Filipa Gouveia Inês Fernandes Joana Ellis Maria Isabel Recensão Crítica O reflexo do real na ficção de Lídia Jorge Universidade do Algarve Escola Superior de Educação e Comunicação ________ Faro, dezembro de 2011 ________ Filipa Gouveia 44749 Inês Fernandes 44818 Joana Ellis 44791 Maria Isabel 44865 Licenciatura em Ciências da Comunicação Recensão Crítica O reflexo do real na ficção de Lídia Jorge Trabalho realizado para a Unidade Curricular de Língua Portuguesa sob a orientação de Maria da Conceição Andrade Universidade do Algarve Escola Superior de Educação e Comunicação ________ Faro, dezembro de 2011 ________ Sumário: O conto A Instrumentalina (1992), de Lídia Jorge, oferece-nos um panorama enriquecido com situações tocantes e elementos autobiográficos (da narradora) que nos ajudam a compreender toda a história produzida. Basicamente, temos perante nós uma mulher adulta que revive parte da sua infância, a qual foi passada com os seus primos, as suas tias (cujos maridos estavam emigrados), o seu tio Fernando e o seu avô inválido, uma pessoa extremamente patriarca que exigia uma educação rígida e isenta de qualquer tipo de liberdade fora do comum da ditadura salazarista. Por outro lado, temos ainda patente no conto a importância da figura feminina, que é ilustrada juntamente com os seus princípios e características de fragilidade, inteligência, obediência e fidelidade. Embora toda a história seja uma mera recordação envolta em saudade, grande parte dela apenas faz sentido com a presença da “instrumentalina” – uma bicicleta adorada por uns e odiada por outros (o avô). Esta, símbolo da liberdade, do prazer, da autonomia e do sonho, é almejada por todos e possui uma forte influência no tio Fernando, que seguindo caminhos diferentes aos dos seus irmãos, troca a vida militar por pequenos prazeres como escrever, tirar fotografias e andar de bicicleta. Estes seus costumes são fortemente criticados pelo seu pai, que acaba com os seus pequenos diálogos de aviso e dá lugar à ação – pede a uma das suas noras que se desfaça da bicicleta. No entanto, quando somos levados a acreditar que a bicicleta nunca mais aparecerá, ela ressurge e logo nos apercebemos que o seu simbolismo permanece ao longo do tempo. Contudo, o seu ressurgimento não impede o afastamento do tio Fernando daquela família. Anos mais tarde, quando a narradora passa de uma criança inocente, iludida e devota ao seu tio a uma adulta realista mas com o coração cheio de saudade, o seu tio surge e o afastamento temporário que lhes cercava acaba. Este conto é, mais que tudo, uma verdadeira fonte de energia, um sinal de que nunca devemos desistir, pois apesar de ganharmos a liberdade, só a conseguimos se lutarmos por ela. Autor(a): Lídia Jorge Obra: MARIDO e outros contos Conto: A instrumentalina Categoria/Género: Literatura 4ª edição, 1998 Publicações Dom Quixote Número de páginas da obra: 146 Alguns aspetos bibliográficos da autora: Lídia Guerreiro Jorge nasceu em Boliqueime (Algarve) a 18 de Junho de 1946. Licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa e foi, posteriormente, professora do ensino secundário. A publicação do seu primeiro romance deu-se em 1980, intitulado O Dia dos Prodígio. Esta autora foi galardoada com diversos prémios da literatura. A Instrumentalina é uma obra publicada em 1992 que foi, mais tarde, integrada na coletânea MARIDO e Outros Contos, de Lídia Jorge, pela editora Dom Quixote. Relata-nos uma perspetiva à qual não estamos habituados, mas nem por isso menos interessante. Trata-se de uma narrativa metafórica e cheia de elementos autobiográficos, onde coexistem aspetos ligados à realidade desta ficção. Trata-se de uma mulher adulta que recorda e evoca parte da sua infância. Memórias passadas numa grande casa tradicional e dominada por um avô patriarca e autoritário que vão sendo mencionadas ao longo do conto e que nos transmitem uma ideia de liberdade, não existente na altura salazarista, simbolizada por um tio diferente do comum, que anda de bicicleta e que tem uma máquina fotográfica e uma máquina de escrever. Esta bicicleta – a Instrumentalina – que dá título ao conto, é o instrumento que simboliza a liberdade. Numa casa rural, algures a Sul, como nos é indicado no conto - “…ao sul do meu país…” - viviam as crianças (a narradora e os primos), as mães delas, submissas e ocupadas na lida doméstica, e um avô austero, preso a uma cadeira, preocupado sobretudo com os negócios e os deveres da família. Através desta metáfora compreendemos a situação real de Portugal, na altura, mergulhado numa ditadura decadente e débil. Todos os homens ativos da família estavam fora, algures nos quatro cantos do mundo, na guerra, sem outra característica que a de estarem ausentes, recebendo cartas das mulheres aparentemente bem, mas verdadeiramente infelizes pela sua triste sorte deixadas ao abandono, conquistando apenas três fogões a petróleo e um lugar à janela, à noite, onde derramavam as suas lágrimas. A pedido do avô, vem viver para aquela casa o tio Fernando com a sua máquina fotográfica de fole, a sua máquina de escrever e... a "Instrumentalina", uma bicicleta, a quem o tio Fernando amava acima de todas as coisas. Este tio, ordenado a obedecer ao avô patriarca, velho e inválido, não se conforma e agarra-se à bicicleta como um único meio que lhe permite escapar ao regime que lhe é imposto. Com as suas paixões, traz às crianças o encantamento da liberdade. Ele tirava fotografias, ele escrevia e, sobretudo, ele percorria livremente, de bicicleta, as estradas para além da casa, para além daquelas quatro paredes; ele percorria o mundo com a sua bicicleta, denominada de “Instrumentalina” pelo velho rígido. Não importava o destino que o tio e as crianças seguiriam, importava sim afastarem-se dali, da prisão que os mantinha eternamente submissos a tudo e todos. O avô, inconformado com esta felicidade "irresponsável" e pouco lucrativa, tenta vários estratagemas para agarrar o filho Fernando à casa, tal como ele próprio estava agarrado a uma cadeira. Nada resulta. Em desespero, conclui que se eliminasse o instrumento da liberdade – a "Instrumentalina" - conseguiria apagar os desejos dessa mesma liberdade. Porque não pode, fisicamente, arranjou quem lhe fosse submisso e cometesse, por si, o crime de “afogar” a “Instrumentalina”. E se, momentaneamente, parece que o patriarca venceu e acabou com todas os sonhos de evasão, ver-se-á que afinal, numa madrugada a que só a narradora assistiu, o tio Fernando parte, para não mais voltar aquela casa; não como os restantes homens que saíam para sustentar a família, mas sim porque ficou despedaçado sem a sua liberdade; tornou-se um coração frio. A narradora e o tio Fernando encontram-se agora, passados muitos anos, num café em Toronto. Entre eles, sobrevive a memória da "Instrumentalina", como os sonhos que nunca se vão, nem com o passar dos anos. Aqui encontramos o que presenciamos em todo o conto. As personagens, apesar de não serem muitas, em quantidade, são ricas nas emoções que transportam, nos sentimentos que partilham e nos saberes que transmitem. A “Instrumentalina” ganha, neste conto, o papel de personagem principal, pois mesmo sendo um objeto, tem subjacente uma imensa carga afetiva, sendo amada e odiada, desejada e desprezada. Sendo ela o elo de ligação entre as crianças e o tio e não o estorvo que as mulheres e o avô julgavam, no fim percebemos que não é a figura física da bicicleta que importa, mas sim o valor simbólico que esta carrega. Esta bicicleta não era um meio de transporte ao qual nós estamos habituados, ou uma máquina encarada para fazer exercício físico, era sim um meio de transporte de sonhos e convicções reprimidas; uma máquina de desejos. O seu nome, apesar de lho ter sido atribuído com rancor e despeito, para a tornar inútil e comum, não é de todo descabido. A “Instrumentalina” é o instrumento essencial, é o motor daquela família desejosa por um novo rumo e o estorvo dos que no passado se mantêm. É um objeto especial, para as crianças inocentes e para o visionário tio; um objeto que acarreta magia, sustenta uma aura sagrada e mantém o equilíbrio entre o passado morto e o futuro aguardado. A própria “Instrumentalina” revela poderes, demonstra vontades e capacidade de ação. No conto ela é, por vezes, apontada como estando triste e brilhante, como se deste mundo não se tratasse, como se alheia àquela melancólica realidade vivesse. A “Instrumentalina” nunca poderia “morrer afogada” como a certa altura nós pensamos, porque os verdadeiros sonhos e desejos nunca morrem, nem perante a maior tempestade.