“É Impossível reinar com Inocência” Dionísio Dias Carneiro Economista 28 de setembro de 2006 O revolucionário Louis Antoine de Saint-Just queria que o rei deposto Luís XVI fosse julgado, apesar de declarado imune pela Constituição de 1793. Usou o argumento no título acima e convenceu os convencionais em discurso que se tornou célebre. Mais de um século depois, o Presidente Lula, em sua famosa entrevista na mesma Paris, deu sua própria versão da associação entre poder e inocência, ao declarar que o PT só fa zia o que todos faziam no governo. Intelectuais petistas sancionaram a idéia de que é inevitável sujar as mãos para governar o Brasil. Para os jacobinos do século 18, era a presunção de culpa do soberano; para os lulistas do século 21, a licença para transgredir. O que choca, no desenrolar da crise ética que atingiu o governo Lula, não é, como na França pós-revolucionária, a visão da “tirania que acompanha os regimes totalitários”, mas a facilidade com que hábitos e atitudes típicos de ditadura foram absorvidos, adaptados e adotados por um grupo de militantes que adquiriu, na esteira do desgaste do regime militar nos anos 80, expressão política, notoriedade e, finalmente, o poder sobre o Estado brasileiro, quando Lula derrotou José Serra. Esse desgaste de valores gerou a grande desordem inflacionária: os historiadores saberão encontrar, na grande crise que gerou a megainflação e pôs fim ao crescimento baseado no estímulo à demanda global e nos incentivos públicos, as raízes da legitimação de políticos cuja única credencial para se apresentarem ao eleitorado é o fato de terem feito oposição ao regime militar. Tal credencial dá acesso, hoje, a pensões indecentes do Estado, a permissão para fraudar e à chance de ser eleito sem prestar contas pelo abuso do poder. No apagar das luzes de 2002, nem mesmo os mais céticos entre seus opositores poderiam imaginar que, na bagagem de sua longa jornada de derrotas, Lula carregasse tanto desprezo pelo exercício democrático do poder quanto revelou em seu governo. Enquanto o Presidente subia a rampa sob aplauso e esperança dos eleitores, subia as escadas dos fundos do palácio uma guarda pretoriana com a tarefa de defender o novo césar “dos inimigos do povo”. Para consolidar o poder recém-adquirido, trataram de ocupar os desvãos da máquina estatal brasileira, fazendo uso dos meios usuais da burocracia: os meios para fraudar os fatos antes de apresentá-los à opinião pública, o culto à intriga e a disposição para a chantagem. Do casamento dessas habilidades com o princípio de que os fins justificam os meios, dá-se à luz um pragmatismo sem limites para a construção de um projeto de poder sem contestação. Há no ar, mesmo entre não petistas, uma tolerância ética que reelege Lula, justificada pelo fato de não ter explodido o país, como ameaçavam seus correligionários. Há um consenso em torno do sucesso em desarmar várias das bombas armadas pelo PT. Mas esta tolerância parece um preço alto a pagar por este consenso. É alto porque a tomada do poder no Brasil dos últimos anos, além de ter todos os ingredientes das tragédias políticas, do bovarismo à barbárie, do abuso dos slogans à pilhagem dos cofres públicos, tem conseguido justificar o injustificável. Para escapar ileso das acusações, apela-se a um código de ética pretensamente universalista, simbolizada por um cinismo que vai muito além da distorção do argumento de SaintJust. O líder jacobino notabilizou-se por tentar conciliar propostas igualitárias com uma política econômica de sustentação do regime revolucionário. Fez a defesa ardente da igualdade de oportunidades, ao mesmo tempo em que pregava a intervenção no livre comércio. Entendia a importância da propriedade, mas recomendou pragmatismo antimercado na promoção da “felicidade” das massas urbanas, como forma de evitar que o novo regime tivesse a mesma sorte do que fora derrotado nas ruas. As idéias de Saint-Just não lhe livraram de ser guilhotinado aos vinte e sete anos de idade, apenas um ano depois de ter derrotado os austríacos. Outra passagem do mesmo discurso de SaintJust citado é assustadoramente atual, para quem acha que a Justiça poderá ir contra um eventual perdão das urnas, ainda que alimentadas pela distribuição de bondades com fins eleitoreiros: "se um só cidadão puder ser levado a perdoar um rei por conta de um ato do soberano, (...) nenhum ato da magistratura poderá criar limites ao soberano!" 2