A Fórmula da Sexuação e a Teoria de Gênero: algumas
problematizações
Priscila de Lima Catão
"Confesso a vocês que nunca a escrevi em nenhum
lugar, e em nenhum lugar a preparei. Ela não me
parece exemplar senão, como de hábito, para
produzir mal-entendido" (Jacques Lacan).
As atuais discussões sobre novas apresentações da sexualidade são de extremo
interesse para a psicanálise. Sob esta perspectiva, o presente trabalho vem trazer um
recorte de concepções psicanalíticas, mais especificamente no que concerne a construção
lacaniana da tábua da sexuação, em contraponto com a própria teoria psianalítica, no que
diz respeito ao sujeito do inconsciente, promovendo um questionamento diante das
provocações dos estudos de gênero quanto à construção dos sujeitos em sociedade.
1. A fórmula da Sexuação
As quatro fórmulas proposicionais são elaborações lacanianas que se apresentam
num quadro composto por quatro espaços, sendo os dois superiores referentes às
formulações matemáticas propriamente ditas. Tais espaços são divididos por uma barra: do
lado esquerdo o masculino, do direito, o feminino. Os dois espaços abaixo, também
separados por uma barra e configurando o masculino e o feminino, trazem cinco termos
que se relacionam por setas que partem dos mesmos e que por hora atravessam a barra.
Tais termos são o sujeito dividido ($), símbolo fálico (Ф), objeto pequeno a, o significante
de uma mulher (A/) e o significante da falta no Outro [S(A/)], conforme a imagem abaixo:
Em relação às quatro fórmulas, é interessante observar o caminho traçado por
Lacan para tal estruturação. Munido da teoria psicanalítica em construção, acrescida das
formulações lógicas de Frege, o autor perpassa pela lógica aristotélica, através das
negativas e afirmativas universais e particulares, com uma nova proposta de trabalho.
Formadas pelos quantificadores existenciais e universais, as premissas lógicas da
tábua da sexuação têm suas proposições resumidamente trabalhadas no Seminário 20Mais, ainda, onde a tabela se apresenta. Expliquemos.
1.1 O lado masculino
Lacan escreveu as fórmulas: “existe ao menos um homem para quem a função
fálica não incide”, e “para todo homem é verdadeiro que a função fálica incide”. A
primeira delas foi baseada no mito freudiano do pai primevo de Totem e Tabu (1915), uma
tentativa de elaborar o marco mítico que divide natureza e cultura, onde o líder da horda
primitiva, que teria livre acesso a todas as mulheres do bando, sem nenhuma lei que lhe
proibisse, impedia o acesso dos outros machos às mulheres. O assassínio deste pai primevo
é seguido pela instauração da lei da proibição do incesto, onde os filhos, movidos pelo
remorso e pelo sentimento de culpa, em reverência a este pai, criam a lei simbólica. A
função fálica (Φx) remete à castração que, nessa fórmula, tem um traço horizontal sobre
ela indicando a sua negativa. Assim, a fórmula é: existe pelo menos um homem que não foi
submetido à castração, ou seja, o pai primevo. Esse pelo menos um que não segue a regra
da castração permite a fundamentação da mesma e, desta forma, a exceção exige a regra. A
universalidade expressa na segunda fórmula só tem sentido, portanto, porque pelo menos
um elemento se subtrai dela. A linha inferior do lado masculino assim se resume, trazendo
a fórmula proposicional que ilustra essa universalidade: “para todo homem é verdadeiro
que a função fálica incide”.
1.2 O lado feminino
As duas formulações seguem-se como: “não existe ao menos uma mulher para
quem a função fálica não incide” e “para não-toda mulher é verdadeiro que a função fálica
incide”. Ao afirmar que não existe ao menos uma mulher que não seja castrada, na
fórmula, Lacan transgride o formalismo lógico contemporâneo, no qual a negativa recairia
sobre o quantificador universal (“toda mulher é castrada”). Para o lado feminino, ele se
utiliza do “para toda mulher”, negando esse primeiro elemento da proposição e, à revelia,
afirma o “para não-toda mulher”, elaborando a fórmula “para não-toda mulher é verdadeiro
que a função x incide”. O mesmo ocorre com o quantificador existencial, negando-o (“não
existe x”), bem como nega, agora mantendo-se na base do formalismo lógico, a função (“a
função fálica não incide”).
Tratando-se das repercussões das proposições forjadas por Lacan, o lado direito da
tábua mostra que a não existência de pelo menos um que tenha escapado à castração. Ou
seja, não existe ao menos uma mulher que seja uma exceção à regra. Sem a exceção,
consequentemente, não existe a regra universal para todas as mulheres. Se a exceção funda
a regra, com a ausência de uma exceção, a universalidade, ( x), o ‘para todo x’ não se
aplica. O conjunto universal só pode ser fundado na presença de um que esteja fora da
regra do ‘todo’, assim, se do lado feminino não há essa exceção, inviabiliza a
universalidade do ponto de vista da função fálica, ou seja, é impossível falar de ‘todas
as mulheres’, e não haveria “A Mulher”, numa categoria universal afirmativa, donde se
produz as famosas frases “A Mulher não existe”, e “a mulher é não-toda”.
Outra consequência é que, de acordo com as premissas lógicas da tábua da sexuação, não é
possível relacionar dois termos que não se equiparam: do lado masculino, utiliza-se o
universal e do lado feminino deveríamos poder usar o mesmo referencial, o universal. Mas
é justamente por não existir o universal do lado feminino que não é possível estabelecer
relação alguma entre os sexos masculino e feminino. Portanto, Lacan propõe o axioma
“não há relação sexual” para falar sobre esta impossibilidade de relacionar “O Homem” (o
todo) com uma mulher (não-toda).
2. Problematizações
Quanto a esta matematização da construção subjetiva baseada no formalismo lógico
contemporâneo, algumas contradições surgem quando, em nossa contemporaneidade, vê-se
ampliar o espectro de identificações subjetivas e relações objetais, que questionam o
padrão heteronormativo. Afirmar que há uma padrão de identidades, e que os que fogem a
ele ficam de fora, ou mesmo dentro somente quando adaptados, significa, inevitavelmente,
reafirmar tais padrões, de modo que o que se amplia é apenas a possibilidade ou não de
estar dentro, sem a opção do vacilar da própria estrutura.
Podemos inferir aqui que, ao não seguir o formalismo lógico contemporâneo,
elidindo ou negativando quantificadores, à sua maneira, Lacan cria um padrão de
processos identificatórios, invenção própria que vem justificar toda sorte de axiomas que
são repetidos entre os grupos psicanalíticos, por vezes sem a reflexão teórica que se exige
deles.
Deste modo, é possível para Lacan criar uma tabela cujo destino dos seres humanos
é ou ser mulher ou ser homem; cuja estrutura é dissimétrica, pois as proposições universais
não são comparáveis (o que seria possível na lógica clássica); cuja origem é mítica (o mito
de Totem e Tabu); e que concebe homens e mulheres como as únicas possibilidades de
estruturações e relações psíquicas. Tornar tais assertivas uma lógica de afirmativas e
negativas universais é um processo delicado, quando, a partir dela, o que fica fora é
imediatamente conduzido para o campo das psicoses, a exemplo da transexualidade. Ou
bem se está fora do quadro, ou se enquadra, se emoldura nele.
Lacan é categórico ao afirmar o elemento da duplicidade como única via para a
construção subjetiva. “O importante é isto: a identidade de gênero não é outra coisa senão
o que acabo de expressar com estes termos, ‘homem’ e ‘mulher’” (LACAN, 1971). O tecer
das suas contribuições partem deste modelo de relação. Assim, a humanidade seria
dividida entre homens e mulheres, mas diferentemente da biologia, cada um pode escolher
de que lado se identifica. “Quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de
outro” (LACAN, 1973). Ainda que sejam consideradas posições subjetivas passíveis de
mobilidade, ou seja, um homem pode ocupar o lado feminino e vice-e-versa, este
tratamento mantém os sujeitos engessados nas duas únicas categorias possíveis, como
também não impede que se reproduzam as frases padronizadas e carregadas de sentido,
onde é preciso “ser mulher não-toda” para o acesso ao gozo para além do falo, sem que se
saibamos desvincular a mulher do feminino ou o homem do masculino. “Tais são as únicas
definições possíveis da parte dita homem ou bem mulher para o que quer que se encontre
na posição de habitar a linguagem” (LACAN, 1973). Contudo, para além disso, a questão
inserida aqui é da necessidade do pensamento dicotômico para a produção da
subjetividade.
Assim, um mito é criado a partir de outro mito, e, pela via da repetição, este mito é
reproduzido. Ao tratar das questões pela via das fórmulas da sexuação, ficam cravadas na
teoria as categorias sexuais feminino/masculino como únicas possibilidades, correndo-se
os riscos de reafirmação do padrão heteronormativo.
É inegável, contudo, a contribuição de Lacan para melhor esclarecimento de sua
teoria, no que diz respeito à estrutura da fantasia e das modalidades de gozo, estruturas
sempre referenciadas ao falo. A tentativa da representação por imagens e símbolos é de
grande auxílio para a compreensão, diante do seu caráter indizível. A questão é que, no
vazio do indizível, há um potencial infinito de possibilidades. Na tentativa de dar conta,
Lacan escolheu esta. O que se trata aqui, então, é produzir reflexões acerca do lugar de
onde partem os pensamentos a respeito da construção dos sujeitos, ampliando os caminhos
possíveis, sem que se caia necessariamente na dicotomização.
3. Teoria de gênero e o sujeito do inconsciente
A teoria de gênero mostra-se entusiasmada em relação às novas identificações que
vêm, senão surgindo, tornando-se mais visíveis aos olhos da sociedade moderna. Estilos
como a transexualidade, a homossexualidade e o travestismo são temáticas que, por si só,
questionam os modelos padronizados, modelos estes tornados naturalizados – como a
naturalização da heterossexualidade –
mas que, como qualquer padrão, trata-se de uma
ficção, pura invenção, produção social que gera uma série de efeitos, à serviço de um
controle e de uma contenção de valores que, uma vez ditados, forjam um modo de
subjetivação que não permite a entrada da diferença.
Associada a variadas ramificações das teorias de gênero - teoria queer, feminismo,
estudos de gênero, drag, entre outras – é na elaboração do conceito de performatividade de
gênero que a filósofa Judith Butler se destaca.
Em uma entrevista para o site Big Think (www.bigthink.com), em janeiro de 2011,
a filósofa apresenta, de forma clara e resumida, o que seria o caminho de seu trabalho.
Quanto ao que significa dizer que o gênero é performativo, ela faz a distinção entre
performance e performatividade:
“Quando se fala em performance de gênero, geralmente significa
que estamos representando um papel, ou que estamos, de alguma
maneira, atuando, e que esta atuação ou interpretação é crucial para o
gênero que somos e o gênero que apresentamos para o mundo . Dizer que
o gênero é performativo é um pouco diferente, visto que, para algo ser
performativo, significa que isso produz uma série de efeitos. Agimos,
falamos, e andamos de modos que consolidam a impressão de se ser um
homem ou uma mulher. Agimos como se esse “ser homem” ou “ser
mulher” fosse uma realidade interna genuína, ou fosse simplesmente uma
verdade, um fato sobre nós, mas na verdade é um fenômeno que está
sendo produzido o tempo todo, e reproduzido o tempo todo, portanto,
dizer que o gênero é performativo é dizer que ninguém é realmente de um
gênero desde o início. Eu sei que é polêmico, mas esse é o meu
postulado.” (BUTLER, 2011)
Em continuidade, Butler problematiza a questão, quando a performatividade de
gênero pode modificar o modo como se olha a construção de gênero. Se pensarmos o quão
difícil é para garotos afeminados, ou quão difícil é para tomboys, funcionar socialmente
sem que não sejam intimidados ou provocados, ou, por vezes, sofrendo ameaças de
violência ou tendo seus pais intervindo, ao dizer que talvez precisem de um psiquiatra ou
questionando o por que eles não podem ser “normais”. Portanto, há poderes institucionais,
tal qual a normatização psiquiátrica, como também existem tipos de práticas informais
como o bullying, que tentam nos manter em lugares gendrados. Há uma questão real sobre
como tais normas de gênero são estabelecidas e até mesmo policiadas. Para a filósofa, o
melhor caminho seria a disrupção e a subversão destas funções repressoras. Ela acredita
que o gênero é culturalmente formado, mas que também é um campo de liberdade e
capacidade de agir, e que o mais importante é resistir à violência imposta pelas normas de
gêneros ideais, especialmente contra aqueles que são diferentemente gendrados, não
conformes com sua apresentação de gênero.
Podemos dizer que o gênero é instituído pela estilização do corpo e, por isso, deve
ser compreendido como um modo como os gestos corporais, os movimentos, e as
encenações de vários tipos constituem a ilusão de um eu permanentemente definido pelo
gênero.
É interessante notar que, a exemplo da fórmula da sexuação, a criação de
parâmetros de onde partem as possibilidades de subjetivação não dá garantias de que sua
interpretação inclua a diferença. Uma vez estabelecidos os dois lados, ainda que haja a
mobilidade, esta só se dirá respeito às possibilidades que se referenciam a estes elementos,
ou um, ou outro, ou os dois, porém não o nem um nem outro. Encontrar-se no nenhum, ao
invés de abrir-se para o campo da criação do novo, fecha-se para o fora, ou não-dentro, e
assim se perpetuam as produções de subjetivações tabeladas.
Como sugere Lattanzio (2011), em sua dissertação de mestrado O Lugar do gênero
na psicanálise:
Em nossa cultura, então, onde a heterossexualidade é a norma e onde sexo,
gênero e desejo devem se ajustar entre si para atender à norma, o efeito de
naturalização que essas categorias adquirem é extremo. Com isso, determinadas
identidades são excluídas do domínio simbólico, conferindo-lhes classificações
discriminatórias (LATTANZIO, 2011, p 175)
Entretanto, a psicanálise, ela mesma, carrega o paradoxo da constituição de sujeito,
pois há também possibilidades de aproximação entre os conceitos aqui descritos e o
caminho de desconstrução subjetiva. Indivíduos angustiados procuram os consultórios em
busca do alívio do mal-estar e se deparam com um processo longo e árduo de
reconhecimento e questionamento dos seus padrões psíquicos, bem como sua maneira de
lidar com os mesmos. É no decorrer do processo analítico que os sujeitos oportunam-se em
se despir dos parâmetros em que baseiam suas vidas, através do (re)velamento da verdade
como estrutura de ficção, da verdade fictícia, forjada e, por isso mesmo, possível e passível
de novos rearranjos, novas perlaborações, e novas posições em relação à história de suas
vidas. Esse espaço vazio, espaço por excelência da criação, onde o sujeito do inconsciente
emerge do discurso e provoca sua ruptura, no tropeço das palavras, abrindo-se para o
campo da inventividade, parece assemelhar-se ao processo de subjetivação proposto pela
performatividade, pela via do gênero e sexualidade, que questiona uma naturalização das
formatações contingentes de gênero, desejo e sexualidade, e que abarca a diferença.
A teoria psicanalítica, portanto, tem muito a se beneficiar ao agregar novas
concepções acerca da sexualidade, e ao questionar seus próprios padrões, pois a psicanálise
acompanha o seu tempo, e o que um dia foi fruto da era vitoriana e do pensamento
cartesiano merece estar aberto a revisões – inclusive conceituais – o que nos deixaria em
maior intimidade com a própria teoria psicanalítica, esta cujo fundador jamais se recusou a
rever seus conceitos, e colocá-los contantemente em movimento.
Referências:
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminism e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
______, Judith. Performativity. Interviewed by Max Miller, Directed by Jonathan Fowler,
Produced by Elizabeth Rodd. EUA. 2011. Disponível em www.bigthink.com
FREUD, S. Totem e Tabu (1913). ESB, v. XIII, Rio de Janeiro: Imago, 1995.
______. Além do Princípio do Prazer (1920b), ESB, v. XVIII, Rio de Janeiro,
Imago: 1995.
LACAN, Jacques. O Seminário 18: De um Discurso que Não Fosse Semblante (1971)
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
______. O Seminário 20: Mais, Ainda. (1972-1973) Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2008.
LATTANZIO, Felippe F. O Lugar do Gênero na Psicanálise: da metapsicologia às
novas formas de subjetivação. Dissertação (Mestrado em Psicologia, Belo Horizonte,
UFMG, 2011, 195 f.)
NASIO, Juan-David. Cinco Lições Sobre a Teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1993.
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