UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Escola de Serviço Social
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
Camila Silva Brandão
PRAGMATISMO E SERVIÇO SOCIAL: elementos
para a crítica ao conservadorismo
RIO DE JANEIRO
Outubro de 2010
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CAMILA SILVA BRANDÃO
PRAGMATISMO E SERVIÇO SOCIAL: elementos para a
crítica ao conservadorismo
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Serviço Social.
Orientadora: Profª Drª Yolanda Guerra
Rio de Janeiro
Outubro de 2010
Camila Silva Brandão
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PRAGMATISMO E SERVIÇO SOCIAL: elementos para a crítica ao
conservadorismo
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de
Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Serviço Social.
Dissertação aprovada em ____ de _____________ de _______.
Banca examinadora:
______________________________
Profª Drª Yolanda Guerra (Orientadora/ Presidente da banca – ESS/UFRJ)
_____________________________
Profª Drª Cláudia Mônica dos Santos (FSS/UFJF)
______________________________
Profª Drª Fátima Grave (ESS/UFRJ)
4
À minha mãe, Carmen, pelo apoio
incondicional.
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AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Yolanda Guerra, pelos diálogos que travamos, por tornar o
processo de elaboração da minha dissertação mais instigante e desafiador e por
estimular a minha constante busca pelo processo de conhecimento.
À minha família, pela compreensão e apoio. Em especial em memória de meu pai,
por todo o investimento em meus estudos, por ter me incentivado a “ir mais longe”.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, pelo
incentivo através da bolsa de mestrado possibilitando minha dedicação exclusiva
aos estudos.
Aos professores, que sempre nos instigam em nossas buscas teóricas.
Aos meus amigos, sempre disponíveis e solícitos a dividir e compartilhar bons
momentos; em especial a Nadjara Luana por termos caminhado juntas desde o
processo de seleção do mestrado, pelas nossas conversas e debates; a Camila
Ottoni, a quem sempre dividi minhas inquietações, pelo companheirismo e
amizade; a Hudna, sempre presente e amiga, uma pessoa que admiro pela sua luta e
dedicação; a Carolina e ao Caio, sem palavras para descrever o apoio de sempre.
A todos que estiveram, de certa forma, presentes desde o início dessa jornada.
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Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
(Fragmento do poema
“Operário em Construção”
1956 - Vinícius de Moraes)
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Resumo
A dissertação, que ora apresentamos, tem como centro de seu debate a análise do pragmatismo
norte-americano e sua relação com o Serviço Social brasileiro partindo de uma crítica da
sociedade capitalista. Buscamos questionar a cultura dos resultados imediatos, da negação das
teorias, da “relatividade da verdade”, da busca por uma prática vantajosa e utilitária. Nossa
hipótese é a de que o conservadorismo pragmático possui elementos de caracterização que se
atualizam no Serviço Social brasileiro. A profissão apresenta características do pragmatismo que
incidem de forma incisiva configurando uma determinada forma de ser. Nosso objetivo é analisar
o conservadorismo pragmático e suas refrações no Serviço Social apresentando seus traços
conservadores e sua expressão como um modo de ser e de pensar da cultura norte-americana.
Destacamos que nossa preocupação surge da necessidade de entendermos as questões postas ao
Serviço Social na contemporaneidade.
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Abstract
The thesis that we are presenting have the center of his debate the analysis of northamerican pragmatism and its relationship with the brazilian Social Work based on a critique of
capitalist society. We seek to challenge the culture of instant results from the denial of theories of
"relativity of truth," the search for an advantageous and useful. Our hypothesis is that
conservatism has a pragmatic characterization elements which update in brazilian Social Work.
The profession has features of pragmatism that focus starkly configuring a particular way of
being. Our goal is to analyze the pragmatic conservatism and its refractions in Social Work
conservatives showing their traits and their expression as a way of being and thinking of northamerican culture. We stress that our concern stems from the need to understand issues pertaining
to social service in contemporary.
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SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................................................... 10
1 – As bases do pensamento conservador: elementos para uma compreensão crítica do
conservadorismo no Serviço Social ........................................................................................... 19
1.1.Crítica ao conservadorismo: a contribuição de György Lukács ............................................. 20
1.2. O debate da “questão social”: bases para a compreensão da relação do conservadorismo no
Serviço Social ............................................................................................................................... 40
1.3. A sociologia em xeque: expressão do conservadorismo ....................................................... 56
2 – O debate do conservadorismo no Serviço Social ............................................................... 69
2.1. A tensa relação do Serviço Social como reformismo conservador ....................................... 70
2.2. O debate do sincretismo: elementos para análise do conservadorismo no Serviço Social .... 75
2.3. O conservadorismo romântico como uma das expressões da ideologia dominante .............. 83
2.4. O debate das duas teses: da compreensão conservadora a compreensão crítica do Serviço
Social ............................................................................................................................................ 96
3 – A racionalidade conservadora de origem pragmática: aspectos e características para o
debate crítico .............................................................................................................................102
3.1. A leitura de Pogrenbinschi sobre o pragmatismo clássico .................................................. 116
3.2. A experiência como conhecimento: a crítica do pragmatismo ao racionalismo e ao
materialismo ............................................................................................................................... 137
Considerações finais ................................................................................................................. 148
Referências ................................................................................................................................ 154
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INTRODUÇÃO
O debate do conservadorismo no Serviço Social foi objeto de diversas análises ao longo
da produção bibliográfica da área. Podemos considerar que a preocupação em compreender a
relação da profissão com o conservadorismo tornou-se mais latente no período do movimento de
reconceituação. Este marco foi importante, pois possibilitou o questionamento das bases
tradicionais nas quais o Serviço Social esteve ancorado e permitiu um amadurecimento
intelectual de um segmento significativo dos assistentes sociais.
No Brasil, a conjuntura dos anos 60 e 70 do século passado apontou para avanços dos
movimentos questionadores da ordem social capitalista (reprimidos no período da ditadura
militar). Nesse momento, houve um ambiente propício para o desenvolvimento das lutas sociais.
Por outro lado, ocorreram perseguições e coerções àqueles que questionavam a tomada do poder
pelos militares. Segmentos do Serviço Social se atentaram ao movimento da época e participaram
ativamente tanto da militância política contra a ordem social estabelecida quanto voltaram-se
para reavaliar os laços conservadores presentes na profissão.
A preocupação dessa dissertação não consiste apenas em compreender essa base
conservadora, mas sim em sinalizar elementos que nos permitam entender como o
conservadorismo se reatualiza e de que forma se expressa no Serviço Social. A análise que
pretendemos traçar busca contribuir para problematizar o Serviço Social frente ao avanço de
tendências conservadoras na atualidade. Nosso questionamento parte da inquietação de apontar
como o Projeto Ético-Político do Serviço Social se estrutura na contracorrente das tendências
capitalistas ou como o Projeto Ético-Político do Serviço Social se coloca como uma forma de
resistência às tendências conservadoras da ordem social burguesa.
É consenso que a profissão deu um salto de qualidade após a década de 1980, o que
representou um avanço em sua produção teórico-bibliográfica, em sua perspectiva ético-política e
no nível de organização da categoria frente à análise da realidade, o que poucas profissões
11
conseguiram, efetivamente, realizar. Por outro lado, o Brasil é um país que recebe facilmente a
cultura imperialista, com poucos questionamentos e críticas; seja pela sua histórica ausência de
movimentos questionadores e revolucionários, seja pela sua capacidade econômica de ser
explorado pelas ditas “grandes potências” mundiais. Nesse sentido, o modo de ser e de pensar
norte-americano possui certa influência nas esferas da vida social, cultural e cotidiana dos
brasileiros. Por ser uma profissão inserida nesta realidade, o Serviço Social brasileiro recebe os
influxos desta conjuntura.
Dessa forma, o centro do nosso debate consiste em abordar o pragmatismo (como uma
das influências norte-americana) e sua relação com o Serviço Social brasileiro. Trata-se de
questionar a cultura dos resultados imediatos, da negação das teorias, da “relatividade da
verdade”, da busca por uma prática vantajosa e utilitária; de criticar as características do
pragmatismo.
Partimos da hipótese de que o conservadorismo pragmático possui elementos de
caracterização que se atualizam no Serviço Social a partir da influência da cultura norteamericana. A profissão apresenta características do pragmatismo que incidem de forma incisiva
na profissão configurando uma determinada forma de ser como a busca desenfreada por
resultados e intervenções imediatas.
Mesmo apresentando estes traços conservadores o Serviço Social se coloca como uma
profissão vinculada a um projeto de orientação progressista. Essa contraditoriedade é uma
característica própria da profissão que surge como uma demanda do capital e do trabalho. Assim,
o Serviço Social brasileiro expressa diversas contradições, sendo esta também uma característica
própria de sua constituição.
As atuais expressões do pragmatismo também apresentam aspectos diferentes daqueles
manifestados originalmente na Escola de Chicago. Essa nova configuração está muito atrelada às
requisições do período da financeirização do capital que precisa se valorizar a todo custo. Todos
os aspectos que contribuam para o crescimento do capital fictício são considerados como úteis.
Essas novas expressões do pragmatismo se distinguem em certa medida das concepções
elaboradas por James, Pierce e Dewey; três dos principais precursores do pragmatismo.
12
Compete destacar que não iremos abordar as várias tendências do pragmatismo, e, sim,
nos deteremos no chamado “pragmatismo clássico”, ou seja, o originado na Escola de Chicago
por James, Pierce e Dewey. Optamos pelo entendimento de sua forma original, pois sabemos que
há uma lacuna no Serviço Social quanto ao estudo do pragmatismo e resgatar sua origem e sua
fundamentação nos parece de suma importância.
O nosso objetivo é analisar o conservadorismo pragmático e suas refrações no Serviço
Social apresentando seus traços conservadores e sua expressão como um modo de ser e pensar da
cultura norte-americana. Partimos de uma crítica da sociedade em que vivemos, ou seja, através
da leitura crítica do modo de produção capitalista. Este modo de produção, que atingiu uma
globalidade mundial, propõe um modo de ser que está presente em nossa vida social e cotidiana.
Para compreender a realidade da sociedade capitalista e as bases que geraram as
condições para a propagação do pragmatismo nos reportamos, nesse momento, a Ianni (1988),
pois ele mostra que as análises de Marx apresentam a preocupação de discorrer sobre a
historicidade por meio da análise do capitalismo. Através de uma apropriação das relações, dos
processos e das estruturas sociais é possível compreender a forma de organização capitalista e seu
modo de ser. Segundo Ianni, Marx apontou as tendências do modo de produção capitalista
através da perspectiva dialética que consiste em captar “a articulação presente-passado-presente
de uma forma singular” (Ianni, 1988, p. 33).
Isso significa que Marx parte do presente em suas analises com vistas a uma práxis
transformadora para o futuro. A história é compreendida a partir do presente, dos problemas e
questões pensadas no presente. Porém, para entender o presente é necessário conhecer o
movimento histórico nos reportando ao passado. A pesquisa do passado permite o estudo de
estruturas e categorias que são essenciais para conhecer a organização do presente. Por isso, a
relação ocorre de forma a articular presente-passado-presente com vistas a um futuro
transformador.
Para Marx a história é dada a partir do presente, pela análise dialética do presente. O
presente do capitalismo ‘repõe’ toda a sua história, na medida em que todo o passado
indispensável ao entendimento do presente ‘resurge’ no interior das relações presentes.
Toda a história do capitalismo parece surgir no curso da análise da mercadoria. Muitas
vezes, temos a impressão de que toda a obra de Marx é o produto de uma ampla,
sistemática, demorada e obstinada reflexão sobre o presente. O presente põe e repõe
13
relações, processos e estruturas que exigem a pesquisa do passado (Ianni, 1988, p. 36).
As bases de fundamentação e de sustentação do capitalismo estão manifestadas no
presente. Ao nos remetermos ao passado é possível desvelar suas origens com mais propriedade
para avançarmos na possibilidade de ruptura futura. A história do capitalismo é reposta no
presente porque sua estrutura está baseada em uma forma de organização específica do modo de
produção capitalista com uma ideologia dominante que se recria e se reinventa em suas crises,
mas que mantém seu cerne estrutural.
Ianni (1988, p. 37) diz que “o passado que operou na produção do presente aparece na
pesquisa do presente e exige a sua pesquisa”. Ao pesquisarmos o presente necessitamos nos
reportar ao passado para compreender sua estrutura e fundamentos. As questões e problemáticas
aparecem no presente e demandam uma resposta; mas essa resposta não é dada por si só nem é
desvelada em sua aparência. É quando surge a necessidade de se estudar o passado a partir das
articulações e mediações necessárias que ele estabelece com o presente para atingirmos sua
essência. Reportamo-nos ao passado para buscar respostas a problemas ou questões expressas na
esfera da vida cotidiana, nas esferas da vida social, da política e da vida econômica.
Conforme Ianni (1988) aponta, nos interessa tratar da historicidade do modo de produção
capitalista. O autor diz que a análise dialética apresenta a historicidade a partir dos antagonismos
produzidos pelas forças produtivas e pelas relações de produção e possuem relação com as
contradições do modo de produção capitalista. As relações sociais são uma expressões
antagônicas do desenvolvimento capitalista porque elas não se dão de formas iguais entre os
sujeitos sociais, já que estes ocupam lugar na sociedade de acordo com a classe social na qual
estão inseridos.
Ianni (1988, p. 34) diz que “o segredo da historicidade do capitalismo está no divórcio
entre a produção e a apropriação do valor”. Isso acontece porque o próprio trabalhador que
produz o valor é totalmente alienado do produto de seu trabalho. É ele quem gera a riqueza social
no modo de produção capitalista através da apropriação da mais-valia1, mas ele não tem
1
Para uma análise detalhada sobre a mais-valia ver as terceira, quarta e quinta partes do livro “O Capital” in: Marx,
Karl. O capital: crítica da economia política. 12ª edição. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988. Em poucas
14
consciência desse processo. A maior parte dos capitalistas percebe a mais-valia como se ela fosse
lucro obtido. O trabalhador passa a ser reconhecido pelo seu valor de troca, pois vende sua força
de trabalho em troca de um salário. Assim como ocorre com as mercadorias, a força de trabalho é
comprada pelo seu valor de uso. O primeiro momento do antagonismo é a alienação do
trabalhador em relação à mercadoria. O segundo momento consiste na forma de compreensão da
mais-valia. Para o capitalista ela aparece como lucro e para o operário ela aparece como trabalho
não pago.
Segundo Ianni (1988, p. 35) diz que “essa relação do capitalista com o produto do
trabalho operário o leva a tomar o tempo como uma entidade conjuntural, que permeia apenas as
relações presentes para aperfeiçoá-las”. Para o capitalismo, o importante é o presente, são os
resultados imediatos, as respostas emergenciais para que seja possível acrescentar mais valor ao
capital inicialmente investido. A busca é por uma produção mais vantajosa para a ampliação de
seu capital inicial. Essa forma de pensar irá se refletir em um modo de ser da sociedade
capitalista que faz com que os indivíduos sociais pensem apenas no presente. Esse modo de
pensar estará intimamente relacionado ao pragmatismo, por isso podemos tratar o pragmatismo
como uma ideologia, já que ele surge atrelado a um propósito: manter a lógica capitalista,
especialmente na sociedade norte-americana.
Ianni (1988) aponta como possibilidades de ruptura o momento em que a classe operária
percebe as contradições e antagonismos de suas relações com o modo de produção capitalista.
Nesse instante, a classe operária projeta sua prática política com o fim de mudar a estrutura
social, ou seja, ela projeta uma sociedade sobre novas bases e fundamentos. É quando o operário
busca entender a historicidade do capitalismo, sem se limitar a compreensão das aparências de
suas relações. Esse processo ocorre quando a classe trabalhadora adquire consciência de classe
linhas destacamos a seguinte passagem: “na produção de mercadorias, nosso capitalista não é movido por puro amor
aos valores-de-uso. Produz valores-de-uso apenas por serem e enquanto forem substrato material, detentores de
valor-de-troca. Tem dois objetivos. Primeiro, quer produzir um valor-de-uso que tenha um valor-de-troca, um artigo
destinado a venda, uma mercadoria. E segundo, quer produzir uma mercadoria de valor mais elevado que o valor
conjunto das mercadorias necessárias para produzí-la, isto é, a soma dos valores dos meios de produção e força de
trabalho, pelos quais antecipou seu bom dinheiro no mercado” (Marx, 1988, p.210); e “o processo de produzir valor
simplesmente dura até o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um
equivalente. Ultrapassando esse ponto, o processo de produzir valor torna-se processo de produzir mais valia (valor
excedente)” (idem, p.220).
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para si, através de um movimento reflexivo e crítico. Este autor diz que:
A história não é nem unilinear nem evolutiva; e muito menos cronológica.
Fundamentalmente, a historicidade do capitalismo é dada pelo caráter essencialmente
antagônico das suas categorias. Por isso é que há ocasiões em que a história parece
precipitar-se, num ritmo que sobrepassa o andamento cronológico e em direções
radicalmente novas. Ocorre que, de fato, ela se acelera, conforme se agudizam e
explicitam as contradições de classes. Reciprocamente, há ocasiões em que a história
parece adquirir outro andamento, mais lento. Isto também está relacionado ao caráter, à
expansão e à profundidade das contradições de classe (idem, p.38) (grifo nosso).
Ianni (1988, p. 39), na direção de Marx, trata ainda da existência e da consciência. Diz
que “a consciência social, ao mesmo tempo, exprime e constitui as relações sociais”. O lugar
social ocupado e o posicionamento de classe social permitem a manifestação da consciência
social. Para o autor a forma como os homens pensam em relação aos outros e em relação a si
mesmos define a existência de uma autoconsciência. A compreensão da existência de cada classe
social no capitalismo depende da forma como elas se compreendem e como elas percebem uma a
outra.
Não se completa a compreensão da existência do operário e do capitalista a não ser
quando a análise passa pela forma pela qual um e outro se compreendem a si próprios e
reciprocamente. Para reconhecer-se como operário, é indispensável que o operário
reconheça o capitalista como tal; e vice-versa. Esse reconhecimento é, ao mesmo tempo,
uma condição fundamental da existência e negação recíprocas (Ianni, 1988, p.39).
A classe operária só existe em relação à classe burguesa e vice-versa. Para se reconhecer
como classe é necessário reconhecer a existência da outra classe social e a forma como ela se
estrutura. É importante que a análise dialética apreenda as condições de existência social e as
formas de consciência. Com base nisso a existência e a consciência possuem uma relação
intrínseca, pois as condições de existência determinam o nível de consciência, não de maneira
direta e imediata, mas por meio de mediações.
A sociedade é compreendida a partir de suas relações sociais, políticas, econômicas, de
produção, mas também, como destaca Ianni (1988) a realidade possibilita a determinação da
consciência. Isso pode ocorrer devido às condições materiais, sociais, políticas e individuais dos
sujeitos históricos. Por isso, o autor trata da relação das ciências com a consciência. As formas de
consciência constituem-se a partir do lugar ocupado pelos sujeitos nas relações nas quais estão
inseridos. “A finalidade precípua das idéias, conceitos, doutrinas ou teorias é exprimir e constituir
16
as relações sociais” (idem, p. 41).
Ianni (1988) também destaca a importância de distinguir a concepção de essência da
concepção de aparência. Muitas vezes as coisas aparentam ser algo diferente ou superficial de sua
essência. Por isso, é importante uma análise dialética já que no cotidiano as coisas não aparecem
transparentes, mas são escamoteadas. E por termos essa visão aparente das coisas, por estarmos
imbuídos da ideologia capitalista, prevalece a perspectiva burguesa da compreensão das relações
estabelecidas socialmente. “Na consciência burguesa, a maior parte dos problemas tende a ser
equacionada a partir do princípio da mercantilização geral das relações, pessoas e coisas” (idem,
p. 42) (grifo nosso).
Essa forma de consciência ocorre porque as mercadorias expressam o produto do trabalho
do operário e a fonte de riqueza do capitalista. Há uma impressão aparente de que a mercadoria
final é a principal parte do processo de produção, pois ela será vendida no mercado por troca de
um valor monetário. Importante destacar que para o modo de produção capitalista a mercadoria
aparece como o principal resultado de todo seu processo. Nesse sentido, o que pesa no resultado
final é a utilidade das mercadorias, seu valor de uso e sua funcionalidade imediata. Assim, a
tendência é transformar tudo que gira em torno da produção capitalista em mercadoria, inclusive
as relações sociais.
Essa leitura de Ianni nos permite afirmar que o debate que travaremos perpassa por uma
compreensão da estrutura do modo de produção capitalista e de seus processos constitutivos. Não
é possível compreendermos o Serviço Social de forma isolada de toda essa dinâmica e, por isso,
apresentamos essa dissertação de forma a articular a análise da estrutura social do capitalismo,
passando pelo Serviço Social, até chegarmos ao debate do pragmatismo.
Também é necessário destacarmos que mesmo nos reportando ao surgimento do
pragmatismo e sua forma clássica, nossa preocupação parte da necessidade de entendermos as
questões postas ao Serviço Social na contemporaneidade, especialmente ao que diz respeito às
influências conservadoras como a pós-modernidade. A partir da análise da leitura de Ianni
reconhecemos a relevância de buscarmos no passado os fundamentos do conservadorismo para
entender essa relação presente na profissão, assim como para propor possibilidades de
17
intervenção.
Cabe destacar, que minha aproximação com o tema do pragmatismo não provém de
inquietações recentes, ela se manifesta desde o período da graduação, especialmente com minha
inserção na iniciação científica através do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre os Fundamentos
do Serviço Social na Contemporaneidade – NEFSSC – que estimulou minha capacidade crítica e
questionadora e foi o grande impulso para aprofundar meus estudos e culminou na elaboração do
estudo sobre a modernidade e a pós-modernidade para o meu trabalho de conclusão de curso na
graduação e, principalmente, no desejo de aprofundar meus estudos na pós-graduação.
Dessa forma, no primeiro capítulo intitulado “As bases do pensamento conservador:
elementos para uma compreensão crítica do conservadorismo no Serviço Social” temos como
objetivo abordar uma leitura crítica da sociedade capitalista questionando seus elementos
conservadores e sua base de sustentação. Traremos para o debate a análise de György Lukács
sobre a crítica ao conservadorismo na sociedade capitalista, sobre seu modo de pensar, sobre a
ideologia dominante. A partir da leitura que o autor realiza da obra de Marx podemos destacar o
surgimento de algumas manifestações e propostas de aplicação de conhecimento como funcionais
à ideologia que sustenta as bases do capitalismo. Por fim, versaremos sobre o surgimento da
sociologia como uma expressão dessa forma de pensar que produz e reproduz a lógica da
estrutura da sociedade burguesa. Apontaremos algumas questões abordadas por Gouldner quanto
a sociologia acadêmica e a cultura norte-americana. Sua análise nos fornece aportes para
atrelarmos o surgimento da sociologia ao aparecimento do pragmatismo, ao considerarmos como
expressões de um mesmo contexto societário, ou seja, ambos defendem interesses que permitem
justificar as bases de sustentação do modo de produção capitalista. Por fim nesse capítulo, nos
reportamos ao debate da “questão social” e sua relação com o surgimento da profissão.
Consideramos a “questão social” como uma expressão das consequências oriundas da relação
capital/ trabalho no modo de produção capitalista. Por ser um debate relevante a compreensão do
significado da profissão e de sua relação com o conservadorismo, abordamos diversos autores
que tratam da “questão social” e as diversas perspectivas do debate.
No segundo capítulo apresentaremos “O debate do conservadorismo no Serviço Social”.
18
Apresentaremos as bases da relação da profissão com o pensamento conservador. Trataremos das
contribuições dos autores que partem do estudo do Serviço Social através de uma leitura crítica
da sociedade capitalista analisando as tensões pelas quais a profissão passou e passa em sua
relação com o pensamento conservador e a apropriação da perspectiva marxista. De tal modo, nos
baseamos nas leituras de Iammamoto sobre o reformismo conservador, de Netto sobre o
sincretismo, de Machado sobre o conservadorismo romântico e de Montaño sobre o debate das
duas teses no Serviço Social. Consideramos importante dizer que há outros autores que tratam do
conservadorismo na profissão, assim sinalizamos uma síntese do debate apresentado
considerando os elementos que nos permitem pensar a relação do Serviço Social com o
pragmatismo.
No terceiro capítulo abordaremos “A racionalidade conservadora de origem pragmática:
aspectos e características para o debate crítico”. Realizamos uma aproximação à discussão do
pragmatismo a partir da leitura de Pogrenbinschi. Consideramos que há uma lacuna no Serviço
Social quanto aos estudos relacionados ao pragmatismo, assim nossa proposta foi realizar um
panorama geral do debate, das características e da origem do pragmatismo. Neste capítulo
esperamos oferecer um aporte inicial para a crítica ao conservadorismo pragmatista,
especialmente no trato da relação dessa expressão ideológica no Serviço Social.
Diante da estrutura apresentada não pretendemos levantar conclusões sobre o debate que
apresentamos e sim algumas considerações observadas ao longo das leituras que realizamos, pois,
sabemos que iremos destacar notas preliminares acerca de um assunto tão denso que requer uma
leitura de um aporte teórico crítico capaz de permitir uma apreensão do significado do
pragmatismo na sociedade capitalista. Ainda que nos pareça distante, o pragmatismo se expressa
com uma intensidade cada vez maior quando se exige a busca por resultados imediatos, a
exigência desenfreada da prática pela prática, a necessidade de se buscar uma utilidade teórica, a
relatividade da verdade, a negação práxis. Se o debate que apresentamos instigar a busca por um
aprofundamento deste estudo consideraremos que nossa proposta tenha atingido seu objetivo.
19
1 - As bases do pensamento conservador: elementos para uma interpretação crítica
do conservadorismo no Serviço Social
Este capítulo visa apresentar algumas analises tanto de autores que possuem como
preocupação estudar o Serviço Social, como de importantes pensadores da área da filosofia e das
ciências humanas e sociais. A leitura que iremos fazer desses autores não esgota o debate do
conservadorismo, mas permite apresentar um subsídio para a compreensão de seu significado.
Iniciaremos tratando do pensamento de György Lukács analisando a estrutura da
sociedade capitalista e seus elementos conservadores. Nossa preocupação é pontuar a análise
crítica de Lukács, como ele percebe a cultura norte-americana através de seu modo de ser e de
pensar colocando os Estados-Unidos como centro da potência mundial hegemônica no
capitalismo. Através de suas elaborações poderemos sinalizar os traços de imediaticidade, de
individualização, a busca pelo conhecimento utilitário no qual o modo de produção capitalista se
baseia e que se caracterizam como aspectos do pragmatismo.
Por fim, abordaremos a consolidação da sociologia acadêmica como uma expressão da
necessidade do pensamento capitalista produzir conhecimento que seja funcional a sua estrutura
para reprodução de sua ordem social. É da base da constituição da sociologia acadêmica que
emanará as possibilidades de determinadas formas de pensar contribuindo para a configuração da
lógica capitalista, como é o caso do pragmatismo. Dessa forma, apresentaremos o pensamento de
Gouldner para analisarmos a sociologia acadêmica e sua relação com nosso objeto de estudo.
Ainda que saibamos das críticas feitas e da pouca proximidade que Gouldner possui com o
marxismo, não desmerecemos sua análise visto que ela apresenta uma importante apreensão da
constituição da forma de ser e de pensar da sociedade norte-americana.
A partir destas considerações resgataremos o debate sobre a “questão social” destacando a
perspectiva crítica e a perspectiva conservadora. Iremos apresentar o debate a partir de diversos
autores, principalmente no Serviço Social. Dessa forma poderemos expor a crítica do surgimento
20
da profissão e entender a relação do conservadorismo no/ do Serviço Social.
1.1. Crítica ao conservadorismo: a contribuição de György Lukács
Lukács, baseado em uma apreensão da teoria marxiana, realizou a crítica a sociedade
capitalista e a seus traços conservadores. O autor nos possibilita uma leitura densa e crítica, pois
tem como fonte teórica a ontologia do ser social de Marx. Para ele, todo intelectual que busque
uma análise, de forma séria e crítica, da realidade na qual vive, deve se apropriar de um
referencial teórico metodológico marxiano. Essa apreensão parte da preocupação com “sua
própria concepção de mundo e do desenvolvimento social, particularmente a situação atual, a sua
inserção nela e seu posicionamento frente a ela” (Lukács, 2008, p. 36). Lukács parte da análise de
Marx, pois ele elaborou uma teoria da mais-valia, uma concepção de história como a história da
luta de classes, além de demonstrar a existência da sociedade dividida em classes sociais
antagônicas, de interesses divergentes. Ou seja, Marx apresentou uma teoria a partir de uma
perspectiva dialética baseada numa noção de totalidade e de práxis. Ele realizou uma análise dos
problemas do presente, mas sempre resgatando o passado histórico com o objetivo de atingir um
futuro transformador, que superasse a sociedade capitalista.
A partir desta análise, Lukács (2008) demonstrou a real articulação entre teoria/ prática e a
existência de uma práxis revolucionária. A intensidade de seu compromisso e da apropriação da
obra de Marx lhe permitiram entender que a realidade é sempre mais complexa e dinâmica do
que a capacidade do homem de apreendê-la. Sua apropriação de Marx possibilitou uma análise
consistente ao atingir a compreensão de que a teoria revolucionária torna-se vazia sem uma
prática que a acompanhe e esta articulação só torna-se possível através da práxis. Esse
entendimento parte da contribuição de Marx que se propôs a realizar a crítica da sociedade
capitalista e a busca do pleno desenvolvimento do homem. Sua análise é rica em detalhes da
história, da apreensão das contradições capitalistas, das lutas de classes, do trabalho como
21
expressão do livre desenvolvimento do homem e como direção de sua existência - mas que
apresenta formas degradantes e alienantes no capitalismo. A transformação desta realidade só é
possível através de uma apropriação crítica dialética e uma perspectiva de totalidade, mas não
apenas, é necessário transformar essa realidade através da ação dos homens.
O materialismo dialético, a doutrina de Marx, deve ser conquistado, assimilado, dia a
dia, hora a hora, partindo-se da práxis. Por outro lado, a doutrina de Marx, na sua
inatacável unidade e totalidade, constitui o instrumento para a intervenção prática, para o
domínio dos fenômenos e de suas leis. Se separarmos desta totalidade um só elemento
constitutivo (ou, simplesmente, se o descurarmos), novamente teremos rigidez e
unilateralidade. Se não apreendermos, nesta totalidade, a relação entre seus momentos,
perderemos o chão da dialética materialista (Lukács, 2008, p. 41).
Lukács também chamou a atenção para o fato de que as ciências naturais tiveram amplo
espaço favoráveis a seu desenvolvimento, mesmo apresentando conflitos e crises, mas seu
progresso era uma questão tão importante para o desenvolvimento capitalista que ela foi
amplamente incentivada e estimulada. Por outro lado, no campo das ciências sociais, a política e
a filosofia tiveram dificuldades de expandir-se. Isso ocorreu, e de certa forma ainda ocorre,
porque para o capitalismo é importante o desenvolvimento das forças produtivas, e para tanto,
são necessários estudos nas áreas da física, matemática, química, enfim, na área das ciências
naturais. Quanto aos estudos desenvolvidos sobre as relações humanas, o incentivo capitalista
ocorre apenas quando há interesse em desvendar os processos de exploração do capitalismo com
o objetivo de aprimorar as formas de dominação e alienação. O investimento de pesquisas na área
das ciências humanas não ocorre no sentido de desvendar as bases do sistema capitalista.
Interessa apenas o investimento que permita manipular e incentivar o homem ao consumo
criando constantes e novas necessidades. Para o capitalismo não interessam estudos sobre as
relações humanas no sentido de tornar o homem emancipado e independente, e nem interessa as
pesquisas que possuem objetivo de desvelar os processos de exploração.
Nesse sentido, o capitalismo se desenvolve a partir de suas próprias leis2. Estas se
2
Lukcás (2008, p. 62) acrescenta que “Marx formulou tais leis mais corretamente que os teóricos da sociedade
burguesa”, ou seja, ele as compreendeu em sua essência e totalidade a partir da perspectiva da qual defendiam: a
classe burguesa. E mais, “a lei jamais opera diretamente, sem a superação de contradições dialéticas, e até pode
ocorrer que, em certos casos, não atue em sua direção fundamental, mas, de fato, seja temporariamente travada por
condições desfavoráveis” (Lukács, 2008, p. 56).
22
desenvolvem de acordo com os interesses da sociedade em questão postos pela classe dominante.
Basta ressaltar que para o capitalismo é importante seu desenvolvimento a partir de suas próprias
leis, mas ele necessita da ideologia para obter aceitação na sociedade.
Na fenomenalidade da apreensão da lógica capitalista, o mercado aparece como um
“modelo universal de toda práxis humana” (Lukács, 2008, p. 101). A mercadoria aparece de
forma fetichizada e cria novas necessidades de consumo para que novos produtos possam ser
produzidos e vendidos no mercado capitalista. As propagandas comerciais parecem apresentar
produtos inovadores e de utilidade necessária. Rapidamente um produto entra em circulação e
passa a ser um falso artigo de necessidade para a vida humana. Esse comportamento consumista e
utilitarista, de compra de produtos a partir de sua utilidade para a vida cotidiana, passa a ser
cobrado também na vida pública e nas relações sociais. Todo conhecimento produzido no sentido
de fortalecer essa lógica será útil para fomentar o domínio capitalista sobre as esferas da vida
humana.
Com efeito, as relações sociais do capitalismo manipulado, a busca de prestígio através
do consumo que ele necessariamente estimula, tornam esta relação [do homem com a
mercadoria] extremamente problemática até mesmo para o mercado. A manipulação
sutil consiste precisamente em sugerir aos compradores a aquisição de uma determinada
mercadoria de tal modo que cada um deles imagine que a posse de tal mercadoria é o
resultado de uma decisão livre, ou melhor, a expressão da própria personalidade
(Lukács, 2008, p. 101).
Ao destacar a relação teoria/ prática, diz que no plano do cotidiano há uma tendência a
“relacionar imediatamente os fundamentos da teoria com os problemas do dia-a-dia” (Lukács,
2008, p. 58). Essa relação imediata é própria das exigências da cotidianidade que não requer a
realização de mediações ou de críticas, que permitam buscar a essência e o fundamento das
coisas.
Quanto a ideologia e a necessidade de uma relação com o compromisso prático, Lukács
destaca, que existe uma ideologia com fim de manter os interesses da classe dominante, mas
também se expressa como fruto de conflitos.
É preciso entender ideologia em seu exato sentido marxista. No prefácio à Contribuição
à crítica da economia política, as formas ideológicas são definidas como o meio social
que permite ‘aos homens conceber este conflito [no nível da economia] e levá-lo até o
fim’. Nesta definição, chama atenção a duplicidade de sua dialética interna. Por um lado,
os conflitos a resolver se formam em função da lei necessária objetiva que faz surgir
23
contradições entre forças produtivas e relações de produção; por outro, e ao mesmo
tempo, toda ideologia é um conjunto de meios através dos quais os homens tornam-se
capazes de tomar consciência de tais conflitos e de enfrentá-los na prática (Lukács,
2008, p. 142).
O autor prossegue dizendo que o desenvolvimento das forças produtivas também acarreta
em implicações aos conflitos ideológicos. Ele demonstra que o processo de constituição e
expansão do capitalismo aparece como um processo de democratização constituído de
determinada ideologia. Ao mencionar Marx, Lukács demonstra que a ideologia é uma forma de
travar a luta no interior dos conflitos que se manifestam na esfera econômica e social. Como a
sociedade de classes produz conflitos ela apresenta uma contínua batalha ideológica.
Na leitura de Lukács (2008) Marx considera que quando uma ideologia desaparece
significa que ocorre um processo socialmente determinado que apresenta uma movimentação de
acordo com a função do desenvolvimento social. Ou seja, uma ideologia pode ser superada
através de um processo social e histórico e não desaparece abruptamente. Assim, na sociedade
capitalista a ideologia dominante tem relação com uma determinada forma de ser de acordo com
interesses de uma classe específica.
A ideologia deve sempre ter um fundamento material, o que naturalmente não anula sua
ação prática como potência social, mas, ao contrário, reforça-a extensiva e
intensivamente, emprestando-lhe uma base real no interior do concreto serprecisamente-assim (Lukács, 2008, p 182).
Em suas análises, Lukács destaca que após a ascensão da burguesia ao poder não tardou
para que ela se mostrasse como uma classe que apresenta um projeto societário voltado para si
mesma. O autor destaca um pensador burguês que considera relevante para apresentar a crise da
filosofia burguesa. Segundo Lukács (2008, p. 72) Sartre afirmou que “toda a ciência burguesa se
encontra em crise, que a filosofia burguesa não está em condições de criar novos conceitos nem
de promover de modo exitoso o progresso científico”. Lukács acrescenta que mesmo sendo um
pensador burguês, Sartre afirma que a única concepção de mundo capaz de desenvolver uma ação
com resultados mais profundos seria o marxismo, mas que este não o fez, pois, segundo sua
crítica, o marxismo não foi capaz de produzir nenhum trabalho cientifico de fôlego para atender a
tais expectativas.
24
Depois da guerra, a ideologia burguesa não mais foi capaz de dar vida a uma concepção
de mundo de tal magnitude. O fato de ser precisamente Sartre a proclamar a crise da
filosofia burguesa, de ser precisamente ele a indicar no marxismo o caminho de
resolução desta crise, tem um enorme significado, de ressonância internacional 3
(Lukács, 2008, p. 73).
Lukács tenta demonstrar como o pensamento burguês entrou em crise e apresentou-se de
forma decadente. Aquela classe social, que buscou superar o feudalismo em prol da liberdade, da
razão e da justiça humana em busca da emancipação do feudalismo - reivindicando pela razão
humana - mostrou-se, a partir de então, como uma classe social em busca de seu enriquecimento
pessoal e que, para atingir seus objetivos pessoais, universalizou seus interesses pessoais.
Uma crítica realizada pelo autor está na compreensão de que “na teoria dos clássicos do
marxismo, o ser-precisamente-assim dos fenômenos histórico-sociais e as leis que os regem,
formuláveis em termos universais, não constituem nunca antíteses metodológicas, mas, ao
contrário, formam uma indivisível unidade dialética” (Lukács, 2008, p. 84). Nesse aspecto
manifesta-se sua crítica: não basta ser marxista, ser adepto desta perspectiva, é necessário
compreender categorias e direções nas quais se baseiam a perspectiva marxista. Lukács (2008)
trata, especificamente, da importância de se compreender a categoria de “ser-precisamenteassim”. Esta compreensão é tão importante quando o estudo das particularidades e das
universalidades. Ele explica essa categoria da seguinte forma:
o ser-precisamente-assim é, antes de mais nada, uma categoria histórico-social, ou seja,
o modo necessário pelo qual se apresenta o jogo contraditório das forças
socioeconômicas que operam em determinado momento no interior de um complexo
social situado num estágio específico de seu desenvolvimento histórico (Lukács, 2008,
p. 84).
Quanto a esta contraditoriedade das forças socioeconômicas, Lukács (2008) irá destacar
como fato importante na Revolução Francesa a relação estabelecida entre Estado e sociedade
civil, característica até então inexistente nas sociedades anteriores. Essa relação objetiva tornar a
vida política como um interesse de toda população e não mais de um grupo ou segmento restrito
da sociedade. Assim, a “batalha ideológica” realizada pela burguesia em busca do “reino da
razão” passa a constituir a base da vida social. Mesmo que tenha ocorrido uma busca pela
3
Aqui, Lukács (2008) trata da Guerra Fria.
25
unidade da relação entre Estado e sociedade civil, os interesses defendidos não eram sempre os
mesmos. Lukács destaca que “o Estado de toda sociedade é uma arma ideológica para travar os
conflitos de classe segundo o modo de pensar da classe dominante” (Lukács, 2008, p. 92).
Posição, esta, apresentada por Marx no “Manifesto do Partido Comunista”.
Na leitura que realiza de Marx, Lukács (2008) destacou que o idealismo produzido em
torno do Estado e da vida política, após o feudalismo, buscou uma realidade baseada no
materialismo da sociedade civil. Ou seja, esse idealismo deveria ser ancorado nas expressões
reais de relação entre sociedade civil e Estado, como foi o caso das Constituições estabelecidas
posteriormente. A realidade capitalista estabeleceu um patamar no qual o sujeito da práxis é um
homem egoísta, incapaz de se sobrepor a particularidade. Essa característica do capitalismo afasta
as possibilidades do homem se realizar em seu sentido mais amplo, em se constituir como
homem genérico. A sua vida material se opõe a sua vida genérica e isso o distancia de sua
essência emancipadora.
Lukács (2008) tratou da concepção de liberdade e de igualdade para demonstrar as bases
das relações sociais na sociedade capitalista. Vale destacar que, nessa conjuntura, ambas as
concepções estão, de certa forma, atreladas a circulação de mercadorias e ao aspecto econômico.
Isso significa, que liberdade e igualdade possuem um sentido específico dentro do marco
capitalista, que pouco está relacionado a liberdade e igualdade humana, a emancipação dos
homens. “O que hoje se costuma chamar de liberdade é o resultado da indiscutível vitória das
forças capitalistas” (Lukács, 2008, p. 94) (grifo nosso). A liberdade nos marcos do capitalismo
tem um sentido restrito, mas que apresenta uma falsa aparência de ampla liberdade. No entanto,
ela está sempre atrelada ao aspecto econômico. Isso ocorre porque nos marcos do capitalismo a
liberdade está, inicialmente, atrelada a possibilidade do homem poder vender livremente sua
força de trabalho a outro homem detentor dos meios de produção. Ou seja, ele não é mais um
escravo obrigado a sofrer determinada condição de sobrevivência, ele pode optar se vende ou não
sua força de trabalho em troca de um salário. Essa liberdade é restrita porque o homem precisa
vender sua força de trabalho para sobreviver e há uma série de fatores que implicam na forma
como esse processo ocorrerá.
26
Vejamos: é sabido que na sociedade na qual estamos organizados, todos possuem o direito
à igualdade e a liberdade. Características, inclusive, que diferenciam a sociedade capitalista de
outras formas de organização social como o escravismo e o feudalismo. Mas a liberdade está
associada ao trabalho. O homem passa a ter “liberdade” de escolha, pois ele decide se quer ou
não trabalhar para determinado indivíduo possuidor dos meios de produção. Nas demais
sociedades, o homem era forçado a trabalhar, independente de sua vontade. No escravismo, a
relação se estabelecia entre “dono” e “escravo”. A relação era degradante, inclusive, o senhor,
dono dos escravos, tinha “direito” a impetrar castigos severos, desumanos, degradantes. No
feudalismo, o homem trabalhava para o senhor feudal em troca de casa e comida. A grande
diferença no capitalismo é que o homem passa a vender sua força de trabalho, ele recebe um
valor monetário e agora a relação passa a ser entre patrão e empregado. Essa aparente liberdade
escamoteia as reais relações capitalistas que não se expressam na sua essência.
O fato é que a essência humana é ligada a totalidade real das relações sociais e ao
desenvolvimento dessas relações. Lukács (2008, p.98) parte da afirmação de que “a vida genérica
do homem está em contradição com sua vida material [isso] implica uma inter-relação ontológica
e, por isso, histórico-social entre o indivíduo e o gênero”. A unidade entre individualidade e
genericidade não é naturalizada, mas sim resultado de um processo sócio-histórico. Para tanto, é
necessário que a sociedade se socialize de forma que o homem saia de sua origem animal, de sua
socialização primária para atingir sua genericidade. De certa forma, é o capitalismo que inicia
esse processo rumo a genericidade dos homens porque ele permite o desenvolvimento das forças
produtivas.
Toda a análise apresentada por Lukács demonstra a relação da sociedade capitalista com
as possibilidades de elevação social. O capitalismo possui limites reais em suas estruturas que
não permitem superar barreiras como a desigualdade, a miséria, o individualismo. A base da
sociedade capitalista está em fomentar mais valor no processo de produção, em multiplicar as
mercadorias para o consumo, em criar necessidades, muitas vezes superficiais. Assim, Lukács
(2008) esclarece de forma clara uma categoria muito constante na relação entre indivíduo e
sociedade capitalista, que é exatamente a categoria do “ter”. Esse “ter”, associado ao consumo
27
desenfreado, a posse de bens materiais; acarreta em consequências para as relações sociais entre
os homens. “Não é casual que o fenômeno da alienação, ao mesmo tempo econômico, social e
humano-individual (...) tenha hoje se tornado um problema sócio-humano universal” (Lukács,
2008, p. 100) (grifos nossos).
No capitalismo a liberdade e a igualdade não desaparecem, mas elas adquirem formas
cada vez mais próximas dos conteúdos ideológicos da classe dominante. Quanto mais a liberdade
está atrelada aos ideais originários da burguesia, mais ela assume uma forma vazia e repleta de
fetiche. Assim, o fetiche da liberdade não pode estar vinculado apenas ao aspecto ideológico, ele
passa a ter que ser operado, efetivado na vida cotidiana.
Ao citar Marx, Lukács destaca que o aspecto econômico é extremamente importante na
análise de qualquer sociedade – apesar de não ser o único relevante. Isso significa que a liberdade
do homem está vinculada a sua condição diante da realidade econômico-social. Para que essa
liberdade de fato seja exercida é necessário criar condições de igualdade econômica entre os
homens, diferente do que o ocorre no sistema capitalista que gera a desigualdade social. Cabe
destacar uma citação do autor que apresenta uma síntese das questões apontadas:
A economia é e permanece o processo de reprodução material da sociedade e dos
homens, processo no qual o indivíduo, no final das contas, resulta ser um objeto; sua
consciência não vai além da compreensão o mais possível correta das possibilidades
objetivas mais favoráveis. Neste terreno, não há espaço para atividades que funcionem
como atividades do gênero humano tomado como fim em si mesmo. Mas isso não anula
o salto que tem lugar quando se socializam os meios de produção: em primeiro lugar,
elimina-se assim o fenômeno social pelo qual indivíduos ou grupos conseguem pôr as
funções sociais da economia a serviço de seus interesses privados egoístas; e, em
segundo, em estreita conexão com este primeiro ponto, surge a possibilidade objetiva de
pôr conscientemente o desenvolvimento econômico a serviço dos interesses superiores
do gênero humano, o que, no quadro da propriedade privada dos meios de produção,
sempre foi, quando muito, um subproduto não intencional (Lukács, 2008, p.113).
A estrutura da sociedade na qual o homem está inserido tem como necessidade adaptá-los
a determinados tipos de comportamentos coerentes com a ideologia dominante de uma época. Em
sua análise marxista Lukács também destaca que as grandes decisões históricas são realizadas de
acordo com a práxis relacionada à vida cotidiana dos homens, ou seja, não são apenas tomadas a
partir de uma leitura teórica, mas também de problemas em torno da vida cotidiana.
Principalmente, as grandes decisões estão articuladas a mudanças de fato através da ação
28
humana.
Lukács (2008) irá tratar da luta contra as tendências burocráticas. A burocracia é
identificada como uma tendência que consolida o passado em detrimento do presente. A busca
pelo passado ocorre pela rotina que se estabelece nas práticas burocráticas que não requerem
nenhum rigor ou relação com atitudes presentes ou atualizadas. Este é um aspecto brevemente
abordado em suas análises, mas não menos importante. Para o capitalismo as práticas
burocráticas terão uma importância essencial para a organização estatal, muito em decorrência
dessa busca pelo passado e pela manutenção do instituído pela ideologia dominante.
Esse debate tem relação com a leitura marxista do trabalho feita por Lukács (2008) porque
em alguns momentos a exigência é por um trabalho burocratizado ou ainda a burocracia instituída
em algumas esferas da produção dificultam uma apreensão crítica do modo de produção
capitalista. Quanto mais elevada for a forma econômica assumida pelo trabalho, mais se dará
atenção para aqueles que vivem da venda de sua força de trabalho, ou seja, os trabalhadores. No
capitalismo, o trabalho possui um sentido puramente econômico. Marx defende que o trabalho
para ser emancipador não pode estar submetido a qualquer tipo de divisão que gere relações
desiguais. O trabalho é uma questão central quando se trata da humanização do homem.
Sobre o marxismo recaem diversas críticas, dentre elas a concepção de verdade. Lukács
(2008) nos aponta com precisão crítica a importância do método marxista.
O marxismo afirma a existência, para cada questão, de apenas uma resposta correta,
aquela adequada à realidade objetiva. Mas tal resposta não se forma a partir das
deliberações de uma instância qualquer, mas por meio da pesquisa, da análise etc.; e,
quando formulada, deve ser criticamente avaliada com exatidão através de discussões, o
que faz com que seja necessário frequentemente um certo tempo antes que uma verdade
seja universalmente reconhecida como tal. (Lukács, 2008, p.188).
Lukács (2008) também trabalha com a concepção de racionalismo e irracionalismo.
Destaca que esta análise não deve ser feita de forma isolada e sim histórica, relacionada a uma
junção de teorias irracionalistas que predominaram na esfera social e moral. Para o autor a crise
do racionalismo decorre do triunfo da Revolução Francesa, precisamente porque esta vitória
permitiu a vigência da Revolução Industrial e, consequentemente, conduziu às contradições
capitalistas. “A conseqüência deste processo, do ponto de vista ideológico, foi a instauração de
29
uma situação que implica, simultaneamente e inseparavelmente, uma realização e uma refutação
das idéias do Iluminismo” (Lukács, 2008, p.27).
Ao tratar da crise da democracia Lukács demonstra sua origem através da contradição
entre liberdade e igualdade. Ao serem instauradas na vida social, a liberdade e a igualdade
apresentaram seu caráter contraditório e se expressaram nas esferas político-sociais do século
XIX. Ou seja, foi a formalização da igualdade e da liberdade na vida social que aguçou tais
contradições e gerou a crise ora destacada. A democracia, da qual o projeto de modernidade de
característica emancipadora trata, não pode estar ligada ao capitalismo, por isso o motivo desta
crise. Lukács (2007) irá abordar a conformação das relações sociais a partir do desenvolvimento
da sociedade de classes, ou seja, do capitalismo. Ele destaca que quanto mais se desenvolve a
teoria econômica capitalista, mais as relações são caracterizadas pelas consequências do viés
explorador. A proposta capitalista é de que o homem necessita sempre de uma dimensão concreta
para configurar as coisas e as relações humanas, trata-se de atribuir características da
mercantilização e das mercadorias a todas as esferas da vida. Essa característica não aparece de
forma clara e sólida, ela aparece de forma fetichizada. As formas de exploração do homem pelo
homem manifestam-se fetichizadas, sua socialização aparece como uma forma de destruição de
sua personalidade.
Todos estes aspectos acarretam em uma direção: a ideologia irracionalista. A presença e o
vigor do irracionalismo estão relacionadas a condições e espaços propícios para a emergência do
questionamento do racionalismo. Ao tratar da concepção irracionalista, Lukács (2007, p. 41) diz
que:
A ideologia irracionalista nasceu opondo-se à Revolução Francesa e, por isso, dirige-se
energicamente contra o conceito de progresso, contra a necessária destruição do velho
pelo novo. Constitui, desde o início, uma defesa da velha sociedade aristocrática – e não
só no plano político. Está voltada ideologicamente contra o reino da razão postulado pela
Ilustração e quer tão-somente manter as instituições etc., simplesmente porque parecem
vivas, independentemente do seu caráter racional ou não. Trata-se, pois, de um repúdio
da razão como critério. A independência assim estatuída das instituições, tradições etc.
em face da razão converte-se em concepção positiva: justamente porque tais instituições,
tradições etc., representam algo mais elevado que qualquer racionalidade, nelas se
manifesta o núcleo supra-racional ou o irracional da realidade em geral.
A propagação do irracionalismo decorre da decadência ideológica que se estabelece
30
devido ao distanciamento da cultura em relação aos interesses da classe trabalhadora. Com o
avanço do imperialismo há um estímulo a ideologias decadentes que incitam o embrutecimento
das massas. O período da decadência ideológica se inicia exatamente com o avanço do
imperialismo quando filosofias reacionárias ganham espaço e são oriundas das conquistas
científicas.
Lukács (2007) também trata do método marxista. Destaca que Marx e Engels se
empenharam para constituir o materialismo dialético. A filosofia marxista prioriza o conteúdo
sobre a forma, por isso, a tarefa da filosofia marxista é estabelecer uma dimensão dialética em
relação ao conteúdo e à forma. Isso não significa desconsiderar a forma e sim considerar o
conteúdo sobre a perspectiva de totalidade4 através de um critério concreto e histórico.
O marxismo apresenta inovações na leitura da realidade e na perspectiva de apropriação
desta realidade. A práxis ocupará um lugar de destaque e um lugar inovador. A concepção
filosófica marxista do mundo é algo novo, possui como herança: “a grande filosofia materialista
dos séculos XVII e XVIII, o desenvolvimento do método dialético na filosofia clássica alemã, a
economia política até Ricardo, a dissolução de sua escola, os clássicos do socialismo utópico, os
grandes historiadores do início do século XIX e as correntes democrático-revolucionárias na
Rússia” (Lukács, 2007, p. 68).
Ao tratar do método e da dialética marxista, Lukács (2007) resgata a contribuição de
Hegel e realiza uma crítica da perspectiva e da leitura de Marx. Aponta Hegel como o precursor
da dialética materialista de Marx. Ao analisar a contribuição de Hegel, Lukács sinaliza para a
própria dialética que envolve a importância de resgatar o passado para compreender o presente.
Diz que a filosofia é importante para a compreensão do movimento da história, dessa forma, o
presente pode necessitar de um resgate de tendências do passado. Ao ser considerado o precursor
4
Lukács (2007, p. 59) explica a dialética da totalidade da seguinte forma: “A verdadeira totalidade, a totalidade do
materialismo dialético, (...), é uma unidade concreta de forças opostas em uma luta recíproca; isto significa que, sem
causalidade, nenhuma totalidade viva é possível e, ademais, que cada totalidade é relativa; significa que, quer em
face de um nível mais alto, quer em face de um nível mais baixo, ela resulta de totalidades subordinadas e, por seu
turno, é função de uma totalidade e de uma ordem superiores; segue-se, pois, que esta função é igualmente relativa.
Enfim, cada totalidade é relativa e mutável, mesmo historicamente: ela pode esgotar-se e destruir-se – seu caráter
de totalidade subsiste apenas no marco de circunstancias históricas determinadas e concretas” (grifos nossos). E
acrescenta: “... os filósofos marxistas devem precaver-se para não transformar esta relatividade necessária em
relativismo metodológico”.
31
de Marx, Hegel apresenta uma contribuição relevante para os estudos da teoria marxiana. Ele
desvendou a relação entre economia e dialética como uma questão essencial do método. Essa
relação entre dialética materialista e contradições da economia capitalista foi um aspecto
essencial na obra de Marx. Em outro momento, Lukács relembra que Hegel foi um defensor
fervoroso da Revolução Francesa e de seus ideais revolucionários.
Hegel apontou na economia política um caminho importante para compreender as
contradições da atividade social do homem e da propriedade privada no capitalismo. O essencial
no processo desta análise é o fato de ele considerar o trabalho como atividade fundamental da
humanidade, ou seja, como uma relação essencial entre o homem e a natureza. Disse que o
trabalho possui uma estrutura teleológica. Essa concepção do trabalho em Hegel foi reforçada e
aprofundada pela teoria marxiana. A importância dessa contribuição pode ser elucidada por uma
passagem de Lukács (2007, p. 97) ao tratar da relevância do trabalho para o homem:
O trabalho, por sua essência, é uma atividade teleológica; mas esta atividade teleológica
é inseparável da categoria da causalidade, já que somente se conhecermos as relações
causais entre as coisas, a qualidade de matéria com a qual trabalhamos, a qualidade dos
instrumentos de que nos valemos, somente assim é que um trabalho efetivo é possível.
Quanto maior for nosso conhecimento, tanto mais amplo será nosso trabalho.
Existe uma verdadeira e uma falsa antologia em Hegel. A verdadeira é o método porque
ele permite ver o movimento, a contradição, as particularidades. Por outro lado, o sistema
hegeliano é fechado, dando possibilidades para a manifestação do conservadorismo. Aqui Hegel
é usado pelo pensamento conservador como seu aliado, como seu mentor. Ele pode ser usado
tanto pelo conservador como pelo progressista. Lukács mostra como Marx supera Hegel.
É importante destacar que o trabalho possui uma finalidade. A princípio esta finalidade
aparenta ser um aspecto particular do sujeito que realiza o trabalho, entretanto, há trabalho que
torna-se essencial, universal, geral, que ultrapassa a finalidade particular e torna-se uma
necessidade coletiva. Por isso, segundo Hegel, “o meio é algo mais elevado, mais geral, mais
universal do que as finalidades individuais dos homens” (Lukács, 2007, p. 98). Para Hegel, o
homem torna-se homem através do seu trabalho, ou seja, ele é capaz de desenvolver suas
potencialidades e evoluir seu ser genérico através do trabalho.
Entretanto, o principal destaque de Lukács (2007) a Hegel é para a aplicação de seu
32
método. Ele afirma que a história apresenta todo fenômeno de forma abstrata para em seguida
torna-se concreto. Hegel é idealista, para ele a consciência determina a existência,
posteriormente, Marx demonstra como Hegel abordou o método de forma invertida, partindo do
abstrato para o concreto, enquanto Marx, apropriando-se da dialética hegeliana realizou o
caminho de ida e de volta, pois partiu do concreto para o abstrato retornado ao concreto a partir
da captação das determinações da realidade. Marx faz o processo do abstrato ao concreto, a
diferença de Marx para Hegel é que o primeiro faz o caminho de volta. Marx apreende o
concreto, mas ele parte de um concreto caótico, é um todo caótico que não se apresenta em sua
aparência, é necessário desvendá-lo para atingir sua essência. Ele supõe que seja concreto porque
o concreto é síntese de determinações, a unidade de várias determinações. Ele supõe que pode ir
além da mera aparência, então ele investiga quais são as determinações concretas desse todo
caótico, por isso ele parte do pensamento para a concreção, do abstrato para o concreto. É no
caminho de volta que ele consegue apreender a totalidade. O método em Marx parte da aparência,
do concreto, chega ao conhecimento crítico de forma a superar a positividade do real e enfrentar a
ideologia. A positividade do real é a aparência, aquilo que está na positividade, por isso, é
necessário negar aquilo que se vê a fim de desvendar sua essência.
Lukács ressalta que Marx desenvolveu uma ontologia histórico-materialista que
objetivava superar o idealismo-lógico-ontológico de Hegel. Hegel concebeu a ontologia como
uma história em contraste com a ontologia religiosa. “A ontologia religiosa, a de Hegel partia de
‘baixo’, do aspecto mais simples, e traçava uma história evolutiva necessária que chegava ao
‘alto’, às objetivações mais complexas da cultura humana” (Lukács, 1978, p.2). Em Hegel o
homem é criador de si mesmo, ou seja, traça sua própria história. Hegel não valoriza o trabalho,
ele valoriza o intelecto. Mas para Marx o ser que trabalha é o ser que transforma a si mesmo, que
transforma a sociedade.
A ontologia marxiana se afasta desse idealismo lógico-ontológico de Hegel, do elemento
lógico dedutivo. Para Marx o ponto de partida é sempre objetivo, parte de um complexo concreto.
Já Hegel parte do simples ser abstrato. Marx vê o ser como um processo histórico e considera as
categorias como moventes e movidas pela matéria, pois elas não são estanques, podem ser
33
alteradas de acordo com o movimento histórico.
A consciência para Marx é produto do desenvolvimento do ser material. Reflete a
realidade e pode intervir na mesma para modificá-la. A consciência tem poder no plano do ser. O
pensamento conservador suprime o papel da consciência, o ser humano passa a ser considerado
como um ser que recebe uma inspiração de seres superiores, como a religião e as doutrinas, ou
ele é um ser alienado e não consciente. No pensamento conservador, ignora-se o potencial do
homem como um ser capaz de alcançar a consciência de si e de classe.
O amadurecimento do pensamento de Marx, até atingir o desenvolvimento do
materialismo histórico e dialético, ocorreu através da sua preocupação em estudar os elementos
centrais e decisivos para a compreensão da sociedade. Ele se reportava à universalidade para
aprofundar o conhecimento sobre os fenômenos em sua totalidade e, assim, se debruçava na
atividade de pesquisa. Essa busca incessante pela pesquisa demonstra a importância desta
atividade para se atingir um amadurecimento intelectual, mas não só, também é necessária uma
perspectiva que confira ao pesquisador um norte em suas análises. Marx desenvolve sua
perspectiva a partir da realidade concreta. O amadurecimento intelectual de Marx e sua
ampliação de concepção de mundo foram acompanhadas por mudanças sociais, políticas,
culturais e econômicas (Lukács, 2007).
Hegel exerceu influência na vida de Marx ainda muito cedo. Em 1839, Marx se dedicava
a sua tese de doutorado e realizava uma crítica a Hegel. Lukács (2007) destaca uma diferença
essencial do resultado desta tese: seu trabalho não se restringia apenas a uma crítica da ideologia
de Hegel5, mas apresentava um pensamento crítico denso e profundo; fato que o diferenciava dos
demais críticos da época. Ainda que Lukács advirta para o fato de Marx não ter apresentado em
sua tese de doutorado uma crítica ao núcleo central da filosofia hegeliana, ao seu idealismo e as
suas contradições no método dialético, considera que Marx não deixa de ter apresentado uma
5
Lukács (2007, p. 125) trata da filosofia Hegeliana. Marx foi capaz de criticá-la de forma distinta dos críticos da
época, pois percebeu que “em seu idealismo e no caráter metafisicamente fechado de sua sistematização, estavam
previamente contidas as premissas que haviam tornado possível a acomodação de Hegel diante do Estado reacionário
prussiano, ou melhor, que a tinham tornado necessária precisamente em virtude da própria essência de seu sistema
filosófico”.
34
crítica densa à obra de Hegel. Nesse sentido, para Lukács, uma das principais contribuições de
Marx nesse período de sua produção foi resgatar o materialismo e realizar uma abordagem
dialética. Ele trabalhou com o objetivo de elaborar uma perspectiva universal da história e de
apreender os aspectos dialéticos da tradição materialista.
Marx realizou uma crítica a situação histórica e social da Alemanha conservadora em sua
época. “O motivo de fundo desta crítica e desses ataques era o desmascaramento implacável não
só de todas as instituições feudal-corporativas e absolutistas da Alemanha da época, mas também
de todas as tentativas de conciliação com tais instituições, por mais bem intencionadas ou
romântico-demagógicas que fossem” (Lukács, 2007, p. 138). Marx realizava uma crítica ao
conservadorismo romântico existente na Alemanha, sua crítica se volta contra o feudalismo e a
manutenção de instituições feudais ou a tentativa de recuperá-las. Ele defendia a democracia e o
direito das massas populares oprimidas, apresentava uma concepção de Estado e de direito oposta
a de Hegel6.
Em 1843, Marx tinha a preocupação em mostrar as contradições e as desigualdades da
sociedade capitalista. Ou seja,
Ele esboça um grandioso quadro do caráter dilacerado e contraditório do capitalismo,
mostrando como, nesta formação social, o trabalho aliena o trabalhador do seu próprio
trabalho, torna o homem alienado do homem, da natureza, do gênero humano. (Lukács,
2007, p. 183).
Lukács (2007) destaca a leitura realizada por Marx quanto a esfera social como
determinação do homem e de sua relação com os demais homens. A relação entre capitalista e
operário consiste em uma síntese desse processo social. Trata-se de ação dos homens que
realizam sua própria história, “são os próprios homens que fazem a sua história; que eles mesmos
e o sistema de relações em que vivem com seus semelhantes são produtos da sua própria
6
Em outro momento Lukács (2007) irá explicar a concepção de direito e de Estado de Hegel. Ele demonstra que a
crítica de Marx centra-se na luta contra a monarquia constitucional e ao fato de Hegel justificar esse tipo de
organização. O principal problema da filosofia hegeliana sinalizado por Marx foi a idéia de direito baseada na
relação sociedade civil, burguesia e Estado. Concomitantemente a esta questão Marx critica o idealismo de Hegel
“por atribuir uma existência autônoma aos conceitos, por inflar as abstrações até atribuir-lhes uma realidade
independente, ele se baseia em sua crítica da filosofia hegeliana do direito e do Estado de 1843. Esta é a premissa
para que a unidade de universal e particular possa ser concebida pelo marxismo de modo dialético-materialista, ou
seja, pela primeira vez de modo científico” (Lukács, 2007, p. 150).
35
atividade” (Lukács, 2007, p. 219).
Para explicar a relação do homem com a realidade, Lukács (2007) parte dos fundamentos
do trabalho. É o trabalho que produz e reproduz, cria, desenvolve suas faculdades e sua
consciência. Ele é capaz de projetar o resultado de suas ações ao agir de forma teleológica, mas
para concretizar as ações projetadas ele necessita de condições objetivas e de intervir na realidade
a partir de suas ações.
É importante entender a ontologia do ser social porque seu surgimento está relacionado ao
desenvolvimento com base em um ser orgânico que se manifesta e se desenvolve a partir do ser
inorgânico. Entre a forma mais simples do ser e a mais complexa ocorre um salto. Em seguida há
um aperfeiçoamento da nova forma que aparenta ser uma simples variação dos modos relativos
do ser. O trabalho expressa uma base dinâmico-estruturante do ser social. Para trabalhar é
necessário um grau de desenvolvimento do processo de produção orgânica, é desse processo que
surge a divisão social e técnica do trabalho. A essência do trabalho consiste em ir além da
competição biológica com o ambiente e o movimento que realiza essa separação é a consciência
(Lukács, 2007).
A essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa fixação dos seres vivos
na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente
separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência,
a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da reprodução biológica: o
produto, diz Marx, é um resultado que no início do processo existia ‘já na representação
do trabalhador’, isto é, de modo ideal (Lukács, 1978, p. 4).
Nesse sentido podemos destacar que a consciência confere ao homem um conhecimento
parcial ou total do seu trabalho e faz com que ele se percebera como produtor e reprodutor. Na
sociedade burguesa podemos afirmar que o trabalho é alienado, pois o trabalhador não se vê
como produtor da mercadoria final produzida.
O trabalho é não apenas o modelo objetivamente ontológico de toda práxis humana, mas
também – nos casos aqui mencionados – o modelo direto que serve de exemplo à criação
divina da realidade, onde todas as coisas aparecem como produzidas teleologicamente
por um criador onisciente (Lukács, 1978, p. 8).
O trabalho é um ato de pôr consciente que pressupõe um conhecimento concreto. Ocorre
uma autonomização das atividades preparatórias do trabalho que se desenvolvem. Quanto mais as
ciências se aperfeiçoam, mais elas incidem no trabalho, mais desenvolvem as técnicas e mais
36
aperfeiçoam e dinamizam a produção.
A matemática, a geometria, a física, a química etc., eram originalmente partes,
momentos desse processo preparatório do trabalho. Pouco a pouco, elas cresceram até se
tornarem campos autônomos de conhecimento, sem, porém perderem inteiramente essa
respectiva função originária. Quanto mais universais e autônomas se tornam essas
ciências, tanto mais universal e perfeito torna-se por sua vez o trabalho; quanto mais elas
crescem, se intensificam etc., tanto maior se torna a influência dos conhecimentos assim
obtidos sobre as finalidades e os meios de efetivação do trabalho (Lukács, 1978, p. 9).
O homem que trabalha - podemos dizer que é um animal que se torna homem através do
trabalho, por isso o trabalho é ontológico - é um ser que dá respostas. O trabalho surge como uma
necessidade de conferir respostas às necessidades dos homens. “Tão-somente o carecimento
material, enquanto motor do processo de reprodução individual ou social, põe efetivamente em
movimento o complexo do trabalho; e todas as mediações existem ontologicamente apenas em
função da sua satisfação” (Lukács, 1978, p. 5). É exatamente o processo que de mediação permite
ao homem transformar a natureza e a sociedade.
O trabalho permite um desenvolvimento superior, que é o desenvolvimento dos homens.
Ele se expressa na nova peculiaridade do ser social e se converte no modelo da nova forma do ser
em seu conjunto. Ele é constituido pela teleologia. Teleologia é o modo de pôr, realizado por uma
consciência. É uma expressão teleológica, é a possibilidade de projetar os resultados de nossas
ações, de conhecer as conseqüências futuras de determinada intervenção. A teleologia é utilizada
pelo homem de forma consciente, mas ele não consegue ver todos os condicionamentos da
própria atividade, ou seja, ele não consegue captar a perspectiva de totalidade de forma imediata.
Isso gera duas conseqüências. A primeira tendência é a dialética do constante aperfeiçoamento do
trabalho, pois, enquanto o trabalho é realizado, seus resultados são observados por ele mesmo (o
homem busca aperfeiçoar seu trabalho constantemente). A segunda consequência consiste no
trabalho se tornar mais variado, abarcar campos maiores, subir de nível em extensão e
intensidade (isso ocorre conforme o homem vai aperfeiçoando seu trabalho).
Através da teleologia surge o ato social que faz parte da práxis e consiste em uma decisão
a ser tomada entre alternativas distintas. A práxis possui um caráter contraditório (a contradição
aqui faz parte da ontologia humana), pois em determinadas situações os homens realizam suas
próprias ações, mesmo que atuem contra sua própria convicção. Ela é uma decisão entre
37
alternativas, mas nem sempre podemos implementar a alternativa que escolhemos, por isso,
mesmo que tenhamos a capacidade teleológica, muitas vezes projetamos nossas ações, mas o
resultado delas não correspondem ao esperado.
Todos os problemas reais do complexo da liberdade derivam do homem que vive em
sociedade. O conhecimento se distingue em duas formas em relação ao trabalho: a primeira é o
ser-em-si que existe objetivamente; o segundo é o ser-para-nós que existe de forma pensada. É o
ser-para-nós que faz com que surjam valores no processo de trabalho, ou seja, é a consciência
coletiva e principalmente do resultado final do trabalho.
No trabalho, ao contrário, o ser-para-nós do produto torna-se uma propriedade objetiva
realmente existente: e trata-se precisamente daquela propriedade em virtude da qual o
produto, se posto e realizado corretamente, pode desempenhar suas funções sociais.
Assim, portanto, o produto do trabalho tem um valor (no caso de fracasso, é carente de
valor, é um desvalor). Apenas a objetivação real do ser-para-nós faz com que possam
realmente nascer valores (Lukács, 1978, p. 7).
Como conseqüência principal do trabalho, temos sua divisão social e técnica. Quando
surge uma nova forma de posição teleológica, o homem é induzido a realizar posições
teleológicas segundo um modo predeterminado. Ele projeta o resultado de seu trabalho de acordo
com a necessidade vigente dos meios de produção. Com o surgimento de classes sociais de
interesses antagônicos essa nova posição teleológica faz surgir a ideologia. A ideologia consiste
na produção de formas através das quais os homens tornam-se conscientes dos conflitos e se
inserem em lutas. Ela está diretamente relacionada com as posições teleológicas, se relaciona a
uma classe social, por exemplo: ideologia burguesa e ideologia proletária ou revolucionária.
Entre as conseqüências importantes da gênese teleológica para os processos sociais
podemos destacar que ela produz objetos que não podem ser obtidos pela natureza e que o nível
da necessidade deixa de operar de maneira mecânico-espontânea, pois o homem passa a pensar
naquilo que irá realizar. A forma de manifestação da necessidade passa a ser o de estimular ou
impedir os homens de tomarem certas decisões teleológicas.
A razão ontológica fundamental é a causalidade posta em movimento por razões
teleológicas alternativas. Algumas tendências gerais são visíveis, mas, às vezes, elas se traduzem
de modo desigual, portanto, em um segundo momento conseguimos perceber seu caráter
38
concreto. É por isso que achamos que na prática a teoria é outra, pois, normalmente, no plano da
imediaticidade, não conseguimos realizar esse momento de desvendar o real.
No desenvolvimento econômico há três exemplos de orientações que se manifestam
independentemente da vontade e do saber dos homens, que serviram de fundamento às posições
teleológicas. Ou seja, os homens passaram a pensar seu trabalho a partir de tais posições. A
primeira consiste na tendência de diminuir o tempo de trabalho socialmente necessário à
reprodução dos homens. A segunda trata-se da tendência de tornar o processo de produção cada
vez mais social. A vida humana não se desvincula dos processos naturais, mas o papel puramente
natural diminui. A terceira tendência consiste no desenvolvimento econômico criar ligações
intensas entre as sociedades. É importante destacar que o progresso econômico aparece na forma
de conflitos sociais. Essas tendências alteraram as posições teleológicas dos homens no seu
processo de trabalho, momento no qual o homem deixa de se expressar como um ser individual
para se apresentar um ser social.
O homem deixa a condição de ser natural para tornar-se pessoa humana, transforma-se
de espécie animal que alcançou um certo grau de desenvolvimento relativamente
elevado em gênero humano, em humanidade. Tudo isso é o produto das séries causais
que surgem da sociedade” (Lukács, 1978, p. 13).
Destacamos que o trabalho na sociedade capitalista exige muito menos um trabalho
teleológico em si no sentido de desenvolver todas as faculdades dos homens. Visto que:
Só quando o trabalho for efetiva e completamente dominado pela humanidade e,
portanto, só quando ele tiver em si a possibilidade de ser ‘não apenas meio de vida’, mas
‘o primeiro carecimento da vida’, só quando a humanidade tiver superado qualquer
caráter coercitivo em sua própria autoprodução, só então terá sido aberto o caminho
social da atividade humana como fim autônomo (Lukács, 1978, p. 16).
O pensamento conservador suprime o papel do sujeito que faz história (Lukács, 2007). Os
homens fazem história, mas não em condições por eles escolhidas. Nisso se expressa a unidade
entre liberdade e necessidade que opera como unidade contraditória entre alternativas com as
premissas e conseqüências ineliminavelmente vinculadas por uma relação causal.
As leituras que realizamos de Lukács foram extremamente relevantes para uma análise
crítica e para uma compreensão da estrutura e da base de sustentação do capitalismo. Lukács nos
fornece um aporte marxista denso e rico para criticarmos o conservadorismo. Ao trazer suas
39
analises para o centro do debate conseguimos captar o movimento histórico que fornece bases
para a sustentação do pragmatismo, ou seja, as necessidades da sociedade capitalista. E
conseguirmos também entender a influência internacional exercida pelos Estados-Unidos por ser
a grande potência ideológica de propagação e fortalecimento do capitalismo.
A lógica da sociedade capitalista é baseada em interesses da classe dominante e visa
defender suas individualidades de classe, seus objetivos de produção e reprodução do capital e a
manutenção do seu poder sobre o domínio das esferas da vida em sociedade. Dessa forma, a
requisição por um conhecimento instrumentalizável e formal torna-se funcional a toda essa
lógica.
Para a lógica capitalista, a busca por uma prática desatrelada da análise crítica e da
apropriação de uma teoria rica de possibilidades de apreensão do movimento real e dialético é
totalmente relegada e descartada. A intenção é manter uma prática funcional aos interesses da
classe dominante, reforçando o discurso de fragmentação entre teoria e prática. O
conservadorismo se expressa de forma a sustentar essa lógica, de manter instituições e formas de
pensar presas ao passado e refuncionalizadas no presente.
As desigualdades sociais e as latentes contradições do capitalismo possuem em sua
aparência formas naturalizadas e impossíveis de serem modificadas. A práxis é desconsiderada e
aos que estão inseridos na lógica formal do trabalho cabe serem colaboradores dos interesses
capitalistas conforme a lógica da reestruturação produtiva que objetiva manter os interesses que
se manifestem como úteis ao capitalismo.
Toda essa lógica é difícil de ser apreendida sem um aporte que subsidie uma análise
crítica. Ele apresenta uma falsa aparência de estar “enraizada” na vida do homem. Assim
acontece com o pragmatismo. Tratamos pouco sobre seus elementos, mas em muito os
reproduzimos. Por não o conhecermos em sua densidade e em suas propostas não conseguimos
captar todos os elementos que estão presentes nessa ideologia.
Dessa forma, a exposição do pensamento de Lukács permitiu apresentar as mediações
necessárias para realizarmos o debate sobre a relação do Serviço Social como pragmatismo frente
a lógica capitalista. Assim, partimos para uma análise da “questão social” e os debates abordados
40
pelo Serviço Social.
Dessa forma, o conservadorismo torna-se expressão de uma necessidade do sistema
capitalista para manter a reprodução de sua lógica e de seus valores. Para entendermos a relação
do conservadorismo com o Serviço Social é necessário nos reportarmos ao debate da “questão
social”, pois ele nos permite entender a gênese da profissão e os interesses aos quais o Serviço
Social foi requisitado a servir. A contraditoriedade da profissão expressa em tais interesses é
reflexo das contradições da própria sociedade capitalista. Assim, apresentaremos os diversos
debates em torno da chamada “questão social” que versam desde a perspectiva conservadora até a
perspectiva crítica.
1.2. O debate da “questão social”: bases para a compreensão da relação do
conservadorismo no Serviço Social
Até este momento, buscamos tratar do pensamento conservador e de suas manifestações
na sociedade capitalista. Torna-se relevante trazer o debate da “questão social” para
compreendermos a relação do conservadorismo no Serviço Social. Assim conseguiremos resgatar
as bases que possibilitaram o surgimento da profissão. Consideramos a “questão social” como
expressão das contradições oriundas da relação entre capital e trabalho do modo de produção
capitalista. Historicamente, e desde seu reconhecimento oficial, pelas instâncias governamentais e
pela classe dominante, buscou-se o seu enfrentamento a partir de respostas imediatas e no sentido
de conservar a ordem dominante. Diante dessa considerações, o Serviço Social não pode ser
compreendido a partir do debate do pragmatismo sem uma nítida apreensão do significado da
“questão social”.
É importante mencionar a relevância do debate da “questão social” para a proposta de
estudos que apresento. A origem da profissão está diretamente relacionada ao movimento da
expansão capitalista na década de 1930 e ao afloramento da “questão social”. A relação do
41
Serviço Social com a “questão social” nos permite pensar nos elementos que reafirmam o
conservadorismo existente na profissão. Segundo Netto (2001), a expressão “questão social”
surge em decorrência do embate político entre as classes sociais (trabalhadores e capitalistas),
momento em que a desigualdade social se tornava cada vez mais latente. No século XIX a
“questão social” passa a adquirir uma conotação conservadora, pois, aponta-se a necessidade de
manutenção e permanência da ordem capitalista, assim, a “questão social” passa a ser
naturalizada, ou seja, pelas expressões são consideradas aspectos naturais do desenvolvimento da
sociedade. O autor afirma, ainda, que somente a supressão da sociedade capitalista possibilitaria a
superação da “questão social”, pois,
O desenvolvimento capitalista produz, compulsoriamente, a ‘questão social’; esta não é
uma seqüela adjetiva ou transitória do regime do capital: sua existência e suas
manifestações são indissociáveis da dinâmica específica do capital tornando potência
social dominante. Não se suprime a primeira conservando-se o segundo (Netto, 2001, p.
157).
Remetendo-se a Marx, Netto afirma que “a ‘questão social’ está elementarmente
determinada pelo traço próprio e peculiar da relação capital/ trabalho – a exploração” (Netto,
2001, p. 157).
Podemos perceber que o tratamento que se dá atualmente a “questão social” é de duas
concepções. Uma compreende de forma crítica como decorrente das transformações do
capitalismo da década de 1930 expressando-se como produto da luta de classes. Outra
compreende a partir da perspectiva conservadora e busca naturalizá-la como se ela fosse
expressão de toda e qualquer forma de desigualdade, a naturalizando, a desestoricizando e a
deseconomizando. Nesse sentido, há dois debates teóricos. Ressaltamos a importância de nos
remetermos aos debates provenientes da concepção de “questão social”, pois ela é vista como
fundamento de existência da profissão.
A “questão social” recebeu esta designação a partir do momento em que os interesses da
classe trabalhadora se tornaram conscientemente antagônicos aos interesses da burguesia, ou
melhor: com o desenvolvimento do capitalismo os antagonismos, as contradições e as
consequências da relação capital e trabalho, expressos pela classe trabalhadora e pela classe
burguesa, se tornam evidentes. A população trabalhadora passou por um processo acentuado de
42
pauperização, que já existia antes da sociedade capitalista, mas possuiu em sua particularidade o
fato de o capitalismo necessitar dos pauperizados para a sua reprodução e valorização.
Conforme salientamos na leitura de Lukács, no período da Revolução Francesa a
burguesia se declarava portadora dos interesses universais. Ela fez a revolução com a ajuda da
classe trabalhadora e do proletariado, ganhou a luta contra o clero e a aristocracia e assim se
tornou classe dominante. Ao chegar ao poder passou a defender os interesses particulares de sua
classe social. Nesse momento, a classe trabalhadora se tornou antagônica ao interesse da
burguesia, pois possuiam projetos societários distintos.
A análise de Marx sobre “A lei geral da acumulação capitalista” nos remete a realidade da
classe trabalhadora diante o acúmulo e crescimento do capital. O autor tratou da composição do
capital a partir do valor e da matéria. No século XVIII, por se ter um capitalismo em
desenvolvimento de suas forças produtivas, havia uma perspectiva afirmando que a acumulação
do capital dependia do aumento do proletariado. E de fato isto ocorria naquela época. O mercado
de trabalho rapidamente se expandiu e a classe trabalhadora cresceu em proporção massiva.
Quando a chamada “questão social” começou a ser considerada uma ameaça à ordem
social ela demandou uma intervenção profissional, ou melhor, reivindicou uma profissão que se
dedicasse a intervir nas expressões da “questão social”. No Brasil, isso ocorreu na década de
1930. Sobre essa conjuntura iremos nos debruçar a partir de autores que trataram da realidade
social, política, econômica e cultural deste movimento do capitalismo.
Nesse sentido, de acordo com o crescimento do processo de acumulação e com a
expansão do capital, ao comprar a força de trabalho o capitalista apresenta um objetivo: aumentar
seu capital, produzir mercadorias com mais valor do que o inicialmente investido, ou seja,
apropriar-se da mais-valia. A condição de miserabilidade na qual é relegada a classe trabalhadora
ocorre diante do processo de extração da mais valia. O capitalista sempre paga um salário menor
do que realmente compete à força de trabalho despendida. E esse salário tem relação com os
mínimos necessários para a reprodução da força de trabalho. Isso significa que o trabalhador
vende sua força de trabalho ao capitalista. Ele oferece determinadas horas de seu dia e só recebe
uma parte dessas horas. O valor recebido corresponde, supostamente, ao suficiente para a
43
reprodução de sua subsistência.
Marx (1988) também demonstra que o capital social cresce conforme o capital individual
de cada capitalista. Os meios de produção não são sociais e sim privados, pertencem a uma classe
social que se apropria em benefício próprio. A acumulação é concentrada por muitos capitalistas
individuais que centralizam o capital7. Desta forma de acumulação produz-se uma população
trabalhadora supérflua que torna-se excedente, logo
Em todos os ramos, o aumento do capital variável, ou seja, do número de trabalhadores
empregados está sempre associado a flutuações violentas e à formação transitória de
superpopulação, pelo processo mais contundente de repulsão dos trabalhadores já
empregados, ou pelo menos visível, porém não menos real, da absorção mais difícil da
população trabalhadora adicional pelos canais costumeiros (Marx, 1988, p. 732).
Isso significa que a existência de desempregados é condição para a manutenção do modo
de produção capitalista; é o que, na época Marx, chamou de exército industrial de reserva. O
autor sinaliza que a indústria moderna surge quando parte da população trabalhadora está
desempregada. Para se desenvolver a indústria moderna precisa de uma superpopulação relativa,
pois a lógica capitalista funciona no sentido de pressionar os que estão no mercado de trabalho a
se sujeitarem às suas requisições e condições e a baixa dos salários. Isto permitirá o
enriquecimento individual do capitalista. Assim também, cresce o pauperismo que “constitui o
asilo dos inválidos do exército ativo dos trabalhadores e o peso morto do exército industrial de
reserva” (Marx, 1988, p. 747). Marx define a lei geral absoluta da acumulação capitalista: quanto
maior o exército industrial de reserva maior será o pauperismo.
Ao criticar o artigo “O rei da Prússia e a reforma social”, Marx (1995) publicou em 1844
uma análise da situação política e social da Alemanha e da Inglaterra e apresentou
particularidades na realidade dos dois países. Primeiro ele destacou que a miséria é uma questão
geral e consiste em um problema para a sociedade capitalista. A revolta dos trabalhadores
expressa pela destruição de máquinas e fábricas não consistiu em uma ameaça ao governo, como
se costumava imaginar, mas sim à burguesia. Acrescentou que na Inglaterra essa miséria não era
parcial como na Alemanha, que se restringia aos pólos industriais, mas sim geral porque
7
Marx (1988) distingue concentração de centralização. Resumidamente, a concentração depende do capital social, é
uma expressão para a reprodução em escala ampliada. A centralização aumenta e acelera a acumulação, implica em
mudanças na composição técnica do capital.
44
englobava também os trabalhadores agrícolas.
A compreensão da miséria na Inglaterra pelos representantes políticos e pelos partidos não
atingiu a causa na política, apesar de assumirem que o pauperismo é uma responsabilidade
política. Isso significou que sequer uma reforma da sociedade foi cogitada. O que expressou a
interpretação inglesa do pauperismo foi a economia política inglesa. Vale destacar que Marx
analisou que tanto a Inglaterra quanto a Alemanha possuiam uma análise fragmentada e parcial
do que seria a “questão social”.
Buscava-se atribuir a causa do pauperismo a uma falha na administração política e da
assistência. A grande diferença foi que o parlamento inglês não se restringiu a uma reforma da
administração e pensou em recorrer a assistência. Porém, propagou-se a idéia de que a assistência
favoreceria a miséria porque essa seria considerada um estímulo aos pauperizados para se
manterem na condição em que se encontravam. Especialmente na Inglaterra, surgiu a concepção
de que o pauperismo era fruto da culpa dos trabalhadores e que, portanto, deveria ser prevenido
através da repressão e da punição. A Inglaterra buscou combater o pauperismo através da
assistência e das medidas administrativas, depois buscou aplicar o imposto para os pobres, em
seguida, entendeu a miséria como uma particularidade inglesa e, por fim, culpabilizou os pobres
por sua condição e buscou puní-los. Depois de várias tentativas de eliminar e prevenir a pobreza,
a Inglaterra aplicou a disciplina como solução para conter a situação de miséria.
Seguindo a análise de Marx, Engels (1974) tratou das condições e possibilidades de uma
revolução por parte da classe trabalhadora, mas para tanto apresentou um panorama da condição
dos trabalhadores de sua época. Primeiro, os impostos eram aplicados pelo Estado como uma
forma de se apropriar de parte do salário dos trabalhadores urbanos e de se apropriar
indiretamente das terras dos trabalhadores rurais. Segundo, a situação do campesinato russo se
agravava. Aumentava a pobreza e a miséria. Tal condição tornava-se insustentável. A divisão das
terras em propriedades privadas acirrou as desigualdades sociais. “Em quase todos os lugares há,
entre os membros da comunidade, campesinos ricos, às vezes milionários, que se dedicam a usura
e a tirar o sangue da massa campesina” (Engels, 1974, p. 7) (nossa tradução). Terceiro, Engels
mostra que a Rússia apresentava uma questão política e que a “questão social” estava posta. Ele
45
afirmou que na Europa Ocidental a sociedade capitalista apresentava contradições próprias de seu
desenvolvimento, entre elas a “questão social”. Para ele o real desenvolvimento só ocorreria
quando a economia capitalista fosse superada e as desigualdades sociais próprias de seu
desenvolvimento deixassem de existir.
A partir das leituras de Marx e Engels podemos confirmar a leitura crítica realizada sobre
o significado da “questão social”. A “questão social” em si mesma é expressão das relações entre
capital e trabalho, da subordinação do trabalho ao capital, de suas contradições que geram
desigualdades e resistências. Ela expressa a exploração e as consequências dos interesses
antagônicos de duas classes sociais: a burguesia e o proletariado. Suas conseqüências se
manifestam de diversas formas como na pobreza, na miséria, na fome, nas doenças, nas
condições de subsistência precarizadas, entre tantas outras. Todas estas são conhecidas como
expressões da “questão social” por se tratarem de um reflexo de um modo de produção
específico, o capitalismo, que gera riqueza para poucos e socializa a miséria para muitos.
A partir dessa concepção de “questão social” iremos tratar dos autores e dos debates
apresentados articulando com o Serviço Social. Abordaremos especificamente a leitura de Castel
(2008), Cerqueira Filho (1982), Netto (2001) e Iamamoto (2005), pois eles permitem uma leitura
do conjunto do debate sobre a “questão social”. Entretanto, há outros autores no Serviço Social
que realizam esse debate, mas não iremos aprofundar nas diversas polêmicas que eles envolvem.
Nosso objetivo é permitir uma compreensão do significado da “questão social” para o debate que
estamos travando.
O entendimento da “questão social” está relacionada ao debate sobre a ordem social
capitalista. Muito se polemizou sobre em qual momento surgiu, de fato, a “questão social” e qual
o seu significado. Por muito tempo a “questão social” era considerada como o acirramento da
pobreza e das “mazelas sociais”. Pouco se remetia sobre o estudo de sua origem, sobre a análise
de seus fundamentos. Entretanto, há que se destacar que a interpretação sobre o surgimento da
“questão social” é muito vasta. Há autores que demarcam seu surgimento atrelado a formas de
pobreza, a naturalizam ou realizam um resgate da sociedade feudal de forma a entendê-la a partir
da evolução das formas de ajuda como é o caso de Robert Castel. Nesse sentido, é relevante
46
resgatar um pouco do debate desses autores.
Robert Castel sinaliza que a “questão social” surge na Europa em um determinado
momento da sociedade feudal. Castel realizou uma análise conservadora ao dizer que os pobres
buscavam viver à custa dos ricos, que eles se acomodavam na condição social em que se
encontravam, que não gostavam de trabalhar e que eles eram o ópio da sociedade. Ele fez um
resgate da assistência considerando que no século XVIII a proteção era destinada para os que não
estavam no mercado de trabalho, era destinada aos excluídos sociais. Para entender a assistência,
Castel afirmou que era necessário retomar a situação histórica da Idade Média. Essa não deixava
de ser uma forma de naturalizar a “questão social”, pois a remetia a antigas formas de ajuda e
filantropia, a antigas formas de intervenção nas mazelas sociais, ou seja, ele desestoricizava e
deseconomicizava8.
Castel (2008, p. 51) demonstra uma clara concordância com a idéia de Durkheim de
integração, solidariedade, harmonia social, coesão social ao dizer que: “Há risco de desfiliação
quando o conjunto das relações de proximidade que um indivíduo mantém a partir de sua
inscrição territorial, que é também sua inscrição familiar e social, é suficiente para reproduzir sua
existência e para assegurar sua proteção”.
Para Castel as práticas protetoras e integradoras sinalizam uma especialização que permite
pensar na possibilidade de uma profissionalização. Acrescenta que o atendimento social nunca é
8
Um autor que também aproxima sua leitura a naturalização da “questão social” é Wanderley (2000). Ele realiza
leituras sobre o significado e a emergência da “questão social” ao tratar de suas particularidades na América Latina e
afirmar que essa se faz presente desde a colonização até a existência das políticas sociais. Qualquer expressão de
desigualdade para ele pode ser considerada “questão social”. Vale mencionar que Wanderley (2000) destaca o
pensamento de Castel. Ele concorda com Castel quando afirma que a “questão social” surgiu atrelada a questão do
pauperismo, mas ele diz, ainda que, a trata de uma maneira muito mais ampla, pois a considera desde o período da
colonização. Sua concepção é a de que: “A questão social significa, desde logo, saber quem estabelece a coesão e em
que condições ela se dá numa determinada sociedade. Como é sabido, no caso latino-americano, ela foi imposta
pelos colonizadores por meio do pacto colonial, e segue dirigida pelo pacto de dominação burguesa” (Wanderley,
2000, p. 56). Wanderley associa a “questão social” a existência de diversos modos de produções já que ela deriva de
uma falta de coesão social. Para ele não trata-se apenas da pobreza, mas sim das desigualdades e das injustiças
sociais. Ele diz que a “questão social” só se torna pública quando um setor da sociedade decide torná-la uma
demanda política. Isso só ocorre no capitalismo, por isso que ela é associada a esse modo de produção. Porém, ela
existe bem antes disso. Para ele, “a questão social implica questões de integração e inserção, reformas sociais ou
revolução, e correntes de idéias as mais diversas que buscam diagnosticar, explicar, solucionar ou eliminar as suas
manifestações” (Wanderley, 2000, p. 60).
47
feito em domicílio, mas sempre é realizado em um local institucionalizado especializado como
em um hospital,
essas práticas sempre apresentam pelo menos esboços de especialização, núcleos de uma
profissionalização futura. Não é qualquer um, de qualquer modo, em qualquer lugar, que
tem a responsabilidade desse tipo de problemas mas, sim, indivíduos ou grupos
mandatados, ao menos parcialmente, para fazê-lo e identificados como tais. Por
exemplo, o pároco, o fabriqueiro, um oficial municipal (...) já são, à sua maneira,
“funcionários” do social à medida que seu mandato é, ao menos em parte, assegurar esse
tipo de atividade especial. A delimitação de uma esfera de intervenção social suscita,
assim, a emergência de um pessoal específico para instrumentalizá-la. É o esboço da
profissionalização do setor social (Castel, 2008, p.57).
Um dos equívocos de Castel é pensar que, como ele diz, o “social” possa ser
compreendido de forma igual em sociedades com modos de produções diferentes. A grande
diferença é que no modo de produção capitalista é necessário a pobreza e a miséria, os
“sobrantes” do mercado de trabalho, para a própria reprodução do sistema, o que não era uma
necessidade posta em outros modos de produção. Ele também associa a profissionalização do
social a tipos de intervenções sistemáticas como as da Igreja e a dos donos dos meios de
produção. Para ele, o fato de intervirem no “social” já os tornam um profissional dessa área.
Castel irá fazer uma distinção entre capazes para trabalhar e os incapazes para o trabalho.
Aos últimos sobraria o assistencial9. O autor trata de um aspecto social-assistencial que depende
da territoriazição do atendimento para se efetivar, ou seja, do domicílio. Esse tipo de atendimento
é voltado para os incapazes de trabalhar. Por isso, escamoteado nesse debate há ainda a questão
do trabalho. A princípio, a assistência tinha uma relação próxima com a Igreja que pregava a
pobreza como uma forma de redenção. Para tanto, o autor resgata o pensamento da Igreja em
seus primórdios. “O cristianismo medieval elaborou, dessa maneira, uma versão fascinante, e
única, da exaltação da pobreza baseada na consciência exarcebada da miséria do mundo” (Castel,
9
Vale a pena resgatar um pouco desse debate, pois ele possui tênue relação com o Serviço Social. Houve uma forte
concepção na profissão, e de certa forma permanece, de que o Serviço Social era a racionalização da assistência.
Cabe destacar que o Serviço Social apresenta-se polarizado por duas concepções, a concepção crítica e a que entende
o Serviço Social como decorrente da racionalização da assistência. Há também aqueles que pensam existir ambas, ou
seja, é uma continuidade da assistência e uma profissão que surge no capitalismo monopolista, isso ainda se
manifesta como algo confuso na profissão. Essa imagem estava muito relacionada ao debate sobre a origem do
Serviço Social e foi discutida a partir da perspectiva endogenista. Hoje, retoma-se essa concepção devido ao
fortalecimento da política de assistência social e desta se constituir como um vasto campo de inserção profissional.
48
2008, p.68).
Entre os critérios que permitem a situação de assistido estão: “a incapacidade física, a
velhice, a infância abandonada, a doença – de preferência incurával – e as enfermindades – de
preferência insuportáveis ao olhar” (Castel, 2008, p. 68). Ou seja, critérios voltados para os
considerados os “frágeis” na sociedade. Os discursos moralizadores, carregados de julgamentos
em relação aos assistidos, perpassam esse momento histórico e chegam aos dias atuais. A
reprodução da idéia de que “viver da assistência pode virar uma quase-profissão” (Castel, 2008,
p.71)(nosso grifo) é muito comum ainda em nossos dias.
Castel (2008, p. 72) demarca o século XIII como o século em que “o exercício da caridade
tornou-se uma espécie de serviço social local que recebe a colaboração de todas as instâncias que
dividem a responsabilidade pelo ‘bom governo’ da cidade”. É importante destacarmos que o
autor trata da assistência como algo que se desenvolveu e atingiu o formato atual. Entretanto, o
século XIII não apresentou política de assistência e sim ações pontuais e emergenciais.
Entretanto, percebermos associações dessa concepção ao formato da política assistencial no
sentido de moralizar e julgar a pobreza e conceber a assistência social como uma forma de ajuda
aos que necessitam. Não existe uma evolução de formas anteriores do que ele denomina de
social-assistencial para o que hoje chamamos de política de assistência social. São concepções
diferentes em sociedades diferentes. Não podemos identificar ações sociais voltadas para
amenizar as mazelas sociais com a política social pública voltada para amenizar a “questão
social”. Mas podemos constatar que o autor concebe de forma diferente ao dizer que a assistência
“deve ser lida como continuidade e não como ruptura no que diz respeito às políticas do século
XVI, das quais representa uma fase de organização ulterior mais elaborada, para se entender o
fracasso das primeiras políticas municipais” (Castel, 2008, p. 74).
Na nossa análise, a concepção do autor é de que há um desenvolvimento de práticas
assistenciais que parte da Igreja, pois esta foi por muitos anos administradora da assistência. Ele
confunde formas de ajuda e de caridade com assistência, além de sua concepção de assistência
ser equivocada.
Castel (2008, p. 84)) demonstra como a cultura da ajuda aos pobres perpassa por todos
49
esses séculos ao dizer que “em toda sociedade, e uma sociedade cristã não constitui exceção, o
pobre deve demonstrar muita humildade e exibir provas convincentes de seu infortúnio para não
ser suspeito de ser um ‘mau pobre’”. Isso significa a necessidade de comprovação de pobreza,
mas não é só isso, é necessário estar inapto ao trabalho essa é a primeira condição para ser
assistido. Essa idéia é muito forte na política assistencial que se desenvolve atualmente no Brasil,
não basta ser pobre tem que ser miserável e provar tal situação para se ter “direito” a política de
assistência.
Dentre as perspectivas críticas sobre a “questão social” podemos mencionar a de Gisálio
Cerqueira Filho (1982). O autor preocupa-se em fazer uma análise do Brasil e ao apresentar “a
‘questão social’ como um problema concreto no Brasil e, de resto, no mundo, no quadro do
processo de industrialização e de implementação do modo de produção capitalista e do
surgimento do operariado e da fração industrial da burguesia” (Cerqueira Filho, 1982, p. 57). O
autor concebe a “questão social” a partir da conjuntura de surgimento da industrialização
capitalista, ou seja, no quadro da sociedade capitalista e não como uma expressão existente em
vários tipos de sociedades distintas. Ele afirma que esse processo ocorre na década de 1930.
Assim, para o autor a “questão social” aparece como “expressão concreta das contradições entre
capital e trabalho no interior do processo de industrialização capitalista” (Cerqueira Filho, 1982,
p. 58). Ele ainda complementa dizendo que inicialmente a “questão social” era tratada como caso
de polícia através da repressão. Isso acontece quando ela passa a ser reconhecida pela classe
dominante e é considerada uma ameaça à sociedade.
Cerqueira Filho (1982) mostra como a “questão social” é reconhecida pelos diversos
setores da sociedade brasileira. A compreensão de seu significado assume instâncias
diferenciadas, mas vale destacar que apenas para a classe operária esta é uma questão central. O
autor demonstra que quando a classe dominante reconhece que a “questão social” tem relação
com a questão política desenvolvem-se formas de enfrentá-la e de combatê-la. Na década de 1930
a “questão social” apareceu como algo novo que seria reconhecido e legitimado pelo Estado e
nesse momento ela foi apreendida em sua relação com as questões trabalhistas. “A ‘questão
social’ havia se transformado em questão eminentemente política, num fenômeno que requeria
50
soluções mais sofisticadas de dominação e que não podia se resumir a ‘chamar a polícia’”
(Cerqueira Filho, 1982, p. 75). Ainda nessa década aumentou o número de trabalhadores, por isso
a “questão social” tornou-se mais latente e seu reconhecimento tornou-se cada vez mais
necessário por parte do Estado e da classe dominante. Por isso, ocorreu uma ampliação das
intervenções em relação a “questão social”.
Quanto a classe dominante cabe questionarmos como ela apreendia a “questão social”.
Assim, vale destacar a seguinte passagem:
O discurso burguês liberal típico tem sempre uma margem possível real e concreta de
ilusão ideológica quando, absorvendo e lidando com o conflito social, afirma a sua
inexistência. O discurso burguês autoritário/ totalitário se afirma nos momentos de crise
e esta é culpabilizada pelo conflito, que afinal, deve ser evitado por um discurso e uma
prática autoritários/ totalitários. Isso se passa nos contextos europeu e americano de
industrialização, e também aqui no Brasil (Cerqueira Filho, 1982, p.91).
Isso significa dizer que a classe dominante assumiu que existia uma “questão social”
devido a pressão da classe trabalhadora que crescia numericamente e expunha as condições
sociais nas quais vivia. Como as manifestações da “questão social” tornavam-se cada vez mais
evidente, ela passou a ser reconhecida pela classe dominante dentro de sua perspectiva de classe.
Portanto, não poderia reconhecer que a “questão social” estava associada aos conflitos da relação
entre o capital e o trabalho. O autor sinaliza que mesmo dentro da perspectiva da classe
hegemônica os posicionamentos quanto ao tratamento oficial que deveria ser dado a “questão
social” não eram unânimes. Havia divergências, mas que não se constituiram como uma
oposição. Nesse sentido, uma das formas de enfrentamento por parte da classe dominante, via
ações estatais, era através do autoritarismo e do paternalismo, acarretando em impactos
diretamente sobre a classe trabalhadora. “De fato, a forma como o Estado legislou e agiu
autoritária/ paternalisticamente com relação à ‘questão social’ obstaculizou a expansão do
movimento operário autônomo e independente que se restringiu a protestos isolados pela
imprensa, esta também isolada” (Cerqueira Filho, 1982, p. 102).
As intervenções estatais no plano da “questão social” foram no sentido de enquadrar e
moralizar a vida dos trabalhadores. A tentativa era desarticular os movimentos da classe
trabalhadora e abafar toda e qualquer manifestação de reivindicações sociais. Por isso,
51
A partir de 37, porém, o Governo, através dos Aparelhos de Estado, notadamente o
Ministério do Trabalho, conjugará os efeitos ideológicos e repressivos e procurará
circunscrever as soluções trabalhistas à ótica dos grupos sociais dominantes. Nesse
sentido, e particularmente na visão das classes trabalhadores, a “questão social” será
tratada como caso de polícia, como já o fora antes de 1930 (Cerqueira Filho, 1982, p.
108).
O autor sinaliza ainda que antes de 1930 a “questão social” era tratada como uma questão
ilegal e após a década de 1930 como uma questão de polícia sendo duramente reprimida. Havia o
reconhecimento das reivindicações dos trabalhadores no sentido de serem considerados uma
ameaça à ordem dominante. Essa repressão apareceu de diversas formas, seja como expressão
física, como um discurso ideológico, como uma repressão legal (através de leis). Dentre as
principais leis que visavam restringir os direitos dos trabalhadores e seu poder de mobilização
destacaram-se as leis trabalhistas que restringiram o direito de greve e o sindicalismo autônomo,
não vinculado ao Estado (Cerqueira Filho, 1982).
A forma como a “questão social” aparece no discurso dominante na sociedade brasileira
permite compreender as atuais formas de enfrentamento da “questão social” e como ela é tratada,
pois
O discurso político dominante sobre a ‘questão social’ é o discurso político do capital,
adaptado às condições conjunturais da formação histórica brasileira; vale dizer, calcado
no autoritarismo e na conciliação, isto é, no paternalismo. Aliás, em nenhum momento o
discurso político dominante perde o seu caráter elitista, autoritário, presente de forma
específica na formação social brasileira, aliado a uma interpretação fundada no sistema
do favor (Cerqueira Filho, 1982, p. 119).
Entendemos a “questão social” nos marcos do pensamento de Cerqueira Filho (1982, p.
122) ao dizer que: “quanto maior o desenvolvimento da forma especificamente capitalista de
produção mais nítido o antagonismo entre o capital e o trabalho; mais claramente eles tendem a
se opor de maneira radicalmente antagônica”. A “questão social” é, na realidade, expressão dessa
relação. Enquanto houver exploração capitalista haverá “questão social”, suas expressões podem
mudar de acordo com as mudanças do modo de produção capitalista, mas as origens da “questão
social” em si não são alteradas.
Pelo exposto constatamos que são muitas as interpretações sobre o significado da
“questão social” que perpassam por naturalização, moralização, individualização no atendimento
52
e psicologização da “questão social” até as que a concebem sob uma perspectiva crítica. Todas
elas assumem a existência de uma “questão social”, mas, geralmente, tem-se uma leitura
equivocada e fragmentada da realidade na sua compreensão. A perspectiva dominante a
reconhece no sentido de amenizá-la, de apaziguar suas expressões. Somente a classe trabalhadora
é capaz de enfrentá-la em suas raízes. Dessa forma, é no Estado que se percebe a principal tensão,
pois ele atende a ambos os interesses. A partir dessa perspectiva geral sobre a forma como a
“questão social” é concebida iremos tratar da contribuição do Serviço Social sobre esse debate.
Netto (2001) constata que após a ditadura militar vigente no Brasil o debate sobre a
“questão social” entra na academia, mais especificamente, o Serviço Social passa a ancorar sua
formação e intervenção profissional a partir da compreensão e da intervenção sobre a “questão
social”. O autor demarca cinco pontos para discorrer sobre o que compreende a respeito da
“questão social”.
Primeiro ele sinaliza que a expressão “questão social” começa a ser utilizada no século
XIX e aparece quase que simultaneamente com o surgimento da palavra socialismo. É uma
expressão usada para tratar do pauperismo proveniente do desenvolvimento industrialconcorrencial do capitalismo. Nesse período a expressão “questão social” se remetia as
desigualdades sociais, apesar de aparecer como algo novo, as desigualdades sociais e a pobreza já
existiam antes mesmo desse estágio do capitalismo. Entretanto, a forma como a pobreza se
expressava parecia inédita: “a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade
social de produzir riquezas” (Netto, 2001, p. 153) e com esta nova dinâmica os pauperizados se
manifestavam e apareciam como uma ameaça a ordem social.
O segundo ponto que Netto (2001) levanta refere-se ao fato de que, a partir do século
XIX, a expressão “questão social” passa a ser usada pelo pensamento conservador. Isso ocorre
após a revolução de 1848 quando a burguesia finda sua posição progressista e assume uma
posição conservadora. Torna-se difícil compreender a “questão social” a partir de seus
fundamentos econômicos, sociais e políticos, por isso ela não manifesta na aparência seu caráter
histórico e é naturalizada. Ela passa a ser percebida como uma questão ineliminável de toda e
qualquer ordem social, porém pode ser reduzida e minimizada. Busca-se uma reforma moral do
53
homem e da sociedade. Nesse sentido, a “questão social” é desvinculada de qualquer
problematização da ordem econômico-social.
O terceiro ponto, que o autor levanta, trata da compreensão do significado da “questão
social”. Esta só é possível de ser entendida através da lei geral da acumulação capitalista, ou seja,
por uma leitura marxista da realidade social. A “questão social” é uma expressão para tratar de
algo maior, ou seja, da dinâmica da sociedade capitalista e das suas consequências sociais. Marx
não usa essa expressão, mas através de suas leituras é possível conhecê-la. Ela é determinada pela
relação capital/ trabalho, ou seja, pela exploração, ela está posta no marco das contradições e
antagonismos do sistema capitalista e só é suprimível se as condições nas quais o sistema
capitalista geram a riqueza social for findada.
No quarto ponto Netto trata do debate sobre a “nova questão social”. O autor diz que com
o Estado de bem estar social a “questão social” é remetida como um problema dos países
“subdesenvolvidos”. Com a globalização e o neoliberalismo constata-se que o capitalismo não
tem nenhum compromisso com o “social” e nesse sentido a “questão social” continua cada vez
mais acentuada e se manifestando com novas expressões. Dessa reconfiguração surgem aqueles
que concebem a existência de uma nova “questão social”, entretanto a “questão social” mantém
seu significado ao refletir as contradições da relação capital/ trabalho.
Por fim, Netto nega a existência de uma nova questão social e diz que,
existem
novas
expressões da “questão social”, mas não uma nova “questão social”. Para compreendê-la é
necessário uma leitura das particularidades histórico-culturais e nacionais de determinada
realidade e conjuntura. O autor afirma que o Serviço Social não tem sentido sem a existência da
“questão social” e que esta só é suprimível com o fim da sociedade capitalista.
Algumas considerações precisam ser pontuadas acerca deste texto. Primeiro, o autor
apresenta um panorama do debate sobre a “questão social”. É importante destacar que a
expressão “questão social” por si só nada explica. Ela pode ser remetida a uma compreensão
crítica sobre a sociedade capitalista ou ser utilizada sobre a ótica de uma apreensão conservadora.
Netto nos demonstra que na realidade a “questão social” expressa as contradições da relação
capital/ trabalho. Ao mesmo tempo em que o capitalismo se reproduz e acumula riqueza ele gera
54
também uma população que vive da venda de sua força de trabalho e que não está inserida no
mercado de trabalho, encontrando-se cada vez mais pauperizada. Essa parcela da população
pressiona os que estão inseridos no mercado de trabalho a venderem sua força de trabalho pelas
condições impostas pelo empregador. Além disso, para o capitalismo a miséria cresce de forma a
ameaçar a ordem através de reivindicações dos que se encontram em estado de pobreza, ou seja,
da organização e luta da população por mudanças na sociedade.
Diante do exposto, consideramos que a “questão social” se acentua em proporção ao
desenvolvimento das forças produtivas, quanto mais se desenvolve as formas de se obter a
acumulação do capital mais ela se torna latente, mais ela se constitui como uma ameaça a ordem
social, porém esse processo não ocorre de forma natural e sim permeado de contradições. Nesse
sentido, várias são as formas de enfrentá-la, seja através das políticas sociais seja através da
repressão e da violência policial. O Serviço Social trabalha com as expressões da “questão social”
e é demandado tanto por parte de seus empregadores quanto por parte da população usuária dos
serviços com os quais trabalha, a dar respostas imediatas as suas demandas. O que diferencia tais
demandas por parte do empregador e por parte da população é o interesse político, social e
econômico. Por parte do empregador a pretensão é não desestabilizar a produção capitalista e
manter a propriedade privada dos meios de produção. Por parte da população é manter condições
dignas de existência nas quais suas necessidades sociais sejam supridas e para tanto é necessário
a redistribuição de riquezas.
Outra autora que trata deste debate é Iamamoto (2005) ao discorrer sobre a relação do
Serviço Social com a “questão social”. Ela aborda a incorporação do debate da “questão social”
na profissão à luz do contexto de globalização do capitalismo mundial. Para Iamamoto a “questão
social” é a base de requisição da profissão como uma especialização do trabalho e é entendida
como um conjunto de expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, portanto, ela
é produção de desigualdade e de rebeldia. São as expressões da “questão social” que constituem o
objeto de trabalho cotidiano do profissional. Nesse sentido a autora trabalha com a idéia de que a
“questão social” é a matéria-prima do trabalho do assistente social. Ela expressa as formas de luta
da população através da resistência material e simbólica, “apreender a questão social é também
55
captar as múltiplas formas de pressão social, de invenção e de re-invenção da vida construídas no
cotidiano” (Iamamoto, 2005, p. 28).
Iamamoto pontua que nesta conjuntura o Estado se retrai e confere espaço para a
intervenção empresarial que resgata a “tendência à refilantropização social”, assim, por mais que
haja uma maior inserção de assistentes sociais nas organizações não governamentais (ONG) e nas
empresas, tal inserção ocorre sobre a perspectiva de resgatar uma visão conservadora. É sobre o
discurso da solidariedade social que cresce a filantropia e gera uma privatização dos serviços
públicos. Por outro lado, na esfera estatal os postos de trabalho são reduzidos, pois o Estado passa
a se responsabilizar apenas pela camada mais pauperizada da população, já a maior parte das
necessidades sociais são atendidas pelo mercado.
A análise da autora é pertinente e nos faz refletir sobre o significa social da profissão. O
Serviço Social é requisitado para trabalhar diretamente com as expressões da questão social, mais
do que uma análise sobre o período histórico em que tal requisição se tornou uma necessidade, é
importante pensar a profissão inserida em um contexto de capitalismo maduro e consolidado.
Não é só a “questão social” que se torna condição para a existência da profissão, é também o
estágio avançado do desenvolvimento das forças produtivas que acentuam as expressões da
“questão social” e as tornam latentes.
Tanto Netto quanto Iamamoto apresentam a preocupação em recorrer a uma leitura da
“questão social” que permite uma compreensão do Serviço Social, por isso recorrem a uma
análise do Estado e das políticas sociais. As obras destes autores demarcam análises ricas de
conteúdo crítico que auxiliam ao leitor a compreender a “questão social” como uma expressão
ineliminável da sociedade capitalista, que gera suas contradições, mas sempre entendida dentro
de um movimento complexo e rico de mediações.
Mesmo a partir da perspectiva crítica podemos perceber que há divergência na concepção
de “questão social” dos autores citados. A amplitude de concepções acerca do significado da
“questão social” nos remete a pensar que a mesma só pode ser compreendida a partir das relações
que se estabelecem em um determinado tipo de sociedade. A “questão social” em si é expressão
dos antagonismos e contradições das relações estabelecidas na sociedade capitalista. Ela provém
56
da relação capital e trabalho e se reflete de diversas formas como no desemprego, na pobreza, na
miséria, na fome, nas condições de sobrevivência. A compreensão dessas relações permite o
entendimento do significado da “questão social” e nos permite analisar seus rebatimentos para o
Serviço Social.
1.3. A sociologia em xeque: expressão do conservadorismo
Após realizarmos uma análise do pensamento de Lukács sobre a organização da sociedade
capitalista e seus elementos de fundamentação, assim como da breve apresentação do debate da
“questão social” pelo Serviço Social, cabe discutir quais são as manifestações intelectuais que
contribuem para a manutenção dos interesses da classe dominante. Nesse sentido, iremos tratar
do surgimento da sociologia como uma proposta alternativa a crise do pensamento crítico, como
disse Lukács, momento de expressão da razão miserável.
Machado (1997) discorre sobre a contribuição de Gouldner acerca da análise da
sociologia. Ela destaca a posição de pesquisadores e sociólogos quando ao pensamento de
Gouldner e o apontam por suas influências distintas, o que o coloca em um campo de pensamento
eclético. Gouldner aborda a sociologia como uma resposta à cultura utilitária. Machado aponta
uma conseqüência entre a relação da sociedade norte-americana e o utilitarismo: a sociedade de
classe média desenvolve uma visão instrumental das instituições sociais.
Em sua análise de Gouldner, a cultura utilitária condiciona a sociedade em dois sentidos:
primeiro, a força a estudar problemas sociais limitados (no caso, o empirismo) e segundo, busca
preencher um “vazio conceitual” a levando a procurar uma “grande teoria”. Para Gouldner, a
cultura utilitária está relacionada à classe média articulada como um estrato social autônomo em
relação aos detentores do poder político econômico – a burguesia – e possui um peso
considerável com características da modernidade. “A cultura utilitária é a cultura da sociedade
burguesa na transição do século XVIII ao XIX” (Machado, 1997, p. 127). A cultura utilitária se
57
mantém a partir do programa da modernidade quando a sociedade burguesa se constitui e passa a
ser internalizado por ela.
Ao citar Goudner, Machado diz que o autor pontua características marcantes do
surgimento da sociologia. Primeiro, ela não teve aceitação da classe média. Segundo, a sociologia
realizou, em seu campo, uma separação entre o econômico e o social. A relação entre
pragmatismo, positivismo, sociologia e conservadorismo fica clara quando constata-se que a
sociologia surge a partir do positivismo no século XIX e passou a reger o conjunto da perspectiva
sociológica, exigindo do sociólogo uma postura objetiva.
Pela leitura de Gouldner podemos destacar que o surgimento da sociologia parte do
interesse de segmentos antigos da sociedade que perderam seu poder social assim como de novos
estratos sociais que não estavam totalmente desenvolvidos. Em comum tais segmentos
apresentavam a característica de não se identificarem com as necessidades da propriedade
burguesa. O reconhecimento da sociologia só ocorreu a partir do momento em que a
industrialização se aprofundou.
Ainda na análise de Gouldner é com a articulação do funcionalismo à sociologia que
ocorreu uma compatibilidade desta com a ordem burguesa. O funcionalismo respondeu pela
relação da sociologia à cultura utilitária, expressando o conservadorismo sociológico e
articulando a sociologia acadêmica e a sua profissionalização.
Machado ressalta que Gouldner trata do romantismo e percebe um caráter ambivalente,
pois ele pode servir à direita como pode associar-se a uma crítica proletária à constituição da
classe média. Dessa forma, demonstra que Weber10 não foi adepto da cultura utilitária e ressaltou
10
Há de se destacar que Weber foi influenciado pelo materialismo histórico e pelo positivismo, porém criticou os
limites de ambos. Sua proposta era dar continuidade ao materialismo histórico visando compreender a relação entre a
estrutura e a superestrutura. Questionava o poder da estrutura sobre a superestrutura. Seu objetivo era construir um
método de análise da história, era trazer a questão dos valores. Criticou o fato de se explicar a sociedade apenas
através da economia, pois era necessário buscar também os valores sociais. Por isso ele investigou as razões do
capitalismo ter se iniciado em alguns países e concluiu que a ética protestante favoreceu o comportamento
econômico racional. É importante destacar que Weber era de família protestante e burguesa e que desenvolveu
também discussões sobre o patriarcalismo e sobre o feminismo. Ele se opõe a Durkheim e a Marx porque acreditava
que nenhuma ciência pode dizer como os indivíduos devem se comportar, nem como devem se organizar. A ciência
também não pode projetar o futuro para os homens, estes, através de suas ações, que deverão fazer isso. Weber
distingue ação de ação social. Por ação ele compreende a conduta humana com significado para o sujeito. A ação
social é a ação que tem em vista outros agentes, refere-se ao comportamento humano. Assim, a sociologia tem como
58
os valores morais e os conflitos decorrentes de tais valores. Weber desenvolveu uma concepção
pessimista do desenvolvimento da sociedade capitalista.
Concordamos com Machado quando esclarece que Gouldner tem por objetivo nesta obra
“livrar sua ciência [a sociologia] da acusação de reacionarismo e/ ou de conservadorismo”
(Machado, 1997, p 137). Ele realiza essa busca porque, segundo suas leituras, a sociologia se
desenvolveu em três direções: o funcionalismo, o marxismo e o weberianismo.
No centro dessa análise, Gouldner situa o conservadorismo sociológico não como um
simples conteúdo teórico ou uma mera inclinação política (...): o pensamento
conservador na sociologia se expressa, sobretudo, numa perspectiva metodológica que
permite (re) conciliar a teoria social como ethos utilitário da sociedade capitalista na sua
configuração mais acabada [os Estados Unidos] (Machado, 1997, p. 138).
E prossegue mais adiante:
Ao deslocar a análise do conservadorismo para o interior da sociologia, num
procedimento autocrítico, Gouldner levou a sociologia do conhecimento ao extremo da
objetivo interpretar e compreender a ação social e seus efeitos sobre os indivíduos. Os tipos ideais são construções
hipotéticas, são classificações do sentido subjetivo dos indivíduos para seus atos. Estão ligados a noção de
compreensão e ao processo de racionalização que é típico da sociedade moderna. É a expressão do esforço de todas
as disciplinas científicas e está vinculado a concepção de causalidade permitindo perceber indivíduos e grupos
históricos. O tipo ideal é uma percepção parcial de um conjunto global, mesmo que aparente abranger toda a
sociedade. Sua sociologia é compreensiva porque ele afirma que a postura do sociólogo deve ser compreensiva, deve
compreender como as ações sociais dos indivíduos se desenvolvem. A tarefa do sociólogo é tornar inteligível a ação
social. A sociologia é considerada a ciência da ação social fundamentada na compreensão, na interpretação e na
explicação. Ela tem a preocupação de produzir generalizações. A sociologia, diferente do que afirma Durkheim, não
lida com explicações funcionais e sim com explicações causais. Ela busca no significado das ações conexões, causas
que se sucedem. A sociologia compreensiva está baseada na análise social, esta não possui relações com as leis
naturais, diferente do que afirma Durkheim. Weber distingue as ciências da história e da sociedade com as ciências
da natureza. A sociologia compreensiva conta com hipóteses sobre aspectos da realidade. Isso quer dizer que a
ciência visa compreender a ação social de forma interpretativa. Diferente de Durkheim, Weber considera as
experiências pessoais e os aspectos subjetivos na análise da realidade. O objetivo da ciência é atingir a evidência.
Esta é complicada de se entender quando são diferentes de nossos valores. A compreensão pode ter caráter racional
ou ser intuitivamente compreensiva, entretanto, o método da sociologia compreensiva é racionalista. Aqui, a
racionalidade resulta do respeito pelas regras, da lógica e da pesquisa para que os resultados sejam válidos. A ação
orientada por um fim de forma racional se apresenta à sociologia como um tipo ideal. É por isso que ele afirma que a
princípio o conhecimento existiu baseado em observações empíricas para em seguida ser realizada a interpretação.
As interpretações pretendem alcançar evidências, mas não podem, por esse motivo almejam se constituírem uma
interpretação causal válida. Ela é na realidade uma hipótese causal de evidência particular. Para uma leitura
aprofundada da obra de Weber ver Aron. As etapas do pensamento sociológico (1997), Cohn. Weber – sociologia.
(1991), Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo (1996), Weber. Economia e sociedade (1994).
59
sua radicalidade, construindo, com referências mais amplas e distintas, uma sociologia
da sociologia que se, na sua ótica, é a condição elementar para a “sociologia reflexiva”,
para nós representa o máximo de crítica possível ao conservadorismo a partir das
próprias fronteiras da sociologia (Machado, 1997, p. 139).
Assim, podemos dizer que Gouldner se preocupa em constituir e consolidar a sociologia
crítica como uma alternativa a sociologia acadêmica. Esse é seu principal esforço. Ainda assim, o
autor nos permite uma leitura das influências sociológicas e nos fornece possibilidades de
entendimento do surgimento da sociologia. Nesse contexto, apresentaremos algumas notas de
análise do pensamento de Gouldner.
O autor citado não distingue o marxismo da sociologia acadêmica, pois, para ele ambos
são divisões dentro da sociologia. Por outro lado, Gouldner apresenta um panorama do
surgimento da sociologia acadêmica, apresenta seus limites, sua relação com o modo de ser
norte-americano e defende a possibilidade de se consolidar uma sociologia crítica. Seu trabalho
torna-se importante para o nosso debate, pois ele apresenta um claro panorama da cultura norteamericana e da leitura realizada pelos pensadores provenientes dos Estados Unidos sobre a
relação teoria/ prática.
Conforme sinalizamos, com a chegada da burguesia ao poder, seus interesses de classe
passaram a ser o centro de seu domínio. A defesa dos interesses do conjunto da sociedade
deixaram de ser prioridades para a classe dominante. Abre-se caminho para uma forma de pensar
atrelada a uma nova organização social proposta pela burguesia. O espaço é propício para o
desenvolvimento de pensamentos conservadores e irracionalistas.
Goulner (1970) tratou desse momento ao destacar o surgimento da sociologia. O objetivo
do autor foi produzir uma leitura crítica da missão social da sociologia acadêmica e formular
algumas idéias sobre a esfera social, as ideologias que expressam e o vínculo que mantém com o
conjunto da sociedade. Ele realizou algumas críticas que cabem ser destacadas.
Goulnder (1970) demonstra que no século XIX há um abismo entre teoria e prática muito
comum nos movimentos radicais norte-americanos. Apontou que esse período foi marcado pelo
pragmatismo e por influências conservadoras.
Mesmo que o descuido com a teoria não seja peculiar dos norteamericanos, uma de suas
causas é também o fato de que os radicais desse país pensam ser mais norteamericanos
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do que supõem e tendem a preferir os resultados concretos da política pragmática aos
produtos intangíveis da teoria (Gouldner, 1970, p. 13) (tradução nossa).
Gouldner (1970) demonstra como é compreendida a relação teoria e prática nos Estados
Unidos. Um dos fatores que pode ter contribuído para esse distanciamento foi o surgimento da
sociologia entre as décadas de 1940 e 1960, que se expressou como parte da cultura popular
devida a influência acadêmica e a vasta produção da área. A sociologia passou a fazer parte da
cultura cotidiana e teve um efeito paradoxo frente às atitudes adotadas por alguns pensadores em
relação à teoria social e aos problemas sociais. Passou a fazer parte de uma cultura global junto
com as ciências sociais e com a literatura popular.
Os norte-americanos pensavam as ciências sociais como um aspecto da cultura cotidiana.
Começaram a substituir a ação pela discussão da natureza dos preconceitos e da pobreza. Aqui
entra o debate da relação teoria/ prática. Segundo a análise de Gouldner esta é uma relação que
pode aparentar ser fragmentada, mas ele entende que mesmo quando não se opta por expressar
uma teoria, ela se faz presente no posicionamento do pesquisador. “Aqueles radicais que crêem
poder separar a elaboração teórica das modificações da sociedade não atuam, na realidade, sem
teoria, mas sim com uma que é implícita e, por fim, não analisável nem aprimorada. Se não
aprendem a utilizá-la conscientemente, serão utilizados por ela” (Gouldner, 1970, p. 14)
(tradução nossa).
Gouldner (1970) realiza uma crítica da apropriação do marxismo pelos norte-americanos.
Ele diz que muitos pesquisadores e pensadores se satisfizeram mediante o marxismo vulgar que
se expressou de forma regressiva e primitivista, pois, segundo sua análise, em um país como os
Estados Unidos que formava poucos economistas e historiadores o marxismo pouco se
desenvolveu. O marxismo que conseguiram produzir foi na década de 1930, quando extirparam
com o stalinismo, mas sequer assimilaram as contribuições de Georg Lukács e Antonio Gramsci.
Os marxistas norte-americanos foram os menos originais e criativos e se limitaram a aplicar a
teoria marxista sem jamais aprofundá-la. Na análise de Gouldner fica claro que o pensamento
norte-americano esteve pouco próximo das apropriações críticas e ficou mais suscetível as
influências conservadoras que confirmassem a lógica de dominação capitalista. Isso demonstra,
de certa forma, a profunda influência do pragmatismo na cultura norte-americana.
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Na leitura de Gouldner (1970) parte da nova geração de pensadores norte-americanos
manifestou repúdio, indiferença e hostilidade às teorias. Apareceu um abismo que separou os
jovens pensadores das velhas linguagens das teorias. Parte desses jovens consideravam as velhas
teorias como erradas e criticáveis, ou as consideram irrelevantes. Eles desconfiavam das teorias
porque a consideravam como algo recebido do passado visto como velho e errôneas e também
com pouco vigor buscando ridicularizá-las ou evitá-las e não realizar uma crítica ou discussão
sobre as mesmas.
Gouldner (1970) destaca o movimento que possibilitou o surgimento da sociologia
acadêmica nos Estados Unidos. Ele se posiciona quanto as críticas à sociologia como um
instrumento conservador de uma sociedade repressiva. Questiona “como pode a sociologia ser
uma expressão absoluta do conservadorismo político?” (Gouldner, 1970, p. 19). Ou seja, ele
deixa claro suas raízes sociológicas, mesmo assim, reconhece que há uma tendência conservadora
predominante na sociologia norte-americana. Essa possibilidade da sociologia permitir o
desenvolvimento do conservadorismo e do radicalismo é vista pelo autor como uma contradição
interna.
Em suma, e para dizer na linguagem da sociologia acadêmica, considero que a
sociologia apresenta suas próprias ‘contradições internas’, as quais, apesar do seu
poderoso vínculo com o status quo e seu profundo traço conservador, ela tem como
conseqüência – involuntária, mas inerente – favorecer as tendências radicalizadoras e
contrárias a ordem estabelecida, em especial entre os jovens” (Gouldner, 1970, p 20)
(tradução nossa).
Gouldner percebe na sociologia uma série de possibilidades de traços conservadores e
críticos, e defende a idéia de que é possível a sociologia se apresentar como alternativa de
pensamento. Um aspecto importante sinalizado é sobre o debate da validade de uma teoria. Para
Gouldner (1970) não é possível supor que a única questão importante seja a validade empírica
dos sistemas intelectuais e que as partes viáveis de cada sistema teórico podem ser selecionadas
por uma mera investigação. A questão não é simplesmente saber quais partes de um sistema
intelectual são verdadeiras ou falsas, mas sim quais são libertadoras e quais são repressivas e suas
consequências. “Em suma, o problema é: quais são os resultados sociais e políticos do sistema
intelectual que examinamos? Libertam ou reprimem os homens? Os prendem ao mundo social
62
existente ou lhes permitem transcendê-lo?” (Gouldner, 1970, p. 21) (tradução nossa).
As implicações ideológicas e as conseqüências sociais de um sistema intelectual
determinam sua validez, pois a teoria é de certa forma autônoma. Em certa passagem, Gouldner
deixa claro que compreende a sociologia acadêmica e o marxismo em limitações parecidas, os
aproximando em suas análises.
A investigação por si só não poderá revelar o potencial libertador da sociologia
acadêmica ou do marxismo histórico. Isto exige também ação e crítica, intenção de
modificar o mundo social e intenção de modificar a ciência correspondente, um e outro
profundamente entrelaçados, mesmo que apenas seja porque a ciência social é tanto
parte do mundo social como uma concepção deste” (Gouldner, 1970, p.22) (grifos do
autor) (tradução nossa).
O autor diz que os críticos mais respeitáveis são aqueles que não se condicionam aos
benefícios imediatos dos resultados e valorizam outros aspectos. Isso só é possível para aqueles
que possuem um sentido vivo da história, se consideram atores políticos e partem de uma
tradição social e intelectual mais prolongada.
Gouldner desta que em um período anterior, antes da intenção em grande escala de
profissionalizar a sociologia, os jovens buscavam o êxito profissional para manifestar sua
perspectiva atacando as idéias de seus antecedentes e dos sociólogos clássicos. Ao ampliar a
profissionalização, os jovens sociólogos foram estimulados cada vez mais a buscar acertar em
suas proposições e análises, a adotarem uma atitude construtiva, positiva, no lugar de uma crítica
negativa e ao invés de atacar a crítica anteriormente elaborada.
A principal influência, senão a mais decisiva, da sociologia acadêmica norte-americana
foi o funcionalismo de Talcott Parsons. A obra de Talcott Parsons “A estrutura da ação social” foi
uma expressão de tal enfoque, seus discípulos retomaram e ampliaram sua ideologia da
continuidade. Essa ideologia é, em essência, uma extensão da perspectiva elaborada pelo
positivismo sociológico do século XIX no curso de sua oposição ao que o autor considera como
crítica negativa da Revolução Francesa e dos filósofos. A convergência resulta em uma maneira
de submeter à prova as concepções, mesmo que ela contradiga o método cientifico formalmente
aceito pela comunidade científica. A ideologia da convergência implica constatar se é possível
demonstrar que os grandes teóricos chegaram a coincidir sem saber que o aspecto produtivo da
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teoria são os acordos tácitos e não as polêmicas aos quais aqueles poderiam dedicar sua atenção.
Implica assim, que apesar dos aparentes desacordos da teoria, a história produziu um resíduo de
consenso intelectual. Essa é uma versão norteamericana do hegelianismo para o qual o
desenvolvimento histórico se produz, não mediante a polêmica, luta e conflito, mas sim mediante
o consenso. O teórico que assim atuasse encontraria uma forma de vincular sua posição com o
passado, ao mesmo tempo em que se manifestava superior a ele. Ele se apresentaria não como
criador de idéias, mas como descobridor de consensos. O ato de descobrir convergências e
continuidades teóricas com a obra de seus antecessores e, em particular, ao atribuir-lhe um
caráter intencional, permitiria ao teórico moderno se apresentar como se ele revelasse aspectos
até agora ocultos de seus precursores, e como se expressasse outra maneira mais precisa e clara.
Ou seja, de acordo com essa perspectiva se buscaria uma forma de manter os ideais já instituídos
através de uma roupagem que escamoteasse as contradições, seria uma forma clara de propagar o
conservadorismo.
Gouldner explica o motivo pelo qual a convergência teve grande entrada nos Estados
Unidos:
O chamado à convergência e a acumulação intelectual começou a cristalizar-se nos
Estados Unidos em condições sociais específicas. Surgiu junto com sentimentos
adequados a solidariedade de ‘frente unida’ da luta política e militar contra o nazismo.
Foi, na prática, o equivalente acadêmico da unidade interna em tempo de guerra, assim
como da unidade internancional entre as potências ocidentais e a União Soviética. Em
suma, o chamado norteamericano a convergência e a continuidade com a teoria social,
esteve socialmente baseado em sentimentos coletivos favoráveis a todo tipo de unidade
social que surgiram em resposta as exigências militares e políticas da Segunda Guerra
Mundial. Com a ruptura da unidade nacional depois da guerra e a posterior
generalização dos conflitos radicais e rebeliões estudantis, a ideologia da convergência e
a continuidade deixou de corresponder ao sentimento coletivo (Gouldner, 1970, p. 26)
(tradução nossa).
Gouldner (1970) demonstra que a sociologia acadêmica foi desenvolvida nos Estados
Unidos por acadêmicos universitários orientados pela classe média estabelecida. Eles procuravam
pragmaticamente a reforma no lugar de revoltar-se ou buscar uma crítica a sociedade na qual
viviam.
Interessante destacar que, segundo a análise apresentada por Gouldner (1970), a origem
da sociologia se desenvolveu no mesmo local da origem do pragmatismo, ou seja na
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Universidade de Chicago nos Estados Unidos. “Depois da Primeira Guerra Mundial, a sociologia
norteamericana se consolidou na Universidade de Chicago, em um ambiente metropolitano no
qual havia prosperado a industrialização e onde proliferaram problemas aos que se consideraram
peculiares das ‘comunidades urbanas’ “(Gouldner, 1970, p. 27) (tradução nossa). Essa relação
nos permite afirmar que o pragmatismo, assim como a sociologia, surgem através de demandas
que visam reforçar os interesses em prol da reprodução capitalista.
A sociologia acadêmica sustenta, em suas primeiras formulações que a sociedade
moderna apresentava problemas que não podiam ser resolvidos sem construir ou adotar novas
pautas. Ela não atribuía os problemas de sua cultura a manifestação de elementos alheios, nem ao
abandono do mal uso de velhos elementos tradicionais suscetíveis de restauração. “Mesmo que a
sociologia acadêmica se voltasse às vezes nostalgicamente ao passado em busca de modelos para
o futuro e julgava a cidade fragmentada, segundo os critérios da zona rural, porém coesiva, sabia
que não podia voltar atrás” (Gouldner, 1970, p. 28) (tradução nossa).
A sociologia acadêmica era propagada como se tivesse algo novo para apresentar. Para a
sociologia acadêmica os problemas expressos na sociedade seriam resolvidos em seu devido
tempo pela própria sociedade que daria respostas aos problemas que produzia.
Goulner faz uma interpretação que aproxima a sociologia acadêmica do marxismo
colocando ambos no mesmo patamar e nas mesmas limitações, como se fossem um paradigma,
enquanto, que em nossa análise, o marxismo não se constitui na mesma base e nos mesmos
pressupostos em que se sustenta a sociologia, nem nos mesmos fundamentos, nem na mesma
base de justificação da sociedade, ao contrário, compreendemos o marxismo a partir de crítica a
sociedade capitalista. Gouldner faz uma comparação entre sociologia acadêmica e marxismo; da
mesma forma que a sociologia acadêmica aparece nos Estados Unidos e na França, o marxismo
aparece no Leste Europeu com o mesmo fim: justificar a sociedade. Nós entendermos que Marx
realiza a crítica da sociedade burguesa e não cria bases para justificar e legitimar o capitalismo.
Retomemos nossa análise: a sociedade acadêmica originou-se na Europa Ocidental,
alcançou influência e impacto na Europa Oriental, entretanto obteve ambiente propício nos
Estados Unidos, onde se institucionalizou no sistema universitário. “O enorme desenvolvimento
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da sociologia nos Estados Unidos é uma manifestação dos constantes esforços da cultura
norteamericana para explorar, enfrentar e controlar sua mudança no meio social” (Goulder, 1970,
p. 28) (tradução nossa). Gouldner realiza um panorama sobre a configuração da sociedade
acadêmica nos Estados Unidos. Cabe destacar uma passagem sinalizada por ele.
Nos Estados Unidos, a sociologia se firmou como disciplina academica durante a década
de 1920, sob o incentivo da Universidade de Chicago. Começou a propagar-se desde o
leste durante a década de 1930, e em seu contínuo desenvolvimento, entre 1940 e 1960,
predominaram as Universidades de Harvad e Columbia. Para meados da década de 1960,
a sociologia norte-americana, financiada pelo Estado-de-bem-estar-social (Welfare
State), se tornou mais institucionalmente policêntrica; o surgimento de centros rivais em
outras partes do país tornou menos articulada a hegemonia daqueles importantes focos
sociológicos. Segundo muitos sociólogos norte-americanos, o principal centro da
sociologia em seu país voltou a constituir-se durante a década de 1960, desta vez na
Universidade da Califórnia, em Berkeley (Gouldner, 1970, p. 28) (tradução nossa).
Ou seja, Gouldner demonstra como a sociologia constituiu escolas e grupos. Era nas
universidades que se desenvolvia todo o conhecimento para consolidar o momento em que o
capitalismo estava vivendo, sendo a Escola de Chicago o primeiro pólo que agregou adeptos a
sociologia acadêmica. Não por acaso, foi na Universidade de Chicago que surgiram as primeiras
idéias do pragmatismo.
Os sociólogos norte-americanos idealizaram diversas técnicas de investigação e
inventaram um conjunto de perspectivas teóricas, publicaram diversas pesquisas, formaram um
quadro de especialistas com dedicação exclusiva cujo número só aumentava, criaram periódicos,
institutos de investigação e novos departamentos, estenderam a influência acadêmica e
conquistaram uma ampla atenção pública. Cometeram todas as formas de equívocos e
vulgaridades previsíveis. Diante dessa conjuntura, a sociologia acadêmica foi se firmando como
parte da cultura norte-americana e a cada ano se institucionalizou de forma mais incisiva nos
Estados Unidos (Gouldner, 1970).
Sobre o crescimento da sociologia acadêmica, Gouldner (1970, p. 29) assim considera:
Depois da Segunda Guerra Mundial a sociologia norteamericana, estimulada pelo Estado
de Bem Estar Social, cresceu a um ritmo mais rápido que em nenhuma outra época
anterior. Ao amadurecer, foi abandonando seu isolamento acadêmico e os sociólogos
ficaram expostos a novas prisões, tentações e oportunidades. Com uma freqüência
crescente, começaram a investigar as “brechas e rachaduras” de sua própria cultura, ao
menos não advertidas por outros profissionais de classe média. Ao mesmo tempo
começaram a viajar para o exterior com mais freqüência e a experiementar os profundos
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efeitos do “choque cultural” resultante. De tal forma, os sociólogos se multiplicaram, se
tornaram mais mundanos, mais experientes, mais poderosos e mais seguros
academicamente. Escalaram posições no mundo, sobretudo depois da Segunda Guerra
Mundial (tradução nossa).
Sobre a concepção que Gouldner tem da sociologia ele esclarece que muitos pensam
tratar-se de uma ciência social e consideram o aspecto científico seu traço mais específico e
importante. Para estes, o método cientifico de estudo em si, e não o objeto estudado ou a maneira
de concebê-lo, é a característica decisiva da sociologia, se não a definidora. Para o autor,
independente da concepção que se tem da sociologia, a maioria concorda que o conhecimento da
vida social exige que em algum momento se realizem investigações e que seus supostos sejam
submetidos a algum tipo de prova empírica e as inferências lógicas a observações sensoriais,
trata-se de um teste de variáveis. A maioria admite que é necessário observar e escutar as
pessoas, além de provar suas experiências e pressupostos teóricos. Tal suposição nos parece
próxima a defesa das idéias pragmáticas, já que há uma necessidade de se colocar à prova as
teorias elaboradas. Os sociólogos devem ser guiados pelos resultados das investigações
realizadas. Eles precisam destacar o papel da teoria e a necessidade dela ser guiada por uma
teoria articulada, explícita e passível de prova. Nesse sentido, os sociólogos tentam empregar um
método que permita obter uma base para submeter à prova uma teoria depois de formulada.
Importante destacar uma passagem na qual o autor aponta uma possível relação entre
pragmatismo e sociologia, segundo nossa análise.
O fato de que os sociólogos se contentem com tal concepção da prova de que não temos
conseguido adquirir consciência de nós mesmos nem levar a sério nossa própria
experiência; pois, como se sabe todo aquele que alguma vez denunciou teorias, sabe que
algumas são aceitas como convincentes e outras criticadas por serem inconvenientes
muito antes de que se disponha os elementos de prova apropriados. Os estudantes o
fazem com freqüência. Ainda que os sociólogos experientes simplesmente aceitem como
convincentes certas teorias e não outas, de maneira intuitiva (Gouldner, 1970, p. 35)
(tradução nossa).
Pela passagem exposta, o autor elucida a relevância da experiência e das provas
científicas para a sociologia. Ao tratar da teoria esclarece a necessidade de se obter uma validade
teórica, atingida através de utilidade prática. Essa idéia se assemelha ao pragmatismo pela sua
67
necessidade de produzir resultados válidos praticamente11.
Gouldner (1970) irá abordar o processo de conhecimento dos sociólogos relacionando a
experiência e as teorias sociais. Assim, diz que os sentimentos surgem da experiência das pessoas
com o mundo, quando, com freqüência, necessita-se apreender coisas que diferem um pouco do
que se supunha que necessitava ou de que foi ensinado. As teorias sociais podem relacionar-se
com sentimento de diversas maneiras e inibir ou estimular em níveis diferentes a expressão de
certos sentimentos. Como caso limite, o nível em que incidem sobre os sentimentos pode ser tão
pequeno que, para todos os fins práticos permite classificá-los como neutros. Isso influi na teoria,
pois a teoria que trata dos sentimentos pode estar suscitando simplesmente respostas apáticas ou
indiferentes, a sensação de que a teoria é de certo modo irrelevante, induzindo assim a evitá-la,
quando não a opor-se ativamente.
Assim, no caso, uma teoria pode exercer um efeito estimulador de coerência, ou
integrador, enquanto que em outro pode exercer um efeito gerador de tensões ou
conflitos; cada um tem diferentes consequencias para a possibilidade de que o indivíduo
adote no futuro determinados cursos de ação, e distintas implicações para diversas linhas
de conduta política (Gouldner, 1970, p. 44) (tradução nossa).
O autor compreende a sociologia a partir da elaboração de experiências pessoais do
sociólogo. Ele diz que se toda teoria social é tacitamente política, ela é também pessoal, já que
inevitavelmente expressa a experiência pessoal de seus autores, a elabora e está impregnada dela.
Uma parte da sociologia deriva do esforço do sociólogo para explorar e universalizar algumas de
suas experiências mais pessoais. Em grande parte, o esforço de qualquer homem para conhecer o
mundo social que o circunda é incentivado pela intenção de conhecer coisas que são
pessoalmente importantes para ele. Trata-se de conhecer a si mesmo e conhecer as experiências
que tem no mundo social. Assim, como modificar, de alguma forma essas relações. Todos os
sociólogos tratam de estudar algo no mundo social que consideram como real e qualquer que seja
a filosofia da ciência procuram explicá-lo em função de algo que eles sentem como real. Igual a
outros homens, os sociólogos atribuem realidade a certas coisas de seu mundo social.
A ideologização da sociologia é uma característica também presente nos sociólogos
11
No terceiro capítulo iremos apresentar uma análise do pragmatismo a partir da leitura de Pogrebinsch (2005) sobre
a obra de James, Pierce e Dewey, os precursores do pragmatismo clássico - assim aprofundaremos esse debate em
outro momento.
68
modernos. Na verdade, se manifesta com plenitude na escola de pensamento que mais insistiu na
importância de profissionalizar a sociologia e de manter sua autonomia intelectual: a que foi
elaborada por Talcott Parsons. A sociologia se repõe e se manifesta atualmente com as propostas
ora apresentadas e também exerce influência no meio acadêmico.
Pela leitura que realizamos de Gouldner podemos dizer que não por acaso a sociologia
acadêmica possui articulação com o pragmatismo. A experiência, a necessidade de por à prova
todas as proposições, a importância de verificar a validade das teorias, são todos pressupostos que
se apresentam como características comuns tanto da sociologia como do pragmatismo.
O debate da sociologia acadêmica nos demonstra como foi necessário o desenvolvimento
de uma forma de pensar a teoria e de formular a ciência a partir das necessidades da sociedade
posta nos Estados Unidos. Todo conhecimento que esteja favorável a um tipo de organização que
permite fortalecer a lógica da organização social do capitalismo terá ampla possibilidade de
propagação na cultura norte-americana e, consequentemente, em outros países.
Postas as observações que destacamos neste primeiro capítulo iremos nos reportar ao
Serviço Social. A partir da exposição que apresentamos iremos abordar no próximo capítulo o
debate do conservadorismo no Serviço Social. Partimos de uma apropriação da análise crítica do
conservadorismo, desta forma nos reportamos à literatura crítica do Serviço Social. Os autores
que iremos tratar fazem a apreensão da relação do Serviço Social com o pensamento conservador
e as possibilidades da profissão apresentar alternativas para consolidar a perspectiva crítica no
Serviço Social. Partimos do pressuposto de que na esfera da fenomenalidade o conservadorismo
se expressa de alguma forma na intervenção profissional. Por outro lado, a apropriação do
pensamento conservador, de suas expressões e influências na profissão nos permitem pensar em
estratégias de intervenção profissional que superem as requisições postas com base no
pensamento conservador.
69
2 - O debate do conservadorismo no Serviço Social
Com a crítica da sociedade capitalista, através da análise de Lukács, pudemos apresentar
um panorama das condições sociais que possibilitaram o surgimento da sociologia.
Compreendemos que a sociologia surge da necessidade de se firmar um tipo de pensamento que
legitimasse os interesses da sociedade que se consolidava. Assim, Gouldner nos mostrou como os
Estados Unidos estabeleceu um ambiente propício para a consolidação da sociologia acadêmica.
Neste capítulo, resgataremos o debate do Serviço Social já que este nos possibilita uma apreensão
crítica dos antagonismos e contradições da sociedade e nos esclarece as bases de requisição da
profissão. É do agravamento da “questão social” no Brasil que se explicita a necessidade de uma
profissão que intervenha nas mediações necessárias para amenizar as expressões da “questão
social”. Entretanto, apenas com o reconhecimento e o entendimento do significado da “questão
social” que a categoria profissional conseguiu questionar o conservadorismo presente na
profissão e pontuar outras possibilidades de intervenção que atendessem as demandas da classe
trabalhadora.
Muitos autores se preocuparam em trazer para o centro de suas análises os desafios e
possibilidades do Serviço Social frente a perspectiva conservadora. Dentre as principais questões
levantas pela categoria profissional podemos destacar: o Serviço Social rompeu com o
pensamento conservador? Se sim, em que medida rompeu? Há alguma expressão da reatualização
do conservadorismo? Se não houve ruptura, quais as possibilidades de esta ruptura se efetivar?
Ao buscar respostas às indagações mencionadas, os assistentes sociais, de certa forma,
nos reportam a pensar na relação teoria/ prática, pois realizam questionamentos não apenas de seu
cotidiano de trabalho, como também indagam qual a apropriação necessária para se pensar nas
questões levantadas ao longo de sua intervenção profissional. Sabe-se que muito se avançou na
leitura crítica da categoria profissional na década de 1990, mas também é perceptível os inúmeros
desafios postos pela realidade para o exercício profissional do assistente social.
Nossa proposta não é responder a estas indagações, mas apontar elementos que permitam
70
subsidiar uma leitura desta tensa relação entre perspectiva crítica e conservadorismo no Serviço
Social. Dessa forma, apresentaremos as críticas feitas pelos assistentes sociais a partir da análise
da profissão com o conservadorismo.
2.1. A tensa relação do Serviço Social com o reformismo conservador
Segundo Iamamoto (2002) o Serviço Social possui uma relação próxima com o
reformismo conservador. Essa relação é perceptível quando a profissão repensa e refuncionaliza
sua prática e sua base teórico-ideológica. Entretanto, a influência do conservadorismo é mantida
na profissão. Isso é constatado na origem e nos fundamentos do Serviço Social, visto que esta é
uma profissão que surge no Brasil em um determinado momento histórico, mais precisamente na
década de 1930.
A relação do Serviço Social com a Igreja Católica foi muito próxima na origem da
profissão. A Igreja apresentou-se como uma das principais instituições que investiu na preparação
de assistentes sociais. Ela incentivou diretamente seu crescimento, inclusive com escolas de
formação profissional. Um dos motivos pelos quais a Igreja teve tal preocupação na intervenção
da área social foi o surgimento da chamada “questão social”. “Para a Igreja, ‘questão social’,
antes de ser econômico-política, é uma questão moral e religiosa” (Iamamoto, 2002, p.18). Diante
desta compreensão da Igreja, o Serviço Social desenvolveu uma ação moralizadora e
conservadora junto à classe trabalhadora no sentido de “higienizar” a vida da classe operária para
que ela vivesse e se dedicasse com prioridade ao trabalho.
Não foi apenas a Igreja Católica que teve grande influência no Serviço Social. O seu
principal empregador e um dos demandantes da profissão - o Estado - também contribuiu de
forma decisiva para reafirmar a ideologia da qual a profissão se apropriou naquele momento. A
ideologia da qual tratamos é aquela da classe dominante, que visa defender seus interesses
particulares e conservar a ordem no sentido de reproduzir a acumulação do capital, mas sem que
haja uma redistribuição da riqueza socialmente produzida. Nesse momento de constituição do
71
Serviço Social o Estado assumiu a função de “preservar e regular a propriedade privada, impor
limites legais aos excessos da exploração da força de trabalho e, ainda, tutelar os direitos de cada
um, especialmente dos que necessitam de amparo” (Iamamoto, 2002, p.18).
O assistente social, inserido principalmente nas instituições estatais, irá trabalhar para
atender as demandas da classe trabalhadora e da classe burguesa, além de ser requisitado pelo
aparato estatal. Essas demandas, contraditórias entre si, não são atendidas de forma igual, por
isso, o Serviço Social trabalhou mais no sentido de enquadrar a classe trabalhadora e moralizá-la
para reproduzir a ideologia dominante. Vale destacar que nesse momento o Serviço Social não
questionava a sua funcionalidade nem a ordem socioeconômica vigente, sua preocupação era
apenas atender emergencialmente as demandas, principalmente as da classe dominante. A origem
conservadora do Serviço Social no Brasil está, portanto, intimamente relacionada ao movimento
histórico da década de 1930, visto que:
O Serviço Social surge da iniciativa de grupos e frações de classes dominantes, que se
expressam através da Igreja, como um dos desdobramentos do movimento do apostolado
leigo. Aparece como uma das frentes mobilizadas para a formação doutrinária e para um
aprofundamento sobre os ‘problemas sociais’ de militantes, especialmente femininas, do
movimento católico, a partir de um contato direto com o ambiente operário. Está voltado
para uma ação de soerguimento moral da família operária, atuando preferencialmente
com mulheres e crianças. Através de uma ação individualizadora entre as ‘massas
atomizadas social e moralmente’, busca estabelecer um contraponto às influências
anarco-sindicalistas no proletariado urbano (Iamamoto, 2002, p.19).
Se não for analisada a fundo, a origem conservadora da profissão confere espaço para
uma interpretação superficial e aparente sobre o Serviço Social, como o desenvolvido pela
perspectiva endogenista. Isso ocorre porque, à primeira vista, a profissão aparenta ser uma
alternativa profissionalizante às atividades do apostolado social da Igreja, conforme sinaliza
Iamamoto (2002). A profissão se reveste da falsa aparência de ser uma forma avançada e
desenvolvida de ajuda, como uma alternativa a manifestações profissionalizantes de
solidariedade. Nesse momento, é difícil perceber o Serviço Social como uma profissão inserida
na divisão social e técnica do trabalho que possui um componente ideológico e político. As
análises iniciais sobre a profissão se mantinham na aparência e não na essência de sua inserção
social.
Na perspectiva de Iamamoto (2002) o Serviço Social se ancorou em uma ação educativa
72
de fim moralizador com o intuito de prevenir problemas sociais. Sua atuação girou em torno do
Estado e de entidades filantrópicas para individualizar as demandas sociais. A atitude
moralizadora ocorreu através de um tratamento sócio-educativo para reproduzir a ideologia
dominante de forma a “enquadrar” a classe trabalhadora.
A relação da profissão com o conservadorismo pode ser constatada por ser o Serviço
Social uma “atividade reformista-conservadora” (Iamamoto, 2002, p.21). É reformistaconservador porque objetiva uma mudança nas relações sociais e no comportamento individual,
mas no sentido de conservar a ordem social vigente e não de questioná-la. A proposta não pode
ser uma ruptura de fato, pois não compete a uma profissão evocar rupturas sociais, no máximo,
ela é capaz de sinalizar algumas mudanças. E mais, é essa sua origem conservadora que “ao
invés de produzir rupturas profundas com as tendências pragmatistas da profissão, as reforçam
e atualizam” (Iamamoto, 2002, p.21) (grifos nossos). Isso ocorre porque o profissional busca
respostas práticas e imediatas para os problemas da realidade. Essa preocupação se manifesta,
dentre outros motivos, porque o assistente social trabalha essencialmente com a esfera do
cotidiano, com os problemas da vida social dos indivíduos, ou melhor: o Serviço Social intervém
nas expressões da “questão social”, expressões que requerem respostas imediatas e emergenciais,
mesmo que seja no sentido de escamotear as reais relações que se manifestariam diante das
contradições sociais.
A partir das análises de Iamamoto (2002) o conservadorismo, do qual o Serviço Social se
funda e se constitui, decorre da forma de organização capitalista dividida em classes sociais. O
tradicionalismo aparece como um contra movimento em oposição ao projeto da ilustração
relacionado ao projeto da modernidade. Vale destacar que “a fonte de inspiração do pensamento
conservador provém de um modo de vida do passado, que é resgatado e proposto como uma
maneira de interpretar o presente e como conteúdo de um programa viável para a sociedade
capitalista” (Iamamoto, 2002, p.22).
Os conservadores reivindicam formas e estilos de vida provenientes do passado que
antecede a sociedade capitalista para que voltem a vigorar no presente de forma reatualizada
sobre a lógica e a ideologia do capital. Ocorre um escamoteamento das contradições do
73
capitalismo a fim de conservar e manter a ideologia dominante, ou seja, é uma lógica funcional
ao sistema. O conservadorismo é “uma forma de agir e de pensar a sociedade” (Iamamoto, 2002,
p.23) a partir de uma perspectiva de classe favorável a reprodução do capitalismo.
O conservadorismo não é assim apenas a continuidade e persistência no tempo de um
conjunto de idéias constitutivas da herança intelectual européia do século XIX, mas de
idéias que, reinterpretadas, transmutam-se em uma ótica de explicação e em projetos de
ação favoráveis à manutenção da ordem capitalista. (Iamamoto, 2002, p.23).
Iamamoto (2002) destaca características importantes do conservadorismo como sua
vocação para o passado. Isso significa pensar e analisar o presente através do passado e resgatar
idéias e atitudes que já foram aparentemente superadas. Outra característica é a reação contrária a
“igualdade externa”, nesse sentido não são consideradas as particularidades individuais. O
indivíduo é sempre visto como parte de um coletivo sem particularidades. Há ainda o fato de que
os conservadores consideram a liberdade como subjetiva, isso significa reproduzir a idéia de que
a condição social do indivíduo depende de seu esforço pessoal em se desenvolver. Essa lógica
acarreta na culpabilização do indivíduo pela sua condição social. A liberdade, diferente da
concepção propagada pelo projeto da modernidade, pertencerá à esfera privada e subjetiva da
vida. O conservadorismo se reflete da seguinte forma:
O conservador reage aos princípios universalizantes e abstratos do pensamento dedutivo:
seu pensamento tende a aderir aos contornos imediatos da situação com que se defronta,
valorizando os detalhes, os dados qualitativos, os casos particulares, em detrimento da
apreensão da estrutura da sociedade. A mentalidade conservadora não possui
predisposição para teorizar. Sendo a organização da sociedade fruto de uma ordenação
natural do mundo, o conhecimento visa a um controle prático das situações presentes. O
conservador elabora seu pensamento como reação a circunstâncias históricas e idéias que
se afiguram ameaçadoras à sua influência na sociedade. O conservadorismo torna-se
consciente, no plano da reflexão, como defesa, decorrente da necessidade de armar-se
ideologicamente para enfrentar o embate das forças oponentes (Iamamoto, 2002, p.24).
Chamamos atenção para uma passagem que será criticada por Machado (1997), qual seja,
a afirmação de que o pensamento conservador não possui predisposição para teorizar. Machado
(1997) considera esta afirmativa como um grande equívoco de Iamamoto.
No Serviço Social, a relação com o conservadorismo é estabelecida a partir da influência
européia e da influência norte-americana. A profissão também incorpora a filosofia social
humanista-cristã. Ao mesmo tempo em que há uma reatualização para atender às demandas que
74
lhe são postas, ela também mantém o conservadorismo na sua base de ação profissional. Por isso,
“os efeitos da ação profissional aparecem como uma negação dos propósitos humanistas que a
orientam. Torna-se palpável a defasagem entre propósitos e resultados da ação, entre teoria e
prática” (Iamamoto, 2002, p.28).
Isso implica em uma visão desistoricizada da sociedade, pois os efeitos das relações de
trabalho na vida da população são revertidos como problemas pessoais e há uma tentativa de
humanizar o capitalismo. Essa tentativa é expressa, por exemplo, na busca de uma relação
harmônica e solidária entre os homens a fim de que o trabalhador e o capitalista convivam
pacificamente em prol da produtividade. Nesse sentido, o Serviço Social tem como papel
fundamental amenizar os conflitos sociais, visto que “como as bases da organização social são
tidas como dadas e não são questionadas em suas raízes, a solução entrevista limita-se à reforma
do homem dentro da sociedade, para o que deve contribuir o Serviço Social” (Iamamoto, 2002,
p.29). Muito desse trabalho é realizado a partir da ótica da família, dos papéis de cada membro
familiar e através de ações que fortalecem o núcleo familiar. Para o pensamento conservador, a
família é colocada no centro da sociedade, pois ela é uma instituição importante para a
reprodução da ideologia capitalista, por transmitir valores e normas de condutas legitimados
culturalmente.
Um exemplo interessante que aponta o sincretismo da ação profissional, e que em certa
medida ainda perdura na profissão, diz respeito a forma como o assistente social se relaciona com
a resposta as demandas dos usuários e com os próprios usuários dos serviços prestados. Ao
mesmo tempo em que individualiza e particulariza os casos conferindo aos indivíduos
responsabilidades por sua condição e situação social, o profissional também requer modelos de
intervenção e de encaminhamentos para casos semelhantes. Isso significa que, geralmente, as
demandas não são analisadas em suas complexidades e densidades, como demandas de
determinada forma de organização da sociedade com suas determinações particulares e de
natureza coletiva. Ora se transita entre uma resposta à particularidade do caso, como nos
atendimentos individuais, sem articulá-los à realidade social e percebê-los como demanda
coletiva; ora se transita para uma tentativa de fornecer resposta padrão através de modelos de
75
intervenção, sem considerar as particularidades dos casos.
Iamamoto (2002) destaca a tendência empiricista e pragmatista da prática profissional.
Uma expressão dessa tendência é a pesquisa com o intuito de classificar e hierarquizar a condição
social de miserabilidade da população. O objetivo é inserir determinado segmento social em
programas sociais. Essa atitude também se reflete, muitas vezes, nas visitas domiciliares quando
o profissional apresenta um perfil fiscalizador. A crítica não é feita à pesquisa em si, mas sim a
forma como ela é utilizada e aos métodos empregados.
A contribuição de Iamamoto não se esgota aqui. A autora possui uma série de publicações
que tratam do Serviço Social inserido na divisão sócio-técnica do trabalho. O livro “Relações
Sociais e Serviço Social no Brasil”, produzido junto com Raul de Carvalho é um marco na crítica
ao pensamento conservador, por trazer para o centro do debate a perspectiva marxista.
Ressaltamos que para além das polêmicas e dos debates acerca de perspectivas dos assistentes
sociais que contribuíram de forma significativa para uma análise densa da profissão, a leitura de
Iamamoto é de extrema relevância.
2.2. O debate do sincretismo: elementos para análise do conservadorismo no Serviço
Social
Para entender o pragmatismo como expressão conservadora no Serviço Social,
precisamos conhecer como os profissionais se aproximam das teorias. Esta análise é importante
porque nos permite compreender os nós da relação do Serviço Social com as teorias e com a
leitura crítica da realidade
As primeiras tentativas de aproximação do Serviço Social com as teorias sociais em busca
de esclarecer a posição do Serviço Social na sociedade ocorreram de forma enviesada. Buscou-se
a vinculação do Serviço Social ao desenvolvimento de um estatuto teórico-científico, através da
elaboração de uma teoria própria da profissão no sentido de profissionalizar as protoformas
76
presentes na origem do Serviço Social. A busca era para transcender e para racionalizar as
protoformas em busca de uma profissionalização às protoformas da profissão. Ao invés de uma
compreensão do Serviço Social a partir de teorias sociais macroscópicas, a fim de apreender as
requisições que lhe conferiram um estatuto de profissão a partir de demandas históricas, a
profissão reivindicava um sistema próprio de saber para lhe conferir um sentido na sociedade. O
objetivo não era romper com as protoformas, mas dar a elas um estatuto teórico através da
profissionalização das formas de caridade, por isso buscou-se uma teoria e um conjunto de
técnicas. Era um movimento de continuidade e não de ruptura.
Para Netto (2001), a intervenção profissional não depende da consideração de um sistema
de saber, mas sim do fato de fornecer respostas às demandas histórico-sociais. Vale destacar que
tais respostas não são no sentido de superar a ordem capitalista, pelo contrário, são no sentido de
amenizar ou escamotear as expressões da “questão social”, pois o Serviço Social surge vinculado
às necessidades do sistema capitalista. Por outro lado, segmentos da profissão foram ao longo do
tempo questionando sua funcionalidade à ordem do capital e configurando seus princípios como
aqueles que defendem os interesses da população usuária dos serviços sociais e da classe
trabalhadora. Isso significa que o Serviço Social avançou em sua direção ético-política dada pelo
processo de renovação decorrente da intenção de ruptura com o conservadorismo profissional,
mas não no sentido de superar totalmente as bases que lhe conferiram legitimidade, pelo fato de
não ser um profissional autônomo e sim um profissional que tem vínculo de assalariamento junto
a instituições empregadoras. Não só o Serviço Social surge como demanda da sociedade
capitalista, há outras profissões que se inserem neste contexto e as possibilidades e os limites
postos a estas profissões estão na própria sociedade burguesa ou na tentativa de superar as suas
bases.
Netto (2001) identificou duas influências provenientes dos Estados Unidos. Uma foi a
influência psicologista com o Serviço Social de Caso e a outra foi a organização e
desenvolvimento de comunidades no segundo pós-guerra. Já nesse caso, é o Serviço Social que
passa a se basear nas teorias funcionalistas e na mudança social, pelo simples fato de se inserir
em ações interdisciplinares e/ou multidisciplinares (Netto, 2001). Netto (2001) acrescenta ainda a
77
visão dessas perspectivas serem um “ilusionismo ideológico”, já que, a profissão considerava
possível alterar o caráter de suas intervenções, através de um sistema de saber, negligenciando a
compreensão de que sua natureza está atrelada à necessidade de dar respostas às demandas
histórico-sociais. O equívoco da profissão foi não ter percebido que a única forma de se
aproximar-se de uma compreensão da sua relação com o conservadorismo e de avançar no
sentido de buscar outra direção, seria através do referencial teórico crítico-dialético.
Esta complexa relação com as teorias sociais decorre do fato de a própria categoria
profissional não ter uma análise de fundo do significado da profissão na sociedade capitalista.
Uma apreensão densa e apropriada pelos assistentes sociais permitiria fornecer bases para
esclarecer os equívocos ora citados. Primeiro, porque se entenderia que o Serviço Social é uma
profissão; e segundo, porque seria compreensível que as profissões precisam se relacionar com
teorias sociais para interpretar a sociedade à luz de determinada visão de mundo, mas também,
para legitimar-se, para fundamentar sua prática profissional, para entender a realidade. Isso não
significa desenvolver uma teoria própria.
Nesse sentido, Netto (2001) destaca que o Serviço Social apresenta elementos sincréticos
que são expressos nestas contradições que a profissão apresenta e no ecletismo teórico. Como
sincretismo, o autor concebe:
O fio condutor da afirmação e do desenvolvimento do Serviço Social como profissão,
seu núcleo organizativo e sua norma de atuação. Expressa-se em todas as manifestações
da prática profissional e revela-se em todas as intervenções do agente profissional como
tal. O sincretismo foi um princípio constitutivo do Serviço Social (Netto, 2001, p. 92).
Netto (2001) destaca como elementos constitutivos do Serviço Social o contexto em que a
profissão aparece como eixo norteador de demandas histórico-sociais, ou seja, a profissão
provém de uma demanda da sociedade capitalista decorrente dos antagonismos da luta de classe e
do surgimento da “questão social”. Outro elemento consiste no horizonte do exercício
profissional, que está vinculado a instituições e a ação direta com políticas sociais que têm como
objetivo o enfrentamento da “questão social”. Por fim, o autor destaca a modalidade específica de
intervenção da profissão.
O assistente social, em seu cotidiano de trabalho, esbarra em uma heterogeneidade de
78
situações possíveis de serem refletidas. Apesar de requerer modelos de intervenção, o
profissional não consegue dar respostas críticas, nem captar as mediações necessárias que lhe
permite passar das análises macrosocietárias para as situações do seu cotidiano. É nesse momento
que se faz importante ter uma interpretação e uma leitura acerca da realidade com aporte de um
arsenal teórico crítico, assim como a mobilização de meios para responder as demandas de
maneira competente e compromissada.
Por isso, Netto (2001) afirma que os elementos que requerem a intervenção do Serviço
Social configuram uma estrutura sincrética que relega uma categoria ontológica central da
realidade social, segundo a perspectiva marxista: a totalidade. Isso significa que os assistentes
sociais não conseguem intervir a partir de uma perspectiva de totalidade, eles conseguem realizar
uma relação da parte com o todo, mas sem apreender e explicitar as mediações necessárias e as
contradições existentes do processo. Os profissionais conseguem compreender que o Serviço
Social está inserido na lógica do sistema capitalista, que as demandas com as quais trabalham são
frutos de expressões da “questão social”, mas eles não conseguem compreender a totalidade a
partir da perspectiva dialética. Ao analisar a realidade, fazendo o caminho de volta, captando a
totalidade em movimento, o profissional seria capaz de fazer uma avaliação das condições de seu
trabalho, seria capaz de identificar as demandas e saber quais as possibilidades de intervenção e
caso não houvesse possibilidade de dar respostas imediatas ele saberia identificar as limitações. O
assistente social tem a visão das partes inseridas em um todo, mas não da totalidade. Não estamos
dizendo que ele perceba apenas fragmentos de uma realidade, mas ele não consegue fazer esse
movimento a partir da análise dialética e da perspectiva de totalidade. Também não afirmamos
que conseguirão apreender as demandas em que atuam no seu cotidiano profissional, que
conseguirão articular as demandas particulares às reivindicações que são necessidades sociais.
A intervenção profissional do assistente social se dá na esfera do cotidiano “seu material
institucional é a heterogeneidade ontológica do cotidiano” (Netto, 2001, p.96). É na esfera do
cotidiano que se requer respostas imediatas e eficazes. Pela pressão do cotidiano e das demandas
institucionais muitos assistentes sociais recaem no equívoco de pensar em homogeneizar as
respostas que darão às demandas. Isso significa recorrer a manuais de intervenção e a
79
padronização do atendimento. Esta é uma das contradições presentes na profissão devido ao fato
de o assistente social trabalhar diretamente com o cotidiano ele possui dificuldades para
ultrapassar a esfera da cotidianidade e refletir criticamente sobre sua prática, ou melhor, lhe
sobram poucos momentos ou nenhum para realizar tal exercício e quando consegue fazer tal
reflexão, na maior parte das vezes, o faz de forma muito superficial e sem considerar a dimensão
de totalidade.
A análise mais a fundo da realidade pode ser feita e apreendida pelos profissionais quando
há uma reatualização profissional capaz de permitir uma leitura crítica. Entretanto, na intervenção
profissional, quando os assistentes sociais não conseguem romper com a fenomenalidade, eles
não alcançam a perspectiva de totalidade, exatamente por trabalharem diretamente com o
cotidiano que é um espaço propício à reprodução do pragmatismo.
Para Netto (2001) o Serviço Social é uma profissão que possui funções essencialmente,
mas não exclusivamente, executivas. Nesse sentido ele está vinculado a uma subalternidade
técnica e a uma determinada modalidade de intervenção “no centro desta modalidade de
intervenção situa-se, com invulgar ponderação, a manipulação de variáveis empíricas de um
contexto determinado” (Netto, 2001, p. 97). Isso significa dizer que os assistentes sociais, seus
empregadores e os usuários das políticas sociais com os quais trabalham não consideram sua
prática profissional conclusa. A manipulação de variáveis empíricas ocorre quando o assistente
social responde às demandas existentes no momento, na imediaticidade. Na manipulação de
variáveis o trabalho desenvolvido ocorre a partir dos fatos já dados e não de uma projeção da
totalidade de seu trabalho e das consequências de suas decisões no exercício profissional. Nesse
sentido, o importante na manipulação de variáveis são as alterações que possam resultar em
respostas imediatas. Ocorre quando o profissional desconsidera a dinamicidade do real e quando
ele padroniza sua ação profissional no sentido de conferir as mesmas respostas para casos que
considera semelhantes isolando e desconsiderando as demandas coletivas.
É do exposto que Netto (2001) apresenta duas implicações. A primeira é que, nesse
sentido, demanda-se do assistente social um conhecimento sobre o social que é
instrumentalizável, no qual a intervenção manipuladora requer explicações que permitem
80
direcionar os processos sociais de forma segmentares, por isso, busca-se uma relação com o
pensamento positivista a partir de referenciais das perspectivas empiricistas e pragmáticas. O
segundo trata da “reprodução intelectual do sincretismo”, a intervenção profissional passa a ser
pautada a partir da manipulação de variáveis empíricas, “é supérfluo fazer notar que o
sincretismo, na sua reposição intelectual, traz como inevitável acólito o ecletismo teórico” (Netto,
2001, p. 98).
Netto (2001, p. 98) demonstra que a influência do pragmatismo e do empiricismo no
Serviço Social nos conferiu marcas na configuração da profissão que, de certa forma, ainda se
fazem presentes, pois:
Com freqüência, a crítica ao empiricismo e ao pragmatismo do Serviço Social perdeu de
vista que suas fontes não se esgotam nas influências teóricas exercidas sobre a profissão,
mas, com evidente profundidade, mergulham raízes neste componente de sua prática
[pragmatismo], determinado socialmente.
O sincretismo apontado por Netto (2001) tem relação direta com a prática profissional do
Serviço Social. Logo se percebe uma diferença entre o Serviço Social da década de 1930, muito
ligado a práticas assistencialistas e moralizadoras; e o Serviço Social após a década de 1940,
quando começam a se consolidar as políticas sociais. Para alavancar a profissão, os assistentes
sociais começaram a se preocupar em buscar articulação com as ciências sociais, estabelecer
parâmetros mínimos para a formação profissional, desenvolver uma documentação própria e criar
vinculações entre intervenções e formas de organização institucionais e públicas (Netto, 2001).
Nesse sentido podemos afirmar que a profissão passou por um significativo avanço da
compreensão de sua relação com as ciências sociais e de sua produção intelectual, principalmente
da aproximação com a teoria marxista. Contudo, esse avanço não se refletiu de forma tão
consistente na intervenção profissional dos assistentes sociais. Aí reside o sincretismo. Ou ainda,
como sinaliza Netto (2001) o Serviço Social mudou a forma de inserção sócio-ocupacional dos
profissionais, mas não sua prática profissional interventiva. Mudou no sentido de que os
profissionais passaram a desenvolver seu trabalho ligados a instituições, principalmente estatais,
voltadas para o desenvolvimento de políticas, programas e projetos sociais. Antes havia uma forte
vinculação com as ações da Igreja Católica. A profissão instaurou um quadro de referência e de
81
inserção prático-institucional que se desvinculou das protoformas do Serviço Social.
Esse equívoco em muito se relaciona às condições de intervenção dos assistentes sociais –
geralmente precárias, com poucos recursos institucionais, que os obrigam a criar espaços menos
informais de intervenção, burlando normas institucionais e até direitos como é o caso de dar um
“jeitinho” para solucionar uma demanda – e com a forma como o Estado enfrenta a “questão
social”. Ocorre que na sociedade capitalista as relações sociais são substituídas por relações entre
coisas e as coisas adquirem formas de relações sociais, é um processo de fetiche e de reificação
que escamoteia a essência pela aparência das relações sociais prevalecendo o superficial. Há uma
“destruição da razão” e uma predominância da razão formal-abstrata (Netto, 2001).
Para que o sincretismo tratado por Netto fique esclarecido, é importante destacarmos que
o Serviço Social é uma profissão que surge na sociedade capitalista em seu estágio monopolista e
está inserido no movimento da realidade, na busca por uma intervenção eficiente que dê respostas
às demandas apresentadas. A profissão encontra-se vinculada à lógica da sociedade capitalista e,
por isso, seus profissionais visam realizar a crítica no sentido de compreender a lógica que a rege.
Este é um exercício mais profundo e denso, o que não é possível realizar em uma análise
superficial e simples. Nessa relação entre necessidade de intervir nas demandas apresentadas e
importância de se realizar uma análise crítica, a relação teoria/ prática, muitas vezes, não é
apreendida de forma articulada através das mediações podendo resultar na prevalência do
sincretismo no momento da intervenção.
Um aspecto que reforça o sincretismo consiste no fato de o Serviço Social se valer
constantemente da prática burocratizada, por ser esta uma exigência das instituições e também
das políticas sociais. Mesmo que haja uma direção ético-política da profissão que objetiva
desburocratizar a prática profissional, o assistente social não consegue romper com esse norte
porque a razão formal-burocratizada está no plano da imediaticidade e o Serviço Social trabalha
diretamente com o cotidiano que é o plano privilegiado da imediaticidade. Uma forma de tentar
refletir sobre o cotidiano, sobre a imediaticidade e sobre o senso comum é através da
sistematização da prática profissional.
A inserção dos assistentes sociais se dá no espaço das políticas sociais, estas são formas
82
de enfrentamento da “questão social” e não possuem o objetivo de superar a origem da “questão
social” e sim de amenizá-la. Isso não retira seu caráter contraditório: as políticas sociais são uma
expressão das lutas políticas e sociais da classe trabalhadora e também uma forma de concessão
do Estado e do empresariado para o atendimento das reivindicações da mesma e para suprir um
mínimo das necessidades sociais das classes subalternas. É por isso que a intervenção do
assistente social se realiza através das políticas sociais, ou seja, ela não se dá diretamente nas
expressões da “questão social”, mas sim de forma mediatizada.
O Serviço Social é a profissão que mais acumula tensões porque sua intervenção tem
relação com as resultantes empíricas. O máximo que o profissional consegue é racionalizar
recursos e se esforçar no enfrentamento das expressões da “questão social”. O limite apresentado
não é endógeno ao Serviço Social, mas aparece como se fosse porque a sua funcionalidade sócioocupacional consiste em enfrentar e tratar as refrações da “questão social” (Netto, 2001).
Como os assistentes sociais precisam desenvolver papéis diferentes, a profissão acaba por
recair em uma aparente polivalência, que configura uma falsa idéia de que o assistente social é
um profissional que “faz um pouco de tudo”. Entretanto, essa aparência se manifesta como uma
peculiaridade da prática profissional. Ela não foi uma opção profissional, ela é um padrão
prático-empírico de procedimentos dos profissionais e uma demanda das classes sociais das quais
atende com seu trabalho a partir de duas condições: a expectativa social dos primeiros
encaminhamentos profissionais e os recursos necessários para poder intervir profissionalmente.
Entretanto, foi essa aparente polivalência que permitiu aos assistentes sociais ocuparem diversos
espaços sócio-ocupacionais e, por isso, se configura também como uma estratégia profissional.
Esse é mais um elemento sincrético presente no Serviço Social (Netto, 2001). Nas palavras de
Netto (2001, p. 107):
Combinando senso comum, bom senso e conhecimentos extraídos de contextos teóricos;
manipulando variáveis empíricas segundo prioridades estabelecidas por via de inferência
teórica ou de vontade burocrático-administrativa; legitimando a intervenção como um
discurso que mescla valorações das mais diferentes espécies, objetivos políticos e
conceitos teóricos; recorrendo a procedimentos técnicos e a operações ditadas por
expedientes conjunturais; apelando a recursos institucionais e a reservas emergenciais e
episódicas – realizada e pensada a partir desta estrutura heteróclita, a prática sincrética
põe a aparente polivalência.
83
O sincretismo ideológico está presente no Serviço Social desde sua protoforma e tem
relação com o pensamento conservador a partir da Igreja Católica. O sincretismo da prática
ocorre pela defasagem de articulação entre a leitura e apropriação teórico-crítica e a intervenção
cotidiana dos assistentes sociais. Nesse sentido, podemos dizer que o sincretismo não foi
superado no Serviço Social e, por isso, repõe elementos conservadores e aparentemente
superados pela profissão.
A partir das considerações de Netto constatamos que o Serviço Social possui uma relação
com o pensamento conservador que se expressa através do sincretismo da intervenção
profissional. Para entendermos como se dá tal relação é necessário abordarmos as bases do
pensamento conservador. Assim, seremos capazes de pensar em alternativas críticas com vistas a
propor estratégias de intervenção.
2.3. O conservadorismo romântico como uma das expressões da ideologia dominante
O trabalho elaborado por Leila Escorsim Machado (1997) aborda as bases de constituição
do pensamento conservador clássico. A autora apresenta uma preocupação em compreender a
gênese do pensamento conservador e suas mudanças de perspectivas. Em sua argumentação fica
claro que o conservadorismo não é apenas uma forma de pensar, mas também uma ação
intencional que busca produzir determinado tipo de conhecimento. Apesar de Machado utilizar a
expressão “pensamento conservador” ao longo de seu trabalho, ela nos deixa claro que o
conservadorismo não é apenas um pensamento, nem um pensamento único; ele apresenta
múltiplas expressões, se manifesta em atitudes e possui uma série de intelectuais em sua defesa.
Apresentaremos a leitura da autora com o objetivo de desvelar a origem do pensamento
conservador na sociedade capitalista para que dessa forma possamos analisar o Serviço Social.
Machado (1997) realiza uma pesquisa na qual resgata autores considerados
conservadores, autores que realizam a crítica ao conservadorismo e ainda; aqueles que não estão
84
no campo da perspectiva crítica, mas também não podemos considerar conservadores, como é o
caso de Gouldner. Sua preocupação parte do Serviço Social. Assim, ao longo deste tópico iremos
apresentar um breve esboço da produção de Machado (1997), pensando sempre na crítica ao
conservadorismo realizado pela autora. Para ela, o movimento de reconceituação permitiu superar
carências no tratamento histórico do Serviço Social através das produções daí derivadas. A
reconceituação foi expressão de um processo de renovação profissional relacionada a conjuntura
dos anos 60 do século XX e às suas circunstâncias históricas, sociais e políticas.
Na América Latina o movimento de contestação do Serviço Social tradicional apresentou
particularidades, pois, na época, pautava-se a questão do desenvolvimentismo social com o fim
de promover o acesso de minorias aos direitos de cidadania. Essa conjuntura chocava-se com as
políticas sociais restritivas. As elites excluíam econômica, social e politicamente as massas.
Assim, a autora destaca a particularidade do movimento de reconceituação:
Enquanto movimento especificamente latino-americano – mesmo levando-se em conta a
diversidade continental -, ela se recobriu com um conteúdo nitidamente antiimperialista
e, nas suas correntes mais radicais, anticapitalista – e, neste último caso, não foram
poucas as suas projeções socialistas. É compreensível, pois, que uma das mais salientes
dimensões da Reconceituação tenha sido a dimensão político-ideológica: mesmo nas
suas vertentes que não punham em questão, substancial e estruturalmente, a ordem
capitalista, a crítica e a denúncia dos valores do Serviço Social ‘tradicional’ foram uma
constante (Machado, 1997, p. 11).
Cabe destacar a dimensão político-ideológica, o que não necessariamente se reflete na
prática. Trata-se de uma crítica e denúncia dos valores do Serviço Social tradicional. O
movimento de reconceituação não se restringiu a uma crítica político ideológica do
tradicionalismo, mas certamente esta foi sua principal manifestação.
Machado (1997) demarca como auge da reconceituação os anos de 1965 – quando ocorre
o Seminário Regional Latino-Americano de Serviço Social – a 1975 – momento de crise política
na Argentina. As principais críticas ao Serviço Social tradicional são destacadas pela autora
como:
A vinculação do Serviço Social ‘tradicional’ aos interesses das classes dominantes, a sua
legitimação prático-pedagógica da ordem burguesa, o seu papel disciplinador e
‘integrador’ frente às classes e camadas subalternas, a sua funcionalidade na reprodução
do status quo – estes foram os alvos prioritários dos intelectuais da reconceituação
(Machado, 1997, p. 13).
85
Outro aspecto de crítica foi o tipo de aproximação realizada pelos assistentes sociais ao
marxismo. Era uma leitura estruturalista do marxismo que o confrontava ao positivismo
ratificando a dicotomia entre “metafísica/ dialética”12. Isso implica em uma falta de
aprofundamento da problemática questionada na reconceituação.
A interlocução do Serviço Social com o marxismo ocorreu através de partidos políticos e
movimentos sociais recorrendo a fontes secundárias e com base em um forte ecletismo e
voluntarismo. Por outro lado, foi a crítica político-ideológica de base marxista que permitiu um
tratamento histórico do Serviço Social. Buscou-se uma interpretação do desenvolvimento do
Serviço Social na sua origem (Europa e Estados Unidos) e na América Latina. Essa busca
permitiu a concretização das primeiras leituras históricas do Serviço Social latino-americano.
No período pós-reconceituação - segunda metade dos anos 70 - o Serviço Social latinoamericano conseguiu realizar uma auto-crítica. Papel importante teve o Centro Latino-Americano
de Trabalho Social (CELATS). O CELATS foi responsável por um projeto de pesquisa
multinacional sobre as histórias nacionais do Serviço Social latino-americano.
Ainda assim, ocorre um tardio tratamento histórico do Serviço Social. Contraditoriamente
12
No terceiro capítulo iremos demonstrar a relação do pragmatismo com a metafísica. Desde já cabe elucidar que de
acordo com Japiassu e Marcondes (1991) Metafísica é um termo que remete à obra de Aristóteles e aos estudos da
física, refere-se a algo que está além da física. Já na tradição clássica está relacionada a uma parte mais central da
filosofia, a ontologia do ser enquanto ser. “A metafísica define-se assim como filosofia primeira, como ponto de
partida do sistema filosófico, tratando daquilo que é pressuposto por todas as outras partes do sistema, na medida em
que examina os princípios e causas primeiras, e que se constitui como doutrina do ser em geral, e não de suas
determinações particulares, incluindo ainda a doutrina do Ser Divino ou do Ser Supremo” (idem, p. 165). Há também
uma definição a partir da tradição escolástica que trata de uma metafísica geral (ontologia) e metafísica especial
(domínios específicos do real e apresenta subdivisões). É com o pensamento moderno que a metafísica perde espaço
e nisso reside a crítica dos pragmatistas, pois, questões referentes a consciência e a subjetividade ganham relevância
fundamentais. Mora (1996) trata do pensamento de Aristóteles para permitir chegar ao conhecimento do significado
da metafísica. Para Aristóteles existe uma ciência que trata do ser enquanto ser para investigar os primeiros
princípios e as causas mais elevadas, por isso é chamada de filosofia primeira. A parte da ciência que irá tratar da
natureza será a física. Entretanto, esta filosofia primeira ao abordar o ser como ser, irá tratar também de algo que é
superior ou supremo. A metafísica está relacionada a uma investigação formal vinculada a uma lógica a respeito de
assuntos como: o ser, o transcendental, a substância, o modo, a essência, a existência. “A metafísica trata do ser, o
qual é ‘conversível’ com a verdade, mas sendo Deus a fonte de toda verdade, Deus é o objeto da metafísica. Por
outro lado, a metafísica é a ciência do ser como ser e como substância” (Mora, 1996, p. 471). A crítica ao
pragmatismo se iniciou nos Estados Unidos, partiu da Escola de Chicago, quando um grupo de pensadores iniciou
um movimento chamado “Clube da Metafísica” como uma forma de criticar e se opor a idéia de filosofia primeira.
86
as primeiras escolas de Serviço Social surgem na segunda metade dos anos 30, quando a pesquisa
histórica brasileira entra em sua fase crítico-científica. Isso foi resultado em parte, do norte ídeopolítico da profissão que estava ancorado no conservadorismo. Esse norte só é questionado
quando o Serviço Social passa a ter condições de pensar-se histórico-criticamente.
A perspectiva histórica do Serviço Social não é restrita a análise da sua origem e da sua
evolução, mas está relacionada a uma perspectiva de totalidade. “O tratamento histórico do
Serviço Social (...) demanda não só a crítica e a denúncia ideo-política do tradicionalismo
profissional, mas, ainda e sobretudo, a crítica dos seus fundamentos teóricos” (Machado, 1997, p.
21).
Na leitura de Machado, Iamamoto vincula a crítica ídeo-política do tradicionalismo do
Serviço Social a uma crítica teórica e cultural. A profissão surge e se desenvolve a partir do
conservadorismo moderno funcional à sociedade capitalista. Ainda em suas análises, Machado
(1997), destaca que Netto recupera o debate iniciado por Iamamoto anos depois (em 1992)
baseado na perspectiva marxista desenvolvendo uma análise histórico-sistemática do Serviço
Social nos planos sócio-político e histórico-cultural. Netto distinguiu as bases européias e norteamericanas que possuíram influência no Serviço Social brasileiro. Na primeira, prevaleceu a
vinculação com o catolicismo social marcado pelo anticapitalismo romântico. No segundo, a
profissão surgiu vinculada ao individualismo liberal e ao capitalismo.
A relevância das análises de Netto e de Iamamoto são destacadas na seguinte passagem:
A partir das análises de Iamamoto e Netto, largamente divulgadas no debate profissional
e consideradas quase unanimamente, na categoria dos assistentes sociais, como
altamente qualificadas, a relação Serviço Social/ pensamento conservador tornou-se
como que uma conquista da massa de conhecimentos desenvolvida pelos intelectuais da
profissão. Não é exagerado dizer-se que, para as correntes profissionais críticas, está
posta como um dado esta relação – e tanto que se tem reiteradamente afirmado que um
Serviço Social crítico é função de uma inteira ruptura com o pensamento conservador
(Machado, 1997, p. 30) (grifos da autora).
A autora destaca que é importante conhecer o pensamento conservador, visto que,
aparecem na profissão perspectivas que afirmam a possibilidade de uma reatualização do
conservadorismo ou um neoconservadorismo, as caracterizando como uma continuidade do
conservadorismo tradicional.
87
A preocupação de Machado será com o estudo do conservadorismo clássico. Para ela, há
algumas dificuldades para aqueles que se propõe a estudar o conservadorismo: a primeira é a
delimitação histórica, a segunda é a caracterização do pensamento conservador, a terceira é a
relação entre os momentos evolutivos do pensamento conservador. São características que se não
forem consideradas colocam o pensamento conservador em um patamar único e hegemônico.
Dessa forma, existe uma noção do conservadorismo difundida pelo senso comum. É uma noção
que busca preservar idéias que são valorizadas social e culturalmente, está atrelada ao
pensamento cotidiano e por isso não aprofunda nem explica o pensamento conservador.
No debate das ciências sociais e da teoria política, a noção de conservadorismo apresenta
um sentido mais técnico e é datada a partir da Revolução Francesa. Acerca dessa limitação
Machado (1997) apresenta duas questões. A primeira é: até quando o pensamento conservador irá
manter-se no processo de desenvolvimento das formas sócio-políticas que sucederam a velha
ordem (ou seja, que sucederam ao feudalismo); a segunda é: o estabelecimento de uma tradição
conservadora não soluciona as transformações sofridas pelo conservadorismo, em outras
palavras: nem o conservadorismo se expressa como um pensamento único. Nenhuma das duas
questões é clara nas respostas dos pensadores conservadores estudados por Machado.
O pensamento conservador, tal como o entendemos aqui, não é um ‘estilo de
pensamento’ intemporal, ahistórico, encontrável em qualquer tempo e em qualquer
sociedade. Nem se confunde com quaisquer formas intelectuais e comportamentais que
valorizam, sancionam e defendem o existente – formas a que cabe a denominação de
tradicionalismo. Antes, o pensamento conservador é uma expressão cultural (...)
particular de um tempo e um espaço sócio-históricos muito precisos: o tempo e o espaço
da configuração e da consolidação da sociedade burguesa – configuração que deve ser
tomada como ‘uma rica totalidade de determinações e relações diversas’ e em que
operaram movimentos e tensões em todas as esferas e instâncias sociais (Machado,
1997, p. 43).
Esta concepção do conservadorismo da autora mostra que o pensamento conservador é
relacionado a concepções históricas e conjunturais. O processo geral da revolução burguesa não
foi hegemônico. Ele ocorreu entre os séculos XVI e XVIII. Na revolução política, a burguesia
destruiu o Estado feudal para criar e moldar o Estado capitalista. Neste período, em que a
sociedade burguesa toma forma com a consagração da burguesia no poder, é que surge o
pensamento conservador.
88
A autora destaca Burke como pensador conservador da época. Ele critica a forma de ação
política do desenvolvimento capitalista através de mobilização de massas e a destruição de
instituições sociais existentes até então (trata-se daquelas provenientes do período feudal). As
novas instituições instaladas partem de uma racionalidade anti tradicionalista. Burke recusa as
consequências sócio-culturais do capitalismo. Ele propõe o desenvolvimento econômico
capitalista sem a ruptura com as instituições pré-capitalistas, como “o privilégio da família, as
corporações, o protagonismo público-temporal da Igreja, a hierarquia social cristalizada”
(Machado, 1997, p. 50). Essa forma de pensar apontada por Burke apresenta seus traços no
anticapitalismo romântico que se articula a uma perspectiva restauradora da ordem social.
A função social do pensamento conservador, tal como aparece nos imediatos
continuadores de Burke, é inequívoca: o conservadorismo expressa os interesses dos
privilegiados do Ancien Regime, a nobreza fundiária e o alto clero. O pensamento
conservador exprime, assim, um projeto de restauração que, em pouco tempo, revela-se
inviável: entre 1815 (o Congresso de Viena, que consagra a Santa Aliança) e 1830 (a
revolução de julho, que derruba, na França, Carlos X, o último Bourbon), o que se
manifesta, na Europa Ocidental, é a irreversibilidade das transformações que o
desenvolvimento do capitalismo impõe às instituições sociais. As perspectivas
restauracionistas, que, até então, pareciam viáveis, tornam-se claramente delirantes
(‘utópicas’) (Machado, 1997, p. 51).
Após cumprir sua missão histórica revolucionária, a burguesia torna-se classe dominante
em uma nova estrutura social. Nesse momento, deixa de ser a classe que se reivindicava como
representante do conjunto dos interesses da sociedade. No poder político e econômico passa a
voltar-se para si mesma e a defender seus interesses particulares.
A cultura moderna, que fora outrora reivindicada pela burguesia, deixa de ser funcional a
ótica desta classe social e precisa ser redimensionada. Seu objetivo será “eliminar ou
neutralizar os conteúdos subversivos da cultura moderna, especialmente aqueles
vinculados à sua dimensão emancipadora” (Machado, 1997, p. 53).
A burguesia, pressionada pelo movimento operário e socialista, abdica da cultura
progressista (decorrente do período da ilustração) e busca uma ideologia racionalizadora que
legitime seu domínio e seu poder. A classe que chega ao poder outrora contribuiu para fortalecer
os ideais da Ilustração, vive agora o período da decadência ideológica13. É no período de 1830 a
13
Sobre o período da decadência ideológica podemos destacar a leitura de Machado ao livro “A destruição da razão”
de Lukács, pois ele trata do período fascista alemão. Lukács aponta que o desenvolvimento capitalista na Alemanha
89
1848 que a burguesia vive seu período de crise decisiva. A partir desse momento o
conservadorismo apresenta uma alteração de função e de significado:
Se, originalmente, o pensamento conservador é, como vimos, restaurador e anti-burguês,
na reviravolta referida por Lukács este caráter se transforma: o que tende a se
desenvolver no seu interior, mais que aqueles dois traços, é o seu eixo contrarevolucionário. Nos primeiros conservadores, a recusa da revolução expressava um
repúdio à revolução burguesa (...); nos conservadores que trabalham nas condições pós48, com a evidência da inviabilidade da restauração, o conservadorismo passa a
expressar o repúdio a qualquer revolução – ou seja, o pensamento conservador passa a se
definir explicitamente como contra-revolucionário. É assim que ele tem
substantivamente mudada a sua função social: de instrumento ideal de luta antiburguesa,
converte-se em subsidiário da defesa burguesa contra o novo protagonista
revolucionário, o proletariado. Porém, a mudança da sua funcionalidade sócio-política
afetará, como veremos, a sua própria estrutura teórica (Machado, 1997, p. 57).
Essa mudança ocorre no período compreendido entre 1830/ 1848. Machado cita dois
autores - Comte e Tocqueville - como expressão de tal mudança do conservadorismo antiburgues
e do conservadorismo antiproletário. Não cabe neste trabalho esmiuçar a obra de tais autores, mas
vale destacar que em Comte o positivismo passa a garantir a estabilidade social. Tocqueville
atingiu a forma imperialista precocemente, sem ter ocorrido uma revolução democrática. Por outro lado, o
capitalismo alemão se expressou como potência européia. A cultura alemã se desenvolveu no século XX de forma
expressiva através de um combate entre racionalistas e irracionalistas. Havia uma tendência que objetivava
compreender os processos histórico-sociais e uma tendência que percebia os processos histórico-sociais como um
confronto. Machado (1997) destaca que Lukács analisa a obra de Hegel como a mais expressiva do programa da
modernidade. Assim, Machado sinaliza que o pensamento anti-revolucionário, na Alemanha, se desenvolverá como
uma negação ao pensamento de Hegel e irá se desenvolver como “negação irracionalista da dialética” (Machado,
1997, p. 199). Sobre as determinações do irracionalismo, Lukács irá tratar do conceito de decadência ideológica.
Ambos os conceitos estarão compatíveis com o período da decadência pós-1848. “Com efeito, Lukács reconhece
uma espécie de profunda afinidade entre o romantismo e o irracionalismo; mais exatamente, é da síntese entre reação
romântica e irracionalismo que redundará na filosofia irracionalista burguesa, própria do período da decadência na
Alemanha, cuja primeira expressão será A. Schopenhauer e cujo corifeu será F. Nietzche, um dos precursores do
fascimo” (Machado, 1997, pag. 203). Após 1848 a crítica romântica torna-se reacionária. O período da decadência
expressa uma apologia simples e direta do capitalismo e uma apologia indireta de origem romântica e irracionalista.
Lukács reconstrói o processo do irracionalismo alemão. Ele demonstra a filosofia que sintetiza o anticapitalismo
romântico e o irracionalismo associado a rebeldia e a insatisfação contra o movimento socialista revolucionário. “A
abordagem lukacsiana diz respeito exatamente ao processo do conservadorismo clássico na particularidade histórica
alemã; aqui, a evolução do conservadorismo foi abertamente no sentido da contra-revolução – a extrema ‘pureza’ da
reação romântica ao Iluminismo e à Revolução conduziu ao extremo reacionarismo que, nas condições da unidade
nacional pela ‘via prussiana’, derivou no fascismo”. (Machado, 1997, p. 206). Vale destacar uma nota na qual
Machado afirma que Lukács reconhece que o irracionalismo é uma tendência do período da decadência ideológica.
Lukács se preocupou com a análise da sociologia e em demonstrar que ela passou por um processo de destruição da
razão. A sociologia se constitui na base de um movimento de deseconomização e buscou seus fundamentos nas
ciências naturais. A sociologia surge como ciência comprometida com a apologética burguesa. No período da
decadência suas pretensões universalistas se debilitam; pois tende a se desenvolver como ciência especializada.
90
busca uma democracia controlada articulando liberdade com igualdade para evitar a “tirania da
maioria”.
O pós-48 apresenta um quadro sócio-cultural de mudança da função social do pensamento
conservador. Tal mudança será no sentido de defender a ordem burguesa contra a ameaça
revolucionária-socialista, “ele tende tanto a estruturar-se como filosofia social quanto como
conhecimento científico-social, seja sob a forma de ciência social, seja sob a forma de teoria
política” (Machado, 1997, p. 60). Na filosofia social, o anticapitalismo romântico do pensamento
conservador se associou ao irracionalismo moderno e implicou em uma apologia indireta da
ordem burguesa.
Os conservadores buscarão produzir um conhecimento voltado para o favorecimento da
ordem burguesa que permita uma compreensão e um controle de suas crises. “Estes dois
fenômenos – crise social e revolução – polarizarão todo o pensamento conservador pós-48: estão
na raiz da ciência social que é a filha direta do conservadorismo pós-48, a sociologia” (Machado,
1997, p. 62).
O principal autor que expressa o pensamento conservador nesse momento é Durkheim14.
14
Dentre os principais trabalhos de Durkheim (1858/ 1917) destacamos: “As regras do método sociológico”, “Da
divisão do trabalho social”, “O suicídio” e “Formas elementares da vida religiosa”. Segundo a análise que fizemos
das referências citadas, Durkheim tentou pensar os conflitos do mundo industrial através da relação entre os
indivíduos e a coletividade. Ele foi um filósofo por formação e uma de suas principais influências foram de Augusto
Comte, o fundador do positivismo. Durkheim aprofundou a visão de Comte ao dizer que a consciência coletiva no
mundo industrial estava relacionada a valorização do indivíduo. Ele considerava que a sociedade fazia parte da
natureza e, portanto, propões a utilização dos métodos de estudo das ciências naturais para abordar os fatos sociais
que são causais por possuírem uma relação entre variáveis, entre dimensões da realidade social; e são funcionais,
pois as necessidades da sociedade são diferentes das necessidades dos indivíduos isoladamente. Assim, Durkheim
compreendeu a sociedade como um organismo no qual cada parte possui uma função para formar o todo. Ao tratar
da divisão social do trabalho afirmou que sua função é criar a coesão social necessária para a manutenção da unidade
social. A divisão do trabalho social permitiu o crescimento da população e forçou os grupos sociais a estabelecerem
contatos entre si. As funções em contato umas com as outras tendem a se equilibrar. Segundo sua lógica, a sociedade
vive um estado de anomia social porque esta integração é cada vez mais frouxa e fraca. Portanto, é necessário um
grupo que estabeleça um conjunto de regras e isso só pode ocorrer através das profissões. Assim, para Durkheim, o
único grupo que pode exercer essa função é o grupo profissional, é a corporação. Assim, em linhas gerais a vertente
funcionalista de Durkheim está diretamente relacionada ao estudo da sociedade, da divisão social do trabalho e da
solidariedade. Essa vertente funcionalista visa compreender a diferença das profissões e a multiplicação das
atividades industriais. A sociologia para ele é uma prioridade do todo sobre as partes, é a explicação dos elementos
pelo todo. Para uma leitura aprofundada da obra de Durkheim ver Aron, R. As etapas do pensamento sociológico
(1997), Durkheim. Da divisão do trabalho social (1995), Durkheim. As regras do método sociológico (1999).
91
Machado indica uma questão relevante: o importante da obra de Durkheim em relação ao
conservadorismo é que ele consolida plenamente o pensamento conservador refuncionalizado ao
não apresentar nenhum elemento que seja possível questionar a ordem burguesa.
O anticapitalismo conservador deixa de ser restaurador e mobilizador, ele passa a ser uma
crítica da ordem burguesa. A autora caracteriza como período clássico do conservadorismo
aquele dotado de otimismo por parte dos conservadores. Havia uma confiança de que a história
futura seria positiva para os homens. Do pensamento conservador anticapitalista resignado ao
anti-socialista, havia uma concepção otimista dos rumos da história. Durkheim é o último
pensador a defender esta perspectiva otimista, após sua morte esta confiança em um desfecho
positivo da história não se manifestaria mais. Por isso, esse é o período considerado como
conservadorismo clássico.
Um dos sentidos da evolução do conservadorismo, passado o seu período clássico, é
associar-se ao reacionarismo moderno; o otimismo perdido é substituído pelo desespero
– a angustia (...) favorece a sua vinculação às filosofias da vida tão funcionais (...) ao
fascismo (Machado, 1997, p. 69).
Para a autora, ao se combater os valores da Ilustração, o conservadorismo explicitou sua
referência, que permaneceria a mesma por mais de um século. Após 1848 alterou-se o significado
sócio-político do referencial conservador.
O primeiro traço expressado pelos conservadores sobre sua posição social diante das
mudanças apontadas no período foi terem sido contrários à separação entre Igreja e Estado, sob a
alegação de que tal separação desfavoreceria a legitimidade da religião e que a sociedade não
poderia existir sem uma religião que se expressasse nos aparatos do Estado. O segundo traço foi
quando os conservadores posicionaram-se contra a liberdade na autonomia dos indivíduos, pois
defendiam que isso acarretaria em implicações para a unidade social.
De fato, o pensamento conservador recusa os valores e princípios da modernidade e os
fundamentos democratizantes. Nota-se que não se trata, necessariamente, de um embate direto do
conservadorismo com valores e/ ou princípios revolucionários que estivessem em vigor, mas sim
de toda e qualquer expressão que pudesse propiciar espaço para o crescimento revolucionário.
92
Em suma, significa dizer que os fundamentos democratizantes não estavam, necessariamente, a
serviço de uma proposta revolucionária. Ou melhor: a classe dominante também reivindica a
democracia, porém trata-se de uma democracia restrita.
Os conservadores apresentam uma preocupação em como se consolida a relação entre
homem e sociedade. Assim, difundem a constituição da família como central para a harmonia
social, pois ela é a base moral da sociedade e formadora de valores dos indivíduos. Essa
formação dos indivíduos ocorrerá na família e também partirá de “grupos intermediários” (podem
ser associações, corporações, abrigos).
Estes traços constitutivos do conservadorismo percorrem o conjunto do pensamento
conservador em seu período clássico – o único deles que, no pós-48, tenderá a perder sua
importância é o componente clerical, cada vez menos visível. Entretanto, a mudança da
função sócio-política do pensamento conservador (...), acarretando também alterações na
sua estrutura interna, subordinará esses traços à articulação científico-sociológica
propiciada pela combinação com o positivismo (Machado, 1997, p. 87).
Em síntese, o pensamento conservador, em seu período clássico (período da Revolução
Francesa – 1789 – a Primeira Guerra Mundial – 1914) partiu da recusa à ordem social
estabelecida pela burguesia revolucionária para uma atitude de defesa da ordem burguesa
consolidada. O desenvolvimento do pensamento conservador ocorre entre 1830 e 1848, quando
há um esgotamento do ciclo revolucionário burguês.
Machado (1997, p. 91) destaca dois marcos importantes do pensamento conservador:
Enquanto recusa original da ordem burguesa, o pensamento conservador propôs-se como
projeto restaurador, anti-racionalista e antidemocrático, rechaçando a cultura da
Ilustração e os traços mais salientes da Modernidade (secularização, industrialização,
urbanização), em defesa de valores e instituições pré-capitalistas (grifos da autora).
Depois de 1848, o conservadorismo, confrontado com a ‘questão social’ e o movimento
socialista revolucionário de base operária, rendeu-se à irreversibilidade do
desenvolvimento capitalista e assumiu uma perspectiva especialmente contrarevolucionária, oferecendo alternativas reformistas para preservar a ordem estabelecida
e, incorporando, em sua tendência predominante, a racionalidade instrumentalpositivista, mobilizou-se para elaborar a representação teórico-sociológica da sociedade
burguesa.
Machado irá analisar a obra de Manheim, pois ela está atrelada a uma especialização
sociológica que atingiu um estatuto acadêmico. Trata-se da sociologia do conhecimento. Para
Manheim, a sociologia do conhecimento tem por objetivo compreender o pensamento em um
93
contexto histórico-social. Os homens inseridos em grupos desenvolvem uma forma de
pensamento particular em busca de respostas a situações consideradas comuns. Manheim afirma
que a história do pensamento é uma análise de estilos de pensamento. O aspecto importante para
entender as mudanças são os grupos ou classes sociais. Ao estudar o conservadorismo alemão,
Manheim aponta dois aspectos. Primeiro, o pensamento conservador alemão esteve envolvido
com o romantismo, expressando-se na filosofia. Segundo, o historicismo é uma contribuição ao
pensamento conservador.
Em outro momento Machado (1997) destaca a obra de Nisbet, pois ele é um autor que
esteve atento ao pensamento conservador. Ele tem como objeto de interesse a investigação do
conservadorismo. Nisbet buscou analisar a relação entre o pensamento conservador e a
sociologia, relação esta que ele considerava como genérica e constitutiva, ou seja, elas possuem
relação entre si. Nisbet abordou a perspectiva conservadora atrelada à sociológica. Ele relaciona
análise conservadora com tradição sociológica, articulou a sociologia como expressão científica
do pensamento conservador. Nisbet entendeu a sociologia como uma ciência social que dá corpo
teórico e continuidade ao conservadorismo. Ele assumiu que quando o conservadorismo
converte-se em discurso científico origina-se a sociologia.
Após a análise dos autores que acabamos de elencar, Machado realiza uma análise sobre
as críticas marxistas ao conservadorismo. É no período clássico do conservadorismo (1789 –
1914) que surge o marxismo. A mudança de função do conservadorismo implicou em um
combate ao marxismo, já o marxismo se empenhou em denunciar o conservadorismo. No século
XX apareceu uma análise mais sistemática do pensamento conservador pelos marxistas, e foi
tratada como teoria da contra-revolução. O marxismo e o conservadorismo se expressam como
vertentes do pensamento e da prática política de forma “antípodas e antagônicas”. O
conservadorismo repudia na sociedade burguesa características que o marxismo apresenta como
essenciais para a libertação da humanidade.
A autora resgata a obra de Lênin para mostrar que o marxismo se constitui e se articula a
partir da economia política inglesa, a filosofia clássica alemã e o socialismo utópico, ou seja, a
partir da cultura moderna. Aspectos que se contrapõem ao conservadorismo. “A base fundante do
94
antagonismo entre marxismo e conservadorismo reside na avaliação histórica do Iluminismo e da
Revolução” (Machado, 1997, p. 163).
O antagonismo entre pensamento conservador e marxismo manifestou sua força no plano
político e, nesse aspecto, em todos os conflitos apresentados, a posição dos marxistas foi
contrária a posição dos conservadores.
Após a revolução de 1848, Marx e Engels enfrentaram mais diretamente o
conservadorismo. É importante destacar que Marx e Engels apresentam ao longo de suas obras e
de seus combates políticos, posições contrárias e antagônicas ao conservadorismo, porém não foi
preocupação deles formular:
Uma crítica sistemática do conservadorismo. Envolvidos como estavam na elaboração
teórica e na organização do movimento operário, seus esforços de crítica sistemática se
dirigiram, sobretudo às correntes que poderiam afetar diretamente essa organização, a
que desejavam dar caráter revolucionário e de massas – daí o tratamento muito mais
detalhado de seus oponentes no campo reformista (Proudhon) e revolucionário
(Bakunin) do que o dedicado aos seus antagonistas (Machado, 1997, p. 171).
Marx e Engels apresentaram elementos fundamentais que permitiram embasar uma crítica
ao conservadorismo a partir da concepção da qual se apropriaram, concepção que se expressou
nas relações entre cultura e desenvolvimento econômico.
Machado destaca que os marxistas, diante da conjuntura do século XX, são direcionados a
realizarem uma crítica ao conservadorismo, seja pela derrota da revolução proletária, seja pela
chegada do nazi-fascimo ao poder político, seja pela ditadura stalinista na União Soviética. Ao
relatar tais fatos, Machado sinaliza que a crítica ao conservadorismo se deu menos por motivos
teóricos e mais por questões de ordem prático-política. Isso significa que a conjuntura
conservadora da época demandava uma resposta dos marxistas à realidade.
Machado finaliza apresentando a leitura de Löwy sobre o conservadorismo. As respostas
românticas não tiveram sentido ideo-político e cultural. Elas foram formuladas de maneiras
diversas para apontar comportamentos conformistas ou revolucionários. A visão do mundo
romântica não é suporte do conservadorismo nem do reacionarismo. Para Löwy não há uma
relação antagônica entre romantismo e Iluminismo. A autora acrescenta que existem seis tipos de
romantismo: “o restitucionista, o conservador, o fascista, o resignado, o reformador e o
95
revolucionário e/ou utópico” (Machado, 1997, p. 220).
Machado apresenta uma contribuição importante para o Serviço Social. Sua preocupação
em resgatar a compreensão do conservadorismo romântico nos aponta dois aspectos: o primeiro,
trata-se de fundamentar e caracterizar o conservadorismo, sua heterogeneidade, pois
frequentemente, tendemos a tratar de “um conservadorismo” e não de “uma das expressões do
conservadorismo”; o segundo aspecto refere-se a densidade de suas análises e a preocupação em
esmiuçar a leitura de diversos pensadores sobre as bases do conservadorismo.
A partir da leitura de Machado pudemos constatar e reafirmar a crítica a sociedade
capitalista – ora tratada no primeiro capítulo através do pensamento de Lukács – e também,
constatamos que a sociologia possui uma relação com o conservadorismo – conforme sinalizado
no primeiro capítulo na leitura que fizemos de Gouldner. As reflexões de Machado confirmam
nossa análise da conjuntura na qual o conservadorismo surge como uma contra proposta ao
pensamento crítico marxista de análise da sociedade capitalista.
Não basta o Serviço Social pensar nas expressões do conservadorismo de forma
endógena, mas sim compreendê-la em sua totalidade e conjuntura histórica. Ao abordar uma
análise do pensamento conservador a proposta de Machado ultrapassa uma simples associação da
profissão aos limites do pensamento conservador. A autora consegue capturar a dialética e
contradições desta relação ao mesmo tempo em que aponta a sociedade capitalista como um
marco importante para a configuração do conservadorismo.
Sendo a ideologia da classe dominante a principal expressão de um modo de ser e de
pensar da sociedade capitalista, Machado mostra que este pensamento está ancorado em bases
conservadoras. Sua principal preocupação é compreender o conservadorismo romântico, pois ele
é uma expressão da reprodução da ideologia dominante e de seus interesses de classe.
96
2.4. O debate das duas teses: da compreensão conservadora a compreensão crítica do
Serviço Social
Após discutirmos as influências conservadoras no Serviço Social e sua expressão através
do sincretismo, apontaremos um debate relevante para o entendimento do significado e
surgimento da profissão. Sem essa apropriação e sem uma leitura crítica do movimento histórico,
que permitiu o surgimento do Serviço Social no Brasil, os assistentes sociais podem recair em
diversas leituras equivocadas e também podem sofrer influências do pensamento conservador
sem ao menos terem a apropriação necessária para serem capazes de criticá-lo.
A compreensão da origem do Serviço Social foi muito debatida e polarizada em torno de
duas idéias. Mesmo que atualmente tenhamos atingido uma leitura crítica da inserção da
profissão na sociedade capitalista e que tal leitura seja hegemônica, embora não a única, na
formação profissional dos assistentes sociais, há, ainda, outras compreensões sobre a gênese do
Serviço Social. Tais leituras apontam duas perspectivas divergentes que se manifestaram na
profissão de formas diferenciadas. A importância de entender tais visões nos esclarece a imagem
historicamente configurada da profissão e nos permite perceber os elementos constitutivos que
configuraram o Serviço Social. Existem duas perspectivas sobre a origem da profissão que
demarcam o surgimento do Serviço Social na sociedade capitalista que são a perspectiva
endogenista e a perspectiva histórico-crítica.
Montaño (2007) situa a perspectiva endogenista como predominante até o período
caracterizado como movimento de reconceituação. Já a perspectiva histórico-crítica vigorou de
forma mais ampla a partir da segunda metade da década de 1980. Sinalizo ainda que a primeira
perspectiva está vinculada a uma concepção conservadora da profissão e a segunda está atrelada a
uma visão crítica da origem do Serviço Social, exatamente por se configurar em um momento de
questionamento das bases e da origem da própria profissão.
A perspectiva endogenista concebe a profissão como uma forma de evolução, de
organização, de profissionalização e de reorganização da ajuda, de caridade e da filantropia. A
97
profissão é vista a partir de si mesma, sem relação com o contexto social, com o movimento da
história ou com a perspectiva de totalidade. O movimento da realidade não é apreendido como
um fundamento essencial, ele é visto como etapas de desenvolvimento de formas de caridade e
filantropia. Seria uma forma de ajuda mais organizada e sistematizada, e também mais avançada.
Dentro desta perspectiva há autores que divergiram acerca da gênese do Serviço Social. Alguns
concebem o Serviço Social como proveniente de qualquer tipo de ajuda como as de origem das
relações entre os homens desde o surgimento de sua história, de sua humanidade. Outros
distinguem a profissão de certas práticas de ajuda como a caridade, a filantropia muito atrelada ao
surgimento do capitalismo. Não há divergência entre os autores que defendem essa perspectiva,
isso porque eles apontam a seguinte tese: “o Serviço Social é a profissionalização, organização e
sistematização da caridade e da filantropia” (Montaño, 2007, p. 26).
Montaño (2007) discorre acerca de diversos autores que concebem a profissão a partir de
si mesma como se o Serviço Social surgisse de forma natural na sociedade, como uma evolução
de práticas de ajuda pré-existentes. Nessa concepção não há uma análise da realidade social nem
do contexto histórico em que o Serviço Social é requisitado. Não cabe aqui tratar de cada autor
particularmente, já que nosso objetivo é entender a percepção na qual se desenvolveu a profissão
e os elementos que compõem sua origem. De uma forma geral, é possível dizer que sobre a
perspectiva endogenista:
A história e a sociedade são postas apenas como o cenário de desenvolvimento
profissional (...), como uma maquete onde se insere uma peça autônoma do contexto.
Nessa crônica historiográfica realiza-se, portanto, uma descrição dos eventos históricos e
neles, como autônomos, se situam os eventos profissionais, sem relação imanente visível
entre o desenvolvimento do Serviço Social e a história da sociedade. Desta forma, os
fatos, tanto do Serviço Social quanto da história, são naturalizados; constrói-se a
‘história’ (...) sem recuperar a processualidade histórica, num claro etapismo (Montaño,
2007, p. 28).
Netto (2001) trata a perspectiva endogenista como a “tese simples”. O simples refere-se
justamente ao fato de se realizar uma leitura simplista do surgimento do Serviço Social, sem
passar por uma análise crítica da história na qual a profissão se insere, sem entender o movimento
do capitalismo nem suas contradições e requisições. É simples porque visa entender o surgimento
da profissão a partir de um referencial teórico-científico e da necessidade de se apropriar de um
98
instrumental operativo de origem técnica.
O norte teórico-científico defende que o Serviço Social conseguiria superar sua origem
baseada em formas de ajuda se fosse capaz de desenvolver um arsenal teórico próprio. Ou seja, se
a profissão portasse certa cientificidade, se fosse reconhecida como uma área da ciência com
teoria própria.
Já a necessidade de se apropriar de um instrumental operativo refere-se ao fato de tal
perspectiva prioriza instrumentos de intervenção profissional. A busca por instrumentos de
intervenção ocorre porque os profissionais reivindicam arsenais materiais para sua atuação
profissional. Ao tratarem da realidade social e das expressões da “questão social” os assistentes
sociais apresentam dificuldades de trabalhar com as respostas que devem dar a suas demandas.
Ao trabalharem com políticas sociais os assistentes sociais devem ter uma boa análise da
realidade, das respostas possíveis a serem dadas e dos limites de sua intervenção. Não se trata
simplesmente de materializar o resultado de sua intervenção. O Serviço Social é uma profissão
que exige de seus profissionais um exercício constante de seu intelecto. Se os profissionais não
conseguem compreender que a existência de um instrumento material não determina sua inserção
e intervenção profissionais, ele poderá recair em uma série de equívocos. Não se trata de negar o
aporte instrumental, mas sim de percebê-lo como um meio de intervenção que por si só não
confere respostas às demandas apresentadas.
É importante destacar que Netto (2001, p. 70) trata da complexidade de se entender a
origem do Serviço Social. Ele diz que esse equívoco de compreensão sobre a origem da profissão
ocorre porque:
Trata-se da relação de continuidade que efetivamente existe entre o Serviço Social
profissional e as formas filantrópicas e assistenciais desenvolvidas desde a emergência
da sociedade burguesa. Esta relação é inegável e, em realidade, muito complexa; de um
lado, compreende um universo ideo-político e teórico-cultural, que se apresenta no
pensamento conservador; de outro, envolve modalidades de intervenção características
do caritativismo –ambos os veios cobrindo igualmente a assistência ‘organizada’ e o
Serviço Social.
A partir da perspectiva histórico-crítica a origem da profissão é analisada na
processualidade social, política e econômica do desenvolvimento histórico da sociedade na fase
do capitalismo monopolista quando se agrava e acirram as expressões da “questão social” e o
99
Estado passa a intervir sobre a mesma através de políticas sociais. Montaño (2007) apresenta uma
série de autores que defendem essa perspectiva e que também divergem entre si, mas em comum
concordam com o fato de que o assistente social é um executor terminal de políticas sociais, é um
ator subalterno. O assistente social possui como campo de trabalho privilegiado a esfera estatal,
que é constituída por políticas sociais. Portanto, o Serviço Social é uma profissão tensionada,
repleta de contradições (assim como a lógica da ordem social na qual se insere).
Para Montaño a profissão emerge no momento em que o Estado se enfrenta com a
“questão social” através de políticas sociais que requerem agentes técnicos para sua formulação e
sua implementação. O assistente social é um agente executor de políticas sociais e não
desempenha funções produtivas15. A intervenção profissional reproduz as dimensões da resposta
integradora das políticas sociais.
A partir dessa polarização de concepções (perspectiva endogenista e perspectiva históricocrítica) Montaño (2007) destaca dois pontos importantes sobre a necessidade de se analisar o
surgimento do Serviço Social de forma crítica. O primeiro, refere-se à necessidade da apreensão
da particularidade do Serviço Social, a partir de um processo histórico englobando uma
perspectiva de totalidade. O segundo, consiste no fato de que é necessário reconhecer a
participação dos primeiros agentes profissionais. Estes aspectos iniciais devem ser apreendidos
de forma crítica, pois permitem a compreensão dos fundamentos da profissão.
Outro aspecto relevante é entender o Serviço Social como parte de um processo que se
gesta na ordem burguesa e, nesse sentido, a profissão tem um papel nesta ordem social.
Concordamos com Montaño (2007) quando o mesmo diz que a legitimidade da profissão está
atrelada à função que executa e não à sua especificidade. Isso é importante porque historicamente
o Serviço Social busca conhecer qual é sua especificidade, o que o diferencia de outras profissões
que intervém na esfera social. A legitimidade de uma profissão decorre do fato de ela dar
15
É importante destacar que para Iamamoto (2007) o Serviço Social pode desenvolver funções produtivas, mas isso
não é uma regra. A autora apresenta uma perspectiva diferente ao defender o Serviço Social como uma forma de
trabalho. Sua inserção na divisão social e técnica do trabalho através de diversas áreas irá determinar se o assistente
social desenvolve uma função produtiva ou não. Ela dá o exemplo do assistente social inserido na empresa e que
contribui com a produção da mais-valia, por isso ele teria uma função produtiva. Já o assistente social inserido na
esfera estatal trabalharia com a distribuição da riqueza produzida e não teria uma função produtiva. Este é um debate
que requer muitos cuidados.
100
respostas às necessidades sociais, ou seja, de surgir como uma requisição do tensionamento entre
a relação capital/ trabalho manifestada pela chamada “questão social” e pelo fato de se estruturar
e se efetivar em instituições e organizações que demandem o trabalho deste profissional e
organismos que desenvolvam políticas sociais. Isso significa que é um conjunto de elementos e
fatores que conferem legitimidade a uma profissão, inclusive o aparato institucional, visto que o
assistente social não é um profissional liberal.
Precisamos considerar ainda que a profissão é demandada em dois aspectos: pela
população usuária dos serviços sociais e das políticas sociais; e pelo Estado e instituições do
capital. Esses atores defendem interesses antagônicos e, por isso, o Serviço Social apresenta uma
feição contraditória. Essa dupla requisição à profissão não significa que os profissionais tenham
que dar respostas a ambas as demandas na mesma intensidade. Ora o profissional atende mais as
demandas do capital, ora atende mais as demandas dos usuários. O que define qual o ator
prioritário é a inserção profissional, o campo de trabalho, a conjuntura, a leitura da realidade, e a
correlação de forças. Em linhas gerais: são diversos fatores de diferentes ordens. Vale ressaltar
que em nenhum momento o profissional deixa de atender uma requisição em detrimento de outra,
elas estão sempre sendo polarizadas. Nisso consiste um dos aspectos contraditórios do exercício
profissional.
A análise feita pela perspectiva histórico-crítica é embasada em uma leitura marxista da
realidade e, hoje, é a perspectiva hegemônica na formação profissional dos assistentes sociais e
nas deliberações das entidades político-representativas da categoria profissional.
Travar o debate da natureza do Serviço Social e as compreensões sobre sua origem é
importante, pois permite entender quais ou qual base/s teórica/s incidem na profissão, ou seja,
como os assistentes sociais lidam com o fato de o Serviço Social ter uma origem de base
conservadora que demanda uma ação profissional mais imediatista e pragmática e, ao mesmo
tempo, buscam uma leitura crítica-dialética referenciada pela teoria marxista. Ao entendermos os
elementos que compõem o Serviço Social é possível pensar nos limites e possibilidades de
ruptura com o conservadorismo.
O debate da natureza do Serviço Social tem relação com a forma como os profissionais se
101
aproximaram das teorias sociais, da capacidade de realizarem uma análise crítica da realidade
social e de compreenderem a lógica da sociedade capitalista. Para tanto, é necessário uma leitura
crítica da realidade que só é possível através do pensamento crítico-dialético.
As leituras que realizamos e as perspectivas dos autores que apontamos nos permitiram
apresentar um panorama geral do debate do conservadorismo no Serviço Social. Esse debate é
relevante para discutirmos tanto as relações que se fizeram presentes na profissão quanto os
desafios e reatualizações do conservadorismo que se põem na contemporaneidade.
Ao nos preocuparmos em aprofundar um entendimento do pragmatismo e sua possível
relação com o Serviço Social nos reportamos a questionamentos que nos acometem diariamente
quanto às exigências postas à profissão em seu cotidiano. Nossa principal preocupação consistiu
em conseguir identificar os elementos pragmáticos e sua possível influência no Serviço Social.
Partindo dessa preocupação apresentaremos no próximo capítulo algumas considerações sobre o
pragmatismo clássico. Sabemos que estas são notas iniciais, uma proposta emergente de estudar
uma das expressões que consideramos conservadoras, tão desconhecidas pelo Serviço Social, mas
que não lhes são estranhas às requisições postas pela prática profissional.
102
3 - A racionalidade conservadora de origem pragmática: aspectos e características
para o debate no Serviço Social
No Brasil, a conjuntura da década de 1990 foi de aprofundamento das propostas
neoliberais. As contradições do capitalismo foram enfrentadas de forma a enxugar os
investimentos nas políticas sociais e a priorizar as ações que valorizassem a reprodução do
capitalismo. As precárias condições de vida da massa da população tornaram-se mais evidentes e
mais difíceis de serem escamoteadas. A desigualdade econômica e social se acirrou em
decorrência da concentração de renda e de riqueza sobre o poder de uma elite econômica.
Diante da precarização das políticas públicas, o Estado reduziu seu investimento na área
social, ao mesmo tempo em que valorizou a área econômica. A conjuntura do momento
apresentou um quadro complexo para o desenvolvimento do exercício do trabalho profissional
dos assistentes sociais. A realidade social da população agravou-se continuamente e, assim,
permaneceu com a virada do século XXI. Ao invés de manter direitos garantidos
constitucionalmente e de se assegurar políticas públicas eficientes, houve um retorno do
assistencialismo e da filantropia como forma de atender às demandas sociais existentes. Iniciouse um processo de parcerias entre o Estado e a sociedade civil que passou a se organizar através
de Organizações Não Governamentais – ONGs – e das Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público – OSCIPs.
Ocorreu uma retomada do pensamento conservador, tanto do conservadorismo romântico
– no sentido de manter um saudosismo às instituições e a um modo de pensar do passado précapitalista – como do conservadorismo tradicional – de manter a ordem social vigente.
Este capítulo trata do pragmatismo a partir do debate realizado por Pogrebinschi (2005)
pautado na leitura que a autora realizou de James, Dewey e Pierce, três dos principais precursores
do pragmatismo. Nossa preocupação é apresentar as características deste modo de pensar e
conceber as pesquisas e as teorias. Através da autora mencionada poderemos apresentar um
panorama dos principais aspectos deste debate. Posteriormente recorremos a James, pois
103
consideramos sua leitura relevante para articular o debate do pragmatismo ao Serviço Social.
Ao abordar o pragmatismo pretendo mostrar o significado desta racionalidade para a
sociedade. Pretendo tratar não apenas de seu significado, mas também de sua essência, de sua
origem, de seus precursores. Parto do suposto de que é inviável considerar o pragmatismo sem
antes relacioná-lo a um modo de ser e pensar de determinado modo de produção e cultura. Tal
proposição significa dizer que o pragmatismo está atrelado a uma determinada ideologia,
portanto, possui uma função ideológica. Trato especificamente de uma perspectiva relacionada à
sociedade norte-americana.
Iremos tratar do pragmatismo a partir de algumas considerações que merecem ser
destacadas. Primeiro, abordaremos um modo de ser e de pensar a sociedade e a realidade a partir
de um movimento que surgiu nos Estados Unidos. Para tanto será necessário a apropriação dos
autores e pensadores que trataram o pragmatismo, pois este não se expressa de forma homogênea
entre seus adeptos. Ocorre justamente o contrário: há diversos autores que tratam do pragmatismo
e o fazem de formas e perspectivas diferenciadas. Em segundo lugar, nos interessa conhecer
quais as características deste modo de ser e pensar e suas implicações para a práxis e para o
conhecimento teórico. Por fim, iremos tratar do pragmatismo clássico, aquele que consistiu em
um movimento inicial do pragmatismo manifestado na Universidade de Chicago como uma
oposição e uma crítica à metafísica.
Tratar o pensamento conservador requer um rigor teórico e uma cautela nas análises a
serem apresentadas. Isto porque o movimento da realidade é mais denso e complexo do que nossa
capacidade de apreendê-lo. Podemos observar que ao longo do movimento histórico o
conservadorismo se põe e se repõe; ele se expressa de determinada forma, é questionado em
diversos momentos, sofre tentativas de ruptura, mas ele se repõe de outras formas como se fosse
um novo elemento, por vez apresentando uma falsa aparência. Assim, ora o conservadorismo
manifesta-se de forma dominante, ora ele é objeto de críticas; mas este movimento não se coloca
de forma polarizada de uma ou de outra maneira. A história nos mostra que ao mesmo tempo em
que conserva e repõe aspectos da sociedade que parecem ter sido superados, ela também coloca a
possibilidade de superação desses elementos. O conservadorismo não está presente de forma que
104
seja impossível estabelecer sua superação. Por isso, a necessidade de atenção na análise: as
rupturas dificilmente serão totais e o conservadorismo também não será insuperável. O
conservadorismo não desaparece, mas pode ser subsumido pelo pensamento crítico.
Compreender a constituição do modo de pensar no capitalismo nos permite entender
como o pragmatismo se propagou com facilidade, não apenas nos Estados-Unidos, como também
por outros países, influenciando em suas culturas. Vázquez é um dos autores que permite a
compreensão da dinamicidade desse processo. Ele parte de uma análise do papel da consciência
para a ação do homem. Para desenvolver a consciência individual e de classe há alguns fatores
determinantes, diz Vázquez (2007, p. 42) “a perspectiva de classe não é a única, mas tende a ser a
determinada, na produção da consciência das pessoas e grupos sociais. O operário não pode elidir
a alienação do produto do seu trabalho excedente (não-pago), da mesma forma que o capitalista
não pode elidir essa alienação”. As idéias da classe dominante tendem a ser as idéias dominantes
de uma época, as tornando generalizadas como se fossem interesses coletivos de uma sociedade
em seu conjunto e aparecem assim como “idéias ‘naturais’ ou ‘definitivas’” (Vázquez, 2007,
p.43) de toda sociedade e de todas as classes.
A ciência pode servir como propagadora e defensora dos interesses da classe dominante.
Podemos incluir o pragmatismo como expressão de uma forma de propagar, uma forma de ser, de
pensar e de se expressar da sociedade capitalista. Mas, a classe operária através de sua
organização e luta vai adquirindo consciência de classe para si. É quando a experiência adquire
um papel central, entendendo experiência, nesse caso, decorrente do processo de reflexão. “À
medida que socializam as suas experiências comuns, no contexto das suas relações de trabalho e
de suas experiências da vida cotidiana, os operários compreendem, de modo cada vez mais claro,
o caráter alienado e antagônico da sua condição” (Vázquez, 2007, p. 45).
A experiência tem uma relevância quando se efetiva na práxis da classe trabalhadora,
quando ela se insere na luta contra a alienação. “A classe operária não se constitui apenas porque
o regime capitalista se desenvolve; ela se forma na medida em que luta contra as relações de
alienação em que se acha inserida” (Vázquez, 2007, p. 46). Não é apenas a consciência e a
reflexão teórica que configuram a práxis revolucionária, mas também a luta efetiva dos
105
trabalhadores, sua ação prática.
Vázquez (2007, p. 219) diz que “toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é
práxis”. Isso significa dizer que práxis é um tipo de atividade específica que requer alguns
critérios. Atividade não é sinônimo de práxis, esta articula a apreensão teórica e a atividade. O
autor esclarece o que considera por atividade. A atividade implica em um resultado final que
modifica uma matéria-prima. Atividade é tudo aquilo que é efetivado no sentido de produzir um
resultado que modifique sua matéria original, implica em uma mudança final do produto. Nesse
sentido, tanto o homem quanto o animal realizam atividades. Entretanto, há uma diferença entre a
atividade do homem e a atividade do animal. “A atividade propriamente humana apenas se
verifica quando os atos dirigidos a um objeto para transformá-lo se iniciam com um resultado
ideal, ou fim, e terminam com um resultado ou produto efetivo, real” (Vázquez, 2007, p. 220). A
diferença perceptível é que o homem é capaz de antecipar em sua mente o resultado final de sua
atividade. O homem consegue projetar a possibilidade de mudança na matéria inicial com a qual
trabalha. Ele antecipa o resultado que pretende obter no futuro. Trata-se de projetar o resultado
final de suas ações. Nesse caso trata-se da atividade teleológica16.
Nesse caso, os atos não só são determinados causalmente por um estado anterior que se
verificou efetivamente – determinação do passado pelo presente -, como também por
algo que ainda não tem uma existência efetiva e que, no entanto, determina e regula os
diferentes atos antes de desembocar em um resultado real; ou seja, a determinação não
vem do passado, mas sim do futuro (Vázquez, 2007, p. 220).
O homem é capaz de utilizar sua consciência para pensar no resultado de suas ações.
Dessa forma é possível obter o resultado em duas formas: de forma ideal e de forma real. Isso
porque nem tudo aquilo que projetamos como resultado final será de fato o produto real. É essa
16
Retomamos ao pensamento de Lukács para dizer que a teleologia como uma forma de aprofundar esse debate. De
antemão vale destacar que teleologia para Lukács (2007) consiste em um momento da concepção de trabalho em
Marx. O trabalho humano difere-se dos demais tipos de trabalho porque a projeção intelectual do resultado final do
produto se faz presente durante todo o processo de produção do trabalho. “O caráter teleológico do trabalho é, por
seu turno, um componente do processo total do trabalho; de um lado, este pressupõe o reconhecimento, para a sua
realização, de todos os aspectos objetivos independentes da consciência do homem (as qualidades da matéria, as
propriedades dos instrumentos etc.); de outro, a própria determinação do objetivo é produto da situação social
objetiva, do desenvolvimento das forças produtivas etc” (idem, p. 59) e ainda “do ponto de vista metodológico,
nenhum plano é possível sem uma teleologia precisa; mas uma verdadeira teleologia só pode ser viável sobre o
fundamento das leis objetivas e concretas da economia, com sua base e orientação extraídas das condições e
possibilidades políticas reais das classes e de seus desenvolvimentos previsíveis” (idem, p. 61).
106
relação que dá ao homem um caráter consciente de suas atividades. A atividade do homem passa
por um processo consciente de projeção do resultado e de efetivação do resultado. “Para que se
possa falar de atividade humana é preciso que se formule nela um resultado ideal, ou fim a
cumprir, como ponto de partida, e uma intenção de adequação, independentemente de como se
plasme, definitivamente, o modelo ideal originário” (Vázquez, 2007, p. 221).
Vale destacar que não é só o fato de o homem conseguir imaginar o resultado final de sua
ação que lhe confere uma atividade consciente. É também o conhecimento que ele possui dos
processos econômico-sociais que lhe permitem chegar o mais próximo do resultado final que ele
terá. O próprio processo histórico tem relação com a intencionalidade humana, pois os homens
são sujeitos históricos.
A atividade humana é, portanto, atividade que se orienta conforme a fins, e estes só
existem através do homem, como produtos de sua consciência. Toda ação
verdadeiramente humana exige certa consciência de um fim, o qual se sujeita ao curso da
própria atividade (Vázquez, 2007, p. 222).
Isso significa que o homem é o único ser capaz de intervir na realidade de forma
consciente de modo a pensar no resultado final que pretende obter. O resultado final implica,
entre outros fatores, em escolha de opções entre alternativas possíveis. O fim tem relação com
aquilo que se pretende concretizar, por isso, é produto da consciência. “Não se trata da atividade
de uma consciência pura, mas sim, da consciência de um homem social que não pode prescindir
da produção de fins em nenhuma forma de atividade, incluindo, certamente, a prática material”
(Vázquez, 2007, p.222). Para o autor, o fim está presente no resultado da atividade real e da
atividade da consciência.
A atividade do homem pressupõe uma relação de interioridade - projetar o resultado final
de sua ação - e não apenas de exterioridade - transformar a matéria inicial - como ocorre nas
atividades da natureza. Por exemplo: os animais não são capazes de imaginar o resultado final de
suas atividades, eles apenas as transformam externamente. Para Vázquez (2007), o homem pode
ajustar suas escolhas e seus atos para atingir o fim desejado, fato que não é capaz de ser feito
pelos animais. A consciência é o que diferencia o homem dos demais animais, ela possui uma
relação com a produção de conhecimento por ser uma forma de o homem compreender a
107
realidade. Assim “a atividade da consciência, que é inseparável de toda verdadeira atividade
humana, apresenta-se a nós como elaboração de fins e produção de conhecimentos em íntima
unidade” (idem, p. 224).
Muito importante destacar a relação que Vázquez (2007) faz entre conhecimento e ação.
O conhecimento permite a transformação da natureza e a transformação do próprio homem, “mas
o conhecimento não serve diretamente a essa atividade prática, transformadora; coloca-se em
relação com ela por meio de fins. A relação entre pensamento e ação requer a mediação dos fins
que o homem propõe” (idem, p. 224). A existência de uma relação entre conhecimento e ação
deve perpassar por meios até atingir o resultado almejado. Para transformar a realidade a
atividade da consciência possui uma relação com a teoria. É a teoria que permite estabelecer as
finalidades através dos meios. Na atividade prática a ação ocorre independentemente da
consciência do sujeito, a ação é sobre a matéria que já existe. A mudança da matéria ocorre para
se atender determinada necessidade humana que acarreta em mudança da natureza ou da vida
social. Ocorre a existência de uma nova realidade.
Vázquez (2007) tem a preocupação de tratar da práxis humana a considerando uma
atividade consciente orientada por um processo de conhecimento que visa intervir na realidade
com determinado fim. O autor sinaliza que a práxis é “a atividade prática material, adequada a
fins, que transforma o mundo” (idem, p. 234). Por isso, ele irá tratar de diversos tipos de práxis
de acordo com os fins a que elas se propõem como a práxis produtiva, a práxis artística, a práxis
experimental, a práxis política. Nosso objetivo não é tratar especificamente de cada tipo de
práxis, mas sim sinalizar que a práxis é uma atividade orientada para um fim, que terá um
resultado final no futuro já que é previamente imaginada e idealizada voltada para a
transformação. Isso significa uma mudança na realidade, uma mudança decorrente de uma
atividade planejada intelectualmente, de uma ação humana. Nesse sentido, sinalizamos que a
atividade teórica tem relevância fundamental para a práxis, pois tem relação direta com a prática
e “nela encontra seu fundamento, seus fins e critério de verdade” (idem, p.232). A teoria permite
adquirir conhecimentos para transformar a realidade, mas sem ação essa realidade não é
modificada. Da mesma forma que uma ação sem uma direção teórica torna-se uma ação sem
108
intenção transformadora.
Isso significa que a teoria não é práxis, não modifica a realidade. A teoria permite
transformar a consciência, mas não transforma a realidade; ela é um norte, uma direção para a
ação consciente em busca de determinados fins. A teoria e a prática possuem bases que se
complementam, ou seja, a teoria precisa vincular-se à prática e a prática precisa ligar-se a teoria
para que, de fato, haja uma perspectiva de mudança da realidade com mudança de consciência.
No caso do senso comum, a prática pode se sustentar sem a teoria e, inclusive, opõe-se a
ela. O prático adquire valor utilitário e é esvaziado de valor teórico. “A prática se basta a si
mesma, e o ‘senso comum’ situa-se passivamente em uma atitude a-crítica em relação a ela”
(Vázquez, 2007, p. 240). Há uma valorização do praticismo. Nesse sentido, o pragmatismo ganha
espaço, principalmente em sua percepção de verdade associada ao praticismo. O pragmatismo
está vinculado à necessidade de conhecimentos práticos no qual o verdadeiro se reduz ao que é
útil e vantajoso para determinada situação. “O pragmatismo reduz o prático ao utilitário, com o
qual acaba por dissolver o teórico no útil” (idem, p. 241). Isso pode resultar em alguns equívocos
muito sérios como destaca Vázquez (2007, p. 241):
O pragmatismo identifica o verdadeiro com o útil. Essa tese da utilidade poderia
confundir algumas pessoas se se levar em conta que o marxismo não vê no
conhecimento um fim em si, mas sim uma atividade do homem vinculada a suas
necessidades práticas às quais serve de forma mais ou menos direta, e em relação com as
quais se desenvolve incessantemente.
A verdade para o pragmatismo depende da perspectiva individual, depende daquilo que se
concebe individualmente como verdade, do que será mais útil para determinada situação e do que
é mais interessante e vantajoso para determinado momento. A verdade no pragmatismo é uma
busca por resultados vantajosos para os interesses imediatos. A crítica não está no fato de se
propor uma verdade e sim na perspectiva desta verdade, ou seja, no resultado final.
O marxismo também defende a existência de uma verdade, porém propõe a existência de
um conhecimento verdadeiro quando é possível, através dele, transformar a realidade e quando a
teoria representa, de maneira mais próxima possível, o movimento da realidade. A verdade é uma
reprodução da realidade através de um processo reflexivo no qual o homem pensa e reflete sobre
a realidade, a traduz pelo pensamento de forma a articulá-la com a prática social. “O
109
conhecimento é útil na medida em que é verdadeiro, e não é verdadeiro porque é útil, como
sustenta o pragmatismo” (Vázquez, 2007, p. 242).
A diferença do conhecimento verdadeiro para o pragmatismo e para o marxismo reside no
fato de que para o primeiro, o verdadeiro depende da perspectiva individual e da subjetividade
particular de cada homem, a verdade depende da utilidade que ela possui para determinado
contexto ou situação, a verdade só é válida se ela for útil e aplicada. Para o marxismo o
conhecimento verdadeiro depende de uma apropriação coletiva, está relacionado à possibilidade
de transformações da realidade e possui articulação com o movimento da totalidade, expressando
a realidade pela via do pensamento. A utilidade17 de uma teoria para o marxismo é uma
conseqüência da verdade e não seu fundamento ou sua essência. Isso significa que a verdade
existe independente da vontade individual, cabe aos homens desvendá-la. A verdade só pode ser
desvendada através de uma apropriação teórica realizada por via de uma consciência refletida,
através da teoria. Logo, a teoria para o marxismo também possui uma utilidade, uma função, mas
ela não é apropriada com fins utilitaristas. A diferença da concepção de verdade do marxismo
para o pragmatismo é esclarecida da seguinte forma: “enquanto o primeiro procura provar o
verdadeiro como reprodução espiritual da realidade, o segundo deseja provar o verdadeiro como
aquilo que é útil” (Vázquez, 2007, p. 242).
A concepção de prática do pragmatismo possui uma conotação específica: é uma ação na
qual os indivíduos desenvolvem uma prática individual. Já a prática para o marxismo é uma ação
transformadora de perspectiva social. Assim podemos afirmar que:
O critério de verdade do pragmatismo é, portanto, o êxito, a eficácia da ação prática do
homem entendida como prática individual. Para o marxismo é a prática, mas concebida
como atividade material, transformadora e social. Enquanto para o pragmatista o êxito
revela a verdade, isto é, a correspondência de um pensamento com seus interesses, para
o marxista a prática social revela a verdade ou falsidade, isto é, a correspondência ou não
de um pensamento com a realidade (Vázquez, 2007, p.242).
A prática humana para o autor é entendida como toda ação que ultrapassa a subjetividade
quando há transformação de algo material, quando ocorre um processo objetivo. Entretanto, a
17
E complementamos com a seguinte passagem: “é evidente que o quando o marxismo fala da utilidade ou função
prático-social da ciência, coloca-se em um plano muito diferente, pois não se trata da utilidade nesse sentido
estritamente egoísta, mas sim da utilidade social” (Vázquez, 2007, p. 242).
110
atividade humana apresenta um aspecto subjetivo por tratar de ser também uma atividade da
consciência e é objetiva porque opera em determinada matéria que existe independente de sua
consciência.
As modificações impostas aos fins de que se havia partido para conseguir uma passagem
mais cabal do subjetivo ao objetivo, do ideal ao real, só fazem demonstrar, ainda mais
vigorosamente, a unidade entre o teórico e o prático na atividade prática. Esta, como
atividade ao mesmo tempo subjetiva e objetiva, como unidade do teórico com o pratico
na própria ação, é transformação objetiva, real, na matéria através da qual se objetiva ou
realiza um fim; é, portanto, realização guiada por uma consciência que, ao mesmo
tempo, só guia ou orienta – e isso seria a expressão mais perfeita da unidade entre teoria
e prática – na medida em que ela mesma se guia ou (se) orienta pela própria realização
de seus fins (Vázquez, 2007, p. 264).
Sobre a relação da teoria e prática cabe destacar que a ciência é desenvolvida
concomitantemente ao desenvolvimento das forças produtivas, quanto mais desenvolvida estas
forem mais as ciências se desenvolverão também. A primeira vez que se percebeu a necessidade
de produzir teoria a partir da prática foi com as ciências naturais. Isso começou a ocorrer na
sociedade moderna com a ascensão da burguesia. As ciências que mais progrediram foram
aquelas que se constituiram como necessárias ao desenvolvimento tecnológico e das forças
produtivas, ou seja, aquelas que lhes são mais úteis. Na sociedade contemporânea a produção
capitalista determina o nível de desenvolvimento da ciência.
A teoria possui uma relativa autonomia, mas seu desenvolvimento está relacionado à
prática social, pois as exigências da prática são uma forma importante de desenvolvimento da
teoria. A prática constitui-se como fundamento da teoria, já que a teoria está vinculada as
necessidades práticas do homem social. Para o marxismo a prática é o critério de verdade da
teoria e é também seu fundamento. “A teoria tem seu fundamento inesgotável na prática”
(Vázquez, 2007, p. 253).
No marxismo teoria e prática estão intimamente conectadas, pois Marx
Não busca o desenvolvimento da teoria em um puro desenvolvimento lógico e interno da
mesma, mas sim com base – e em função – da prática. A teoria revolucionária não se
desenvolve em prol da própria Teoria, e sim em nome da práxis; é uma teoria fundada na
prática que tende, por sua vez, a resolver – justamente por seu caráter rigoroso,
científico, objetivo – as contradições que se apresentam real e efetivamente (Vázquez,
2007, p. 255).
111
Um aspecto analisado por Vázquez (2007) é sobre o potencial da teoria em se antecipar à
prática. A teoria pode ser elaborada e abordar uma prática que ainda não se efetivou, trata-se não
só de aprofundar uma análise sobre a realidade social e prática do homem como também tem
relação com a capacidade do homem elaborar em sua consciência as possibilidades futuras a
partir do acúmulo teórico e prático. Isso consiste em uma “antecipação ideal do que, não
existindo ainda, queremos que exista” (idem, p. 256). Para o autor:
A prática como fim da teoria exige uma relação consciente com ela, ou uma consciência
da necessidade prática que deve se satisfazer com a ajuda da teoria. Por outro lado, a
transformação desta em instrumento teórico da práxis exige uma elevada consciência dos
laços que vinculam mutuamente teoria e prática, sem o qual não se poderia entender o
significado prático da primeira (idem, p. 256).
Basta lembrar que o fato da prática ser fundamento e fim da teoria não significa que essa
relação ocorra de forma simples e imediata, pelo contrário, é necessário um processo de
apropriação e apreensão da prática e da realidade com o objetivo de realizar uma reflexão
consciente. Há teorias que surgem para explicar outras teorias, porém, de certa forma, mesmo que
indiretamente, as teorias estão vinculadas a questões da prática.
Para Vázquez (2007) há uma interpretação equivocada da unidade entre teoria e prática
quando se desconsidera que a teoria possui uma relativa autonomia ou quando se pensa que a
prática pode se transformar em teoria ou que basta o fato de se acumular experiências práticas
para se desenvolver uma teoria. É como se afirmássemos que a partir da prática podemos
desvendar sua essência, sua verdade; como se a prática se mostrasse por si só. Para o autor, o
problema da relação entre teoria e prática só pode ser interpretado corretamente quando
consideramos que a prática se constitui como uma atividade objetiva e transformadora da
realidade e não como uma atividade subjetiva e individual como faz o pragmatismo.
A prática por si só não consegue mudar a consciência do homem, não consegue
transformar a realidade. Para que isso ocorra é necessário uma prática consciente, pensada.
Através da elaboração teórica é possível adquirir consciência da prática transformadora e da
práxis social. A teoria é importante porque as relações entre os homens se manifestam de forma
mistificada e aparente. A teoria é uma forma de desvendar tais relações em sua essência e em sua
verdade buscando a compreensão da realidade.
112
Podemos afirmar a existência da prática, da teoria e da práxis, mas elas não aparecem de
forma fragmentada e totalmente independentes uma das outras. A teoria, como já dissemos,
possui uma autonomia relativa porque tem sua fundamentação na prática. Já a práxis consiste em
um nível de elevação da prática humana. Para o marxismo, a prática consiste em um critério de
verdade, mas isso só ocorre quando há uma relação teórica que permite sua compreensão. A
prática é critério de verdade da teoria, não porque ela se mostre em sua essência ou porque seja
capaz de indicar o que é verdadeiro ou o que é falso, e sim porque a teoria busca na prática sua
fundamentação. Isso não significa que a teoria tenha que se subordinar à prática, ela pode
antecipar-se à realidade e a própria prática. A teoria não transforma a realidade, só através da
práxis é possível que isto ocorra. A teoria, a partir da análise da própria realidade, pode se
antecipar a ela, mas não pode intervir diretamente para sua efetivação. É a prática humana que
permite a transformação, é a prática pensada e refletida, a práxis que confere a possibilidade de
mudanças. “Uma teoria que não aspira a realizar-se, ou que não pode plasmar-se, vive uma
existência meramente teórica e, portanto, desligada ou divorciada da prática” (Vázquez, 2007, p.
261). É necessário atentarmos para um elemento primordial: nem toda teoria é elaborada com o
objetivo de ser concretizada pelos homens, há teorias que buscam compreender a realidade
através de elaborações e experiências anteriores.
O autor caracteriza a práxis como ação humana sobre a matéria e a criação de uma nova
realidade a partir da transformação da matéria. Por isso, ele afirma que há diferentes tipos de
práxis já que a mesma depende do nível de consciência do sujeito. Logo, ele tratará da práxis
criadora e da práxis reiterativa ou imitativa e abordará também a práxis reflexiva e a práxis
espontânea. Para Vázquez a práxis criadora e a práxis reflexiva possuem relação próxima assim
como a práxis reiterativa e a práxis espontânea se aproximam. O que determina o tipo de práxis é
o grau de consciência do sujeito no processo de criação e o grau de criação do resultado do
produto realizado pelo homem.
A práxis reiterativa se aproxima da práxis espontânea, ela pode ser caracterizada como
uma práxis reiterativa imitativa. Por ser imitativa podemos entender como se houvesse uma
relação com uma lei pré-estabelecida, sua execução se concretiza em diversos produtos que
113
possuem características semelhantes, já que não é uma práxis inovadora. Já a práxis criadora não
possui uma lei pré-estabelecida e apresenta um produto novo e único, permite o enfrentamento de
novas necessidades e novas situações configurando criações autênticas. Assim, “a práxis se
caracteriza por esse ritmo alternado do criador e do imitativo, da inovação e da reiteração”
(Vázquez, 2007, p. 267).
Vale destacar que o homem não vive em um constante estado de criação, ele somente cria
por necessidade, para adaptar-se a novas situações. O homem é o único ser que precisa criar
soluções que não podem ser meras repetições. É através de sua criação que o homem consegue
transformar o mundo. Nesse sentido, a práxis é uma atividade criadora, entretanto ela apresenta
sua face reiterativa e inovadora.
Para Vázquez (2007) a práxis criadora apresenta três características fundamentais, a saber:
a unidade entre o objetivo e o subjetivo18, a imprevisibilidade do resultado e do processo
estabelecido até chegar-se ao resultado e a unidade e exclusividade do produto.
A práxis reiterativa está aquém da práxis criadora, pois ela é uma práxis simples e
imitativa. Isso ocorre porque o aspecto subjetivo do processo é, de certa forma, relegado. O
subjetivo é encarado como um modelo ideal que necessariamente irá se realizar como foi
previamente idealizado. Aproxima-se a uma reprodução mecânica da associação entre o real e o
ideal, ou seja, plasma-se um modelo ideal, modelo este que “permanece imutável como um
produto acabado já de antemão que não deve ser afetado pelas vicissitudes do processo prático”
(Vázquez, 2007, p. 274). O ato de fazer consiste na mera repetição de outro fazer, no qual a
criatividade é subsumida. As leis que regem a ação já são conhecidas, basta submeter-se a elas.
Assim, a práxis reiterativa tem por base uma práxis criadora já existente, ela não produz inovação
nem nova realidade ou sequer uma mudança na mesma. “Seu modo de transformar já é
18
Como momento subjetivo Vázquez (2007) caracteriza como o momento teórico estabelecido pela consciência da
atividade realizada. Para o autor a atividade prática humana é estabelecida quando se ultrapassa o aspecto subjetivo,
ou seja, quando há a transformação em algo material e não simplesmente idealizado. Essa transformação em algo
material ocorre independente da consciência do sujeito. “Para poder exercer sua atividade, o sujeito prático precisa
de uma esfera que não seja mera projeção de sua subjetividade” (idem, p. 262). A relação objetividade e
subjetividade fica esclarecida na seguinte passagem: “A atividade do sujeito prático nos é oferecida nessa dupla
vertente: por um lado, é subjetiva enquanto atividade de sua consciência, mas em um sentido mais restrito, é um
processo objetivo na medida que existe independentemente de sua consciência, de seus atos psíquicos, podem ser
comprovados inclusive objetivamente por outros sujeitos” (idem, p. 262).
114
conhecido, porque já foi criado antes” (idem, p. 275).
Outro tipo de práxis que Vázquez (2007) aborda é a práxis burocratizada. Este tipo de
práxis é interessante para pensarmos o pragmatismo. Nele há uma separação entre a forma e o
conteúdo, entre o exterior e o interior. “A exterioridade ou formalização da prática é o traço mais
característico do burocratismo” (idem, p. 276). A práxis burocratizada pode repetir-se de forma
mecânica e automática sem nenhum processo reflexivo. “Ao burocratizar-se uma atividade
prática, a lei que a rege se converte em uma lei a priori estranha a seu conteúdo, a atividade
burocratizada pode repetir-se até o infinito, com a condição de preencher a forma que preexiste
ao conteúdo e à margem do próprio processo prático” (idem, p. 276). O conteúdo dessa práxis é
esvaziado, pois ele é sacrificado em detrimento da forma. O autor caracteriza o burocratismo
como algo necessário ao capitalismo monopolista que burocratiza a economia, a política, a
cultura e a vida social. O burocratismo pode ocorrer não só no corpo do Estado, mas também em
qualquer instituição que possui um quadro de funcionários.
Em suma, essa práxis degradada e diametralmente oposta a uma práxis criadora nada
mais é do que o desdobramento de uma lei estabelecida e conhecida de antemão, sem
levar em conta as particularidades concretas de sua aplicação; é, em conseqüência, a
plasmação de uma forma não determinada por seu conteúdo. É uma forma de práxis
mecânica em que a sua repetição infinita se alcança mediante sua extrema formalização,
ou seja, mediante a negação do papel do conteúdo para sujeitá-lo inteiramente a uma,
forma exterior a ele. Desta práxis se elimina, portanto, toda determinabilidade do
processo prático, que se torna assim abstrato e formal, e com isso desaparece igualmente
a imprevisibilidade e a aventura que acompanha toda práxis autenticamente criadora
(Vázquez, 2007, p. 279).
Esse burocratismo pode ser identificado através da produção realizada pelos homens que
operam máquinas, já que ela ocorre da forma mais impessoal e inconsciente possível. O homem
não reflete sobre o momento da produção, ele reproduz automaticamente os movimentos
necessários para operar a máquina, pois isto já está incutido em seu cotidiano de trabalho. No
processo de produção não há espaço para a consciência visto que o homem pensa necessitar da
máquina para trabalhar e não a máquina que precisa do homem para ser operada. Aparentemente
é a máquina que produz valor, por isso há o receio de perder espaço de trabalho para as
máquinas.
O trabalho do homem exige, de certa forma, uma práxis criadora, pois ele precisa inovar e
115
transformar a matéria original em um produto que tenha utilidade ou que supra suas necessidades
materiais. Esse tipo de práxis exige uma atividade da consciência – a consciência também está
presente nas demais práxis em maior ou menor intensidade de acordo com o tipo de cada uma –
que esteja presente no decorrer do processo prático atrelada aos seus fins para transformar um
resultado idealizado em resultado realizado.
Vázquez (2007) chama de “consciência da práxis” aquela consciência que se projeta a
partir da atividade prática que é desejada pela consciência, é um tipo de consciência que está
voltada a si mesma e sobre a atividade material do homem. A consciência da práxis distingue-se
da consciência da prática, apesar de ambas terem relação com o processo prático. “Toda
consciência prática sempre implica certa consciência da práxis, mas as duas não estão no mesmo
plano ou nível. Pode ocorrer que, em um processo prático, a primeira esteja muito abaixo da
segunda” (Vázquez, 2007, p. 293).
Vale retomar um exemplo dado pelo autor, por se tratar exatamente daquilo que
pretendemos analisar: a atividade prática do homem. Um operário que realiza um trabalho
“monótono, parcelado e mecânico” não apresenta uma relação direta entre sua consciência da
práxis com a consciência da prática, pois seu trabalho consiste em aplicar e reproduzir um fim
determinado anteriormente, sem que seja necessário o desenvolvimento de sua capacidade
teleológica. Nesse caso as duas consciências não estão no mesmo plano de relação, pois seu
trabalho não passa de mera repetição de um fim determinado previamente, ou seja, não requer
dele um processo reflexivo. Por isso, o autor afirma que a consciência prática está abaixo da
consciência da práxis.
A atividade prática ainda possui dois tipos de práxis: a práxis espontânea e a práxis
reflexiva. É preciso cuidado para não pensar que na práxis espontânea não há presença de
consciência, pois na atividade espontânea também há consciência. Para diferenciar uma da outra
é necessário avaliar o grau de consciência presente em cada uma. Por exemplo: a práxis criadora
pode ser reflexiva e espontânea. A práxis reiterativa possui intervenção da consciência, apesar de
ser pouca. A práxis mecânica se opõe a atividade prática criadora e atividade prática espontânea.
Podemos compreender o significado das teorias a partir do próprio marxismo. Vázquez
116
(2007) trata o marxismo como uma teoria expressa pelo pensamento com intenção de mudar e
reproduzir idealmente determinada realidade. O marxismo é uma ideologia, mas possui também
um aspecto científico. Em síntese: “O marxismo é, ao mesmo tempo, ciência e ideologia,
conhecimento e expressão, teoria que corresponde a determinadas circunstâncias e interesses
sociais sem deixar de ser verdadeira, e ideologia cientificamente fundada” (idem, p. 302).
Essa leitura de Vázquez é importante para realizarmos a crítica ao pragmatismo. Ao
apresentar diversas manifestações da consciência e os tipos de práxis podemos constatar que há
formas de pensar criticamente e acriticamente e que toda expressão da consciência possui uma
intencionalidade vinculada a determinados interesses. Assim, pelas características e pelo modo de
pensar que iremos apresentar do pragmatismo podemos constatar que ele serve aos interesses da
ideologia dominante. Além de se apresentar também como uma forma de pensar as questões
postas pelos problemas da realidade que servem a reprodução da ordem capitalista. O próprio
pragmatismo se expressa também como uma ideologia.
3.1. A leitura de Pogrebinschi sobre o pragmatismo clássico
Uma autora que trabalha o pragmatismo é Pogrebinschi19 (2005). Autora que nos servirá
19
Vale destacar que a mesma autora, em 2006, produziu um artigo tratando do neopragmatismo e suas diferenças
com o pragmatismo. Não iremos esmiuçar o neopragmatismo neste trabalho, porém é importante ressaltar que
Pogrebinschi aborda a contribuição de um intelectual contemporâneo da reformulação das idéias propagadas pelo
pragmatismo: Richard Rorty. Rorty se intitula neopragmatista porque ele se ocupa de um movimento anti-realista por
criticar a teoria da verdade. Diferentemente do pragmatismo, que valorizava a experiência, ele enfatiza a linguagem.
Essa diferença do pragmatismo clássico para o neopragmatismo está relacionado com a conjuntura do pós Primeira
Guerra Mundial quando o pragmatismo clássico perdeu espaço e abriu-se novos campos e ramificações pragmatistas.
Nas duas últímas décadas do século XX ocorre o que se chamou de virada lingüística – nome dado devido a
exaltação da idéia de linguagem – associada ao neopragmatismo. Seu campo mais forte foi o da comunicação, que
resgatou concepções dos neopragmatistas clássicos, mas apresentou uma roupagem diversificada. E mais: “o
neopragmatismo rortyano assevera que nem a verdade, nem o bem, nem a racionalidade são coisas que comportem
um interesse filosófico suficiente para se teorizar a respeito. Em outras palavras, o pragmatismo de Rorty não tem a
ambição de ser uma teoria, mas uma antiteoria – ou uma teoria sobre como se fazer teoria” (Pogrebinschi, 2006, p.
133). Rorty também se aproxima mais do instrumentalismo do que do consequencialismo. A autora destaca também
as críticas feitas a Rorty, criticas que o colocam não apenas como um neopragmatista, mas também como um autor
117
de aporte neste item devido a densidade de seus estudos e da apropriação que a mesma fez do
pragmatismo. Em sua análise não fica explícito se o pragmatismo é uma teoria, um pensamento,
um conceito, uma filosofia ou um movimento. Isto porque a autora transita entre esses termos
para denominar o significado do pragmatismo. Tamanha imprecisão é resultado de que o
pragmatismo é em si mesmo a negação de qualquer idéia ou conceito concluso, ele pode ter todas
estas qualificações como pode não ter nenhuma. Entretanto, Pogrebinschi deixa claro que o
mesmo surgiu nos Estados Unidos como expressão de uma crítica à metafísica tradicional. O
“Clube da Metafísica” reunia os adeptos do pragmatismo e teve como precursores William
James, Charles S. Peirce, John Dewey, Mead entre outros. São dos autores citados que
buscaremos aprofundar nossas análises, pois eles expressam “a totalidade do núcleo teórico deste
pensamento” (idem, p. 23) e é através deles que as propostas desenvolvidas pelos pragmatistas
serão ampliadas pelos seus adeptos.
Segundo Pogrebinschi (2005) o pragmatismo é pouco estudado e discutido pelas ciências
sociais, isso resulta na escassa apropriação do pragmatismo pela área social e política. No Serviço
Social isso não é diferente.
O pragmatismo é entendido como uma atitude de orientação ampla, com contribuição de
diversos autores de diversas áreas, dentre elas das teorias sociais e políticas. É uma elaboração
que pode ser ampliada através de várias formas de pensamento. A autora especula se o
pragmatismo pode realmente ser:
Uma teoria que nos permite compreender antigas teorias e, ao mesmo tempo, criar
outras novas: um método para conferir significado a conceitos e concepções; um meio de
dar sentido à realidade e à ação através da teoria; um propósito de experimentar
incessantemente novas formas de pensar e também de reexperimentar aquelas que já são
conhecidas (POGREBINSCHI, 2005, p. 15) (Grifos nossos).
O pragmatismo, na realidade, não apresenta originalidade, ele está atrelado a antigas
pós-moderno e como um relativista. A preocupação deste trabalho é compreender as bases de surgimento do
pragmatismo original, por isso não iremos aprofundar o estudo do neopragmatismo. Ademais, compreendemos que o
neopragmatismo mescla-se com o pragmatismo. Em ambos, tanto a linguagem como a experiência possuem um
espaço central.
118
formas de pensamento e se expressa de forma conservadora. É interessante destacar que em torno
de 1890 o pragmatismo ganha força e se alastra nos Estados Unidos. Logo, outros países sofrerão
influência das propostas originárias do “Clube da Metafísica”. Mais tarde o pragmatismo chega
ao Brasil e assim o Serviço Social brasileiro recebe uma das influências mais fortes do modo de
ser e pensar norte-americano.
Pogrebinschi (2005) trata especificamente das propostas de Pierce, James e Dewey. A
autora mostra que eles possuem um núcleo comum de pensamento, mas também apresentam uma
série de divergências. Pierce foi literalmente o pai do pragmatismo. Foi ele quem sugeriu esse
nome para manifestar uma nova linha de pensamento que se contrapunha à metafísica. Um
destaque enfatizado consiste no fato de Pierce propor uma teoria da significação enquanto que
James e Dewey desenvolveram uma teoria da verdade20.
De central nas idéias de Pierce, Dewey e James temos o antifundacionalismo, o
consequencialismo e o contextualismo. Além disso, o pragmatismo descarta o passado, e de certa
forma, nega a história. Sua preocupação é com o futuro, com as conseqüências das
possibilidades. “O significado do pragmatismo, como de qualquer outra teoria, só poderia ser
conhecido através do teste de suas conseqüências, isto é, por meio da prospectiva de um futuro
ainda em formação” (Pogrebinschi, 2005, p. 25) (grifo nosso).
O antifundacionalismo nega todos os tipos de pensamento ou expressões que demonstrem
estar acabadas, que não são suscetíveis de mudanças. O que se pretende é submeter a verdade e a
realidade a um novo método21 (Pogrebinschi, 2005). Pierce afirma que todo conhecimento
20
Por teoria da verdade entende-se a constituição de idéias que fazem parte da experiência e do conhecimento, a
verdade é um processo que está em constante mudança, pode-se dizer que “as idéias não são apenas abstrações e
generalizações da experiência, mas seus componentes. Isto é, as idéias não apenas interpretam a experiência, mas
constituem elementos importantes da mesma. Por conseguinte, se as idéias são efetivamente aspectos da experiência
e não meramente interpretações dela, elas se tornam verdadeiras na medida em que ajudam as pessoas a estabelecer
outras e variadas relações com a experiência” (Pogrebinschi, 2005, p. 30). Nesta lógica, a experiência tem um papel
fundamental para a mudança de comportamento do indivíduo, pois, quanto mais experiência se tem mais
conhecimento se acumula. Logo, o indivíduo se torna mais suscetível a mudar sua forma de ser, de agir e de pensar.
21
Sobre o método do pragmatismo iremos resgatar a análise feita por Pogrebinschi (2005). A realidade é
estabelecida através do processo de investigação. A investigação é um momento importante porque ela permite a
realização de experiências. A ciência, nesse sentido, nunca terá conclusões acabadas que não sejam possíveis de
serem modificadas. O método pragmático consiste na interpretação de conceitos objetivando compreender suas
119
acumulado que temos é resultado de nossas experiências práticas, de nossa vivência na realidade.
Esta idéia irá aparecer em algumas profissões como na pedagogia, na psicologia, na comunicação
e no Serviço Social. Nesta última, a profissão será imbuída de um equívoco que se expressa ainda
de forma muito densa: de que a experiência é mais importante, que só na prática (identificada
com a experiência), de fato, é possível aprender e que o assistente social que não tem um mínimo
de experiência não tem propriedade para tratar criticamente a profissão. É como se a teoria
surgisse da experiência e da prática profissionais22.
Assim, supor que uma cognição é determinada apenas por algo absolutamente externo é
supor suas determinações como incapazes de explicação. E uma hipótese incapaz de
explicar aquilo a que se propõe é uma hipótese que se contradiz a si mesma, logo toda e
qualquer cognição é determinada por outras cognições que lhe são anteriores
(Pogrebinschi, 2005, p. 28).
A representação desta idéia nos parece muito comum. A idéia de que a partir do acúmulo
de experiências sabe-se mais do que os “inexperientes”, de que a experiência é que faz o
profissional ou que, só com a experiência é que se aprende. É a conhecida idéia de que através da
experiência se acumula conhecimento. Tal concepção perpassa diversas profissões e se faz
presente como algo dado.
O antifundacionalismo pragmatista recusa a idéia de certeza assim como não aceita os
conceitos de verdade e realidade. A proposta é que tais conceitos sejam submetidos a um novo
método. Por isso, o pragmatismo só pode ser conhecido através dele mesmo, através do próprio
pragmatismo, quer dizer: do teste de suas conseqüências. Um pensamento só pode ser
interpretado a partir de outro pensamento, nenhum conhecimento pode ser determinado sem que
haja um conhecimento anterior que o estabeleceu. Para o pragmatismo nada está acabado e a
conseqüências práticas. O objetivo é tornar claro os conceitos obscurecidos para relacionar o sentido dos conceitos às
possíveis consequências.
22
Não negamos o fato de que as teorias precisam ter relação com problemas da realidade para serem relevantes. O
acúmulo de experiências permite a elaboração de uma teoria, porém isso não basta, há o elemento teórico refletido e
apropriado criticamente que está além do acúmulo de experiências, mas que não as exclui. Outro equívoco é
reproduzir a idéia de que a sistematização da prática consiste em produção de conhecimento teórico. A
sistematização da prática permite a produção de conhecimento da realidade e sua reflexão, mas não é
necessariamente uma produção teórica. Na realidade, o assistente social que busca sistematizar sua intervenção
consegue conhecer melhor a realidade social e documentar os resultados de seu trabalho, mas é preciso que ele esteja
orientado por uma teoria que lhe permita fazer uma leitura crítica.
120
verdade não existe, é, portanto, no mínimo relativista. Defendem a importância de se conhecer as
diferenças existentes na prática, se não existem diferenças práticas, pode-se dizer, que possíveis
disputas entre alternativas distintas não são válidas. Ou seja, o que não se mostra relevante na
prática não tem importância, caso contrário todo o “resto” é descartado23.
Cabe destacar que os pragmatistas rejeitam qualquer tipo de fundamento, pois se não
existe uma idéia, um pensamento, uma teoria acabada; se tudo pode ser modificado de acordo
com a prática e as experiências; logo, nada pode ser fundamentado.
Para o pragmatista não existem respostas capazes de fazer cessar a investigação – não há
uma verdade final a ser atingida -, a qual deve prosseguir incessantemente, alimentada a
cada momento pelas novas informações, respostas parciais, semiverdades, que são
geradas neste processo de relacionar a realidade com a experiência (POGREBINSCHI,
2005, p.33).
O consequencialismo tem relação com o fato de o pragmatismo sempre pensar no futuro e
ao pensar nas consequências futuras busca antecipá-las para o presente. Todas as consequências
possíveis devem ser levantadas, porém apenas a mais útil, a mais interessante, a mais proveitosa e
a mais vantajosa para o presente deve ser apropriadas. Consiste em uma aproximação entre o que
as pessoas consideram melhor para elas, entre o que é verdadeiro para cada um individualmente e
entre o que lhe será útil.
O contextualismo trata de manter as investigações relacionadas ao contexto em que estão
inseridas no presente, o que implica em uma desconsideração da história, pois nega o passado. O
contextualismo reforça a importância da prática para o pragmatismo por considerá-la como o
principal elemento da experiência. “A ênfase contextualista do pragmatismo clama, portanto, que
os textos filosóficos sejam estudados a partir dos seus contextos específicos, ressaltando-se a
relação entre as idéias filosóficas e a vida social, bem como com a cultura da sociedade na qual
tais idéias desenvolveram-se” (Pogrebinschi, 2005, p. 59).
23
Ao descartar os fundamentos, o antifundacionismo do pragmatismo também descarta todas as teorias que buscam
explicar os fundamentos e as teorias que explicam outras teorias – metateorias. Dessa forma, podemos afirmar que o
pragmatismo nega as macro teorias (aquelas que buscam uma explicação a partir de uma perspectiva de totalidade) e
as metateorias (aquelas teorias que visam explicar outras teorias). E as nega, precisamente, porque elas não
apresentam a preocupação de serem testadas praticamente, nem serem postas a prova. As ditas “grandes teorias” são
desenvolvidas a partir de questões e problemas postos pela realidade concreta e da vida do homem em sociedade.
Elas não apresentam, necessariamente, respostas para todas as questões, mas permitem seguir caminhos críticos para
sua reflexão; são, portanto, subsídios relevantes para a análise crítica da realidade.
121
O problema que encontramos nesta “ênfase contextualista do pragmatismo” é a prioridade
nos contextos específicos. Pensa-se sempre na especificidade. Por mais que se considere a cultura
e a vida social na análise do contexto isto não basta para um entendimento aprofundado. Significa
que os pragmatistas possuem uma tendência a priorizar os contextos específicos, são, portanto,
singulares por não possuírem relação com a universalidade e suprimem a particularidade. Essa é
uma característica do pensamento conservador que apresenta-se no campo das abstrações da
universalidade e mantém nos limites da singularidade sem trabalhar com as particularidades posta
como campo das mediações.
Duas correntes estão presentes no pragmatismo, uma das quais deriva de Pierce que é a
teoria da significação ou pragmatismo reformista. Pierce trata o pragmatismo como um tipo de
positivismo conforme aponta Haack (2002) e aborda a filosofia científica como uma ciência
observacional que se baseia em experiências tão próximas do pesquisador que é difícil ter
consciência delas. Ele reconhece as questões tradicionais e sustenta uma verdade objetiva. Pierce
defende o método da observação, da experiência e do raciocínio lógico formal como um método
cientifico. Esse método consiste em três tipos de raciocínio para testar as hipóteses: a abdução, a
dedução e o teste intuitivo24. Ele concebe o pesquisador cientifico como um colaborador porque
seu trabalho servirá para avançar no conhecimento das futuras gerações. A verdade para ele é “...
uma teoria hipotética ideal, que seria o resultado final da investigação científica caso esta
continuasse por tempo indefinido” (Haack, 2002, p. 646). Porém, como não haverá resultado
final das investigações, visto que suas conseqüências sempre serão testadas e poderão ser
alteradas, não haveria nenhum tipo de verdade.
A outra corrente é derivada de Willian James, trata-se da teoria da verdade que estabelece
que as idéias são componentes da experiência e se tornam verdades, a verdade passa por um
24
Dedução consiste em um determinado tipo de raciocínio que permite estabelecer a partir de várias proposições
uma única conclusão que seja a mais lógica possível. Seu modelo é baseado no silogismo e no raciocínio matemático
(Japiassu e Marcondes: 1991). O método dedutivo é bastante utilizado nas ciências formalizadas, como a lógica, a
matemática e a física para obter provas com conclusões formalmente válidas (Mora, 1996). O teste intuitivo é aquele
baseado no conhecimento e no pensamento intuitivo, ou seja “forma de contato direto ou imediato da mente com o
real, capaz de captar sua essência de modo evidente, mas não necessitando de demonstração” (Japiassu e Marcondes,
1991, p 137).
122
processo relacional e dinâmico. James afirma que o pragmatismo é um método que interpreta os
conceitos através de suas consequências práticas. Por isso, nenhum conceito apresenta seu
significado real e, portanto, nem mesmo as verdades provisórias poderão ser atingidas, de modo
que, reconhece apenas as práticas cognitivas25 e desconhece a objetividade e a verdade. As
hipóteses, nesse caso, devem ser estabelecidas pela observação e pelo raciocínio. O verdadeiro
para ele “... é o satisfatório, o útil, o eficaz no caminho da crença” (Haack, 2002, p.648).
O pragmatismo possui preocupação com o futuro e não com o passado. Ele não se
preocupa em realizar um resgate histórico, pelo contrário, refuta a história e o passado como algo
superado. Essa preocupação decorre do consequencialismo ou do instrumentalismo que é uma
característica também do pragmatismo. Ele antecipa conseqüências para produzir conhecimento.
A sua função é facilitar o esclarecimento de idéias confusas, que não estão claras. Possui
influência do darwinismo social26 porque compartilha da idéia de adaptação e seleção (Haack,
2002).
A máxima pragmática consiste em uma forma de experimento para verificar se
concepções e teorias se relacionam com a experiência. Ou seja, testam-se as experiências para
verificar a teoria, porém como há sempre possibilidade de se realizar testes para conhecer a
“verdade”, os pragmatistas não admitem a idéia de teorias prontas e acabadas, já que elas podem
ser modificadas de acordo com os testes realizados que só valem para determinado contexto. Esta
é uma máxima lógica que não se pretende universal, pois a o pragmatismo prioriza as
singularidades e a especificidade, visto que a verdade só vale em determinado contexto. Essa
máxima se aplica a situações do cotidiano que visam analisar ou comparar concepções distintas a
fim de determinar seus efeitos práticos que podem incidir no futuro, trata-se das consequências da
experiência. Os adeptos do pragmatismo buscam fazer experimentos para testar as teorias e as
25
Ou seja, práticas relativas ao conhecimento “provisório” do pesquisador. Provisório porque sempre está em
mudança e pode ser revista a qualquer tempo.
26
O darwinismo social baseia-se na teoria elaborada por Darwin no estudo da natureza. Consiste em uma “concepção
socioideológica” para tratar da economia a comparando ao principio natural da concorrência da vida. Utiliza
argumentos baseados nesta lógica como a justificativa de que a exploração de uma classe por outra é necessária para
o funcionamento da sociedade, por isso seria algo natural. Transfere a lógica do melhor, do mais apto, do mais
adaptado ao meio para sua sobrevivência; para a análise da sociedade (Japiassu e Marcondes: 1991).
123
afirmações com o objetivo de indicar possibilidades futuras, mas não verdades ou confirmações
imutáveis. Aí reside o pensamento consequencialista que testa todas as hipóteses para conhecer
as conseqüências “o pragmatista, em princípio, não rejeita terminantemente nenhuma concepção,
bem como não adota nenhuma outra em caráter terminativo. As concepções só são adotadas na
medida em que são boas - ou úteis - para o pragmatista, naquele momento - pois, em um
momento futuro, elas podem deixar de ser” (Pogrebinschi, 2005, p. 43).
O pragmatismo também faz uma crítica severa aos fundamentos. Para seus propagadores,
a busca por fundamentos é, na realidade, a busca por segurança com o objetivo de diminuir as
incertezas. Tais pensadores dizem que os fundamentos são uma tentativa de busca pela
imutabilidade, uma recusa a possibilidades de mudança e de revisão das considerações
experimentais práticas. Esta é uma questão importante, pois há uma negação dos fundamentos,
dos pressupostos teóricos e da compreensão da importância dos fundamentos para entender a
realidade. Podemos afirmar que há uma negação, não de qualquer teoria, mas sim de uma teoria
mais apropriada para ler a realidade – ou seja, o marxismo – e das macroteorias que permitem
fazer uma análise mais ampla. Os pragmatistas questionam uma determinada concepção de teoria
relacionadas àquelas que dão conta de explicar a realidade em sua universalidade. Pode haver
uma aceitação da teoria pelo pragmatismo, contanto que tenham relação com valores práticos e
úteis. O pragmatismo aceita as microteorias, aquelas que tratam de questões específicas como as
relacionadas a histórias de vida.
É dessa concepção que o pragmatismo assume uma posição instrumental da verdade. Uma
idéia é verdadeira quando ela é proveitosa, quando possui uma utilidade. A verdade requer uma
dúvida relativa a sua própria verdade, ela é uma realidade mutável que se relaciona a idéia de
adaptação, de adequação, logo parece uma verdade relativa. Ao tratar dos significados, Haack
(2002, p. 643) demonstra que os pragmáticos os tratam de forma aberta, ou seja, não acabada,
pois “o significado aumenta à medida que aumenta nosso conhecimento”. Nessa concepção, o
significado da verdade muda de acordo com a perspectiva do sujeito, de acordo com sua busca
por significados.
Essa é uma perspectiva que pode ter forte entrada no Serviço Social, principalmente por
124
sermos uma profissão eminentemente interventiva que necessita dar respostas às demandas
postas. Isso pode levar o assistente social a pensar somente na intervenção imediata. A prática
pela prática em si mesmo é suficiente nesta lógica. A facilidade de entrada desse pensamento no
Serviço Social é perceptível na atual conjuntura, pois diante da precariedade dos serviços
públicos e do desmonte das políticas sociais, o assistente social depara-se com a dificuldade para
dar respostas às demandas apresentadas. A angústia para concretizar sua intervenção pode levá-lo
a pensar que ao conferir respostas imediatas e emergenciais ele consegue estabelecer o resultado
final de sua ação profissional, enquanto que na realidade, sua possibilidade de dar respostas
ultrapassa a emergencialidade e a imediaticidade.
Pobrebinschi (2005, p. 36) ao traduzir o pensamento de Dewey, diz que, para ele: “O que
deve estar em pauta, portanto, não é se certos valores, associados as tradições e instituições,
possuem uma essência superior, mas sim quais julgamentos concretos devemos formar sobre os
meios e fins na regulação do comportamento prático”. O que se entende por fazer “julgamentos
concretos” acerca da “regulação do comportamento prático”? Nada mais parecido com a
intervenção moralizadora na vida dos trabalhadores a fim de enquadrá-los na ordem social
capitalista e os tornarem mais eficientes e competitivos no trabalho. Por isso, essa é uma idéia
que ainda pode estar presente no Serviço Social, pois o julgamento do “comportamento prático”
esteve muito forte na origem da profissão, e ainda hoje assim se coloca, de forma moralizadora e
no sentido de enquadrar o comportamento dos indivíduos. A moralização da vida dos
trabalhadores também foi realizada pela via da educação, através de ações disciplinadoras que
passam a ser introduzidas ao longo do processo de formação do indivíduo. Na área da saúde a
moralização também se fez presente através do discurso da higienização das famílias pobres a
fim de “limpá-las” do meio “imoral” no qual viviam.
Outra idéia defendida pelo pragmatismo é destacada pela seguinte citação:
O que a filosofia deve buscar não é o ser e o conhecimento em si, mas o estado da
existência em momentos e lugares específicos, bem como o estado dos sentimentos,
planos e propósitos sob circunstâncias concretas. A filosofia não deve se preocupar em
elaborar uma teoria geral da realidade, do conhecimento e do valor, mas sim tentar
compreender como crenças autênticas acerca da existência podem operar proveitosa e
eficazmente em relação aos problemas práticos que são urgentes na vida real
(Pogrebinschi, 2005, p. 37) (Grifos nossos).
125
Por isso o pragmatismo é mais que uma teoria, é mais que um método, ele é uma
ideologia. É uma ideologia da sociedade em um determinado tempo histórico que constrói um
perfil de homem para a sociedade capitalista. Nessa citação há uma gama de questões que podem
ser destacadas. Primeiro, há explícita uma crítica as teorias sociais, principalmente àquelas que
não se propõem a analisar aspectos particulares da realidade isoladamente ou simplesmente dar
respostas imediatas à realidade. Segundo, defende uma perspectiva fragmentada e momentânea
que seja interessante para o momento da análise, que se preocupa apenas com o presente.
Terceiro, defende que as grandes contribuições são dadas por aqueles que têm um conhecimento
prático. Há, de certa forma, uma crítica à teoria marxista e as teorias macroscópicas que buscam
uma análise mais próxima da totalidade para compreender a realidade.
O surgimento do pragmatismo possui relação direta com a realidade social e conjuntural
dos Estados Unidos. Como já foi abordado, o surgimento da sociologia trouxe novas questões.
Um autor que tratou de vincular e articular o pragmatismo com a sociologia foi Mead. Ele criou o
pragmatismo clássico e o uniu à sociologia. Pogrebinschi (2005) trata desta relação e ressalta que
o pragmatismo social possui duas preocupações: uma com o conceito de ação e outra com o
conceito de comunicação27.
Por conceito de ação a autora entende que não é apenas a idéia de que “toda investigação,
conhecimento e pensamento se dão em nome da ação” (Pogrebinschi, 2005, p. 75). Para a autora
o pragmatismo possui uma teoria da ação28 que existe por si só, independente de outros conceitos
ou teorias. Há um conceito de ação que permite entender as idéias apresentadas pelo
27
Um pensador influente que trata do conceito de comunicação é Jürgen Habermas. Inicialmente ele apresenta uma
proposta de revisionismo do marxismo através de uma análise do capitalismo avançado da sociedade industrial.
Baseado em Weber, Habermas buscará como aspecto central de suas análises a racionalidade da sociedade (o que
denominará de razão instrumental). Assim, seria necessário recuperar a interação humana através do agir
comunicativo. A ideologia capitalista distorce essa capacidade de comunicação entre os indivíduos. Somente com a
realização da crítica é possível se sobrepor a essa ideologia e a recuperar a razão emancipadora. Por isso, ele elabora
uma teoria da ação comunicativa e recorre a filosofia analítica da linguagem. A razão é entendida como um agir
comunicativo (Japiassu e Marcondes, 1991).
28
A teoria da ação é fortalecida e elaborada de forma mais consistente com o neopragmatismo que se articula a
sociologia. Nesse momento, há uma necessidade de desenvolver uma teoria da ação mais sistemática a partir do que
foi desenvolvido pelos pragmatistas clássicos (Pogrebinschi, 2005).
126
pragmatismo, mas que não precisa do conjunto do pensamento pragmatista para ser
compreendido.
O conceito de ação também se apresenta no consequencialismo do pragmatismo clássico.
A relação estabelecida com a ação é interessante. Pierce afirma que a única ação que pode ser
controlada é a ação futura, as demais ações não podem passar pelo autocontrole do homem, pois
“... afinal, sempre que um homem age intencionalmente, ele o faz a partir de uma crença baseada
em algum fenômeno experimental prévio, pois o que leva as pessoas à ação é sempre um
objetivo, um propósito a ser realizado” (Pogrebinschi, 2005, p. 78). De acordo com essa forma de
pensar o homem não consegue controlar suas ações. Entretanto, a partir da nossa perspectiva de
análise a ação humana é resultado de intencionalidades com consequências futuras. O homem é
capaz de fazer escolhas acerca de suas ações e de projetar suas consequências, apesar de nem
sempre suas projeções se concretizarem porque há outros fatores que incidem e que estão além da
intencionalidade e da projeção do homem.
Outro momento em que o conceito de ação se manifestou foi na teoria da significação.
Nela estava contida a idéia de que apenas com a freqüência das ações de forma constante seria
possível compreender os significados dos conceitos, pois é a repetição da ação que determina a
compreensão.
Há ainda o contextualismo que apresenta o conceito de ação. Vale destacar que para
Peirce o pensamento tem por objetivo produzir ações e a ação decorre da experiência ou da
imaginação, do pensamento. Para os pragmatistas a função do pensamento é produzir hábitos de
ação (Pogrebinschi, 2005, p. 79). O homem é levado à ação por dois caminhos:
... não apenas o hábito leva à ação, mas também as dúvidas, ou seja, o oposto das
crenças. Ao passo que a crença se inclui no estabelecimento de uma regra de ação ou de
um hábito, as dúvidas, por seu turno, estimulam continuamente as pessoas à ação, até
que sejam destruídas e substituídas pelas crenças (Pogrebinschi, 2005, p. 79).
Nesse sentido, a ação possui um papel relevante. Ela é responsável pelo futuro e pelas
consequências humanas. O problema é a concepção de teoria e o que se entende por ação, pois
podemos afirmar que há a ação não intencional, aquela presente em nosso cotidiano e a ação
intencional, aquela elaborada e refletida com um fim específico. Por exemplo, a ação
127
revolucionária é uma ação que se realiza concomitantemente com a compreensão da teoria
revolucionária. Assim, não é uma ação qualquer, e sim elaborada com uma perspectiva. Para o
pragmatismo a ação é considerada como um meio superior, pois quando se trata de ação voltada
para o conhecimento ela é considerada um método.
Segundo Pogrenbinschi (2005), Dewey é o autor que apresenta o melhor conceito de ação,
pois ele trata de uma ação inteligente ao dizer que a mente humana pode planejar cada vez mais
fins novos e complexos para desvincular a experiência da rotina, por conseguinte seria a
inteligência que libertaria a ação e não o pensamento. A diferença é que a inteligência se
desenvolve a partir da ação, ou seja, estão articuladas. Assim, a autora afirma que os pragmatistas
entendem a inteligência associada ao uso da criatividade.
A ação inteligente (ou criativa) é, portanto, aquela ação que a inteligência liberou de um
caráter mecanicamente instrumental. Perceba-se assim que a inteligência é instrumental
através da ação, pois ela vai determinar as qualidades da experiência futura. Em outras
palavras, a preocupação primária da inteligência é com o futuro, com aquilo que ainda
não foi realizado: a inteligência dirige o seu olhar para o futuro (...). Neste sentido, a
ação inteligente é libertadora, acredita Dewey (Pogrenbinschi, 2005, p. 81).
A mesma autora destaca ainda o pensamento de Mead que relaciona a consciência ao
conceito de ação, pois, para ele, a consciência é uma etapa da ação para se atingir um ato. Um ato
é caracterizado por estágios de percepção e manipulação. “Na fase da percepção, o ato é ajustado
ao ambiente, enquanto na fase de manipulação o organismo lida com aquilo que é necessário para
a consumação do ato” (Pogrenbinschi, 2005, p.82). O ato tem como características as respostas
que atinge, são as respostas do ato que permitem alcançar o estímulo sem ser uma mera sequência
do outro. Trata-se da concepção de inteligência compreendida como um instrumento.
Na lógica de Mead a ação determina a criatividade, já que a consciência é uma fase da
ação, é nesta fase que a criatividade se expressa. Mead também afirma que a criatividade não
pode sofrer pressão para se manifestar, “A criatividade é, indubitavelmente, o centro das
tentativas de elaboração de um conceito de ação pragmatista” (Pogrenbinschi, 2005, p. 83).
Segundo Pogrenbinschi, Mead trata de uma criatividade social que se expressa a partir do
sujeito inserido em um contexto social. Esse conceito de ação do pragmatismo se opõe a teoria da
ação racional que influenciou a sociologia e os clássicos da teoria sociológica da ação como Max
128
Weber e Talcott Parson.
Em Mead a percepção e a cognição são fases da ação, elas são condicionantes para a
condução da ação. A ação terá relação com a intencionalidade, pois as capacidades, os hábitos e
as formas como o homem se relaciona com o ambiente estabelecem os fins conscientes dos
homens, formam a intencionalidade do sujeito. “A intencionalidade passa a ser vista como um
controle auto-reflexivo exercitável sobre o comportamento” (Pogrenbinschi, 2005, p. 89). Assim
podemos destacar conceitos chaves para os pragmatistas como consciência, intencionalidade e,
principalmente, ação. Na realidade as idéias pragmatistas propagam a ação como o grande
significado de suas propostas. A partir do conceito de ação desenvolvem outros conceitos e
significados.
O pragmatismo possui uma forte relação com um determinado conceito de comunicação
que está atrelado a linguagem e a retórica. A produção do pragmatismo sobre uma teoria da
comunicação foi vasta. Pierce foi quem deu um dos principais contribuições. Ele elaborou uma
teoria da significação a partir do conceito de comunicação do pragmatismo. A comunicação
permite agregar sentidos e conceitos a fim de estendê-los e não de buscar um resultado final. É
possível questionar: qual é o determinante para se estabelecer os significados? Para os
pragmatistas é a comunicação. “Em Peirce, portanto, a comunicação é o processo pelo qual as
coisas adquirem significados – e, na convergência deste, aproximam-se da verdade e da
realidade” (Pogrenbinsch, 2005, p. 92).
Nos interessa conhecer o porque do conceito de comunicação possuir uma relevância tão
ampla para o pragmatismo. Na realidade, importa distinguir qual a diferença do significado da
comunicação dos pragmatistas para o significado que atribuimos pelo Serviço Social. Para os
pragmatistas “é a comunicação que possibilita a perenidade da investigação, sua manutenção
incessante, a produção inesgotável de respostas provisórias que a realimentam gerando novas
respostas também provisórias” (Pogrenbinsch, 2005, p.92).
Notamos que a pesquisa pragmatista não chega a um fim, ela busca ser provisória, por
haver possibilidades de mudanças e de incoporação de outros conhecimentos. Esse processo de
investigação e de pesquisas é guiado pela comunicação. Ressaltamos a pouca importância – ou
129
nenhuma – dada ao conhecimento teórico e objetivo da realidade. Se não há um conhecimento
objetivo da realidade que possa nortear uma leitura totalizadora de uma determinada conjuntura,
então, nos parece, que os pragmatistas aceitam um conhecimento “flexível” que pode ser
ampliado, reduzido, incorporado, descartado a qualquer momento. Esse conhecimento “flexível”
é possível através da comunicação. “O que permite que as respostas encontradas no percurso da
investigação sejam novamente e incessantemente testadas e possivelmente substituídas por outras
respostas é também a comunicação” (Pogrenbinsch, 2005, p.93).
De acordo com Pogrenbinsch (2005) o conceito de comunicação apresenta duas
características principais: o de responsividade e o de reflexividade. A primeira característica diz
respeito ao processo investigativo de possibilitar alterações das respostas às questões que são
sempre provisórias. Para a autora há uma capacidade autocorretiva da comunicação porque ela
revisa e corrige as investigações. “O papel da comunicação na investigação é, portanto,
justamente o de corrigir, possibilitando assim a sua falibilidade e inesgotabilidade (...). A
comunicação é o meio condutor disto tudo, e por isso ela é intrinsecamente autocorretiva” (idem,
p. 93). Por isso a comunicação é responsável pelas investigações e pelas respostas a serem dadas
ao mesmo tempo em que permite flexibilizar os resultados da investigação. De fato ela é o meio
de todo o processo de pesquisa, é ela que permite atingir os conceitos e resultados da pesquisa, os
quais nunca são concluídos.
A autora aborda os estudos de Pierce, pois ele estabeleceu que os signos são as formas
pelas quais é possível elaborar a comunicação entre duas pessoas. Posteriormente, ela irá abordar
Dewey, pois ele reforça as características responsivas e reflexivas elaboradas por Pierce.
Contudo, Dewey acrescenta outros aspectos ao conceito de comunicação como o
consequencialismo e o contextualismo. “A comunicação é uma espécie de ponte natural que liga
a existência e a essência, gerando além de significados, informação, ensino e aprendizado, ou
seja, conhecimento” (Pogrenbinschi, 2005, p. 95). Então, pode-se constatar que para o
pensamento clássico pragmatista a comunicação é uma forma de elaboração de conhecimento, é
um meio de investigação que permite elaborar respostas, modificá-las e corrigi-las. A
comunicação assume a função da teoria na elaboração do pensamento.
130
De acordo com Pogrenbinschi há uma diferença essencial de Dewey para Pierce na
compreensão do conceito de comunicação. Dewey entende a comunicação a partir de um sentido
social, ou seja, como uma forma de cooperação e interação entre as pessoas. A comunicação é
entendida como uma atividade social, uma forma de estabelecer significados através de signos.
Ela permite conduzir à inteligência. “De acordo com Dewey, as funções instrumentais e finais da
comunicação não devem ser jamais separadas, pois quando estão unidas na experiência o que se
obtém é a inteligência” (idem, p.98). Ao que parece, Dewey trata do desenvolvimento da
inteligência humana e do relacionamento do homem em sociedade. A capacidade de desenvolver
uma linguagem e signos de comunicação só foi possível através do desenvolvimento do intelecto
humano. E para tanto foi preciso uma interação social, uma cooperação e convívio entre os
homens. O problema é que Dewey não distingue essa idéia da investigação científica e eleva a
comunicação a uma posição de produtora e instrumento de conhecimento.
Para Pogrenbinsch, Mead foi o principal elaborador da teoria da comunicação. Ele
desenvolveu suas idéias a partir do estudo da psicologia social. Ele fez uma leitura dos indivíduos
em sua interação social. “A importância da linguagem no desenvolvimento da experiência
humana, segundo Mead, reside justamente no fato de que o estímulo reage tanto no sujeito que
fala quanto no outro com quem ele fala” (idem, p. 99). É como se a linguagem gerasse uma ação
e uma reação devido a interatividade.
Mead irá trabalhar muito com o conceito de reflexividade ao tentar explicar como
funciona a ação e reação do processo de comunicação. Quando um indivíduo busca uma resposta
sobre outro indivíduo em si mesmo há uma tendência de se apropriar das ações e reações do
outro, a agir como outra pessoa. Isso é chamado de reflexividade. Para ele é essa característica
específica que distingue os homens dos demais animais. “E o que é distintivo da linguagem
humana, por sua vez, é a possibilidade de que um mesmo ato da fala afete tanto aquele que o
emite, quanto aquele a quem se dirige” (Pogrenbinschi, 2005, p. 99). Mead defende a seguinte
idéia: quando nos comunicamos com outra pessoa esta nos dá uma resposta, ao repetirmos essa
resposta nos colocando no lugar do outro que nos respondeu e iremos de alguma forma fixar e
aprender o significado da mensagem transmitida. Quanto mais ocorre esse processo de repetição
131
mais o significado do que se ouve passa a ser incorporado. Ele denomina isso de reação social
que ocorre no processo de comunicação entre os indivíduos. Por exemplo: é como uma criança
que está em fase de aprendizagem da língua e repete tudo que lhe é dito. Essa idéia é
perfeitamente compreensível em um contexto social da vida cotidiana, mas aqui insistimos na
crítica ao pragmatismo: essa idéia é transportada para os processos de investigação e de busca de
respostas aos questionamentos gerais da sociedade porque tudo passa primeiro pela forma como o
indivíduo apreende a verdade. Quanto mais se repete um experimento mais se compreende seu
significado? Não necessariamente e depende da área que estamos tratando, se é da área física,
química, humana ou social. Ressaltamos que Mead trata o tempo todo do processo humano. Por
outro lado, é importante destacar que Mead aborda a linguagem. Ele diz que a construção dos
significados e a possibilidade da linguagem e da comunicação são feitas pela mente humana e
esse processo só é possível através da experiência dos indivíduos em coletividade e nunca
individualmente.
Em suma, para Mead a comunicação assume uma posição importante, pois segundo
Pogrenbinsch (2005, p. 101) “ela consiste no único tipo de comportamento no qual o indivíduo
responde a si mesmo”. Há ainda outro destaque feito por Mead: ele diz que a personalidade do
indivíduo está relacionada à inteligência reflexiva. É esta inteligência que permite que um
indivíduo se posicione no lugar de outro indivíduo. Quando o processo de inteligência reflexiva
se desenvolve no processo comunicativo com o outro, ocorre uma ação inteligente. Podemos
destacar que Mead trata muito do ser individual e pouco do ser coletivo, apesar de compreender a
comunicação em seu aspecto social. Ele trata das mudanças individuais, mas faz uma distinção
entre o indivíduo e o social. Segundo a análise de Pogrenbinsch (2005, p. 102):
Deste comportamento reflexivo resulta que os indivíduos passam a ser conscientes de si
mesmos ou autoconscientes, bem como críticos de si mesmos ou autocríticos. E quando
todos os indivíduos desempenham as atitudes de outros, a atitude de um grupo é
diferente daquela de um indivíduo separado, o que temos é um ‘outro generalizado’ que
contribui para a formação de uma comunidade também consciente de si mesma.
Vejamos: é a comunicação que permite a busca por respostas ou é o pensamento
reflexivo e crítico? Entendemos que há um conjunto de fatores que acarretam no processo de
busca de respostas pelos homens, entre eles a possibilidade da comunicação. Contudo, através do
132
processo reflexivo crítico é possível desenvolver a capacidade de responder a questões e
perguntas acerca da realidade.
Uma relação importante de ser estabelecida é a do pragmatismo com a sociologia e com a
teoria política. A sociologia foi uma das áreas das quais o Serviço Social se aproximou até atingir
uma concepção e apreensão da realidade. E a teoria política atravessa as leituras feitas pelos
profissionais e a análise de conjuntura da qual desprendem para criticar o cotidiano de trabalho
profissional.
Pogrenbinsch (2005) ressalta que o pragmatismo teve uma contribuição relevante no
campo da sociologia para suas proposições empíricas e para a solidificação de uma teoria social e
política. Ressaltamos um aspecto importante apontado pela autora: a influência do pragmatismo
na sociologia é muito pouco conhecida e, consequentemente, pouco analisada e estudada. “O
pragmatismo apresenta uma contribuição que, apesar de pouco conhecida, em muito se coaduna
com as principais tendências que vem assumindo a teoria política contemporânea” (idem, p. 123).
Dewey foi o principal influenciador do pragmatismo na teoria política, entretando, como
já sinalizamos anteriormente, de acordo com as análises de Pogrenbinsch, as contribuições deste
autor foram desconhecidas por muito tempo. Outro fator importante é que essa aproximação,
entre o pragmatismo clássico e a sociologia, possibilitou a manifestação do neopragmatismo
como uma forma de resgatar os estudos sobre teoria política de Dewey.
Nesse sentido, as principais contribuições de Dewey foram em relação a comunidade e a
democracia posteriormente abordadas pela sociologia. O pragmatismo foi um dos primeiros
campos a apresentar um debate sobre comunidade. Esse conceito surge primeiramente por Peirce
que tratou de atribuir um significado mais cientifico ao dizer que há uma comunidade de
investigação em contínuo movimento para permitir a propagação do conhecimento. Essa
comunidade é necessária para confirmar idéias, crenças e significados. É como se a comunidade
estivesse acima dos indivíduos, pois ela permite uma aproximação da opinião dos investigadores
ao que é real. O indivíduo só consegue fazer parte da comunidade se ele tiver crenças comuns aos
demais. O que permite a comunidade exercer um papel crítico é a autocorreção, pois ela pode
rever suas propostas e conceitos, dessa forma ela seria uma comunidade crítica por ter a
133
possibilidade de fazer revisão. A comunidade também irá se valer da comunicação para permitir
uma aproximação maior entre os indivíduos, a ponto de torná-la uma comunidade mais próxima
do ideal.
Mead trabalhou esta idéia e defendeu a proposição de que apenas a comunicação pode
permitir a comunidade atingir um estado ideal porque ela permite ultrapassar barreiras. Desta
forma, os conceitos de comunicação e comunidade estariam intimamente associados. Entretanto,
com este conceito Mead descaracteriza o anti-universalismo pragmatista, já que para esta
perspectiva não há verdades universais. Assim, o conceito de Dewey está mais próximo da
proposta do pragmatismo clássico: para ele a comunidade livre de barreiras é um ideal. A
participação na vida comunitária permite o desenvolvimento de uma formação moral dos
indivíduos assim como a educação que assume uma função disciplinadora e de enquadramento
como um espaço de moralização.
Todos os homens nascem como seres orgânicos associados uns aos outros, mas não
nascem como membros de uma comunidade. É preciso aprender isso. Vale dizer, os
homens devem ser ensinados a viver em comunidade, e isto se torna possível apenas
quando eles são criados no contexto de tradições, perspectivas e interesses que
caracterizam uma comunidade. O meio que possibilita tal inserção é justamente a
educação (...) Diante disto, acredita Dewey, as escolas da comunidade devem fornecer
aos seus alunos um treinamento moral (...) As escolas possuem, por conseguinte, uma
tarefa moral de cunho social que não pode ser separada da tarefa intelectual (...) O
objetivo moral das escolas é, por conseguinte, ensinar as crianças a participarem da vida
social (Pogrenbinsch, 2005, p. 139).
Para Dewey a comunicação tem que ser próxima e direta, com contatos pessoais entre os
comunicantes. Possui mais valor tudo que é falado em detrimento do que é escrito. É dessa forma
que a inteligência social é desenvolvida, apenas quando as informações são transmitidas
diretamente entre as pessoas. “As palavras escritas só ganham sentido – ou só fazem sentido –
quando são comunicadas direta, pessoal e proximamente” (Pogrenbinsch, 2005, p. 146).
A segunda contribuição de Dewey na sociologia referente à democracia demonstra,
segundo Pogrenbinsch, que a concepção de democracia contemporânea está diretamente
relacionada à concepção de democracia do pragmatismo. A essa associação a autora denomina de
pragmatismo político, pois reatualiza as idéias de Dewey desenvolvidas no início do século XX.
Dewey distingue a democracia em dois momentos. Primeiro como uma idéia. Segundo como um
134
sistema de governo, esta é chamada de democracia política. Ela está acima do Estado, por isso a
democracia política é uma forma de operar e concretizar a democracia como um modo de vida.
Para Dewey a democracia não se restringe a democracia de Estado, ela afeta a vida em
comunidade. “Para que a idéia de democracia seja realizada, por conseguinte, ela precisa produzir
efeitos sobre a família, a escola, a religião, os empreendimentos (...), além de outras formas de
associação humana” (Pogrebinschi, 2005, p. 152). Percebe-se nesse movimento a importância do
papel da ideologia, nesse caso, a ideologia da classe dominante propagada por toda sociedade
como a ideologia que corresponde aos interesses de todos. Assim, também, o sistema capitalista
defende uma idéia de democracia, mas é uma democracia ilusória. A democracia política
(associada a idéia de governo) no capitalismo é frouxa e escassa, por mais que existam
mecanismos de participação da população nas instâncias governamentais, elas são pouco
divulgadas e incentivadas, pois não é interessante um controle social de massa sobre a esfera
estatal.
Vejamos um aspecto destacado por Pogrenbinschi (2005) a respeito do significado da
democracia para Dewey. Primeiro, a autora destaca a importância de não se confundir a idéia de
democracia com os órgãos e estruturas externos da esfera política. Essa idéia de democracia é
tida como inabalável e, portanto, permite críticas e crises das formas políticas de democracia. A
solução para superar essas críticas e crises seria retomar para a própria idéia do que seja
democracia. “A solução para os males da democracia política reside assim em encontrar a
substância da ‘idéia’, em clarificá-la, compreendê-la, apreendê-la em seu sentido mais profundo,
de modo que se possa, então, possibilitar a crítica e a reconstrução de suas ‘manifestações
políticas’” (idem, p. 153).
Analisemos o que Dewey chama de idéia de democracia. Nos parece ser algo muito
próximo ao seu conceito, ao seu significado, a sua elaboração teórica. Ou seja, idéia de
democracia aproxima-se do processo de atribuir um significado projetado conscientemente. Ao
falar de instâncias de efetivação da democracia política, Dewey parece tratar da implementação
da “idéia de democracia”, ou seja: Dewey fala da efetivação de democracia na atividade prática.
Assim, o processo que ele percorre é o da elaboração do conceito (idéia de democracia) para a
135
efetivação da atividade (democracia política) e posteriormente, a verificação da atividade
democrática correspondente ao conceito de democracia. Quando essa relação entre atividade e
conceito não está bem estabelecida ele sugere a retomada do conceito de democracia (idéia de
democracia).
Pelo exposto evidenciamos dois aspectos. O primeiro, de fato os pragmatistas não
articulam teoria e prática. A idéia de democracia é distinta da democracia política, como se a
idéia não tivesse que estar relacionada a realidade e a seus problemas. A solução passa a retomar
ao ponto inicial, ou seja, a idéia. Segundo, nos parece que a proposta de Dewey apresenta um
“pragmatismo invertido”, pois ele parte da idéia, passa pela democracia política (efetivação da
democracia na atividade prática) e retoma a idéia, ou seja, é a idéia pela idéia. Entretanto,
posteriormente Dewey defende que apenas a idéia de democracia não constitui a democracia
governamental, mas ela influenciou os movimentos em sua busca. Ele irá explicar que “a
intenção que levou à criação das conhecidas instituições da democracia moderna foi a de
satisfazer necessidades e demandas concretas, e não a de promover a ‘idéia’ democrática”
(Pogrenbinschi,2005, p. 154). Dewey apresenta uma concepção confusa entre idéia de
democracia e democracia política. Mesmo tratando da relação entre idéia democrática e
consolidação de instituições democráticas modernas ele não chega a analisar a relação que existe
entre teoria e atividade prática.
A concepção de idéia de democracia para Dewey está relacionada com a idéia de
comunidade. Ela é um ideal de uma dada comunidade acabada e perfeita. A idéia de democracia
deixa de ser uma idéia quanto ela toma a forma de comunidade, uma comunidade real. Como a
comunidade é formada por indivíduos a democracia deixa de ser vinculada apenas a política e
passa a estar presente na vida individual. Essa concepção de democracia não possui uma forma
acabada ou uma definição, ela está em constante processo de elaboração.
Quando a auto-realização individual converte-se em auto-governo, a comunidade
converte-se em uma democracia participativa. Com efeito, a idéia de democracia se
expressa na participação do indivíduo em todos os momentos e lugares da vida comunal,
dos quais a esfera propriamente política representa apenas um. Ao lado de todas as suas
funções enquanto membro da comunidade, os indivíduos possuem uma função
especificamente política, a de participar de forma ‘direta’ e ‘ativa’ na regulação dos
termos da vida associativa e na busca do bem comum (Pogrenbinschi, 2005, p. 158).
136
A partir dessa definição de Pogrenbinschi (2005) nos parece que o conceito de
democracia do pragmatismo é mais ampla do que a democracia efetiva do capitalismo. A própria
autora associa a idéia de democracia de Dewey ao que denominamos na sociedade
contemporânea de democracia deliberativa. A concepção de democracia do pragmatismo possui
um caráter normativo, mas em outro momento a autora diz que a democracia deweyana não está
associada a concretização dos ideais de liberdade e de igualdade, assim como não pretende ser
um sistema de direitos. Segundo as palavras da autora: “a democracia não é meramente um fim,
mas também não se resume em um meio; ela é ao mesmo tempo meio e fim. Esses meios e fins
podem ser de qualquer espécie, pois sempre haverá um meio de concretizar um fim” (idem, p.
164). O importante é o resultado final, não importam os meios pelos quais se irá atingi-lo.
Por fim, paralelo a idéia de democracia está o conceito de fé. Exatamente, Dewey trabalha
com uma idéia inusitada, a da fé democrática. “A democracia é um modo de vida pessoal
comandado não apenas pela fé na natureza humana em geral, explica Dewey, mas pela fé na
capacidade dos seres humanos terem um discernimento (...) e uma ação inteligente”
(Pogrenbinschi, 2005, p. 166). A fé democrática está associada à capacidade do homem em
responder aos problemas de sua comunidade.
Pelo exposto acerca das propostas pragmatistas fica claro o papel que a experiência
assume. Ela é o resultado e processo de todas as propostas e finalidades. Por ser o aspecto mais
importante, ela não admite proposições, conceitos, teorias. “A comunicação é sempre secundária
em face da experiência; ela é sempre um meio, enquanto a experiência é sempre, e ao mesmo
tempo, meio e fim” (Pogrenbinschi, 2005, p. 169).
Pogrenbinschi discorre sobre o pragmatismo de forma a expor todos os seus elementos
constitutivos. Ela aborda os principais autores que reivindicam por uma leitura pragmática da
realidade. Sua capacidade de apreensão de uma leitura crítica sobre os precursores do
pragmatismo oscila entre uma exposição de elementos centrais para um debate atual acerca de
expressões que podem se configurar como uma reatualização do pragmatismo ou que apresentem
elementos constitutivos deste (como o caso da pós-modernidade); em alguns momentos apresenta
uma leitura equivocada e confusa em suas análises, ao afirmar que o pragmatismo assemelha-se,
137
em alguns aspectos da leitura marxista29.
Um aspecto precisa ser mencionado: o trabalho de Pogrenbinshi mostra-se importante
pelo estudo que ela realiza do pragmatismo e por trazer suas principais propostas e características
para o debate. Como iremos apresentar, o pragmatismo possui leituras confusas e contraditórias,
conflitantes e “confortáveis”, que pode nos levar a seguir um caminho em busca da confirmação
de fatos, da realização de experiências. Parece-nos uma interpretação tentadora para aqueles que
trabalham no âmbito da intervenção no cotidiano e do senso comum, que necessitam de respostas
imediatas e que possuem pouco espaço e tempo para uma reflexão densa e profunda.
3.2. A experiência como conhecimento: a crítica do pragmatismo ao racionalismo e
ao materialismo
Já abordamos brevemente a origem do pragmatismo, ainda assim destacaremos sua
relação com o pensamento norte-americano. Pelas nossas análises o pragmatismo apresenta-se
como uma ideologia. É uma ideologia exatamente porque possui uma intencionalidade e uma
vinculação à cultura norte-americana. Ele não se desenvolve ao acaso, mas está imerso no
universo pluralista e eclético da perspectiva norte-americana, “parece haver uma tendência
constante na tradição norte-americana, constituída pelo fato de que todas as idéias têm sido
avaliadas pragmaticamente e sua importância determinada pela referência a possíveis aplicações
práticas” (Mariconda, 1979, VI).
A introdução do livro “Os pensadores – William James”, Mariconda (1979) aborda de
forma clara a ampla receptividade de pensamentos diversificados na filosofia norte-americana e
29
Em uma nota de rodapé a autora diz que “é inegável que o pragmatismo também apresenta similaridades com
outros sistemas de pensamentos desenvolvidos ao longo do século XIX, como o marxismo, o positivismo e o
darwinismo” (Pogrenbinschi, 2005, p. 63). Em outro momento diz que o conceito de prática do pragmatismo é o
mesmo do marxismo, acrescenta que o pragmatismo é tão materialista quanto o marxismo. Diz que: “o
antifundacionalismo pragmatista, com sua rejeição ao dogmatismo, aos princípios imutáveis e apriorísticos, à idéia
de certeza e de verdade, se aproxima intensamente do marxismo” (idem, p. 68).
138
acrescente que diversos países receberam a influência desse modo de pensar. Destaca que o auge
desse pensamento ocorre no período final do século XIX quando houve também um domínio
econômico e político dos Estados-Unidos que atingiu proporções internacionais. O autor
considera este o período no qual foram projetados os principais representantes deste modo de
pensar, dois deles de tendência pragmatista: William James e John Dewey. Optamos por
apresentar uma breve análise de algumas proposições de William James, ele apresenta elementos
interessantes que nos permitem pensar o Serviço Social e sua relação como conservadorismo.
William James (1842- 1910) pertencia a uma família da alta sociedade norte-americana.
Viveu em um ambiente intelectualizado. O pensamento de James é fruto das influências das
reflexões filosóficas e científicas do final do século XIX e início do século XX. James teve uma
ampla formação, passando pela arte, pela fisiologia e pela medicina. Entretanto, “sua primeira
contribuição foi a constituição de uma nova corrente de psicologia que, ao lado de outras,
marcaria o nascimento da psicologia científica” (Mariconda, 1979, p. VII). Ele começou esta
elaboração através da organização de um laboratório de psicologia experimental. Sua proposta
era estudar os fatos psíquicos os atrelando a fisiologia nervosa, a teoria da evolução e aos dados
da arqueologia para se atingir uma verdadeira ciência do homem.
A elaboração do método científico de James configurou-se através de uma ampla gama de
influências, seja por fatos fisiológicos, psíquicos, empirismo experimental (mistura de evolução,
psicologia e introspecção). Essa direção deu-se por decorrência as críticas realizadas contra a
Sociedade Metafísica que permitiu espaço à criação do pragmatismo. “William James entende o
pragmatismo não apenas como um método de determinação de significados, mas também como
uma nova teoria da verdade, que supunha estivesse implícita nas idéias de Peirce” (Mariconda,
1979, p. XI).
James defendeu a idéia de que a filosofia deveria ser reflexo das ciências naturais. Deveria
ser indutiva e empírica, para tanto, o filósofo teria que desenvolver hipóteses de trabalho, mas
substituí-las caso fosse necessário. Essa possibilidade de mudança estaria relacionada a
necessidade de as hipóteses responderem ao filósofo na solução dos problemas apresentados. A
verdade para ele é funcional às experiências, ela modifica-se constantemente (Mariconda, 1979).
139
Quanto ao conceito de verdade desenvolvido por James, o autor destaca que:
Nesse processo de modificações e crescimento, a verdade deve satisfazer a duas
condições diferentes. Em primeiro lugar, o pragmatismo de James salienta a necessidade
de as proposições exigirem comprovação para serem admitidas como verdadeiras. Nesse
sentido, a verdade seria a verificabilidade; caso em que não se poderia identificar a
verdade pura e simplesmente com as conseqüências benéficas de uma proposição. Em
outras palavras, essa primeira condição da verdade, estabelecida pelo pragmatismo,
entente ‘consequencia prática’ como um modo de ‘consequencia teórica’. A segunda
condição estabelecida por James para a identificação de uma verdade consiste no seu
valor para a vida concreta. Esses dois modos de conceber a verdade unem-se na
concepção da verdade como algo essencialmente ‘aberto’ e em constante movimento.
Em síntese, para William James, a verdade não é algo feito ou dado; é algo que ‘se faz’
dentro de uma totalidade também em constante processo de ‘fazer-se’” (Mariconda,
1979, p. XIII).
A partir dos aspectos levantados sobre as propostas pragmáticas desenvolvidas por James
iremos abordar alguns traços constitutivos de seu pensamento. Nossa base de exame será o
conjunto de oito conferência agrupadas sobre o título “Pragmatismo”.
Sobre “O atual dilema da filosofia” James introduz o debate dizendo que para a filosofia o
relevante para cada indivíduo é o senso comum do que a vida significa, é a forma individual de
perceber “a carga total e a pressão do cosmos” (James, 1979, p. 3). Para ele a filosofia demanda
que cada um veja as coisas através de sua forma individual e particular e não deve aceitar
qualquer explicação que contrarie sua percepção. Ou seja, James quer demonstrar que tudo é
relativo e depende da busca de cada um por uma verdade. Ele não trata de fatos e sim de
sentimentalismo e de experiências, basta vermos esta passagem no qual ele diz que “o mundo é
indubitavelmente um se você o olha de certo modo, mas sem dúvida é muito se você o olha de
outra maneira” (James, 1979, p. 7) e complementa da seguinte forma: “tudo, naturalmente, é
necessariamente determinado e, não obstante, naturalmente nossas vontades são livres: uma
espécie de determinismo livre arbítrio é a verdadeira filosofia” (James, 1979, p. 7).
Ele realiza uma crítica a ciência em comparação ao senso comum. Estabelece o senso
comum como uma expressão heterogênea de experiências pessoais concretas; já a o pensamento
científico e elaborado seria algo simples e claro, sem manifestar as contradições da “vida real”.
Ele realiza uma crítica aos filósofos e cientistas que se distanciam dos problemas da vida
cotidiana. James diz que os filósofos devem contar com os sentimentos, pois a forma mais exitosa
140
de compreender as coisas ocorre através da impressão que tais coisas causam ao filósofo. Essa
impressão das coisas está relacionada a personalidade individual de cada filosofo, as suas
concepções, aos seus sentimentos e as suas sensibilidades.
Na segunda conferência intitulada “O que significa o pragmatismo” James inicia tratando
da relatividade da verdade, da perspectiva do filósofo e das inúmeras interpretações que uma
situação pode proporcionar. James aponta o que considera por método pragmático ao dizer que é
“um método de assentar disputas metafísica que, de outro modo, se estenderiam
interminavelmente” (James, 1979, p. 18). Completando: “o método pragmático nesses casos é
tentar interpretar cada noção traçando as suas consequências práticas respectivas” (idem, p. 18).
A partir dessas suposições fica claro que para o pragmatismo tudo que for provado na prática
possui validade. Ao explicar o significado do pragmatismo, James reporta a origem do termo a
palavra grega prágma que significa ação. Reconhece que foi Pierce quem introduziu a palavra
pragmatismo em 1878. Assim, deixa claro o centro da preocupação pragmática, ou seja, a prática.
O seu método consiste em testar todas as hipóteses e proposições de forma prática, caso
não apresentem uma conseqüência concreta elas são descartadas e consideradas inúteis por não
serem provadas na prática. Nessa lógica nega-se as macroteorias e as metateorias, pois mesmo
que elas apresentem questões referentes a problemas da vida em sociedade elas não passam por
testes ou não são efetivadas imediatamente.
O pragmatismo representa uma atitude perfeitamente familiar em filosofia, a atitude
empírica, mas a representa, parece-me, tanto em uma forma mais radical quanto em uma
forma menos contraditória, em relação a que já tenha assumido alguma vez. O
pragmatista volta as costas resolutamente e de uma vez por todas a uma série de hábitos
inveterados, caros aos filósofos profissionais. Afasta-se da abstração e da insuficiência,
das soluções verbais, das más razões a priori, dos princípios firmados, dos sistemas
fechados, com pretensões ao absoluto e às origens. Volta-se para o concreto e o
adequado, para os fatos, a ação e o poder. O que significa o reinado do temperamento
empírico e o descrédito sem rebuços do temperamento racionalista. O que significa ar
livre e possibilidades da natureza, em contraposição ao dogma, à artificialidade e à
pretensão de finalidade na verdade (James, 1979, p. 20).
Dessa forma, James considera as teorias como instrumentos, elas não são respostas aos
questionamentos. Por terem essa tendência a aceitar uma multiplicidade de posições sofrem
influências de diversas tendências, como o utilitarismo devido sua atenção aos aspectos práticos e
o positivismo.
141
James deixa claro que o método pragmático é uma “atitude de orientação” com o objetivo
de “olhar além das primeiras coisas, dos princípios, das ‘categorias’, das supostas necessidades; e
de procurar pelas últimas coisas, frutos, consequências, fatos” (James, 1979, p. 21). A busca é
pelos fatos concretos, pela prática, pela ação e não por conceitos. A questão central é a busca pela
prática em primeiro plano sem que haja qualquer articulação com bases teóricas.
As teorias são, de certa forma, associadas a leis. James diz que conforme a ciência foi se
desenvolvendo, concomitantemente, as leis passaram a ser concebidas como aproximações. As
leis tornam-se numerosas e os investigadores passaram a perceber que nenhuma teoria é uma
transcrição da realidade, mas que elas podem ser úteis de certa forma. Ou seja, a concepção de
teoria válida é que consegue traduzir a realidade o mais próximo e verossímil.
Sobre o processo de elaboração de novas idéias e opiniões, James destaca o indivíduo
como portador de concepções que passa por constantes experiências. Nesse processo, outro
individuo pode contradizer uma opinião já formada, ou que as idéias defendidas por um individuo
podem ser contraditórias. O individuo questionado sofre uma perturbação e para não passar por
essa sensação ele busca mudar a massa de suas opiniões, mas tentando conservar o máximo que
pode delas. É nesse movimento que novas idéias surgem. É como se fosse um processo de
acúmulo de experiências até que o sujeito mude suas idéias, como destaca James (1979, p. 24)
“uma opinião nova conta como ‘verdadeira’ na proporção que satisfaz o desejo do indivíduo no
sentido de assimilar a novidade em sua experiência às suas crenças em estoque”.
A verdade concebida pelo pragmatismo tem relação direta com os fatos, com o que pode
ser provado empiricamente. Entretanto, para o pragmatismo não existe uma verdade, mas sim
verdades. Dessa forma, James (1979) ataca toda e qualquer crítica feita aos pragmatistas, já que,
segundo sua lógica, eles conseguem “provar” suas “verdades”. A verdade é concebida como uma
forma de bem comum, é considerado verdadeiro tudo que for bom para uma crença por razões
que sejam fundamentadas e definitivas, ou seja, que tenham relação com fatos e sejam úteis.
O pragmatista agarra-se aos fatos e coisas concretas, observa como a verdade opera em
casos particulares, e generaliza. A verdade, para ele, torna-se uma classificação para
todos os tipos de valores definitivos de trabalho em experiência. Para o racionalista, não
passa de uma pura abstração, de cujo simples nome devemos diferir. Quando o
pragmatista empreende a tarefa de mostrar em detalhes por que extamente devemos
discordar, o racionalista mostra-se incapaz de reconhecer os dados concretos dos quais a
142
sua própria abstração deriva. Acusa-nos de negar a verdade; ao passo que temos
somente procurado traçar exatamente por que as pessoas a seguem e sempre devem
segui-la (James, 1979, p. 26) (grifos do autor).
Outra crítica disparada por James é em relação aos materialistas. Diz que o pragmatismo
possui forte relação com os fatos, mas que não tem nenhuma pretensão materialista. Alega
também que o pragmatismo não faz qualquer tipo de objeção as abstrações nem a teologias.
Parece-nos que James trata especificamente das crenças, daquelas que não possuem nenhum tipo
de relação com fatos, mas que podem ter relação com a vida concreta. Diz que elas se tornam
verdadeiras quando apresentam relação com as demais verdades. É uma forma de pensar no
mínimo contraditória, pois, se o pragmatismo reivindica por verdades relacionadas aos fatos,
como associar crenças a fatos? A justificativa de James (1979) é apresentada da seguinte forma:
“uma idéia é verdadeira na medida em que acreditar nela é proveitoso para nossas vidas” (idem,
p. 28).
As verdades de um indivíduo buscam se autopreservar, pois apresentam resistência de
serem contestadas; por isso que elas visam eliminar tudo que as contradiga. James (1979) defende
que a crença em algo superior, mesmo que não possa ser provada, deve ser preservada se ela fizer
bem ao indivíduo que nela crê. E assim, deve aceitar e conviver com as demais crenças, sendo
dessa forma verdadeira. Acrescenta a seguinte idéia “eu mesmo acredito que a evidência de Deus
reside, antes de mais nada, em experiências pessoais internas” (idem, p.39). E ao tratar de
experiência tudo pode ser aceito pelo pragmatismo, contanto que as experiências tenham relação
com os fatos da vida dos indivíduos.
Por outro lado, o pragmatismo de James realiza uma crítica ao naturalismo por
considerarem as leis da física como as mesmas que regem as “coisas” não naturais. Sua crítica
projeta-se no argumento dos naturalistas tentarem explicar os fenômenos mais elevados pelos
mais baixos. E diz também que os pragmatistas não buscam apenas o aspecto imediato da prática,
e sim, recorrem a perspectivas do mundo. Por outro lado, ao apresentar o método pragmático,
James diz ser necessário “mergulhar no rio da experiência”.
Seguindo em sua explicação do método pragmático, James coloca o problema de
“singular e plural” como o problema mais central de todos os problemas filosóficos. É central
143
porque a filosofia busca na realidade a unidade, mas o nosso intelecto não busca a unidade nem a
variedade e sim a totalidade. O significado de totalidade refere-se a articulação das coisas que se
unem de algum modo, ao mesmo tempo, o universo se estabelece a partir de uma função contínua
ou integrada.
Para o autor a singularidade e a pluralidade estão articuladas, de forma equiparada, sem
que uma se sobreponha a outra. Contudo, acrescenta que o pragmatismo deve ser pluralista,
mesmo considerando o pragmatismo como uma proposta de método direcionado às experiências.
Outro assunto abordado é o do conhecimento. Para este autor, a produção do
conhecimento nunca ocorre de uma vez, ele se acumula aos poucos e pode, posteriormente,
modificar opiniões já estabelecidas de um indivíduo. Para que um indivíduo desenvolva novas
verdades ele precisa acumular experiência que se combinem com as antigas verdades que ele tem,
de modo que elas se modifiquem e gerem novas verdades.
Ao tratar do significado do senso comum para o pragmatismo, James decorre em uma
qualificação do significado da história para os pragmatistas. Ele parte da seguinte tese: a forma
atual de pensar dos indivíduos origina-se das descobertas de nossos descendentes mais remotos
que conseguiram preservar a experiência e permitiram a formação de uma fase equilibrada do
“espírito humano” que é a fase do senso comum. Dessa forma, a história trata da reprodução e do
acúmulo de experiências e o senso comum está relacionado ao bom julgamento, é considerado
um estágio do nosso conhecimento das coisas.
James trata da concepção pragmatista da verdade a considerando como um acúmulo de
idéias de um indivíduo, ou seja, ela depende da perspectiva individual. Ele nega a idéia de que a
verdade tem que ser uma cópia da realidade. Sua principal crítica versa contra os intelectualistas
por afirmarem que quando se atinge uma idéia verdadeira de algo chega-se ao fim da questão.
Como verdade James diz que “as idéias verdadeiras são aquelas que podemos assimilar, validar,
corroborar e verificar. As idéias falsas são aquelas com as quais não podemos agir assim. Essa é
a diferença prática que nos faz ter idéias verdadeiras; esse, portanto, é o significado da verdade,
pois é tudo como pode ser conhecida a verdade” (James, 1979, p. 72) (grifos do autor).
A verdade de uma idéia não é uma concepção imutável de uma idéia. A idéia torna-se
144
verdadeira de acordo com os acontecimentos, por isso ela é um processo de verificar sua
validade. Dessa forma, o valor prático das idéias verdadeiras decorrem da importância que seus
objetos possuem na prática. Para James, a verdade depende de uma direção que “vale a pena” em
decorrência de nossas experiências, ou seja, quando há um momento em nossa experiência que
proporciona um pensamento verdadeiro significa que o pensamento buscará as particularidades
da experiência. “A experiência oferece, na verdade, outras formas de processo-verdade, mas são
todas concebíveis como sendo verificações primárias capturadas, multiplicadas ou substituídas
umas pelas outras” (James, 1979, p. 74).
James acrescenta em suas análises que nossas idéias devem aceitar as verdades e não
questioná-las, sejam essas verdades concretas ou abstratas, fatos ou princípios; pois, caso
contrário, o indivíduo pode frustrar-se. A verdade significa fatos concretos ou abstratos de coisas
e relações. O autor demonstra sua relação com a psicologia ao tratar a realidade como algo que
deve ser aceito pelos indivíduos para que não se gere frustrações. “Qualquer idéia que nos ajude a
lidar, prática ou intelectualmente, com a realidade ou seus pertences, que não perturba nosso
progresso com frustrações, que ajusta, de fato, e adapta nossa vida ao cenário geral da realidade,
concordará suficientemente em satisfazer o requisito. Manterá a verdade daquela realidade”
(James, 1979, p. 76).
James trata da questão da linguagem e do discurso. Para ele essa relação parte do ato de
pensar. O pensamento e a fala devem ser coerentes, pois é através da linguagem que a verdade é
expressa. A linguagem possui um papel central na expressão da verdade, por isso, os pragmatistas
atribuem uma função essencial a expressão lingüística. As idéias cientificas são expressões de
idéias para além do senso comum que precisam estar de acordo com a realidade.
James apresenta uma concepção de teoria através de sua funcionalidade prática. Para ele a
teoria tem que ser aplicada na prática para possuir validade cientifica, senão ela perde seu sentido
de ser. O sentido atribuído é exatamente o da funcionalidade correlacionada às experiências
acumuladas. Como diz o autor: “devemos encontrar uma teoria que funcione; e isso significa algo
extremamente difícil; pois nossa teoria deve mediar entre todas as verdades prévias e certas
experiências novas” (James, 1979, p. 78) (grifos do autor).
145
A concepção de verdade para James está relacionada ao acúmulo de experiências, a
validação da teoria na prática, como diz o autor, “a verdade torna-se um hábito de certas idéias
nossas” (James, 1979, p. 80). Aquilo que consideramos verdadeiro é o que processamos em nosso
pensamento como verdade. Dessa forma, existe uma verdade para cada situação e para cada
pessoa. A verdade se multiplica e adquire várias composições, ela nunca é uma verdade absoluta
porque nesse processo de pensamento e individualidade ela pode ser alterada. O autor afirma que
a verdade é constituída de verdades prévias e acumuladas.
A partir dessa concepção de verdade, James (1979) apresenta sua idéia do que são os fatos
e uma proposta de análise das verdades. “As verdades emergem dos fatos; elas, porém,
mergulham de novo nos fatos e trazem acréscimos a estes; os fatos criam de novo ou revelam
nova verdade (a palavra é indiferente) e assim indefinidamente. Os ‘fatos’ em si mesmos, nesse
meio tempo, não são verdadeiros. Simplesmente são. A verdade é função das crenças que
começam e terminam entre eles” (James, 1979, p. 81) (grifos do autor). Assim, podemos analisar
a idéia do autor da seguinte forma: a verdade está em constante mudança e os fatos são
considerados acontecimentos momentâneos, sem caráter histórico que acontecem independente
da vontade dos homens.
A influência da psicologia em James fica clara quando o autor aborda o significado da
razão. As razões são fatos psicológicos associadas a cada indivíduo e a acontecimentos de sua
vida, são apenas evidências e não parte da verdade. A razão possui um significado psicológico.
Segundo a concepção de James, podemos dizer que não existe a verdade e sim que há
verdades que se associam a laços cronológicos. A verdade atual sempre depende de uma verdade
anterior, ou seja, de um acúmulo de experiências. Ele considera as verdades como crenças em
algo particular.
Assim, James irá se debruçar sobre a análise da realidade. Discorre sobre a realidade
dizendo que ela possui uma relação com a verdade e com as sensações diante da realidade. Outro
aspecto da realidade refere-se às relações que estão presentes nas sensações. Sobre a realidade há
também as verdades prévias, ou seja, cada novo fato há novas considerações, dessa forma sempre
existiu uma verdade prévia e um fato anterior.
146
Para demonstrar que existem várias verdades com o objetivo de se atingir um único fim,
James (1979) dá um exemplo das ciências exatas e a transfere para as ciências humanas de forma
comparativa. James diz o seguinte: “pode-se tomar o número 27 como o cubo de 3, ou como o
produto de 3 por 9, ou como 26 mais 1, ou como 100 menos 73, ou em incontáveis outras
maneiras, das quais uma será tão verdadeira quanto a outra” (idem, p. 91). Com isso, o autor diz
que podemos conceber determinada realidade diferentes formas para se adequarem aos nossos
interesses.
James (1979) afirma que o homem pode acrescentar elementos que modifiquem a
realidade, isso não significa um reconhecimento do homem como sujeito histórico consciente de
suas ações, pois ele diz que a realidade já existe e nos acrescentamos elementos a ela.
Ao criticar o racionalismo James diz que o pensamento racionalista apresenta a realidade
de forma pronta e completa como se ela sempre tivesse sido assim, enquanto que o pragmatismo
possui uma concepção de realidade como algo que ainda está sendo processado e espera sua
expressão futura. James critica com frequência o racionalismo, como uma expressão oposta ao
pragmatismo e reafirma a idéia de que os pragmatistas apresentam uma preocupação constante
com o futuro.
Os pragmatistas consideram como validas qualquer hipótese, já que elas possuem uma
utilidade. Eles não rejeitam as hipóteses porque elas possuem consequências úteis à vida. Por
outro lado, se elas não possuem sentido e nenhuma utilidade, elas não apresentam razão para
existir. Se elas tem utilidade, também terão significado que será verdadeiro se seu uso possuir
relação com os demais usos da vida. Dessa forma, para James, “o único caminho para extrair o
significado de um termo é usar o método pragmático” (James, 1979, p. 103).
Diante do exposto pela leitura que realizamos de Pogrebinschi e de James podemos tratar
o pragmatismo como um modo de pensar da sociedade capitalista que surge para fortalecer seus
ideais. Ao reforçarmos o aspecto da experiência, da concepção de teoria e de verdade, do
significado da ação para o pragmatismo, buscamos reforçar seu papel diante da propagação dos
ideais dominantes.
As características apresentadas estão muito presentes na cultura dos países capitalistas e
147
presentes no cotidiano dos homens. Assim, as profissões não deixam de ser influenciadas por
essas idéias e essa forma de pensar que justifica tudo pela utilidade prática das coisas.
Para o Serviço Social é importante conhecer o pragmatismo, visto que conseguimos
realizar uma leitura crítica da realidade ao mesmo tempo em que trabalhamos com o cotidiano da
vida humana. Os profissionais, por mais que tentem, possuem dificuldades para realizar
constantes mediações durante toda sua jornada de trabalho. Assim, é relevante possuir uma
perspectiva que permita compreender essa dinâmica para apontar possibilidades de ruptura.
148
Considerações finais
Ao trazermos o debate do pragmatismo para o Serviço Social buscamos sinalizar os
elementos de continuidade do conservadorismo na profissão, mas não apenas. Nosso objetivo foi
esclarecer como o pragmatismo se faz presente de forma atualizada para que assim, possamos
indicar alternativas críticas a superação de seus elementos conservadores. Sabemos que a
categoria profissional possui um aporte significativo de proposições críticas para enfrentar as
tendências conservadoras postas na contemporaneidade. Basta observarmos o Projeto ÉticoPolítico da profissão.
Afirmamos em nossa hipótese que o Serviço Social apresenta algumas características do
pragmatismo e que, de certa forma, ele se expressa como uma forma de ser da profissão. Cabe
resgatarmos que consideramos o pragmatismo não apenas como uma crítica a metafísica ou
atrelado em sua origem a sociologia, o consideramos também como uma expressão da ideologia
dominante que visa reproduzir uma forma de pensar que fortaleça os interesses da reprodução do
capitalismo.
Em outro momento apontamos também o debate do sincretismo sinalizado por Netto. O
sincretismo se expressa nas requisições da prática profissional, que decorre em uma série de
implicações como a necessidade de manipulação das variáveis empíricas, a imediaticidade das
respostas, a busca por modelos de intervenção, a negação das macroteorias. É no sincretismo
também que se expressa o pragmatismo.
Reconhecemos a existência de elementos pragmáticos no Serviço Social, entretanto
identificamos que tais elementos estão atrelados as requisições e exigências da prática
profissional postas pela imediaticidade do cotidiano. A preocupação em apresentar este debate já
foi sinalizado por diversos autores no âmbito do Serviço Social como Guerra (2005) e
Vasconcelos (2007).
Guerra (2005) ao tratar da instrumentalidade apresenta ao leitor a existência da
149
racionalidade formal-abstrata e a forma como ela se expressa e é funcional à sociedade
capitalista. A autora, aportada em Lukács, realiza um resgate do período do surgimento da
sociologia como a mais alta expressão da constituição do pensamento conservador, assim como
sinalizamos em nossas considerações acerca da leitura de Gouldner. A racionalidade formalabstrata teve relação com o pensamento desenvolvido a partir da sociologia. Por isso, um dos
principais autores mencionados por Guerra que contribuiu para a constituição dessa racionalidade
foi Émile Durkheim, pois ele visava realizar uma “análise das estruturas sociais, na medida em
que suas concepções teóricas e metodológicas encerram a pretensão, não apenas de estabelecer
uma explicação totalizadora da sociedade, mas, sobretudo, de orientar uma programática de ação
sobre a sociedade” (idem, p. 57). Esta perspectiva de conceber a sociologia como um método
científico que associa as regularidades existentes nos grupos aos indivíduos apresenta um
conteúdo ideológico de que “não há espaço para se pensar as individualidades, não há
interferência teleológica dos sujeitos, não há história” (idem, p. 58). Trata-se do que analisamos
como características do pragmatismo como a negação da história e o reconhecimento da prática e
das experiências como o que há de mais importante para uma análise científica. A autora também
destaca que “o pensamento analítico-formal fornece, ao mesmo tempo, uma determinada maneira
de interpretação e validação da ordem burguesa e um conjunto de procedimentos instrumentais e
manipuláveis para atuar sobre ela” (idem, p. 65).
A partir da perspectiva de Guerra confirmamos que algumas das questões postas ao
Serviço Social requerem que o profissional seja capaz de dar respostas imediatas para resolução
de questões que não são possíveis de serem solucionadas na imediaticidade da prática
profissional, visto que tratam das expressões da “questão social” como uma manifestação da
relação capital/ trabalho, ou seja, tratam da estrutura desigual da sociedade capitalista. Entretanto,
essa exigência, conforme também apontado por Netto, requer a manipulação de variáveis e faz
com que os assistentes sociais, muitas vezes, sem realizar uma análise crítica, busquem por
instrumentos que sejam funcionais a essa lógica e sirvam como suporte ao seu trabalho. Assim,
“verifica-se a presença da racionalidade formal-abstrata enquanto uma mediação teórico-cultural
e ideopolítica que historicamente vem exercendo influência na profissão” (Guerra, 2005, p. 140).
150
Podemos sinalizar alguns aspectos presentes no pragmatismo clássico no Serviço Social
conforme sinalizado por Guerra (2005):
Dispostas as bases materiais, parece-nos que a relação teoria/ prática no Serviço Social
reflete o seguinte movimento: ao apreender os dados, sobre os quais atua como formas
fixas, o profissional tende a identificá-los ao seu conteúdo e a estabelecer entre eles uma
relação causal, cuja tendência é a de aceitar os fatores econômicos como determinantes
(idem, p. 170).
Uma característica marcante do pragmatismo é o antifundacionalismo pragmatista. Ao
aceitar os fatores econômicos como determinantes ou ao aceitar a realidade social de forma
naturalizada como se não fosse possível intervir de maneira eficiente, o Serviço Social reproduz
esse componente pragmático. Ocorre quando o profissional encontra-se na inércia do cotidiano de
seu trabalho e quando reproduz jargões como: “não há o que fazer”, “nós não temos como
intervir, pois não possuímos recursos para atender a esta demanda”, “isso não é uma demanda
nossa, e sim de outra instância”, ou quando o profissional assume cargos de chefia e direção e diz
que não exerce a profissão como se um assistente social não tivesse capacidade ou competência
de assumir cargos de coordenação e exercer a profissão, entre outros. Assim, o profissional busca
intervenções paliativas para que o usuário dos serviços e das políticas sociais não fique sem
respostas. A reprodução dessas idéias só reforça uma leitura acrítica e a-histórica da sociedade
capitalista e de seus fundamentos.
Outro forte componente pragmático, e poderíamos dizer, um dos mais presentes na
concepção de profissão dos assistentes sociais é em relação a necessidade do acúmulo de
experiência profissional. Uma das idéias mais reproduzidas entre os profissionais é que “se
aprende fazendo na prática” e que “na prática a teoria é outra”. Essa característica foi identificada
por Vasconcelos (2007) em pesquisa realizada com assistentes sociais na área da saúde. Para
superar essa dificuldade a autora identificou que:
A realidade é um movimento e não podemos simular as situações, como faz, por
exemplo, um químico, um físico. Só existe uma forma de estudar a sociedade, a história,
a cultura para negar a sua evidência, a sua aparência: é através do processo intelectual da
abstração. O intelectual abstrai o fato e o examina de per si, embora saiba que ele não
existe isolado, que não pode ser tomado atomizadamente. É pelo processo intelectual da
abstração que é possível captar o movimento de um fenômeno. A partir de um fato
investiga-se o processo ou os processos que estão vinculados ao objeto estudado (idem,
p. 424).
151
Entretanto, podemos constatar que o assistente social, conforme sinaliza Coelho (2010),
identifica o Serviço Social como prática profissional o que gera diversos equívocos na
compreensão, na imagem e na apropriação crítica da profissão. Assim, podemos afirmar que o
pragmatismo é funcional a essa falta de articulação da relação teoria/ prática e não confere
aportes necessários a uma análise crítica da realidade.
A relação teoria/ prática também foi abordada por Santos (2006) ao tratar dos dilemas
enfrentados pelos assistentes sociais e da dificuldade de apreensão desta relação. A autora
sinaliza que o equívoco desta análise acarreta em um questionamento reivindicando instrumentos
e técnicas que confiram respostas no processo de intervenção profissional. Em decorrência dessa
lacuna, a teoria foi apreendida como algo que transforma a prática de forma imediata, que oferece
procedimentos para a intervenção. Já a prática foi concebida como sinônimo de instrumentos e
técnicas, associada ao mercado de trabalho.
Podemos constatar que o profissional não nega a teoria, mas ele não a reconhece no
cotidiano de sua prática profissional, visto que ele não é capaz, nesta esfera, de captar as
múltiplas determinações e movimentos que lhes permitam apreender as mediações necessárias
para articular e fortalecer a relação teoria/ prática. Nas palavras de Coelho (2010) “a teoria é
outra não no sentido de reconhecer que uma outra lógica ou racionalidade esteja presente no
espaço sócio-ocupacional, mas porque o conhecimento válido é aquele que advém de sua
experiência como sujeito singular que anuncia a verdade de um objeto singular” (idem, p. 27).
Santos (2006) destaca que o Serviço Social brasileiro recorreu ao Serviço Social norteamericano para buscar o aporte necessário de métodos e técnicas. Assim, também sinalizamos
que nesse processo de aproximação o Serviço Social brasileiro sofreu influências das idéias
pragmáticas.
Outro aspecto pragmático que se expressa na profissão é o contextualismo, por considerar
as características apresentadas em determinado contexto específico sem uma vinculação histórica.
Essa consideração reforça a importância da prática e das experiências, pois ao não se realizar uma
análise histórica valoriza-se o acúmulo de experiências para compreender os contextos
apresentados no cotidiano profissional. Esse aspecto conservador distancia o profissional da
152
elaboração de uma sistematização de sua prática, por ser este um dos momentos no qual é
possível pensar em mediações a articulá-la com uma leitura teórico-crítica. Vasconcelos (2007)
reforça sua posição ao dizer que “os assistentes sociais, em sua maioria, se não portam condições
de articular os dados da realidade a que têm acesso no cotidiano de sua prática, também não os
valorizam, o que resulta na sua não sistematização, dificultando ainda mais a projeção,
priorização e avaliação de suas ações” (idem, p. 419) (grifos da autora).
Essa relação do pragmatismo com o Serviço Social não coloca a profissão a mercê dos
interesses conservadores ora elencados. Justamente tal constatação faz com que os assistentes
sociais necessitem elaborar respostas qualificadas e críticas para superar esse aspecto conservador
de sua prática. Dessa forma, é importante sinalizarmos algumas propostas que possibilitam os
assistentes sociais reforçarem a perspectiva crítica e a direção posta pelo Projeto Ético-Político do
Serviço Social.
Netto (1996) ao tratar das requisições postas ao Serviço Social brasileiro na década de
1990 diz que a profissão conseguiu avançar na formação profissional tornando-se referência para
a América-Latina. Por outro lado, uma série de problemas se agutizaram como a questão da
legitimidade social da profissão.
Há também uma exigência de competências como as
direcionadas à pesquisa, à produção de conhecimento e à alternativas de sua instrumentalização
com o objetivo de obter um maior conhecimento da realidade social. Para enfrentar tais
problemas é necessário pensar na formação profissional visto que o perfil sócio-econômico do
alunado tem apontado que os mesmos pertencem a camadas sociais mais subalternas acarretando
em um empobrecimento cultural.
Mesmo diante desse panorama de enfrentamento de dificuldades, o Serviço Social
também conseguiu renovar suas referências teórico-culturais, propiciando um segmento da
categoria vinculado à pesquisa e à produção de conhecimento, estimulando uma intelectualidade
e uma massa crítica. Entretanto, é esse mesmo segmento que precisa enfrentar as tendências
conservadoras postas na atualidade, mais especificamente postas pela pós-modernidade. Assim,
Netto (1996) demonstra que:
153
A recusa pós-moderna da metanarrativa, da macroteoria, da categoria da totalidade etc,
vem ao encontro do conservadorismo profissional, que privilegia o microssocial, no
máximo as “teorias de médio alcance” (...). As implicações, naturalmente, estendem-se
ao plano operativo: o privilégio da “mudança cultural”, a centralização nas
singularidades, a ênfase nas especificidades, a valorização do trabalho focalizado etc
(idem, p. 118).
Todo esse panorama apresentado por Netto nos remete as bases conservadoras que
influenciaram a profissão e que se expressam de forma reatualizada. Sabemos que, na atualidade,
o pragmatismo não está posto em sua totalidade como se manifestou em sua forma clássica, mas
se faz presente de outras maneiras como nas influências pós-modernas. Entretanto, este é um
debate denso que merece uma leitura cuidadosa. Nosso objetivo foi apresentar o pragmatismo
como uma manifestação do conservadorismo exercendo influência no Serviço Social, mas
também na vida cotidiana dos homens. Apresentamos um debate inicial que carece de
aprofundamento, outrossim destacamos a relevância de conhecermos o pragmatismo pelos
poucos estudos, ou nenhum, produzidos pelo Serviço Social.
154
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