Cotas para negros e a luta de classes na sociedade brasileira Isaac Warden Lewis∗ Resumo O artigo discute os conceitos de universalidade e de totalidade abstrata, absoluta e unilateralmente baseados na dialética, com exemplos da implicação desses conceitos em diversas sociedades ao longo da História e na atual sociedade brasileira. Especificamente nesta última, vislumbra-se a construção histórica da atual condição sócio-econômica-cultural das classes desprivilegiadas no Brasil, com ênfase no sistema de cotas para negros. Palavras-chave: discriminação racial; lutas de classe; sociedade brasileira; Introdução Sabemos que as idéias e as concepções diversas sobre as coisas, a vida, a natureza e a sociedade podem dividir os seres humanos, às vezes, radicalmente. Conceitos de universalidade e de totalidade têm dividido os seres humanos por causa de interesses e motivações diferenciados, devido as suas posições e situações no modo e relação de produção de sua sociedade. Muitas pessoas tomam os conceitos de universalidade e de totalidade abstrata, absoluta e unilateralmente. Não percebem que a universalidade é constituída de particulares e a totalidade, de partes. Perceber a floresta e não perceber a árvore ou as árvores é tão grave quanto perceber a árvore ou as árvores e não perceber a floresta. É preciso, então, definir a que universalidade ou a que totalidade queremos nos referir. Com base na dialética, diremos que a qualidade da universalidade depende da correlação dos particulares e a da totalidade, da correlação das partes. Ao concentrarmos a nossa análise em uma sociedade, considerando-a como uma totalidade, sabemos que ela é constituída de partes, geralmente, conhecidas como castas ou classes que se situam num segmento privilegiado ou ∗ Professor Adjunto da Faculdade de Educação – Universidade Federal do Amazonas 1 desfavorecido conforme sua posição e situação no modo e relação de produção da sociedade. Como exemplo, podemos citar a sociedade indiana antiga, constituída de cinco partes, chamadas de castas: brâmanes (sacerdotes e sábios); xátrias (governantes soldados); vaisias (pastores, mercadores); sudras (servos) e intocáveis (encarregados dos serviços impuros). Nessa sociedade, não somente os brâmanes (classe privilegiada) beneficiavam-se da exploração do trabalho dos sudras e dos intocáveis (classes desfavorecidas), mas também as classes intermediárias – os xátrias e os vaisias – beneficiavam-se de tal exploração. Outro exemplo é a sociedade espartana, constituída de três segmentos: esparciatas, classe privilegiada (invasores); periecos, classe intermediária (aliados dos invasores) e hilotas (população escravizada). Não somente os esparciatas se beneficiavam da exploração do trabalho escravo dos hilotas, como também o segmento intermediário – os periecos – beneficiavam-se de tal exploração. Com esses exemplos, queremos destacar que, historicamente, em várias sociedades, as partes intermediárias (castas, classes) contribuíram para manter o sistema de dominação e exploração de segmentos desfavorecidos por parte dos segmentos privilegiados. Distinções de classes na sociedade brasileira Agora, o exemplo que nos interessa é a sociedade brasileira atual, constituída esquematicamente de três partes: classes alta, média e baixa. Se as posições e as situações das classes dependem da correlação de forças no modo e relação de produção da sociedade, isso significa dizer que essa correlação é construída histórica e socialmente. No caso da sociedade brasileira, as posições e as situações dos indivíduos privilegiados foram construídas através de políticas de exploração do trabalho, discriminação, racismo e de desigualdade dos indivíduos desfavorecidos, beneficiando os primeiros e prejudicando os segundos. A classe alta brasileira foi beneficiada principalmente com a exploração do trabalho escravo de índios e negros de 1500 a 1888, depois pelo trabalho assalariado, mal remunerado, de indivíduos de etnias variadas a partir de 1888. Durante quase quinhentos anos, não somente a classe alta beneficiou-se do trabalho escravo e do trabalho assalariado, como também as classes médias brasileiras foram favorecidas, de 2 alguma forma, pelo modo e relação de produção escravista, instituído inicialmente, e, depois, pelo capitalismo dependente, estabelecido a partir do século XIX. O resultado da exploração dos negros (classe desfavorecida) pelos brancos (classe privilegiada e favorecida) desde o período colonial é sintetizado por Carvalho, quando ele se refere à situação dos brancos em relação à dos negros, no trecho, a seguir: Lembremos que em 1888, ano da abolição da escravatura, os brancos (e aqueles não-brancos que se incorporaram ao seu grupo) detinham o controle sobre todas as áreas de decisão e influência na sociedade: eram os proprietários das terras e dos meios de produção; controlavam o comércio interno e externo, a alta burocracia, o judiciário, o exército e a polícia; detinham o poder político e dominavam as profissões liberais, como Medicina e Engenharia. E esse controle de quase todos os espaços jamais saiu de suas mãos. Quanto aos negros, estavam confinados às atividades de baixo prestígio e de difícil acumulação de riqueza, como as tarefas agrícolas e os trabalhos manuais de menor qualificação (2006, p. 60). A luta dos negros por cotas tem como objetivo resgatar o que foi negado a eles em termos de acesso a bens materiais e culturais através de políticas de discriminação negativa, de racismo e de desigualdade adotadas pelo Estado tanto no período colonial quanto no período republicano. Temos de considerar ainda que, sendo a sociedade brasileira dependente desde a sua invenção, a exploração do trabalho escravo e assalariado beneficiou e favoreceu também as camadas altas e médias dos países colonizadores (Portugal, Grã-Bretanha etc). A pobreza material e intelectual dos negros no Brasil explica-se, portanto, pela exploração e discriminação sofridas por eles em benefício e favorecimento de outros indivíduos, cuja maioria é constituída de não negros. Muitas vezes, essa pobreza e discriminação são explicadas por ideólogos das classes privilegiadas ou favorecidas como sendo devido à incapacidade intelectual e de integração social dos negros. O que de fato ocorreu foi a adoção de uma política sistemática de discriminação negativa e de apartheid contra os negros pelo Estado e pela sociedade brasileira, em geral. É que a política de exploração do trabalho e de dominação política de um grupo desfavorecido é sempre acompanhada de política de discriminação, de desigualdade e/ou de práticas racistas por parte dos grupos privilegiados e/ou favorecidos. 3 Carvalho acentua bem essa política de discriminação, de desigualdade e/ou de práticas racistas na sociedade brasileira que beneficiou a coletividade branca e negou à coletividade negra oportunidades de ascensão profissional, educacional etc.: Todos nós, brancos, nos beneficiamos cotidianamente, e de um modo ilícito, por vivermos em uma sociedade racista. São inúmeros privilégios, pequenos, médios e grandes, que nos ajudam a manter vantagem e concentrar mais recursos. Na medida em que o racismo brasileiro opera no cotidiano, nós brancos somos diariamente favorecidos com algum capital (social, econômico, cultural) que foi distribuído desigualmente segundo critérios raciais [...] (2006, p. 102). A desconstrução da pobreza, da desigualdade, da discriminação e das práticas racistas passou a ser defendida pelos grupos desfavorecidos - no caso, os negros – através de políticas e práticas afirmativas elaboradas por eles, quando se recusaram a aceitar a inferiorização, a desigualdade, a discriminação negativa e as práticas racistas, impostas pelas classes privilegiadas e/ou favorecidas, se orgulharam de sua identidade e de sua humanidade negra, passando a reivindicar o direito de serem respeitados por aqueles que se beneficiaram e/ou se favoreceram com a sua exploração e discriminação e de serem compensados por essa exploração e discriminação. As classes privilegiadas e/ou favorecidas tentam, inicialmente, desqualificar essas reivindicações, alegando que os benefícios e favorecimentos sociais devem ser universais para atender a totalidade dos indivíduos que compõem a sociedade, esquecendo ou fingindo esquecer que há mais de 500 anos, em nome da universalidade e da totalidade, alguns particulares e algumas partes da sociedade foram beneficiados e favorecidos em detrimento dos direitos de acesso a benefícios e favorecimentos de outros particulares e de outras partes da sociedade. A outra forma de as classes privilegiadas e/ou favorecidas desqualificarem as reivindicações dos grupos desfavorecidos, no caso, os negros, é atenderem essas reinvindicações, oferecendo propostas alternativas – matrículas ou bolsas em faculdades ou universidades particulares, como é o caso do PROUNI – segundo suas visões e interesses ideológicos, com o objetivo de quebrarem a radicalidade das reivindicações das classes desfavorecidas, mais interessadas em 4 lutar pela redistribuição dos benefícios das classes altas e dos favorecimentos das classes médias. A aceitação das propostas alternativas pelos grupos desfavorecidos é criticada pelos ideólogos das classes médias, os quais alegam que tais grupos contentam-se com as migalhas oferecidas pela classe privilegiada. Tais ideólogos esquecem ou fingem esquecer que, historicamente, as classes médias aceitaram e mendigaram migalhas da classe alta, ajudando a manter o sistema de exploração e de discriminação das classes mais desfavorecidas da sociedade brasileira – negros e índios, em especial. Os ideólogos das classes médias não somente defendem que é preciso alcançar a universalidade para todos os particulares e a totalidade para todas as partes da sociedade, como também concordam com a ideologia das classes altas, as quais defendem abstratamente que é preciso alcançar o desenvolvimento para que todos os indivíduos da sociedade possam ter acesso a bens materiais e culturais e comungam ainda com os ideais daqueles que postulam uma revolução socialista para que todos sejam tratados igualitariamente. Considerações finais Enquanto não se alcança a universalidade, a totalidade, o desenvolvimento e o socialismo, as classes altas e médias continuarão se beneficiando e se favorecendo do sistema de exploração do trabalho e de discriminação social e racial construído há quinhentos anos, tendo acesso aos bens materiais e culturais e os desfavorecidos, em geral, continuarão sendo explorados e discriminados e não tendo acesso a bens materiais e culturais. Não seria mais coerente que as classes altas e médias renunciassem a parte de seus benefícios e favorecimentos enquanto não se alcançam a universalidade, a totalidade, o desenvolvimento e o socialismo? A posição contrária às cotas para negros e a outros desfavorecidos, em especial, e às políticas afirmativas, em geral, por parte de setores da classe média é explicada historicamente pelo seu compromisso solidário, consciente ou inconsciente, com o sistema de exploração do trabalho, de política de discriminação negativa e de desigualdade racial praticado pelas classes privilegiadas (colonizadores e burguesia nacional e internacional). 5 A mudança qualitativa dos conceitos de universalidade e de totalidade passa pela mudança qualitativa dos conceitos de particulares e de partes na sociedade em que vivemos. A política de cotas qualitativas (redistribuição dos bens materiais e culturais) em todos os setores educacionais, profissionais e patrimoniais para negros, índios e outros desfavorecidos pode contribuir para o início da construção da universalidade e da totalidade plenas que impliquem o atendimento das necessidades e dos interesses de todos os particulares e de todas as partes que constituem essa sociedade. Referências ATMORE, Anthony et alii. (colaboradores). História do homem: nos últimos dois milhões de anos. Lisboa: Selecções do Reader’s Digest (Portugal), 1975. BURNS, Edward McNall; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental. Trad. Donaldson M. Garschagen. 30 ed., volumes 1 e 2. CARVALHO, José Jorge de. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior. 2 ed. São Paulo: Attar, 2006. FAUSTO, Bóris. História concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Imprensa Oficial do Estado, 2002. 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