ENTRE GLOBALIZAÇÃO E EXÍLIO: DESLOCAMENTOS
EM PERSÉPOLIS DE MARJANE SATRAPI
Luciane Alves*
RESUMO: A facilidade dos deslocamentos no mundo contemporâneo, sejam físicos ou virtuais, permite o
acesso a diferentes espaços, saberes e culturas. Como consequência, as fronteiras entre culturas, em especial
entre os chamados “Oriente” e “Ocidente”, que antes pareciam barreiras sólidas e estáveis começam a diluirse e, em seu lugar, surgem novas perspectivas em relação ao Outro e até mesmo diferentes limitações. Neste
contexto ganham lugar as narrativas com caráter memorialista de autores provindos de lugares historicamente
silenciados. Tentativas de contar uma versão própria dos fatos, de ser uma voz em meio às histórias
preestabelecidas. Com base nestes aspectos, o presente ensaio busca analisar os deslocamentos e trânsitos
presentes na obra Persépolis de Marjane Satrapi, através dos intercâmbios possibilitados pela globalização e
o exílio, bem como verificar de que forma as relações entre Oriente e Ocidente aparecem nestes processos.
PALAVRAS-CHAVE: Persépolis, Globalização, Oriente/Ocidente, Relações culturais.
RESUMEN: La facilidad de los desplazamientos en el mundo contemporáneo, sean físicos o virtuales,
permite el acceso a diferentes espacios, saberes y culturas. Como consecuencia, las fronteras entre culturas,
principalmente entre los “Oriente” y “Occidente”, que antes parecían sólidas y estables barreras empiezan a
diluirse y, en su lugar, aparecen nuevas perspectivas en relación al Otro e incluso diferentes limitaciones. En
este contexto se da lugar a las narrativas con carácter memorialista de autores nacidos en lugares
históricamente silenciados. Intentos de contar una versión propia de los hechos, de que sean una voz entre
historias preestablecidas. Basado en estos aspectos, el ensayo pretende hacer un análisis de los
desplazamientos y tránsitos presentes en la obra Persépolis de Marjane Satrapi, a través de los intercambios
posibilitados por la globalización y el exilio, y también verificar de que manera las relaciones entre Oriente y
Occidente aparecen en estos procesos.
PALABRAS CLAVE: Persépolis, Globalización, Oriente/Occidente, Relaciones culturales.
O mundo contemporâneo se caracteriza por um acesso rápido a diferentes
informações, lugares e situações. Seja por meios físicos ou virtuais, os deslocamentos na
nossa sociedade são de todos os tipos e de forma constante, sendo praticamente a essência
da vida diária no mundo pós-moderno. Como não poderia ser diferente, estes inúmeros
trânsitos acabam sendo refletidos na ficção e, cada vez mais, a literatura e as demais
manifestações
artísticas
se
apresentam
como
um
espelhamento
das
diversas
movimentações vividas neste nosso tempo, onde nada mais parece fixo e imutável em meio
à mistura de mundos e culturas da era globalizada.
A já antiga – e aparentemente sólida – divisão global polarizada, que por meio de
um meridiano erguia um imponente muro imaginário, separando a esfera terrestre em
*
Aluna de Mestrado em Literatura Comparada - UFRGS
mundos antagônicos chamados de Oriente e Ocidente, parece estar se deteriorando diante
da descoberta de um Outro não tão diferente quanto parecia. Como afirma Edward Said
tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e
uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram
realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas,
portanto, sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra. (2007, p. 31)
O Oriente, por anos silenciado diante da voz dominante de um Ocidente que se
sentia no direito de estabelecer a palavra final que caracterizaria o que estava do outro lado
do muro, parece por fim ganhar voz, uma voz que lhe permite falar de si mesmo, de
mostrar ao seu vizinho a realidade de sua própria versão dos fatos, levando à surpreendente
revelação de que não éramos tão distantes quanto a linha marcada por Greenwich parecia
afirmar.
Neste processo de busca por uma voz própria reaparece a consoladora presença da
arte – passaporte para outros mundos, tradutora das diferenças e das barreiras culturais
aparentemente intransponíveis. Em meio a todos os preconceitos reacendidos por um 11
de setembro marcado pela intolerância, os artistas do “outro lado” conseguem uma brecha
no muro para contar a sua versão da História. Desta forma, as expressões artísticas
contemporâneas provindas do Oriente parecem marcadas pelo signo da experiência, da
biografia, da vivencia e da vontade de ser a voz em meio ao silencio de décadas, imposto
pela divisão global, na qual apenas um lado detinha o direito de expressão.
Na busca pelo “diferente”, pelo “novo” (que estava ao nosso lado desde sempre) em
um mundo que parece cada dia mais igual diante de suas fronteiras flutuantes, alguns
textos e autores acabaram ganhando popularidade. É o caso da iraniana Marjane Satrapi,
autora de Persépolis. A primeira parte da história em quadrinhos com toque de
autobiografia foi publicada na França no ano 2000, sendo seguida por mais três partes. A
história teve tanto sucesso que, posteriormente, no ano de 2007, acabou ganhando uma
versão cinematográfica.
Com traço simples e contraste em preto e branco, os quadrinhos de Satrapi
rapidamente receberam o merecido reconhecimento do público interessado em sua
singularidade. Muito longe de se parecer aos quadrinhos que líamos na infância, nos quais
super heróis fantasiados com roupas justas e capas esvoaçantes tentavam salvar as grandes
metrópoles do mundo ocidental, atacadas por inimigos terríveis (ou seriam terroristas?) que
não estavam de acordo com a moral e a justiça de uma sociedade padrão, as histórias
contadas por Marjane Satrapi têm como inimiga uma História que por anos se mostrou
tapada pelo véu do desconhecimento.
Sua biografia em forma de quadrinhos mostra a vida de uma menina que vai
crescendo em meio aos conflitos históricos de seu país e as incertezas de uma identidade
formada no encontro com outras culturas. Os deslocamentos trazidos por esta ficção são
muitos, desde sua forma pouco comum para uma narrativa de memórias, até as
experiências vividas pela personagem em meio à globalização e à migração, responsáveis
pelo contato e a busca do entendimento da cultura ocidental.
1 Globalização
O processo de globalização, com seus deslocamentos culturais diários, permitiu que
mundos antes tão distantes pudessem estabelecer pontos de contato. O jovem com o tênis
Nike comendo McDonald’s com Coca Cola, enquanto escuta os mais novos hits da música
pop em seu último modelo de IPod, pode estar em Porto Alegre, Manhattan ou Istambul.
Nos dias de hoje essa imagem, que talvez um dia tenha caracterizado um adolescente
estadunidense, não possui marcas culturais, simbolizando através dos trânsitos da indústria
global um dos tantos tipos de “cidadãos do mundo” ou, como caracteriza Kathryn
Woodward (2004, p. 20), “‘consumidores globais’ que podem ser encontrados em qualquer
lugar do mundo e que mal se distinguem entre si”.
Em Persépolis há muitas referências a produtos da moda almejados por uma garota
dos anos 70/80. A personagem Marjane, filha única de uma família bastante liberal, cuja
mãe viveu sob um regime que ainda não obrigava o uso do véu e as restrições impostas às
mulheres depois da Revolução Islâmica de 1979, tinha a grande maioria de seus sonhos
consumistas realizados. Devido à boa situação econômica dos pais, que podiam viajar para
fazer compras em países vizinhos durante a época de escassez de produtos no Irã, o quarto
da personagem se via repleto de pôsteres de bandas de rock mundiais enquanto ela calçava
o último modelo da Nike com uma jaqueta jeans adornada com um button de Michael
Jackson. Ao som de Bee Gees e Iron Maiden, a adolescente iraniana dançava no quarto se
assemelhando a qualquer jovem ocidental da mesma época. Era a cultura vendida pelo
Ocidente entrando ilegalmente nas casas iranianas.
Figura 1 – (Fonte: SATRAPI, 2007) 1
Estes trânsitos culturais proporcionados pela indústria do consumo, no entanto,
podem causar tensões dentro de um sistema social, favorecendo a expressão do
regionalismo como tentativa de impedimento da fragmentação dos modelos tradicionais
locais em virtude do que vem de fora. Desta forma, como é retratado em Persépolis, a
obtenção de artigos provindos do ocidente era feita através do mercado negro ou da
compra ilegal em países vizinhos, não podendo ser exibidos em qualquer local. Em um dos
episódios vividos pela personagem central vemos a possibilidade de punição pelo uso de
roupas e acessórios estrangeiros.
1
A edição não apresenta número de página.
Figura 2 – (Fonte: SATRAPI, 2007)
No episódio destacado é interessante notar duas situações: A primeira se refere à
visão do Ocidente como lugar de decadência, sendo a cultura pop, simbolizada por
Michael Jackson, o exemplo da situação ocidental na visão das iranianas que repreendem
Marji. Outro fator relevante neste recorte é o deslocamento dos elementos culturais
ocidentais e sua adaptação ao contexto iraniano. O visual da personagem é composto pela
jaqueta jeans com o button do Michael Jackson, acompanhados pelo uso do véu e da
vestimenta feminina imposta pelo islamismo. Como aponta Octavio Ianni,
[j]untamente com o que é local, nacional e regional, revela-se o que é mundial.
Os indivíduos, grupos, classes, movimentos sociais, partidos políticos e correntes
de opinião pública são desafiados a descobrir as dimensões globais dos seus
modos de ser, agir, pensar, sentir e imaginar. (2007, p. 22)
Revela-se, assim, a complexidade dos trânsitos globais, que podem ter sua forma
original adaptada a cada contexto e sofrer transformações e ajustes nas diferentes culturas
por onde passam. De acordo com IANNI, “... a sociedade global é um universo de objetos,
aparelhos ou equipamentos móveis e fugazes, atravessando espaços e fronteiras, línguas e
dialetos, culturas e civilizações.” (2007, p 27). Através do que Stuart Hall (2006) considera
uma diáspora cultural, percebemos um afrouxamento dos laços culturais tradicionais, pois,
embora possamos considerar que a cultura possui um local, já não é tão fácil determinar
uma origem. Essa complexidade aumenta quando os trânsitos são dos próprios indivíduos
através de outros espaços culturais, acentuando-se as tensões simbolizadas pelos objetos de
consumo e as incertezas diante do contato com o que é diferente, podendo surgir a difícil
posição de não pertencimento vivida pelo viajante.
Em relação à literatura, nos deparamos com a dificuldade de encaixar determinados
textos nas tradicionais divisões por país de origem, pois muitos autores contemporâneos
viveram algum tipo de diáspora e o mosaico cultural de suas próprias vivências acaba se
refletindo nas obras. Essas experiências reafirmam as discussões que já vêm sendo feitas
há um bom tempo dentro dos Estudos de Literatura Comparada, que colocam em xeque os
antigos padrões de entendimento da origem das obras, evidenciando o quão tênues são as
fronteiras da cultura e da arte. No caso de Persépolis, embora o texto relate a história do
Irã, não está sendo feito dentro desta cultura, há um deslocamento do olhar, pois a autora,
exilada na França desde a juventude, escreve e publica sua obra na Europa, se tornando
inútil qualquer definição de origem. Na obra de Marjane Satrapi, personagem, autora e
texto, são exemplos do “entre-lugar” trazido pelas vivencias diaspóricas.
2 Exílio: andanças pelo limbo cultural
No Irã a personagem Marjane já se encontrava, de certa forma, deslocada do padrão
social do país, pois sua família não estava de acordo com o regime autoritário e alguns
parentes seus haviam sido contestadores dessas políticas, sendo até mesmo presos e
executados, como seu tio Anuch, acusado de espionagem. É este tio que conta à menina
parte de sua vida e pede que ela não deixe que se perca a história familiar, pois através da
memória passada de geração a geração esta se manteria viva para sempre.
Com o endurecimento do regime islâmico, seus pais decidem mandá-la estudar na
Áustria. Com apenas 14 anos, e sem nenhum conhecimento da língua alemã, a jovem se vê
diante do exílio e das inúmeras experiências oferecidas pelo mundo europeu. O país
estrangeiro traz a liberdade não oferecida no Irã e, ao mesmo tempo, as dúvidas e culpas
resultantes do medo de perder os valores da cultura de origem.
Na Europa ela desperta o interesse dos primeiros amigos por seu exotismo, ficando
marcado o seu lugar de “outro”, que atrai pela diferença e pela imagem estereotipada de
sua cultura. O grupo do qual passa a fazer parte é justamente o dos “diferentes” da escola
que, por se encontrarem à margem de sua própria sociedade, poderiam aceitar mais
facilmente alguém provindo de uma cultura diversa.
Figura 3 – (Fonte: SATRAPI, 2007)
Notamos nesse episódio a presença de uma associação direta do Irã com a guerra.
Ser iraniano seria conhecer a violência e a morte de perto. Em um episódio posterior,
Marjane chega a comentar que sua opinião acabava sendo respeitada pelo simples fato de
ela haver conhecido a guerra, o que fascinava seus amigos europeus e lhe garantia uma
imagem de experiência. A imagem das guerras e da violência era a única informação sobre
o Irã que chegava à Europa, mas, de qualquer modo, era uma informação que fazia com
que o país existisse, que se materializasse, embora de forma parcial, diante dos cidadão
austríacos. Como comenta Marc Augè,
é preciso que falemos dos mundos e não do mundo, mas sabendo que cada um
deles está em comunicação com os outros, que cada um possui pelo menos
imagens dos outros – imagens eventualmente truncadas, deformadas,
falsificadas, às vezes reelaboradas por aqueles que, ao recebê-las, procuram nelas
os traços e os temas que lhes falavam primeiramente deles mesmos, imagens
cujo caráter referencial é, no entanto, indubitável, de forma que ninguém mais
pode duvidar da existência dos outros. Mesmo estes que afirmam com o máximo
de vigor uma identidade irredutível e intocável tiram sua força e sua convicção
apenas de sua oposição à imagem de um outro que mistificam para se livrar de
sua insuportável realidade. (1997, p. 141)
O mito acerca do Irã torna Marjane interessante para alguns, como seu grupo de
amigos da escola, mas também causa a rejeição por parte de outros, como no episódio em
que sua cultura é atacada por uma das freiras do pensionato onde a jovem vivia,
relacionando o mau comportamento da moça ao fato de ela ser iraniana, afirmando assim o
estereótipo criado sobre o Irã – uma imagem parcial que passa a ser legitimada por um
discurso dominante que generaliza o comportamento dos indivíduos e define a outra
cultura como símbolo negativo. Podemos perceber a ideia da identidade nacional como
algo pertencente à própria constituição do indivíduo, como essência, predeterminante de
atitudes e pensamentos, um sistema fixo e imutável fundado na mitificação do
pertencimento a uma comunidade onde todos os sujeitos apresentam o mesmo
comportamento e características semelhantes.
Figura 4 – (Fonte: SATRAPI, 2007)
Situações como essa acabam levando a personagem a negar sua origem para sentirse integrada na nova sociedade, assumindo posturas e comportamentos que ferem os
princípios de sua cultura. Enquanto conhece as drogas, o sexo e a liberdade de decidir o
que fazer com seu corpo e sua vida, Marjane sente culpa por mentir para os pais. Ela se
encontra, assim, em um “entre-lugar” cultural, absorvendo novos padrões de
comportamento, ao mesmo tempo em que convive com os velhos tabus de sua cultura de
origem.
Figura 5 – (Fonte: SATRAPI, 2007)
Muitas situações similares a essa são vividas por Marjane na busca de algum tipo
de identificação, na fuga constante da solidão presente no exílio. Merecem destaque, no
que se refere à situação da garota no país estrangeiro, os episódios em que ela vai ao
supermercado. Em momentos de solidão, os passeios pelos corredores repletos de comidas
e produtos, que não podiam mais ser encontrados no Irã devido à escassez de mantimentos,
parecem preencher de alguma forma o vazio do não pertencimento social. Este ambiente
classificado por AUGÈ como um “não-lugar” marca um espaço neutro, pois, como
comenta o autor,
é nos espaços mais despersonalizados (um aeroporto, um supermercado, uma
auto-estrada, um grande hotel de uma cadeia internacional) que o viajante vindo
de longe para um país que não conhece pode sentir-se menos deslocado. Ele não
está em casa, mas também não está na casa de ninguém. (1997, p. 177)
Observe-se que, mesmo ao voltar para o Irã, a sensação de deslocamento não
desaparece. Após o tempo de exílio, Marjane passa a habitar o “entre-lugar” destinado ao
estrangeiro que nunca pertenceu completamente ao país que o acolheu e tampouco poderá
voltar a pertencer ao lugar de origem após tantas experiências vividas fora dele. A presença
de Marjane como “outro” na Áustria causou uma desestabilização na comunidade em que
se inseriu e na configuração de sua própria identidade. Da mesma forma, ao voltar para
casa, sua presença passa a ser novamente a presença da diferença, daquele que sai e
regressa trazendo na bagagem todas as histórias, vivencias e novidades de um lugar
distante e muitas vezes inatingível para os que ficaram. Neste sentido, Julia Kristeva
aponta que
[e]stranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa
identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o
entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter que
detestá-lo em si mesmo. Sintoma que torna o ‘nós’ precisamente problemático,
talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha
diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos
vínculos e às comunidades. (1994, p. 9)
O caráter de estrangeiro passa a ser um lugar quase permanente na configuração da
identidade de quem passou muito tempo fora, o que leva certos indivíduos a optarem por
uma vida de viagens e deslocamentos constantes, por já não poderem adaptar-se a lugar
algum. Essa é a experiência da diáspora, definida por Stuart Hall como “longe o suficiente
para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma
de uma ‘chegada’ sempre adiada” (apud CHEN, 2003, p 415).
A percepção de que, mesmo em seu país de origem, terá que conviver com histórias
de si criadas pela visão dos outros, acaba levando Marjane ao desânimo e à depressão.
Voltar para casa não se traduz em pertencimento, ela continua sendo um ser deslocado e
mal compreendido pelos demais. Sua visão ocidentalizada sobre o comportamento e
atitudes a respeito do sexo e da liberdade da mulher causa espanto no meio conservador
islâmico, no qual a mulher deve manter-se virgem até o casamento e evitar
terminantemente o olhar e a proximidade com o sexo oposto. Ao contar a uma colega que
tomava pílulas anticoncepcionais por ter uma vida sexual ativa, por exemplo, Marjane
recebe como resposta o espanto das moças ao redor, que julgam seu comportamento como
indecente e passam a rejeitá-la no grupo.
Figura 6 – (Fonte: SATRAPI, 2007)
Em meio à outra metade de colegas, que não se sentem ofendidas por sua atitude,
Marjane encontra novas amigas, o que, no entanto, não diminui sua sensação de nãopertencimento. Assim, após inúmeras tentativas de adaptação, entre as quais um casamento
seguido de um divórcio em poucos anos, ela parte novamente para o exílio, desta vez rumo
à França.
O final de Marjane demonstra a complexidade dos deslocamentos culturais, em que
as fronteiras se fragmentam causando mudanças frequentes que colocam o sujeito em uma
posição de constante ir e vir entre as diferentes experiências vividas. O “entre-lugar” em
que vive o estrangeiro é marcado, sobretudo, pela contradição de sentimentos: a melancolia
pela impossibilidade de uma volta ao lar ou a satisfação trazida pela liberdade de pertencer
a todos os lugares sem pertencer, de fato, a nenhum.
A narrativa também mostra as dificuldades trazidas pelo estranhamento cultural
derivado da polarização “Oriente” “Ocidente”, em que há um verdadeiro desconhecimento
da cultura do outro, cujas lacunas são preenchidas com o imaginário, geralmente negativo,
dos estereótipos. Ao estrangeiro no Ocidente não é dada a oportunidade de mostrar quem é,
pois no lugar de sua fala está a força maior das histórias já estabelecidas sobre ele, não
havendo a possibilidade de integração e aceitação real. Da mesma forma, a história criada
no país de origem a respeito do lugar de exílio, como no caso de Marjane, não permite a
expressão da realidade de suas vivencias, marcadas por angústias, dificuldades, decepções,
mas também por experiências benéficas e aprendizado. Há sempre a esperança de redenção
no país outro ou a ideia de uma total falta de valores e negatividade. Sendo assim, o que
regressa não pode contar sua história, pois, mais uma vez, já está marcado pelas histórias
provindas do imaginário dos que ficaram.
Podemos entender, então, que os trânsitos globais ao mesmo tempo em que
transformam as fronteiras em lugares flutuantes, de intercâmbios e proximidades, também
criam novos limites aos sujeitos, estabelecendo os “entre-lugares”, a terceira margem aos
que participam das idas e vindas entre culturas. Cabe a nós, estudiosos e críticos das
humanidades o papel de mediadores de discussões que possibilitem melhor entendimento
destes processos, para que cada vez mais os intercâmbios culturais possam levar ao
aprendizado acerca de outras culturas de forma que não ocasionem isolamento e/ou lugares
de “limbo cultural”. Que neste lugar de “meio” esteja presente a tolerância e não outra
margem de exclusão. Seguindo as palavras de Edward Said, pensemos que “o humanismo
é nossa única possibilidade de resistência – e eu chegaria mesmo ao ponto de dizer que é a
nossa última possibilidade de resistência – contra as práticas desumanas que desfiguram a
história humana.” (2007, p. 26).
REFERÊNCIAS
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Tradução de Clarisse
Meireles e Leneide Duarte. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
CHEN, Kuan-Hsing. A formação de um intelectual diaspórico: uma entrevista com Stuart
Hall. IN: SOVIK, Liv. (Org.) Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo
Horizonte: UFMG/UNESCO, 2003. P 407-433.
IANNI, Octavio. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
HALL, Stuart. Da Diáspora. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução: Maria Carlota Carvalho
Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de
Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SATRAPI, Marjane. Persépolis. Trad. Paulo Wernek. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e Diferença – A Perspectiva dos Estudos Culturais. Rio
de Janeiro: Editora Vozes, 2004.
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