será mais útil para determinada situação e do que é mais interessante e vantajoso para determinado momento. A verdade no pragmatismo é uma busca por resultados vantajosos para os interesses imediatos. A crítica não está no fato de se propor uma verdade e sim na perspectiva desta verdade, ou seja, no resultado final. O marxismo também defende a existência de uma verdade, porém propõe a existência de um conhecimento verdadeiro quando é possível, através dele, transformar a realidade e quando a teoria representa, de maneira mais próxima possível, o movimento da realidade. A verdade é uma reprodução da realidade através de um processo reflexivo no qual o homem pensa e reflete sobre a realidade, a traduz pelo pensamento de forma a articulá-la com a prática social. “O 109 conhecimento é útil na medida em que é verdadeiro, e não é verdadeiro porque é útil, como sustenta o pragmatismo” (Vázquez, 2007, p. 242). A diferença do conhecimento verdadeiro para o pragmatismo e para o marxismo reside no fato de que para o primeiro, o verdadeiro depende da perspectiva individual e da subjetividade particular de cada homem, a verdade depende da utilidade que ela possui para determinado contexto ou situação, a verdade só é válida se ela for útil e aplicada. Para o marxismo o conhecimento verdadeiro depende de uma apropriação coletiva, está relacionado à possibilidade de transformações da realidade e possui articulação com o movimento da totalidade, expressando a realidade pela via do pensamento. A utilidade17 de uma teoria para o marxismo é uma conseqüência da verdade e não seu fundamento ou sua essência. Isso significa que a verdade existe independente da vontade individual, cabe aos homens desvendá-la. A verdade só pode ser desvendada através de uma apropriação teórica realizada por via de uma consciência refletida, através da teoria. Logo, a teoria para o marxismo também possui uma utilidade, uma função, mas ela não é apropriada com fins utilitaristas. A diferença da concepção de verdade do marxismo para o pragmatismo é esclarecida da seguinte forma: “enquanto o primeiro procura provar o verdadeiro como reprodução espiritual da realidade, o segundo deseja provar o verdadeiro como aquilo que é útil” (Vázquez, 2007, p. 242). A concepção de prática do pragmatismo possui uma conotação específica: é uma ação na qual os indivíduos desenvolvem uma prática individual. Já a prática para o marxismo é uma ação transformadora de perspectiva social. Assim podemos afirmar que: O critério de verdade do pragmatismo é, portanto, o êxito, a eficácia da ação prática do homem entendida como prática individual. Para o marxismo é a prática, mas concebida como atividade material, transformadora e social. Enquanto para o pragmatista o êxito revela a verdade, isto é, a correspondência de um pensamento com seus interesses, para o marxista a prática social revela a verdade ou falsidade, isto é, a correspondência ou não de um pensamento com a realidade (Vázquez, 2007, p.242). A prática humana para o autor é entendida como toda ação que ultrapassa a subjetividade quando há transformação de algo material, quando ocorre um processo objetivo. Entretanto, a 17 E complementamos com a seguinte passagem: “é evidente que o quando o marxismo fala da utilidade ou função prático-social da ciência, coloca-se em um plano muito diferente, pois não se trata da utilidade nesse sentido estritamente egoísta, mas sim da utilidade social” (Vázquez, 2007, p. 242). 110 atividade humana apresenta um aspecto subjetivo por tratar de ser também uma atividade da consciência e é objetiva porque opera em determinada matéria que existe independente de sua consciência. As modificações impostas aos fins de que se havia partido para conseguir uma passagem mais cabal do subjetivo ao objetivo, do ideal ao real, só fazem demonstrar, ainda mais vigorosamente, a unidade entre o teórico e o prático na atividade prática. Esta, como atividade ao mesmo tempo subjetiva e objetiva, como unidade do teórico com o pratico na própria ação, é transformação objetiva, real, na matéria através da qual se objetiva ou realiza um fim; é, portanto, realização guiada por uma consciência que, ao mesmo tempo, só guia ou orienta – e isso seria a expressão mais perfeita da unidade entre teoria e prática – na medida em que ela mesma se guia ou (se) orienta pela própria realização de seus fins (Vázquez, 2007, p. 264). Sobre a relação da teoria e prática cabe destacar que a ciência é desenvolvida concomitantemente ao desenvolvimento das forças produtivas, quanto mais desenvolvida estas forem mais as ciências se desenvolverão também. A primeira vez que se percebeu a necessidade de produzir teoria a partir da prática foi com as ciências naturais. Isso começou a ocorrer na sociedade moderna com a ascensão da burguesia. As ciências que mais progrediram foram aquelas que se constituiram como necessárias ao desenvolvimento tecnológico e das forças produtivas, ou seja, aquelas que lhes são mais úteis. Na sociedade contemporânea a produção capitalista determina o nível de desenvolvimento da ciência. A teoria possui uma relativa autonomia, mas seu desenvolvimento está relacionado à prática social, pois as exigências da prática são uma forma importante de desenvolvimento da teoria. A prática constitui-se como fundamento da teoria, já que a teoria está vinculada as necessidades práticas do homem social. Para o marxismo a prática é o critério de verdade da teoria e é também seu fundamento. “A teoria tem seu fundamento inesgotável na prática” (Vázquez, 2007, p. 253). No marxismo teoria e prática estão intimamente conectadas, pois Marx Não busca o desenvolvimento da teoria em um puro desenvolvimento lógico e interno da mesma, mas sim com base – e em função – da prática. A teoria revolucionária não se desenvolve em prol da própria Teoria, e sim em nome da práxis; é uma teoria fundada na prática que tende, por sua vez, a resolver – justamente por seu caráter rigoroso, científico, objetivo – as contradições que se apresentam real e efetivamente (Vázquez, 2007, p. 255). 111 Um aspecto analisado por Vázquez (2007) é sobre o potencial da teoria em se antecipar à prática. A teoria pode ser elaborada e abordar uma prática que ainda não se efetivou, trata-se não só de aprofundar uma análise sobre a realidade social e prática do homem como também tem relação com a capacidade do homem elaborar em sua consciência as possibilidades futuras a partir do acúmulo teórico e prático. Isso consiste em uma “antecipação ideal do que, não existindo ainda, queremos que exista” (idem, p. 256). Para o autor: A prática como fim da teoria exige uma relação consciente com ela, ou uma consciência da necessidade prática que deve se satisfazer com a ajuda da teoria. Por outro lado, a transformação desta em instrumento teórico da práxis exige uma elevada consciência dos laços que vinculam mutuamente teoria e prática, sem o qual não se poderia entender o significado prático da primeira (idem, p. 256). Basta lembrar que o fato da prática ser fundamento e fim da teoria não significa que essa relação ocorra de forma simples e imediata, pelo contrário, é necessário um processo de apropriação e apreensão da prática e da realidade com o objetivo de realizar uma reflexão consciente. Há teorias que surgem para explicar outras teorias, porém, de certa forma, mesmo que indiretamente, as teorias estão vinculadas a questões da prática. Para Vázquez (2007) há uma interpretação equivocada da unidade entre teoria e prática quando se desconsidera que a teoria possui uma relativa autonomia ou quando se pensa que a prática pode se transformar em teoria ou que basta o fato de se acumular experiências práticas para se desenvolver uma teoria. É como se afirmássemos que a partir da prática podemos desvendar sua essência, sua verdade; como se a prática se mostrasse por si só. Para o autor, o problema da relação entre teoria e prática só pode ser interpretado corretamente quando consideramos que a prática se constitui como uma atividade objetiva e transformadora da realidade e não como uma atividade subjetiva e individual como faz o pragmatismo. A prática por si só não consegue mudar a consciência do homem, não consegue transformar a realidade. Para que isso ocorra é necessário uma prática consciente, pensada. Através da elaboração teórica é possível adquirir consciência da prática transformadora e da práxis social. A teoria é importante porque as relações entre os homens se manifestam de forma mistificada e aparente. A teoria é uma forma de desvendar tais relações em sua essência e em sua verdade buscando a compreensão da realidade. 112 Podemos afirmar a existência da prática, da teoria e da práxis, mas elas não aparecem de forma fragmentada e totalmente independentes uma das outras. A teoria, como já dissemos, possui uma autonomia relativa porque tem sua fundamentação na prática. Já a práxis consiste em um nível de elevação da prática humana. Para o marxismo, a prática consiste em um critério de verdade, mas isso só ocorre quando há uma relação teórica que permite sua compreensão. A prática é critério de verdade da teoria, não porque ela se mostre em sua essência ou porque seja capaz de indicar o que é verdadeiro ou o que é falso, e sim porque a teoria busca na prática sua fundamentação. Isso não significa que a teoria tenha que se subordinar à prática, ela pode antecipar-se à realidade e a própria prática. A teoria não transforma a realidade, só através da práxis é possível que isto ocorra. A teoria, a partir da análise da própria realidade, pode se antecipar a ela, mas não pode intervir diretamente para sua efetivação. É a prática humana que permite a transformação, é a prática pensada e refletida, a práxis que confere a possibilidade de mudanças. “Uma teoria que não aspira a realizar-se, ou que não pode plasmar-se, vive uma existência meramente teórica e, portanto, desligada ou divorciada da prática” (Vázquez, 2007, p. 261). É necessário atentarmos para um elemento primordial: nem toda teoria é elaborada com o objetivo de ser concretizada pelos homens, há teorias que buscam compreender a realidade através de elaborações e experiências anteriores. O autor caracteriza a práxis como ação humana sobre a matéria e a criação de uma nova realidade a partir da transformação da matéria. Por isso, ele afirma que há diferentes tipos de práxis já que a mesma depende do nível de consciência do sujeito. Logo, ele tratará da práxis criadora e da práxis reiterativa ou imitativa e abordará também a práxis reflexiva e a práxis espontânea. Para Vázquez a práxis criadora e a práxis reflexiva possuem relação próxima assim como a práxis reiterativa e a práxis espontânea se aproximam. O que determina o tipo de práxis é o grau de consciência do sujeito no processo de criação e o grau de criação do resultado do produto realizado pelo homem. A práxis reiterativa se aproxima da práxis espontânea, ela pode ser caracterizada como uma práxis reiterativa imitativa. Por ser imitativa podemos entender como se houvesse uma relação com uma lei pré-estabelecida, sua execução se concretiza em diversos produtos que 113 possuem características semelhantes, já que não é uma práxis inovadora. Já a práxis criadora não possui uma lei pré-estabelecida e apresenta um produto novo e único, permite o enfrentamento de novas necessidades e novas situações configurando criações autênticas. Assim, “a práxis se caracteriza por esse ritmo alternado do criador e do imitativo, da inovação e da reiteração” (Vázquez, 2007, p. 267). Vale destacar que o homem não vive em um constante estado de criação, ele somente cria por necessidade, para adaptar-se a novas situações. O homem é o único ser que precisa criar soluções que não podem ser meras repetições. É através de sua criação que o homem consegue transformar o mundo. Nesse sentido, a práxis é uma atividade criadora, entretanto ela apresenta sua face reiterativa e inovadora. Para Vázquez (2007) a práxis criadora apresenta três características fundamentais, a saber: a unidade entre o objetivo e o subjetivo18, a imprevisibilidade do resultado e do processo estabelecido até chegar-se ao resultado e a unidade e exclusividade do produto. A práxis reiterativa está aquém da práxis criadora, pois ela é uma práxis simples e imitativa. Isso ocorre porque o aspecto subjetivo do processo é, de certa forma, relegado. O subjetivo é encarado como um modelo ideal que necessariamente irá se realizar como foi previamente idealizado. Aproxima-se a uma reprodução mecânica da associação entre o real e o ideal, ou seja, plasma-se um modelo ideal, modelo este que “permanece imutável como um produto acabado já de antemão que não deve ser afetado pelas vicissitudes do processo prático” (Vázquez, 2007, p. 274). O ato de fazer consiste na mera repetição de outro fazer, no qual a criatividade é subsumida. As leis que regem a ação já são conhecidas, basta submeter-se a elas. Assim, a práxis reiterativa tem por base uma práxis criadora já existente, ela não produz inovação nem nova realidade ou sequer uma mudança na mesma. “Seu modo de transformar já é 18 Como momento subjetivo Vázquez (2007) caracteriza como o momento teórico estabelecido pela consciência da atividade realizada. Para o autor a atividade prática humana é estabelecida quando se ultrapassa o aspecto subjetivo, ou seja, quando há a transformação em algo material e não simplesmente idealizado. Essa transformação em algo material ocorre independente da consciência do sujeito. “Para poder exercer sua atividade, o sujeito prático precisa de uma esfera que não seja mera projeção de sua subjetividade” (idem, p. 262). A relação objetividade e subjetividade fica esclarecida na seguinte passagem: “A atividade do sujeito prático nos é oferecida nessa dupla vertente: por um lado, é subjetiva enquanto atividade de sua consciência, mas em um sentido mais restrito, é um processo objetivo na medida que existe independentemente de sua consciência, de seus atos psíquicos, podem ser comprovados inclusive objetivamente por outros sujeitos” (idem, p. 262). 114 conhecido, porque já foi criado antes” (idem, p. 275). Outro tipo de práxis que Vázquez (2007) aborda é a práxis burocratizada. Este tipo de práxis é interessante para pensarmos o pragmatismo. Nele há uma separação entre a forma e o conteúdo, entre o exterior e o interior. “A exterioridade ou formalização da prática é o traço mais característico do burocratismo” (idem, p. 276). A práxis burocratizada pode repetir-se de forma mecânica e automática sem nenhum processo reflexivo. “Ao burocratizar-se uma atividade prática, a lei que a rege se converte em uma lei a priori estranha a seu conteúdo, a atividade burocratizada pode repetir-se até o infinito, com a condição de preencher a forma que preexiste ao conteúdo e à margem do próprio processo prático” (idem, p. 276). O conteúdo dessa práxis é esvaziado, pois ele é sacrificado em detrimento da forma. O autor caracteriza o burocratismo como algo necessário ao capitalismo monopolista que burocratiza a economia, a política, a cultura e a vida social. O burocratismo pode ocorrer não só no corpo do Estado, mas também em qualquer instituição que possui um quadro de funcionários. Em suma, essa práxis degradada e diametralmente oposta a uma práxis criadora nada mais é do que o desdobramento de uma lei estabelecida e conhecida de antemão, sem levar em conta as particularidades concretas de sua aplicação; é, em conseqüência, a plasmação de uma forma não determinada por seu conteúdo. É uma forma de práxis mecânica em que a sua repetição infinita se alcança mediante sua extrema formalização, ou seja, mediante a negação do papel do conteúdo para sujeitá-lo inteiramente a uma, forma exterior a ele. Desta práxis se elimina, portanto, toda determinabilidade do processo prático, que se torna assim abstrato e formal, e com isso desaparece igualmente a imprevisibilidade e a aventura que acompanha toda práxis autenticamente criadora (Vázquez, 2007, p. 279). Esse burocratismo pode ser identificado através da produção realizada pelos homens que operam máquinas, já que ela ocorre da forma mais impessoal e inconsciente possível. O homem não reflete sobre o momento da produção, ele reproduz automaticamente os movimentos necessários para operar a máquina, pois isto já está incutido em seu cotidiano de trabalho. No processo de produção não há espaço para a consciência visto que o homem pensa necessitar da máquina para trabalhar e não a máquina que precisa do homem para ser operada. Aparentemente é a máquina que produz valor, por isso há o receio de perder espaço de trabalho para as máquinas. O trabalho do homem exige, de certa forma, uma práxis criadora, pois ele precisa inovar e 115 transformar a matéria original em um produto que tenha utilidade ou que supra suas necessidades materiais. Esse tipo de práxis exige uma atividade da consciência – a consciência também está presente nas demais práxis em maior ou menor intensidade de acordo com o tipo de cada uma – que esteja presente no decorrer do processo prático atrelada aos seus fins para transformar um resultado idealizado em resultado realizado. Vázquez (2007) chama de “consciência da práxis” aquela consciência que se projeta a partir da atividade prática que é desejada pela consciência, é um tipo de consciência que está voltada a si mesma e sobre a atividade material do homem. A consciência da práxis distingue-se da consciência da prática, apesar de ambas terem relação com o processo prático. “Toda consciência prática sempre implica certa consciência da práxis, mas as duas não estão no mesmo plano ou nível. Pode ocorrer que, em um processo prático, a primeira esteja muito abaixo da segunda” (Vázquez, 2007, p. 293). Vale retomar um exemplo dado pelo autor, por se tratar exatamente daquilo que pretendemos analisar: a atividade prática do homem. Um operário que realiza um trabalho “monótono, parcelado e mecânico” não apresenta uma relação direta entre sua consciência da práxis com a consciência da prática, pois seu trabalho consiste em aplicar e reproduzir um fim determinado anteriormente, sem que seja necessário o desenvolvimento de sua capacidade teleológica. Nesse caso as duas consciências não estão no mesmo plano de relação, pois seu trabalho não passa de mera repetição de um fim determinado previamente, ou seja, não requer dele um processo reflexivo. Por isso, o autor afirma que a consciência prática está abaixo da consciência da práxis. A atividade prática ainda possui dois tipos de práxis: a práxis espontânea e a práxis reflexiva. É preciso cuidado para não pensar que na práxis espontânea não há presença de consciência, pois na atividade espontânea também há consciência. Para diferenciar uma da outra é necessário avaliar o grau de consciência presente em cada uma. Por exemplo: a práxis criadora pode ser reflexiva e espontânea. A práxis reiterativa possui intervenção da consciência, apesar de ser pouca. A práxis mecânica se opõe a atividade prática criadora e atividade prática espontânea. Podemos compreender o significado das teorias a partir do próprio marxismo. Vázquez 116 (2007) trata o marxismo como uma teoria expressa pelo pensamento com intenção de mudar e reproduzir idealmente determinada realidade. O marxismo é uma ideologia, mas possui também um aspecto científico. Em síntese: “O marxismo é, ao mesmo tempo, ciência e ideologia, conhecimento e expressão, teoria que corresponde a determinadas circunstâncias e interesses sociais sem deixar de ser verdadeira, e ideologia cientificamente fundada” (idem, p. 302). Essa leitura de Vázquez é importante para realizarmos a crítica ao pragmatismo. Ao apresentar diversas manifestações da consciência e os tipos de práxis podemos constatar que há formas de pensar criticamente e acriticamente e que toda expressão da consciência possui uma intencionalidade vinculada a determinados interesses. Assim, pelas características e pelo modo de pensar que iremos apresentar do pragmatismo podemos constatar que ele serve aos interesses da ideologia dominante. Além de se apresentar também como uma forma de pensar as questões postas pelos problemas da realidade que servem a reprodução da ordem capitalista. O próprio pragmatismo se expressa também como uma ideologia. 3.1. A leitura de Pogrebinschi sobre o pragmatismo clássico Uma autora que trabalha o pragmatismo é Pogrebinschi19 (2005). Autora que nos servirá 19 Vale destacar que a mesma autora, em 2006, produziu um artigo tratando do neopragmatismo e suas diferenças com o pragmatismo. Não iremos esmiuçar o neopragmatismo neste trabalho, porém é importante ressaltar que Pogrebinschi aborda a contribuição de um intelectual contemporâneo da reformulação das idéias propagadas pelo pragmatismo: Richard Rorty. Rorty se intitula neopragmatista porque ele se ocupa de um movimento anti-realista por criticar a teoria da verdade. Diferentemente do pragmatismo, que valorizava a experiência, ele enfatiza a linguagem. Essa diferença do pragmatismo clássico para o neopragmatismo está relacionado com a conjuntura do pós Primeira Guerra Mundial quando o pragmatismo clássico perdeu espaço e abriu-se novos campos e ramificações pragmatistas. Nas duas últímas décadas do século XX ocorre o que se chamou de virada lingüística – nome dado devido a exaltação da idéia de linguagem – associada ao neopragmatismo. Seu campo mais forte foi o da comunicação, que resgatou concepções dos neopragmatistas clássicos, mas apresentou uma roupagem diversificada. E mais: “o neopragmatismo rortyano assevera que nem a verdade, nem o bem, nem a racionalidade são coisas que comportem um interesse filosófico suficiente para se teorizar a respeito. Em outras palavras, o pragmatismo de Rorty não tem a ambição de ser uma teoria, mas uma antiteoria – ou uma teoria sobre como se fazer teoria” (Pogrebinschi, 2006, p. 133). Rorty também se aproxima mais do instrumentalismo do que do consequencialismo. A autora destaca também as críticas feitas a Rorty, criticas que o colocam não apenas como um neopragmatista, mas também como um autor 117 de aporte neste item devido a densidade de seus estudos e da apropriação que a mesma fez do pragmatismo. Em sua análise não fica explícito se o pragmatismo é uma teoria, um pensamento, um conceito, uma filosofia ou um movimento. Isto porque a autora transita entre esses termos para denominar o significado do pragmatismo. Tamanha imprecisão é resultado de que o pragmatismo é em si mesmo a negação de qualquer idéia ou conceito concluso, ele pode ter todas estas qualificações como pode não ter nenhuma. Entretanto, Pogrebinschi deixa claro que o mesmo surgiu nos Estados Unidos como expressão de uma crítica à metafísica tradicional. O “Clube da Metafísica” reunia os adeptos do pragmatismo e teve como precursores William James, Charles S. Peirce, John Dewey, Mead entre outros. São dos autores citados que buscaremos aprofundar nossas análises, pois eles expressam “a totalidade do núcleo teórico deste pensamento” (idem, p. 23) e é através deles que as propostas desenvolvidas pelos pragmatistas serão ampliadas pelos seus adeptos. Segundo Pogrebinschi (2005) o pragmatismo é pouco estudado e discutido pelas ciências sociais, isso resulta na escassa apropriação do pragmatismo pela área social e política. No Serviço Social isso não é diferente. O pragmatismo é entendido como uma atitude de orientação ampla, com contribuição de diversos autores de diversas áreas, dentre elas das teorias sociais e políticas. É uma elaboração que pode ser ampliada através de várias formas de pensamento. A autora especula se o pragmatismo pode realmente ser: Uma teoria que nos permite compreender antigas teorias e, ao mesmo tempo, criar outras novas: um método para conferir significado a conceitos e concepções; um meio de dar sentido à realidade e à ação através da teoria; um propósito de experimentar incessantemente novas formas de pensar e também de reexperimentar aquelas que já são conhecidas (POGREBINSCHI, 2005, p. 15) (Grifos nossos). O pragmatismo, na realidade, não apresenta originalidade, ele está atrelado a antigas pós-moderno e como um relativista. A preocupação deste trabalho é compreender as bases de surgimento do pragmatismo original, por isso não iremos aprofundar o estudo do neopragmatismo. Ademais, compreendemos que o neopragmatismo mescla-se com o pragmatismo. Em ambos, tanto a linguagem como a experiência possuem um espaço central. 118 formas de pensamento e se expressa de forma conservadora. É interessante destacar que em torno de 1890 o pragmatismo ganha força e se alastra nos Estados Unidos. Logo, outros países sofrerão influência das propostas originárias do “Clube da Metafísica”. Mais tarde o pragmatismo chega ao Brasil e assim o Serviço Social brasileiro recebe uma das influências mais fortes do modo de ser e pensar norte-americano. Pogrebinschi (2005) trata especificamente das propostas de Pierce, James e Dewey. A autora mostra que eles possuem um núcleo comum de pensamento, mas também apresentam uma série de divergências. Pierce foi literalmente o pai do pragmatismo. Foi ele quem sugeriu esse nome para manifestar uma nova linha de pensamento que se contrapunha à metafísica. Um destaque enfatizado consiste no fato de Pierce propor uma teoria da significação enquanto que James e Dewey desenvolveram uma teoria da verdade20. De central nas idéias de Pierce, Dewey e James temos o antifundacionalismo, o consequencialismo e o contextualismo. Além disso, o pragmatismo descarta o passado, e de certa forma, nega a história. Sua preocupação é com o futuro, com as conseqüências das possibilidades. “O significado do pragmatismo, como de qualquer outra teoria, só poderia ser conhecido através do teste de suas conseqüências, isto é, por meio da prospectiva de um futuro ainda em formação” (Pogrebinschi, 2005, p. 25) (grifo nosso). O antifundacionalismo nega todos os tipos de pensamento ou expressões que demonstrem estar acabadas, que não são suscetíveis de mudanças. O que se pretende é submeter a verdade e a realidade a um novo método21 (Pogrebinschi, 2005). Pierce afirma que todo conhecimento 20 Por teoria da verdade entende-se a constituição de idéias que fazem parte da experiência e do conhecimento, a verdade é um processo que está em constante mudança, pode-se dizer que “as idéias não são apenas abstrações e generalizações da experiência, mas seus componentes. Isto é, as idéias não apenas interpretam a experiência, mas constituem elementos importantes da mesma. Por conseguinte, se as idéias são efetivamente aspectos da experiência e não meramente interpretações dela, elas se tornam verdadeiras na medida em que ajudam as pessoas a estabelecer outras e variadas relações com a experiência” (Pogrebinschi, 2005, p. 30). Nesta lógica, a experiência tem um papel fundamental para a mudança de comportamento do indivíduo, pois, quanto mais experiência se tem mais conhecimento se acumula. Logo, o indivíduo se torna mais suscetível a mudar sua forma de ser, de agir e de pensar. 21 Sobre o método do pragmatismo iremos resgatar a análise feita por Pogrebinschi (2005). A realidade é estabelecida através do processo de investigação. A investigação é um momento importante porque ela permite a realização de experiências. A ciência, nesse sentido, nunca terá conclusões acabadas que não sejam possíveis de serem modificadas. O método pragmático consiste na interpretação de conceitos objetivando compreender suas 119 acumulado que temos é resultado de nossas experiências práticas, de nossa vivência na realidade. Esta idéia irá aparecer em algumas profissões como na pedagogia, na psicologia, na comunicação e no Serviço Social. Nesta última, a profissão será imbuída de um equívoco que se expressa ainda de forma muito densa: de que a experiência é mais importante, que só na prática (identificada com a experiência), de fato, é possível aprender e que o assistente social que não tem um mínimo de experiência não tem propriedade para tratar criticamente a profissão. É como se a teoria surgisse da experiência e da prática profissionais22. Assim, supor que uma cognição é determinada apenas por algo absolutamente externo é supor suas determinações como incapazes de explicação. E uma hipótese incapaz de explicar aquilo a que se propõe é uma hipótese que se contradiz a si mesma, logo toda e qualquer cognição é determinada por outras cognições que lhe são anteriores (Pogrebinschi, 2005, p. 28). A representação desta idéia nos parece muito comum. A idéia de que a partir do acúmulo de experiências sabe-se mais do que os “inexperientes”, de que a experiência é que faz o profissional ou que, só com a experiência é que se aprende. É a conhecida idéia de que através da experiência se acumula conhecimento. Tal concepção perpassa diversas profissões e se faz presente como algo dado. O antifundacionalismo pragmatista recusa a idéia de certeza assim como não aceita os conceitos de verdade e realidade. A proposta é que tais conceitos sejam submetidos a um novo método. Por isso, o pragmatismo só pode ser conhecido através dele mesmo, através do próprio pragmatismo, quer dizer: do teste de suas conseqüências. Um pensamento só pode ser interpretado a partir de outro pensamento, nenhum conhecimento pode ser determinado sem que haja um conhecimento anterior que o estabeleceu. Para o pragmatismo nada está acabado e a conseqüências práticas. O objetivo é tornar claro os conceitos obscurecidos para relacionar o sentido dos conceitos às possíveis consequências. 22 Não negamos o fato de que as teorias precisam ter relação com problemas da realidade para serem relevantes. O acúmulo de experiências permite a elaboração de uma teoria, porém isso não basta, há o elemento teórico refletido e apropriado criticamente que está além do acúmulo de experiências, mas que não as exclui. Outro equívoco é reproduzir a idéia de que a sistematização da prática consiste em produção de conhecimento teórico. A sistematização da prática permite a produção de conhecimento da realidade e sua reflexão, mas não é necessariamente uma produção teórica. Na realidade, o assistente social que busca sistematizar sua intervenção consegue conhecer melhor a realidade social e documentar os resultados de seu trabalho, mas é preciso que ele esteja orientado por uma teoria que lhe permita fazer uma leitura crítica. 120 verdade não existe, é, portanto, no mínimo relativista. Defendem a importância de se conhecer as diferenças existentes na prática, se não existem diferenças práticas, pode-se dizer, que possíveis disputas entre alternativas distintas não são válidas. Ou seja, o que não se mostra relevante na prática não tem importância, caso contrário todo o “resto” é descartado23. Cabe destacar que os pragmatistas rejeitam qualquer tipo de fundamento, pois se não existe uma idéia, um pensamento, uma teoria acabada; se tudo pode ser modificado de acordo com a prática e as experiências; logo, nada pode ser fundamentado. Para o pragmatista não existem respostas capazes de fazer cessar a investigação – não há uma verdade final a ser atingida -, a qual deve prosseguir incessantemente, alimentada a cada momento pelas novas informações, respostas parciais, semiverdades, que são geradas neste processo de relacionar a realidade com a experiência (POGREBINSCHI, 2005, p.33). O consequencialismo tem relação com o fato de o pragmatismo sempre pensar no futuro e ao pensar nas consequências futuras busca antecipá-las para o presente. Todas as consequências possíveis devem ser levantadas, porém apenas a mais útil, a mais interessante, a mais proveitosa e a mais vantajosa para o presente deve ser apropriadas. Consiste em uma aproximação entre o que as pessoas consideram melhor para elas, entre o que é verdadeiro para cada um individualmente e entre o que lhe será útil. O contextualismo trata de manter as investigações relacionadas ao contexto em que estão inseridas no presente, o que implica em uma desconsideração da história, pois nega o passado. O contextualismo reforça a importância da prática para o pragmatismo por considerá-la como o principal elemento da experiência. “A ênfase contextualista do pragmatismo clama, portanto, que os textos filosóficos sejam estudados a partir dos seus contextos específicos, ressaltando-se a relação entre as idéias filosóficas e a vida social, bem como com a cultura da sociedade na qual tais idéias desenvolveram-se” (Pogrebinschi, 2005, p. 59). 23 Ao descartar os fundamentos, o antifundacionismo do pragmatismo também descarta todas as teorias que buscam explicar os fundamentos e as teorias que explicam outras teorias – metateorias. Dessa forma, podemos afirmar que o pragmatismo nega as macro teorias (aquelas que buscam uma explicação a partir de uma perspectiva de totalidade) e as metateorias (aquelas teorias que visam explicar outras teorias). E as nega, precisamente, porque elas não apresentam a preocupação de serem testadas praticamente, nem serem postas a prova. As ditas “grandes teorias” são desenvolvidas a partir de questões e problemas postos pela realidade concreta e da vida do homem em sociedade. Elas não apresentam, necessariamente, respostas para todas as questões, mas permitem seguir caminhos críticos para sua reflexão; são, portanto, subsídios relevantes para a análise crítica da realidade. 121 O problema que encontramos nesta “ênfase contextualista do pragmatismo” é a prioridade nos contextos específicos. Pensa-se sempre na especificidade. Por mais que se considere a cultura e a vida social na análise do contexto isto não basta para um entendimento aprofundado. Significa que os pragmatistas possuem uma tendência a priorizar os contextos específicos, são, portanto, singulares por não possuírem relação com a universalidade e suprimem a particularidade. Essa é uma característica do pensamento conservador que apresenta-se no campo das abstrações da universalidade e mantém nos limites da singularidade sem trabalhar com as particularidades posta como campo das mediações. Duas correntes estão presentes no pragmatismo, uma das quais deriva de Pierce que é a teoria da significação ou pragmatismo reformista. Pierce trata o pragmatismo como um tipo de positivismo conforme aponta Haack (2002) e aborda a filosofia científica como uma ciência observacional que se baseia em experiências tão próximas do pesquisador que é difícil ter consciência delas. Ele reconhece as questões tradicionais e sustenta uma verdade objetiva. Pierce defende o método da observação, da experiência e do raciocínio lógico formal como um método cientifico. Esse método consiste em três tipos de raciocínio para testar as hipóteses: a abdução, a dedução e o teste intuitivo24. Ele concebe o pesquisador cientifico como um colaborador porque seu trabalho servirá para avançar no conhecimento das futuras gerações. A verdade para ele é “... uma teoria hipotética ideal, que seria o resultado final da investigação científica caso esta continuasse por tempo indefinido” (Haack, 2002, p. 646). Porém, como não haverá resultado final das investigações, visto que suas conseqüências sempre serão testadas e poderão ser alteradas, não haveria nenhum tipo de verdade. A outra corrente é derivada de Willian James, trata-se da teoria da verdade que estabelece que as idéias são componentes da experiência e se tornam verdades, a verdade passa por um 24 Dedução consiste em um determinado tipo de raciocínio que permite estabelecer a partir de várias proposições uma única conclusão que seja a mais lógica possível. Seu modelo é baseado no silogismo e no raciocínio matemático (Japiassu e Marcondes: 1991). O método dedutivo é bastante utilizado nas ciências formalizadas, como a lógica, a matemática e a física para obter provas com conclusões formalmente válidas (Mora, 1996). O teste intuitivo é aquele baseado no conhecimento e no pensamento intuitivo, ou seja “forma de contato direto ou imediato da mente com o real, capaz de captar sua essência de modo evidente, mas não necessitando de demonstração” (Japiassu e Marcondes, 1991, p 137). 122 processo relacional e dinâmico. James afirma que o pragmatismo é um método que interpreta os conceitos através de suas consequências práticas. Por isso, nenhum conceito apresenta seu significado real e, portanto, nem mesmo as verdades provisórias poderão ser atingidas, de modo que, reconhece apenas as práticas cognitivas25 e desconhece a objetividade e a verdade. As hipóteses, nesse caso, devem ser estabelecidas pela observação e pelo raciocínio. O verdadeiro para ele “... é o satisfatório, o útil, o eficaz no caminho da crença” (Haack, 2002, p.648). O pragmatismo possui preocupação com o futuro e não com o passado. Ele não se preocupa em realizar um resgate histórico, pelo contrário, refuta a história e o passado como algo superado. Essa preocupação decorre do consequencialismo ou do instrumentalismo que é uma característica também do pragmatismo. Ele antecipa conseqüências para produzir conhecimento. A sua função é facilitar o esclarecimento de idéias confusas, que não estão claras. Possui influência do darwinismo social26 porque compartilha da idéia de adaptação e seleção (Haack, 2002). A máxima pragmática consiste em uma forma de experimento para verificar se concepções e teorias se relacionam com a experiência. Ou seja, testam-se as experiências para verificar a teoria, porém como há sempre possibilidade de se realizar testes para conhecer a “verdade”, os pragmatistas não admitem a idéia de teorias prontas e acabadas, já que elas podem ser modificadas de acordo com os testes realizados que só valem para determinado contexto. Esta é uma máxima lógica que não se pretende universal, pois a o pragmatismo prioriza as singularidades e a especificidade, visto que a verdade só vale em determinado contexto. Essa máxima se aplica a situações do cotidiano que visam analisar ou comparar concepções distintas a fim de determinar seus efeitos práticos que podem incidir no futuro, trata-se das consequências da experiência. Os adeptos do pragmatismo buscam fazer experimentos para testar as teorias e as 25 Ou seja, práticas relativas ao conhecimento “provisório” do pesquisador. Provisório porque sempre está em mudança e pode ser revista a qualquer tempo. 26 O darwinismo social baseia-se na teoria elaborada por Darwin no estudo da natureza. Consiste em uma “concepção socioideológica” para tratar da economia a comparando ao principio natural da concorrência da vida. Utiliza argumentos baseados nesta lógica como a justificativa de que a exploração de uma classe por outra é necessária para o funcionamento da sociedade, por isso seria algo natural. Transfere a lógica do melhor, do mais apto, do mais adaptado ao meio para sua sobrevivência; para a análise da sociedade (Japiassu e Marcondes: 1991). 123 afirmações com o objetivo de indicar possibilidades futuras, mas não verdades ou confirmações imutáveis. Aí reside o pensamento consequencialista que testa todas as hipóteses para conhecer as conseqüências “o pragmatista, em princípio, não rejeita terminantemente nenhuma concepção, bem como não adota nenhuma outra em caráter terminativo. As concepções só são adotadas na medida em que são boas - ou úteis - para o pragmatista, naquele momento - pois, em um momento futuro, elas podem deixar de ser” (Pogrebinschi, 2005, p. 43). O pragmatismo também faz uma crítica severa aos fundamentos. Para seus propagadores, a busca por fundamentos é, na realidade, a busca por segurança com o objetivo de diminuir as incertezas. Tais pensadores dizem que os fundamentos são uma tentativa de busca pela imutabilidade, uma recusa a possibilidades de mudança e de revisão das considerações experimentais práticas. Esta é uma questão importante, pois há uma negação dos fundamentos, dos pressupostos teóricos e da compreensão da importância dos fundamentos para entender a realidade. Podemos afirmar que há uma negação, não de qualquer teoria, mas sim de uma teoria mais apropriada para ler a realidade – ou seja, o marxismo – e das macroteorias que permitem fazer uma análise mais ampla. Os pragmatistas questionam uma determinada concepção de teoria relacionadas àquelas que dão conta de explicar a realidade em sua universalidade. Pode haver uma aceitação da teoria pelo pragmatismo, contanto que tenham relação com valores práticos e úteis. O pragmatismo aceita as microteorias, aquelas que tratam de questões específicas como as relacionadas a histórias de vida. É dessa concepção que o pragmatismo assume uma posição instrumental da verdade. Uma idéia é verdadeira quando ela é proveitosa, quando possui uma utilidade. A verdade requer uma dúvida relativa a sua própria verdade, ela é uma realidade mutável que se relaciona a idéia de adaptação, de adequação, logo parece uma verdade relativa. Ao tratar dos significados, Haack (2002, p. 643) demonstra que os pragmáticos os tratam de forma aberta, ou seja, não acabada, pois “o significado aumenta à medida que aumenta nosso conhecimento”. Nessa concepção, o significado da verdade muda de acordo com a perspectiva do sujeito, de acordo com sua busca por significados. Essa é uma perspectiva que pode ter forte entrada no Serviço Social, principalmente por 124 sermos uma profissão eminentemente interventiva que necessita dar respostas às demandas postas. Isso pode levar o assistente social a pensar somente na intervenção imediata. A prática pela prática em si mesmo é suficiente nesta lógica. A facilidade de entrada desse pensamento no Serviço Social é perceptível na atual conjuntura, pois diante da precariedade dos serviços públicos e do desmonte das políticas sociais, o assistente social depara-se com a dificuldade para dar respostas às demandas apresentadas. A angústia para concretizar sua intervenção pode levá-lo a pensar que ao conferir respostas imediatas e emergenciais ele consegue estabelecer o resultado final de sua ação profissional, enquanto que na realidade, sua possibilidade de dar respostas ultrapassa a emergencialidade e a imediaticidade. Pobrebinschi (2005, p. 36) ao traduzir o pensamento de Dewey, diz que, para ele: “O que deve estar em pauta, portanto, não é se certos valores, associados as tradições e instituições, possuem uma essência superior, mas sim quais julgamentos concretos devemos formar sobre os meios e fins na regulação do comportamento prático”. O que se entende por fazer “julgamentos concretos” acerca da “regulação do comportamento prático”? Nada mais parecido com a intervenção moralizadora na vida dos trabalhadores a fim de enquadrá-los na ordem social capitalista e os tornarem mais eficientes e competitivos no trabalho. Por isso, essa é uma idéia que ainda pode estar presente no Serviço Social, pois o julgamento do “comportamento prático” esteve muito forte na origem da profissão, e ainda hoje assim se coloca, de forma moralizadora e no sentido de enquadrar o comportamento dos indivíduos. A moralização da vida dos trabalhadores também foi realizada pela via da educação, através de ações disciplinadoras que passam a ser introduzidas ao longo do processo de formação do indivíduo. Na área da saúde a moralização também se fez presente através do discurso da higienização das famílias pobres a fim de “limpá-las” do meio “imoral” no qual viviam. Outra idéia defendida pelo pragmatismo é destacada pela seguinte citação: O que a filosofia deve buscar não é o ser e o conhecimento em si, mas o estado da existência em momentos e lugares específicos, bem como o estado dos sentimentos, planos e propósitos sob circunstâncias concretas. A filosofia não deve se preocupar em elaborar uma teoria geral da realidade, do conhecimento e do valor, mas sim tentar compreender como crenças autênticas acerca da existência podem operar proveitosa e eficazmente em relação aos problemas práticos que são urgentes na vida real (Pogrebinschi, 2005, p. 37) (Grifos nossos). 125 Por isso o pragmatismo é mais que uma teoria, é mais que um método, ele é uma ideologia. É uma ideologia da sociedade em um determinado tempo histórico que constrói um perfil de homem para a sociedade capitalista. Nessa citação há uma gama de questões que podem ser destacadas. Primeiro, há explícita uma crítica as teorias sociais, principalmente àquelas que não se propõem a analisar aspectos particulares da realidade isoladamente ou simplesmente dar respostas imediatas à realidade. Segundo, defende uma perspectiva fragmentada e momentânea que seja interessante para o momento da análise, que se preocupa apenas com o presente. Terceiro, defende que as grandes contribuições são dadas por aqueles que têm um conhecimento prático. Há, de certa forma, uma crítica à teoria marxista e as teorias macroscópicas que buscam uma análise mais próxima da totalidade para compreender a realidade. O surgimento do pragmatismo possui relação direta com a realidade social e conjuntural dos Estados Unidos. Como já foi abordado, o surgimento da sociologia trouxe novas questões. Um autor que tratou de vincular e articular o pragmatismo com a sociologia foi Mead. Ele criou o pragmatismo clássico e o uniu à sociologia. Pogrebinschi (2005) trata desta relação e ressalta que o pragmatismo social possui duas preocupações: uma com o conceito de ação e outra com o conceito de comunicação27. Por conceito de ação a autora entende que não é apenas a idéia de que “toda investigação, conhecimento e pensamento se dão em nome da ação” (Pogrebinschi, 2005, p. 75). Para a autora o pragmatismo possui uma teoria da ação28 que existe por si só, independente de outros conceitos ou teorias. Há um conceito de ação que permite entender as idéias apresentadas pelo 27 Um pensador influente que trata do conceito de comunicação é Jürgen Habermas. Inicialmente ele apresenta uma proposta de revisionismo do marxismo através de uma análise do capitalismo avançado da sociedade industrial. Baseado em Weber, Habermas buscará como aspecto central de suas análises a racionalidade da sociedade (o que denominará de razão instrumental). Assim, seria necessário recuperar a interação humana através do agir comunicativo. A ideologia capitalista distorce essa capacidade de comunicação entre os indivíduos. Somente com a realização da crítica é possível se sobrepor a essa ideologia e a recuperar a razão emancipadora. Por isso, ele elabora uma teoria da ação comunicativa e recorre a filosofia analítica da linguagem. A razão é entendida como um agir comunicativo (Japiassu e Marcondes, 1991). 28 A teoria da ação é fortalecida e elaborada de forma mais consistente com o neopragmatismo que se articula a sociologia. Nesse momento, há uma necessidade de desenvolver uma teoria da ação mais sistemática a partir do que foi desenvolvido pelos pragmatistas clássicos (Pogrebinschi, 2005). 126 pragmatismo, mas que não precisa do conjunto do pensamento pragmatista para ser compreendido. O conceito de ação também se apresenta no consequencialismo do pragmatismo clássico. A relação estabelecida com a ação é interessante. Pierce afirma que a única ação que pode ser controlada é a ação futura, as demais ações não podem passar pelo autocontrole do homem, pois “... afinal, sempre que um homem age intencionalmente, ele o faz a partir de uma crença baseada em algum fenômeno experimental prévio, pois o que leva as pessoas à ação é sempre um objetivo, um propósito a ser realizado” (Pogrebinschi, 2005, p. 78). De acordo com essa forma de pensar o homem não consegue controlar suas ações. Entretanto, a partir da nossa perspectiva de análise a ação humana é resultado de intencionalidades com consequências futuras. O homem é capaz de fazer escolhas acerca de suas ações e de projetar suas consequências, apesar de nem sempre suas projeções se concretizarem porque há outros fatores que incidem e que estão além da intencionalidade e da projeção do homem. Outro momento em que o conceito de ação se manifestou foi na teoria da significação. Nela estava contida a idéia de que apenas com a freqüência das ações de forma constante seria possível compreender os significados dos conceitos, pois é a repetição da ação que determina a compreensão. Há ainda o contextualismo que apresenta o conceito de ação. Vale destacar que para Peirce o pensamento tem por objetivo produzir ações e a ação decorre da experiência ou da imaginação, do pensamento. Para os pragmatistas a função do pensamento é produzir hábitos de ação (Pogrebinschi, 2005, p. 79). O homem é levado à ação por dois caminhos: ... não apenas o hábito leva à ação, mas também as dúvidas, ou seja, o oposto das crenças. Ao passo que a crença se inclui no estabelecimento de uma regra de ação ou de um hábito, as dúvidas, por seu turno, estimulam continuamente as pessoas à ação, até que sejam destruídas e substituídas pelas crenças (Pogrebinschi, 2005, p. 79). Nesse sentido, a ação possui um papel relevante. Ela é responsável pelo futuro e pelas consequências humanas. O problema é a concepção de teoria e o que se entende por ação, pois podemos afirmar que há a ação não intencional, aquela presente em nosso cotidiano e a ação intencional, aquela elaborada e refletida com um fim específico. Por exemplo, a ação 127 revolucionária é uma ação que se realiza concomitantemente com a compreensão da teoria revolucionária. Assim, não é uma ação qualquer, e sim elaborada com uma perspectiva. Para o pragmatismo a ação é considerada como um meio superior, pois quando se trata de ação voltada para o conhecimento ela é considerada um método. Segundo Pogrenbinschi (2005), Dewey é o autor que apresenta o melhor conceito de ação, pois ele trata de uma ação inteligente ao dizer que a mente humana pode planejar cada vez mais fins novos e complexos para desvincular a experiência da rotina, por conseguinte seria a inteligência que libertaria a ação e não o pensamento. A diferença é que a inteligência se desenvolve a partir da ação, ou seja, estão articuladas. Assim, a autora afirma que os pragmatistas entendem a inteligência associada ao uso da criatividade. A ação inteligente (ou criativa) é, portanto, aquela ação que a inteligência liberou de um caráter mecanicamente instrumental. Perceba-se assim que a inteligência é instrumental através da ação, pois ela vai determinar as qualidades da experiência futura. Em outras palavras, a preocupação primária da inteligência é com o futuro, com aquilo que ainda não foi realizado: a inteligência dirige o seu olhar para o futuro (...). Neste sentido, a ação inteligente é libertadora, acredita Dewey (Pogrenbinschi, 2005, p. 81). A mesma autora destaca ainda o pensamento de Mead que relaciona a consciência ao conceito de ação, pois, para ele, a consciência é uma etapa da ação para se atingir um ato. Um ato é caracterizado por estágios de percepção e manipulação. “Na fase da percepção, o ato é ajustado ao ambiente, enquanto na fase de manipulação o organismo lida com aquilo que é necessário para a consumação do ato” (Pogrenbinschi, 2005, p.82). O ato tem como características as respostas que atinge, são as respostas do ato que permitem alcançar o estímulo sem ser uma mera sequência do outro. Trata-se da concepção de inteligência compreendida como um instrumento. Na lógica de Mead a ação determina a criatividade, já que a consciência é uma fase da ação, é nesta fase que a criatividade se expressa. Mead também afirma que a criatividade não pode sofrer pressão para se manifestar, “A criatividade é, indubitavelmente, o centro das tentativas de elaboração de um conceito de ação pragmatista” (Pogrenbinschi, 2005, p. 83). Segundo Pogrenbinschi, Mead trata de uma criatividade social que se expressa a partir do sujeito inserido em um contexto social. Esse conceito de ação do pragmatismo se opõe a teoria da ação racional que influenciou a sociologia e os clássicos da teoria sociológica da ação como Max 128 Weber e Talcott Parson. Em Mead a percepção e a cognição são fases da ação, elas são condicionantes para a condução da ação. A ação terá relação com a intencionalidade, pois as capacidades, os hábitos e as formas como o homem se relaciona com o ambiente estabelecem os fins conscientes dos homens, formam a intencionalidade do sujeito. “A intencionalidade passa a ser vista como um controle auto-reflexivo exercitável sobre o comportamento” (Pogrenbinschi, 2005, p. 89). Assim podemos destacar conceitos chaves para os pragmatistas como consciência, intencionalidade e, principalmente, ação. Na realidade as idéias pragmatistas propagam a ação como o grande significado de suas propostas. A partir do conceito de ação desenvolvem outros conceitos e significados. O pragmatismo possui uma forte relação com um determinado conceito de comunicação que está atrelado a linguagem e a retórica. A produção do pragmatismo sobre uma teoria da comunicação foi vasta. Pierce foi quem deu um dos principais contribuições. Ele elaborou uma teoria da significação a partir do conceito de comunicação do pragmatismo. A comunicação permite agregar sentidos e conceitos a fim de estendê-los e não de buscar um resultado final. É possível questionar: qual é o determinante para se estabelecer os significados? Para os pragmatistas é a comunicação. “Em Peirce, portanto, a comunicação é o processo pelo qual as coisas adquirem significados – e, na convergência deste, aproximam-se da verdade e da realidade” (Pogrenbinsch, 2005, p. 92). Nos interessa conhecer o porque do conceito de comunicação possuir uma relevância tão ampla para o pragmatismo. Na realidade, importa distinguir qual a diferença do significado da comunicação dos pragmatistas para o significado que atribuimos pelo Serviço Social. Para os pragmatistas “é a comunicação que possibilita a perenidade da investigação, sua manutenção incessante, a produção inesgotável de respostas provisórias que a realimentam gerando novas respostas também provisórias” (Pogrenbinsch, 2005, p.92). Notamos que a pesquisa pragmatista não chega a um fim, ela busca ser provisória, por haver possibilidades de mudanças e de incoporação de outros conhecimentos. Esse processo de investigação e de pesquisas é guiado pela comunicação. Ressaltamos a pouca importância – ou 129 nenhuma – dada ao conhecimento teórico e objetivo da realidade. Se não há um conhecimento objetivo da realidade que possa nortear uma leitura totalizadora de uma determinada conjuntura, então, nos parece, que os pragmatistas aceitam um conhecimento “flexível” que pode ser ampliado, reduzido, incorporado, descartado a qualquer momento. Esse conhecimento “flexível” é possível através da comunicação. “O que permite que as respostas encontradas no percurso da investigação sejam novamente e incessantemente testadas e possivelmente substituídas por outras respostas é também a comunicação” (Pogrenbinsch, 2005, p.93). De acordo com Pogrenbinsch (2005) o conceito de comunicação apresenta duas características principais: o de responsividade e o de reflexividade. A primeira característica diz respeito ao processo investigativo de possibilitar alterações das respostas às questões que são sempre provisórias. Para a autora há uma capacidade autocorretiva da comunicação porque ela revisa e corrige as investigações. “O papel da comunicação na investigação é, portanto, justamente o de corrigir, possibilitando assim a sua falibilidade e inesgotabilidade (...). A comunicação é o meio condutor disto tudo, e por isso ela é intrinsecamente autocorretiva” (idem, p. 93). Por isso a comunicação é responsável pelas investigações e pelas respostas a serem dadas ao mesmo tempo em que permite flexibilizar os resultados da investigação. De fato ela é o meio de todo o processo de pesquisa, é ela que permite atingir os conceitos e resultados da pesquisa, os quais nunca são concluídos. A autora aborda os estudos de Pierce, pois ele estabeleceu que os signos são as formas pelas quais é possível elaborar a comunicação entre duas pessoas. Posteriormente, ela irá abordar Dewey, pois ele reforça as características responsivas e reflexivas elaboradas por Pierce. Contudo, Dewey acrescenta outros aspectos ao conceito de comunicação como o consequencialismo e o contextualismo. “A comunicação é uma espécie de ponte natural que liga a existência e a essência, gerando além de significados, informação, ensino e aprendizado, ou seja, conhecimento” (Pogrenbinschi, 2005, p. 95). Então, pode-se constatar que para o pensamento clássico pragmatista a comunicação é uma forma de elaboração de conhecimento, é um meio de investigação que permite elaborar respostas, modificá-las e corrigi-las. A comunicação assume a função da teoria na elaboração do pensamento. 130 De acordo com Pogrenbinschi há uma diferença essencial de Dewey para Pierce na compreensão do conceito de comunicação. Dewey entende a comunicação a partir de um sentido social, ou seja, como uma forma de cooperação e interação entre as pessoas. A comunicação é entendida como uma atividade social, uma forma de estabelecer significados através de signos. Ela permite conduzir à inteligência. “De acordo com Dewey, as funções instrumentais e finais da comunicação não devem ser jamais separadas, pois quando estão unidas na experiência o que se obtém é a inteligência” (idem, p.98). Ao que parece, Dewey trata do desenvolvimento da inteligência humana e do relacionamento do homem em sociedade. A capacidade de desenvolver uma linguagem e signos de comunicação só foi possível através do desenvolvimento do intelecto humano. E para tanto foi preciso uma interação social, uma cooperação e convívio entre os homens. O problema é que Dewey não distingue essa idéia da investigação científica e eleva a comunicação a uma posição de produtora e instrumento de conhecimento. Para Pogrenbinsch, Mead foi o principal elaborador da teoria da comunicação. Ele desenvolveu suas idéias a partir do estudo da psicologia social. Ele fez uma leitura dos indivíduos em sua interação social. “A importância da linguagem no desenvolvimento da experiência humana, segundo Mead, reside justamente no fato de que o estímulo reage tanto no sujeito que fala quanto no outro com quem ele fala” (idem, p. 99). É como se a linguagem gerasse uma ação e uma reação devido a interatividade. Mead irá trabalhar muito com o conceito de reflexividade ao tentar explicar como funciona a ação e reação do processo de comunicação. Quando um indivíduo busca uma resposta sobre outro indivíduo em si mesmo há uma tendência de se apropriar das ações e reações do outro, a agir como outra pessoa. Isso é chamado de reflexividade. Para ele é essa característica específica que distingue os homens dos demais animais. “E o que é distintivo da linguagem humana, por sua vez, é a possibilidade de que um mesmo ato da fala afete tanto aquele que o emite, quanto aquele a quem se dirige” (Pogrenbinschi, 2005, p. 99). Mead defende a seguinte idéia: quando nos comunicamos com outra pessoa esta nos dá uma resposta, ao repetirmos essa resposta nos colocando no lugar do outro que nos respondeu e iremos de alguma forma fixar e aprender o significado da mensagem transmitida. Quanto mais ocorre esse processo de repetição 131 mais o significado do que se ouve passa a ser incorporado. Ele denomina isso de reação social que ocorre no processo de comunicação entre os indivíduos. Por exemplo: é como uma criança que está em fase de aprendizagem da língua e repete tudo que lhe é dito. Essa idéia é perfeitamente compreensível em um contexto social da vida cotidiana, mas aqui insistimos na crítica ao pragmatismo: essa idéia é transportada para os processos de investigação e de busca de respostas aos questionamentos gerais da sociedade porque tudo passa primeiro pela forma como o indivíduo apreende a verdade. Quanto mais se repete um experimento mais se compreende seu significado? Não necessariamente e depende da área que estamos tratando, se é da área física, química, humana ou social. Ressaltamos que Mead trata o tempo todo do processo humano. Por outro lado, é importante destacar que Mead aborda a linguagem. Ele diz que a construção dos significados e a possibilidade da linguagem e da comunicação são feitas pela mente humana e esse processo só é possível através da experiência dos indivíduos em coletividade e nunca individualmente. Em suma, para Mead a comunicação assume uma posição importante, pois segundo Pogrenbinsch (2005, p. 101) “ela consiste no único tipo de comportamento no qual o indivíduo responde a si mesmo”. Há ainda outro destaque feito por Mead: ele diz que a personalidade do indivíduo está relacionada à inteligência reflexiva. É esta inteligência que permite que um indivíduo se posicione no lugar de outro indivíduo. Quando o processo de inteligência reflexiva se desenvolve no processo comunicativo com o outro, ocorre uma ação inteligente. Podemos destacar que Mead trata muito do ser individual e pouco do ser coletivo, apesar de compreender a comunicação em seu aspecto social. Ele trata das mudanças individuais, mas faz uma distinção entre o indivíduo e o social. Segundo a análise de Pogrenbinsch (2005, p. 102): Deste comportamento reflexivo resulta que os indivíduos passam a ser conscientes de si mesmos ou autoconscientes, bem como críticos de si mesmos ou autocríticos. E quando todos os indivíduos desempenham as atitudes de outros, a atitude de um grupo é diferente daquela de um indivíduo separado, o que temos é um ‘outro generalizado’ que contribui para a formação de uma comunidade também consciente de si mesma. Vejamos: é a comunicação que permite a busca por respostas ou é o pensamento reflexivo e crítico? Entendemos que há um conjunto de fatores que acarretam no processo de busca de respostas pelos homens, entre eles a possibilidade da comunicação. Contudo, através do 132 processo reflexivo crítico é possível desenvolver a capacidade de responder a questões e perguntas acerca da realidade. Uma relação importante de ser estabelecida é a do pragmatismo com a sociologia e com a teoria política. A sociologia foi uma das áreas das quais o Serviço Social se aproximou até atingir uma concepção e apreensão da realidade. E a teoria política atravessa as leituras feitas pelos profissionais e a análise de conjuntura da qual desprendem para criticar o cotidiano de trabalho profissional. Pogrenbinsch (2005) ressalta que o pragmatismo teve uma contribuição relevante no campo da sociologia para suas proposições empíricas e para a solidificação de uma teoria social e política. Ressaltamos um aspecto importante apontado pela autora: a influência do pragmatismo na sociologia é muito pouco conhecida e, consequentemente, pouco analisada e estudada. “O pragmatismo apresenta uma contribuição que, apesar de pouco conhecida, em muito se coaduna com as principais tendências que vem assumindo a teoria política contemporânea” (idem, p. 123). Dewey foi o principal influenciador do pragmatismo na teoria política, entretando, como já sinalizamos anteriormente, de acordo com as análises de Pogrenbinsch, as contribuições deste autor foram desconhecidas por muito tempo. Outro fator importante é que essa aproximação, entre o pragmatismo clássico e a sociologia, possibilitou a manifestação do neopragmatismo como uma forma de resgatar os estudos sobre teoria política de Dewey. Nesse sentido, as principais contribuições de Dewey foram em relação a comunidade e a democracia posteriormente abordadas pela sociologia. O pragmatismo foi um dos primeiros campos a apresentar um debate sobre comunidade. Esse conceito surge primeiramente por Peirce que tratou de atribuir um significado mais cientifico ao dizer que há uma comunidade de investigação em contínuo movimento para permitir a propagação do conhecimento. Essa comunidade é necessária para confirmar idéias, crenças e significados. É como se a comunidade estivesse acima dos indivíduos, pois ela permite uma aproximação da opinião dos investigadores ao que é real. O indivíduo só consegue fazer parte da comunidade se ele tiver crenças comuns aos demais. O que permite a comunidade exercer um papel crítico é a autocorreção, pois ela pode rever suas propostas e conceitos, dessa forma ela seria uma comunidade crítica por ter a 133 possibilidade de fazer revisão. A comunidade também irá se valer da comunicação para permitir uma aproximação maior entre os indivíduos, a ponto de torná-la uma comunidade mais próxima do ideal. Mead trabalhou esta idéia e defendeu a proposição de que apenas a comunicação pode permitir a comunidade atingir um estado ideal porque ela permite ultrapassar barreiras. Desta forma, os conceitos de comunicação e comunidade estariam intimamente associados. Entretanto, com este conceito Mead descaracteriza o anti-universalismo pragmatista, já que para esta perspectiva não há verdades universais. Assim, o conceito de Dewey está mais próximo da proposta do pragmatismo clássico: para ele a comunidade livre de barreiras é um ideal. A participação na vida comunitária permite o desenvolvimento de uma formação moral dos indivíduos assim como a educação que assume uma função disciplinadora e de enquadramento como um espaço de moralização. Todos os homens nascem como seres orgânicos associados uns aos outros, mas não nascem como membros de uma comunidade. É preciso aprender isso. Vale dizer, os homens devem ser ensinados a viver em comunidade, e isto se torna possível apenas quando eles são criados no contexto de tradições, perspectivas e interesses que caracterizam uma comunidade. O meio que possibilita tal inserção é justamente a educação (...) Diante disto, acredita Dewey, as escolas da comunidade devem fornecer aos seus alunos um treinamento moral (...) As escolas possuem, por conseguinte, uma tarefa moral de cunho social que não pode ser separada da tarefa intelectual (...) O objetivo moral das escolas é, por conseguinte, ensinar as crianças a participarem da vida social (Pogrenbinsch, 2005, p. 139). Para Dewey a comunicação tem que ser próxima e direta, com contatos pessoais entre os comunicantes. Possui mais valor tudo que é falado em detrimento do que é escrito. É dessa forma que a inteligência social é desenvolvida, apenas quando as informações são transmitidas diretamente entre as pessoas. “As palavras escritas só ganham sentido – ou só fazem sentido – quando são comunicadas direta, pessoal e proximamente” (Pogrenbinsch, 2005, p. 146). A segunda contribuição de Dewey na sociologia referente à democracia demonstra, segundo Pogrenbinsch, que a concepção de democracia contemporânea está diretamente relacionada à concepção de democracia do pragmatismo. A essa associação a autora denomina de pragmatismo político, pois reatualiza as idéias de Dewey desenvolvidas no início do século XX. Dewey distingue a democracia em dois momentos. Primeiro como uma idéia. Segundo como um 134 sistema de governo, esta é chamada de democracia política. Ela está acima do Estado, por isso a democracia política é uma forma de operar e concretizar a democracia como um modo de vida. Para Dewey a democracia não se restringe a democracia de Estado, ela afeta a vida em comunidade. “Para que a idéia de democracia seja realizada, por conseguinte, ela precisa produzir efeitos sobre a família, a escola, a religião, os empreendimentos (...), além de outras formas de associação humana” (Pogrebinschi, 2005, p. 152). Percebe-se nesse movimento a importância do papel da ideologia, nesse caso, a ideologia da classe dominante propagada por toda sociedade como a ideologia que corresponde aos interesses de todos. Assim, também, o sistema capitalista defende uma idéia de democracia, mas é uma democracia ilusória. A democracia política (associada a idéia de governo) no capitalismo é frouxa e escassa, por mais que existam mecanismos de participação da população nas instâncias governamentais, elas são pouco divulgadas e incentivadas, pois não é interessante um controle social de massa sobre a esfera estatal. Vejamos um aspecto destacado por Pogrenbinschi (2005) a respeito do significado da democracia para Dewey. Primeiro, a autora destaca a importância de não se confundir a idéia de democracia com os órgãos e estruturas externos da esfera política. Essa idéia de democracia é tida como inabalável e, portanto, permite críticas e crises das formas políticas de democracia. A solução para superar essas críticas e crises seria retomar para a própria idéia do que seja democracia. “A solução para os males da democracia política reside assim em encontrar a substância da ‘idéia’, em clarificá-la, compreendê-la, apreendê-la em seu sentido mais profundo, de modo que se possa, então, possibilitar a crítica e a reconstrução de suas ‘manifestações políticas’” (idem, p. 153). Analisemos o que Dewey chama de idéia de democracia. Nos parece ser algo muito próximo ao seu conceito, ao seu significado, a sua elaboração teórica. Ou seja, idéia de democracia aproxima-se do processo de atribuir um significado projetado conscientemente. Ao falar de instâncias de efetivação da democracia política, Dewey parece tratar da implementação da “idéia de democracia”, ou seja: Dewey fala da efetivação de democracia na atividade prática. Assim, o processo que ele percorre é o da elaboração do conceito (idéia de democracia) para a 135 efetivação da atividade (democracia política) e posteriormente, a verificação da atividade democrática correspondente ao conceito de democracia. Quando essa relação entre atividade e conceito não está bem estabelecida ele sugere a retomada do conceito de democracia (idéia de democracia). Pelo exposto evidenciamos dois aspectos. O primeiro, de fato os pragmatistas não articulam teoria e prática. A idéia de democracia é distinta da democracia política, como se a idéia não tivesse que estar relacionada a realidade e a seus problemas. A solução passa a retomar ao ponto inicial, ou seja, a idéia. Segundo, nos parece que a proposta de Dewey apresenta um “pragmatismo invertido”, pois ele parte da idéia, passa pela democracia política (efetivação da democracia na atividade prática) e retoma a idéia, ou seja, é a idéia pela idéia. Entretanto, posteriormente Dewey defende que apenas a idéia de democracia não constitui a democracia governamental, mas ela influenciou os movimentos em sua busca. Ele irá explicar que “a intenção que levou à criação das conhecidas instituições da democracia moderna foi a de satisfazer necessidades e demandas concretas, e não a de promover a ‘idéia’ democrática” (Pogrenbinschi,2005, p. 154). Dewey apresenta uma concepção confusa entre idéia de democracia e democracia política. Mesmo tratando da relação entre idéia democrática e consolidação de instituições democráticas modernas ele não chega a analisar a relação que existe entre teoria e atividade prática. A concepção de idéia de democracia para Dewey está relacionada com a idéia de comunidade. Ela é um ideal de uma dada comunidade acabada e perfeita. A idéia de democracia deixa de ser uma idéia quanto ela toma a forma de comunidade, uma comunidade real. Como a comunidade é formada por indivíduos a democracia deixa de ser vinculada apenas a política e passa a estar presente na vida individual. Essa concepção de democracia não possui uma forma acabada ou uma definição, ela está em constante processo de elaboração. Quando a auto-realização individual converte-se em auto-governo, a comunidade converte-se em uma democracia participativa. Com efeito, a idéia de democracia se expressa na participação do indivíduo em todos os momentos e lugares da vida comunal, dos quais a esfera propriamente política representa apenas um. Ao lado de todas as suas funções enquanto membro da comunidade, os indivíduos possuem uma função especificamente política, a de participar de forma ‘direta’ e ‘ativa’ na regulação dos termos da vida associativa e na busca do bem comum (Pogrenbinschi, 2005, p. 158). 136 A partir dessa definição de Pogrenbinschi (2005) nos parece que o conceito de democracia do pragmatismo é mais ampla do que a democracia efetiva do capitalismo. A própria autora associa a idéia de democracia de Dewey ao que denominamos na sociedade contemporânea de democracia deliberativa. A concepção de democracia do pragmatismo possui um caráter normativo, mas em outro momento a autora diz que a democracia deweyana não está associada a concretização dos ideais de liberdade e de igualdade, assim como não pretende ser um sistema de direitos. Segundo as palavras da autora: “a democracia não é meramente um fim, mas também não se resume em um meio; ela é ao mesmo tempo meio e fim. Esses meios e fins podem ser de qualquer espécie, pois sempre haverá um meio de concretizar um fim” (idem, p. 164). O importante é o resultado final, não importam os meios pelos quais se irá atingi-lo. Por fim, paralelo a idéia de democracia está o conceito de fé. Exatamente, Dewey trabalha com uma idéia inusitada, a da fé democrática. “A democracia é um modo de vida pessoal comandado não apenas pela fé na natureza humana em geral, explica Dewey, mas pela fé na capacidade dos seres humanos terem um discernimento (...) e uma ação inteligente” (Pogrenbinschi, 2005, p. 166). A fé democrática está associada à capacidade do homem em responder aos problemas de sua comunidade. Pelo exposto acerca das propostas pragmatistas fica claro o papel que a experiência assume. Ela é o resultado e processo de todas as propostas e finalidades. Por ser o aspecto mais importante, ela não admite proposições, conceitos, teorias. “A comunicação é sempre secundária em face da experiência; ela é sempre um meio, enquanto a experiência é sempre, e ao mesmo tempo, meio e fim” (Pogrenbinschi, 2005, p. 169). Pogrenbinschi discorre sobre o pragmatismo de forma a expor todos os seus elementos constitutivos. Ela aborda os principais autores que reivindicam por uma leitura pragmática da realidade. Sua capacidade de apreensão de uma leitura crítica sobre os precursores do pragmatismo oscila entre uma exposição de elementos centrais para um debate atual acerca de expressões que podem se configurar como uma reatualização do pragmatismo ou que apresentem elementos constitutivos deste (como o caso da pós-modernidade); em alguns momentos apresenta uma leitura equivocada e confusa em suas análises, ao afirmar que o pragmatismo assemelha-se, 137 em alguns aspectos da leitura marxista29. Um aspecto precisa ser mencionado: o trabalho de Pogrenbinshi mostra-se importante pelo estudo que ela realiza do pragmatismo e por trazer suas principais propostas e características para o debate. Como iremos apresentar, o pragmatismo possui leituras confusas e contraditórias, conflitantes e “confortáveis”, que pode nos levar a seguir um caminho em busca da confirmação de fatos, da realização de experiências. Parece-nos uma interpretação tentadora para aqueles que trabalham no âmbito da intervenção no cotidiano e do senso comum, que necessitam de respostas imediatas e que possuem pouco espaço e tempo para uma reflexão densa e profunda. 3.2. A experiência como conhecimento: a crítica do pragmatismo ao racionalismo e ao materialismo Já abordamos brevemente a origem do pragmatismo, ainda assim destacaremos sua relação com o pensamento norte-americano. Pelas nossas análises o pragmatismo apresenta-se como uma ideologia. É uma ideologia exatamente porque possui uma intencionalidade e uma vinculação à cultura norte-americana. Ele não se desenvolve ao acaso, mas está imerso no universo pluralista e eclético da perspectiva norte-americana, “parece haver uma tendência constante na tradição norte-americana, constituída pelo fato de que todas as idéias têm sido avaliadas pragmaticamente e sua importância determinada pela referência a possíveis aplicações práticas” (Mariconda, 1979, VI). A introdução do livro “Os pensadores – William James”, Mariconda (1979) aborda de forma clara a ampla receptividade de pensamentos diversificados na filosofia norte-americana e 29 Em uma nota de rodapé a autora diz que “é inegável que o pragmatismo também apresenta similaridades com outros sistemas de pensamentos desenvolvidos ao longo do século XIX, como o marxismo, o positivismo e o darwinismo” (Pogrenbinschi, 2005, p. 63). Em outro momento diz que o conceito de prática do pragmatismo é o mesmo do marxismo, acrescenta que o pragmatismo é tão materialista quanto o marxismo. Diz que: “o antifundacionalismo pragmatista, com sua rejeição ao dogmatismo, aos princípios imutáveis e apriorísticos, à idéia de certeza e de verdade, se aproxima intensamente do marxismo” (idem, p. 68). 138 acrescente que diversos países receberam a influência desse modo de pensar. Destaca que o auge desse pensamento ocorre no período final do século XIX quando houve também um domínio econômico e político dos Estados-Unidos que atingiu proporções internacionais. O autor considera este o período no qual foram projetados os principais representantes deste modo de pensar, dois deles de tendência pragmatista: William James e John Dewey. Optamos por apresentar uma breve análise de algumas proposições de William James, ele apresenta elementos interessantes que nos permitem pensar o Serviço Social e sua relação como conservadorismo. William James (1842- 1910) pertencia a uma família da alta sociedade norte-americana. Viveu em um ambiente intelectualizado. O pensamento de James é fruto das influências das reflexões filosóficas e científicas do final do século XIX e início do século XX. James teve uma ampla formação, passando pela arte, pela fisiologia e pela medicina. Entretanto, “sua primeira contribuição foi a constituição de uma nova corrente de psicologia que, ao lado de outras, marcaria o nascimento da psicologia científica” (Mariconda, 1979, p. VII). Ele começou esta elaboração através da organização de um laboratório de psicologia experimental. Sua proposta era estudar os fatos psíquicos os atrelando a fisiologia nervosa, a teoria da evolução e aos dados da arqueologia para se atingir uma verdadeira ciência do homem. A elaboração do método científico de James configurou-se através de uma ampla gama de influências, seja por fatos fisiológicos, psíquicos, empirismo experimental (mistura de evolução, psicologia e introspecção). Essa direção deu-se por decorrência as críticas realizadas contra a Sociedade Metafísica que permitiu espaço à criação do pragmatismo. “William James entende o pragmatismo não apenas como um método de determinação de significados, mas também como uma nova teoria da verdade, que supunha estivesse implícita nas idéias de Peirce” (Mariconda, 1979, p. XI). James defendeu a idéia de que a filosofia deveria ser reflexo das ciências naturais. Deveria ser indutiva e empírica, para tanto, o filósofo teria que desenvolver hipóteses de trabalho, mas substituí-las caso fosse necessário. Essa possibilidade de mudança estaria relacionada a necessidade de as hipóteses responderem ao filósofo na solução dos problemas apresentados. A verdade para ele é funcional às experiências, ela modifica-se constantemente (Mariconda, 1979). 139 Quanto ao conceito de verdade desenvolvido por James, o autor destaca que: Nesse processo de modificações e crescimento, a verdade deve satisfazer a duas condições diferentes. Em primeiro lugar, o pragmatismo de James salienta a necessidade de as proposições exigirem comprovação para serem admitidas como verdadeiras. Nesse sentido, a verdade seria a verificabilidade; caso em que não se poderia identificar a verdade pura e simplesmente com as conseqüências benéficas de uma proposição. Em outras palavras, essa primeira condição da verdade, estabelecida pelo pragmatismo, entente ‘consequencia prática’ como um modo de ‘consequencia teórica’. A segunda condição estabelecida por James para a identificação de uma verdade consiste no seu valor para a vida concreta. Esses dois modos de conceber a verdade unem-se na concepção da verdade como algo essencialmente ‘aberto’ e em constante movimento. Em síntese, para William James, a verdade não é algo feito ou dado; é algo que ‘se faz’ dentro de uma totalidade também em constante processo de ‘fazer-se’” (Mariconda, 1979, p. XIII). A partir dos aspectos levantados sobre as propostas pragmáticas desenvolvidas por James iremos abordar alguns traços constitutivos de seu pensamento. Nossa base de exame será o conjunto de oito conferência agrupadas sobre o título “Pragmatismo”. Sobre “O atual dilema da filosofia” James introduz o debate dizendo que para a filosofia o relevante para cada indivíduo é o senso comum do que a vida significa, é a forma individual de perceber “a carga total e a pressão do cosmos” (James, 1979, p. 3). Para ele a filosofia demanda que cada um veja as coisas através de sua forma individual e particular e não deve aceitar qualquer explicação que contrarie sua percepção. Ou seja, James quer demonstrar que tudo é relativo e depende da busca de cada um por uma verdade. Ele não trata de fatos e sim de sentimentalismo e de experiências, basta vermos esta passagem no qual ele diz que “o mundo é indubitavelmente um se você o olha de certo modo, mas sem dúvida é muito se você o olha de outra maneira” (James, 1979, p. 7) e complementa da seguinte forma: “tudo, naturalmente, é necessariamente determinado e, não obstante, naturalmente nossas vontades são livres: uma espécie de determinismo livre arbítrio é a verdadeira filosofia” (James, 1979, p. 7). Ele realiza uma crítica a ciência em comparação ao senso comum. Estabelece o senso comum como uma expressão heterogênea de experiências pessoais concretas; já a o pensamento científico e elaborado seria algo simples e claro, sem manifestar as contradições da “vida real”. Ele realiza uma crítica aos filósofos e cientistas que se distanciam dos problemas da vida cotidiana. James diz que os filósofos devem contar com os sentimentos, pois a forma mais exitosa 140 de compreender as coisas ocorre através da impressão que tais coisas causam ao filósofo. Essa impressão das coisas está relacionada a personalidade individual de cada filosofo, as suas concepções, aos seus sentimentos e as suas sensibilidades. Na segunda conferência intitulada “O que significa o pragmatismo” James inicia tratando da relatividade da verdade, da perspectiva do filósofo e das inúmeras interpretações que uma situação pode proporcionar. James aponta o que considera por método pragmático ao dizer que é “um método de assentar disputas metafísica que, de outro modo, se estenderiam interminavelmente” (James, 1979, p. 18). Completando: “o método pragmático nesses casos é tentar interpretar cada noção traçando as suas consequências práticas respectivas” (idem, p. 18). A partir dessas suposições fica claro que para o pragmatismo tudo que for provado na prática possui validade. Ao explicar o significado do pragmatismo, James reporta a origem do termo a palavra grega prágma que significa ação. Reconhece que foi Pierce quem introduziu a palavra pragmatismo em 1878. Assim, deixa claro o centro da preocupação pragmática, ou seja, a prática. O seu método consiste em testar todas as hipóteses e proposições de forma prática, caso não apresentem uma conseqüência concreta elas são descartadas e consideradas inúteis por não serem provadas na prática. Nessa lógica nega-se as macroteorias e as metateorias, pois mesmo que elas apresentem questões referentes a problemas da vida em sociedade elas não passam por testes ou não são efetivadas imediatamente. O pragmatismo representa uma atitude perfeitamente familiar em filosofia, a atitude empírica, mas a representa, parece-me, tanto em uma forma mais radical quanto em uma forma menos contraditória, em relação a que já tenha assumido alguma vez. O pragmatista volta as costas resolutamente e de uma vez por todas a uma série de hábitos inveterados, caros aos filósofos profissionais. Afasta-se da abstração e da insuficiência, das soluções verbais, das más razões a priori, dos princípios firmados, dos sistemas fechados, com pretensões ao absoluto e às origens. Volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a ação e o poder. O que significa o reinado do temperamento empírico e o descrédito sem rebuços do temperamento racionalista. O que significa ar livre e possibilidades da natureza, em contraposição ao dogma, à artificialidade e à pretensão de finalidade na verdade (James, 1979, p. 20). Dessa forma, James considera as teorias como instrumentos, elas não são respostas aos questionamentos. Por terem essa tendência a aceitar uma multiplicidade de posições sofrem influências de diversas tendências, como o utilitarismo devido sua atenção aos aspectos práticos e o positivismo. 141 James deixa claro que o método pragmático é uma “atitude de orientação” com o objetivo de “olhar além das primeiras coisas, dos princípios, das ‘categorias’, das supostas necessidades; e de procurar pelas últimas coisas, frutos, consequências, fatos” (James, 1979, p. 21). A busca é pelos fatos concretos, pela prática, pela ação e não por conceitos. A questão central é a busca pela prática em primeiro plano sem que haja qualquer articulação com bases teóricas. As teorias são, de certa forma, associadas a leis. James diz que conforme a ciência foi se desenvolvendo, concomitantemente, as leis passaram a ser concebidas como aproximações. As leis tornam-se numerosas e os investigadores passaram a perceber que nenhuma teoria é uma transcrição da realidade, mas que elas podem ser úteis de certa forma. Ou seja, a concepção de teoria válida é que consegue traduzir a realidade o mais próximo e verossímil. Sobre o processo de elaboração de novas idéias e opiniões, James destaca o indivíduo como portador de concepções que passa por constantes experiências. Nesse processo, outro individuo pode contradizer uma opinião já formada, ou que as idéias defendidas por um individuo podem ser contraditórias. O individuo questionado sofre uma perturbação e para não passar por essa sensação ele busca mudar a massa de suas opiniões, mas tentando conservar o máximo que pode delas. É nesse movimento que novas idéias surgem. É como se fosse um processo de acúmulo de experiências até que o sujeito mude suas idéias, como destaca James (1979, p. 24) “uma opinião nova conta como ‘verdadeira’ na proporção que satisfaz o desejo do indivíduo no sentido de assimilar a novidade em sua experiência às suas crenças em estoque”. A verdade concebida pelo pragmatismo tem relação direta com os fatos, com o que pode ser provado empiricamente. Entretanto, para o pragmatismo não existe uma verdade, mas sim verdades. Dessa forma, James (1979) ataca toda e qualquer crítica feita aos pragmatistas, já que, segundo sua lógica, eles conseguem “provar” suas “verdades”. A verdade é concebida como uma forma de bem comum, é considerado verdadeiro tudo que for bom para uma crença por razões que sejam fundamentadas e definitivas, ou seja, que tenham relação com fatos e sejam úteis. O pragmatista agarra-se aos fatos e coisas concretas, observa como a verdade opera em casos particulares, e generaliza. A verdade, para ele, torna-se uma classificação para todos os tipos de valores definitivos de trabalho em experiência. Para o racionalista, não passa de uma pura abstração, de cujo simples nome devemos diferir. Quando o pragmatista empreende a tarefa de mostrar em detalhes por que extamente devemos discordar, o racionalista mostra-se incapaz de reconhecer os dados concretos dos quais a 142 sua própria abstração deriva. Acusa-nos de negar a verdade; ao passo que temos somente procurado traçar exatamente por que as pessoas a seguem e sempre devem segui-la (James, 1979, p. 26) (grifos do autor). Outra crítica disparada por James é em relação aos materialistas. Diz que o pragmatismo possui forte relação com os fatos, mas que não tem nenhuma pretensão materialista. Alega também que o pragmatismo não faz qualquer tipo de objeção as abstrações nem a teologias. Parece-nos que James trata especificamente das crenças, daquelas que não possuem nenhum tipo de relação com fatos, mas que podem ter relação com a vida concreta. Diz que elas se tornam verdadeiras quando apresentam relação com as demais verdades. É uma forma de pensar no mínimo contraditória, pois, se o pragmatismo reivindica por verdades relacionadas aos fatos, como associar crenças a fatos? A justificativa de James (1979) é apresentada da seguinte forma: “uma idéia é verdadeira na medida em que acreditar nela é proveitoso para nossas vidas” (idem, p. 28). As verdades de um indivíduo buscam se autopreservar, pois apresentam resistência de serem contestadas; por isso que elas visam eliminar tudo que as contradiga. James (1979) defende que a crença em algo superior, mesmo que não possa ser provada, deve ser preservada se ela fizer bem ao indivíduo que nela crê. E assim, deve aceitar e conviver com as demais crenças, sendo dessa forma verdadeira. Acrescenta a seguinte idéia “eu mesmo acredito que a evidência de Deus reside, antes de mais nada, em experiências pessoais internas” (idem, p.39). E ao tratar de experiência tudo pode ser aceito pelo pragmatismo, contanto que as experiências tenham relação com os fatos da vida dos indivíduos. Por outro lado, o pragmatismo de James realiza uma crítica ao naturalismo por considerarem as leis da física como as mesmas que regem as “coisas” não naturais. Sua crítica projeta-se no argumento dos naturalistas tentarem explicar os fenômenos mais elevados pelos mais baixos. E diz também que os pragmatistas não buscam apenas o aspecto imediato da prática, e sim, recorrem a perspectivas do mundo. Por outro lado, ao apresentar o método pragmático, James diz ser necessário “mergulhar no rio da experiência”. Seguindo em sua explicação do método pragmático, James coloca o problema de “singular e plural” como o problema mais central de todos os problemas filosóficos. É central 143 porque a filosofia busca na realidade a unidade, mas o nosso intelecto não busca a unidade nem a variedade e sim a totalidade. O significado de totalidade refere-se a articulação das coisas que se unem de algum modo, ao mesmo tempo, o universo se estabelece a partir de uma função contínua ou integrada. Para o autor a singularidade e a pluralidade estão articuladas, de forma equiparada, sem que uma se sobreponha a outra. Contudo, acrescenta que o pragmatismo deve ser pluralista, mesmo considerando o pragmatismo como uma proposta de método direcionado às experiências. Outro assunto abordado é o do conhecimento. Para este autor, a produção do conhecimento nunca ocorre de uma vez, ele se acumula aos poucos e pode, posteriormente, modificar opiniões já estabelecidas de um indivíduo. Para que um indivíduo desenvolva novas verdades ele precisa acumular experiência que se combinem com as antigas verdades que ele tem, de modo que elas se modifiquem e gerem novas verdades. Ao tratar do significado do senso comum para o pragmatismo, James decorre em uma qualificação do significado da história para os pragmatistas. Ele parte da seguinte tese: a forma atual de pensar dos indivíduos origina-se das descobertas de nossos descendentes mais remotos que conseguiram preservar a experiência e permitiram a formação de uma fase equilibrada do “espírito humano” que é a fase do senso comum. Dessa forma, a história trata da reprodução e do acúmulo de experiências e o senso comum está relacionado ao bom julgamento, é considerado um estágio do nosso conhecimento das coisas. James trata da concepção pragmatista da verdade a considerando como um acúmulo de idéias de um indivíduo, ou seja, ela depende da perspectiva individual. Ele nega a idéia de que a verdade tem que ser uma cópia da realidade. Sua principal crítica versa contra os intelectualistas por afirmarem que quando se atinge uma idéia verdadeira de algo chega-se ao fim da questão. Como verdade James diz que “as idéias verdadeiras são aquelas que podemos assimilar, validar, corroborar e verificar. As idéias falsas são aquelas com as quais não podemos agir assim. Essa é a diferença prática que nos faz ter idéias verdadeiras; esse, portanto, é o significado da verdade, pois é tudo como pode ser conhecida a verdade” (James, 1979, p. 72) (grifos do autor). A verdade de uma idéia não é uma concepção imutável de uma idéia. A idéia torna-se 144 verdadeira de acordo com os acontecimentos, por isso ela é um processo de verificar sua validade. Dessa forma, o valor prático das idéias verdadeiras decorrem da importância que seus objetos possuem na prática. Para James, a verdade depende de uma direção que “vale a pena” em decorrência de nossas experiências, ou seja, quando há um momento em nossa experiência que proporciona um pensamento verdadeiro significa que o pensamento buscará as particularidades da experiência. “A experiência oferece, na verdade, outras formas de processo-verdade, mas são todas concebíveis como sendo verificações primárias capturadas, multiplicadas ou substituídas umas pelas outras” (James, 1979, p. 74). James acrescenta em suas análises que nossas idéias devem aceitar as verdades e não questioná-las, sejam essas verdades concretas ou abstratas, fatos ou princípios; pois, caso contrário, o indivíduo pode frustrar-se. A verdade significa fatos concretos ou abstratos de coisas e relações. O autor demonstra sua relação com a psicologia ao tratar a realidade como algo que deve ser aceito pelos indivíduos para que não se gere frustrações. “Qualquer idéia que nos ajude a lidar, prática ou intelectualmente, com a realidade ou seus pertences, que não perturba nosso progresso com frustrações, que ajusta, de fato, e adapta nossa vida ao cenário geral da realidade, concordará suficientemente em satisfazer o requisito. Manterá a verdade daquela realidade” (James, 1979, p. 76). James trata da questão da linguagem e do discurso. Para ele essa relação parte do ato de pensar. O pensamento e a fala devem ser coerentes, pois é através da linguagem que a verdade é expressa. A linguagem possui um papel central na expressão da verdade, por isso, os pragmatistas atribuem uma função essencial a expressão lingüística. As idéias cientificas são expressões de idéias para além do senso comum que precisam estar de acordo com a realidade. James apresenta uma concepção de teoria através de sua funcionalidade prática. Para ele a teoria tem que ser aplicada na prática para possuir validade cientifica, senão ela perde seu sentido de ser. O sentido atribuído é exatamente o da funcionalidade correlacionada às experiências acumuladas. Como diz o autor: “devemos encontrar uma teoria que funcione; e isso significa algo extremamente difícil; pois nossa teoria deve mediar entre todas as verdades prévias e certas experiências novas” (James, 1979, p. 78) (grifos do autor). 145 A concepção de verdade para James está relacionada ao acúmulo de experiências, a validação da teoria na prática, como diz o autor, “a verdade torna-se um hábito de certas idéias nossas” (James, 1979, p. 80). Aquilo que consideramos verdadeiro é o que processamos em nosso pensamento como verdade. Dessa forma, existe uma verdade para cada situação e para cada pessoa. A verdade se multiplica e adquire várias composições, ela nunca é uma verdade absoluta porque nesse processo de pensamento e individualidade ela pode ser alterada. O autor afirma que a verdade é constituída de verdades prévias e acumuladas. A partir dessa concepção de verdade, James (1979) apresenta sua idéia do que são os fatos e uma proposta de análise das verdades. “As verdades emergem dos fatos; elas, porém, mergulham de novo nos fatos e trazem acréscimos a estes; os fatos criam de novo ou revelam nova verdade (a palavra é indiferente) e assim indefinidamente. Os ‘fatos’ em si mesmos, nesse meio tempo, não são verdadeiros. Simplesmente são. A verdade é função das crenças que começam e terminam entre eles” (James, 1979, p. 81) (grifos do autor). Assim, podemos analisar a idéia do autor da seguinte forma: a verdade está em constante mudança e os fatos são considerados acontecimentos momentâneos, sem caráter histórico que acontecem independente da vontade dos homens. A influência da psicologia em James fica clara quando o autor aborda o significado da razão. As razões são fatos psicológicos associadas a cada indivíduo e a acontecimentos de sua vida, são apenas evidências e não parte da verdade. A razão possui um significado psicológico. Segundo a concepção de James, podemos dizer que não existe a verdade e sim que há verdades que se associam a laços cronológicos. A verdade atual sempre depende de uma verdade anterior, ou seja, de um acúmulo de experiências. Ele considera as verdades como crenças em algo particular. Assim, James irá se debruçar sobre a análise da realidade. Discorre sobre a realidade dizendo que ela possui uma relação com a verdade e com as sensações diante da realidade. Outro aspecto da realidade refere-se às relações que estão presentes nas sensações. Sobre a realidade há também as verdades prévias, ou seja, cada novo fato há novas considerações, dessa forma sempre existiu uma verdade prévia e um fato anterior. 146 Para demonstrar que existem várias verdades com o objetivo de se atingir um único fim, James (1979) dá um exemplo das ciências exatas e a transfere para as ciências humanas de forma comparativa. James diz o seguinte: “pode-se tomar o número 27 como o cubo de 3, ou como o produto de 3 por 9, ou como 26 mais 1, ou como 100 menos 73, ou em incontáveis outras maneiras, das quais uma será tão verdadeira quanto a outra” (idem, p. 91). Com isso, o autor diz que podemos conceber determinada realidade diferentes formas para se adequarem aos nossos interesses. James (1979) afirma que o homem pode acrescentar elementos que modifiquem a realidade, isso não significa um reconhecimento do homem como sujeito histórico consciente de suas ações, pois ele diz que a realidade já existe e nos acrescentamos elementos a ela. Ao criticar o racionalismo James diz que o pensamento racionalista apresenta a realidade de forma pronta e completa como se ela sempre tivesse sido assim, enquanto que o pragmatismo possui uma concepção de realidade como algo que ainda está sendo processado e espera sua expressão futura. James critica com frequência o racionalismo, como uma expressão oposta ao pragmatismo e reafirma a idéia de que os pragmatistas apresentam uma preocupação constante com o futuro. Os pragmatistas consideram como validas qualquer hipótese, já que elas possuem uma utilidade. Eles não rejeitam as hipóteses porque elas possuem consequências úteis à vida. Por outro lado, se elas não possuem sentido e nenhuma utilidade, elas não apresentam razão para existir. Se elas tem utilidade, também terão significado que será verdadeiro se seu uso possuir relação com os demais usos da vida. Dessa forma, para James, “o único caminho para extrair o significado de um termo é usar o método pragmático” (James, 1979, p. 103). Diante do exposto pela leitura que realizamos de Pogrebinschi e de James podemos tratar o pragmatismo como um modo de pensar da sociedade capitalista que surge para fortalecer seus ideais. Ao reforçarmos o aspecto da experiência, da concepção de teoria e de verdade, do significado da ação para o pragmatismo, buscamos reforçar seu papel diante da propagação dos ideais dominantes. As características apresentadas estão muito presentes na cultura dos países capitalistas e 147 presentes no cotidiano dos homens. Assim, as profissões não deixam de ser influenciadas por essas idéias e essa forma de pensar que justifica tudo pela utilidade prática das coisas. Para o Serviço Social é importante conhecer o pragmatismo, visto que conseguimos realizar uma leitura crítica da realidade ao mesmo tempo em que trabalhamos com o cotidiano da vida humana. Os profissionais, por mais que tentem, possuem dificuldades para realizar constantes mediações durante toda sua jornada de trabalho. Assim, é relevante possuir uma perspectiva que permita compreender essa dinâmica para apontar possibilidades de ruptura. 148 Considerações finais Ao trazermos o debate do pragmatismo para o Serviço Social buscamos sinalizar os elementos de continuidade do conservadorismo na profissão, mas não apenas. Nosso objetivo foi esclarecer como o pragmatismo se faz presente de forma atualizada para que assim, possamos indicar alternativas críticas a superação de seus elementos conservadores. Sabemos que a categoria profissional possui um aporte significativo de proposições críticas para enfrentar as tendências conservadoras postas na contemporaneidade. Basta observarmos o Projeto ÉticoPolítico da profissão. Afirmamos em nossa hipótese que o Serviço Social apresenta algumas características do pragmatismo e que, de certa forma, ele se expressa como uma forma de ser da profissão. Cabe resgatarmos que consideramos o pragmatismo não apenas como uma crítica a metafísica ou atrelado em sua origem a sociologia, o consideramos também como uma expressão da ideologia dominante que visa reproduzir uma forma de pensar que fortaleça os interesses da reprodução do capitalismo. Em outro momento apontamos também o debate do sincretismo sinalizado por Netto. O sincretismo se expressa nas requisições da prática profissional, que decorre em uma série de implicações como a necessidade de manipulação das variáveis empíricas, a imediaticidade das respostas, a busca por modelos de intervenção, a negação das macroteorias. É no sincretismo também que se expressa o pragmatismo. Reconhecemos a existência de elementos pragmáticos no Serviço Social, entretanto identificamos que tais elementos estão atrelados as requisições e exigências da prática profissional postas pela imediaticidade do cotidiano. A preocupação em apresentar este debate já foi sinalizado por diversos autores no âmbito do Serviço Social como Guerra (2005) e Vasconcelos (2007). Guerra (2005) ao tratar da instrumentalidade apresenta ao leitor a existência da 149 racionalidade formal-abstrata e a forma como ela se expressa e é funcional à sociedade capitalista. A autora, aportada em Lukács, realiza um resgate do período do surgimento da sociologia como a mais alta expressão da constituição do pensamento conservador, assim como sinalizamos em nossas considerações acerca da leitura de Gouldner. A racionalidade formalabstrata teve relação com o pensamento desenvolvido a partir da sociologia. Por isso, um dos principais autores mencionados por Guerra que contribuiu para a constituição dessa racionalidade foi Émile Durkheim, pois ele visava realizar uma “análise das estruturas sociais, na medida em que suas concepções teóricas e metodológicas encerram a pretensão, não apenas de estabelecer uma explicação totalizadora da sociedade, mas, sobretudo, de orientar uma programática de ação sobre a sociedade” (idem, p. 57). Esta perspectiva de conceber a sociologia como um método científico que associa as regularidades existentes nos grupos aos indivíduos apresenta um conteúdo ideológico de que “não há espaço para se pensar as individualidades, não há interferência teleológica dos sujeitos, não há história” (idem, p. 58). Trata-se do que analisamos como características do pragmatismo como a negação da história e o reconhecimento da prática e das experiências como o que há de mais importante para uma análise científica. A autora também destaca que “o pensamento analítico-formal fornece, ao mesmo tempo, uma determinada maneira de interpretação e validação da ordem burguesa e um conjunto de procedimentos instrumentais e manipuláveis para atuar sobre ela” (idem, p. 65). A partir da perspectiva de Guerra confirmamos que algumas das questões postas ao Serviço Social requerem que o profissional seja capaz de dar respostas imediatas para resolução de questões que não são possíveis de serem solucionadas na imediaticidade da prática profissional, visto que tratam das expressões da “questão social” como uma manifestação da relação capital/ trabalho, ou seja, tratam da estrutura desigual da sociedade capitalista. Entretanto, essa exigência, conforme também apontado por Netto, requer a manipulação de variáveis e faz com que os assistentes sociais, muitas vezes, sem realizar uma análise crítica, busquem por instrumentos que sejam funcionais a essa lógica e sirvam como suporte ao seu trabalho. Assim, “verifica-se a presença da racionalidade formal-abstrata enquanto uma mediação teórico-cultural e ideopolítica que historicamente vem exercendo influência na profissão” (Guerra, 2005, p. 140). 150 Podemos sinalizar alguns aspectos presentes no pragmatismo clássico no Serviço Social conforme sinalizado por Guerra (2005): Dispostas as bases materiais, parece-nos que a relação teoria/ prática no Serviço Social reflete o seguinte movimento: ao apreender os dados, sobre os quais atua como formas fixas, o profissional tende a identificá-los ao seu conteúdo e a estabelecer entre eles uma relação causal, cuja tendência é a de aceitar os fatores econômicos como determinantes (idem, p. 170). Uma característica marcante do pragmatismo é o antifundacionalismo pragmatista. Ao aceitar os fatores econômicos como determinantes ou ao aceitar a realidade social de forma naturalizada como se não fosse possível intervir de maneira eficiente, o Serviço Social reproduz esse componente pragmático. Ocorre quando o profissional encontra-se na inércia do cotidiano de seu trabalho e quando reproduz jargões como: “não há o que fazer”, “nós não temos como intervir, pois não possuímos recursos para atender a esta demanda”, “isso não é uma demanda nossa, e sim de outra instância”, ou quando o profissional assume cargos de chefia e direção e diz que não exerce a profissão como se um assistente social não tivesse capacidade ou competência de assumir cargos de coordenação e exercer a profissão, entre outros. Assim, o profissional busca intervenções paliativas para que o usuário dos serviços e das políticas sociais não fique sem respostas. A reprodução dessas idéias só reforça uma leitura acrítica e a-histórica da sociedade capitalista e de seus fundamentos. Outro forte componente pragmático, e poderíamos dizer, um dos mais presentes na concepção de profissão dos assistentes sociais é em relação a necessidade do acúmulo de experiência profissional. Uma das idéias mais reproduzidas entre os profissionais é que “se aprende fazendo na prática” e que “na prática a teoria é outra”. Essa característica foi identificada por Vasconcelos (2007) em pesquisa realizada com assistentes sociais na área da saúde. Para superar essa dificuldade a autora identificou que: A realidade é um movimento e não podemos simular as situações, como faz, por exemplo, um químico, um físico. Só existe uma forma de estudar a sociedade, a história, a cultura para negar a sua evidência, a sua aparência: é através do processo intelectual da abstração. O intelectual abstrai o fato e o examina de per si, embora saiba que ele não existe isolado, que não pode ser tomado atomizadamente. É pelo processo intelectual da abstração que é possível captar o movimento de um fenômeno. A partir de um fato investiga-se o processo ou os processos que estão vinculados ao objeto estudado (idem, p. 424). 151 Entretanto, podemos constatar que o assistente social, conforme sinaliza Coelho (2010), identifica o Serviço Social como prática profissional o que gera diversos equívocos na compreensão, na imagem e na apropriação crítica da profissão. Assim, podemos afirmar que o pragmatismo é funcional a essa falta de articulação da relação teoria/ prática e não confere aportes necessários a uma análise crítica da realidade. A relação teoria/ prática também foi abordada por Santos (2006) ao tratar dos dilemas enfrentados pelos assistentes sociais e da dificuldade de apreensão desta relação. A autora sinaliza que o equívoco desta análise acarreta em um questionamento reivindicando instrumentos e técnicas que confiram respostas no processo de intervenção profissional. Em decorrência dessa lacuna, a teoria foi apreendida como algo que transforma a prática de forma imediata, que oferece procedimentos para a intervenção. Já a prática foi concebida como sinônimo de instrumentos e técnicas, associada ao mercado de trabalho. Podemos constatar que o profissional não nega a teoria, mas ele não a reconhece no cotidiano de sua prática profissional, visto que ele não é capaz, nesta esfera, de captar as múltiplas determinações e movimentos que lhes permitam apreender as mediações necessárias para articular e fortalecer a relação teoria/ prática. Nas palavras de Coelho (2010) “a teoria é outra não no sentido de reconhecer que uma outra lógica ou racionalidade esteja presente no espaço sócio-ocupacional, mas porque o conhecimento válido é aquele que advém de sua experiência como sujeito singular que anuncia a verdade de um objeto singular” (idem, p. 27). Santos (2006) destaca que o Serviço Social brasileiro recorreu ao Serviço Social norteamericano para buscar o aporte necessário de métodos e técnicas. Assim, também sinalizamos que nesse processo de aproximação o Serviço Social brasileiro sofreu influências das idéias pragmáticas. Outro aspecto pragmático que se expressa na profissão é o contextualismo, por considerar as características apresentadas em determinado contexto específico sem uma vinculação histórica. Essa consideração reforça a importância da prática e das experiências, pois ao não se realizar uma análise histórica valoriza-se o acúmulo de experiências para compreender os contextos apresentados no cotidiano profissional. Esse aspecto conservador distancia o profissional da 152 elaboração de uma sistematização de sua prática, por ser este um dos momentos no qual é possível pensar em mediações a articulá-la com uma leitura teórico-crítica. Vasconcelos (2007) reforça sua posição ao dizer que “os assistentes sociais, em sua maioria, se não portam condições de articular os dados da realidade a que têm acesso no cotidiano de sua prática, também não os valorizam, o que resulta na sua não sistematização, dificultando ainda mais a projeção, priorização e avaliação de suas ações” (idem, p. 419) (grifos da autora). Essa relação do pragmatismo com o Serviço Social não coloca a profissão a mercê dos interesses conservadores ora elencados. Justamente tal constatação faz com que os assistentes sociais necessitem elaborar respostas qualificadas e críticas para superar esse aspecto conservador de sua prática. Dessa forma, é importante sinalizarmos algumas propostas que possibilitam os assistentes sociais reforçarem a perspectiva crítica e a direção posta pelo Projeto Ético-Político do Serviço Social. Netto (1996) ao tratar das requisições postas ao Serviço Social brasileiro na década de 1990 diz que a profissão conseguiu avançar na formação profissional tornando-se referência para a América-Latina. Por outro lado, uma série de problemas se agutizaram como a questão da legitimidade social da profissão. Há também uma exigência de competências como as direcionadas à pesquisa, à produção de conhecimento e à alternativas de sua instrumentalização com o objetivo de obter um maior conhecimento da realidade social. Para enfrentar tais problemas é necessário pensar na formação profissional visto que o perfil sócio-econômico do alunado tem apontado que os mesmos pertencem a camadas sociais mais subalternas acarretando em um empobrecimento cultural. Mesmo diante desse panorama de enfrentamento de dificuldades, o Serviço Social também conseguiu renovar suas referências teórico-culturais, propiciando um segmento da categoria vinculado à pesquisa e à produção de conhecimento, estimulando uma intelectualidade e uma massa crítica. Entretanto, é esse mesmo segmento que precisa enfrentar as tendências conservadoras postas na atualidade, mais especificamente postas pela pós-modernidade. Assim, Netto (1996) demonstra que: 153 A recusa pós-moderna da metanarrativa, da macroteoria, da categoria da totalidade etc, vem ao encontro do conservadorismo profissional, que privilegia o microssocial, no máximo as “teorias de médio alcance” (...). As implicações, naturalmente, estendem-se ao plano operativo: o privilégio da “mudança cultural”, a centralização nas singularidades, a ênfase nas especificidades, a valorização do trabalho focalizado etc (idem, p. 118). Todo esse panorama apresentado por Netto nos remete as bases conservadoras que influenciaram a profissão e que se expressam de forma reatualizada. Sabemos que, na atualidade, o pragmatismo não está posto em sua totalidade como se manifestou em sua forma clássica, mas se faz presente de outras maneiras como nas influências pós-modernas. Entretanto, este é um debate denso que merece uma leitura cuidadosa. Nosso objetivo foi apresentar o pragmatismo como uma manifestação do conservadorismo exercendo influência no Serviço Social, mas também na vida cotidiana dos homens. Apresentamos um debate inicial que carece de aprofundamento, outrossim destacamos a relevância de conhecermos o pragmatismo pelos poucos estudos, ou nenhum, produzidos pelo Serviço Social. 154 Referências bibliográficas Aron, R. As Etapas do pensamento sociológico, 2ª edição, São Paulo, Editora Martins Fontes: Brasília, UNB, 1997, capítulo de Émile Durkheim (pp. 297 - 373) e de Max Weber, pp. 463 537. Castel, R. 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Livros Grátis ( http://www.livrosgratis.com.br ) Milhares de Livros para Download: Baixar livros de Administração Baixar livros de Agronomia Baixar livros de Arquitetura Baixar livros de Artes Baixar livros de Astronomia Baixar livros de Biologia Geral Baixar livros de Ciência da Computação Baixar livros de Ciência da Informação Baixar livros de Ciência Política Baixar livros de Ciências da Saúde Baixar livros de Comunicação Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE Baixar livros de Defesa civil Baixar livros de Direito Baixar livros de Direitos humanos Baixar livros de Economia Baixar livros de Economia Doméstica Baixar livros de Educação Baixar livros de Educação - Trânsito Baixar livros de Educação Física Baixar livros de Engenharia Aeroespacial Baixar livros de Farmácia Baixar livros de Filosofia Baixar livros de Física Baixar livros de Geociências Baixar livros de Geografia Baixar livros de História Baixar livros de Línguas Baixar livros de Literatura Baixar livros de Literatura de Cordel Baixar livros de Literatura Infantil Baixar livros de Matemática Baixar livros de Medicina Baixar livros de Medicina Veterinária Baixar livros de Meio Ambiente Baixar livros de Meteorologia Baixar Monografias e TCC Baixar livros Multidisciplinar Baixar livros de Música Baixar livros de Psicologia Baixar livros de Química Baixar livros de Saúde Coletiva Baixar livros de Serviço Social Baixar livros de Sociologia Baixar livros de Teologia Baixar livros de Trabalho Baixar livros de Turismo