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ANAIS DO
I SEMINÁRIO FLUMINENSE DE SOCIOLOGIA
ARTIGOS
ISSN: XXXXXXX
19 , 20 e 21 de novembro de 2012
Niterói, Rio de Janeiro
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Reitor da Universidade Federal Fluminense - UFF
Roberto de Souza Salles
Vice-Reitor
Sidney Luiz de Matos Mello
Pró-Reitor de Extensão - PROEX
Wainer da Silveira e Silva
Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação - PROPPI
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Pró-Reitor de Assuntos Estudantis - PROAES
Sérgio José Xavier de Mendonça
Pró-Reitor de Administração - PROAD
Leonardo Vargas da Silva
Superintendente de Comunicação Social - SCS
Rosane Pires Fernandes
Coordenador do Curso de Ciências Sociais
Sérgio Rodrigues Castilho
Chefe do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais – GSO
Carmen Lúcia Tavares Felgueiras
Diretor do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia - ICHF
Théo Lobarinhas Piñeiro
Vice-Diretor
Napoleão Miranda
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia PPGS (2012)
Brasilmar Ferreira Nunes
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Coordenador do I Seminário Fluminense de Sociologia
Sidnei Clemente Peres
Coordenadores dos Grupos de Trabalho
GT 01: identidade, conflito e movimentos sociais
Brena Costa de Almeida
Sidnei Clemente Peres
Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo
Wilma Lúcia Rodrigues Pessôa
GT 02: meio-ambiente, território e poder
Nurdino Cassiano Macata
Valter Lúcio de Oliveira
GT 03: pesquisas urbanas e arte
Bianca Salles Pires
Felipe Berocan Veiga
Marco Antonio da Silva Mello
GT 04: trabalho e modernidade
Leonardo Vereza de Freitas
Marilia Salles Falci Medeiros
Comissão executiva e organizadora dos anais do evento
Brena Costa de Almeida (Discente PPGS/UFF)
Leonardo Vereza de Freitas (Discente PPGS/UFF).
Edição
Leonardo Vereza de Freitas
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ÍNDICE POR AUTOR / APRESENTADOR
GRUPO DE TRABALHO 01: IDENTIDADE, CONFLITO E MOVIMENTOS SOCIAIS
ALMEIDA, Brena ................................................................................................................................ 7
CAVALCANTI, Thiago ..................................................................................................................... 21
CUNHA, Alexia ................................................................................................................................. 33
GOMES JR, Elson ............................................................................................................................. 46
MACATA, Nurdino ............................................................................................................................ 57
MILNER, Marcos .............................................................................................................................. 75
MONNÉ, Eric .................................................................................................................................... 90
RODRIGUES, Caroline ................................................................................................................... 104
SANT´ANNA, Rejane ..................................................................................................................... 120
VEREZA, Leonardo......................................................................................................................... 139
GRUPO DE TRABALHO 02: MEIO AMBIENTE, TERRITÓRIO E PODER
AMARAL, Giverage ........................................................................................................................ 153
INCARNAÇÃO, Iuri ....................................................................................................................... 173
MACATA, Nurdino .......................................................................................................................... 186
SILVA, Tatiana ................................................................................................................................. 199
GRUPO DE TRABALHO 03: PESQUISAS URBANAS E ARTE
BARBOZA, Leila ............................................................................................................................ 209
CAMPAGNANI, Nathália ............................................................................................................... 227
HORÁCIO, Heiberle ........................................................................................................................ 246
JOERKE, Gabriel ............................................................................................................................. 267
MAGGI, Diego ................................................................................................................................ 273
6
MOURA, Heitor............................................................................................................................... 287
OLIVEIRA, Luciano ........................................................................................................................ 303
PIRES, Bianca .................................................................................................................................. 324
RIBEIRO, Vanessa ........................................................................................................................... 338
SOARES, Flávia .............................................................................................................................. 359
GRUPO DE TRABALHO 04: TRABALHO E MODERNIDADE
BRAGA, Bruno ................................................................................................................................ 377
DANTAS, Giselle ............................................................................................................................ 401
FERREIRA, Thaísa .......................................................................................................................... 416
GASPAR, Daniel.............................................................................................................................. 428
OLIVEIRA, Clarisse ........................................................................................................................ 438
PEÇANHA, Valéria ......................................................................................................................... 455
VEREZA, Leonardo......................................................................................................................... 472
7
GRUPO DE TRABALHO 01: IDENTIDADE, CONFLITO E MOVIMENTOS SOCIAIS
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NA COMUNIDADE
REMANESCENTE DE QUILOMBO DA RASA, NO MUNICÍPIO DE ARMAÇÃO DOS
BÚZIOS, NO RIO DE JANEIRO.
Brena Costa de Almeida1
RESUMO
O presente trabalho consiste em pesquisa em desenvolvimento e possui como objeto o processo de
construção da identidade na Comunidade Remanescente de Quilombo da Rasa no município de
Armação dos Búzios no estado do Rio de Janeiro, Brasil. A conquista de direitos territoriais,
traduzida no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal
de 1988, chama atenção para uma realidade que implica não apenas uma perspectiva de resgate
histórico do problema da escravidão no Brasil, mas também se refere à composição das chamadas
comunidades remanescentes de quilombos. Cabe realizar uma investigação que leve em
consideração tais aspectos, e não se apegue a uma visão tradicional da formação societária como
unidade relativamente isolada e separada de outras unidades, vislumbrando a auto-atribuição desses
grupos étnicos. Nesse sentido, faz-se necessário ressaltar as diferenças que os próprios membros
encontram e apontam como fatores sociais relevantes para caracterizar sua origem comum e
identidade étnica. O trabalho é elaborado a partir de material etnográfico obtido com base em
investigação empírica de caráter descritivo e analítico, observação direta, realização de entrevistas e
depoimentos com membros da comunidade da Rasa. A abordagem dos pontos teóricos trata de
conceitos como identidade, etnicidade, fronteiras, reconhecimento e auto-identificação.
Palavras-chave: Comunidade Remanescente de Quilombo; Rasa; identidade; auto-identificação;
1.
INTRODUÇÃO
O processo de emergência identitária das “comunidades remanescentes de quilombo” será
aqui abordado por meio de dois fios condutores que se inter-relacionam nessas análises: identidade
étnica e memória, levando em consideração a articulação das experiências reunidas na Comunidade
Remanescente de Quilombo da Rasa, no município de Armação dos Búzios no Rio de Janeiro. A
pesquisa de campo, ainda em fase de desenvolvimento na comunidade, revelou a memória como
chave para apreender como se constitui a autoatribuição da identidade étnica desse grupo em um
1
Mestranda do PPGS UFF. Email: [email protected]
8
contexto de luta política por reconhecimento e conquista de direitos territoriais.
Tais questões recuperam ainda o problema da escravidão e da constituição do “pósabolição” no Brasil, compreendendo os diversos elementos que podem ser extraídos daí, não
naturalizando as relações raciais como herança da escravidão, mas sim apreendendo como se
compõe a partir da historicidade das identidades que estão entrelaçadas em problemas territoriais,
de relações de trabalho, de processos de definição e acesso a direitos. Ou seja, em vez de reproduzir
uma historiografia de acomodação das relações raciais pela mestiçagem no Brasil, cabe aqui
apreender como estão se constituindo relações que podem se percebidas na historicidade do
processo de emancipação da escravidão e na composição das próprias relações e caminhos
delineados por esses atores sociais.
Inúmeras lutas sociais e políticas que antecederam e fizeram parte da constituinte na
década de 1980 ganharam expressão em diversos dispositivos da Constituição Federal de 1988 e é
nesse contexto que surge o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que
confere direitos territoriais aos remanescentes das comunidades de quilombos, tal artigo é
regulamentado pelo decreto 4.887/2003. Além do referido dispositivo, garantias de direitos culturais
(especialmente no que concerne ao patrimônio material e imaterial) são encontradas nos artigos 215
e 216 da Constituição Federal, regulamentação que encontra consonância com a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário
(decreto 5.051/2004).
Cabe ressaltar que o trabalho se desenvolve a partir dos diversos entrelaçamentos que
envolvem identidade étnica e memória, bem como, dos aspectos imbricados na categoria
remanescentes das comunidades de quilombos e como esses elementos se constituem no próprio
lugar da comunidade e nas falas dos seus membros. O trabalho encontra-se em fase de
desenvolvimento, a partir de pesquisas realizadas por meio do Laboratório de Estudos de
Movimentos Sociais, Trabalho e Identidade (LEMSTI) na Universidade Federal Fluminense em
Niterói no Rio de Janeiro e compõe-se de pesquisa bibliográfica e documental, mas principalmente
dos relatos orais dos membros da comunidade da Rasa, buscando compreender as especificidades
dessa comunidade no contexto de lutas das comunidades remanescentes de quilombo no Brasil.
2.
A COMUNIDADE NEGRA DA RASA: HISTÓRIA E A MEMÓRIA
A comunidade da Rasa situa-se no município de Armação dos Búzios no Estado do Rio de
Janeiro. Conhecido balneário turístico que compõe a chamada Região dos Lagos ou Região das
Baixadas Litorâneas do Estado do Rio, Búzios era o 3º distrito do município de Cabo Frio e tornouse município autônomo em 1995. Localiza-se a cerca de 165 quilômetros da capital do Estado e
possui uma população de pouco mais de 28.000 habitantes; o rápido desenvolvimento gerado
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principalmente pelo turismo e especulação imobiliária nos últimos 20 anos, coloca a Rasa na região
periférica do município, recobrindo com a nuance negra os contornos de Armação.
Segundo Dalmaso (2005), existem documentos históricos que comprovam que na região de
Búzios havia uma grande quantidade de desembarques de navios com negros africanos que se
tornariam escravos em diversas fazendas locais. De acordo com os relatos dos membros da
comunidade da Rasa, os negros procediam em sua maioria de Bantu e de Angola e chegavam pela
Praia de Armação, que recebia grande parte do comércio de escravos, os negros eram leiloados e
recolhidos para Fazenda Campos Novos.
Essa fazenda era uma sesmaria2 ocupada, a partir do século XVII, por Jesuítas da
Companhia de Jesus para impedir que os índios que se encontravam na região negociassem com
estrangeiros. Compreendia uma extensa área territorial que hoje abrange os municípios de São
Pedro da Aldeia, Cabo Frio e Armação dos Búzios, servindo também de ponto de distribuição dos
escravos para outras localidades, realizava a extração de madeiras nobres e sua produção agrícola
vigorosa era voltada para o cultivo de mandioca, feijão, milho, café e arroz (Arruti, 2002, p.11)
Com a ruptura de Portugal com os Jesuítas e expulsão dos mesmos pelo Marquês de
Pombal, a partir de 1759, a fazenda volta a ser da Coroa Portuguesa e é renomeada como Fazenda
D’El Rey, sendo arrematada, no mesmo período, por Manoel Pereira Gonçalves. Com a Lei Eusébio
de Queiroz, que finda o tráfico negreiro em 1850, o Litoral de Búzios se tornou rota de contrabando
de escravos e por constituir-se de várias enseadas, transformou-se em portos clandestinos de navios.
Muitos negros africanos chegavam pela Praia de José Gonçalves e pela Praia Rasa ou Ponta do Pai
Vitório, como são conhecidas pelos moradores da região.
Em razão dos maus-tratos nas fazendas, muitos negros fugiam e refugiavam-se nas
proximidades da Praia dos Negros ou Praia Gorda. O local, que parece adequado a servir para
ocultar os escravos fugidos, era assim chamado, pois oferecia uma fartura de alimentos para os
negros que dali retiravam seu sustento. Essa região compõe um manguezal de pedras e cascalhos
que guardavam nas suas pequenas depressões peixes, ostras, entre outros alimentos que, segundo os
moradores da Rasa, fizeram os cativos fugidos sobreviverem durante muito tempo longe das
fazendas que os açoitavam.
A abolição em 1888, não gerou mudanças para os ex-escravos ou seus descendentes,
muitos continuaram morando e trabalhando nas terras da fazenda, cultivando a mandioca, principal
base alimentar. A compra da fazenda por Eugênio Arnoud, no início do século XIX, transformou-os
em arrendatários, em troca de continuarem nas terras e produzirem suas roças, deveriam trabalhar
um determinado número de dias nas terras dos grandes proprietários de terras como pagamento –
2 Sistema imposto pela Coroa de Portugal ao Brasil no período colonial com o objetivo de ocupar e produzir nas áreas
territoriais da colônia.
10
trabalhavam geralmente na extração de madeiras nobres e no cultivo de banana e café para
exportação.
Almeida (2011) chama atenção para o desenvolvimento de certa autonomia no processo de
produção por parte das próprias famílias de escravos não muito longe da Casa Grande,
especialmente após a ampliação do declínio das grandes plantações cafeeiras no século XIX. Com
esse declínio, ocorre a diminuição do poder de coerção dos grandes proprietários, dessa forma, não
apenas havia quilombos com produção autônoma a uma grande distancia das Casas Grandes das
fazendas, mas sim aos arredores, inclusive fomentando a produção de alimentos de subsistência
(milho, abóbora, mandioca, feijão, cana-de-açúcar) que serviam ao consumo da própria fazenda em
momentos de escassez.
A Fazenda Campos Novos é de grande importância, pois vários moradores da Rasa, assim
como de outras comunidades remanescentes de escravos afirmam que avós, tios, parentes
trabalhavam em suas terras ou fugiram delas para os Quilombos. A partir da década de 1940, com a
compra da fazenda por Antônio Paterno, conhecido na região como “Marquês”, começaram os
conflitos pela posse e exploração de terras, violência e expropriação de caráter coletivo, neste
período a população local começa a se organizar para defender suas terras. Os descendentes que
moravam mais afastados da sede conseguiram lutar e se manter nas terras, esse foi o caso de
comunidades vizinhas, como Botafogo e Caveira.
Acirrou-se, de 1950 a 1980, um período de intenso e violento conflito de terras nessa
fazenda, inclusive Dalmaso afirma que foi “um dos mais violentos do Estado do Rio de Janeiro.”
(2005, p.21). De acordo com Arruti:
Em 1983 parte da fazenda Campos Novos é desapropriada pelo INCRA 3, foram 3.203,43
ha de terra desapropriada para fins de reforma agrária. Esta foi dividida em quatro grande
glebas e de acordo com o levantamento realizado em 1984, havia um total de 248
ocupações. O ato de desapropriação por parte do governo federal, ao contrário do que se
poderia esperar, no entanto, não significou o fim da violência e tensão social. (Arruti, 2002,
p. 15)
As famílias de descendentes de escravos que estavam vivendo do cultivo nessas terras por
meio de arrendamento foram expulsas após o fracionamento da extensa área da antiga fazenda. As
narrativas dos membros mais antigos da comunidade se combinam ao mencionar que os “novos
donos” não queriam saber que as terras eram cedidas “àqueles negros”, não queriam negros nas suas
terras e usavam o gado para afugentá-los. Apesar da resistência de alguns que lutavam contra o
gado nas suas plantações, ou permaneciam nos arredores prestando serviços na localidade, muitos
tiveram que se deslocar para outras regiões, buscando novas formas de luta pela sobrevivência e
retornando, apenas posteriormente, para as terras que tradicionalmente ocupavam.
3 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
11
O contato com a comunidade da Rasa originou-se de Projeto de Extensão da Universidade
Federal Fluminense. Denominado Acuia – Acervo Dona UIA, desde 2005 esse projeto busca
resgatar a memória local. Em nossa entrada na comunidade fomos informados de que o Quilombo
possui um grande número de adeptos da religião evangélica e que havia uma matriarca que
completaria 102 anos com uma grande festa, o ano era 2011 e a matriarca era a D. Eva. Sua filha, a
D. Uia, é a matriarca política da região, reconhecida por todos e até mesmo no exterior como uma
forte liderança política na luta pelos direitos da comunidade.
A chegada à Praia da Rasa logo evidencia várias casas, alguns condomínios e uma
considerável movimentação urbana, não há sinal do que estereótipos chamariam de um quilombo,
como uma comunidade rural, afastada de centros urbanos, que se utiliza de agricultura de
subsistência. O Quilombo da Rasa escapa a encaixes conceituais frigorificados, conforme coloca
Almeida (2011) e por isso mesmo instiga e aguça ainda mais os sentidos direcionados à busca da
composição de nuances que constrói a identidade do grupo.
O centro de toda a comunidade é uma praça onde há uma lanchonete, uma quadra
poliesportiva, uma Igreja Católica frequentada pelos “brancos”, os “Gonçalves” conforme diz D.
Uia, e uma Igreja da Assembléia de Deus frequentada por muitos quilombolas e da qual um deles
inclusive foi pastor, o Pastor Luiz, cuja entrevista foi utilizada nesse trabalho. Os “Gonçalves” são
mencionados constantemente nas falas dos membros da comunidade, são os brancos, referidos
como descendentes da família do português Manoel Pereira Gonçalves, cuja família permaneceu
naquelas terras. Dessa composição da praça e das igrejas se evidenciam as diferenças entre brancos
e negros na comunidade, na Rasa a Igreja Católica é a igreja dos brancos e a Igreja Evangélica é dos
negros4.
Em frente a referida praça há uma travessa e no seu fim se encontra a casa da Dona Eva, a
matriarca da comunidade que atualmente possui 103 anos. É este local o ponto de encontro do
grupo de pesquisa com a comunidade. Dona Eva, além de mãe de Dona Uia, também é mãe de mais
11 filhos, incluindo o Sr. Valmir, conhecido na região como Valmir da Rasa, justamente por ser um
“filho da rasa” como costumam dizer, o Valmir da Rasa foi vereador do Município de Armação dos
Búzios.
Com o tempo, a equipe de pesquisa entendeu que na realidade a família da D. Uia e demais
membros do quilombo foram expulsos das terras que originalmente ocupavam. Por meio de relatos
constatou-se que o pai da D. Uia havia comprado “uma terra”, na qual “colocou” toda a sua família.
Outros relatos comuns a diversos membros denotam uma nuance muito específica da Rasa, apesar
4
Esse elemento é bem característico da Rasa e embora mereça maior desenvolvimento da pesquisa de campo para que
possamos tecer uma análise mais cuidadosa, pode-se dizer que a Igreja Evangélica é um mecanismo aglutinador dos
membros da comunidade, funcionando como chave na própria composição da identidade e dos critérios de pertença
do grupo.
12
de agregar características de comunidade urbana, ainda possui memórias de comunidade rural, um
relato constante é o de que as famílias fabricavam farinha na casa de farinha e possuíam roça,
levando uma parte da produção para vender em Cabo Frio.
A memória rural das casas de farinha ou das chamadas cozinhas de farinha, está presente
na narrativa de todos, D. Uia nos conta que era comum toda a comunidade se envolver para colher a
mandioca e depois ir para a cozinha de farinha. Segundo ela, aconteciam “paqueras” nas cozinhas
de farinha, pois os donos chamavam as moças para ralar a mandioca e os rapazes que iam
“paquerar” acabavam trabalhando para rodar a roda, as casas de farinha eram um espaço de
convívio social e nas épocas frias serviam de aquecedor para todos, D. Uia conta que a última foi
desfeita à alguns anos.
Na Rasa há mais ou menos 40 anos, não havia estradas, nem ônibus e o transporte era feito
“no lombo de cavalos ou a pé”. Conforme relata D. Ana: “Nem estrada não tinha, só tinha uma
picada, de andar com o cavalo se viesse um carro o cavalo tinha que ir pro meio do mato pra deixar
o carro passar, (…) tudo que nós tínhamos que fazer aqui nós íamos pra Cabo Frio, ia comprar
comida, fazenda pra fazer roupa, remédio... saía as 4 horas da manhã pra ir pra Cabo Frio, os
pequenos não vendiam nada, mas quem tinha animal vendia.”
Foi apenas na década de 1970 que o bairro da Rasa, onde se localiza a comunidade
quilombola, começou de fato o processo de urbanização com a abertura de ruas e instalação de
iluminação pública nas ruas transversais e internas, embora a prestação de serviços públicos ainda
seja precária. Nesse mesmo período várias famílias foram expulsas de terrenos que ficavam
próximos à praia e ao Mangue de Pedra, para a construção da Reserva Biológica da Marinha –
conforme já mencionado, esse território era utilizado pelos quilombolas como reserva de alimentos:
caranguejos, frutos e pequenos animais que fazem parte da fauna e flora da área.
Na década de 90, apesar da intensificação do processo de urbanização, ainda existiam
alguns roçados, base alimentar dessa população até então, os roçados eram divididos entre as
famílias, mas todos ajudavam no plantio e colheita. Conforme coloca O’Dwyer:
A utilização dessas áreas obedece à sazonalização das atividades, sejam agrícolas,
extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupação dos
elementos essenciais ao ecossistema, que tomam por base laços de parentesco e
vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade. (O’Dwyer, 2002,
p.19)
Segundo relatos, foi nesse período que algumas famílias chegaram à Rasa se dizendo donas
das terras em que a comunidade que tradicionalmente as ocupava, realizava o plantio dos seus
roçados. Essas famílias vinham de uma região do Rio de Janeiro conhecida como baixada
fluminense5 e a sua chegada iniciou inúmeras desavenças e até mesmo ameaças de morte de
5
Compreende os municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São João de Meriti, Nilópolis, Belford roxo,
13
lideranças da comunidade quilombola.
Nesse contexto repleto de inúmeros problemas territoriais, o Sr. Valmir, irmão de D. Uia e
filho de D. Eva, frequenta a graduação em Direito junto com um primo de D. Uia que era pastor na
Igreja Assembléia de Deus da comunidade, a partir do curso eles se depararam com discussões
jurídicas acerca da titulação de terras para as Comunidades Remanescentes de Quilombo. Em 1995
surge dessa extensa rede familiar a Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo da
Rasa, que reivindicou a Fundação Cultural Palmares 6 o reconhecimento enquanto comunidade
quilombola e ao INCRA7 a titulação das terras das quais foram expulsos. Até o término deste
trabalho o Quilombo da Rasa ainda estava aguardando a demarcação de seu território.
O processo de construção identitária se compõe em meio às mobilizações políticas
organizadas pelo próprio grupo em situações de conflito, não considerando o quilombo como uma
composição histórica do passado, mas sim como esse grupo constrói e mobiliza, no presente, o
elemento político-organizativo, que une e busca circunstâncias para reprodução econômica e
cultural do grupo.
Dessa forma, a própria apreensão da identidade étnica é compreendida nesse contexto, no
sentido de uma existência coletiva mobilizada na demanda por acesso a direitos. Além disso, a
composição da identidade dessa comunidade está intrinsecamente relacionada à memória de um
passado de escravidão que é compartilhada pelos membros da comunidade, que se compreendem
como parentes, como membros de uma grande família. Em um dos relatos gravados com a Sra.
Ilma, prima de Dona Uia, todos na Rasa de alguma forma são parentes: “Tanto os negros quanto os
brancos só casavam com parentes, porquê não tinha como casar com pessoas de outros lugares, aqui
todo mundo, todos os negros são parentes.”
Essa fala da Dona Ilma é reiterada por um relato obtido por O´Dwyer: “Aqui na Rasa, a
periferia, ficou exatamente o povo de cor negra, é tudo uma família, casou primo com prima, essa
coisa toda e foi gerando uma família.”, outro relato confirma: “Esse parentesco que a gente tem …
quase todo mundo da Rasa tem um grau forte de parentesco. E a gente começa a discutir com os
parentes, com os mais velhos como é que se deu essa coisa, como é que foi isso... Isso foi em
virtude da família da minha avó, que se uniu á família do meu pai, eles fizeram uma família só. Um
desses irmãos da minha avó tinha mais de dez mulheres, acho que era o Justino, o irmão da
Donária. Daí se formou esse grau forte de parentesco.” (O´Dwyer, p. 4, 1998)
A configuração da memória da comunidade extraída principalmente dos relatos dos mais
Queimados e Mesquita
Criada em 1988, a Fundação Cultural Palmares é uma instituição pública vinculada ao Ministério da Cultura, fruto do
movimento negro brasileiro, a Fundação Cultural Palmares foi o primeiro órgão federal criado para promover a
preservação, a proteção e a disseminação da cultura negra.
7
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
6
14
idosos e da atualização desses relatos nas narrativas dos mais jovens está bastante alicerçada no que
poderíamos chamar de espécies de pontos particulares que compõe lugares de memória, como
exemplo cabe referir novamente a Praia Gorda e a Ponta do Pai Vitório. Conforme já mencionado, a
Praia Gorda era o local no qual os escravos que conseguiam fugir dos navios ou da fazenda Campos
Novos, se alimentavam e se refugiavam por ser de difícil acesso e protegido por um Mangue de
Pedra e um morro, e a Ponta do Pai Vitório era um porto para desembarque dos navios negreiros,
segundo relatos há alguns anos havia um único pau da ponte que serviu de acesso dos navios à terra
firme.
A memória, no sentido aqui abordado, reflete muito a memória subterrânea explicitada por
Michael Pollak no texto Memória, esquecimento, silêncio (1989). Aqui não estamos nos referindo a
uma memória esquecida de um passado de sofrimento, mas sim a uma memória latente que é
silenciada e que emerge em momentos de crise, contrapondo-se a uma memória coletiva ou oficial,
como a chamada memória nacional, apresentada por Halbwachs como a forma mais completa de
memória coletiva.
Reconhecemos a importância de estudos como o de Halbwachs em relação a memória
coletiva e ao entendimento de que o foco originário dos pontos de referência necessários para
construção do passado se encontram na sociedade. O autor destaca desde a necessidade de se
compreender as funções “positivas” da memória (como as funções de continuidade, de coesão
interna e de defesa das fronteiras comuns ao grupo) até mesmo o funcionamento do trabalho de
enquadramento que realiza um controle da memória coletiva, compondo memórias oficiais que
poderão funcionar como elementos de perpetuação do tecido social e das estruturas institucionais da
sociedade.
Tais elementos também devem ser analisados, no entanto, queremos pensar em conjunto
com Pollak, naquela memória oculta, ilegítima, tão clandestina quanto os navios que aportavam na
costa brasileira durante os séculos em que foi perpetuada a escravidão, mesmo quando já era
proibido o tráfico negreiro. Segundo o autor, tais fenômenos consistem: “[...] muito mais na
irrupção de ressentimentos acumulados no tempo e de uma memória da dominação e de sofrimentos
que jamais puderam se exprimir publicamente.” Por isso essa memória se deslinda em momentos de
crise, mas também pode ser desvelada pela história oral, pelos relatos das memórias individuais
ocultadas nos subterrâneos das relações sociais. (Pollak, 1989, p. 5)
O autor separa, por meio de uma fronteira entre o dizível e o indizível, uma memória
coletiva organizada, oficial, de uma memória coletiva subterrânea, da sociedade civil dominada, de
grupos específicos que se encontram às margens daquilo que é relativo à maioria ou daquilo que o
Estado quer pôr em voga. Tal limite separa aquilo que pode ser dito, pronunciado, daquilo que não
pode, aclarando como essas lembranças (dolorosas, proibidas, indizíveis e vergonhosas) mesmo
15
quando são estranhamente cultivadas no próprio silêncio, podem funcionar como ferramenta de
oposição à memória coletiva oficial, nesse sentido:
O longo silencio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que
uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela
transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizade,
esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.
(POLLAK, 1989, p.5)
Além de se colocar como forma de resistência, o silêncio muitas vezes é utilizado como
ferramenta pelas vítimas para poder conviver com os outros membros da sociedade que estiveram
de alguma maneira, passivos ou omissos ao trauma sofrido, ou seja, pode funcionar como uma
forma de se continuar vivendo. O mais importante aqui é verificar como essa memória de
sofrimento, dominação e angústias, enquanto irrupção de ressentimentos que se aglomeram no
decorrer do tempo, não pode ser controlada “pelos tabus da memória oficial”, dessa ruptura
emergem inúmeras reivindicações que invadem a esfera pública e que são irrefreáveis.
É assim que a memória subterrânea dos negros da Rasa acaba emergindo por meio da
história oral narrada pelos membros do grupo, ela compõe memória de sofrimento, de dor, de
vergonha, que é ocultada e por muito tempo permanece silenciada, latente, mas que é acionada em
torno da confecção de estratégias de sobrevivência nas lutas políticas.
3.
IDENTIDADE,
ETNICIDADE
E
COMUNIDADE
REMANESCENTE
DE
QUILOMBO NO BRASIL
Entendemos que a chave para compreender a constituição da identidade na comunidade
quilombola da Rasa pode ser forjada a partir dos elementos da memória e da identidade étnica,
compreendendo como esses componentes são acionados pelo próprio grupo em processos de
autorrepresentação e constituição de critérios político-organizativos para mobilização de lutas,
especialmente a luta pela efetividade das garantias de direitos constitucionais.
Em consonância com Almeida8, acreditamos que é necessário discutir o que é o quilombo
na atualidade, apreendendo como ele ganha forma e nuance no cenário de definições jurídicas
cristalizadas desde o século XVIII, com sentidos reproduzidos acriticamente, nesse sentido,
devemos compor as matrizes do significado de quilombo e esclarecer a extensão de seus
mecanismos de interpretação.
Até o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
Federal de 1988 fixar a garantia territorial para comunidades remanescentes de quilombos, houve
um caminho de lutas e reivindicações dos movimentos sociais que antecederam a Assembléia
8
Alfredo Wagner Berno de Almeida compila diversos textos sob a rubrica de Quilombos e as novas etnias (2011) onde
aborda problemas de grande relevância relativos às comunidades tradicionais e às terras tradicionalmente por elas
ocupadas.
16
Constituinte e ganharam força com a promulgação da Carta Federal Brasileira. Algumas categorias
básicas utilizadas pelos órgãos competentes para pensar a estrutura agrária no Brasil, como
estabelecimento e imóvel rural, não contemplavam situações específicas, como usos não
individualizados da terra, ou as chamadas “terras de uso comum” que em grande parte afetam as
chamadas comunidades tradicionais.
Em1985, a partir das pressões do movimento camponês, tais situações passaram a
denominar-se “ocupações especiais9” pelo Cadastro de Glebas do INCRA. Tal atitude política, no
entanto, não resolve os problemas das demandas relacionadas e em 1987 há um arrefecimento dos
movimentos sociais com certo fortalecimento dos interesses ruralistas, especialmente por motivos
políticos e em razão da atuação de frágeis intermediários nos conflitos – como as Comissões
Agrárias.
Tal composição é importante para que possamos vislumbrar o nascedouro do referido
artigo do ADCT e analisá-lo criticamente, atentando para importância tanto da recuperação das lutas
camponesas pós-Constituição de 1988, quanto da organização de associações voluntárias e
identidades coletivas de grupos específicos nas lutas por mecanismos de efetividade do dispositivo
constitucional, em especial a formação de um movimento social quilombola nacional em 1994.
Dessa forma, situações materiais de conflito tornam visíveis os limites do artigo, levantando
inúmeros problemas relacionados a definições e interpretações que envolvem essa norma
constitucional.
Para Almeida, as discussões sobre a noção de quilombo abrangem os termos de uma
categoria histórica que é ao mesmo tempo jurídica e se constitui no plano de situações sociais
concretas, isso exige uma ruptura com antigas definições e interpretações, bem como, uma
construção diferenciada, que não seja mais marcada por visões congeladas no tempo. Isso requer
uma mudança nas concepções “frigorificadas” e nos padrões “arqueológicos”, a partir dos quais
ainda se busca uma espécie de escavação na qual podem ser encontrados “[...] indícios materiais e
onde estão as marcas ruiniformes da ancianidade da ocupação.” (Almeida, 2011, p. 69)
O referido autor apresenta uma concepção jurídico-formal de quilombo que permaneceu,
de certo modo, congelada ao longo do tempo, conceito que vem desde 174010, compõe a seguinte
visão acerca de quilombo: “[...] toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte
9
Segundo Almeida as “ocupações especiais” compunham aquelas condições que não se achavam contempladas pelo
domínio individual, nem estavam adequadas às formas de propriedade previstas, tais quais a condominial, a
sociedade anônima, limitada e cooperativa, designavam principalmente as chamadas terras de preto, terras de santo e
terras de índio, “[...] tal como definidas e acatadas pelos próprios grupos sociais, que estavam classificados em zonas
críticas de tensão social e conflito.” (2011, p. 58).
10
Essa compreensão configurou elementos básicos que se mantiveram ao longo do tempo, marcando as disposições e
disciplinas legais do Período Colonial – ainda que no Brasil não houvesse um “Código Negro” com normas
compiladas que exercesse a disciplina dos escravos, conforme havia em outros países onde se fazia presente o
sistema escravocrata.
17
despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles. (Conselho
Ultramarino, 1740)” (Almeida, 2011, p. 59).
Faz-se necessário realizar um corte, uma ruptura com os elementos que compõe esses
conceitos solidificados, modificando a forma de significar o quilombo, Almeida acentua ainda que
no Período Republicano pesa nas constituições o silêncio sobre essa questão, como se com a
abolição da escravatura os problemas relacionados aos quilombos fossem apagados da realidade,
simplesmente não possuíssem mais motivos para existir.
Nesse sentido, a redefinição de quilombo precisa ser observada na contemporaneidade a
partir do contexto de lutas sociais do movimento quilombola em torno de reconhecimento,
especialmente a partir das demandas pela operacionalização efetiva do dispositivo constitucional,
por isso mesmo faz-se necessário realizar rupturas com as referidas acepções “frigorificadas” ou
“escavações arqueológicas”, em busca da afirmação da identidade étnica.
Isso quer dizer que também o referido dispositivo fixador de garantias territoriais deve ser
analisado criticamente, desde que surge considerando a existência do quilombo como aquela
parcela “remanescente” ou “sobrevivente” do que é residual, como aquela fagulha de algo que já se
extinguiu ou está prestes a se extinguir. Dessa forma, deve-se observar atentamente e em conexão,
elementos ao mesmo tempo relacionados à compreensão e esclarecimento de caracteres políticos
que podem operacionalizar e mediar situações em constante transformação, bem como, noções de
identidade étnica que abarquem a compreensão do quilombo.
A redefinição de quilombo, tal como colocada hoje pelos que através dele se
autorrepresentam, estabelece uma clivagem político-organizativa face a estes intérpretes
consagrados. Os seus elementos contrastantes não se encontram no fator racial. A
mobilização étnica apóia-se numa expectativa de direitos sustentada, por sua vez, numa
identidade cultural que não tem sua razão de ser na “miscigenação”. (ALMEIDA, 2011, p.
87)
Para pensar os problemas apresentados e a comunidade quilombola da Rasa precisamos
nos mover dentro de uma teoria da etnicidade que privilegie os processos de interação entre os
grupos étnicos, uma teoria que se diferencie tanto de uma posição mais tradicional, em que raça
identifica-se com cultura e com uma língua, quanto da condição em que a sociedade corresponde a
uma unidade que “rejeita ou discrimina outros” (Barth, 2000, p. 28).
Tais posturas já vinham sendo desenvolvidas por autores como Leach e Gluckman, mas
tomaremos como ponto de partida a obra de Fredrick Barth para pensar menos por meio de
essencialismos culturais ou biológicos, que tecem esses grupos como formas culturais e sociais
relativamente isoladas e mais por meio de suas interações através de processos de exclusão e
inclusão que demarcam os limites dos grupos. Levaremos em consideração a autoatribuição e os
“sinais diacríticos” como marcadores das diferenças que os próprios atores sociais consideram
relevantes significativas nos critérios de pertença de cada grupo.
18
Essa compreensão que se contrapõe a visões preconcebidas – principalmente a respeito de
quais fatores são significativos para continuidade e forma das unidades étnicas no tempo – é
imprescindível para que possamos pensar comunidades quilombolas, com todas as nuances que se
apresentam atualmente, ao levarmos em consideração os critérios de pertença estabelecidos pelo
próprio grupo podemos compreender que apesar de não viver isoladamente, o grupo apresenta e
mantém características próprias que definem limites em relação a outros grupos. Pode-se dizer que
os grupos étnicos compõem categorias utilizadas pelos próprios atores para imputar, identificar o
grupo e organizar as interações, seguindo essa linha de raciocínio, a autoatribuição consiste em
elemento de elevada relevância, dessa forma:
A autoatribuição de uma categoria é uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa em
termos de sua identidade básica, mais geral, determinada presumivelmente por sua origem e
circunstâncias de conformação. Nesse sentido organizacional, quando os atores, tendo
como finalidade a interação, usam identidade étnica para se categoriza e categorizar os
outros, passam a formar grupos étnicos. (BARTH, 2000, p. 32)
Barth estava com a razão quando mencionou que as categorias étnicas proporcionam uma
espécie de “recipiente organizacional que pode receber conteúdo em diferentes quantidades e
formas nos diversos sistemas socioculturais”. (Barth, 2000, p. 33). Isso implica em uma ampliação
do campo para experiências etnográficas e comparativas, assim, menos do que as chamadas
“diferenças objetivas” colocadas muitas vezes de “fora para dentro” serão levados em consideração
os fatores socialmente relevantes determinados pelo próprio grupo para estabelecer o diagnóstico do
pertencimento, sem deixar de observar que os elementos culturais que demarcam as fronteiras11
podem se modificar, transmutando inclusive caracteres culturais e as formas de organização do
grupo.
Segundo Catarino, tais componentes marcadores de diferença e autoatribuição agregam
identidade étnica e mecanismos de operacionalização de lutas políticas:
As definições podem servir de instrumento de legitimação das posições assumidas no
campo propriamente político, mas, como numa via de mão dupla, a emergência de uma
identidade étnica “remanescente de quilombo”, referida a uma origem comum presumida
de grupos que orientam suas ações pela aplicação do preceito constitucional (artigo 68 do
ADCT), tem igualmente fomentado debates de natureza teórica e metodológica no campo
da antropologia praticada não apenas no Brasil. (O’Dwyer, 2005, p. 95)
No caso das comunidades quilombolas os caracteres são marcados principalmente por uma
origem comum e constituição no processo escravista, na comunidade da Rasa, essa origem comum
se faz fortemente presente nos relatos dos membros do grupo que rememoram uma “grande família”
11
Para Barth além de implicar uma organização do comportamento e das relações sociais, a fronteira étnica “[…] define
o grupo e não o conteúdo cultural por ela delimitado. As fronteiras sobre as quais devemos concentrar nossa atenção
são evidentemente fronteiras sociais, ainda que possam ter contrapartida territorial. Se um grupo mantém sua
identidade quando seus membros interagem com outros, disso decorre a existência de critérios para determinação do
pertencimento, assim como maneiras de assinalar este pertencimento ou exclusão. (Barth, 2000, p. 34)
19
com ascendência escravocrata, que não deixa de constituir-se enquanto comunidade remanescente
de quilombo, por meio de um direcionamento ao passado, mas não aquele passado de uma
historiografia tradicional e sim o de uma memória coletiva que constitui o passado a partir dos
relatos do grupo, cujos membros não deixam de caracterizar elementos significativos, ainda que os
processos de interação desse grupo tenham modificado ao longo do tempo suas formas de
organização, agregando elementos que não possuíam anteriormente.
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao apresentar o panorama histórico e sociológico do contexto no qual o Quilombo da Rasa
está inserido, bem como a perspectiva teórica e também política por meio da qual é possível
alcançar o problema da identidade étnica do grupo, buscamos manifestar alguns elementos do
processo de composição da identidade na Comunidade Quilombola da Rasa. Processo que se traduz
em um movimento contínuo de autoatribuição e reconhecimento que se dá a partir da constituição
de critérios político-organizativos e da ressemantização de sentidos frigorificados.
A memória subterrânea e silenciada de um passado de cativeiro é compartilhada e emerge
junto com laços de solidariedade e valores comuns com os quais se identificam os membros dessa
grande família que é a Rasa. Essa memória se combina a identidade étnica desse grupo com
caracteres muito próprios e é acionada em um contexto de conflitos, mobilizações políticas e lutas
por direitos. Levantamos aqui a necessidade de se observar o presente dessas relações, de como está
se organizando o movimento quilombola na atualidade e como podem ser pensados mecanismos
para operacionalizar as garantias que se traduzem do reconhecimento dessa afirmação étnica.
Por isso a autoatribuição, a definição dos critérios de pertença e de caracteres
diferenciadores por parte do próprio grupo se faz de grande relevância para compreender a Rasa,
que compõe a sua identidade enquanto comunidade quilombola a partir de uma religiosidade na
Igreja Evangélica, reelaborando práticas, tradições e constituindo seus elementos de pertença étnica
com base na religiosidade mesma da Igreja catalisadora da união do grupo.
Esse e tantos outros elementos fazem desse trabalho uma jornada com uma composição
única de significados e lugares de memória, de resistência e luta descarnada nas relações de força
desse fenômeno de múltiplas dimensões que é a Comunidade Remanescente de Quilombo da Rasa.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, Alfredo W. B de. Os Quilombos e as Novas Etnias, Manaus: UEA Edições, 2011;
ARRUTI, José Maurício Andion. Relatório parcial de caracterização da Comunidade Negra das
Terras de Preto Forro. Rio de Janeiro, 2002;
BARTH, Fredrik, O guru, o iniciador e outras variações antropológicas, Rio de Janeiro: Contra
20
Capa Livraria, 2000;
DALMASO, Flávia Freire. Comunidade Quilombola de Botafogo e Caveira: Identidade Étnica e
Posse de Terra. Niterói, 2005;
MELLO, Marcelo Moura. Reminiscências dos quilombos: territórios da memória em uma
comunidade negra rural. São Paulo: Terceiro Nome, 2012;
O’DWYER, Eliane Cantarino. Os Quilombos e a prática profissional dos antropólogos In
O’Dwyer, Eliane Cantarino (org). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro :
Editora FGV, 2002;
_______________________. Os Quilombos e as Fronteiras da antropologia. In Antropolítica
19. Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política. Niterói. 2. sem. 2005;
______________________. Os negros da Rasa: Relatório de identificação sobre a comunidade
negra da Rasa, de acordo com o artigo 68 ADCTCF – CF/1988. Convênio Fundação Cultural
Palmares – Minc – ITERJ;
P. Poutignat & J. Streiff-Fenart (orgs.). Teorias da Identidade. São Paulo, UNESP, 1998;
RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro: narrativa e identidade negra no
antigo Sudeste cafeeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
21
O CICLO DE 2012 E A RESISTÊNCIA CULTURAL, ESPIRITUAL E POLÍTICA DOS
MAIAS CONTEMPORÂNEOS
Thiago José Bezerra Cavalcanti1
RESUMO
Desde os anos 90, o governo da Guatemala viu-se obrigado a acolher cada vez mais as populações
indígenas, ciclo cujo início remonta à "renascença maia" que resgatou e unificou politicamente a
antiga identidade indigena em torno de um objetivo político comum contra a ditadura e a guerra
civil. Graças a isto veio o reconhecimento de uma identidade nacional pluriétnica. Entretanto, 16
anos após a assinatura do acordo de paz, observamos em trabalho etnográfico que, para muitos
indígenas, a identidade maia tem sido bastante deturpada pelo Estado e pela burguesia indígena
aliada a ele, a mesma que constitui uma liderança "maia" forjada. A venda do ciclo de 2012, através
das relações internacionais, como oportunidade turística única “antes do fim do mundo”, coloca em
risco o patrimônio maia material e imaterial, tanto antigo quanto contemporâneo. O objetivo deste
trabalho é apresentar às discussões acadêmicas brasileiras as questões que envolvem politicamente
o ciclo de 2012, os indígenas e o Estado moderno da Guatemala. De que maneira o ciclo de 2012
pode ser realmente importante para a compreensão dos maias de hoje? Almejamos contextualizar
tanto a situação do Estado perante os maias quanto as demandas e denúncias políticas dos indígenas
pela construção de uma democracia amparada na educação e no direito consuetudinários, caminhos
estes trilhados de maneira independente por centenas de organizações indígenas autônomas.
Palavras-chave: maia, maianismo, identidades, política, calendário.
INTRODUÇÃO
Este ensaio tem por objetivo apresentar os estudos maianistas, especialmente no que se refere
ao trabalho de campo etnográfico, e que pode ser interessante para aqueles que estudam calendário,
religião, política e ritual, na medida em que botam o dedo na ferida para tentar tratar sobriamente
todas as coisas relacionadas ao calendário ritual maia, que na verdade é um grande fato social
mesoamericano. Como falo de resistências maias, meu principal interesse desta vez é situar o
contexto político e também urbano, almejando pontuar informações importantes para um etnógrafo.
Falo, aqui, de aspectos que apresentaram-se a mim em minha última viagem à Guatemala, em
janeiro de 2012. Como tenho apreendido cada vez mais, teorias e métodos são aqueles definidos
pelo campo, e não qualquer espécie de antropologia clássica engessada como solução para a
etnografia. Calhou de minha pesquisa estar em grande medida relacionada à dissertação de
1 Graduando em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. Contato: [email protected].
22
mestrado de José Roberto Morales Sic (FLACSO Guatemala), tendo em vista que tal etnografia
reflete e complementa muito do que eu próprio observei em campo. A Guatemala é um lugar
particular a se pensar, por isso apresento a comunicação em forma de ensaio, buscando caminhos
alternativos para organizar esse próprio campo de pesquisas localmente e também suscitar debates
menos academicistas e mais próximos aos nativos, como penso as ciências sociais.
CONHECENDO O CAMPO
Há muita diversidade étnica entre os maias, e isto remonta ao próprio passado. Os maias
nunca constituíram um "império", ao contrário de mexicas e incas. Ocorriam alianças locais,
regionais, trocas e compartilhamento da escrita hieroglífica entre etnias rivais no passado. Contudo,
devemos lembrar que o tronco linguístico maia é muito diversificado, e na Guatemala existem
atualmente 22 línguas, sendo elas (em ordem alfabética):
Achi’
Akateka
Awakateka
Chalchiteka
Ch’orti’
Chuj
Itza’
Ixil
Jakalteka
Kaqchikel
K´iche´
Mam
Mopan
Poqomam
Poqomchi’
Q’anjob’al
Q'eqchi'
Sakapulteka
Sipakapense
Tektiteka
Tz’utujil
Uspanteka
23
Cada língua corresponde a uma etnia ou uma "comunidade linguística", nome que tomou cada
grupo perante a Academia de Lenguas Mayas de Guatemala (ALMG). Existem inúmeros
marcadores de diferença entre as etnias, dentre os quais podemos destacar as técnicas e símbolos
atrelados às vestes - que pode variar mesmo dentro de uma mesma etnia - e adaptações particulares
dos calendários, por exemplo uma data de ano novo diferente.
Tendo em vista que a Guatemala é um país pequeno, situado justamente onde os indígenas
encontraram refúgio para resistir aos invasores espanhois até o século XX, a maioria da população
sempre foi indígena. Atualmente, ainda considera-se que os indígenas são maioria, ao menos
geneticamente, e eles têm bastante peso para a própria construção da identidade nacional
guatemalteca.
Entretanto, os maias do passado têm peso para o governo e a população da Guatemala, já
sobre os de hoje não se poderia dizer o mesmo. Boa parte da população guatemalteca resiste e
contexta qualquer tipo de identidade maia contemporânea, por diversos fatores.
Em primeiro lugar, a identidade maia é uma (re)construção fortalecida especialmente
enquanto uma identidade que unia as etnias ou comunidades linguísticas e propiciava uma
resistência muito mais coesa à ditadura militar naquele país. Contudo, assim como observamos no
Brasil, tão logo a ditadura foi derrubada houve uma grande fragmentação na luta, ou no que se
convencionaria chamar de "esquerda" por ter combatido as forças de repressão do Estado.
Mas na Guatemala a situação seria mais complicada, pois o peso dos indígenas nos processos
históricos recentes faz com que a política não se polarize apenas entre três ou quatro partidos pra
"inglês" ver, como no Brasil, mas sim que se fragmenta tanto entre as diferentes comunidades
linguísticas quanto internamente, a partir do momento em que observamos a emersão de um novo
sujeito que se autoidentifica "maia", e cuja prática política é mais articulada junto ao Estado e ao
capital.
De fato, o acordo de paz de 1996 oficializa o Estado da Guatemala como pluriétnico,
multicultural, etc. Isto, claro, para que se possa legitimar minimamente na prática política, o
respeito ao direito consuetudinário maia e a concessão de espaço e cargos de liderança legitimados
pelo Estado. Torna-se evidente aqui, para mim, um aparelhamento institucional. O Estado
aproximou-se de determinadas lideranças e as legitimou. Como a situação política era e continua
sendo absolutamente fragmentada, encontrei muitas críticas a essas lideranças que, para vários
outros nativos maias, são definidas como um engano, uma conspiração entre o governo e quem se
vendeu para lucrar e folclorizar num mau sentido. Essa é a segunda e forte razão para que o povo
guatemalteco veja todos que se dizem "maias" hoje com descrença, e a institucionalização políticoreligiosa que a segue.
24
DUAS VERTENTES DE POLÍTICA MAIA?
Observei, no mínimo, uma importante dicotomia, dois grupos políticos marcantes entre os
maias atualmente. De um lado, os maias "institucionais", que têm algum tipo de relação com o
Estado, desde os líderes que estão no próprio palácio do governo (Embajada de los pueblos
indígenas de Guatemala) ou que comandam as principais associações de sacerdotes maias, como
são chamados os especialistas em calendário maia. Em algumas dessas instituições, é possível pagar
por uma consulta com uma autoridade espiritual maia, bem como se tornou mais fácil alcançar o
rito de passagem que permite a um estrangeiro ser considerado sacerdote maia no círculo
institucional, com a possibilidade de serem realizadas espécies de "cursos intensivos" com esse fim.
Estes maias das instituições foram considerados por Morales Sic como algo que se poderia
definir a partir da categoria analítica de "nova vertente de ajq'ijab'"2 (FONTE FLACSO p. 83), com
a qual eu não teria razões para discordar até agora. O campo apontou-me conclusões que vão pelo
mesmo caminho.
Do outro lado, aquilo que convém chamar de resistência maia. Com o fim da opressão direta,
da ditadura e da guerra civil, fortes grupos reafirmaram seu compromisso com seus ancestrais. Isto
significou uma virada na história maia recente, pois de fato os maias puderam ser o que eles querem
ser, estando livres a princípio tanto do sincretismo com o catolicismo quanto da opressão militar.
Essa resistência mostra-se preocupada em resguardar a educação maia, com o exercício do
direito consuetudinário num sentido amplo. Isto significa dizer, também, que estão preocupados em
resguardar as categorias nativas associadas à cosmovisão, que é considerada base da educação maia
e ajuda muito na compreensão dos calendários e dos rituais diários que eles marcam. Ao invés de
sacerdotes maias, nesse caso usa-se a categoria nativa: ajq'ij. Tentando traduzir da melhor maneira
tal categoria, pode-se dizer que aj é um prefixo que denota ocupação e q'ij significa "dia" ou "sol".
Ou seja, ajq'ij significa "aquele que se ocupa com os dias", e tal ocupação denota um
profundo estudo e conhecimento para manejar. O que se questiona hoje é justamente até onde a
função social de ajq'ij foi resignificada pelos novos ajq'ijab', isto é, aqueles das instituições que de
fato trouxeram um novo tratamento à função milenar, que antes da invasão era destinada a quem
dominava religião, matemática e astronomia (que, obviamente, neste caso só são necessariamente
três tipos de conhecimento separado a partir de um ponto de vista eurocêntrico e academicista).
Os novos ajq'ijab' parecem ter construído uma identidade maia muito forte, enquanto que os
nativos mantêm suas identidades étnicas e consequentemente seus inúmeros marcadores da
diferença em relação a outras comunidades e outras etnias. Desta maneira, os novos ajq'ijab'
surgem como representantes do maianismo, que poderíamos definir como ideologia político2
Plural de ajq'ij, categoria maia K'iche' que designa o nativo especialista em calendários.
25
religiosa "maia". Essa nova vertente visa tornar mais coesa uma identidade maia de fato, e ao
mesmo tempo em que busca inspirações em tradições fora da rede social indígena - principalmente
as novas tradições new age -, parece querer suprimir as especificidades étnicas e generalizar as
coisas como "maias".
Problemas do campo
A dose de sincretismo e diversidade sempre é lembrada: as lideranças que o Estado legitima
clamam um largo passado dentro de sua tradição familiar, entretanto hoje, aos olhos das outras
tradições que consultei, essa tradição é vista como uma coisa vendida, inventada, manipulada:
sincretizada, aculturada. É fato que alguns indígenas tiveram sempre mais proximidade ao invasor;
prova disto são os próprios textos escritos na Nova Espanha em língua maia readaptada pela adoção
dos símbolos latinos, que terminaram de matar a escrita hieroglífica maia antiga entre os nativos.
Portanto, minha percepção alinha-se aos nativos: os "novos" ajq'ijab' podem ser justamente
aqueles de larga tradição, mas que escolheram um novo caminho, junto ao Estado e outras ideias
new age com as quais muitas tradições não concordam como, por exemplo, dizer que os quatro
precursores dos maias - quatro primeiros homens modelados com perfeição pelos criadores - vieram
de outro planeta. E isto apenas dificulta ainda mais. De fato, as tradições parecem ter tomado
caminhos familiares, justamente pois foi dentro de casa e da família que conseguiu se manter algo
sem que os invasores . Isso implica em muitas tradições diferentes, algumas mais e outras menos
influenciadas pelo pensamento do invasor, outras alinhadas a ideologias new age e nossas
preferidas, aquelas que mantém as categorias nativas nos dias de hoje e estuda as categorias do
passado, além de reviver sua história através do drama e dos rituais em todos os dias do calendário.
A esses, portanto, escolho chamar de nativos, enquanto que aos outros ajq'ijab' sou impelido à
diferenciação pela categoria de "novo", ainda que sua linhagem familiar seja antiga; tal categoria se
sustentaria, nestes casos, a partir da análise de que estas são tradições "novas" na medida em que
sofreram influência new age.
O nativo ou "maia da resistência" pode ser encarado como aquele que articula a resistência do
saber local, que cumpre sua função social e ajuda seu povo a caminhar resistindo às imposições da
globalização e do Estado. Este é o ajq'ij que os maias aprenderam a construir ainda mais a partir da
invasão europeia.
Entretanto, no passado o ajq'ij foi o "assistente" dos governantes maias, como nos mostra uma
importante fonte nativa da Asociación Maya Uk'u'x B'e3. São (algumas) (d)elas (UK'U'X B'E,
3
Uk'u'x B'e significa "Caminho do Coração" em língua maia K'iche'. É interessante observar o simbolismo associado ao
coração na cosmovisão não apenas maia mas mesoamericana. O coração é a fonte da racionalidade, e não o cérebro.
Como se os pensamentos mais puros e filosóficos idealizados por Platão viessem do coração. O caminho do coração é,
portanto, o caminho da razão, da verdade daquilo que se vive enquanto maia.
26
2010):
- Conhecer os elementos rituais
- Exercer a leitura do tz'ité,4 dos ossos e das conchas
- Realizar as oferendas em sinal de reciprocidade com a mãe terra
- Interpretar as mensagens dos astros (sem separar da astronomia)
- Conhecer, retificar, controlar e sustentar os cálculos do tempo
- Escrever e ensinar
Pois bem. A penúltima dessas parece ser a única notoriamente observada nos dias de hoje
entre os ajq'ijab'. Talvez seja algo que defina bem boa parte das tradições dos "novos" ajq'ijab'. As
leituras tornaram-se mais reproduzidas na medida em que a institucionalização do saber através de
livros também influencia a todos, na medida em que essa institucionalização alcança a condição de
um aparelhamento da educação.
Entretanto, a resistência maia também é muito ativa. No livro Aportes a la reconstrucción del
liderazgo mayab', a Uk'u'x B'e deu uma aula, uma legítima contribuição ao que se propõe: o resgate
do passado e a manutenção do presente maia. Neste livro, torna-se clara a posição política da
associação como muito mais alinhada à resistência cultural, espiritual e política maia. Existem
muitas outras produções autônomas parecidas e diferentes (interessadas mais em aspectos rituais, ou
educacionais) e que podem ser analisadas sob o caráter do que é a demanda por autonomia que
auxilia o entendimento da própria categoria analítica de "resistência maia". Há uma crítica nativa ao
Estado, alinhada ao propósito de contextualização deste ensaio.
Isto significa dizer que existem instituições que se posicionam politicamente de um lado ou de
outro, não apenas junto ao Estado. Na verdade, os maias são tão fortes pois conseguiram construir,
através de suas comunidades desde antes do massacre militar redes de educação local. Por isso, a
Guatemala teve também de regulamentar a educação. E em relação a isto, tenho críticas que não
cabem, mas mereceriam mais atenção em outro ensaio. Basta dizer que isto engessa a diversidade
que existe hoje na Guatemala. Além disso, o interesse do Estado é introduzir o ensino do espanhol
nas comunidades campesinas, num país que para além da capital pouco tem de urbano. Não por
acaso, é justamente nessas comunidades que resistem as culturas nativas e, portanto, é interesse do
Estado estar lá.
A elaboração e a execução da lei de idiomas maias da Guatemala recebem críticas e mais
críticas que, sendo proferidas por aqueles que romperam com o Estado e os novos - ou históricos 4
Tipo de feijão através do qual é estabelecida uma comunicação com os ancestrais. Ao invés de comido, tal feijão é
sagrado e "lido" de maneira semelhante aos búzios.
27
sincretismos, só podem ser conhecidas pelo pesquisador no campo ou através de redes
independentes, tendo em vista que, em pleno 2012, tudo isso continua sendo ignorado pelas grandes
mídias na medida em que é ignorado pelo Estado e o capital, aliado ao interesse popular meramente
superficial sobre os maias do passado e a ignorância quase completa acerca dos maias do presente.
Os maias da resistência acreditam, de fato, que o Estado executa uma série de medidas que
aceleram a aculturação do povo, duros e frequentes golpes de Estado que vão no caminho oposto ao
que a Guatemala deveria ser: sem preconceito, sem exploração dos patrimônios maias. Até hoje, a
identidade nacional guatemalteca mostrou-se um grande negócio para lucrar-se com turismo: sítios
arqueológicos belíssimos e os novos sacerdotes maias em "consultórios" na capital dando
exatamente a curiosidade que o turista (e o leigo) tem pelo calendário maia e as pirâmides.
Chega de opressão da mídia, das identidades maias. As tradições estão sendo mostradas, mas
correm o risco de cair na armadilha de institucionalizar-se, de abandonar (como já acontece em
alguns casos) as tradições orais em nome de botá-las no papel e protegê-las das manipulações da
oralidade. Há também o problema de que há associações de sacerdotes maias desejosas, ainda hoje,
de uma unificação calendárica ampla, que sirva para ajudar a unificar a própria identidade maia em
mais um aspecto e celebração ritual. O problema com isto é que determinadas tradições
calendáricas (K'iche' e Kaqchikel) seriam adotadas por outras etnias de maneira aconstruir um "ano
novo maia" unificado.
A meu ver este é um dos mais perigosos sincretismos, e que também ser propagada através da
imposição de uma escrita e o consequente abandono da tradição e da liberdade do ajq'ij. e
manutenção da diversidade das tradições familiares.
CATEGORIAS NATIVAS?
As categorias de pensamento nativas são grande interesse meu. Seu uso embasa também a
ideia de uma dicotomia política em torno da identidade maia nos dias de hoje. Enquanto a
resistência maia preserva as categorias de pensamento, as instituições introduzem novas categorias
no trato com a cultura maia enquanto algo unificado. Entretanto, tratam-se de categorias novas
nesse contexto. Nesse contexto, as categorias maias, nas instituições, são substituídos por categorias
mais populares e em espanhol. Um exemplo é uwach q'ij (rosto do seu dia), categoria K'iche' que
designa o dia do seu nascimento no calendário ritual. No caso da Asociación de Sacerdotes Mayas
de Guatemala, a categoria "signo", muito mais vulgarizada no "imaginário ocidental" e que esconde
o rosto do dia, a identidade do calendário maia.
As instituições podem, dessa maneira, fabricar categorias nativas; isto facilita o entendimento
superficial - chamar, por exemplo, o dia de nascimento no calendário maia de "signo" - mas, por
outro lado, se distancia do conhecimento nativo e se aproxima dos horóscopos mais vulgarizados, o
28
que reflete no mínimo uma influência eurocêntrica e que mostra-se bastante persuasiva junto aos
turistas e curiosos que já fazem uma imagem bastante mística dos maias.
Em último caso, a aculturação do nativo também pode impelir à tentação, de que o próprio
elabore alguma resignificação de categorias analíticas da língua espanhola enquanto categorias
nativas, pois isto significa um resgate, ainda que sincretizado. É bom destacar que é o próprio
nativo quem fala em aculturação. Há etnocentrismo não apenas aí, por parte de quem está na
resistência, quer manter a tradição e acusa o outro lado de ter sofrido uma aculturação, mas mais
ainda neste outro lado, dos novos ajq'ijab', que ainda tentam articular uma "unificação" dos maias
via calendários unificados. Isto parece-me outra falácia, e a lista de práticas que tentam suprimir as
particularidades étnicas seria muito maior.
Outra questão é aquela já levantada por Morales Sic: estamos tratando de uma nova vertente
de ajq'ijab'. Em alguns casos, talvez até mesmo a maioria deles, cada ajq'ij essa nova vertente
representa também uma nova tradição, alheia à resistência maia e alinhada ao maianismo (ideologia
político-religiosa que sincretiza new age e maia), mas em outros casos estamos falando de uma
antiga tradição que é resignificada e, em dado momento, as próprias funções sociais do ajq'ij são de
fato revistas e aplicadas de novas maneiras que sabem se inserir melhor no mundo globalizado.
O CICLO DE 2012
O tão falado "ciclo de 2012" maia é oriundo da conta longa. A conta longa, por sua vez, é uma
adaptação da matemática à contagem de tempo que, literalmente, possibilita a contagem de ciclos
infinitos. Portanto, o ciclo de 2012 não teria, de forma alguma, como corresponder a qualquer ideia
de fim do mundo ou do calendário no pensamento maia. O ciclo que estaria se encerrando em 2012
é composto por 13 ciclos pik (popularmente, b'aktun), cada um deles equivalente a 144.000 dias, o
que totaliza 1.872.000 dias. Existem ciclos muito maiores do que este, mas este é especial por uma
razão: é o período que demora para que o fim de um pik volte a coincidir com um mesmo dia do
ciclo ritual (260 dias).
Aquilo que é muito pouco comentado pelos acadêmicos e que é o maior problema da conta
longa é o seguinte: ao que tudo indica, a conta longa caiu em desuso a partir da virada do primeiro
milênio EC (Era Comum) e teria sido de fato perdida em algum momento antes ou depois da
invasão espanhola.
Isto significa que a conta longa foi resgatada por acadêmicos e, sendo assim, a ideia de que o
tal ciclo termina em 2012 é apenas uma entre dezenas de teorias. Não por acaso é a teoria "mais
aceita", pois está em acordo com a conta do ciclo de 260 dias mantida na Guatemala nos dias de
hoje.
De alguma maneira que ainda ignoro, essa teoria se popularizou de tal maneira que até os
29
maias contemporâneos a legitimaram. Suspeito que o Estado e a burguesia indígena tenham
participado efetivamente dessa legitimação, tendo em vista que são os que mais lucram com o
"produto 2012" nos dias de hoje.
Os ajq'ijab' que se mostram comprometidos com o resgate da cultura maia se sentem
obrigados a reconhecer: eles não mantiveram a conta longa. Mas um ciclo grande desses é
simbólico também para a resistência maia: apesar dos pesares, mesmo sendo o ciclo de 2012 algo
fabricado, é também significado como uma espécie de libertação da cultura maia. Existem nativos
que têm significado tal ciclo como o fim do escárnio; após o mundo não acabar, finalmente os
maias terão paz e poderão vislumbrar quão sólida é sua base e sua resistência e quão promissor
pode ser seu futuro.
Isto significa dizer que, de fato, não há qualquer certeza sólida, sob o ponto de vista do
pesquisador maianista independente, de que o ciclo termine em dezembro de 2012. Mais: significa
dizer que a teoria foi naturalizada tanto por acadêmicos quanto por maias, com apoio dos Estados
nacionais que, às portas do ciclo politicamente fabricado, exploram ao máximo a identidade maia
como algo inerente às suas identidades nacionais, questão demasiado polêmica no que se refere à
gerência dos patrimônios dos chamados povos originários, construídos tanto antes quanto após o
estabelecimento de tais Estados.
DUAS INSTITUIÇÕES MAIAS LIGADAS AO ESTADO
Dois breves estudos de caso - duas das mais fortes instituições.
Asociación de Sacerdotes Mayas de Guatemala (ASMG)
Conheci o atual presidente em janeiro, na sede da associação. Há uma pedreira lá, usada com
fins ritualísticos há gerações. Contudo, o sincretismo com o catolicismo é evidente. Na pessoa de
seu presidente, deixou-me a impressão mais apelativa no sentido da unificação do calendário em
torno do ano novo K'iche'.
Fui recebido em seu "consultório". Ele negou alteridade ao termo nawal - meio termo entre
uwach q'ij e signo, a categoria mais usada hoje na Guatemala e de origem náhuatl (mexicana).
Defendeu a categoria signo e mostrou-se bastante persuasivo em suas explicações - ao menos foi
como o vi desde meu ponto de vista como especialista em calendários maias. Existem muitos
produtos, livros interessantes e até bandeiras da associação à venda. Dentre as instituições que
visitei, pareceu-me a mais "aparelhada" das associações para um lado mais capitalista, turístico,
folclórico em um sentido esotérico, que mais abrange a atuação do maianismo.
Oxlajuj Ajpop
Associação civil que engloba várias organizações de ajq'ijab'. Fui recebido por seu ancião
30
principal, que defendeu uma tradição que eu desconhecia: ano novo fixo em 21 de dezembro e o
"ciclo de 2012" se encerrando em 21 de dezembro de 2012. Meu informante (que me levou até lá)
concordou que a posição do ancião era demasiado etnocêntrica, pois ofendia a tradição do ano novo
K'iche', como sendo algo fabricado pelos antropólogos. Ele parece ter seu fundo de razão, graças à
instituição da "nova" tradição de unificação, defendida pela própria ASMG, e que ao que tudo tem
indicado é de unificação "maia" enquanto reprodução de determinadas tradições K'iche' e
Kaqchikel.
O ancião principal da Oxlajuj Ajpop mesclou elementos mexicas (astecas) em suas
explicações sobre o calendário, o que facilmente se observa enquanto sincretismo dentro da
Mesoamérica. O ciclo de 260 dias é constitutivo da Mesoamérica enquanto região cultural, o que
implica no fato de que centenas de etnias usaram (e dezenas ainda vivem) este calendário ritual de
260 dias.
CONCLUSÕES
Até o momento temos desenhado um quadro muito diverso, um verdadeiro campo minado
que se apresenta tomando em conta o aspecto político-religioso que interfere diretamente no estudo
linguístico das tradições e suas categorias nativas rituais e políticas, que caem em desuso graças a
novas tradições e categorias que aproximam-se mais do pensamento ocidental.
Ao mesmo tempo existem instituições burguesas e nativas disputando o mesmo espaço estatal
maia. Aqueles que chamo de maias da resistência também estão em todos os espaços, incluindo o
próprio palácio do governo da Guatemala, onde também estive.
O governo, naquela oportunidade, promoveu uma palestra que, para mim e os outros ajq'ijab'
que conhecia na plateia, foi absolutamente desrespeitosa às tradições maias, pois falava que os
maias antigos "sabiam" das teorias de mudança de DNA e da ressonância Schumman, ambos
combustíveis de crenças do maianismo, isto é, de movimentos da nova era.
Os antropólogos precisam correr para lá e entender melhor tudo isso. Os nativos já fazem
trabalho de antropólogo às escuras, para salvar a documentação dos rituais que ainda resistem aos
dias de hoje e que não sabemos se de fato continuará pela próxima geração, tendo em vista que a
identidade maia é cada vez mais popularizada e o patrimônio socializado nacionalmente, na mesma
medida em que os jovens são cada vez mais atraídos justamente por aquilo que traz o capital e o
Estado, e passam a esconder de si próprios a língua materna.
Não que os nativos não possam ser antropólogos. Eu escrevi aqui, também, como nativo. Não
diria nada que achasse que um nativo não gostaria. Mas os antropólogos podem justamente ajudar,
dessa maneira, enquanto espelhos da alteridade, que observam situações político-religiosas que
também prejudicam seu campo, tornam-no às vezes impraticável enquanto estudo das categorias em
31
línguas indígenas.
CATEGORIAS NATIVAS DE INVESTIGAÇÃO
Um método descrito de investigação nativa maia (Uk'u'x B'e, 2010) tem ênfase em 10
princípios:
Namay
Perceber, pensar, compreender a vida dos elementos do universo e suas diferentes formas de
existência, para permitir uma interação equilibrada com eles.
Oj Mayib'
Reafirmação e aprovação da identidade coletiva e histórica maia; propicia o resurgimento da
nossa raiz, história e de nossa afirmação enquanto seres cosmogônicos.
Xukulem
Princípio de reciprocidade, espaço para a reflexão e análise do entorno, tratando de entender o
comportamento dos seres humanos, da mãe natureza e do cosmos.
Jun May
Reconhecer as qualidades de cada um dos seres do cosmos e as potencialidades que eles têm,
para fortalecer o trabalho coletivo.
Jotay
O sentigo inter-geracional.
Utz' Tzij
É a língua ou o discurso, e nos recorda a importância de todas as línguas e o valor da palavra.
Aj Mayon
Pensar grande e coletivamente através do tempo, entre os elementos do cosmos.
Mayonik
A ação de reflexão e concentração, a busca de respostas e compreensão do desenvolvimento
do tempo e da força ou energia que tem a mãe natureza e o cosmos.
32
Tz'onoj
É a recuperação de conhecimento, entendido e compreendido como um processo recíproco no
qual todas as partes dão e recebem conselhos.
Pixab'
Reconhecimento metodológico: todo o proposto deverá passar por um processo de
comprovação e validação, desde a perspectiva dos valores e princípios para crescer constantamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAVALCANTI, Thiago José Bezerra. Calendário maia, ciclo de 2012 e nova era. Niterói:
Edição do autor, 2012. Disponível em: www.calendariosagrado.org/pt.
Morales Sic, José Roberto.
espiritualidad en el Movimiento Maya Guatemalteco. Guatemala: FLACSO, 2004.
UK'U'X B'E, Asociación Maya. Aportes a la Reconstrucción del Ligerazgo Mayab'.
Chimaltenango: Uk'u'x B'e, 2010.
33
POLITIZAÇÃO NA JUSTIÇA DE CÚPULA: UMA ANÁLISE ACERCA DOS CONFLITOS
INSTITUCIONAIS NA FORMAÇÃO DE LISTAS PARA A COMPOSIÇÃO DO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Alexia Soares Cunha1
Marcos Felipe Alves2
Tauat Resende3
Orientador: Delton R. S. Meirelles4
RESUMO
Este artigo possui como fim analisar os conflitos institucionais existentes no processamento das
listas sêxtuplas e tríplices para preenchimento de vagas de ministro no Superior Tribunal de Justiça,
por meio do instituto do quinto constitucional. Para tal, será feito um estudo de um caso ocorrido
em 2008/2009, ocasião em que o STJ se negou a elaborar lista tríplice a partir dos seis nomes
indicados pelo Conselho Federal da OAB para preenchimento de vaga naquela Corte. Tal fato gerou
controvérsias e debates acerca dos limites de atuação de cada Poder, objeto que será estudado neste
trabalho.
Palavras-chave: Conflitos institucionais, lista tríplice, investidura de magistrados.
INTRODUÇÃO
O tema da investidura dos magistrados é um dos mais relevantes quando se discute o
Sistema de Justiça gerando, por vezes, controvérsias e debates acerca da nomeação dos magistrados
num ambiente democrático. Nesse âmbito, o instituto do quinto constitucional constitui um rico
objeto de análise, vez que figura como exceção à regra do ingresso no Poder Judiciário via concurso
público e engloba em sua dinâmica um processo político que envolve diversas instituições. O
presente artigo tem como objetivo analisar o procedimento constitucional de escolha dos ministros
do Superior Tribunal de Justiça oriundos do chamado ‘terço constitucional’, verificando a
possibilidade de conflitos institucionais durante o processamento das listas pelas entidades de
1
Bacharelanda em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do LAFEP/UFF.
([email protected])
2
Bacharelando em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do LAFEP/UFF. Monitor da disciplina
Teoria Geral do Processo. ([email protected])
3
Bacharelando em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do LAFEP/UFF.
([email protected])
4
Coordenador de graduação e professor adjunto do Departamento de Direito Processual da Universidade Federal
Fluminense (SPP/UFF) e do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF).
Coordenador do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (LAFEP/UFF). Doutor em Direito (UERJ).
([email protected])
34
classe, Judiciário, Senado Federal e Presidência da República. Como o art. 94 c/c art. 104 da
Constituição Federal estabelecem critérios para a composição das listas pelo Ministério Público e
pela Ordem dos Advogados do Brasil, questiona-se a competência do Superior Tribunal de Justiça
para se recusar a formar a lista tríplice, sob o fundamento regimental da ausência de maioria
absoluta de votos, ainda que os candidatos indicados pela entidade de classe apresentem os
requisitos objetivos do art. 94 da Constituição. Os principais questionamentos são:
1) Seria legítimo ao Superior Tribunal de Justiça utilizar-se de desembargadores
convocados, sem passar pelo procedimento previsto na Constituição Federal, enquanto perdurar o
conflito com a OAB ?
2) Seria possível ao STJ recusar-se a elaborar a lista tríplice ? Enquanto permanecer o
impasse entre OAB e STJ, este poderá compor lista tríplice de provenientes do Ministério Público,
tendo em vista o desequilíbrio entre ministros oriundos do Parquet e da advocacia?
3) Pode, ainda, o STJ funcionar com quatro Ministros a menos enquanto o conflito não é
formalmente resolvido?
METODOLOGIA
A investigação tomará por base o estudo de caso ocorrido entre o ano de 2008 e 2009,
ocasião em que o Pleno do Superior Tribunal de Justiça, em reunião realizada no dia 12 de fevereiro
de 2008, rejeitou a lista de indicações da Ordem dos Advogados do Brasil para preenchimento de
vaga aberta no ano passado pela aposentadoria do Ministro Antônio de Pádua Ribeiro (19/09/2008).
Segundo a Corte, nenhum dos indicados alcançou a maioria absoluta dos votos dos ministros do
Tribunal nos três escrutínios realizados. A referida lista sêxtupla era composta pelos seguintes
advogados: Roberto Gonçalves de Freitas Filho (PI), Flávio Cheim Jorge (ES), Marcelo Lavocat
Galvão (DF), Orlando Maluf Haddad (SP), Cezar Roberto Bittencourt (RS) e Bruno Espiñeira
Lemos (BA).
Foram computados, segundo a ata da reunião, em primeiro escrutínio, 84 votos, sendo 44
em branco e 40 válidos, assim distribuídos: Flávio Cheim Jorge, 9 votos; Cezar Roberto Bitencourt,
8 votos; Orlando Maluf Haddad, 6 votos; Roberto Gonçalves Freitas Filho, 6 votos; Bruno
Espiñeira Lemos, 6 votos; Marcelo Lavocat Galvão, 5 votos.
No segundo escrutínio foram computados 84 votos, 48 em branco e 36 válidos, restaram
assim distribuídos: Flávio Cheim Jorge, 9 votos; Cezar Roberto Bitencourt, 7 votos; Orlando Maluf
Haddad, 6 votos; Marcelo Lavocat Galvão, 5 votos; Bruno Espiñeira Lemos, 5 votos; Roberto
Gonçalves Freitas Filho, 4 votos.
No terceiro escrutínio foram computados 84 votos, sendo 59 em branco e 25 válidos,
assim distribuídos: Flávio Cheim Jorge, 7 votos; Cezar Roberto Bitencourt, 5 votos; Marcelo
35
Lavocat Galvão, 4 votos; Bruno Espiñeira Lemos, 4 votos; Roberto Gonçalves Freitas Filho, 3
votos; Orlando Maluf Haddad, 2 votos.
Nas três votações, o candidato mais votado, Flávio Cheim Jorge, do Espírito Santo,
recebeu apenas nove indicações no segundo escrutínio. Para ser indicado, o candidato precisa ter
pelo menos 17 votos5. Em resposta à rejeição da lista, a OAB impetrou mandado de segurança no
próprio STJ, tendo, no entanto, seu pedido rejeitado. Dessa decisão, a entidade recorreu ao Supremo
Tribunal Federal, alegando ilegalidade e descumprimento de deveres constitucionalmente
conferidos ao STJ. Além disso, inconformada com o citado ato, a OAB deixou de encaminhar outra
lista sêxtupla, referente à vaga destinada à categoria dos advogados decorrente da aposentadoria do
ministro Humberto Gomes de Barros.
O caso começou a ser julgado pela 2ª Turma do Supremo no dia 23 de junho de 2009 e
culminou com a decisão6, no dia 06 de outubro do mesmo ano, pelo reconhecimento do direito do
Superior Tribunal de Justiça de recusar lista sêxtupla encaminhada pela Ordem dos Advogados do
Brasil para preenchimento de vaga de Ministro do chamado terço constitucional da composição
daquela Corte que cabe à categoria dos advogados. Faremos, portanto, uma análise dos argumentos
jurídicos utilizados pela OAB, STJ e STF para a defesa de seus respectivos entendimentos a
respeito da causa em questão.
DISCUSSÃO
I. Das Formas de investidura no Poder Judiciário Brasileiro
O Poder Judiciário no Brasil sustenta, basicamente, quatro diferentes formas de investidura
para seus magistrados. São elas: (i) o concurso público; (ii) a promoção de juízes, decorrente de
uma estrutura judiciária verticalizada; (iii) a elaboração de listas para preenchimento de um quinto
das vagas nos tribunais colegiados de membros oriundos do Ministério Público e da Advocacia e a
nomeação política, feita por parte do Presidente da República e Governador do respectivo Estado.
Fruto da ideologia democrática sustentada pela Constituição Federal de 1988, o concurso público é,
notadamente, a forma de investidura mais representativa de nosso Sistema de Justiça. Fundado no
princípio da isonomia formal, o concurso público de provas e títulos7 para a magistratura privilegia
o conhecimento técnico-jurídico, o que se reflete nas diversas etapas do exame, de caráter escrito e
oral. Para os aprovados, e consagrando o valor fundamental da independência do Judiciário, são
5
Regimento Interno do STJ. Art. 26, § 5º: “Somente constará de lista tríplice o candidato que obtiver, em primeiro ou
subseqüente escrutínio, a maioria absoluta dos votos dos membros do Tribunal, observado o disposto no artigo 27, §
3º”.
6
STF. RMS 27920 / DF, Relator(a): Min. EROS GRAU, Julgamento: 06/10/2009.
7
CF, art. 93, I “Ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas
e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito,
no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação”
36
asseguradas as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios 8, bem
como a prerrogativa constitucional de promoção de entrância para entrância, alternadamente, por
antiguidade e merecimento9. No que toca à aferição do merecimento, cabe salientar que a Carta
Magna estabeleceu critérios objetivos para tal, como a produtividade, frequência e aproveitamento
em cursos oficiais, de forma a reduzir ao máximo a subjetividade de tal decisão.
A “carreirização” no modelo jurisdicional brasileiro encontra-se apenas atenuada mediante a
incorporação lateral de um quinto dos juízes que devem ser oriundos, nos TRF’s, Tribunais dos
Estados e do Distrito Federal e Territórios, de membros do Ministério Público e da advocacia, com
mais de 10 anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de
representação das respectivas classes10. Não obstante o art. 94 só faça menção aos tribunais acima
mencionados, a regra do “quinto constitucional” é estendida, também, para os tribunais do
trabalho11. Exclui-se deste mecanismo, contudo, a Justiça Eleitoral e Militar. Para o Superior
Tribunal de Justiça (art. 104, parágrafo único), a regra se opera de maneira semelhante, com a
ressalva de que não se trata de “quinto” (1/5), pois neste Tribunal amplia-se a reserva de vagas do
MP e OAB a 1/3 das cadeiras. O procedimento se opera da seguinte maneira: os órgãos
representativos da classe dos advogados e Ministério Público12 elaboram lista sêxtupla, ou seja, lista
com 6 nomes que preencham os requisitos constitucionais exigidos no art. 94. Recebidas as
indicações, o tribunal para o qual foram indicados elabora lista tríplice a partir da lista sêxtupla
recebida. Nos 20 dias subsequentes, o Chefe do Executivo (Governador de Estado ou Presidente da
República, a depender do caso) escolherá 1 dos 3 nomes para a nomeação. Nos Tribunais
Superiores (STJ e TST), entretanto, antes de ocorrer a nomeação por parte do Executivo, os
nomeados precisam passar por um período de sabatina no Senado Federal (que não participa do
processo de escolha). O Supremo Tribunal Federal é a única Corte que sustenta a designação
unicamente política de seus membros, ou seja, seus componentes são nomeados diretamente pelo
Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.
8
CF, art. 95; I, II e III.
CF, art. 93, II
10
CF, art. 94 “Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito
Federal e Territórios será composto de membros, do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de
advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional,
indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes.
11
“Com a promulgação da Emenda Constitucional n .45/2004, deu-se a extensão, aos tribunais do trabalho da regra
‘q
’
94
C
F
.” (ADI 3.490, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 19.12.2005, DJ de
07.04.2006)
12
Na classe dos advogados, a indicação dos nomes para a lista sêxtupla cabe ao Conselho Federal e Conselhos
Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, conforme o art. 51 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e
da OAB. Quanto à classe dos membros do MP, tal escolha cabe, em âmbito estadual (para o TJ do Estado), ao Conselho
Superior do MP( art. 15,I, lei n. 8625/93) e, no âmbito do MP da União, ao Colégio de Procuradores (arts. 53, II; 94, III;
e 162, III da LC 75/93).
9
37
Ainda assim, a Carta Magna estabelece requisitos necessários para tal escolha, delimitados pelo seu
art. 10113.
II. Dos modelos estruturais caracterizadores do Poder Judiciário
Para enriquecer esta discussão acerca do tema investidura dos magistrados no sistema
brasileiro, traremos à baila a classificação proposta por Eugênio Raúl Zaffaroni, em sua obra “Poder
Judiciário: crises, acertos e desacertos”. Segundo a concepção do autor, existem três modelos
estruturais, em torno dos quais pode ser constituído o Poder Judiciário. São eles:
1) Modelo Empírico-Primitivo :
Marcadamente arbitrário, este modelo é marcado pelo domínio do Judiciário pelo poder
político, ou seja, a estruturação vertical do Judiciário com a hierarquização dos juízes das instâncias
inferiores em relação aos juízes das instâncias superiores e destes em relação às autoridades
político-administrativas. Segundo o autor, fica claro que se opera, neste caso, um sistema de
reciprocidade que desfavorece a imagem do Judiciário, tornando-o frágil, ineficaz e pouco atuante:
a nomeação de um juiz pelo poder político faz com que o mesmo seja devedor de favores àquele
que o nomeou. Desta forma, quem exerce o poder político pode controlar o Poder Judiciário, através
da concentração de poder decisório nos órgãos de cúpula. Nas palavras de ZAFFARONI (1994, p.
119):
(...) acentuou-se a tendência de aumentar e centralizar ainda mais o poder das cúpulas, quer
dizer, de verticalizar mais a estrutura judiciária para melhor controlá-la. (...) O resultado
foram cúpulas hierarquizadas fortes e politicamente fracas, como quiseram os executivos.
É o tipo estrutural básico, adotado nos países latino-americanos que apresentam notável
similitude estrutural na concepção de seus modelos judiciais. O Brasil, entretanto, rompeu com este
modelo desde o Estado Novo, adotando o modelo tecno-burocrático.
2) Modelo tecno-burocrático
Este modelo representa um notório avanço sobre os empíricos, sendo seu passo superior,
ainda que muito formalizado. Possui como principal característica a seleção técnica “forte”, ou seja,
sua rigorosa seleção para o ingresso nos quadros da magistratura, privilegiando o conhecimento
técnico por intermédio da instituição de concursos públicos, forma reconhecida de democratização
do acesso às vagas. As vicissitudes deste modelo são a ausência de função política e social da
magistratura, que se limite a um papel unicamente técnico, a figura do juiz “asséptico”, a tendência
13
CF, art. 101 “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onzes ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de
m
,
áv
b j
çã
b
.”
38
à burocratização carreirística, o controle de constitucionalidade com baixo nível de incidência, entre
outros. Diz o autor:
Não é o concurso que provoca os inconvenientes que teremos neste modelo, senão que o
concurso não é acompanhado das reformas democráticas que se devem produzir para dar
sequencia a uma estrutura judicial de modelo democrático-contemporâneo. (Ibidem, p.141)
Em comparação com os demais modelos judiciários latino-americanos, o modelo brasileiro
é o mais avançado da região, sendo praticamente o único que não corresponde à estrutura empíricoprimitiva, sendo um verdadeiro modelo tecno-burocrático, ao garantir o nível técnico de seus
membros por meio do concurso público. Como indica o autor:
Como se pode ver, trata-se de um sistema em que a qualidade técnica de seus membros é
assegurada por concurso, cujo governo é vertical, exercido por um corpo ao qual dois terços
de seus integrantes chegam por promoção e cuja principal função técnica é a unificação
jurisprudencial, com amplas garantias de inamovibilidade. (Ibidem, p.125)
3) Modelo democrático-contemporâneo
Fruto das transformações políticas e sociais da Europa pós-guerra, este modelo conserva a
seleção técnica do anterior, mediante um melhor controle do processo seletivo. No entanto, diminuise a tendência de se atuar por inércia, sendo seu juiz de um perfil técnico politizado.
Este modelo prega a horizontalização do Poder Judiciário, reduzindo sua hierarquia
interna, sendo a chave disto a transferência do poder de controle interno para um órgão externo de
controle. Tudo isto é chave para um magistrado mais politizado e menos preso ao formalismo.
Avesso aos sistemas de promoções por “outras vias”, propõe que “os concursos abertos em
todas as instâncias são a melhor garantia de imparcialidade e transparência democrática”. No
âmbito da magistratura, incentiva o investimento produtivo racional, tendo como resultado a
elevação da cultura jurídica para um patamar mais dinâmico. Característica marcante desta proposta
de modelo se encontra nos seguinte fragmentos:
A horizontalização permite ao juiz decidir sem se ater a critérios ou simpatias, antipatias,
preferências, gostos ou arbitrariedades dos tribunais de segunda instância ou de cassação
(...) A superação da imagem “asséptica” do juiz permite uma redefinição de sua identidade,
que lhe concede maior liberdade para participar em atividades sociais e culturais, o que
ajudará a sua “desguetização”, fazendo-o um partícipe mais cheio de vida social e cidadã.”
(p.185)
Zaffaroni ainda salienta que:
O Estado de Direito será fortalecido com a tendência da forma constitucional. Na medida
em que esta estrutura seja real e não se reduza a uma planificação constitucional
desvirtuada por vícios instrumentais, a característica geral não pode ser outra que a de uma
democracia. (p.104)
Vemos, portanto, que este modelo se calca na legalidade, afastando as arbitrariedades
políticas dos processos de nomeação e estabelecendo critérios de forma clara e objetiva para a
concretização de uma magistratura independente e democratizada.
39
III. Aspectos relativos ao quinto constitucional
O ingresso na magistratura pela via do concurso público de provas e títulos, na forma do
artigo 93, I, da Magna Carta, exige que o profissional dedique-se exclusivamente aos estudos,
distanciando-se da realidade social. Ainda que haja o requisito da prática jurídica, os magistrados
ingressantes na carreira como juízes substitutos tendem a conviver tão somente com colegas que
desempenhem a mesma função, ocasionando o distanciamento do cidadão comum, adstringindo-se
à aplicação de uma justiça não condizente com a realidade social (RODRIGUES, 2008, p. 28).
Nesse panorama, o quinto constitucional consiste em inovação exclusivamente brasileira,
com vistas à “oxigenação” da magistratura dos tribunais de segundo grau e superiores. A inovação
data da Constituição de 1934, que prelecionava:
Art. 104, § 6º. Na composição dos tribunais superiores serão reservados lugares,
correspondentes a um quinto do número total, para que sejam preenchidos por advogados,
ou membros do Ministério Público, de notório merecimento e reputação ilibada, escolhidos
em lista tríplice, organizada na forma do § 3º.
Contudo, antes da previsão constitucional, a oxigenação necessária aos tribunais já era
suscitada na doutrina, dentre os quais merece destaque LA GRASSERIE, ao afirmar que: “a
magistratura é um corpo fechado, enrijecida pela falta de ar e de luz, condenada a uma verdadeira
necrose” (LA GRASSIRIE, 1912 apud MARTINS, 2005, p. 4).
A metodologia adotada no quinto constitucional brasileiro mescla dois grandes princípios
de sistemas de investidura de magistrados: a carreira funcional e o velho método inglês de
aproveitamento dos advogados para a magistratura (DE BARROS, 2008, p. 31). Na prática, a
ascensão aos tribunais de advogados e promotores de vasta experiência satisfaz à necessidade de
serem apontadas as falhas dos tribunais por aqueles que acompanham de perto o seu
funcionamento, fiscalizando, incidentalmente, as instituições judiciárias e colaborando à efetivação
da democratização (BOMFIM, 2008, p. 34).
No aspecto principiológico, pode-se afirmar que o quinto constitucional atende, ainda, à
concretização do Estado democrático de direito, tendo em vista que os componentes do Poder
Judiciário são submetidos à avaliação do povo, através de seus representantes eleitos diretamente
(MARTINS, 2005, p. 4), seja na forma da “sabatina”, no qual o candidato designado aos tribunais
superiores é submetido ao crivo do Poder Legislativo, seja na escolha final pelo chefe do Poder
Executivo.
IV. Das peculiaridades procedimentais do “terço” no Superior Tribunal de Justiça
Como já mencionado, o instituto do quinto constitucional é estendido ao STJ, como forma
de concretizar os objetivos citados no tópico acima. Há, no entanto, apenas uma alteração
matemática. Isso porque 1/3 das vagas são destinadas à Advocacia (1/6) e ao Ministério Público
40
(1/6) e não 1/5, como nos demais Tribunais.
No mais, de acordo com seu regimento interno14, a votação da lista tríplice deve ocorrer
com a condição de os candidatos cumprirem os requisitos constitucionais e obtiverem obtiver, em
primeiro ou subsequente escrutínio, a maioria absoluta dos votos dos membros do Tribunal. Frisase, ainda, que a votação deve possuir caráter secreto e que a escolha dos nomes a constar na lista
tríplice far-se-á em tantos escrutínios quantos forem necessários. Aberta a sessão, será ela
transformada em conselho, para que o Tribunal aprecie aspectos gerais referentes à escolha dos
candidatos, seus currículos, vida pregressa e se satisfazem os requisitos constitucionais exigidos15.
V. Da Independência entre os poderes
A famosa doutrina da separação dos poderes, desenvolvida por Montesquieu no livro O
Espírito das Leis, possui como pedra angular a limitação do poder, de forma a concretizar um
governo respeitador das liberdades. É neste âmbito que surge o sistema de “freios e contrapesos”,
um verdadeiro instrumento jurídico-institucional que concretiza o princípio da divisão do exercício
do poder e, sobretudo, visa a impedir a interferência, principalmente política, de um poder sobre o
outro.
A cláusula constitucional parâmetro para a aplicação do princípio da separação entres os
poderes é, por excelência, em nosso sistema presidencialista, a da “independência e harmonia”,
conforme dita o art. 2º da nossa Carta Magna.16 Nas palavras de FERRAZ (1994, p.14):
Isto significa dizer que, no desdobramento constitucional do esquema de poderes, haverá
um mínimo e um máximo de independência de cada órgão de poder, sob pena de se
desfigurar a separação, e haverá, também, um número mínimo e um máximo de
instrumentos que favoreçam o exercício harmônico dos poderes, sob pena de, inexistindo
limites, um poder se sobrepor ao outro poder, ao invés de, entre eles, se formar uma atuação
“de concerto”.
Por esta razão, é de extrema importância que sejam delimitadas as áreas de atuação de cada
poder, ou seja, estabelecer suas áreas de atuação independente e harmônica.
O entendimento majoritário da doutrina é no sentido de apenas permitir flexibilizações à
cláusula da separação dos poderes, preceito já consolidado na ordem constitucional do Estado
Democrático de Direito, quando se vise realizar o próprio princípio-fim do postulado. Isto significa
que somente se admitem exceções quando estas estiverem destinadas a efetivar a real harmonia no
relacionamento entre os poderes ou assegurar o exercício pleno das funções próprias. Tais exceções,
no entanto, jamais devem vir com roupagem democrática para maquiar intenções de interferência
política para dominação de um poder sobre o outro.
14
Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, art. 26.
Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, art. 27.
16
CF, art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
15
41
É preciso ter em mente que a ampliação desmesurada das exceções à cláusula
constitucional parâmetro representa um perigo à ordem democrática, vez que torna cada vez mais
teórico e ineficaz este basilar preceito, promovendo um esvaziamento de seu significado. Isto
sinalizaria um grande retrocesso à tendência constitucional contemporânea de doação de efetividade
aos preceitos constitucionais, tornando os princípios de nossa Carta Federal mero instrumento
retórico.
VI. Quanto à natureza jurídica do ato de nomeação ao terço constitucional e o princípio da
supremacia do interesse público
No julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 27.920-0/DF, o
Ministro Joaquim Barbosa destacou a imprescindibilidade da motivação em razão da natureza do
ato de recusa da lista sêxtupla pelo Superior Tribunal de Justiça. Merece destaque o seguinte trecho:
Creio que o ato do STJ peca por déficit de motivação e, por esta razão, é nulo. (...)Lembro
que a nomeação de membros dos tribunais é ato administrativo composto, ou complexo,
como querem alguns, em que há uma relação de interdependência entre as diversas etapas
do procedimento. Neste procedimento de nomeação, não há espaço para ações
discricionárias (...)
Todavia, nota-se evidente equívoco a que o Ministro Joaquim Barbosa fundamentou seu
voto no que tange à natureza do ato de nomeação à vaga de Ministro do Superior Tribunal de
Justiça. Àqueles atos nos quais há a interdependência de atos distintos de diferentes órgãos da
Administração, a doutrina diferencia-os entre atos complexos e compostos. Ainda que se trate de
institutos por vezes semelhantes, a diferenciação é fundamental para se apreciar a pertinência da
incidência discricionária.
Merece destaque o estudo de MEIRELLES (2004, p. 169), que caracteriza o ato complexo
como sendo aquele “que se forma pela conjugação de vontades de mais de um órgão administrativo
O essencial, nessa categoria de atos, é o concurso de vontades de órgãos diferentes para a formação
de um ato único”, ao passo que o o ato composto “é o que resulta da vontade única de um órgão,
mas depende da verificação por parte de outro, para e tornar exequível”. Assim sendo, no caso do
ato complexo, o ato sucessivo ainda se perfaz da análise de mérito da questão, avaliando a
conveniência e a oportunidade, enquanto que no ato composto, o ato sucessivo se traduz como
sendo mero controle de legalidade, não permitindo a incidência discricionária do órgão
interveniente (CAVALCANTE FILHO, 2010, p. 9).
Desse modo, resta claro que a nomeação de Ministro do STJ constitui-se em ato complexo,
do qual os atores envolvidos exercem seu juízo de oportunidade no desempenho de sua função, seja
na transformação da lista sêxtupla em tríplice pelo próprio Tribunal, seja na escolha do Ministro
pelo Presidente da República, ou, ainda, na sabatina e sucessivo escrutínio realizado no âmbito do
42
Senado Federal. Quanto a este último, cabe frisar seu papel no procedimento de escolha dos
Ministros da Corte mediante o instituto da sabatina, que visa aferir os requisitos subjetivos previstos
no art. 94 da CF: o notório saber jurídico e reputação ilibada.
Retificando o entendimento do Ministro Joaquim Barbosa, o voto-vista proferido pela
Ministra Ellen Gracie destaca a adequada caracterização do ato de nomeação, consoante o trecho
que ora se destaca:
Alerte-se, de início, que a seleção de um futuro integrante do Superior Tribunal de Justiça é
um ato complexo, do qual fazem parte a formação da lista sêxtupla, a submissão de três
nomes que a integravam ao Presidente da República, a indicação de um desses nomes pelo
Chefe do Poder Executivo Federal, a aprovação dessa escolha , após arguição pública, pelo
Senado e, finalmente, a sua nomeação pelo Presidente da República para o referido cargo.
No mesmo sentido se manifestou o Supremo Tribunal Federal, em questões similares,
tomando-se por base a premissa de que a nomeação de juiz à vaga do quinto constitucional que
envolva o Tribunal e o Presidente da República caracteriza-se por ser um ato complexo. Destaca-se
o seguinte julgado:
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL. MANDADO DE SEGURANÇA: ATO
COMPLEXO. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TIRBUNAL FEDERAL.
LEGITIMIDADE ATIVA DA IMPETRANTE: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS
PROCURADORES DA REPÚBLICA. DECADÊNCIA. TRIBUNAL REGIONAL
FEDERAL: COMPOSIÇÃO. QUINTO CONSTITUCIONAL: NÚMERO PAR DE
JUÍZES. C.F., art. 94 e art. 107, I. LOMAN, Lei. Compl. 35/79, art. 100, §2º. I. - Nomeação
de Juiz do quinto constitucional: ato complexo de cuja formação participam o Tribunal e o
Presidente da República: competência originária do Supremo Tribunal Federal. (…) 17
Outrossim, há de se salientar a limitação quanto ao exercício da discricionariedade por
parte do Superior Tribunal de Justiça. Ainda que se trate de ato administrativo complexo, do qual
cada órgão exerça juízo próprio quanto à conveniência e oportunidade da realização do aludido ato,
não se deve afastar a vinculação quanto à função pública que o Tribunal exerce. Ou seja, deve-se
adequar a razoabilidade do ato tanto à qualificação dos candidatos ao preenchimento dos requisitos
constitucionais, quanto ao tempo que a Corte estava com a vaga em aberto.
Trata-se, portanto, de um dever-poder vinculado ao interesse público. A autoridade pública,
seja no exercício administrativo ou jurisidicional, não pode se afastar do princípio da supremacia do
interesse público, que sempre se sobrepõe em relação aos interesses individuais envolvidos. É esse
o entendimento despendido na obra de DI PIETRO (2011, p. 67), acerca do poder-dever (ou deverpoder, conforme o entendimento do Supremo Tribunal Federal): “Assim, a autoridade não pode
renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei (…). Cada vez que ela se
omite no exercício de seus poderes, é o interesse público que está sendo prejudicado”.
VII. Do poder-dever intrínseco à competência do Superior Tribunal de Justiça na dinâmica
17
STF, Pleno, MS nº 23.972/DF, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ 29 ago. 2003, p. 21
43
do “terço constitucional”
O processo de nomeação ao Superior Tribunal de Justiça por meio da regra esculpida no
art. 104, II da Magna Carta, à primeira vista, parece não deixar dúvidas quanto à competência para
se analisar os requisitos dos candidatos a que o próprio artigo alude. No que tange à escolha dos
advogados e membros do Ministério Público Federal, Estadual, do Distrito Federal e Territórios há
de ser observado duas espécies de critérios: de caráter objetivo, em relação à idade dos candidatos
(Constituição Federal art. 104, parágrafo único,
m
çã
, v b
“b
”) e o de caráter subjetivo (“
b
mm
áv
b
j
”).
Em interpretação conjugada com a regra prelecionada no art. 94, a regra do terço
constitucional aplicável ao Superior Tribunal de Justiça distribui o dever de elaboração da lista
sêxtupla aos órgãos de representação das respectivas classes. Cabe ao STJ tão somente a
transformação da lista sêxtupla em lista tríplice, que será encaminhada ao Presidente da República.
O escolhido presidencial, então, ainda será submetido à sabatina do Senado Federal.
Não há que se falar, portanto, em divisão de competências para aferição dos requisitos
constitucionais. É notório que cada ente, na respectiva função que lhe é incumbida pela
Constituição Federal, levará em consideração os critérios de caráter objetivo e subjetivo
sedimentados no parágrafo único do art. 104. Contudo, a questão cinge-se na natureza jurídica do
ato da nomeação, à luz do direito administrativo, a fim de se delimitar a incidência ou não da
discricionariedade a que cada órgão está submetido.
Por outro lado, não há margem que legitime a posição do STJ em se eximir da função que
lhe é incumbida pela Constituição Federal, qual seja, a transformação da lista sêxtupla em lista
tríplice. No caso objeto de estudo, o voto proferido pelo ministro Relator Eros Grau destaca que a
função desempenhada pelo Tribunal consiste num dever-poder, haja vista a notória proteção ao
interesse público. Cumpre destacar trecho do referido voto:
“Aí não se trata de simples poder, mas, antes, de função, isto é, dever-poder. Detém o poder de proceder a essa escolha
instrumentalmente, apenas na medida em que exerça a fim de cumprir o dever de proceder-lha. Pode, então, fazer o
quanto deva fazer. Nada mais.”
Trata-se, portanto, de poder vinculado ao interesse alheio, notadamente o interesse público.
Não cabe margem, portanto, à discricionariedade da ausência de exercício, uma vez que a aludida
vinculação impõe o dever àquele Tribunal.
CONCLUSÃO
Pode-se, dessa forma, discernir que a existência de conflitos institucionais é característica
de um ambiente democrático, pautado na limitação de poderes e no sistema dos “freios e
44
contrapesos”. A tensão entre o Superior Tribunal de Justiça e a Ordem dos Advogados do Brasil
demonstra que os diálogos institucionais previstos na Constituição Federal são, ainda, carentes de
melhor delimitação de competência, política e procedimental. Faz-se necessária a devida atenção,
nesse âmbito, à observância do princípio da razoabilidade e da supremacia do interesse público,
como norteadores hermenêuticos de todo o sistema normativo vigente.
Nessa esteira, cabe salientar as conseqüências práticas da recusa da lista sêxtupla pelo STJ.
Por um lado, o tempo em que o Tribunal se obriga a funcionar sem os tais ministros,
aproximadamente um ano e meio, exigindo a convocação de desembargadores para suprir a vaga e,
por outro, o fato de ter sido feita lista sêxtupla posterior referente à classe do Ministério Público,
quebrando o princípio da alternância. Tais fatos, explicitamente, em nada contribuem para a
consecução dos objetivos do quinto constitucional: a oxigenação do Poder Judiciário, bem como sua
democratização e otimização, por meio do ingresso de profissionais provenientes das classes
integrantes das funções essenciais à justiça, a advocacia e o Ministério Público.
Assim sendo, faz-se mister ter em vista que a porção de discricionariedade conferida pela
Carta Magna a determinadas instituições não pode sobrepujar-se ao interesse público. Respeitar os
limites de atuação em cada função significa observar os princípios basilares do Estado Democrático
de Direito, principalmente aquele relativo à independência e harmonia entre os poderes.
Referências bibliográficas
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Jurídica Consulex, v. 12, nº 270, 2008.
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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Editora Saraiva, 2010
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MARTINS, Francisco Peçanha. Quinto constitucional e a renovação do Poder Judiciário. Revista
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004.
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. Quinto constitucional: a polêmica instalada. Revista
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45
ZAFFARONI, R. E. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. Tradução Juarez Tavares. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
46
ASSENTAMENTOS RURAIS E IMPACTOS REGIONAIS: APONTAMENTOS PARA O
ENTENDIMENTO ALÉM DA ESFERA ECONÔMICA
Elson dos Santos Gomes Junior1
Vanessa da Silva Palagar Ribeiro2
RESUMO
O presente trabalho propõe realizar uma contribuição aos estudos que tratam dos impactos regionais
de assentamentos rurais. Pesquisas vêm apontando, em âmbito econômico, para dois principais
pontos: o primeiro demonstra que novas demandas e serviços são criados em regiões que recebem
assentamentos rurais. Já o segundo aponta para a maximização de bens materiais por parte daqueles
que passam a condição de assentados rurais. Contudo, além da esfera econômica, existem outras
envolvendo os movimentos sociais do campo que, devido a suas peculiaridades, não podem ser
facilmente mensurados. Neste caso encontra-se a discussão em torno da cultura. Sendo assim,
partindo do assentamento rural como uma alternativa de organização econômica capaz de
maximizar bens na esfera econômica destas famílias, foram analisados os impactos do assentamento
no tocante ao exercício de atividades culturais. Em pesquisa de Iniciação Científica e monografia,
foi abordado como campo de estudo o assentamento Zumbi dos Palmares (Campos dos
Goytacazes/São Francisco de Itabapoana-RJ). Por meio da metodologia de História de vida, traçouse a trajetória de camponeses portadores de habilidades culturais que buscou compor uma leitura do
exercício destas práticas após a entrada no assentamento. Nestes termos, a pesquisa vem
confirmando na realidade deste assentamento o aumento do quantitativo de bens na esfera
econômica. Também, e no que se concentra esta pesquisa, aponta para um conjunto de fatores
favoráveis ao exercício de habilidades culturais tais como teatro, poesia, calendário de festas,
artesanato e espaços de sociabilidade.
Palavras-chaves: reforma agrária; história de vida; habilidades culturais; identidade.
INTRODUÇÃO
A concentração fundiária permeia historicamente as relações político-econômicas da
sociedade brasileira, e possui como desdobramento uma série de elementos evidenciados
principalmente em âmbito social. Assim a questão fundiária tornou-se tema de conflitos e
discussões em diversos momentos da história deste país (VEIGA, 1986, p. 7).
Em 1850, a partir da promulgação da Lei de Terras, a propriedade da terra ganhou
institucionalização no Brasil; em função da necessidade de se promover uma organização jurídica
1
Bacharelando do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF);
Elson dos Santos Gomes Junior – [email protected] – cel.: (22) 9861-4083.
2
Bacharelando do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF);
Vanessa da Silva Palagar Ribeiro – [email protected] – tel.: (22) 8821-4475.
47
em torno da mesma. Esta lei estabeleceu que a propriedade (enquanto um bem privado e
reconhecido legalmente pelo Estado), deveria ser adquirida mediante pagamento em espécie de um
valor igualmente proporcional ao perímetro da propriedade. Esta legislação apresentou-se para as
camadas menos favorecidas com um caráter altamente expropriatório uma vez que, por questões
econômicas, estas não tiveram possibilidades de acesso a este bem (TAGLIETTI, 2006, p. 191).
Desta forma pode-se ver que existe uma trajetória do modelo de propriedade da terra no
Brasil cuja concentração não é mera característica, e sim, uma “Questão agrária” (SILVA, 1986, p.
11). O debate em torno da questão agrária esteve presente em vários momentos da vida nacional. Na
década de 30 do século XX com a chamada “grande depressão”, este debate girou em torno de
questões relacionadas à política do café, já na década de 50, a questão agrária esteve presente na
discussão sobre os rumos da industrialização brasileira (onde a agricultura foi vista como sinônimo
de atraso frente à industrialização do país).
Por outro lado, na década de 60 e meados de 70, a questão da terra ficou relegada a um
segundo plano devido o forte crescimento causado por uma série de políticas públicas que ficaram
conhecidas como “milagre brasileiro”. Contudo, este crescimento acabou por gerar efeitos
negativos, uma vez que se acentuou o êxodo rural, a concentração da propriedade, o aumento da
taxa de exploração da força de trabalho, o declínio da qualidade de vida da população do campo, a
disparidade de renda, e o aumento dos impactos ambientais. Isto foi agravado pela chamada
“revolução verde”, que também elevou os níveis de mecanização do trabalho no campo (GOMES,
2005, p. 407).
Na década de 1980, também chamada de “década perdida” (devido fortes indícios de crise
no projeto nacional desenvolvimentista) e influenciada pelo regime militar de 1964, houve um
gradual aumento inflacionário e alto índice de desemprego. Isto acabou contribuindo para o
estabelecimento de uma conjuntura política propícia para o ressurgimento de ação organizada
(destaque para os sindicatos urbanos). Este foi o momento em que surgiu o movimento social de
maior expressão nas últimas décadas da história brasileira: o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST). Fruto da junção de vários movimentos sociais de luta pela terra, o MST criou um
modelo político pedagógico de ação pela luta de socialização da propriedade da terra e desenvolveu
um aparato simbólico particular (SIGAUD, 2004, p. 15-16; COMPARATO, 2001, p. 105).
O MST se apresenta como representante de um modelo de agricultura oposto ao modelo do
capitalismo industrial-financeiro ( baseado na monocultura para exportação, grande extensão de
terra, mecanização dos processos agrícolas, uso de agrotóxicos, etc.). O MST também incorpora
outras questões em sua pauta de reivindicações entre as quais se destaca: o acesso ao crédito para
pequenos agricultores, desenvolvimento sustentável, infra-estrutura para as famílias assentadas.
Assim a unidade produtiva de caráter familiar passou a ser proposta alternativa e objeto de estudos
48
no que tange aos impactos da agricultura para o desenvolvimento econômico, social e sustentável
do Brasil (HEREDIA, 2002, p. 98).
O motivo que norteou este trabalho se relaciona a verificação empírica dos possíveis
benefícios causados pela ampliação do acesso a propriedade da terra as camadas desfavorecidas da
sociedade. Onde pesquisas têm mostrado impactos positivos na esfera econômica tanto para os
assentados como para as regiões que recebem assentamentos. Além do ganho mensurável no
aspecto econômico, há um ganho considerável no âmbito cultural. Este último, neste estudo, se
apresenta sob a forma de habilidades portadas por estes camponeses (após o assentamento) e que se
manifestam de variadas formas (teatro, artesanato, poesia, festas folclóricas). Sãos estas formas de
manifestação cultural expressa por estes camponeses que constituem, mais precisamente, o objeto
desta pesquisa.
METODOLOGIA E ÁREA DE ESTUDO
Os recursos metodológicos utilizados neste trabalho foram baseados em visitas de campo,
uso da técnica “bola de neve” e a aplicação de um questionário semi-estruturado. Este último com
questões que buscaram demonstrar a trajetória antes e depois do assentamento tanto no que se refere
ao âmbito econômico como ao exercício de habilidades culturais. Nesta pesquisa também foi
utilizada o uso de bibliografia especializada, referente a questão agrária, a agricultura familiar e
seus impactos.
O Projeto de Assentamento (PA Zumbi dos Palmares) localiza-se entre as coordenadas 21º
32' e 21º 45' S e 41º 11' e 41º 16' W, englobando território dentro dos municípios de Campos dos
Goytacazes e São Francisco do Itabapoana. O PA Zumbi dos Palmares resultou de uma ocupação
organizada pelo MST em 12 de abril de 1997 nas terras da Usina São João. A Usina se encontrava
com graves dificuldades financeiras e um acúmulo de dívidas em forma de impostos e direitos
trabalhistas não pagos. Em outubro de 1997 as terras foram transferidas para o INCRA que iniciou o
processo de cadastramento para divisão dos lotes. Neste processo, as famílias que compunham o
grupo representante do MST, acabaram recebendo a companhia de mais dois diferentes grupos:
primeiro os membros do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Francisco de Itabapoana;
depois de um grupo de ex-trabalhadores da Usina São João. Em apenas seis meses após a ocupação
das terras pelo MST o ato de desapropriação das terras estava assinado pelo então presidente
Fernando Henrique Cardoso. Esta ação se configurou em uma das mais aceleradas no tocante a
reforma agrária (CORDEIRO, 2007, p. 15), dando origem a um assentamento dividido em cinco
lotes em uma extensão de 8.553 hectares.
O trabalho que foi realizado neste assentamento buscou catalogar camponeses com
habilidades culturais em exercício. Assim contribuíram para a pesquisa um grupo de teatro (23
49
integrantes, que se apresenta como Grupo de Teatro Zumbi dos Palmares), um camponês que
trabalha com poesia e artesanato (autor de um livro com apoio da Secretaria de Cultura de Campos
dos Goytacazes – “Terra Conquistada, Esperança de vida Nova”, 2000), um animador cultural,
quatro pessoas que trabalham com artesanato de palha de taboa. Dentre estes, boa parte compõe a
escolinha de agroecologia. Esta última foi criada em 2005 por iniciativa da CPT 3, com o propósito
de promover um espaço de socialização de experiências, saberes e alternativas aos percalços do
cotidiano do trabalho na terra.
Reforma agrária e seus impactos econômicos
A questão da propriedade da terra no Brasil é tema de profundo debate. No meio científico
brasileiro existem leituras diversas quando se trata desta questão, principalmente, quando o assunto
se refere a proposta de mexer na estrutura fundiária de modo a tornar sua posse mais equânime
entre os integrantes da sociedade (Reforma Agrária).
No que tange a literatura acadêmica especializada, é possível enumerar uma série de autores
que pensaram as questões referentes ao mundo rural e sua população. Também no Brasil um
conjunto significativo de centros de pesquisa no assunto e de autores pôde formar um capital teórico
e monográfico a respeito das questões do meio rural brasileiro. Nestes termos, buscou-se situar a
análise a partir de algumas destas importantes contribuições.
Antes de serem apresentadas algumas destas interpretações, é relevante de esclarecer que em
relação ao que será chamado de impactos econômicos está relacionado, principalmente, às
possibilidades de maximização de bens mensuráveis (eletrodomésticos, residência, automóvel, faixa
salarial, etc.).
No desenvolvimento das pesquisas em torno da Reforma Agrária e seus impactos, autores
apontaram para as mais variadas formas de organização social que seriam oriundas destes
assentamentos. Uma destas aponta que a reforma agrária manteria o campesinato, não em seu
estado puro, mas seu papel dentro da sociedade capitalista se redefiniria. Nesta leitura, o
campesinato não seria assimilado pelo capitalismo (como burguês ou proletário agrário), mas sim
como portador da capacidade de unir agricultura familiar e inovações técnico-agrícolas típicas da
agricultura capitalista. Seu papel na sociedade seria o de produzir alimentos mais baratos para o
meio urbano, de modo a baratear produção e reprodução desta força de trabalho (ABRAMOVAY,
2007, p. 83).
Outros apontam que a reforma agrária não deve ser essencialmente agrícola, ou seja, não
deve se restringir apenas as questões pertinentes a produção de alimentos. Neste viés salientam a
3
Comissão Pastoral da Terra.
50
emergente necessidade de novos serviços causados pela implantação de um assentamento;
enumerando serviços como escola, mercados, oficinas, enfim, uma série de necessidades que terão
demanda pela população recém-chegada. Nesta leitura um assentamento não abrange apenas
distribuição de terras para pessoas poderem trabalhar, mas, também, a geração de novos empregos e
formas de renda no campo (SILVA, 1998, p. 83).
Outra leitura sobre os impactos econômicos causados pela reforma agrária aponta para uma
redefinição das relações de trabalho no campo, onde estas relações são regidas a partir de uma base
produtiva que ganhou um “termo novo”. Assim salienta que este “modo de gestão da produção”
através de nova terminologia deixou de lado o sentido pejorativo que esteve durante tanto tempo
associado a palavra “camponês”4 (NEVES, 2007, p. 234).
Nesta abordagem ao tornar-se assentado e possuidor de um modo singular de gestão da
produção, o camponês ultrapassou os limites econômicos de seus ganhos através da luta pela posse
da terra. Ele passou a acumular um capital social que o concedeu acesso, mais facilmente, a uma
rede financeira que passou a reconhecê-lo como produtor. Este ganho foi apresentado por Delma
Peçanha Neves como um ganho político. Em confluência com esta interpretação que Maria Moraes
vai apresentar este ganho de capital como, além de político, social; ou seja, “de camponês a
agricultor familiar” (MORAES, 1998, p. 121).
Além de ganhos econômicos, possibilidade de aumentar a demanda por serviços não
essencialmente agrícolas, e de apresentar um ganho na esfera política, a Reforma Agrária é
apresentada por alguns estudiosos como uma forma de superação da pobreza. Esta esfera se
relaciona com as demais citadas acima, mas de um caráter mais próximo do que chamamos de
“maximização dos bens materiais”.
Esta fração da sociedade cuja, boa parte, não tinha nem onde morar, passou a possuir bens
após a conquista do lote. Desta forma estes “Sujeitos em Movimento” conseguiram obter ganhos
significativos que os possibilitaram superar, até mesmo, condições de elevado nível de pobreza
(MENEGASSO; BRANCALEONI, 2008, p. 11). Não é por acaso que também é apresentada como
uma estratégia de desenvolvimento econômico (LEITE, 2006, p. 8).
A reforma agrária passou a figurar como um modelo alternativo ao da agricultura
mecanizada; ou seja, ao modelo apresentado como sendo o responsável por impactos negativos de
desemprego e expropriação do homem do campo (BALSAN, 2006, p. 124). Nestes termos, tem se
apresentado com uma alternativa a reorganização social do homem do campo, com mais domínio
sobre os processos produtivos e maiores ganhos em aquisições de bens sociais e ampliação de seu
4
Delma Peçanha Neves apresenta o termo “camponês” como uma palavra que ficou estigmatizada pela sociedade
possuindo, assim, uma forte carga pejorativa que relacionou por muito tempo a vida no campo às questões de
infortúnios e pobreza. `
51
capital cultural.
No caso de Campos dos Goytacazes, a participação do Estado no tocante ao processo de
consolidação de famílias em assentamento rurais tem se mostrado “desassistido”. No entanto, as
várias estratégias desenvolvidas pelos assentados vêm contribuindo para que estes consigam
permanecer nos lotes mesmo sem um apoio significativo do poder público a esta iniciativa de
manutenção do homem do campo (PEDLOWSKI, 2007, p.3).
Estes elementos aos quais são chamados de culturais começaram a se fortalecer desde os
primeiros momentos do processo de ocupação. Existe todo um conjunto simbólico que permeia as
relações entre os acampados e contribui para o surgimento de laços de parceria duradouros. Assim
todo o processo de viver embaixo da “lona preta”, das necessidades de ajuda mútua, os confrontos
unidos, a persistência dos acampados, a bandeira e as músicas, formou um conjunto de elementos
que passou a figurar e permanecer nas relações futuras entre os assentados (SIGAUD, 2004, p. 14).
Foi deste processo que muitas das redes sociais passaram a vigorar e se fortalecer, contribuindo
fortemente como um dos importantes fatores de permanência dos assentados nos lotes (ZINGA,
2004, p. 97).
Este percurso de conquistas que passou pelo viés econômico, político e cultural (não
necessariamente nesta ordem), contribuiu para que o camponês pudesse exercer e manifestar de
forma mais espontânea e com maior capacidade de aproveitamento suas habilidades culturais. É
neste âmbito que o presente trabalho verificou no Assentamento Zumbi dos Palmares a existência
destes camponeses, não só portadores de melhores condições de vida, mas portadores de
habilidades culturais que, manifestas, refletem este conjunto de ganhos.
Condição de assentado e o exercício de habilidades culturais
Os assentados demonstraram que após a conquista desta condição, o assentamento ganhou
um calendário festivo. Apesar de não ser muito extenso, o calendário possui a comemoração do dia
da ocupação (12 de abril), uma quadrilha organizada no período entre julho e agosto, o dia de
Zumbi dos Palmares (20 de novembro) patrono do assentamento e a festa do dia das crianças. Estes
eventos reúnem pessoas dos vários núcleos do assentamento. A produção das festividades é feita
coletivamente com a participação de adultos e crianças.
O atual quadro que oferece um reforço da história do Assentamento e de cada um dos
assentados contribui para que os portadores de habilidades culturais possam exercê-las, não só no
dia a dia, mas também na forma de apresentações públicas. Assim os envolvidos com atividades
culturais se relacionam tanto de forma interna, quanto de forma externa ao Assentamento como, por
exemplo, o grupo de Teatro que possui uma regularidade de ensaios e apresentações.
As poesias de Paulo Poeta foram publicadas em um livro com a ajuda da Secretaria de
52
Cultura da Cidade de Campos dos Goytacazes. Elas refletem a história dos Assentados desde o
início do processo de ocupação. Em uma passagem ele descreve sua chegada ao acampamento
(POETA, 2000, p. 3):
Quando vim de Macaé,
Vim com boas intenções,
Trouxe algumas ferramentas
Sendo faca e facão.
Também trouxe a minha foice
A enxada e o enxadão.
Outros temas trabalhados pela poesia são a homenagem a bandeira do MST, a escolha do
nome do Assentamento, os encontros dos trabalhadores, a vida na roça, a história de opressão dos
trabalhadores, desapropriação, reflorestamento5 e a outras ocupações. Dentre estas temáticas, o
sentimento de libertação aparece evidenciado, como uma conquista que, a condição de assentado,
pode oferecer a estas pessoas. Estes temas englobam um conjunto de elementos que se materializam
por meio da cultura e inovação (MEDEIROS, 2006, p. 43).
Outra atividade que se encontra presente no assentamento é a confecção de artesanato com
palha de taboa. Ela contribuiu, em alguns momentos, como forma de complementação de renda
para alguns camponeses. No entanto, ultimamente este artesanato tem estado restrito as
necessidades diárias e não mais com vistas comerciais.
No que se refere ao processo de conquista e socialização destas habilidades, algumas pessoas
afirmaram que conseguiram adquiri-las após a conquista do lote por meio de oficinas promovidas
pelos próprios assentados. Contudo, a maioria deles afirmou que estas oficinas nunca tiveram uma
regularidade considerável e que as tentativas de consolidação destes espaços de transmissão de
habilidades referentes ao artesanato não tiveram grande sucesso.
As atividades culturais desenvolvidas durante o calendário do Assentamento contam com a
participação da CPT. Esta organização se faz presente através de projetos orientadores, educativos e
culturais. Um destes projetos apoiados pela CPT é o projeto Fitovida6.
O assentamento se encontra relativamente longe dos principais hospitais da cidade. Desta
maneira, pequenas ocorrências em que se faz necessário o uso de algum medicamento são com
frequência tratados através do conhecimento de ervas medicinais. Este projeto busca promover o
encontro de pessoas, não só assentados, que possuam conhecimentos de ervas medicinais de modo a
poderem trocar informações e receitas entre si. Além disso, são apresentadas várias formas de
sementes e a forma correta de cultivá-las.
Trabalhos que envolvem o ensino de pequenas confecções artesanais também são
5
6
Paulo é um agroecologista.
A rede FITOVIDA é uma associação composta e organizada por camponeses e colaboradores com vistas a socialização
de conhecimentos referentes às capacidades medicinais de plantas e sementes. Além disto, conta com uma
regularidade de eventos objetivando a compartilhar o processo de produção destes remédios e derivados.
53
desenvolvidos dentro do Assentamento através da CPT. Estes encontros também são usados como
espaço de discussão que abrange vários aspectos referentes aos assentados, como de direitos
humanos (condições de trabalho no campo), posicionamento frente aos órgãos deliberadores dos
Assentamentos (INCRA) e decisões que envolvem a coletividade do Assentamento.
No dia 20 de novembro (feriado de Zumbi dos Palmares), a confraternização contém a
apresentação de atividades culturais, depoimentos, e uma pedagogia que é exercida através de uma
mesa onde são expostos os “frutos da terra”. A CPT é uma organização que trabalha assessorando o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), contribuindo para a valorização da cultura
do homem do campo.
Busca-se verificar as possibilidades de relações existentes entre as conquistas materiais e o
exercício das atividades culturais. A partir de uma análise da história de vida destes assentados foi
possível perceber alguns importantes elementos para nossa análise. Assim, foram analisados e
organizados os depoimentos selecionados nas entrevistas. Um ponto importante é poder pensar que
as atividades imateriais começaram a ser desenvolvidas desde o momento do acampamento
(SIGAUD, 2004, p. 17).
Assim, quando perguntado sobre o significado de serem assentados, todos responderam de
forma positiva. Nenhum dos entrevistados demonstrou insatisfação sobre morar e viver no
assentamento. Além disso, a maioria falou sobre a tranqüilidade e a segurança que sentem se
comparado a cidade. Já em relação a forma de verem a vida após o assentamento, disseram que
mudou porque agora eles têm o que é deles. Alguns falaram de como é bom não pagar aluguel,
outros falaram da melhoria da alimentação, principalmente, por meio de uma produção de dispensa
agrotóxico7.
Quanto aos pontos negativos e os positivos de viver no assentamento estão, entre os
positivos, a tranquilidade, a possibilidade de ter os filhos por perto e a ausência da violência
existente no meio urbano. Agora, quanto aos negativos, quase todos foram unânimes em relatar que
existe certo descaso com o assentamento por parte do poder público. Isto já foi evidenciado por
meio de outros trabalhos realizados em assentamentos da região (PEDLOWSKI, 2007, p. 3).
Quanto aos aspectos culturais, todos afirmaram ter conhecimento a respeito das festas
existentes no assentamento. Isto mostra que estas atividades e a formação deste calendário criaram
uma prática que está presente no imaginário de cada um a respeito do funcionamento e das
atividades do assentamento.
Em relação a compartilhar a atividade com outros assentados, alguns disseram encontrar
7
Como a maioria dos entrevistados faz parte da escolinha de agroecologia, eles não usam produtos químicos em seus
lotes. Contudo, o uso destes produtos é frequente no assentamento e alguns dos assentados entrevistados, contaram
que já sofreram graves danos devido ao uso destes agrotóxicos por parte de seus vizinhos.
54
dificuldades para a manutenção de uma constância, pois todas as vezes que tentaram forma um
grupo, este se desfez antes mesmo de poder consolidar uma forma minimamente duradoura de troca
de conhecimento. Neste caso encontram-se os artesãos de palha de taboa. Segundo eles, apesar de
alguns terem afirmados que aprenderam dentro do assentamento as técnicas que usam, afirmaram
também que estes momentos de troca não são frequentes (dificuldade esta não encontrada entre os
participantes do grupo de teatro).
Em relação a importância destas atividades para os mesmos como indivíduo, percebemos
que algumas delas são vistas como forma de afirmação de identidade (poesia e teatro). Já quando
questionados sobre a importância destas atividades para a coletividade, principalmente sobre os
conhecimentos trocados na escolinha de agroecologia, a maioria afirmou ser de grande importância.
Isto por perceberem que na busca de interesses individuais, alguns podem sair perdendo demais
(como o caso de pessoas acidentadas com agrotóxico sem usá-los). Além disto, espaços como estes
interferem diretamente na forma de cultivo dos lotes. Como exemplo têm-se os “alunos” assentados
que realizam todo um trabalho de conscientização dos riscos do agrotóxico.
Por fim, ao perguntarmos sobre os limites de algumas destas atividades podemos perceber
que elas vão além dos limites físicos do assentamento. Assim, muitas vezes o Paulo Poeta foi
convidado para declamar suas poesias em escolas fora do assentamento, até mesmo, pelo seu
conteúdo agroecológico. De semelhante modo, o grupo de teatro vem apresentando-se fora do
assentamento em escolas e eventos, assim como, a quadrilha do assentamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho mostrou que os camponeses do Assentamento Zumbi dos Palmares após terem
obtido o lote conseguiram um aumento na qualidade de vida, como pesquisas desenvolvidas em
outras regiões tem mostrado. Estes assentados conseguiram aumentar seu patrimônio no âmbito
econômico e conseguiram ter acesso a bens que, anteriormente, não tinham. Além disso, expressam
satisfação com a vida no campo e enfatizam a respeito da qualidade de vida superior a que eles
desfrutavam antes.
No Assentamento estas pessoas passaram a contar com um maior grau de autonomia, a
ponto de poderem, através de suas histórias de vida que culminou com o assentamento, se
representarem enquanto assentados. Isto, não só através da forma de trabalho ou da localidade onde
vivem, mas através do exercício prático de suas habilidades culturais. Estas habilidades apresentam
a vida do assentado como uma conquista, e promovem laços de sociabilidade onde uma forma
peculiar de cultura é produzida e reproduzida. Ela se expressa através da escrita (poesia), música
(festas do calendário) e do teatro.
Assim pode ser visto como uma nova coletividade que se iniciou a partir da “identidade sem
55
terra” (ALVES, 2007, p. 92). No entanto, quando estas trajetórias individuais começaram a interagir
por meio de variadas esferas, começaram a elaborar mecanismos de exercício da cidadania. Nestes
termos a possibilidade de exercício de habilidades culturais apareceu como uma face do exercício
desta, contribuindo também para a formação de uma cultura que começou com uma ação coletiva e
se reproduz por meio de práticas cotidianas que vão desde o cultivo da terra ao exercício de
atividades de caráter imaterial como as retratadas aqui.
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Dissertação de Mestrado em Políticas Sociais, UENF.
57
SITUAÇÃO COLONIAL, ESTADO – NAÇÃO E ETNICIDADE EM MOÇAMBIQUE:
PRELIMINARES TEORICO METODOLÓGICAS1.
Nurdino Cassiano Macata2
RESUMO
Os processos de reordenamento territorial na medida em que levam a processos de reassentamentos,
tendem a colocar em xeque os processos ancestrais de territorialização e o seu significado
subjetivo/objetivo para a vida quotidiana das populações. Pretendemos a partir da literatura
empírica e teórica sobre os processos de reassentamento em Moçambique (vale do zambeze),
explorar os novos rearranjos culturais e sócio-espaciais necessários na busca de um novo lugar para
o grupo enquanto entidade socialmente vinculada a terra, questionando a habilidade do Estado para
negociar e propiciar novas configurações territoriais que não irrompam em conflitos intra-grupais e
inter-grupos, conflitos esses que se geram e se agudizam sobretudo entre as lideranças tradicionais,
tomando feições de natureza econômica, cultural, social, política, espacial e simbólica, na medida
em que a defesa do território é significada como sendo a defesa da cultura e da identidade dos
grupos étnicos.
Palavras-Chave: Identidade; Territorialização; Conflitos; Grupos Étnicos; Práticas Socioculturais
ligados a Terra.
INTRODUÇÃO
Devido a sua localização geográfica, Moçambique é um país ciclicamente afetado por
eventos naturais de elevado poder destrutivo, basta para tal, observar que as cheias de 2007 e de
2008, afetaram cerca de 258.000 pessoas, o que corresponde a perto de 55.000 agregados familiares
só no vale do Zambeze, (MATE et al., 2009; INGC, 2010). Por seu lado, as cheias de 2000 que
ainda ocupam um espaço de relevo no imaginário dos moçambicanos, afetaram mais de um milhão
de pessoas, destruíram centenas de casas e mais de 400.000 pessoas tiveram que se deslocar para
centros de acomodação temporários, tendo sido causada a morte de mais de 800 pessoas (INGC,
2010).
Mais recentemente, nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2012, o país voltou a ser assolado
por calamidades naturais (nomeadamente os ciclones Dando e Funso), tendo se registrado
inundações, chuvas e depressões tropicais, que afetaram diretamente 81.200 pessoas do centro e sul
1
2
Este trabalho é fruto de uma pesquisa ainda em construção e pretendemos nele, lançar os alicerces teóricos e
metodológicos que estão levando a construção de nosso problema de pesquisa
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF);
Contacto: [email protected]
58
do país, fazendo 37 mortos, 41 feridos e pouco mais de 81 mil famílias desabrigadas3.
Quando os desastres acontecem tem destruído, em grande escala as infraestruturas sociais e
econômicas, habitações, reservas alimentares e meios de sobrevivências de milhares de famílias,
colocando-as em permanente vulnerabilidade, afetando em particular as zonas rurais (LIHAHE,
2009. MATE et al, 2009, CHAMBOTE e VEJA, 2008).
É, portanto, movidos por interesses simultaneamente teóricos e “práticos” que pretendemos
levar a cabo uma pesquisa, que procure compreender os processos e as representações de âmbito
identitário, econômico, político e simbólico, implicados na resistência aos bairros de
reassentamentos (enquanto inseridos num projeto de construção de um Estado-Nação) e
consequente abandono dos centros de reassentamento pós-cheias.
CONTEXTUALIZANDO A QUESTÃO ÉTNICA EM MOÇAMBIQUE
Localizado na costa sudeste de África, o território geográfico a que corresponde atualmente
a unidade geopolítica denominada Republica de Moçambique, foi devido a sua localização
privilegiada (Banhado a leste pelo Oceano Indico e com várias baias e canais de navegação, para
além de recursos hídricos e terras férteis no interior), um importante berço das civilizações em
África, tendo sido igualmente um entreposto comercial de referencia na zona Austral de África e
alvo de interesse de várias potencias coloniais, o que por si só já mostra a riqueza e a complexidade
dos processos identitários em Moçambique.
Daí que a análise dos “processos identitários” enquanto mobilizados politicamente que a
seguir propomos (vai em função dos nossos objetivos nesse trabalho), recortar três importantes
períodos históricos, nomeadamente: O período que vai desde a conferencia de Berlim em 1884/85
até a instauração da primeira republica com a independência em 1975; O período que vai desde
1975 até a constituição de 1990 que instaurou o Estado de Direito Democrático (segunda
Republica), e por fim o período que vai desde 1990 até a atualidade (NGOENHA, 2009).
A escolha do período de contato com os Portugueses como marco histórico inicial para a
análise dos processos de construção e constituição de uma unidade política unificada em
Moçambique, mobilizando, por conseguinte “políticas identitárias” específicas – aos interesses
coloniais - ignora obviamente séculos de migrações, lutas e intercâmbios culturais e comerciais,
quer entre os grupos/unidades políticas internas ao continente, quer com outros grupos/unidades
políticas externas4 como são o caso dos mercadores e navegadores swahilis, árabes e indianos que
3
4
Jornal notícias, sexta-feira, redacção de 03 de Fevereiro de 2012.
Uma análise mais detalhada e profunda da historia do territorio a que hoje coresponde o Estado moçambicano, pode
ser encontrada nas seguintes obras: SERRA, Carlos (coord.). História de Moçambique: Parte I - Primeiras
Sociedades sedentárias e impacto dos mercadores, 200/300- 1885; Parte II - Agressão imperialista, 1886-1930. Vol.
1, 2.ª edição, Maputo, Livraria Universitária, Universidade Eduardo Mondlane, 2000. e, PÉLISSIER, René. História
59
chegaram inclusive a constituir importantes configurações políticas, econômicas, culturais e
religiosas na costa moçambicana (conhecidos por sultanatos e xeicados).
Até a chegada dos portugueses em 1498, é de ressaltar a existência de diversos reinos
independentes entre os quais se destaca o império dos Mwenemutapas que estendia os seus vastos
domínios até a uma região limitada pelo rio Zambeze a norte, pelo Oceano Índico a leste, e pelo rio
Limpopo a sul, chegando a sua influência quase ao deserto do Kalahari a sudoeste. Outros
importantes impérios anteriores a presença colonial são o império Marave; os Estados Ajaua, o
império de Gaza e os Estados Islâmicos da Costa, entre outras unidades políticas que detinham
territórios soberanos.
Moçambique não foge a regra segundo a qual, apesar da multiplicidade de fatores - tanto de
caráter exógeno assim como endógeno - que podem explicar a passagem de uma sociedade
segmentar à condição de sociedade centralizada, existir um elemento primordial para a efetivação
dessa transformação que é “a submissão” a um aparato político-administrativo que integra e
representa um Estado quer seja politicamente soberano ou somente com status colonial como se deu
com Moçambique, ou seja, estamos aqui falando de situação colonial (BALANDIER, 1993, p.113;
CABAÇO, 2007, p.38-39; OLIVEIRA FILHO, 1998, p.54).
Assim, tal como nos mostra Oliveira Filho (1998, p.54), “é um fato histórico – a presença
colonial - que instaura uma nova relação da sociedade com o território, deflagrando transformações
em múltiplos níveis da sua existência sociocultural”. As sociedades colonizadas são assim, produto
de uma dupla historia uma das quais de caráter endógeno - que Balandier (1993) denomina de
“propriamente africana”- que colocou em presença “formas sociais homogêneas” e a outra de
caráter exógeno, largamente condicionada pela presença europeia que “colocou em contacto formas
sociais radicalmente heterogêneas” (ibdem:110).
Em Moçambique assim como no resto de África, a situação colonial enquanto efetivação de
um projeto de estado colonial português, encontra-se associada aos interesses - matéria-prima, mão
de obra e mercados - impostos pela revolução industrial e consequente crescimento do sistema
capitalista (ARENDT, 1990; HOBSBAWN, 1988).
Assim, podemos situar nas resoluções de ocupação efetiva saídas da conferencia de Berlim
(15 de novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885) a necessidade de constituição e efetivação nos
territórios africanos de um aparato jurídico-administrativo, o que faz com que a questão colonial
(vista até então exclusivamente pela dimensão econômica), passe a ser uma questão eminentemente
social e política (BALANDIER, 1993, p.111; CABAÇO, 2007, p. 35-38).
Ora, a efetivação da colonização que impunha “o controle total” dos territórios africanos,
implantou uma ordem social caracterizada por uma alteridade radicalizada, a partir da qual se
de Moçambique: formação e oposição: 1854-1918. 2 vols., Lisboa, Ed. Estampa,2000.
60
fundam dois mundos sociais5 distintos: nomeadamente o mundo dos dominadores e o mundo dos
dominados. Tais mundos se encontravam inseridos no mesmo sistema social cuja relação política,
ideológica, cultural e econômica vão constituir a situação colonial.
Dá-se assim a passagem ao imperialismo tal como proposto por Hannah Arendt (1990,
p.164-170), que se caracteriza pela administração do território tendo como essência o uso da força
por parte dos “administradores da violência”, constituindo dialeticamente oprimidos e opressores.
Tal como nos mostra Cabaço:
Na sociedade colonial estarão, frente a frente, bem demarcados, não só “branco e preto”,
indígena e colonizador, mas também civilizado e primitivo, tradicional e moderno, cultura e
usos e costumes, oralidade e escrita, sociedade com historia e sociedade sem historia,
superstição e religião, regime jurídico europeu e regime consuetudinário (...) todos eles
conceitos marcados pela hierarquização, em que uns se apresentam como a negação dos
outros e, em muitos casos, como a sua raison d´ être. (CABAÇO, 2007, p.38).
A oposição entre a sociedade colonizada e a sociedade colonial enquanto possibilitada
dualmente pela raça e pela civilização, coloca a ação administrativa e a ideologia como pilares
desse sistema que opera como uma totalidade (ARENDT, 1990, p.215; BALANDIER, 1993, p.113119). O desafio da colônia era o de efetivar um quadro político-administrativo capaz de explorar
efetivamente a colônia, o que precisou ser acompanhado por uma política ideológica que permitiria
garantir a mão de obra não só para as atividades braçais, mas também para as administrativas,
difundindo a crença de superioridade do colono.
É de ressaltar que nas colônias portuguesas, não havia condições objetivas que levassem a
uma proletarização imediata e voluntaria das populações locais, as pessoas podiam e com
frequência evitavam vender a sua força de trabalho, pois, mantinham a posse da terra, o mais básico
meio de produção, e os instrumentos de produção, ainda que rudimentares (ZAMPARONI, 1998,
p.27).
“[...] As formas produtivas não capitalistas, embora comportassem conflitos sociais não
negligenciáveis, pois os camponeses indígenas não formavam um todo homogêneo e
indistinto sem hierarquias em seu seio, conseguiam sustentar suas necessidades de consumo
e os excedentes, em geral, convertidos em tributos pagos aos régulos e potentados diversos,
quer africanos, afro-portugueses ou afro-islamizados, entravam no circuito de trocas; mas a
terra era possuída, de formas e por mecanismos variados, pelos membros da comunidade
que dela desfrutavam” (ZAMPARONI, 1998, p.28).
Quando na terceira década do século XIX, Portugal por meio de reformulações na
constituição passou a considerar as colônias como províncias ultramarinas e que, portanto, estariam
subordinadas à mesma legislação em vigor na metrópole, fez teoricamente de todo cidadão
independentemente de sua raça e origem étnica, desde que cristão batizado, cidadão português, com
5
Mundo social está aqui sendo usado - mutatis mutandis - no sentido trazido por Becker (2008), em que os mundos
sociais são compostos por pessoas que, agindo juntas, com diferentes graus de comprometimento, produzem
realidades que também as definem.
61
os mesmos direitos legais e sociais que os portugueses nascidos em Portugal. Ora, essa
universalização de direitos foi somente teórica, pois na pratica nenhum momento “os indígenas
foram de fato tratados igualitariamente, como cidadãos” plenos, perante a lei (FARRÉ, 2008, p.398;
ZAMPARONI, 1998, p.29).
Na realidade, o que aconteceu foi que em função das políticas imperialistas de Antonio Enes
- sob o argumento de uma pretensa antropologia evolucionista – institucionalizaram-se dois
estatutos de cidadania no império: os indígenas e os civilizados. Foi com o início deste debate que
começaram a perfilar-se alguns conceitos que viriam a converter-se nos fundamentos ideológicos do
imperialismo português: indigenato, assimilacionismo, usos e costumes, autoridades gentílicas,
tutela do Estado (FARRÉ, 2008, p. 399). Assim, o acesso a alguns direitos ficou condicionado no
que tange aos africanos, ao grau de inserção do indivíduo no restrito espaço político e cultural do
dominador6 (ZAMPARONI, 1998, p.29).
Seguindo esta estratégia, em 1895, o então Comissário Régio de Moçambique, António
Enes, criou a circunscrição indígena, unidade administrativa adequada às zonas rurais, na qual o
administrador, no lugar das até então chefias tradicionais, exercia, em termos cumulativos, as
funções de juiz e administrador. Por seu turno, as circunscrições foram divididas em regedorias,
dada a escassez de recursos políticos e administrativos da metrópole, foram escolhidos entre os
antigos chefes tradicionais, indivíduos submissos para a governação das regedorias então criadas.
Os regedores ou régulos como eram mais conhecidos, juntamente com os seus auxiliares
(chefes de povoação, chefes de terras, sipaios, cabos-de-terra), desempenharam um papel
preponderante e ativo na persuasão das populações rurais para o chibalo, serviços públicos e outros,
e até mesmo, para o pagamento do mussoco ou do imposto da palhota. (LOURENÇO, 2005, p.14;
SERRA, 2010, p.12). De tal forma que gradualmente, os régulos e seus auxiliares foram sendo
percebidos como parte efetiva do estado colonial, auferindo remunerações pagas através de
comissões sobre os impostos, do recrutamento de mão de obra e sobre a venda de culturas
obrigatórias dentro das áreas sob seu controlo (MENESES, 2003).
Apesar de manipuladas - ainda que com alguma resistência em alguns casos- as autoridades
tradicionais e instituições a ela relacionadas, constituíram um importante fator de coesão e
identidade cultural, legitimando a autoridade e regulando as relações das populações com o meio,
6
O projeto assimilacionista, estipulava que os africanos que demonstrassem ter integrado a língua, a conduta e os
valores da civilização portuguesa na sua vida fossem considerados assimilados. Os assimilados teriam direito à plena
cidadania portuguesa, pois estariam capacitados para a exercerem. Pelo contrário, todos os que ainda não tivessem
alcançado o estatuto de assimilado seriam considerados indígenas. Os indígenas caracterizavam-se por continuarem a
viver regidos pelos seus usos e costumes e a falar dialectos locais, não estando por isso capacitados para exercerem a
cidadania portuguesa, ficando dela excluídos até que demonstrassem ter avançado no seu processo civilizacional.
Enquanto não fossem cidadãos, o Estado português assumia sobre eles uma relação de tutela, o que significava
submissão ao regime de trabalho forçado, pagamento de impostos e emigração controlada para além de outras
condicionantes.
62
administrando localmente as situações de conflito que emergiram. Assim, o regime de indigenato
assentava num sistema de identidade social que tornava o nascimento ou a associação à linhagem de
um determinado grupo o fundamento dos direitos de residência e acesso à terra (quer no sentido
real, quer no sentido de pertença linhageira), embora, fosse frequente o desrespeito as alianças e
fronteiras pré-coloniais (MENEZES, 2003, p.346).
Uma das características do período de implementação do Estado colonial foi a destruição da
autoridade política de algumas linhagens, integrando-as noutras, e passando-as à situação de
subordinadas. Com este procedimento, a administração colonial tinha em vista o banimento das
linhagens temidas, consideradas possíveis protagonistas de focos de resistência militar e a formação
de grupos políticos dóceis ou mesmo aliados (LOURENÇO, 2005; MENESES, 2003;
MONDLANE, 1995).
“Naturalmente que a Administração colonial exercia, sempre que necessário, uma
interferência nas regras sucessórias para designar uma autoridade considerada subserviente
ou afastar outra que fosse considerada insubordinada ou, de certo modo, contrária aos
objetivos coloniais. A nova organização administrativa implementada pelas autoridades
coloniais pressupôs, igualmente, um processo de redimensionamento ou redefinição das
fronteiras dos territórios pertencentes aos anteriores Estados pré-coloniais, sempre para
menor, dentro do espírito da política de dividir para melhor reinar, introduzindo
modificações nas estruturas e relações societárias e de poder, à luz dos desígnios da
potência ocupante, com implicações que persistiram à evolução dos tempos” (SERRA,
2010, p.13).
Fruto desta situação, surgiram inúmeros conflitos de liderança, alguns dos quais se alastram
até hoje, entre os “legítimos” lideres, reconhecidos pela comunidade, e os “criados”, resultantes de
decisão das autoridades coloniais, mais importante ainda, essa estratégia de dominação do território
moçambicano, alterou o conteúdo das relações inter-grupais e intra-grupais, na medida em que as
representações advindas da política colonial em torno dos grupos sociais privilegiavam uns em
detrimento de outros, que eram considerados inferiores e aos quais eram atribuídas qualidades
pejorativas.
Ou seja, as políticas de identidade no período colonial, eram determinadas pela necessidade
de impor às sociedades existentes no território um sistema de regras que o colonizador dominava e
o colonizado desconhecia, afirmando a própria superioridade no controle social e determinando a
instabilidade emocional e a inibição cultural do “outro” (CABAÇO, 2007).
Quando em 1964 se inicia a luta de libertação nacional conduzida pela Frente de Libertação
de Moçambique - FRELIMO, a estratégia da guerrilha consistia em estabelecer alianças com as
lideranças tradicionais, uma vez que estavam na origem da própria FRELIMO, filhos de régulos
entre outros indivíduos que gozavam de prestigio entre as comunidades (LOURENÇO, 2005;
MENEZES, 2003; MONDLANE, 1995). Com o avançar da luta e a medida que a Frelimo vai
conquistando terreno, dá-se a consequente retirada do maquina político-administrativa colonial, que
63
em alguns casos incluía ainda as lideranças locais.
Assim, nas “zonas libertas” a Frelimo não defrontava apenas o poder colonial, mas também
o poder local que continuava em alguns casos a prestar apoio ao governo colonial, daí que a
estratégia nestas zonas consistia dependendo da resposta que estas lideranças davam a presença da
Frelimo, “consistia em integra-las na sua estrutura administrativa e no processo revolucionário, ou
então, elimina-las” (LOURENÇO, 2005, p.24).
“O que acontece nas regiões onde estamos envolvidos em combate é que qualquer chefe
tradicional que seja contra a luta de libertação é excluído antes que a ação militar se inicie.
Mas a partir do momento em que a ação militar está em curso, ou ele passa para o lado do
inimigo, ou é eliminado. Só os chefes tradicionais que aderem à FRELIMO, o que significa
que se tornam presidentes ou secretários de células, círculos, distritos ou província das
nossas estruturas, podem-se manter enquanto tais. Então, eles tornam-se perfeitamente
iguais a qualquer um de nós. Portanto, as funções que exerciam antes tiveram influência na
sua escolha só na medida em que tinham prestígio (...) mas uma vez começada a luta, ela
diz respeito ao povo de Moçambique na sua totalidade” (entrevista com Eduardo Mondlane
em 1969, citada em LOURENÇO, 2005, p.29).
Após a independência, conseguida em 1975, a herança deixada pelo colonialismo era
caracterizada por um espaço político composto por múltiplas etnias, socialmente multifacetado e
com graves desigualdades regionais (MENEZES, 2003, p.350). Na medida em que a Frelimo adota
a ideologia Marxista-Leninista, a principal preocupação do agora Partido-Estado Frelimo era o de
construir e efetivar um projeto de estado nação socialista, no qual se combatem abertamente as
diferenças étnicas e culturais locais/regionais, era preciso promover uma cultura e um projeto de
desenvolvimento nacional único, criando-se uma nação supra-etnica.
O projeto da Frelimo visava a criação de um Estado novo que, sob os desígnios do antiimperialismo e do anti-racismo, se propunha fazer tábua rasa do passado para edificar uma nova
sociedade habitada por um homem novo (CASAL, 1991). Todos teriam de se subordinar ao partidoEstado, incluindo os outros partidos ou grupos que também tinham lutado contra os portugueses.
Era preciso “matar a tribo para fazer nascer a nação” tal como expresso pelo então presidente da
Republica Popular de Moçambique, Samora Machel.
Com esta atitude arrogante e totalitária, a efervescência e entusiasmo popular que se criou
com a instauração de uma nova república e fim do jugo colonial, foi radicalmente eclipsado, foi
criada a nível local toda uma estrutura hierárquica ligada exclusivamente ao partido Frelimo, que
suplantou a antiga ordem sociopolítica baseada no regulado e na autoridade tradicional, que se viu
assim relegada a marginalidade e a condição de “praticas obscurantistas reacionárias que atrasam o
desenvolvimento7” (MENEZES, 2003, p.351-352).
7
O artigo 4º da primeira constituição de Moçambique (1975) expressa “a caça às bruxas”, vivida nesse período, na
medida em que previa: “a eliminação das estruturas de opressão e exploração coloniais e tradicionais e da mentalidade
que lhes está subjacente”.
64
Esta situação levou a um descontentamento por parte das bases de apoio a Frelimo, e
constitui uma das razões endógenas que propiciaram a deflagração e expansão por todo território
moçambicano de uma guerra civil iniciada em 1976, o argumento que levou a que vários líderes
tradicionais apoiassem a RENAMO (força que se opunha a FRELIMO e seu projeto), era o de que é
preciso recuperar “o direito básico ao livre exercício da vida social, devolvendo às autoridades
tradicionais o papel e lugar que sempre lhes pertenceu (...) uma vez, que a Frelimo as estava
marginalizando politicamente” (LOURENÇO, 2007, p.196).
“Neste contexto de “desencantamento” político crescente com a FRELIMO,
os chefes tradicionais anteviram uma oportunidade para reafirmarem a sua
liderança e autoridade sobre as comunidades de camponeses – comunidades
essas que, em alguns casos, tinham apoiado a FRELIMO na deposição das
Autoridades Tradicionais no período imediatamente após a independência.
Os líderes políticos tradicionais – especialmente os líderes religiosos – cuja
autoridade ainda era considerável, tornaram-se num elemento social
centralizador da oposição dos camponeses à autoridade política do Estado.
Tal como muitos médiuns e curandeiros, cuja autoridade e influência
tradicionais foram também prejudicadas pelas políticas de desenvolvimento
rural do Governo no período pós-independência, também os chefes
tradicionais se opuseram às aldeias comunais8 se aliando a RENAMO”
(LOURENÇO, 2005, p.40).
Quando em 1986, ainda no auge da guerra civil, Moçambique adere às instituições de
Bretton Woods, abandonando o sistema socialista em detrimento do capitalista e de uma democracia
multipartidária, o país inicia uma progressiva viragem histórica, que leva a aprovação de uma nova
constituição em 1990, e a assinatura dos acordos de Paz e fim da guerra civil em 1992, com a
realização das primeiras eleições multipartidárias em 1994.
A nova constituição de 1990 fixa entre outros importantes elementos, o reconhecimento das
autoridades tradicionais, assim, o artigo 6º referente aos objetivos do Estado moçambicano, fez
constar “a afirmação da personalidade moçambicana, das suas tradições e demais valores
socioculturais”; depois, através da norma constante no n.º 1 do artigo 53, determinou que “o Estado
promove o desenvolvimento da cultura e personalidade nacionais e garante a livre expressão das
tradições e valores da sociedade moçambicana” (SERRA, 2010, p.46).
É nesta esteira de reconhecimento às autoridades tradicionais que é publicado o decreto n.º
15/2000, principal instrumento jurídico de reconhecimento a pluralidade das autoridades
tradicionais e as diferenças étnicas e identitárias que elas defendem e simbolicamente representam.
Após um longo processo histórico as autoridades tradicionais deixaram claro seu importante papel
na estruturação da vida quotidiana das populações que garantem sua legitimidade.
8
A literatura sobre o projeto de constituição e implementação de aldeias comunais em Moçambique, é de reconhecida
importância para nosso propósitos, no entanto, esta discussão não esta sendo aqui feita pois, não tivemos acesso
ainda a essa bibliografia que podera ser acedida em Moçambique.
65
“Em termos sociológicos, o ressurgimento dos antigos régulos significa antes a sua
passagem da clandestinidade para a diurnidade. (…) O seu banimento oficial não lhes
retirou pertinácia sociológica. Rapidamente assumiram os espaços sociais e simbólicos que
lhes eram reservados pela sabedoria de origem imemorial. À mesma velocidade, surgiram
os conflitos de liderança e de legitimidade com os grupos dinamizadores 9. As autoridades
tradicionais (…) cedo reconquistaram os seus espaços de liderança e foram disputadas por
diversos partidos políticos nos principais pleitos eleitorais, ao mesmo tempo em que eram
aliciadas pelo Governo para se tornarem tentáculos da administração pública nas
comunidades” (FUMO, 2007, p.150)
Até aqui pontuamos que, dado o seu poder, importância e legitimidade face as populações,
as autoridades tradicionais, foram um recurso amplamente usado para a efetivação do domínio e
exploração colonial, herdando assim, da situação colonial um papel político que condicionou a sua
relação com o projeto de construção de uma Estado Nação proposto pelo partido Estado marxistaleninista da Frelimo. Esta situação levou a um descontentamento que legitimou em parte a
deflagração da guerra civil.
Importa referir que, apesar da retórica e prática hostis da FRELIMO, aquilo que o partidoEstado rotulava de “autoridade tradicional” nunca deixou completamente de existir no mundo rural,
quer após a independência de Moçambique, quer mesmo durante os anos em que a FRELIMO
implementou com sucesso relativo, o seu programa de “modernização socialista”. Os quadros locais
da FRELIMO, mais letrados que os chefes tradicionais, comprovaram ser modestamente bem
sucedidos como auxiliares dos programas sociais do partido – a expansão da educação rural, a
construção de uma rede de cuidados de saúde a nível rural, o fornecimento de água potável às
aldeias rurais, etc. – demonstrando, contudo, serem relativamente inaptos em assuntos de
conhecimento e gestão do mundo rural (FUMO, 2007; LOURENÇO, 2005; 2007; SERRA, 2010).
TERRITORIALIZAÇÃO, ESTADO E CALAMIDADES NATURAIS NO VALE DO
ZAMBEZE
O deslocamento forçado ou voluntário de pessoas em Moçambique não é um fenômeno
recente, pois, historicamente as pessoas têm sido removidas das suas terras devido à interação
causal de vários fatores tais como as calamidades naturais, iniciativas de desenvolvimento, guerras,
9
Os grupos dinamizadores (GD) é o nome pelo qual foram designadas as organizações de base da sociedade
moçambicana, que foram instauradas logo após a independencia em 1975, embora tenham desde a sua origem sido
orientadas pelo projeto politico e social de instauração de uma sociedade Marxista-Leninista centralizada na figura
do partido-estado FRELIMO, só a partir de 1978 é que os GD se transformam em celulas do partido Frelimo.
Existiram dois tipos de GD, nomeadamente: Os GD de local de residência que tinham como missão organizar os
moradores em várias tarefas colectivas, tais como a vigilância das ruas, a limpeza ou promoção da higiene colectiva,
a alfabetização de adultos, a resolução de conflitos e a organização de cooperativas de consumo, entre outras. E os
os GD de local de trabalho que tinham como missão, estimular o aumento da produtividade - criticar os
trabalhadores faltosos, assistir a direcção principalmente nas suas relações com os restantes trabalhadores, evitar os
roubos - e, mais importante, orientar Sessões de Esclarecimento politico-ideologico. Em face dessa atuação direta
sobre as comunidades os GD constituiram uma frente de conflito com “as autoridades tradicionais” que viram sua
legitimidade e poder sobre as comunidades diminuidos.
66
etc. (MATE et al, 2009; LIHAHE, 2009).
Focando nas calamidades naturais, na medida em que, é a partir destes eventos no vale do rio
Zambeze que se gera a situação concreta de pesquisa que nos possibilita construir nossa
problemática, importa dizer que o uso da designação calamidades naturais para os eventos de
cheias, já é no caso de Moçambique indicativo de uma gramática politizada, tal como nos mostra
Coelho (2005):
O termo “calamidades” ganhou, após a independência, uma dimensão bastante lata, referida
a todo tipo de malefícios que se abatem sobre a sociedade, num contexto de procura de
definição do “inimigo” associada ao esforço de construção do Estado-Nação. Assim, a par
das calamidades provocadas pelos inimigos regionais (sobretudo o apartheid), surgiu, por
extensão, a definição da natureza como inimiga quando o seu comportamento fugia à
normalidade. (COELHO, 2005, p. 219).
Para nossos propósitos, mais do que problematizar esta instrumentalização dos eventos
naturais, vamos restringir a noção de desastres naturais aos eventos de cheias no vale do Zambeze,
evento estes, que tem estado a incitar um processo de remoção das populações das suas zonas de
origem, desnudando assim uma série de processos conflituosos de cariz político e identitário, que
tem como principais interlocutores o Estado e as comunidades afetadas.
A remoção das comunidades e consequente reassentamento em zonas consideradas seguras é tal
como nos mostram Chambote e Veja (2008), caracterizada pelo abandono e resistência das
populações em permanecer nas zonas de reassentamento, resistência esta que encontra sua origem
em parte nos processos incompletos de reassentamento pós-cheias que não dão conta de aspetos
ligados a sobrevivência e/ou subsistência das famílias nos centros de reassentamento, que são
caracterizados pela falta de alternativas de renda, escassez de infraestruturas básicas nos locais de
reassentamento, fragilidade do manuseamento de saúde pública, fraco acesso a água potável, entre
outras.
Assim, é lugar comum tal como nos mostram a maioria dos estudos que abordam a resistência
dos grupos em permanecer nos centros de reassentamento, que as famílias reassentadas regressam
as suas antigas comunidades, em função do maior benefício econômico que podem tirar dessas
áreas, na medida em que, as terras mais férteis que garantem consequentemente uma maior
produtividade agrária, localizam-se nas zonas baixas e nas margens dos rios, que são justamente as
zonas mais propícias as cheias e calamidades naturais. Ainda é nessas áreas consideradas de risco
que a pratica da pesca, importante recurso para a dieta e renda das famílias é mais comum
(CHAMBOTE e VEJA, 2008; LIHAHE, 2009; MATE 2009; JUSTIÇA AMBIENTAL, 2011;
COELHO, 2005).
Observa-se deste modo um dilema: viver em zonas altas não propensas às cheias, contudo
longe da fonte de subsistência, ou viver em zonas baixas propensas às cheias, mas, próximos das
67
fontes de subsistência (CHAMBOTE, 2008; QUEFACE, 2009; LIHAHE, 2009). Neste contexto,
verifica-se que aquilo que os “agentes peritos governamentais” designam como área de risco é tido
pelas populações como área privilegiada de oportunidades, porém apesar de explicar parcialmente a
resistência as zonas de reassentamento esta perspectiva ainda não é a que mais nos interessa.
Um desastre ou calamidade natural é assim, um processo que descaracteriza a família e o grupo
levando a desterritorialização do mesmo por retirá-la do lugar onde estava situada, o espaço onde
elaborava o processo de viver, no âmbito privado e comunitário, sendo por isso, também supressão
imaterial, pois, como lembra Milton Santos (1998, p.82) “ O território em que vivemos é mais que
um simples conjunto de objetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos, mas
também um dado simbólico”.
Segundo Valencio et al. (2007) o lugar da família é a sua casa/terra. É dali que se elaboram
as relações do grupo consigo mesmo e com o mundo exterior. É, ainda, de onde se promovem os
elos entre as memórias do passado – onde radica a identidade de cada um e do coletivo – e as
memórias do futuro – o vir-à-ser que parte dos meios e modos que a vida concreta oferece. Enfim, é
um cenário físico, situado geograficamente, que resguarda a intimidade do grupo familiar e a sua
integridade nas várias dimensões da existência social e cultural.
Assim, quando a moradia é afetada por desastres ambientais, imprime prejuízos por vezes
irreversíveis à família, sobretudo porque o desmantelamento do lugar coloca esse coletivo sob o
constrangimento de ocupar outro lugar no qual são impostos novos estilos de vida, isto é,
subordinação a sujeitos e argumentos que partem de hierarquias exógenas, cessando sua
autodeterminação (VALENCIO et al, 2007). Esta situação afeta, sobretudo as lideranças
tradicionais que de um momento para o outro podem se ver despojadas do seu poder e domínio
territorial.
Apesar da sua materialidade evidente, o território esta aqui sendo construído como mais do
que um reservatório de recursos, ele é simultaneamente um espaço de memórias e significados, no
qual e a partir do qual as lideranças tradicionais e os grupos criam todo um discurso que lhes
confere legitimidade, e serve de mote para suas demandas políticas e de reconhecimento social.
Importa assim, pesquisar em que situações estes discursos são acionados e em que é que consistem
as reivindicações dos grupos que se recusam a permanecer nos centros de reassentamento.
Em Moçambique, as iniciativas do estado ligadas ao controlo sobre o espaço que implica em
transferências de populações tem encontrado uma constante resistência por parte dos grupos
afetados (GEFFRAY, 1991; CASAL, 1987). Uma vez que não levam em consideração a diversidade
e heterogeneidades concretas e históricas dos grupos sociais que pretendem unir e integrar sobre o
signo de uma identidade única (GEFFRAY, 1991). Deste modo Anthony Oliver-Smith (2001) citado
por Mate et al. (2009, p.49), nos traz que o reassentamento é tido como a expressão mais aguda de
68
perda de poder das pessoas pelo fato de constituir a perda de controlo sobre o espaço físico.
Deste modo a ação do governo em face dos desastres naturais, leva não ao fim das disputas
inter-territoriais (numa região de forte potencialidade econômica e política) mas sim ao seu apogeu,
na medida em que, a resistência das comunidades em permanecer nos centros de reassentamento
traz ao de cima a questão da habilidade do Estado moçambicano em proporcionar novas
configurações territoriais, acreditamos que são assim colocadas a nu velhas questões ligadas a
relação historicamente conturbada entre o projeto de construção de uma nova ordem social ligado a
efetivação do Estado-Nação moçambicano e as lideranças tradicionais.
Segundo Santos (1996) a sociedade se define, igualmente, por seu contexto geográfico e,
portanto, o território contribui para materializar as relações sociais hierarquizadas. Neste contexto, o
processo de desterritorializacao dificulta a afirmação de identidades das populações deslocadas na
medida em que estas são geograficamente mediadas (HAESBAERT, 2004).
Assim, observa-se um confronto entre a racionalidade do Estado/projetos nacionais e a
racionalidade das populações afetadas por esses projetos. Os projetos de desenvolvimento e de
transformação social, implicando, quase sempre, operações de reordenamento espacial e de
estruturação habitacional, são concebidos e executados verticalmente e sem que a orgânica social
dessas populações seja tida em conta.
Neste contexto, muitos dos conflitos e resistências que envolvem estes projetos não derivam
somente da sua natureza e de seus objetivos, mas também das transformações espaciais que deles
decorrem e das respostas grupais que eles incitam.
A justificação para o fracasso do processo de reassentamento, oferecida pelas autoridades
governamentais, assenta numa base “preconceituosa” segundo a qual as populações locais apegamse mais às práticas culturais tradicionais que na racional necessidade de salvar e estabilizar suas
vidas em zonas fora de risco. Apontando uma atitude de falta de auto-estima da população vítima
das cheias (CHAMBOTE e VEJA, 2008).
De acordo com Valencio et al. (2006, 2007), a iniciativa e o poder de decisão sobre o
desenvolvimento não constituem competência exclusiva do Estado, mas englobam a sociedade civil
que deve ser sujeito, e não objeto, dos programas de desenvolvimento. Assim, os atores centrais dos
projetos de desenvolvimento são os sujeitos coletivos, ou seja, as comunidades organizadas cujo
processo de construção do poder comunitário engendra um potencial para que os efeitos dessas
iniciativas populares se estendam à esfera política, contrariando as causas estruturais da
marginalização.
Uma vez que cada sociedade tem a sua própria racionalidade inspirada na sua maneira de
viver e de coexistir com a natureza e com outras sociedades (NGOENHA, 2005). A
desterritorialização, como experiência coletiva propícia a quebra de hábitos, normas e práticas
69
rituais que davam sentidos a ação, incluindo as relacionadas à reafirmação de identidades culturais e
ao exercício de papéis públicos e privados10. Suscitam ainda a desritualização de práticas que
indivíduos ou grupos exercitam frequentemente, dificultando a recomposição de significados do
mundo (THORNBURG; KNOTTNERUS E WEBB, 2005 apud VALENCIO et al, 2009, p.38)
O processo de reassentamento, tendo em conta que junta no mesmo local, comunidades,
autoridades tradicionais de várias zonas, pode ser um espaço de geração de conflitos pelo controlo
do poder, e pela reivindicação por reconhecimento étnico o que pode dificultar o processo de
integração e coesão das comunidades nas zonas de reassentamento. Sendo que as lideranças
tradicionais nas zonas rurais em Moçambique se constituem como atores de especial importância
no próprio processo cognitivo de percepção e objetivação da realidade, gozando deste modo de
varias benesses social e historicamente legitimadas, e estruturando o nomos social (MENESES,
2009).
Se buscarmos exemplos no processo de socialização do campo (reassentamentos em forma
de aldeias comunais) constata-se segundo (GEFFRAY, 1991) que este processo foi levado a cabo
em ruptura e conflito aberto com elementos política e socialmente respeitados a nível local pelas
populações e por elas investidos de uma autoridade reconhecida.
Para os mentores da iniciativa, pouco importavam as diferenças históricas e sociais
regionais, pouco interessavam igualmente as motivações e aspirações reais das populações em
nome das quais tal projeto foi concebido, tendo sido esta a mesma perspectiva usada nos
reassentamentos das populações vítimas de calamidades naturais.
CONSTRUINDO O PROBLEMA: ETNICIDADE E TERRITÓRIO
Resumindo e concatenando pontuamos que os bairros de reassentamento (que são
relativamente seguros), surgiram como política do governo para a prevenção das populações que
vivem em zonas de risco dos efeitos das cheias e demais desastres. Porém, tem se verificado que
populações resistem a este processo de “
çã ”, abandonando os centros e bairros de
reassentamento e voltando as suas zonas de origem passado algum tempo.
A pergunta que se coloca neste domínio é: porque é que estas populações resistem ao
processo de reassentamento/desterritorialização?
Das várias respostas fornecidas para esta pergunta encontramos como vimos a explicação
das instituições governamentais que apontam a “teimosia” e fatores políticos como forças motrizes
para este comportamento. Neste domínio, as populações afetadas são consideradas ignorantes
10
É preciso complementar essa visão, avançado que os processos de desterritorialização são sempre uma via de mão
dupla, na medida em que implicam simultaneamente processos de reterritorialização, e é nestes moldes que
pretendemos percebe-los.
70
quando vivenciam o risco e não mudam de residência, temos por outro lado as questões produtivas
como um dos fatores-chave, ou seja, nas zonas baixas, perto dos rios, há abundância de água e os
solos são relativamente mais férteis.
Apesar destas respostas há, entretanto, devido a complexidade do tema, e tendo em conta
que a pesquisa sobre desastres como fenômenos sociais em Moçambique, ainda está numa fase
embrionária, necessidade de se levantar outro tipo de hipóteses até aqui pouco exploradas, hipóteses
estas que se baseiam na premissa do espaço físico como lócus de relações de poder e de conflitos de
cariz social, econômico, cultural, político, espacial e simbólico, especialmente entre as lideranças
cujo caráter e legitimidade “tradicional” precisa ser explorada.
Os processos de reassentamento, como experiência coletiva de territorialização propiciam a
resistência ou não à quebra e consequente reformulação de hábitos, normas e praticas que davam
sentidos a ação e existência coletiva, incluindo os sentidos relacionados à reafirmação de
identidades coletivas e ao agir do grupo enquanto grupos inerentemente políticos, envolvidos num
processo conflituoso de domínio territorial e de luta por afirmação (HONNETH, 2003).
Processo esse que tem fortes implicações nas lógicas de constituição do grupo enquanto
entidade diacriticamente estruturada face a sociedade global, e que age intencionalmente em face a
mudanças do mundo prático, o que acirra disputas e conflitos de ordem política, econômica e
simbólica entre os diferentes atores que lutam pelo direito e domínio legítimo do território,
envolvendo desse modo como principal interlocutor o Estado.
Isto é, os desastres naturais na medida em que levam à processos de reassentamentos,
tendem a colocar em xeque outros processos específicos de territorialização e o seu significado
subjetivo/objetivo para a vida quotidiana das populações constituindo-se deste modo em
oportunidades impares de atuação e reordenação política no seio dos próprios grupos e enquanto
resposta externa do grupo.
Torna-se então importante explorar os novos arranjos culturais e sócio-espaciais adotados
pelos grupos na busca de um novo lugar para a coletividade enquanto entidade socialmente
vinculada a terra, questionando a habilidade do Estado para negociar e propiciar novas
configurações territoriais.
Configurações essas que devem ser vistas a luz dos conflitos intra-grupais e inter-grupos,
através de uma perspectiva que dê conta em vários níveis, das implicações e nuances econômicas,
culturais, sociais, políticas, espaciais e simbólicas, que este processo acarreta no seio dos diferentes
atores envolvidos, sendo a fraca adesão as zonas de reassentamento apenas a síntese de um processo
figuracional11 (ELIAS, 1970).
11
O conceito de figuração de Elias demonstra existir uma rede de interdependência entre os seres humanos destinandose justamente a combater a teoria de que os seres humanos são átomos isolados nas sociedades, soma-se a isso o fato
71
Assim, a situação que procuramos mapear acima nos oferece uma oportunidade impar para
analisar as práticas discrepantes e os desvios das normas - que marcam as contradições internas das
sociedades africanas - que se manifestam nas situações concretas de eventos, dramas e crises- cujo
quadro explicativo pode ser mapeado num quadro/contexto mais amplo que o local, ou seja, tornase importante perceber as estruturas políticas, econômicas, sociais e simbólicas mais amplas que
conduzem a novas dinâmicas dos grupos como resposta a eventos concretos (COHEN, 1969;
TURNER, 2008).
Devemos, portanto procurar ver estes fenômenos não a luz de uma pretensa tradição estática
e irracional, mas sim a luz da relação ambígua entre as práticas ditas “tradicionais” e fenômenos
como a urbanização, industrialização, “globalização”, formação de um Estado-Nação, etc. – que
equacionados num contexto em que se reconhece o caráter intrinsecamente racional dos grupos se
dá conta das tensões e reconfigurações - que não resultam na destruição dos grupos e suas práticas
tradicionais, mas sim em processos de “retribalização12” em função da adaptação do grupo ao novo
contexto social, político e econômico (Cohen, 1969).
Procuraremos então com a presente pesquisa mapear e compreender outros fatores
explicativos (sociais, econômicos, políticos, espaciais e simbólicos) ligados à historicidade e as
dinâmicas endógenas e exógenas aos grupos, que, podem concorrer para a resistência das
populações ao processo de reassentamento pós-cheias (como calamidade natural específica) no vale
do Zambeze, ou seja, questionamo-nos:
Em que medida as lideranças tradicionais perdem sua legitimidade quando perdem o seu
território de origem? Como e que conflitos se manifestam entre as varias lideranças tradicionais e
grupos reassentados nos mesmos centros? Até que ponto a configuração espacial interfere na
“organização social” das famílias e como esta pode influenciar as comunidades a resistirem ao
processo de reassentamento? Até que ponto o processo de desterritorialização das populações
implica numa reorganização da estrutura social dos grupos/comunidades afetadas? Como se
procedem as novas dinâmicas de poder e autoridade no seio de diferentes comunidades
desterritorializadas e reterritorializadas? E que relação se pode estabelecer entre os conflitos de
poder por parte dos líderes tradicionais das varias comunidades reassentadas e o abandono das
zonas de reassentamento? Que demandas específicas os grupos requerem nos processos de
reassentamento? Que elementos identitários diacríticos são colocados em cena nas reivindicações
de que as figurações estão sempre em constante mudança num fluxo contínuo, em função do resultado da ação
humana sobre elas, e das relações das figurações entre si, na medida em que, todo o ser humano pertence a mais de
uma figuração, a exceção para casos extremos.
12
O fenômeno da “retribalização” estudado por Cohen nas cidades africanas, realça que o que se encontra ao explorar a
etnicidade são formas de organização social em que as populações se apropriam e articulam estrategicamente
antigos costumes e formas de relacionamento social com as novas regras a que estão submetidas, de uma forma
dinâmica, em função de uma auto-organização em termos políticos.
72
territoriais dos grupos no vale do Zambeze? Que relação se pode estabelecer entre a historia política
de efetivação do Estado-Nação em Moçambique e os conflitos ligados aos processos de
reassentamento no vale do Zambeze?
Nossa pesquisa vai então procurar perceber em que medida os conflitos e a questão da
legitimidade das lideranças tradicionais das diferentes comunidades nos centros de reassentamento
de desastres naturais influenciam no retorno das populações às suas zonas de origem?
Sendo que estaremos assumindo em jeito de hipóteses que: são os conflitos/lutas de poder
entre as autoridades tradicionais e as diferenças socioculturais que levam ao abandono dos centros
de reassentamento, por parte das populações deslocadas, devido às mudanças impostas no modus
vivendi destas populações. Os centros de reassentamento operam como um artefato político,
econômico e simbólico que opera na medida em que é produzido e produz diferentes agentes
políticos. Os conflitos e as lutas de poder entre as lideranças tradicionais das diferentes
comunidades nos centros de reassentamento são fruto das dinâmicas de estruturação étnica nesses
contextos.
Em jeito de conclusão, importa dizer que analisar os processos de territorialização, tendo em
conta que o território é mais do que uma fonte de subsistência das populações rurais (vale lembrar
que a agricultura é a principal atividade de subsistência das populações rurais em Moçambique),
sendo também um artefato político, econômico e simbólico que opera na medida em que é
produzido e produz diferentes agentes políticos, e cujo domínio está inserido nas micro relações de
poder entre as lideranças tradicionais, revela-se como uma oportunidade ímpar, para analisar os
processos de institucionalização dos Estados africanos nascidos da situação colonial, partindo de
uma abordagem que considere os atores e processos em múltiplas escalas da realidade que de forma
ambígua e instigante, combinam e (re) significam “modernidade e tradição”, “etnicidade e estadonação”, “dominação legal e tradicional”, etc.
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75
ENTRE RAÍZES E ESPELHOS: A FACE IBÉRICA DO BRASIL.*
Marcos Nogueira Milner
“Q
ê
h
/D b x
m b
h v
Vestiu o índio / Que pena!
Fosse uma manhã de sol / O índio tinha despido
O
ê .”
— Oswald de Andrade
RESUMO
O presente trabalho procura analisar o peso da herança ibérica na formação da identidade brasileira.
Para tal, temos por objetivo construir um breve panorama, onde serão repassados aspectos
históricos e sociológicos presentes desde a formação do próprio modelo ibérico, através do
conturbado processo que deu origem aos Estados peninsulares, até as modernas implicações e
conflitos identitários resultantes desta matriz, presentes no Brasil contemporâneo. Pretendemos,
desta forma, entender como as leituras e análises sobre o personalismo à brasileira, empreendidas
por autores como Richard Morse e Sérgio Buarque de Holanda, reagem através de uma complexa
conjugação entre tais valores culturalmente herdados e instituições e legislações marcadamente
impessoais, presentes nas modernas democracias ocidentais, para enfim desaguar em determinados
aspectos únicos e fundamentais, constituintes importantes da nossa própria identidade.
INTRODUÇÃO.
Sabemos que as raízes são responsáveis por fixar o vegetal ao solo; são responsáveis,
também, por retirar deste mesmo solo os nutrientes que, posteriormente, serão transformados em
alimento e garantirão a sobrevivência do vegetal. As raízes, portanto, são as grandes responsáveis
por garantir o desenvolvimento e a maturação de toda o funcionamento daquilo que suportam; é nas
raízes que começa toda e qualquer estrutura.
Já os espelhos são artefatos capazes de refletir uma imagem. São de grande auxílio quando
se pretende promover mudanças na própria aparência, tal como são essencialmente os grandes
promotores do auto-reconhecimento físico. Espelhos são, obviamente, o duplo de quem ou do que
neles se admira mas, a despeito do poderoso misticismo que tal ato carrega para algumas culturas, o
reflexo nem sempre é exato ou fiel: a qualidade da imagem refletida está sujeita a fatores como a
curvatura do vidro, o ângulo observado e a iluminação do ambiente. Espelhos servem, resumindo,
para refletir, de forma mais ou menos fiel, algo que se pretende observar.
Desta forma, a questão aqui proposta é, prioritariamente, examinar aspectos desenvolvidos
em obras como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, O Espelho de Próspero, de
Richard Morse, entre outros, para estabelecer uma pequena análise sobre o processo de construção
76
da identidade brasileira, sobretudo em referência aos aspectos personalistas herdados dos
colonizadores ibéricos — “as raízes” — e na conflituosa relação e reconfiguração (ou realocação)
de tais aspectos dentro de um sistema social e político, predominante no mundo ocidental,
conceitualmente fundamentado na igualdade de direitos e deveres de cada cidadão, tal como em sua
necessidade de afirmação identitária dentro do Brasil moderno — “o espelho”.
Pretendemos, em outras palavras, entender como se expressam as relações hierárquicas
pautadas por fatores intrínsecos ao modelo ibérico, em especial o personalismo — isto é, a
valorização do ser através de fatores particulares, como o seu grau de prestígio pessoal, o alcance de
suas relações políticas e sociais, o seu reconhecimento profissional — quando confrontadas com
situações universalizantes, onde tal prestígio pessoal precisa ser forçosamente desconsiderado em
nome da igualdade de direitos civis no Brasil contemporâneo, onde o próprio conceito de
democracia representativa adotado postula que, fundamentalmente e obrigatoriamente, todos os
indivíduos possuem direitos iguais, perante a lei e o Estado.
Não é novidade a existência de fortes conflitos enraizados profundamente na sociedade
brasileira. O choque entre a matriz cultural, herdada de uma Ibéria culturalmente segregada por suas
próprias particularidades históricas de seus vizinhos europeus, e o sistema político hegemônico, de
origem francamente anglo-saxã, vem sendo intensamente trabalhado por intelectuais brasileiros
especialmente após a década de 1930, na esteira de autores como Gilberto Freyre, Caio Prado
Júnior, além do já mencionado Sérgio Buarque de Holanda. Objetivamos, entretanto, recortar dentro
deste universo conceitual enorme aspectos que determinem como a difícil conjugação, que aqui
necessariamente assume ares conflituosos entre tradição e sistema político-representativo
contemporâneo, está contida dentro do processo de formação e das crises identitárias brasileiras
atuais e delas se faz fator de suma importância para a compreensão do Brasil enquanto grande,
complexo e diversificado esquema cultural.
Nas próximas linhas, partiremos de um todo para o particular, saindo de um breve panorama
histórico sobre a formação do sistema ibérico para por fim desaguar em casos mais específicos
sobre como tal identidade ibérica se manifesta contemporaneamente e onde estão os conflitos
encerrados em si, seja via manifestações culturais, via movimentos sociais, ou ações afirmativas,
seja através da utilização do “jeitinho”, da necessidade de reafirmação hierárquica.
Entre a Ibéria e o resto do mundo.
Separada não só geograficamente, mas também culturalmente do resto da Europa pelos
Pirineus, a Península Ibérica era, em tempos remotos, um grande e conflituoso mosaico étnico e
77
cultural, composto por mouros, judeus e cristãos; por negros e europeus; todos em franca e
constante interação.
“O medievalista Henri Pirenne observou que sem Maomé não haveria Carlos Magno (e
nem a França). Diga-se o mesmo de modo mais amplo: sem a ocupação muçulmana do
Mediterrâneo não se deslocaria para o norte do continente o centro dinâmico que veio
formar a Europa. Pode-se dizer também que sem a invasão moura na Ibéria, não existiriam
Espanha e Portugal dos descobrimentos que, lembre-se ainda mais uma vez, constituíram,
como disse Richard Morse, a primeira face da Europa na história moderna (MORSE, 1988).
Da Reconquista, surgiu uma nova identidade cultural desses dois países: como misturas de
povos e culturas cristãs, mouras e judias, relegando-se ao passado a Hispania visigótica e a
romana.” (WEFFORT, 2012, p. 433)
Se por um lado a Reconquista garantiria aos cristãos a tão procurada hegemonia política,
por outro o contágio, o escambo, promovido por séculos de convívio entre os diferentes
povos originaria aspectos culturais ímpares que, absorvidos, adaptados e homogeneizados,
funcionariam como as bases de um ethos próprio, exclusivamente encontrado na população
peninsular.
Em Portugal, do âmago deste ethos, embalado por uma ética que valorizava especialmente a
pessoa, o mérito dos feitos e das histórias pessoais em detrimento à instituição burocrática,
brotariam fatores de reconhecimento identitário como o personalismo e, de certa forma, um cárater
aventureiro, “ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis”
(BRESSER-PEREIRA, 2000, p. 3 apud HOLANDA, 1969, p. 16), em contraste com o apego ao
trabalho como principal fundamento ético que mais tarde seria um dos motores dos Estados mais
diretamente afetados pela Reforma Protestante.
Apoiado no breve panorama histórico acima traçado, é mister novamente ressaltar que estas
particularidades explicitadas garantiriam, enfim, o desenvolvimento de um sistema cultural próprio
— consideravelmente distinto das matrizes individualistas que surgiriam no mundo anglo-saxão —
e afetariam e influenciariam, por conseguinte, diretamente os herdeiros, isto é, as colônias
portuguesas e espanholas, dentre elas, obviamente, o Brasil.
Desta forma, partindo da pressuposta existência de uma unidade identitária nacional e social
que permita ao nativo o seu auto-reconhecimento enquanto brasileiro, mas assumindo que esta
unidade é, também, fruto de incorporações de fragmentos provenientes de fontes tão diversas
quanto as matrizes étnicas e culturais que aqui aportaram ao longo dos séculos de nossa história, o
presente trabalho busca em seu escopo entender e responder duas questões: em primeiro lugar,
como tais fragmentos, tão diversos na origem, se conjugam, interagem e que discussões produzem
dentro do todo? Em um segundo momento e principalmente, como a herança ibérica se manifesta,
quais os conflitos que ela denota, como se organiza e quais soluções propõe ao Brasil
contemporâneo, assumindo estruturalmente a enorme variedade de aspectos aos quais aqui está
interligada?
78
Conjugações e interações.
Ainda no século XIX, o Brasil carecia de um mito formador. Não somos, pois, os filhos de
Ulisses como os portugueses; não foram os nossos fundadores amamentados por lobas como no
caso romano e não fomos nós, mas os judeus, conforme a bíblia, o povo escolhido por Deus. Foi só
então, graças ao pragmatismo de um naturalista alemão — e não graças ao misticismo ou aos
ensaios mitológicos — que ganhamos identidade. Somos, segundo Karl von Martius, um híbrido,
uma grande confluência entre três raças distintas: os brancos (portugueses), prioritariamente,
seguido de índios e negros.
Muito embora já existisse antes de von Martius um lógico entendimento sobre o papel de
índios e portugueses no que diz respeito às funções identitárias brasileiras, é dele o mérito em
inserir culturalmente o negro, até então encarado como não mais do que simples mão-de-obra,
dentro das construções culturais. Vale ressaltar que tal síntese, originalmente publicada em 1841,
passou décadas ignorada sendo retomada pelos pensadores brasileiros somente já no início do
século XX, para ser efetivamente consagrada a partir da década de 1930 (GOMES, 2012, p. 183).
É simplificar demais, no entanto, assumir hoje somente as três matrizes dentro de um
universo plural, sujeito aos efeitos da dita modernidade estendida, da diminuição de fronteiras e da
globalização, como é o Brasil contemporâneo. Não podemos esquecer da intensa contribuição dos
fluxos migratórios, especialmente compreendido entre os esforços de importação de mão-de-obra
branca iniciado conforme o fim da escravidão e desenvolvido até a crise européia nas décadas de
1940 e 1950, que trouxe uma enorme quantidade de japoneses, judeus, alemães e, sobretudo,
italianos.
Todos contribuíram, pois, para uma formação com certo grau de cosmopolitismo e
influenciaram em um ou outro aspecto identitário algo que seria mais tarde englobado por aquilo
que definimos como cultura nacional. Não existe identidade imutável: da mesma forma que os
imigrantes do século XIX acrescentaram seus próprios valores e influenciaram o meio, é plausível
assumir que mais tarde, com o frequente aporte de chineses, bolivianos e haitianos, característico
deste início de século XXI, por exemplo, surgirão novos aspectos e valores, em maior ou menor
escala, dentro deste complexo meio.
Existe, todavia, uma grande matriz que a despeito das demais, sobressai. É da matriz ibérica
que surge o idioma, uma boa parte das referências estéticas e arquitetônicas, a simbologia, a religião
da maioria.
As conjugações culturais e as incorporações são quase sempre originadas através de um
diálogo entre um aspecto diverso e a referência ibérica correspondente: só no Brasil existe uma
conjugação tão específica entre as religiões africanas e o catolicismo, para ficar no exemplo mais
79
emblemático; é no Brasil onde as tradicionais baianas, sacerdotisas afro-religiosas e
consequentemente pagãs, lavam com água de cheiro as escadarias de um templo cristão. Se em
vários lugares o ritual seria enxergado como uma afronta a simbologia cristã, no Brasil é visto com
afetividade, com certa doçura, como uma manifestação cultural valiosíssima para ambos os lados —
católicos e afros.
A capacidade de diálogo já estava presente, para Sérgio Buarque de Holanda, nas origens do
Estado português, motivada pela própria miscigenação decorrente da ocupação da Ibéria por
diversos povos. O português, em outras palavras, tinha um jogo de cintura próprio para lidar com
outras culturas, motivado por certa ausência de orgulho de raça.
“Essa modalidade de seu caráter, que os aproxima das outras nações de estirpe latina e,
mais do que delas, dos muçulmanos da África, explica-se muito pelo fato de serem os
portugueses, em parte, e já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo de mestiços [...]
Neste caso, o Brasil não foi teatro de nenhuma grande novidade. A mistura com gente de
cor tinha começado amplamente na própria metrópole.” (HOLANDA, 1995, p. 53)
Esta plasticidade social — também refletia em uma menor estratificação hierárquica,
chegando ao ponto de reunir quase homogeneamente dentro do genérico “classe dominante” nobres,
burgueses e ricos profissionais liberais, todos dividindo uma mesma mentalidade e com hábitos
parecidos não só entre si, mas também similares aos do populacho (cf. BRESSER-PEREIRA, 2000;
MORSE, 1988; HOLANDA, 1995) — garantia uma espécie de permeabilidade conceitual que
favorecia a transição e a incorporação do particular pelo todo.
Se por um lado a maleabilidade social — com a qual também trabalharia Gilberto Freyre
através de seu conceito de democracia racial — gerava e permitia esse índice elevado de
incorporações, por outro a homogeneização resultava em uma ausência de projetos de classe.
Explica-se: tendo o burguês status e mentalidade muito similar a do nobre, a ponto de se
confundirem, existe um esvaziamento da noção de classe, uma adoção de um projeto geral que
acaba sendo centralizado.
Se, no início, essa particularidade cultural foi responsável pelo surgimento de Portugal, já no
século XII, como o primeiro Estado moderno de forma precoce, e pelas grandes inovações que o
Reino promoveu nos três séculos seguintes, também seria ela a responsável pela transição entre a
prosperidade e a inoperância pela qual ficou historicamente marcado o Estado português. Como
explica melhor Raymundo Faoro, “a marcha triunfal de Aljubarrota e dos descobrimentos, o
encontro com a experiência, tudo se frustraria, imobilizado em uma condição inesperada: a de um
reino comercial-marítimo, incandescente no seu primeiro fogo, e uma monarquia ferida de
imobilismo.” (FAORO, 2007, p. 46).
Em suma, devido às particularidades históricas que atravessaram os Reinos da Ibéria, estes
não partilharam com os demais países europeus a estrutura feudal, se modernizando precocemente.
80
Em contrapartida, a própria resultante deste esforço ímpar gerou um sistema identitário
diferenciado, que se fechou por muitos séculos dentro de si próprio, não buscando compreender ou
conjugar as diferentes filosofias e saberes que surgiam externas as suas fronteiras. O iluminismo e
do liberalismo — ao contrário das reformas religiosas, que nunca ocorreram efetivamente na
Península — só chegariam e/ou se difundiriam em Portugal só em meados do século XIX.
Todo este trato social diferenciado está contido dentro do conceito de personalismo. A
valorização do conhecimento social, das interações, dos contatos e da personalidade, das relações
moderadas pela intimidade, pelo mérito de ser determinada pessoa — ou, em outras palavras, de
todo o conjunto subjetivo que diferencia uma “pessoa” de um “indivíduo” — e não pela
impessoalidade tácita das instituições, modelou todo o sistema cultural ibérico e, consequentemente,
a herança íbero-americana.
Se na América, as conjugações com outras matrizes geraram híbridos interessantíssimos do
ponto de vista estrutural conforme demonstrado anteriormente, deve-se levar em conta também que
elas acarretam graves conflitos sistêmicos. E dentro destes conflitos, existem entusiasmos que
defendem distintos pontos de vista. Se, conforme veremos mais adiante, uns defendem que a
“cordialidade” ibérica garante uma sociedade mais unida e solidária, como nos faz crer Richard
Morse (1988), outros entendem que a frouxidão de aspectos institucionais promovem
patrimonialismo exagerado, tanto na administração pública — o macro — quanto em pequenos
conflitos cotidianos — o micro. São, portanto, os dois lados de uma mesma moeda.
Os desdobramentos e raízes da cordialidade.
Fortemente influenciado pela obra de Max Weber, Sérgio Buarque de Holanda elaborou, em
Raízes do Brasil, um tipo ideal que ilustrasse e argumentasse a favor de suas acepções acerca da
cultura brasileira. Concebeu, desta forma, o que chamou de “homem cordial”.
O homem cordial seria na ótica o autor o arquétipo que melhor traduz interações sociais
tipicamente brasileiras: regido pelas emoções em detrimento da razão, com tendência a aproximar e
tornar íntimos aqueles que são de suas relações, rejeitando tudo aquilo que lhe parece impessoal. O
homem cordial não deve ser, entretanto, confundido com gentil; ele é “cordial” no sentido literal,
inerentemente emotivo, passional, e como tal reage passionalmente, seja positivamente ou
negativamente:
“O homem cordial é aquele que busca sempre em todas as suas relações sociais um nexo de
proximidade pessoal. O impessoal pra ele é um tormento. Tudo que é impessoal, desde a
burocracia até as pessoas em multidão, lhe são potencialmente adversários. Portanto, para
que haja relacionamento, faz-se mister que se dê conhecimento pessoal e em consequência
simpatia e proximidade. Tal atitude derivaria, segundo Sérgio Buarque, de um antagonismo
inerente entre o Estado, como instância do poder público, portanto, do impessoal, portanto,
do adverso; e a Família, como instância do privado, do pessoal e portanto do próximo. O
brasileiro, que forma sua personalidade no seio e no aconchego da família, detesta o
81
impessoal, sente-se ameaçado e incapaz diante do desconhecido e só pode conviver
verdadeiramente com aquilo que lhe pode ser tornado pessoal.” (GOMES, 2012, p. 190)
Ele é, ao mesmo tempo, instrumento e executor do personalismo. É ele quem promove e
fomenta o culto à aproximação, rejeita o impessoal e tenta sempre trazer o que é estranho para
intimidade; por outro lado, o homem cordial representa uma construção recorrente, entranhada no
meio cultural do qual ele também é uma reprodução.
Entendemos que é um ciclo: o personalismo entranhado recria e opera constantemente um
instrumento, o homem, que executa o mesmo personalismo, sucessivamente. Sendo ambos, homem
cordial e personalismo, ao mesmo tempo, causas e efeitos, legislador e executor um do outro,
podemos assumir que este ciclo avançou continuamente, ainda que sofrendo incorporações ao longo
dos tempos, enxertos conflituosos provenientes de aspectos culturais exógenos, que aportaram
dentro deste meio já previamente estabelecido e que, embora não tenha destruído ou mesmo
desfigurado o sistema em questão, remodelaram e inseriram novos ramos estruturais, tornando sua
fisionomia sociológica fundamentalmente mais complexa.
Existem, portanto, vários vieses mais ou menos explorados, trabalhando qualitativamente
aspectos mais ou menos evidentes, dentro da literatura sócio-antropológica ou política produzida
pelos pensadores brasileiros que se dedicam ao tema. Enfim, a problemática que envolve relações
entre tradição e modernidade no Brasil gerou diversas produções com enfoques distintos e permite
trânsito entre diferentes correntes e idéias para desta forma entender o personalismo e o homem
cordial em variados desdobramentos.
Curiosamente, Sérgio Buarque de Holanda se esforça pela neutralidade. Se por um lado,
aparentemente nutre certa simpatia pela sua referência de tipo ideal, por outro define, talvez
causticamente, o homem cordial como “contribuição brasileira a civilização” (1995, p. 146). O
autor, embora demonstre um certo desprezo por algumas demonstrações típicas de personalismo,
como o que entende por “bacharelismo” brasileiro, faz por outro lado concessões ao modus
operandi português de colonização, pautado prioritariamente pelo fomento das relações pessoais, ao
contrário do modelo neerlandês, principalmente representado pelo desenvolvimento de instituições
burocráticas. Em suas considerações, o autor entende que a modernidade acabará por suplantar a
herança personalista, as raízes, que serão paulatinamente substituídas por um modelo mais próximo
daquele norte-americano, cujo individualismo e igualdade de direitos civis tanto inspirou
Tocqueville.
Alcançamos enfim a proposta deste trabalho: tipificar, exemplificar, entender, manifestar e
fazer dialogar as diferentes propostas e visões acerca dos conflitos gerados pela inserção e
acomodação de matrizes de origens distintas dentro deste meio inicial predominantemente ibérico e
os dispositivos que o homem cordial encontrou e desenvolveu para continuar agindo de forma
82
personalista. Surge, enfim, uma profusão de símbolos, situações e atitudes que merecem ser
trabalhados, conforme será visto nos próximos parágrafos.
Entre malandros e bacharéis.
Coexistem no Brasil dois fatores, um político e um cultural, que a priori são notadamente
incompatíveis. Se, de um lado, seguindo os moldes das grandes democracias ocidentais, existe
busca pela impessoalidade das leis, nivelando todos os indivíduos dentro de um mesmo universo
legislativo de direitos e responsabilidades, por outro existe o personalismo ibérico, com suas
propostas de aproximação, de levar para o lado pessoal aspectos que deveriam ser estritamente
impessoais.
Existe um significativo outro lado da nossa cordialidade simpática. Este outro lado, mais
malicioso, é o responsável pelo mau personalismo, o personalismo que fere leis e enfraquece
instituições; é o personalismo que corrompe, que se confunde com o patrimonialismo, misturando e
cancelando os limites, dentro das esferas administrativas do país, de dois campos que deveriam,
para o bem da ordem pública, se manter estritamente afastados: o poder público e o poder privado.
Este aspecto negativo do personalismo acabou predominando no imaginário popular. Os
conflitos gerados pelo seu uso pernóstico geraram dispositivos de afirmação hierárquica, como a
famosa expressão “você sabe com quem está falando?”, trabalhada por Roberto DaMatta (1997).
O antropólogo invoca então um desdobramento negativo desta essência personalista. A
utilização da expressão — usualmente aplicada em situações onde alguém nega a identidade
subjetiva e particular da pessoa para situá-la em uma relação impessoal onde predomina o indivíduo
— é uma resposta agressiva ao frio trato que separa o ser de todas as suas insígnias e relações
sociais; o utilizador da expressão busca, portanto, se reafirmar dentro de um status social que ele
julga pertencer e que, subitamente, lhe foi subtraído e desrespeitado.
O “você sabe quem está falando?” é, acima de tudo, uma forma de se posicionar
hierarquicamente como superior ao interlocutor, de registrar a importância de suas particularidades
especiais em detrimento da lei que o generaliza e que não serve para si próprio, mas somente para
enquadrar para os outros.
Para tornar mais claro, podemos citar, por exemplo, alguém que estaciona seu automóvel em
um lugar proibido. Ao ser abordado pelo guarda-municipal, reage com a famigerada pergunta, já
emendando imediatamente a resposta: “você sabe com quem está falando? eu sou o deputado
fulano!”, ou “sou a esposa do deputado fulano” ou ainda “sou o motorista do deputado fulano”.
Em todos os casos, quem emprega a expressão se julga detentor de particularidades, de um
status que não permite a abordagem e o trato como se fosse um “qualquer”. A negação do valor
pessoal, da posição hierárquica que a pessoa ocupa dentro da estratificação social da sociedade, e a
83
consequente realocação da personalidade para a categoria genérica de indivíduo gera estranheza,
conflito, e exige uma reparação. Percebemos, pois, uma nítida dicotomia: existe a pessoa e todo o
aparato abstrato, como relações sociais e os status que fazem dela alguém particular e existe o
indivíduo, o cidadão, genérico, cujos direitos e deveres estão pautados legislativamente e são
comuns a todos os outros.
A dicotomia pode ser, inclusive, ampliada: os nossos, os amigos, os companheiros, os de
casa, em contraste com os outros, os estranhos, os da rua1. Aos nossos, os privilégios e a
particularização; aos outros, a lei!
No Brasil, o próprio termo “indivíduo” é encarado como certo ar pejorativo, onde “são
inúmeras as expressões que denotam o desprezo pelo ‘indivíduo’, usado como sinônimo de gente
sem princípios, um elemento desgarrado do mundo humano e próximo da natureza, como os
animais.” (DaMATTA, 1997, p. 240). São sempre os indivíduos (os outros, portanto) que
frequentam ambientes ruins, que se envolvem em escândalos e crimes; nunca os de casa, os de “boa
família”.
Segundo este entendimento, o Brasil está imerso em uma cultura de privilégios, estratificada
pelo quão próximos somos dos outros e não moderada efetivamente pela igualdade de direitos,
embora esta exista apenas em teoria.
“Eis o que parece ser o dilema brasileiro. Pois temos a regra universalizante que
supostamente deveria corrigir as desigualdades servindo apenas para legitimá-las, posto que
as leis tornam o sistema de relações pessoais mais solidário, mais operativo e mais
preparado para superar as dificuldades colocadas pela autoridade impessoal da regra.”
(Idem, p. 247)
A ausência de rigor legislativo observada por DaMatta vai de encontro ao desleixo
português pelas formalidades narrado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil e
concorda também com as considerações sobre a fraqueza de formalidades burocráticas e
institucionais presentes na América Ibérica proposta por Richard Morse (1988), ainda que este
último considere tal aspecto positivo, conforme veremos mais adiante.
O esforço das leis em igualar os indivíduos em um mesmo patamar e vedar a prática
personalista, em tese, é evidente; existem, no entanto, certos exemplos de leis que, de dentro do
nosso conjunto de legislações, recorrem também a uma prática personalista. Um exemplo
contundente é a lei2 que garante prisão especial provisória, cela individual, para pessoas que tenham
um diploma de ensino superior antes de uma condenação efetiva.
O privilégio em questão faz jus à análise de Sérgio Buarque sobre o que ele chama de
“bacharelismo”. Diz o autor inicialmente, sobre particularidades da hierarquia portuguesa, que
1
Ver DaMatta, Roberto. “A Casa & a Rua”. Rocco: São Paulo, 1997
Art. 295 do Código de Processo Penal, inciso VII, que determina que os diplomados por qualquer das
faculdades superiores da República “serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade
competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva”.
2
84
“qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns dos seus distintivos
materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de
nobreza.” (1995, p. 83) para, depois, retomar o raciocínio, argumentando que:
“Apenas, no Brasil, se fatores de ordem econômica e social — comuns a todos os países
americanos — devem ter contribuído largamente para o prestígio das profissões liberais,
convém não esquecer que o mesmo prestígio já as cercava tradicionalmente na mãe-pátria.
Em quase todas as épocas da história portuguesa uma carta de bacharel valeu quase tanto
como uma carta de recomendação nas pretensões a altos cargos públicos.” (Idem, p. 157)
Se o título de bacharel no Brasil substituiu motivos heráldicos, dentro de uma ótica
hierárquica, é compreensível que alguns dos privilégios outrora concedidos aos nobres sejam
recuperados para a nova classe aristocrática; o ato de isolar o graduado, ainda que provisoriamente
antes do julgamento, pode ser interpretado como um “benefício da dúvida” que os demais,
inferiores hierarquicamente, não possuem.
Da mesma forma que o nobre detém privilégios amparados por suas origens hereditárias,
neste caso específico, o bacharel as absorve, amparado por pretensa superioridade intelectual. Em
outras palavras, espera-se de um comum hoje (e antes) que se pratique um delito e que seja punido
por ele, mas a recíproca, para o diplomado, não é verdadeira (da mesma forma que não o era para o
nobre antes) e, se o diploma não garante exatamente a sua liberdade plena mediante um crime, ao
menos garante que ele não se misture — e consequentemente se contamine — com os inferiores.
A discussão se dá, portanto, em um contexto de transição de formas hierárquicas traduzidos
na transferência simbólica entre o brasão e o diploma. Diz DaMatta sobre o assunto:
“Assim, na medida em que símbolos tradicionais de posição social, como o uso de fraques,
bengalas e bigodes [...] saíram de moda, a expressão ‘sabe com quem está falando?’ tenha
ficado muito mais comum nessas eras de de mudança e de ‘desenvolvimento’ justamente
porque hoje não se tem mais a antiga e ‘boa consciência’ de lugar.” (1997, p. 206)
É possível interpretar a evolução dos símbolos levando em consideração a teoria proposta
por Norbert Elias (2011) sobre o reinvento de hábitos e símbolos que justificassem e
demonstrassem preponderância hierárquica dos nobres sobre os demais, durante a transição entre a
nobreza feudal, guerreira, para a nobreza de corte.
Se no caso brasileiro a nobreza é substituída por uma elite intelectual, conforme coloca
Buarque de Holanda, é compreensível que sejam adaptados rituais e símbolos — e mesmo leis,
conforme vimos anteriormente — que justifiquem a posição de superioridade; não estando estes
símbolos sempre explícitos, o dispositivo “você sabe com quem está falando?” estudado por
DaMatta entra na discussão para colocar o inferior em seu devido lugar.
Resumindo, procuramos demonstrar nas linhas precedentes como o personalismo herdado
dos ibéricos e a difícil fronteira entre o público e o privado entra em conflito quando confrontado
com o regimento impessoal das leis e das instituições modernas. Procuramos observar também que,
mesmo que haja um esforço teórico para de fato nivelar os cidadãos em uma posição de direitos
85
iguais, existem alguns dispositivos que acabam por justificar dentro destas construções o mesmo
personalismo que elas deveriam combater.
A construção e a transição dos símbolos que justificam o posicionamento hierárquico de
cada classe também faz parte do conflito, seja através da ostentação de insígnias, seja, na ausência
delas enquanto explícitas, no uso da autoritária expressão “você sabe com quem está falando?”.
Nota-se, portanto, que também a cordialidade, em seu sentido literal de emotividade, pode
transitar entre aspectos positivos e negativos; que da mesma forma que existe a constante tentativa
de aproximar aquele que é distante, existe também a defesa do próximo em detrimento do
desconhecido, caracterizando uma potencial desigualdade no alcance e aplicação das leis. As leis,
afinal, servem sempre para os outros, nunca para os nossos.
Estas observações exprimem também o patrimonialismo, desde manifestações mais
simplórias — como uma pessoa que fura a fila de determinado estabelecimento por ser amigo do
gerente — até exemplos consideravelmente mais graves — como a contratação de um funcionário
público intermediado por suas relações pessoais, sem a convocação de concurso, ou mesmo a
apropriação de dinheiro do Estado para uso em causas próprias.
O conflito entre identidade cultural e controle legislativo se alastra portanto tanto dentro de
um universo micro, traduzido pelas dificuldades de interação e pequenas crises cotidianas, até o
macro, especialmente representado pelo patrimonialismo dentro do corpo político. É dentro desta
conjuntura que podemos enquadrar uma importante observação proposta por um dos nossos autores:
“A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e
semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e
privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da
burguesia contra os aristocratas.” (HOLANDA, 1995, p. 160)
Notamos, por fim, a dificuldade em acomodar dentro do ethos ibérico noções de democracia
e igualdade, compreendida no sentido tocquevilleano do termo, enquanto civil, igualdade de
direitos. Não conseguimos conjugar, à maneira dos americanos, igualdade civil com diferenças
étnicas ou sociais. Explica DaMatta sobre a questão racial, mas cujo argumento também pode ser
importado para conflitos de ordem puramente social ou sócio-econômicos:
“Sendo assim, não fizemos qualquer contralegislação que definisse um sistema de relações
raciais fechado e segregacionista, com base no princípio do ‘iguais, mas separados’ (como
foi o caso americano). Preferimos usar o domínio das relações pessoais — essa área não
atingida pelas leis — como local privilegiado para o preconceito que, entre nós, como têm
observado muitos pesquisadores, tem um forte componente estético (ou moral) e nunca
legal.” (1997, p. 208)
Em contrapartida, aspectos positivos sobre a herança ibérica são igualmente enumerados por
outros autores, que utilizam justamente o mesmo contraste com os países individualistas para
desenvolver seus argumentos. Examinaremos algumas proposições e aspectos que abordam esse
86
viés mais positivo, em um sentido construtivo também como uma espécie de nova ordem social do
personalismo para podermos, finalmente, completar o panorama.
Nem tudo está perdido: reflexos positivos da herança ibérica.
Um espelho. Um artefato, conforme ilustrado na introdução do presente trabalho, cuja
função reflete uma busca por auto-reconhecimento ou identificação. Um espelho controlado por
Próspero3, um grande mago e legítimo governante de um ducado que, exilado em uma ilha por
traição política, busca vingança e restituição.
O espelho de Próspero ao qual o brasilianista Richard Morse faz referência no título de seu
estudo sobre a América Latina — que ele coerentemente prefere chamar de Íbero-América — é
uma alegoria que o autor utiliza para representar a “vingança” do sistema personalista ibérico,
estigmatizado como inoperante e atrasado, quando confrontado com o modelo individualista e
impessoal predominante na Anglo-América.
O curioso projeto de Morse — ele próprio um historiador norte-americano, que discorre com
fluência e erudição sobre as particularidades do processo civilizatório e do aparato histórico ao qual
a Ibéria e, posteriormente, suas colônias estiveram submetidas — consiste em encontrar um espaço
para o sistema ibérico — que ele entende como uma escolha, uma opção, uma alternativa
promovida pelos Estados peninsulares — e seus herdeiros íbero-americanos dentro da estrutura
ocidental; para o autor, o modelo ibérico, embora careça de menor dinamismo e receptividade
científica e filosófica que o modelo anglo-saxão, possui méritos únicos capazes de uma forte
contribuição para a civilização ocidental.
Assumindo a “escolha” ibérica como periférica e o modelo adotado pela anglo-américa
como hegemônico, Morse entende que o último entrou em vias de esgotamento e que o projeto
ibérico pode emergir desta periferia como uma alternativa saudável para a manutenção ou
construção de uma ordem social remodelada.
No entendimento do autor, a Ibéria permaneceu, durante séculos, estagnada, não
experimentando nenhuma “situação interna revolucionária religiosa ou política” (MORSE, 1988, p.
73) e, consequentemente, acabou sonolenta, presa no próprio imobilismo, que não permitiu nenhum
auto-exame, ao contrário do modelo hegemônico, que em suas origens atravessou a Reforma
Protestante, as revoluções Francesa e Industrial e, embora o autor não mencione, mais recentemente
as duas guerras mundiais.
A escolha ibérica se escondeu do mundo e dele não partilhou. Continuou existente em si,
pouco adaptada aos fatores políticos e sociais que surgiam, visto que estes não haviam sido
3
Personagem de “A Tempestade”, de William Shakespeare.
87
pensados sobre medida para teu uso4. Tomava as coisas “de segunda mão” e tinha dificuldades para
customizá-las. O projeto ibérico, neste sentido, de fato assumiria ares de fracasso.
O resgate que o autor promove, todavia, desta escolha periférica, especialmente aplicada na
economicamente e socialmente frágil Íbero-América, é entusiástico: Richard Morse entende que o
modelo da rica Anglo-América está em vias de esgotamento e que a alternativa passa pelo
entendimento da sociedade por uma ótica onde as instituições mais frágeis permitam uma maior
interação social entre os cidadãos, gerando assim uma espécie de solidariedade personalista.
Nota-se, portanto, que em Morse, o personalismo pode adquirir contornos positivos e tomar
sua parte no “desígnio ocidental”. O otimismo do autor para o futuro contrasta, portanto, com as
perspectivas já abordadas neste trabalho e, embora desenvolva esquema semelhante em sua obra ao
que Sérgio Buarque de Holanda desenvolve em Raízes do Brasil, partindo de uma formação
histórica e política como ponto de partida para a formação do projeto estrutural ibérico, o
brasilianista se mostra muito mais otimista que o reticente brasileiro no que diz respeito ao futuro da
Íbero-América. Morse, portanto, pode ser classificado como um entusiasta.
Seu espelho, no entanto, gerou polêmicas. Ressuscitou em fins da década de 1980 velhas
disputas intelectuais, já presentes nos tempos do Império, entre os defensores do iberismo e aqueles
que promoviam o americanismo: a discussão do autor com Simon Schwartzman5 reedita, de certa
forma, uma outra, muito anterior, entre o liberal Tavares Bastos e o ibérico Oliveira Vianna,
estando esta última revisitada por conhecido artigo do sociólogo Werneck Vianna6.
Embora infelizmente seja fisicamente impossível discutir neste trabalho com a enorme
atenção que a rica correspondência entre os autores em questão merece, é importante ao menos
mencionar que a polêmica que envolve os defensores de esta ou aquela corrente está presente há
séculos no pensamento e debate sociológico e político brasileiro.
Felizmente, não existe e provavelmente nunca existirá um consenso sobre qual é, de fato, o
mérito do individualismo ou o peso do personalismo; a discussão é ampla demais para permitir
certezas. Desta forma, restam as conjecturas e os argumentos mais ou menos convincentes. Assim
sendo, mencionados os aspectos que interessaram ao âmbito deste trabalho, correremos a seguir o
risco de propor uma conclusão, que de forma nenhuma significa ter a triste e audaciosa pretensão de
propor uma certeza ou um fim para tão amplo debate.
4
Impossível não recordar da célebre exclamação de João da Ega, personagem do romance Os Maias, de autoria
do português Eça de Queirós: “Aqui importa-se tudo! Leis, idéias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências,
estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos
caríssima com os direitos de alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas.”
5
Cf. Schwartzman, Simon. "O Espelho de Morse", e Novos Estudos CEBRAP vol 25, outubro de 1989 pp. 191203. Também disponível em http://www.schwartzman.org.br/simon/redesc/morse.htm. Consultado em 05 de
novembro de 2012.
6
WERNECK VIANNA, Luiz. “Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos”.
In: DADOS - Revista de Ciências Sociais, Vol. 34. Rio de Janeiro, 1991.
88
CONCLUSÃO
O personalismo à brasileira, herdado da metrópole ibérica, existe e influi nas nossas relações
culturais e na nossa própria concepção identitária. Existimos enquanto resultado vivo, físico, de um
processo histórico iniciado em tempos quase imemoriais; absorvemos uma mentalidade, uma
determinada forma de refletir e agir, que tem origem em um processo histórico que nunca
poderemos entender ou narrar com plenitude, graças a ausência efetiva de detalhes, onde alguns
ficaram por completo perdidos no tempo e espaço. Somos filhos de pais conceituais por nós semidesconhecidos mas, como bons filhos pródigos que somos, assumimos a nossa herança e delas
sobrevivemos.
Como todo filho, somos diferentes e ao mesmo tempo temos semelhanças com nossos pais.
Guardamos a nossa identidade com certo orgulho, preservamos certos ensinamentos, mas os
adaptamos as nossas necessidades e ao nosso tempo específico. Existe, claro, uma essência
preservada; mas nesta essência se incorporam outros sabores.
Somos, sim, personalistas; somos, conforme o termo empregado por Sérgio Buarque,
cordiais; temos certa aversão ao distanciamento, buscamos trazer para perto e estabelecer certa
intimidade com aqueles que estão longe. Protegemos também aqueles que estão em nossas relações
da indiferença do mundo, mesmo que isto signifique passar por cima das nossas próprias regras. As
leis, repetindo o que já foi dito anteriormente, são para os outros.
Existe, neste esquema, um evidente conflito. Somos modernos, estamos incluídos em um
mundo dinâmico do qual dependemos e que funciona pautado por um modelo que nos é estranho,
de difícil adaptação, pautado por impessoalidades e friezas institucionais. Ibéricos, latinos,
procuramos sempre uma brecha no sistema, damos um jeitinho de aproximar o que está longe e
resolver dentro de um meio mecânico por um viés mais orgânico.
Explicitadas estas particularidades, o que somos, afinal? Difícil (ou mesmo impossível)
responder. Existem, entretanto alguns pontos notáveis que merecessem reconhecimento.
Em primeiro lugar, incorporamos vetores. Não somos imutáveis. E, se Buarque de Holanda
se precipitou em dizer que a herança ibérica estava condenada a desaparecer (1995, pp. 169 - 189),
não podemos negar que elas sofreram uma certa mutação.
Em segundo lugar, estamos organizados, mal ou bem, dentro de um sistema que tende, cada
vez mais, a nos reconhecer enquanto células responsáveis pelo funcionamento de um todo, onde
cada um tem uma função e uma influência específica. Desta forma, dentro de uma estrutura, não
somos meros observadores, mas sim participantes que, muito embora detendo certos valores em
comum, ao qual podemos chamar genericamente de identidade, pensamos diferente e possuímos
diferentes argumentos que podem gerar diferentes atuações.
89
Entendo, ao fim deste trabalho, assumindo todas as consequências e conforme já explicitado
sem ter a audácia de querer por fim a discussão, que estamos imersos em um sistema que englobou
aspectos distintos e entrou em mutação, produzindo um híbrido. Estes aspectos, dentro de um
conjunto amplo, estão justapostos e ora dialogam e interagem harmoniosamente, ora entram em
desacordo e promovem conflitos.
Eles, os aspectos culturais absorvidos e distintos, não estão, analogamente falando, dispostos
em uma balança que pende para este ou aquele lado, mas sim em profundo contato, interativos,
dinâmicos e voláteis. Como todo híbrido, acaba necessitando de um certo desenvolvimento, acaba
possuindo certas arestas e deformidades que com o tempo vão sendo polidas ou amenizadas.
Não somos, concluindo, exclusivamente personalistas ou individualistas; possuímos
heranças e incorporações que geraram uma identidade híbrida que se manifesta de forma mais ou
menos incerta muito de acordo com a ocasião.
Se existe no Brasil uma grande gama étnica que gerou reconhecidamente um ser mestiço
como grande símbolo da variedade do país, acho que devemos entender este mesmo processo de
miscigenação como responsável pelas dores e delícias, parafraseando o compositor, de sermos
quem nós somos.
Boa Viagem, novembro de 2012.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRESSER-PEREIRA, Luíz Carlos. Relendo Raízes do Brasil. 2000. Disponível em
http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=549. Consultado em 5 de novembro de 2012.
DaMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
_________, O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
FAORO, Raimundo. A República inacabada. São Paulo, Editora Globo, 2007.
GOMES, Mércio P. Antropologia. São Paulo: Contexto, 2012.
HOLANDA, Sérgio B. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
MORSE, Richard. O Espelho de Próspero. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.
WEFFORT, Francisco. “Origens do Brasil: Nossas Heranças Ibéricas” In: Uma Sociologia
Indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna. Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2012.
90
BLOOD & HONOUR: NEONAZISMO, LUTA POR RECONHECIMENTO E TEORIA DOS
MOVIMENTOS SOCIAIS
Eric Monné Fraga de Oliveira1
RESUMO
O artigo que se segue pretende oferecer uma abordagem científica e livre de viés político
sobre a organização neonazista Blood & Honour. Os referenciais sociológicos usados
compreendem, sobretudo, quatro contribuições teóricas: a teoria dos movimentos sociais de Sidney
Tarrow; os conceitos de movimento social, movimento societal e antimovimento social
desenvolvidos por Alain Touraine, o conceito de luta por reconhecimento de Axel Honneth; e a
teoria sobre multiculturalidade de Stuart Hall. O propósito principal é compreender e explicar como
se produzem os sentimentos, experiências e memórias neonazistas e como isso se desenvolveu
através da organização Blood & Honour. O material empírico para este estudo é constituído pelos
trabalhos de Antonio Salas (sobre a Blood & Honour) e Bill Buford (sobre neonazismo), e pela
website da organização.
Palavras-chave: Neonazismo; reconhecimento; movimentos sociais; multiculturalidade.
INTRODUÇÃO
Esse trabalho tem como objetivo realizar uma breve análise da organização neonazista
Blood & Honour sob o prisma das teorias dos movimentos sociais e do multiculturalismo. O
referencial teórico utilizado será composto principalmente por Axel Honneth, Alain Touraine,
Sidney Tarrow e Stuart Hall, com utilizações pontuais de alguns trabalhos e contribuições teóricas
de Benedict Anderson, Norbert Elias e Ron Eyerman. As informações sobre o Blood & Honour e
outros grupos neonazistas são tiradas dos trabalhos de Antonio Salas e Bill Buford, além das
websites das próprias organizações. Alguns outros autores poderão ser úteis em momentos isolados.
Verificar-se-á se essa organização pode ser pensada como um movimento social, como se constitui a
estrutura de oportunidades e mobilização de recursos, quais são seus símbolos e como eles são
manipulados, quais seus objetivos, aliados e opositores.
Antes, porém, faz-se necessário esclarecer qual a relação de Salas e Buford com o tema
tratado. Antonio Salas é um jornalista espanhol que se infiltrou em um terreno onde se articulam
três áreas distintas, porém interligadas: música (assim como estética) “skinhead”, neonazismo e
hooliganismo no futebol. Salas relacionou-se, durante sua infiltração, com diversos grupos
1
Mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense,
graduado em Ciências Sociais também pela Universidade Federal Fluminense.
91
neonazistas, skinheads (incluídos aí os de orientação esquerdista) e hooligans, mas, no presente
trabalho, apenas sua interação com as divisões espanholas do Blood & Honour, a discussão sobre o
início da “subcultura”2 jovem skinhead e a relação dessa “subcultura” com o neonazismo terão
relevância. Já a obra de Bill Buford, um norte-americano que realizou um trabalho, também de
cunho jornalístico, entre hooligans ingleses, foi utilizado mais com a finalidade de corroborar as
informações de Salas sobre as organizações neonazistas e suas relações com o hooliganismo e com
a “subcultura” skinhead, fornecendo elementos para uma generalização mais correta. Seu papel
secundário é providenciar dados para a afinidade entre o National Front e o neonazismo.
SURGIMENTO DA ORGANIZAÇÃO BLOOD & HONOUR
A organização Blood & Honour tem um início bastante particular, cuja elucidação
demanda que se explique, mesmo que superficialmente, um fenômeno que lhe é anterior. Aqui, será
necessário fazer isso de maneira curta e objetiva. Após a independência jamaicana em relação ao
Reino Unido, grandes contingentes de jovens jamaicanos migraram para a Inglaterra em busca de
oportunidades melhores de emprego, e levaram sua música consigo. Logo, esse estilo musical que
os acompanhou, uma mistura agressiva de mento, calipso, swing, jazz, jive e Rhythm & Blues que
veio a se chamar ska, acompanhado por um ritmo bastante intenso de dança, alcançou uma notável
popularidade entre outros jovens urbanos de origem proletária, tornando-se parte de seu estilo de
vida e da formação de sua identidade. Dessa integração, surgiram os mods (diminutivo para
modernists, modernistas) que, com o passar do tempo, começaram progressivamente a agregar
cerveja, futebol e violência ao estilo musical na construção identitária.
Avessos ao pacifismo hippie, esses jovens começaram a formar grupos relativamente coesos
e orientados por um comportamento violento (já nas suas origens jamaicanas, a postura violenta
estava presente). Raspar a cabeça (além de deixar o rosto perfeitamente imberbe) tornou-se uma
regra geral nos grupos, significando que estavam constantemente preparados para o combate físico3.
Com o passar do tempo, esse estilo musical se tornou cada vez mais popular entre jovens brancos,
que passaram a constituir a maioria esmagadora dos seus ouvintes. Após uma ligeira queda desse
fenômeno na segunda metade da década de 1960 e no começo dos anos 19704, com o surgimento do
movimento musical punk na Inglaterra, esses jovens skinheads (apelido derivado de suas cabeças
2
O termo subcultura é utilizado entre aspas, referindo-se mais ao uso do senso comum do que a uma categoria científica
que se preste a uma análise sociológica. A decisão para esse uso menos elaborado do termo ocorreu em virtude da
necessidade que haveria de prolongar-se em uma discussão que acabaria por desviar-se dos objetivos previamente
propostos, caso se escolhesse por usar a palavra “subcultura” em uma acepção analítica mais adequada.
3
Cabelos e barbas compridos podem facilmente serem fatores negativos em lutas físicas, por questões práticas: podem
se enroscar em lugares inoportunos, atrapalhar a visão e possibilitar puxões desestabilizadores por parte dos
adversários.
4
Segundo Antonio Salas, a responsabilidade por isso recai sobre a ação da polícia, dos tribunais e da imprensa contra
esses jovens, cujas ações violentas se intensificaram e passaram a se relacionar cada vez mais com o futebol após a
vitória da Seleção Inglesa no Mundial de Futebol de 1966, criando o fenômeno hooligan.
92
raspadas) voltam a ganhar força. No início, eram politicamente apartidários, embora fossem
fortemente marcados por um sentimento de rejeição e de revolta. Suásticas e cruzes gamadas,
elementos do imaginário simbólico nazista foram reapropriadas por alguns desses grupos, sendo de
início utilizadas unicamente para fins provocativos, como uma forma de transgressão, de
demonstração de repulsa contra a sociedade inglesa na qual se sentiam abandonados. Mas em pouco
tempo, esses símbolos deixaram de ser meramente sinais de revolta e se tornaram parte do nascente
movimento neonazista5.
Desse contexto, a figura de Ian Stuart Donaldson, vocalista da banda Skrewdriver, que, a
partir de 1984 se torna a mais importante do cenário skinhead neonazi, emergiu com destaque.
Junto a Paul Burnley, membro da No Remorse, outra banda neonazista proeminente, em Junho de
1987, eles formaram um grupo político e de distribuição de música neonazista chamado Blood &
Honour (isto é, Sangue e Honra), com a ajuda de membros de outras bandas skinhead neonazi,
como a Sudden Impact e a Brutal Attack. A organização tem, desde então, como suas principais
atividades, o preparo de concertos de música neonazista, especialmente na Europa, e a composição
e publicação de sua revista homônima, para divulgação tanto de música neonazista quanto da sua
ideologia. Seu nome é uma referência direta ao imaginário nazista: Blut und Ehre era o lema da
Juventude Hitlerista, a organização paramilitar do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores
Alemães.
Cabem, então, as perguntas: o Blood & Honour, como representante do neonazismo, pode
ser considerado um movimento social? Por quê? Quais os códigos morais e simbólicos que o
guiam? Quais são suas oportunidades políticas e suas formas de ação? Como ele mobiliza os
recursos? Qual é a base sobre a qual está assentada sua estrutura? Quais são seus aliados e
oponentes? Tentar-se-á aqui, fornecer um esboço de respostas a essas perguntas.
BLOOD & HONOUR: UM MOVIMENTO SOCIAL?
Para pensar se a organização Blood & Honour, fundada para a divulgação de música e de
ideologia de caráter neonazistas, constitui um movimento social, usar-se-á, no presente trabalho, a
obra Poderemos Viver Juntos?, de Alain Touraine. Embora definir precisamente o que é um
movimento social para esse autor não seja uma tarefa simples, quando o que está em questão é uma
organização como o Blood & Honour, esse tipo de raciocínio torna-se ao menos possível.
Segundo Alain Touraine, os movimentos sociais são caracterizados como
5
Não se deve cometer o equívoco, todavia, de tomar todo grupo skinhead como um grupo de ideologia neonazista. Em
verdade, a maior parte dos grupos skinheads pode ser classificada de três maneiras: a) neonazistas; b) anarquistas e
comunistas (em suas diversas vertentes), também chamados de SHARP’s, sigla para SkinHeads Against Racial
Prejudice, ou seja, Skinheads contra preconceito racial; e c) apartidários, embora normalmente descontentes com a
ordem política e econômica atual.
93
um tipo muito particular de ação coletiva [...] pelo qual uma categoria social, sempre
particular, questiona uma forma de dominação social [...] invocando contra ela valores e
orientações gerais da sociedade, que ela partilha com seu adversário, para privar este de
legitimidade (TOURAINE, 1999, p. 113).
Em outras palavras, um movimento social busca não apenas defender os interesses de um
determinado grupo, mas destruir uma relação de dominação. Até aqui, ainda é muito nebuloso
definir se o Blood & Honour constitui um movimento social, dadas as particularidades desse grupo,
as quais serão analisadas mais adiante.
Em seguida, Touraine distingue os movimentos sociais em três tipos: societais, culturais e
históricos. Será suficiente, para os propósitos aqui definidos, que se atenha apenas aos movimentos
societais. Os movimentos societais “combinam um conflito propriamente social com um projeto
cultural” (TOURAINE, 1999, p. 118-9), nos quais se constrói o sujeito em seus direitos, ao mesmo
tempo em que se luta contra um adversário. O que constitui um movimento de tipo societal “é a
associação entre um apelo moral e um conflito diretamente social, isto é, opondo um ator
socialmente definido a outro” (TOURAINE, 1999, p. 122). No caso das sociedades ocidentais
atuais, o apelo dos movimentos societais é quase sempre em direção às liberdades individuais. De
uma forma bastante “deformada”, o Blood & Honour corresponde a essa característica: a defesa de
seus princípios, de seu pensamento e de sua expressão está freqüentemente acompanhada pela
noção de liberdade individual, embora seus membros neguem esse ideal para seus oponentes, e não
raro se manifestem contra esse próprio ideal. Em outras palavras, o B&H defende a liberdade
individual deles próprios de serem contra as liberdades (e mesmo contra a existência) de seus
oponentes.
Segundo Touraine, enquanto os movimentos societais se definem por seus objetivos
construtivos, as revoltas se orientam por aquilo que rejeitam. Ora, é difícil imaginar uma luta
coletiva que não se organize simultaneamente pela rejeição de algo existente (no plano real ou no
imaginário) e pela conquista de alguma forma de reconhecimento (seja na luta por bens – materiais
ou imateriais – escassos, seja pela garantia de direitos efetivos e/ou simbólicos ou por outros tipos
de conquista). Então, nesse sentido, o que define o B&H? Seria a “defesa da raça ariana” 6 ou o
ataque direto aos estrangeiros, judeus e grupos jovens de tendência anarquista? Em uma primeira
análise que parta do exterior desse grupo, tende-se a responder essa questão com a segunda
alternativa proposta. Entretanto, é fácil compreender, a partir dos trabalhos de Buford e de Salas,
além do que se pode ler na própria website da organização, que, para os sujeitos que dela são
membros, a primeira alternativa de resposta seria a mais correta7. Reformulando, então, a pergunta:
6
7
No presente trabalho, todas as vezes em que for utilizado o termo “raça”, este será usado como uma categoria dos
sujeitos estudados, como uma categoria nativa, e não como uma categoria analítica (GEERTZ, 1989).
Supor que a “auto-defesa da raça ariana”, como costuma ser dito pelos sujeitos que participam dessas organizações,
não passa de uma demagogia por eles utilizada é ignorar o sentido que esses grupos têm para os agentes que deles
94
os objetivos reais desse grupo são os expostos pelos seus membros ou os que os não-membros vêem
a partir das ações dos próprios membros do grupo? Na realidade, todavia, não é possível pensar esse
grupo sem considerar os dois objetivos em conjunto. Nesse caso, uma hipótese não precisa excluir a
outra. Para o Blood & Honour, o que eles entendem como “a defesa da raça ariana” aparece sempre
junto ao ataque contra grupos não-arianos ou de orientação política de esquerda – ataques advindos
de uma rejeição radical, que não permite nenhum diálogo com os grupos adversários.
Sendo assim, o neonazismo parece encaixar naquilo que Touraine chama de “antimovimento
social”, que é aquilo que surge “quando um ator social identifica-se inteiramente com uma aposta
cultural [...] e então rejeita seu adversário como inimigo, traidor ou simples obstáculo a eliminar”
(TOURAINE, 1999, p. 140). Dessa maneira, os antimovimentos sociais corrompem qualquer
possibilidade de diálogo, ao recusar completamente qualquer legitimidade a seus adversários. Os
skinheads neonacionalistas do B&H constituem um exemplo sólido dessa situação: eles estão
completamente identificados (ideológica e emocionalmente) com a proposta neonazista; essa não é
uma posição política à qual se possa aderir apenas parcialmente 8. Sua “aposta cultural” é, primeiro,
em uma Europa racialmente branca, livre de estrangeiros (e, em menor grau, com menor
importância, essa proposta também serviria para a América do Norte9 e para a Austrália). Para eles,
essa seria a pré-condição para a Europa reconstruir sua antiga glória, reafirmando a posição de
superioridade da raça branca. Para cumprir esse ideal, faz-se necessário destruir seus inimigos (os
sionistas – designação destinada a todos os judeus – em sua economia neoliberal supranacional, e as
políticas multiculturais, que incluem os estrangeiros nas terras européias e que, para o B&H, tem
como função destruir a identidade tradicional branca européia), os traidores (brancos europeus e
americanos com orientação política liberal – os quais são vistos como traidores da causa branca que
buscam o lucro imoral do mercado liberal controlados pelos sionistas – ou de esquerda,
particularmente, os mais “radicais”, como anarquistas e comunistas) e seus maiores obstáculos (os
migrantes que chegam à Europa, principalmente os negros – africanos, afro-caribenhos, jamaicanos,
sul-americanos, entre outros – e os muçulmanos – tanto os africanos quanto os árabes e asiáticos).
Touraine percebe nos antimovimentos sociais uma ação de defesa contra a dominação da
“globalização”10, “em nome de uma tradição comunitária e não para defender a liberdade do
formam parte.
Embora a adoção da estética geralmente utilizada pelos membros desse grupo não precise ser completa, especialmente
entre as mulheres.
9
A maior parte dos skinheads europeus tem uma posição confusa – inclusive para eles – e mesmo ambígua em relação
aos Estados Unidos. Os motivos para essa confusão serão abordados brevemente mais adiante.
10
Não é o escopo desse trabalho discutir o termo “globalização”, o que, por si só, levaria um artigo ou mesmo um livro
inteiro, dependendo do motivo da discussão. Para nossos fins, será suficiente pensar a globalização nos termos que
propõe Stuart Hall em Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais (2003): uma intensificação ocorrida a
partir da década de 1970 de um processo muito mais antigo, que já havia tomado formas muito distintas, mas que,
desde então, é regido principalmente pelo fortalecimento de um sistema econômico em escala global, “no sentido de
que sua esfera de operações é planetária (STUART HALL, 2003, p. 56).
8
95
sujeito” (TOURAINE, 1999, p. 140), impossibilitando a construção de conflitos, levando a uma
resposta violenta contra a possibilidade de relacionamento com as outras comunidades. Dessa
forma, o “antimovimento social” B&H pode ser considerado uma expressão de um comunitarismo
antimulticultural centrado na Europa. Ele representa a recusa a qualquer tipo de relação social com
comunidades não-brancas: para eles, é necessário que se crie um orgulho público da raça branca,
para que esta possa se unir contra os imigrados e contra a dominação sionista. Isso significa que a
resposta para todos os problemas presentes na sociedade européia desde a década de 1970 (com os
choques do petróleo, o desmonte de grande parte do welfare state e a implantação de práticas
econômicas neoliberais) é, para o B&H, muito simples: retirar os imigrados das terras européias, em
defesa das tradições locais.
O DESENVOLVIMENTO DE UM ANTIMOVIMENTO SOCIAL
Partindo da concepção dos movimentos sociais construída por Alain Touraine, o Blood &
Honour se constitui, portanto, não como um movimento social, mas como uma parte de um
antimovimento social mais amplo, visto que suas propostas não são consideradas através do conflito
pela via do diálogo, mas do confronto pela via da violência, dada a recusa completa de
reconhecimento da legitimidade da alteridade – ainda que essa proposta apareça revestida como
simples auto-defesa de uma supostamente ameaçada raça branca. Faz-se necessário compreender,
portanto, como se constitui esse antimovimento social. Já foi dito contra o que e contra quem o
B&H se propõe a lutar. Agora, antes mesmo de entender sua gramática moral e suas formas de ação,
é mister demonstrar quem são seus aliados e quem constitui a sua base, para poder entender como
se comporta sua estrutura de oportunidades e de mobilização de recursos.
A filiação de Ian Stuart, em 1979, já então líder da banda skinhead Skrewdriver11, ao
National Front12, partido da extrema-direita nacionalista britânica que costuma estar vinculado a
propostas xenófobas e racistas, teve dois efeitos: primeiro, gerou uma filiação em massa de jovens
skinheads ao mesmo partido13 e, segundo, fez com que todo o movimento skinhead passasse a ser
tomado, na ortodoxia das representações públicas, como sinônimo de neonazismo14. “As fileiras do
baixo escalão do National Front consistiam basicamente em pessoas que sentiam, com certo
11
Note-se, entretanto, que o primeiro álbum da banda, All Skrewed Up lançado em 1977, não continha qualquer
elemento neonazista: a temática das letras é predominantemente sobre o sentimento de rejeição social, o que é
perceptível pelos títulos das canções, como “An-Ti-So-Ci-Al”, I don’t like You” e “I don’t Need Your Love”.
12
Filiação que aconteceu cinco anos antes da fundação do Blood & Honour.
13
Não parece ser mera coincidência que o partido tenha alcançado seu auge nas eleições nacionais gerais nesse mesmo
ano. Entretanto, o partido entrou em queda vertiginosa depois dessa data, demonstrando um tímido novo
crescimento a partir de 2001.
14
Essa imagem permanece até os dias atuais aos olhos de boa parte do público que não está de alguma forma envolvido
com o movimento.
96
fundamento, que não tinham nenhum outro lugar para onde se voltar” (BUFORD, 2010, p. 141).
Essas pessoas eram majoritariamente skinheads, fãs de músicos que haviam se filiado ao partido,
e/ou hooligans recrutados em estádios de futebol, durante as partidas dos campeonatos nacionais,
dois tipos de jovens fortemente marcados pela sensação de falta de reconhecimento e estima social.
Alguns anos mais tarde, Ian Stuart deixou o partido, por acreditar que este não era radical o
suficiente em suas proposições e, para corresponder às suas expectativas, julgou necessário criar um
novo movimento em conjunto com outros skinheads neonazistas, fazendo surgir, assim, o Blood &
Honour. Entretanto, o National Front continuou a ser um ponto de referência para muitos dos
membros do Blood & Honour, especialmente em época de eleição. Ainda hoje, alguns partidos
políticos estão relacionados extra-oficialmente ou indiretamente com o Blood & Honour. Um
exemplo disso está na França, onde jovens neonazis, inclusive os que estão ligados ao B&H,
apóiam o partido de extrema-direita Front National (partido inspirado no National Front britânico,
embora não exista qualquer relação de caráter oficial entre os dois), presidido por Marine Le Pen, a
qual recusa qualquer ligação com os jovens skinheads, indo contra a recomendação de outros
membros do partido. Apesar dessa recusa em aceitar o apoio explícito desses setores, é praticamente
inevitável que o Front National – assim como outros partidos de direita de caráter mai nacionalista,
também em outros países europeus – o receba de maneira extra-oficial, pois algumas de suas
propostas entram em comum com as exigências do Blood & Honour, particularmente na questão da
imigração. Salas nota que, na Espanha, partidos e movimentos de extrema-direita recebem apoio
dos jovens neonazis durante as eleições e oferecem recursos, principalmente financeiros, para que
suas associações (inclusive o B&H) mantenham suas atividades.
Além das ligações extra-oficiais entre as organizações neonazistas (incluindo, obviamente, o
Blood & Honour) e alguns partidos políticos de extrema-direita, existem também, como o esperado,
relações íntimas dessas organizações neonazistas entre si, embora nem sempre de caráter oficial. A
segunda mais importante organização neonazista, a Hammerskin, merece destaque entre elas, por
sua força na Espanha e nos Estados Unidos, onde se fundou, embora tenha bases também na
Holanda, Suécia, Hungria, Portugal, Nova Zelândia, Canadá e Austrália. É interessante notar que,
nos dois lugares onde ela é mais forte, a Hammerskin liga-se a elementos diferentes: nos Estados
Unidos, além dos elementos que constituem o neonazismo na Europa, o ódio aos mexicanos e
porto-riquenhos (incluindo, sem dúvida, outros latinos) é um dos principais focos mobilizadores de
suas ações; já na Espanha, a Hammerskin está presente nos estádios de futebol de alguns dos
principais clubes do país, através de torcidas organizadas, como a Ultrassur, torcida organizada do
Real Madrid Club de Fútbol15. A relação entre Hammerskin e Blood & Honour, entretanto, tem um
15
Há ainda outras torcidas organizadas de conteúdo neonazista na Espanha, assim como na Europa, mas nenhuma
possui uma ligação tão direta com a Hammerskin.
97
caráter muito fluido e instável: as duas organizações não estão diretamente interconectadas entre si
por toda parte, embora alguns de seus membros mantenham contatos, em virtude da música e da
ideologia compartilhada. Em alguns países, como na Espanha, por exemplo, existe mesmo uma
rivalidade entre as duas organizações. Por outro lado, note-se, como exemplo, que a website da
Hammerskins (www.hammerskins.net) pôs à venda um DVD, produzido por sua divisão
australiana, a Southern Cross Hammerskin em 2007, em conjunto com a 9% Productions e a divisão
australiana da B&H, cujo conteúdo é a gravação de um concerto musical realizado em homenagem
a Ian Stuart Donaldson16. Pode-se, portanto, exemplificar a relação existente entre as duas
organizações através desses dois casos paradigmáticos quase opostos: rivalidade na Espanha
(embora, eventualmente, existam oportunidades de apoio mútuo) e parceria íntima na Austrália. Nos
outros países, é mais difícil identificar essa relação, embora ela exista em algum nível entre os dois
casos previamente expostos.
Os outros aliados desse antimovimento são essencialmente associações neonazistas e
skinheads menores, além de pequenas lojas e gravadoras de música destinadas ao público skinhead
neonazista. Entre elas, podem-se citar Rampage Productions, Rune & Sword Productions, Final
Conflict Store, Dissident Mail-order, American Front, Gesta Bélica e Associazione Culturale Veneto
Fronte Skinheads – além da Falange, Democracia Nacional, Alternativa por la Unidad Nacional,
que não são associadas, mas estão sempre ao entorno das divisões espanholas de Blood & Honour e
Hammerskin. São todos, contudo, aliados menores. Não tendo êxito em se aliar oficialmente com os
partidos de extrema-direita17, que temem ser “manchados” pela postura violenta dos skinheads, o
B&H acaba por não conseguir oportunidades políticas no que tange a arena política estatal.
Dessa forma, o antimovimento social neonazista está relativamente isolado, pois não pode
entrar nas vias políticas de fato18, tendo que se restringir à captação de membros para suas fileiras
para poder fazer o antimovimento crescer e continuar a buscar por oportunidades políticas. Para
isso, é necessária a mobilização de recursos financeiros. A responsabilidade na realização dessa
tarefa recai sobre as divisões nacionais do antimovimento, que o fazem principalmente com a venda
de material neonazista (revistas, livros, CD’s e camisetas de produção independente ou semiindependente, além de outras mercadorias de menor importância) e com a realização de shows de
música RAC (sigla de Rock Against Comunism, embora seu teor não seja majoritariamente
anticomunista, mas em defesa da supremacia branca e contra os imigrantes), com o apoio de outras
organizações neonazistas.
16
Fonte: http://www.hammerskins.net/herecomesthethunder.html
Salas chega mesmo a defender que os skinheads são manipulados como massa de manobra por esses partidos.
18
A conduta violenta de seus líderes e sua recusa a participar do jogo político das democracias liberal-burguesas
impedem que entre eles se crie um habitus político profissional, no sentido apresentado por Pierre Bourdieu em O
Poder Simbólico.
17
98
Quanto às suas oportunidades políticas, a situação do B&H, assim como de outras
associações similares, é muito pouco definida. A princípio, qualquer mobilização contrária à sua
ideologia torna-se uma possibilidade de oportunidade política: de passeatas do movimento pelos
direitos de homossexuais, bissexuais e transexuais, às políticas de ação afirmativa das populações
afro-descendentes e de outras minorias, todos esses movimentos geram oportunidades para a ação
física ou ideológica do B&H. Cada auto-afirmação dos grupos opostos ao B&H é tomada por eles
como uma tentativa de destruir a identidade branca e a cultura européia e, portanto, é transformada
pelo grupo em uma oportunidade para fortalecer sua identidade e recrutar novos membros.
SÍMBOLOS, MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEONAZISTA
Parafraseando Sidney Tarrow (2009), adaptando ao objeto de estudo aqui proposto, o que
motiva os membros do B&H a participar de atitudes violentas em nome de seu ideal, arriscando
suas próprias integridades físicas e patrimoniais? Qual a recompensa que podem obter por se
arriscarem? Que objetivos pretendem alcançar com isso? Qual é a estrutura moral que informa seu
comportamento? É o caso de uma luta por reconhecimento, para pensar também nos termos de Axel
Honneth?
Comecemos pela última questão: é, sim, uma luta por reconhecimento. A cada direito
conquistado por seus adversários, mais esse antimovimento se sente injustiçado: enquanto sua
suposta superioridade não for publicamente reconhecida, enquanto os seus adversários
compartilharem de isonomia jurídica e gozarem alguma estima social, os membros da organização
continuarão a se sentir menosprezados.
Os motivos da resistência social e da rebelião se formam no quadro de experiências morais
que procedem da infração e de expectativas de reconhecimento profundamente arraigadas
(HONNETH, 2003, p. 258).
No caso do antimovimento social neonazista, há a expectativa de se alcançar o
reconhecimento de superioridade: ora, um antimovimento marcado pelo sentimento de
superioridade racial só poderá se sentir reconhecido se, e na medida em que, for reconhecida sua
suposta superioridade. A ausência desse reconhecimento significa a infração dessas expectativas.
Oferecer-lhes tratamento igual ao dado às outras “raças” é igualá-los a elas. Ora, igualados àqueles
que consideram inferiores, os neonazistas sentem-se rebaixados, desprezados, não-reconhecidos.
Os skinheads, conforme relatado por Antonio Salas, incluindo os membros do Blood &
Honour, são marcados por um sentimento de submissão e de exclusão, desde antes do componente
político entrar em cena. É difícil conhecer exatamente todos os porquês de o antimovimento
skinhead neonazista ser escolhido por um indivíduo como um meio para expressar esse sentimento,
tendo em vista que existem várias outras formas de organização que poderiam servir para esse
mesmo fim e, mais especificamente, dentro desse antimovimento, existem várias organizações às
99
quais o indivíduo pode se associar. O que é fácil, todavia, de compreender é que esse
antimovimento disponibiliza elementos fortes – ainda que sejam baseados em premissas
equivocadas, como a de uma suposta superioridade racial – para seus membros expressarem seus
sentimentos de revolta contra a submissão e exclusão que eles sentem que lhes são impostas,
independente de isso corresponder corretamente à realidade. Uma vez que se começa a participar
dessa associação, o sentimento de pertença gerado pela solidariedade que se encontra no interior do
grupo forma “uma espécie de estima mútua” (HONNETH, 2003, p. 260) entre os membros,
aumentando a identificação com a causa.
“O engajamento individual na luta política restitui ao indivíduo um pouco de seu
autorrespeito perdido” (HONNETH, 2003, p. 259-60) O antimovimento Blood & Honour acolhe
seus membros em um grupo coeso, unido, cuja ideologia canaliza todas as angústias sentidas contra
inimigos reduzidos a rótulos simples: judeus e, com eles, o sistema econômico globalizado;
homossexuais, que, para os neonazistas, ameaçam a integridade da família branca; socialistas,
comunistas e anarquistas, por não defenderem a raça branca; e, sobretudo, imigrantes, que
alegadamente se recusariam a se integrar às populações nativas. Para esse movimento, a resposta é
simples: com a eliminação dos imigrantes (física, especial e/ou simbólica), a Europa poderá se
fortalecer e construir uma supremacia branca, lutando contra o “sionismo” e subjugando os demais
povos.
A “violação de um consenso tácito” – consenso que, no caso do B&H, assim como de todo
o antimovimento neonazista, reside na superioridade da raça branca – “é vivenciada pelos atingidos
como um processo que os priva de reconhecimento e, por isso, os vexa no sentimento de seu
próprio valor” (HONNETH, 2003, p. 263). O B&H envolve os indivíduos em um meio no qual a
estima mútua entre os “camaradas” (para usar uma categoria nativa) restitui seu autorrespeito,
através da manipulação de símbolos que apelam à superioridade da raça ariana e da identidade
européia defendida pelo grupo.
Além das supracitadas suásticas e cruzes gamadas, ligadas diretamente ao nazismo, o
antimovimento neonazista também possui seus próprios símbolos. Curiosamente, os principais
símbolos utilizados são numéricos: “18” vem da primeira e da oitava letras do alfabeto latino, A e
H, fazendo referência a Adolf Hitler; “88” segue uma lógica similar, H e H, Heil Hitler; o mesmo
acontece com “28”, que é outra forma de se referir ao Blood & Honour; já com o “14”, a lógica é
outra – uma alusão às 14 palavras do supremacista branco David Lane, uma frase que deve
obrigatoriamente ser de conhecimento de todo jovem neonazi: “We must secure the existence of
our people and a future for White Children”, isto é, “devemos assegurar a existência do nosso povo
100
e um futuro para as crianças brancas”19.
É pela via simbólica, portanto, que se mobiliza e se organiza a gramática moral do grupo.
Esses símbolos apelam não apenas ao sentimento de uma superioridade não reconhecida, mas
também à memória coletivamente criada, que sustenta a identidade do grupo. Como ressaltou Ron
Eyerman (2004), a memória é uma parte fundamental na formação da identidade – tanto individual
quanto coletiva –, bem como da constituição de conflitos e processos políticos. Os “traumas
culturais” que marcam a memória neonazista são a derrota na Segunda Guerra Mundial e a perda da
condição imperialista européia. Além disso, como se pôde perceber pelos principais símbolos do
antimovimento, sua memória está profundamente orientada pelo imaginário do III Reich – o ápice
do reconhecimento da “superioridade” da raça ariana.
Benedict Anderson, em Comunidades Imaginadas (2005) também destaca, entre outras
coisas, o papel da memória, enquanto um processo que envolve simultaneamente lembrança e
esquecimento, na construção da identidade coletiva de uma comunidade que existe sobretudo no
plano imaginário20, especialmente na questão da nação, isto é, da identidade nacional. Todo o
antimovimento neonazista apresenta uma característica particular nesse sentido: por um lado, suas
reivindicações são nacionalistas, na medida em que se propõem a fazer a defesa das tradições
nacionais; por outro lado, suas organizações são transnacionais. Considerando-se que a maior parte
do antimovimento se situa na Europa, ao se associar ao Blood & Honour, o sujeito faz uma
afirmação com um duplo sentido de lugar21: em um primeiro momento, afirma-se uma
nacionalidade (espanhol, inglês, alemão, holandês etc.); no segundo momento, afirma-se uma
pertença “racial” determinada pelo continente – a Europa. Esquecem-se as rivalidades e conflitos
intra-europeus em prol da defesa da raça ariana.
Também na questão da memória, é importante ressaltar que, como em toda idealização do
passado, o antimovimento neonazista reformula todos os problemas que já afligiram a Europa,
especialmente os do passado mais recente, responsabilizando preferencialmente a influência judaica
– real ou imaginada. Mais que isso, um episódio inteiro do trauma cultural judaico na história
recente é apagado da memória neonazista: o holocausto é completamente negado pelos membros
dessa organização, é tratado como uma invenção do Judaísmo para poder se travestir de vítima –
embora a maioria desses membros não fosse hesitar em realizar um novo holocausto. Conforme
relatado por Salas, o revisionismo histórico sobre o genocídio judaico nos últimos anos do Reich é
19
Há também referências simbólicas menores, como às divisões Panzer. Além disso, cada associação neonazista conta
com símbolos próprios. Na Hammerskin, por exemplo, um machado tatuado ou numa camiseta pode fazer
20
A nação “é [uma comunidade] imaginada porque até os membros da mais pequena nação nunca conhecerão, nunca
encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente
de cada um existe a imagem da sua comunhão” (ANDERSON, 2005, p. 25). Nesse contexto, de maneira alguma
dizer que a nação é imaginada poderia implicar que a nação não fosse, também, real.
21
Assim como ocorre na expressão “afro-americano”, fazendo referência ao país em que se vive – os Estados Unidos da
América – e ao continente de “origem” (real e/ou simbólica) – a África – como observou Eyerman.
101
uma marca presente em todas as organizações neonazistas. O revisionismo sobre o holocausto
pretende apagá-lo oficialmente da memória não apenas de neonazistas, mas de todos.
CONCLUSÃO
Anderson (2005) percebe como o adjetivo “novo” usado para denominar cidades fundadas
pelos europeus em terras distantes (como New York e Nouvelle-Orléans, na América do Norte) não
tem o significado de substituição de um lugar antigo que existia, enquanto isso acontecia, por
exemplo, no Sudeste Asiático, em que a cidade assim nomeada era considerada uma sucessora ou
herdeira de uma cidade antiga desaparecida. O significado do “novo” nas cidades fundadas pelos
europeus em lugares remotos é de uma nova versão a partir do topônimo inspirador. O prefixo
“neo” em “neonazismo” reúne essas duas características: ele é o herdeiro de um nazismo
praticamente desaparecido e, ao mesmo tempo, uma nova versão. O “neonazismo” é a adaptação de
algumas das principais idéias nazistas originais a uma nova condição histórica. Tanto o nazismo
original quanto sua versão reformulada partem de um misto de sentimento de falta de
reconhecimento de uma suposta superioridade ariana com um conjunto de idéias que têm como foco
a negação do reconhecimento a múltiplas formas de alteridade.
O fato de o nazismo ser em grande parte motivado pela crise do liberalismo e pela
humilhação imposta à Alemanha com o Tratado de Versalhes, além do antigo anti-semitismo
presente em diversas populações européias, junto com todo o contexto histórico e social em que
estava envolvido, ajuda a explicar aquela que é a maior diferença entre ele e o neonazismo: o
caráter transnacional deste, diferente do caráter exclusivamente nacional do nazismo. O neonazismo
não é, nem ao menos em parte, uma resposta alemã a uma humilhação nacionalmente sentida: entre
as principais organizações neonazistas, a Blood & Honour foi criada por ingleses e a Hammerskin
por norte-americanos. A unidade à qual o grupo apela deixou de ser a unidade pangermânica para
atuar em diversos níveis: primeiro, o nível nacional; segundo, o nível continental (já que a maior
parte do antimovimento é européia); e terceiro, o nível étnico-racial.
Embora utilizem símbolos do passado alemão, o antimovimento social neonazista se situa
para muito além da Alemanha; esses símbolos são ressignificados de símbolos nacionais para
supranacionais, de um movimento político – no significado mais tradicional da palavra “política” –
para um antimovimento social predominantemente juvenil.
Os símbolos culturais não estão automaticamente disponíveis como símbolos
mobilizadores, mas exigem agentes concretos para transformá-los em quadros
interpretativos de confronto (TARROW, 2009, p. 157).
E é precisamente o que acontece com a Blood & Honour em relação aos antigos símbolos
nazistas: a organização, através dos confrontos sócio-políticos, manipula e mobiliza esses símbolos
para fornecer um “quadro interpretativo” de todos os elementos que compõem o confronto em que
102
se insere. A combinação do novo quadro interpretativo da xenofobia pan-européia com o antigo
quadro do imaginário nazista, numa “matriz cultural” (TARROW, 2009, p. 158) produziu um
“quadro interpretativo explosivo de ação coletiva”, isto é, um quadro que possibilitou o surgimento
de um novo anti-movimento social.
Em outras palavras, o neonazismo, através de suas organizações supranacionais, mobiliza
antigos símbolos nazistas, dando-lhes um novo significado – embora ainda ligado ao significado
anterior –, fornecido pelos conflitos sócio-políticos em que seus adeptos se encontram, organizando
suas experiências de falta de reconhecimento em torno de uma luta que nega o reconhecimento a
seus opositores. O neonazismo, através de organizações como a Blood & Honour, funciona como
uma ponte cognitiva que liga uma experiência de exclusão sentida individualmente pelo sujeito a
uma luta política por reconhecimento dentro de uma coletividade, fornecendo-lhe um mapa
cognitivo que explica suas experiências pessoais e o mundo que o cerca e que o sujeito sente que o
exclui – ainda que esse mapa não esteja de acordo com a realidade. Essa luta é marcada por uma
conduta agressiva não apenas pela violência intrínseca à própria ideologia do movimento, mas
também porque, tendo recursos limitados, a “violência real ou potencial [é] a forma mais fácil para
a iniciação” (TARROW, 2009, p. 126) de sujeitos que se sentem interditos para se vincular ao
antimovimento, sendo também “usada deliberadamente [...] para unir apoiadores, desumanizar
opositores e demonstrar a coragem” (TARROW, 2009, p. 126) do anti-movimento, criando “uma
identidade coletiva baseada na virilidade e no poder”22.
Esse trabalho pretendeu analisar brevemente o funcionamento dos elementos mais básicos
da organização neonazista Blood & Honour a partir de dois eixos principais: primeiro, as teorias dos
movimentos sociais pensadas por Tarrow, Honneth e Touraine; e, segundo, as teorias sobre o
multiculturalismo de Touraine e Hall. Além disso, também foram utilizados os trabalhos de
Anderson e Eyerman sobre o papel da memória na construção da identidade em conflitos políticos.
Acima disso, o objetivo foi demonstrar como a experiência de exclusão e de interdição do sujeito
precisa de um conjunto simbólico coletivamente organizado para poder se transformar em um
elemento que mobiliza a ação política coletiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a Origem e a Expansão do
Nacionalismo. Lisboa: 70, 2005.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
22
Não é mera coincidência, portanto, que a maior parte do antimovimento seja composta por homens, especialmente
mais jovens.
103
ELIAS, Norbert. Os Alemães – A Luta pelo Poder e a Evolução do Habitus nos Séculos XIX e XX.
Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
EYERMAN, Ron. The Past in the Present – Culture and the Transmission of Memory. Acta
Sociologica, Londres, nº 47(2), 2004, pp. 159-169.
HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento – A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Rio de
Janeiro: 34, 2009.
TARROW, Sidney. O Poder em Movimento – Movimentos Sociais e Confronto Político. Petrópolis:
Vozes, 2009.
_______________. The New Transnational Activism. Nova York: Cambridge University, 2005.
TOURAINE, Alain. Poderemos Viver Juntos? – Iguais e Diferentes. Petrópolis: Vozes, 1998.
104
JUDICIALIZAÇÃO DA GUARDA DE FILHOS MENORES NO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO
Caroline de Araújo Rodrigues 1
Erika Alcântara Pinto 2
Marcela Rodrigues Souza Figueiredo 3
Suzana Antunes Suzano 4
(Orientador) Delton R. S. Meirelles5
RESUMO: Durante muito tempo acreditou-se que as mães reuniriam as melhores condições para a
criação dos filhos menores nos casos de divórcio ou separação. No entanto, nas ciências sociais em
geral, houve uma reorganização da divisão social no que diz respeito aos homens e mulheres, o que
foi reconhecido pela atual legislação. Diante desse fato, entende-se que é importante estudar esse
fenômeno, conhecido como igualdade de gêneros, no âmbito do Poder Judiciário, com o intuito de
analisar o modo como o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro vem enfrentando as
questões que envolvem a disputa da guarda entre genitores pelos filhos menores de idade. Além
disso, verificou-se a existência de princípios que norteiam a concepção dos julgadores nas decisões
judiciais, a fim de assegurar o bem-estar e o desenvolvimento do menor, no momento em que o
filho se torna tão frágil em relação à dissolução conjugal.
Palavras-Chave: Direito de família, Guarda unilateral, Genitores.
SUMÁRIO: Introdução – 1 A tutela dos filhos menores na legislação brasileira – 2 Guarda – 2.1
Conceito. Característica. Definição legal. – 2.2 Guarda Unilateral – 3 O maior interesse do menor
como direito fundamental – 4 Presunção pro mater – 5. A guarda no Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro – Conclusão – Referências.
1
Bacharelanda em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do LAFEP/UFF
([email protected]).
2
Bacharelanda em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do LAFEP/UFF
([email protected]).
3
Mestranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. Professora de Direito de Família no
IBMEC. Advogada. Pesquisadora do LAFEP/UFF. ([email protected])
4
Bacharelanda em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do LAFEP/UFF
([email protected]).
5
Coordenador de graduação e professor adjunto do Departamento de Direito Processual da Universidade Federal
Fluminense (SPP/UFF) e do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
(PPGSD/UFF). Coordenador do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (LAFEP/UFF). Doutor em Direito
(UERJ). ([email protected])
105
INTRODUÇÃO
Quando estamos diante de filhos menores, a proteção jurídica da família ganha especial
atenção, sendo a relação afetiva diuturna com os membros que lhes são importantes, incentivada e
exigida pelo Estado. No entanto, das relações familiares que as crianças mantêm, as mais
importantes são aquelas que desenvolvem com seus pais, merecendo, por isso, maior atenção dos
operadores do direito. A disputa pela guarda e a garantia de convivência com o genitor não guardião
são questões enfrentadas pelo Judiciário, para as quais deve dar respostas adequadas em nome do
melhor interesse da criança e da proteção de sua dignidade. Embora estudos indiquem um aumento
no percentual de guarda compartilhada, as mulheres ainda detêm a hegemonia na responsabilidade
pela guarda unilateral de filhos menores. Tendo em vista as discussões acerca do papel do Judiciário
na construção da igualdade de gêneros, o presente trabalho investiga como o Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro vem enfrentando os conflitos interfamiliares pela guarda unilateral dos
filhos menores. Para investigar tal realidade, adotou-se o método quantitativo, a partir da
jurisprudência fluminense no período de 2007 a 2010 e de dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística sobre divórcios concedidos em primeira instância a casais com filhos
menores de idade, no mesmo período. Assim, busca-se compreender como o Estado interfere nas
relações entre pais e filhos por meio de uma análise comparativa das decisões de primeira e segunda
instância, nos quesitos de preferência na escolha do guardião dos filhos menores e dos fundamentos
sobre os quais basearam suas decisões.
1
A TUTELA DOS FILHOS MENORES NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Uma das questões mais relevantes que envolvem o Direito de Família é aquela proveniente
das relações de parentesco, qual seja, a proteção da pessoa dos filhos. O tema ganha importância
quando seus genitores não convivem no mesmo lar, sendo necessário definir quem exercerá a
guarda dos filhos comuns. Quando há dissenso entre o casal quanto à guarda, o menor torna-se um
ponto frágil, um objeto de disputa, fazendo-se necessária uma proteção especial à criança, em nome
do seu melhor interesse.
O termo “criança” é utilizado para fazer referência aos menores de dezoito anos. A utilização
do referido termo foi reafirmada em nosso ordenamento jurídico por meio da Convenção sobre os
Direitos da Criança de 1989 (adotada em Assembléia pela ONU), ratificada pelo Brasil e
promulgada pelo Decreto n.º 99.710, de 21 de novembro de 1990. Posteriormente, o Estatuto da
Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90) adotou os termos “criança” e “adolescente”, para
nomear a pessoa até doze anos de idade incompletos e aquelas entre doze e dezoito anos de idade
incompletos, respectivamente. No Código Civil de 2002, por sua vez, verifica-se a utilização do
106
termo “menor” em seus dispositivos para se referir às pessoas menores de dezoito anos. Além disso,
ao tratar da dissolução conjugal, o Codex utiliza o termo “filhos”. Todos estes termos são sinônimos
e serão utilizados no desenvolvimento desta pesquisa.
Devido à fragilidade desse microssistema hipossuficiente tem-se procurado alternativas para
a sua proteção. Como objeto de importantes convenções e documentos internacionais, tal como a
Declaração de Genebra de 1924, a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, os quais
traziam princípios para a proteção da criança e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança
de 1989, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, este tema obteve relevância e
influenciou para que as crianças emergissem como “sujeitos de direito”, a fim de que os seus
interesses se sobrepusessem aos de seus genitores. Assim, por exemplo, há um deslocamento
gradativo de um dos principais critérios utilizados para atribuição da guarda, qual seja priorizar os
interesses dos menores em detrimento do de seus pais.
Sob a influência destes acontecimentos a proteção às crianças se consagrada como direito
fundamental na legislação brasileira, no art. 227, caput da Constituição Federal de 1988:
Art. 227, caput. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (caput com redação
determinada pela Emenda Constitucional nº 65/2010).
Com a promulgação da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, ratificada pelo
Brasil e entrando em vigor em 1990, houve a adoção de uma postura de reconhecimento de que as
crianças e os adolescentes precisavam de uma proteção especial, que ficou conhecida como a
“Doutrina da Proteção Integral da Criança". Ao ser internalizada em nosso ordenamento jurídico, os
Estados partes firmaram um acordo de proteger os menores, de modo que se devesse preservar o
melhor interesse da criança, conforme disposto em seu art. 3º:
Art. 3º. 1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou
privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos,
devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.
2. Os Estados Partes se comprometem a assegurar à criança a proteção e o cuidado que
sejam necessários para seu bem-estar, levando em consideração os direitos e deveres de
seus pais, tutores ou outras pessoas responsáveis por ela perante a lei e, com essa
finalidade, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.
3. Os Estados Partes se certificarão de que as instituições, os serviços e os estabelecimentos
encarregados do cuidado ou da proteção das crianças cumpram com os padrões
estabelecidos pelas autoridades competentes, especialmente no que diz respeito à segurança
e à saúde das crianças, ao número e à competência de seu pessoal e à existência de
supervisão adequada.
107
Assim, todos os artigos convergem para a mesma finalidade, qual seja, a de que os menores
devem ter os seus direitos fundamentais assegurados tanto pela família, como pela sociedade e
também pelo Estado, devendo prevalecer o interesse maior da criança quando confrontado com os
dos genitores.
Pouco tempo depois foi promulgada a Lei n.º 8.069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da
Criança e do Adolescente), em que é reafirmada a “Doutrina de Proteção Integral” pela qual o
menor deverá ter seus direitos protegidos e respeitados. Deste modo, não obstante o ECA ofereça às
crianças e adolescentes uma gama de direito e garantias, insta salientar que todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana elencados na Constituição também são aplicados a este
grupo de indivíduos. No art. 4º da referida Lei está disposto que:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Esses direitos devem ser observados em todas as situações em que se tratar de matéria pertinente à
criança e ao adolescente, inclusive no que diz respeito à guarda.
2
GUARDA
2.1
CONCEITO. CARACTERÍSTICA. DEFINIÇÃO LEGAL.
O termo “poder familiar” 6 é uma nova denominação adotada pelo Código Civil de 2002 em
substituição ao termo “pátrio poder”. A melhor doutrina, no entanto, entende ser mais adequada a
expressão “autoridade parental”, pois a palavra “poder” remeteria á ideia de posse sobre uma coisa,
ao passo que, após a Constituição Federal de 1988 e o ECA, a criança e o adolescente passaram a
ser verdadeiros sujeitos de direitos. Assim, O poder familiar verte-se em encargo imposto por lei
aos genitores, que deve ser exercido no melhor interesse dos filhos.
De acordo com Maria Berenice Dias7,
Autoridade parental está impregnada de deveres não apenas no campo material, mas,
principalmente, no campo existencial, devendo os pais satisfazer outras necessidades dos
filhos, notadamente de índole afetiva. Para Waldir Grisard, tentar definir poder familiar
nada mais é do que tentar enfeixar o que compreende o conjunto de faculdades
encomendadas aos pais, como instituição protetora da menoridade, com o fim de lograr o
pleno desenvolvimento e a formação integral dos filhos, seja físico, mental, espiritual ou
socialmente.
6
Segundo o Código Civil, o poder familiar é um conjunto de direito e obrigações que os pais têm em relação aos filhos,
enquanto menores.
7
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.
345.
108
Ambos os genitores exercem igualmente a Autoridade Parental, mesmo quando dissolvido o
relacionamento de ambos. Isto porque o instituto decorre da paternidade e da filiação e não do
casamento ou da união estável.
A guarda é um dos atributos do poder familiar. Quando ocorre o rompimento da relação
amorosa entre os genitores, passando os mesmos a residirem em casas separadas, a guarda dos
filhos menores deverá ser definida. Isto significa apenas uma restrição ao exercício da Autoridade
Parental, sem que importe limitação ao seu exercício pelo genitor não guardião. Desta forma,
A guarda absorve apenas alguns aspectos do poder familiar. A falta de convivência sob o
mesmo teto não limita nem exclui o poder-dever, que permanece íntegro, exceto quanto ao
direito de ter os filhos em sua companhia (CC 1.632). Não ocorre limitação à titularidade
do encargo, apenas restrição ao seu exercício, que dispõe de graduação de intensidade.
Como o poder familiar é um complexo de direitos e deveres, a convivência dos pais não é
requisito para a sua titularidade.8
Rolf Madaleno9, ao conceituar guarda assevera que
Com relação aos pais, o vocábulo guarda consiste na faculdade que eles têm de conservar
consigo os filhos sob seu poder familiar, compreendendo-se a guarda como o direito de
adequada comunicação e supervisão da educação da prole, ou como refere Norberto
Novellino, tratar-se a guarda como uma faculdade outorgada pela lei aos progenitores de
manter seus filhos perto de si, através do direito de fixar o lugar de residência da prole e
com ela coabitar, tendo os descendentes menores sob seus cuidados diretos e debaixo de
sua autoridade parental
Existem vários tipos de guarda elencados na legislação brasileira entre os arts 1583 a 1590
do Código Civil Brasileiro, nos arts 33 a 35 do Estatuto da Criança e do Adolescente e também na
Lei do Divórcio, Lei 6.515/1977, nos artigos 9° ao 16. Vale salientar que a guarda abordada no
Estatuto da Criança e do Adolescente não regula as decorrentes da separação dos pais, e sim do
menor que se encontra em situação irregular, abandonado, ameaçado ou então que esteja sofrendo
violação de seus direitos.
O direito brasileiro, no que se refere ao art. 1583, CC/02, permite duas modalidades de
guarda para as crianças quando os pais não convivem juntos: a unilateral ou a compartilhada. Mais
adiante, será discutida a guarda unilateral, objeto da pesquisa.
Vale ressaltar que esta pesquisa limitou-se a analisar a guarda de filhos menores por um dos
cônjuges, não sendo considerados os casos de outros incapazes, nem a guarda para avós, demais
parentes ou família substituta. Portanto, no que tange aos genitores, o instituto do Poder Familiar
confere as seguintes obrigações, conforme disposto no art. 1634 do CC/02:
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação;
8
9
Ibdem, p. 347.
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 422.
109
II - tê-los em sua companhia e guarda;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe
sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los,
após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e
condição.
No inciso II do artigo supramencionado, encontra-se claramente a obrigação do genitor, ou
seja, do titular do poder familiar, quanto à guarda dos filhos. Para uma melhor compreensão, tornase imprescindível a leitura do art. 33 do ECA, pois é neste que se encontra a definição legal de
guarda, qual seja: “[...] prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou
adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.”
Segundo estatísticas oficiais, na maioria dos casos de fim da união dos genitores, é
estabelecida a guarda exclusiva em favor de um dos genitores, garantindo ao outro o direito de
visitação e supervisão, não obstante a guarda compartilhada esteja prevista na lei e que talvez seja a
melhor modalidade de guarda para a proteção dos interesses do menor.
2.2
GUARDA UNILATERAL
Segundo o Código Civil a guarda unilateral é atribuída a um só dos pais, ou seja, ao genitor
que revele melhores condições para exercê-la.10 Apenas um recebe a guarda física e jurídica do
menor. Nesta modalidade o menor vive em um lar fixo, enquanto recebe a visita daquele que não
detém a guarda. Este tipo de guarda pode ser definida em consenso pelos genitores ou decretada
pelo juiz, o qual deverá observar em sua decisão alguns princípios importantes, os quais serão vistos
mais adiante.
Cumpre destacar a existência de uma cultura jurídica que estabeleceu uma presunção de
guarda materna, assim descrita por Maria Berenice Dias:
Historicamente os filhos ficavam sob a guarda materna, por absoluta incompetência dos
homens de desempenhar as funções de maternagem. Sempre foi proibido aos meninos
brincar de boneca, entrar na cozinha. Claro que não tinham como adquirir qualquer
habilidade para cuidar dos filhos. Assim, mais do que natural que essas tarefas fossem
desempenhadas exclusivamente pelas mães: quem pariu que embale! Quando da separação,
10
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.
§ 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, §
5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não
vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.
§ 2o A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais
aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores:
I - afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar;
II - saúde e segurança;
III - educação.
§ 3º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos.
110
os filhos só podiam ficar com a mãe. Até a lei dizia isso 11.
Entretanto, esta guarda pro mater começa a ser questionada com a inserção da mulher no
mercado de trabalho (deixando de ser a “dona de casa” com a exclusividade na criação dos filhos) e
a necessária reorganização da divisão social homem/mulher. Ainda que a mulher tenda a assumir
diversas jornadas (mãe e trabalhadora, p. ex.), os homens passaram a ser cobrados em sua
responsabilidade no cuidado e educação dos filhos, deixando de ser apenas provedores.
Reconhecendo esta realidade, a Constituição Federal de 1988 estabelece que “homens e mulheres
são iguais em direitos e obrigações” (art. 5º, I), assim como “os direitos e deveres referente à
sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (art. 226, §5º).
A igualdade entre os cônjuges implica a existência de idênticas condições entre genitores de
assistir, criar e educar os filhos menores.12 Deste modo, com o fim da união conjugal, há uma
divisão de atribuições no que diz respeito ao exercício de alguns direitos, tanto para o pai quanto
para a mãe, não ocorrendo à perda da autoridade parental. 13 Esta só ocorre em casos que os
genitores descumprem seus deveres para com os filhos.14
Assim, tendo em vista à igualdade de gêneros e a tutela integral dos direitos das crianças, a
guarda compartilhada tem se mostrado uma modalidade de guarda que permite uma maior proteção
aos interesses das crianças, uma vez que ambos os pais de co-responsabilizam sobre as decisões
importantes da vida dos filhos. Os filhos se beneficiam a partir do momento em que têm ambos os
pais presentes e cuidadosos, assumindo as mesmas responsabilidades e participando da mesma
11
DIAS, Maria Berenice. Guarda compartilhada, uma novidade bem-vinda!. 2010. Disponível em: <
http://www.mariaberenice.com.br/uploads/1_-_guarda_compartilhada%2C_uma_novidade_bem-vinda.pdf>. Acesso em
14 set. 2012.
12
Art. 229, CF - Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de
ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
13
No Código Civil está disposto que:
Art. 1.579. O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos.
Parágrafo único. Novo casamento de qualquer dos pais, ou de ambos, não poderá importar restrições aos direitos e
deveres previstos neste artigo.
Art. 1632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos
senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.
Na Lei 6.515/77, Lei do divórcio:
Art. 27 - O divórcio não modificará os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos.
Parágrafo único - O novo casamento de qualquer dos pais ou de ambos também não importará restrição a esses direitos
e deveres.
14
O ECA dispõe que:
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse
destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder
familiar.
Parágrafo único. Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o adolescente
será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.
Art. 24. A perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos
casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a
que alude o art. 22.
111
forma das suas vidas. De acordo com Guilherme Calmon15, são os seguintes aspectos definidores da
guarda compartilhada:
(...) o primeiro aspecto envolve a própria noção de guarda compartilhada, ou seja, o
exercício comum da autoridade parental, a continuidade do contato da criança (ou do
adolescente) com ambos os pais, tal como ocorria no período em que o casal parental era,
ao mesmo tempo, casal conjugal. Outro aspecto diz respeito à residência do menor. Acerca
de tal ponto, é fundamental que o menor tenha “ uma residência fixa (na casa do pai, na
casa da mãe ou de terceiros) ,única e não alternada. (...)
Assim, guarda compartilhada consiste no compartilhamento de responsabilidade entre os
pais os quais têm idêntica participação na vida dos filhos, sem que isso implique em alternância de
lares. Isto quer dizer que o que se compartilha é a guarda jurídica, não a guarda física. A guarda
unilateral, por sua vez, pressupõe que apenas um genitor exerça a guarda jurídica e física.
Infelizmente, a guarda unilateral continua sendo o modelo mais adotado nos casos de
dissenso entre os genitores, sendo ainda preferencialmente atribuído à mulher o exercício
uniparental da guarda, não obstante preveja § 2º do art. 1.584 do Código Civil que quando não
houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a
guarda compartilhada.
3
O MAIOR INTERESSE DO MENOR COMO DIREITO FUNDAMENTAL
A guarda se caracteriza como uma forma de acolhimento jurídico do menor em uma família.
Os filhos não podem ter a sua qualidade de vida interferida por conta de problemas de convivência
dos pais. A Lei Maior dispõe em seus arts. 227 e 229 sobre a prioridade à convivência familiar
como dever da família, da sociedade e do poder público quando da separação de fato ou de direito.
Sendo garantida aos filhos uma qualidade moral, psíquica, emocional e física. No rompimento da
convivência entre os genitores, ocorre à cisão da guarda dos filhos e o casal deve ter o pleno
entendimento de que a partir deste momento serão ex-companheiros, mas não serão ex-pai ou exmãe. 16
Todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana elencados na Constituição Federal são
aplicados às crianças e aos adolescentes, tal como o art. 5º e o art. 227, assim como os direitos fundamentais
decorrentes dos tratados internacionais internalizados que versam sobre direitos humanos.
Os
direitos
fundamentais
constituem
“direitos
jurídico-positivamente
constitucionalizados”17. A breve afirmativa de J. J. Gomes Canotilho encerra duas considerações de
15
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios Constitucionais de Direito de família: Guarda
Compartilhada à Luz da Lei n.º 11.698/08: Família, Criança, Adolescente e Idoso. São Paulo: Editora Atlas, 2008.
p. 218.
16
COUTO, Lindajara Ostjen. A separação do casal e a guarda compartilhada dos filhos. Disponível em: <
http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3683/A-separacao-do-casal-e-a-guarda-compartilhada-dos-filhos>. Acesso
em: 14 set. 2012.
17
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Lisboa: Almedina, 1993.p.497
112
extrema relevância. Primeiramente, seu caráter positivo, enquanto incorporação no ordenamento
escrito. Em segundo lugar, esta positivação deve ocorrer do bojo do mais importante diploma
jurídico: a Constituição.18 Portanto, quando os direitos fundamentais da Convenção foram inseridos
por meio do art. 5º, § 2º da Lei Maior, passaram ao status de direito fundamental conforme
concedido aos demais. Assim, o Princípio do melhor interesse da criança, aludido por esta, deve ser
observado, vez que está presente em nosso ordenamento jurídico.
Torna-se uma tarefa difícil para o magistrado determinar a guarda nos processos, pois como
aferir quem melhor cuidará do filho? É notória que deveriam ser os pais de forma conjunta a
complementar a educação de seus filhos.
A este respeito Pontes de Miranda afirma que “os filhos podem ficar uns com o pai, outros
com a mãe ou todos com apenas um, pois o que decide é o interesse deles”19. Este é um dos
princípios que norteiam a guarda, utilizado como critério legal, o Princípio do melhor interesse do
menor. Os filhos deixaram de ser objeto de direito e passaram a ser sujeitos.
Verifica-se uma perfeita harmonia entre o melhor interesse da criança (art.227, CF), o direito
de pleno gozo dos direitos fundamentais pelas crianças e adolescentes (art. 3º do ECA)20 e o dever
da família de zelar para a efetividade desses direitos (art. 4º do ECA). O que se complementa com o
Código Civil ao atribuir a guarda ao genitor que apresentar melhores condições de exercê-la (art.
1583, § 2º). Assim, há uma intenção do legislador em priorizar o interesse do menor.
Nas análises jurisprudenciais realizadas no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
verificou-se a adoção de princípios utilizados pelos julgadores nas decisões, considerados
auxiliadores na determinação do melhor interesse da criança.
O Direito da Família contemporâneo tem alguns princípios fundamentais norteadores que o
regem como: afeto, igualdade e alteralidade, pluralidade de famílias, melhor interesse da
criança/adolescente, autonomia da vontade, intervenção estatal mínima, a preferência da criança, a
não separação dos irmãos, a capacidade educativa e econômica dos pais, o progenitor que mais
favorece a relação do menor com o outro genitor, assim como a manutenção da situação de fato.21
É importante que o juiz avalie cada caso concreto, a fim de que seja tomada a melhor
18
PEREIRA, Tânia da Silva. Infância e juventude: os direitos fundamentais e os princípios constitucionais
consolidados na Constituição de 1988. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/28526-28537-1-PB.pdf>. Acesso em: 14 set. 2012.p.3
19
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito de família 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1947. p.466
20
Art. 3º: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo
da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de
liberdade e de dignidade”.
21
CHAVES, Marianna. Melhor interesse da criança: critério para atribuição da guarda unilateral à luz dos
ordenamentos brasileiro e português. Jus Navigandi, Teresina, ano 15 (/revista/edicoes/2010), n. 2716
(/revista/edicoes/2010/12/8), 8/revista/edicoes/2010/12/8) dez. (/revista/edicoes/2010/12), 2010 (/revista/edicoes/2010) .
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17985>. Acesso em: 14 set. 2012.
113
solução aplicável diante de cada acontecimento, ou seja, que a decisão esteja em consenso com o
melhor interesse do menor, pois este que deve ser priorizado.
Para Grisard Filho22,
[...] existem interesses individuais e concretos sobre os quais se procede a uma avaliação
individualizada. É desses interesses concretos que se cuida na determinação da guarda de
filhos, sendo o juiz o intérprete dos particulares interesses materiais, morais, emocionais,
mentais e espirituais de filho menor, intervindo segundo o princípio de que cada caso é um
caso, o da máxima singularidade.
Eduardo de Oliveira Leite 23, no mesmo sentido, entende que:
Convém, pois, não considerar o interesse do menor como um fim em si, mas como
instrumento operacional, cuja utilização é confiada ao juiz. É o juiz, a quem compete
examinar cada situação de fato, que determina, a partir da consideração de elementos
objetivos e subjetivos, qual é o “interesse” daquele menor, naquela dada situação fática.
Podemos assim concluir que o melhor interesse da criança e do adolescente, lido conjuntamente
com a proteção à dignidade da pessoa, servirá de norte para a definição pelo Juiz da modalidade de
guarda a ser exercida pelo genitor.
4
PRESUNÇÃO PRO MATER
Quando se trata da guarda da criança e do adolescente, há a presunção social e cultural que o
mais razoável seria que essa ficasse com a mãe. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas24, no Estado do Rio de Janeiro entre os anos de 2007 e 2010, dos casos resolvidos pelo
judiciário em 1ª instância, em 95,64% dos casos a guarda fora deferida para a genitora, sendo
somente em 4,36%, para o genitor. Isto ocorre, apesar de o art. 1583 §2º do Código Civil afirmar
que deve deter a guarda unilateral do menor aquele que tiver melhores condições para exercê-la,
oferecendo-lhe, principalmente, afeto, saúde, segurança e educação.
Observa-se que existe uma tendência da sociedade de acreditar que determinados valores em
uma cultura são naturalmente produzidos e por isso, inevitáveis ou superiores. A antropologia
chama este fenômeno de etnocentrismo, onde construtos sociais se transformam em valores
culturais, que são utilizados como forma de retirar a responsabilidade pelos próprios
comportamentos e pela própria condição individual e social de determinado grupo.
Já a psicologia afirma que não há qualquer superioridade na aptidão das mães para criar os
filhos após o desmame, que esta é uma situação construída socialmente. A psicóloga Nancy
Chodorow afirma que psicanalistas, psicólogos, obstetras, biólogos e cientistas não apresentam
22
FILHO, Waldyr Grisard. Guarda compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. 2ª Ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais. 2002.
23
LEITE, Eduardo de Oliveira. “Famílias Monoparentais - A situação jurídica de pais e mães solteiros, de pais e
mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal”. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1997.
24
IBGE, Estatísticas do Registro Civil 2003-2010. Disponível em
<http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=RGC403>. Acesso em: 31 ago. 2012.
114
argumentos que comprovem que bebês precisam ser maternados, necessariamente, pela mãe,
tampouco para a tese de que há um instinto ou biologia, que por si só, possam gerar a maternalidade
nas mulheres e excluir a capacidade dos homens de criar os filhos. Sendo assim o comportamento
humano não é determinado instintivamente ou biologicamente, mas sim mediado culturalmente.25
Esta situação deriva-se, principalmente, da ideologia de uma sociedade patriarcal onde a
mulher tinha como dever cuidar dos filhos e da casa, enquanto o homem era provedor, que
trabalhava para sustentar a família. A partir disso, criou-se a afirmação que a mulher teria um
instinto materno, entendendo que esta possuiria um dever natural de cuidar dos filhos, conseguindo
identificar todas as necessidades deles, sendo, portanto, naturalmente mais apta a criar seus filhos.
Esta situação é verificada nitidamente na Declaração Universal dos Direitos da Criança,
ratificada pelo Brasil, que em seu princípio VI afirma:
A criança necessita de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de
sua personalidade; sempre que possível, deverá crescer com o amparo e sob a
responsabilidade de seus pais, mas, em qualquer caso, em um ambiente de afeto e
segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, não se deverá separar a
criança de tenra idade de sua mãe [...]. (sem grifos no original)
Devido a este paradigma socialmente construído, o genitor que deseje ter a guarda dos filhos
possui grande desvantagem, porquanto terá de provar a incapacidade da genitora em cuidar e
conduzir a vida dos filhos para, só então, demonstrar suas reais condições de atender ao interesse da
criança ou do adolescente. A presunção pro mater torna a análise da capacidade protetiva, educativa
e afetiva do pai dependente da existência de fatos que impeçam a mãe de exercer adequadamente a
guarda do filho menor.
5
A JUDICIALIZAÇÃO DA GUARDA NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO
RIO DE JANEIRO
A fim de compreender o modo como o Estado interfere nas relações interfamiliares, o
presente trabalho investiga a jurisprundência fluminense analisando comparativamente as decisões
de primeira e segunda instância. O método adotado na pesquisa é quantitativo, a partir da
jurisprudência do Tribunal do Rio de Janeiro e de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística. As ementas selecionadas (119, no total) versavam sobre disputa entre genitores pela
responsabilidade da guarda unilateral dos filhos menores de idade, no período de 2007 a 2010. Os
resultados obtidos na pesquisa jurisprudencial foram comparados à pesquisa do IBGE sobre
divórcios concedidos em primeira instância a casais com filhos menores de idade, no mesmo
período. A pesquisa em segunda instância restringiu-se aos casos de conflitos entre genitores,
25
CHODOROW, Nancy. Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa
dos Tempos, 1990. p 89.
115
exclusivamente, pela guarda dos filhos menores de idade – não foram incluídos os incapazes –,
sendo selecionados apenas aqueles em que a totalidade de filhos ficou sob a responsabilidade de um
único genitor.
Cumpre esclarecer que a ferramenta de busca disponibilizada pelo Tribunal impõe algumas
restrições à pesquisa de ementas de processos que correm em segredo de justiça. Houve uma grande
dificuldade em identificar, por exemplo, se o autor da ação foi o genitor ou a genitora. Entretanto, a
mesma dificuldade não ocorreu na identificação do vencedor da lide. É possível que algumas
ementas tenham sido cadastradas no portal com erro material, no que se refere ao gênero do
apelante ou do vencedor, mas é uma parcela infíma do material coletado e não invalida, portanto, a
pesquisa.
Além disso, o sistema de buscas do Tribunal limita a pesquisa a trezentas ementas por
palavra-chave pesquisada. Assim, em prol de um melhor aproveitamento, foram selecionados os
seguintes grupos de palavras-chave: “guarda menor genitor”, “guarda menor genitora”, “guarda
menor pai”, “guarda menor mãe”, “guarda genitor”, “guarda genitora”, “guarda pai’, guarda mãe”,
pesquisados ano a ano, no período de 2007 a 2010.
Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas apontaram uma prevalência da
guarda materna nos casos resolvidos pelo Tribunal do Estado do Rio de Janeiro em 1ª instância
(figura 1). A partir da análise das características dos apelantes (figura 2), observa-se que o número
de genitoras que recorrem das sentenças é superior ao número de genitores. Razão pela qual se
deduz que a judicialização da guarda dos filhos menores não é uma disputa paterna, já que as
mulheres ademais de receberem majoritariamente a guarda em 1ª instância, também em maior
número recorrem ao Tribunal a fim de conquistar para si a responsabilidade pela guarda unilateral
dos filhos.
Apelações
Responsável pela guarda em 1ª instância
Genitor 0,36%
Genitor 4,36%
Genitora 6,14%
Genitora 95,64%
(Figura 1)
(Figura 2)
Verifica-se também que na maior parte dos casos analisados (figura 3), o Tribunal confirma
a sentença judicial. Neste ponto, é importante salientar o problema da análise probatória em 2ª
instância, qual seja: a realização de diligências para a produção de provas é permitida somente à
primeira instância, assim, apenas os juízes possuem contato direto com a fonte probatória e, por
conseguinte, melhor conhecimento da situação fática, o que explica essa tendência dos
desembargadores em seguir as decisões proferidas pelos juízes.
116
Análise das sentenças pelo Tribunal
Guardas
revertidas 9,24%
Guardas
confirmadas
90,76%
(Figura 3)
No que se refere ao conteúdo das ementas, foram identificados os seguintes fundamentos
adotados pelos desembargadores: o princípio do melhor interesse do menor, o princípio da
manutenção da situação de fato e a preferência do menor, nesta ordem, seja para deferir a guarda
para o genitor ou para a genitora. Outro dado importante, é que na maior parte dos casos analisados
os desembargadores seguiram o laudo do estudo psicossocial feito do caso.
Não obstante o melhor interesse da criança/adolescente seja defendido como vetor das
decisões judiciais, bem como adotado pela maioria dos desembargadores em suas razões de decidir,
o alto percentual de guardas concedidas às mães em primeira instância e confirmadas em segunda
instância, evidencia que o Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro ainda privilegia o gênero
feminino, a partir da crença de que as mães possuem melhores condições ao exercício da guarda dos
filhos menores. Isso ocorre porque o referido princípio é subjetivo, e depende das concepções dos
julgadores e dos peritos que analisam a situação fática das famílias, para ser preenchido de
conteúdo.
CONCLUSÃO
Estudos científicos demonstram que homens e mulheres possuem as mesmas condições de
exercerem individualmente a responsabilidade pela guarda dos filhos, a Constituição Federal de
1988 revolucionou o Direito de Família, estabelecendo a igualdade entre homens e mulheres e entre
cônjuges (art. 5º, I e § 5º do art. 226). No entanto, as mudanças na prática do judiciário dependem
da mudança nas concepções dos julgadores, sobretudo, porque o princípio do melhor interesse do
menor possui caráter subjetivo. Assim, apesar da legislação prever preferencialmente o modelo da
guarda compartilhada, a igualdade de gêneros, e idêntica participação dos genitores no exercício da
autoridade parental, a pesquisa constatou que o Judiciário Fluminense ainda opta pela guarda
unilateral exercida pela mãe.
117
De qualquer sorte, entende-se que o princípio do melhor interesse do menor deve ser
utilizado para assegurar o bem-estar e o desenvolvimento da criança e do adolescente, cabendo ao
Judiciário, nos casos a ele levados, analisar objetivamente, com base principalmente em estudos
técnicos, quem reúne as melhores condições para garantir que o menor possa alcançar plenamente a
maturidade tanto social quanto cívica, sem considerar que em determinado momento histórico
coube à genitora cuidar dos filhos, já que na atual situação, ambos os genitores gozam dos mesmos
direitos, em igualdade de condições.
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120
A FORMAÇÃO SÓCIO AFETIVA DE CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE RISCO NO
CENÁRIO EDUCACIONAL
Rejane Honorio de Sant’anna
Doutoranda em Sociologia
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio De Janeiro - IUPERJ
RESUMO
O presente estudo objetivou analisar a representatividade no campo educacional do I Programa
Especial de Educação (IPEE) nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) nos anos 80
e 90, e, em especial o Programa Aluno Residente (PAR),o impacto social que representou esse
Programa à população e a garantia do direito democrático de inclusão social através da formação
sócio educativa. Para tal, utilizou-se a metodologia de pesquisa descritiva e qualitativa de
natureza etnográfica, utilizando bibliografia concernente ao objeto em questão e entrevistas
semiestruturadas. Assim, apresenta-se um estudo teórico sobre pressupostos da educação (em
tempo) integral, baseada em Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Tal metodologia se fundamentou
no levantamento do estudo da arte da literatura existente sobre o I PEE, e, em particular sobre o
PAR. Ao longo da pesquisa constatamos que até o início da década de 90, foram atendidas mais
de 5.000 crianças, considerando o número significativo de reintegrações familiares
proporcionado pelo Projeto PAR, com a permanência da criança na escola de horário integral. A
articulação positiva entre a assistência e a educação possibilitou incluir crianças e adolescentes
em situação de risco social nas áreas como: educação, trabalho, esporte, saúde, cultura e lazer, do
ponto de vista das pessoas entrevistadas ao longo da pesquisa de campo.
Palavras-chave: Educação Integral – Projeto Alunos Residentes – Assistência
1. INTRODUÇÃO
O Brasil cresceu visivelmente nos últimos 80 anos.
Cresceu mal, porém. Cresceu como um boi mantido,
desde bezerro, dentro de uma jaula de ferro. Nossa jaula
são as estruturas sociais medíocres, inscritas nas leis,
para compor um país da pobreza na província mais bela
da terra.
Darcy Ribeiro
O presente artigo, de resgate histórico, traz alguns resultados de um estudo realizado
nos anos de 2007 a 2009, com ex alunos do Projeto Alunos-Residentes inseridos no Programa
121
Especial de Educação (I PEE)1, implantado no 1º governo de Leonel de Moura Brizola no
estado do Rio de Janeiro (1983-1987), e investigar até que ponto o PAR se constituiu
enquanto alternativa de inclusão social, através das práticas de formação sócio-educativa.
Portanto, o tema, justifica-se pelo fato de que, projeto de tal envergadura merecem ser
mais bem analisado, devido a sua relevância social, pois através dele talvez seja possível
contribuir para a mudança de rumo da vida de algumas crianças e adolescentes. Se
considerarmos que devido a uma série de circunstâncias, como a falta de recursos econômicos
e apoio familiar, muitas vezes os que têm o acesso à educação, perdem oportunidades de uma
maior inserção no processo social.
O campo da Educação tem como fundamento a prática social que objetiva o ensino
dos diversos tipos de saberes, contribuindo para a formação dos sujeitos, de acordo com as
necessidades e exigências da sociedade em dado momento histórico. Com o advento da
Constituição Federal de 1988, a Educação se tornou no país um direito de todos e dever do
Estado e da família. Entretanto, a inserção em políticas educacionais, desde a Educação
Infantil, ainda não está universalizada devido às vagas insuficientes. Logo, parte da população
deixa de ter acesso a escola pública e também a possibilidade de ensino de qualidade, levando
ao reforço das desigualdades sociais e econômicas, a medida que não ocorreu a oferta
quantitativa e qualitativa aos mais desfavorecidos socialmente.
Deste modo, as crianças e adolescentes permanecem, em pleno século XXI,
desmotivadas em freqüentar as salas de aulas, levando à evasão e repetência ou, quando
concluem o ciclo de ensino, saem despreparados, sem qualificação alguma, o que refletirá em
seu futuro pessoal e profissional. Ao mesmo tempo, podemos observar que há um grande
esforço dos setores mais excluídos, não apenas para ingressarem no ciclo do ensino, mas,
sobretudo para permanecerem nele.
Nos anos 80, com o processo de re-democratização em todo o Brasil e em particular,
no Estado do Rio de Janeiro, algumas políticas públicas educacionais se destacaram, dentre
elas, os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP’s/RJ) implantados durante o governo
de Leonel de Moura Brizola.
1
O Programa Especial de Educação (PEE), de escopo tão abrangente, acabou sendo identificado com os CIEPs.
Luiz Antônio Cunha atribui a reorientação definitiva no sentido da redução do PEE aos CIEPs o que, em sua
avaliação, de fato aconteceu no encontro dos professores em Mendes. Essas avaliações indicavam que o
desencanto provocado na seqüência do encontro deveu-se à suspeita de que toda a reunião servira apenas como
referendo para decisões de governo que foram imediatamente chanceladas pela Assembléia Legislativa do
estado, autorizando a construção da cadeia de escolas que vieram a constituir os CIEPs. Daí a conclusão de Luiz
Antônio Cunha, de que o Encontro de Mendes marcaria a clivagem definitiva entre o governo e o magistério da
rede pública de ensino do Rio de Janeiro (EMERIQUE, 1997; MAURÍCIO, 2004).
122
De acordo com Bomeny (2009), nos muitos depoimentos concedidos à imprensa e aos
meios de divulgação acadêmica, Darcy Ribeiro2 defendia os Cieps como uma escola pública
regular em nada distinta daquelas milhares em funcionamento em qualquer bairro dos países
que, de alguma maneira, sinalizaram para a importância democrática de prover educação para
a maioria da população. O feito tido aqui como extraordinário e extravagante, é agenda
rotineira de qualquer governante nos países que universalizaram o direito à educação,
afirmava Darcy. E não era preciso que tal associação fosse feita com os países considerados
desenvolvidos. Na própria América Latina, lembrava Darcy, era possível encontrar, em outros
países que não o Brasil, a concepção da educação integral, como padrão de escolarização nas
séries iniciais.
As lideranças de Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, em grande medida, autorizavam –
pelo estilo e pela paixão implicados nas ações de governo – a eclosão da virulência crítica de
seus adversários. O processo de construção do sistema público do ensino fluminense, a
deterioração da rede escolar, o aumento da violência urbana e a sensação de insegurança e
desorientação, sobre o que fazer com tantas demandas feitas às escolas, facilitam
paradoxalmente, um distanciamento e uma aproximação do que seria a mensagem daquilo que
se oferecia como Centro Integrado de Educação Pública. Que mensagem era essa?
Darcy Ribeiro estava convencido de que a escola pública brasileira ainda não podia ser
considerada republicana. Elitista e seletiva, ela não estava preparada para receber quem não
tivesse acesso a bens materiais e simbólicos que contam e interferem diretamente no
desempenho escolar. A escola burguesa exigia da criança pobre o rendimento da criança
abastada, não levando em conta a maioria do alunado, oriundo das classes populares.
O vice-governador convencido do desvirtuamento do sentido republicano da Educação
brasileira propugnava clamoroso:
Então o CIEP fornece gratuitamente os uniformes e o material escolar necessário.
Os alunos estão expostos a doenças infecciosas, estão com problemas dentários ou
apresentam deficiência visual ou auditiva? Então o Ciep proporciona a todos eles
assistência médica e odontológica (Ribeiro, 1986, p.48).
Ainda segundo Bomeny (2009), identificamos na fala acima a intenção de firmar dois
pontos cruciais à defesa do projeto do governo: o programa era destinado às crianças e, a
escola em tempo integral deveria ser uma resposta ao que Darcy considerava a “calamidade”
do sistema público de ensino. As séries iniciais foram o segmento de ensino para o qual o
programa fora pensado prioritariamente.
2
Darcy Ribeiro, acumulava em 1983 os cargos de vice-governador, secretário de Ciência e Cultura e chanceler
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
123
No reencontro com a vida coloca-se a perspectiva de um projeto educativo que,
ancorado na instituição escolar, possa recriar seu sentido na relação com outros interlocutores,
outros espaços, outras políticas e equipamentos públicos. Portanto, o patamar a partir do qual
se organiza uma escola que pensa e propõe Educação Integral precisa considerar os saberes,
as histórias, as trajetórias, as memórias, as sensibilidades dos grupos e dos sujeitos com os
quais trabalha, tecendo as universalidades expressas nos campos clássicos de conhecimento.
Em sua teoria sobre o Brasil, para o antropólogo, o povo se torna categoria
incorporada na construção da nação, reiterando sua filiação ao pensamento da geração de
intelectuais dos anos 50, comprometida com os processos da transformação sócio-econômica
brasileira. A reação aos Cieps parecia conferir veracidade ao diagnóstico de Darcy. A
conjuntura de alguns setores conservadores da sociedade no momento da redemocratização
brasileira se identificou com a liderança de Brizola ao elegê-lo governador do Estado do Rio
de Janeiro em 1982. Por outro lado, setores da esquerda dificultaram a gradual e progressiva
implantação do programa especial, alimentando as reações conservadoras que combatiam o
projeto dos Cieps.
Paralelamente, segundo Emerique (1997), o I Programa Especial de Educação (PEE)
tinha como objetivo garantir à população seu direito democrático, de acesso a um ensino
gratuito moderno, reestruturado do ponto de vista pedagógico e tecnologicamente aparelhado.
No Encontro de Mendes3, foram apresentadas aos delegados representantes dos professores da
rede pública estadual e municipal do Rio de Janeiro 19 metas: metas assistenciais ligadas à
educação (material didático para todos os alunos, uniforme, calçado escolar); metas
assistenciais não relacionadas com a educação (melhoria da qualidade da merenda escolar e
assistência médico-odontológica para os alunos) e metas de conservação das escolas
(reformas dos prédios escolares e renovação do mobiliário).
O professor Darcy Ribeiro resolveu colocar em discussão um conjunto de teses sobre
educação. As teses cobriam vários temas, relativos à situação da educação naquele momento,
e o Darcy queria fazer com que todo o corpo docente do estado discutisse essas teses. Era uma
tentativa de fazer um grande processo de qualificação profissional dos professores. Em
Mendes houve a chegada do encontro. Eram 60 mil professores que, durante uma semana,
foram se aproximando de Mendes por afunilamento. Ou seja, começou nas escolas, com todos
3
Em 1983 professores se reuniam, pela primeira vez na história do país, para discutir as políticas educacionais a
serem adotadas nos anos seguintes. O Encontro de Mendes, como ficou conhecido, foi organizado pela
professora Rosiska Darcy de Oliveira, juntamente com o vice-governador da época, o educador Darcy Ribeiro.
124
os 60 mil discutindo, depois iam-se criando grupos menores e delegações, até que os
delegados chegaram a Mendes. E lá houve um grande debate. Foi um momento muito
importante do pensamento sobre a educação no estado do Rio de Janeiro4.”
As metas pedagógicas se referiam a eliminação do terceiro turno diurno nas escolas,
aumento da carga horária diária para cinco horas, revisão de todo o material didático, reforço
adicional de horas de aula para a melhoria do rendimento escolar, separação dos alunos do
primeiro segmento do ensino fundamental dos alunos do segundo segmento — da primeira a
quarta e da quinta a oitava séries, respectivamente. Também se destacavam novos projetos
educacionais: Casas da Criança com atendimento pré-escolar; criação dos CIEPs; criação dos
Centros Culturais Comunitários; Educação Juvenil com atendimento noturno, para jovens de
14 a 20 anos; treinamento de professores e melhoria das condições de trabalho (cursos para
reciclagem de professores, novos cursos de formação de professores; revitalização dos
Institutos de Educação; reestruturação da carreira docente, do estatuto do professor e dos
regulamentos das escolas.
Algumas pesquisas criticam o I PEE, afirmando que o programa apenas se dirigiu aos
CIEPS, embora o I PEE tivesse como objetivo um escopo bem mais abrangente, mas o foco
se limitou bastante aos CIEPs, por ter sido o projeto conforme identificamos ao longo deste
estudo, que provocou maior impacto na sociedade fluminense naquela década.
2- A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO INTEGRAL NO BRASIL
Educar é crescer. E crescer é viver. Educação é, assim,
vida no sentido mais autêntico da palavra.
Anísio Teixeira
De acordo com o recenseamento de 1906, o Brasil apresentava a média nacional de
analfabetismo na ordem dos 74,6%.A exceção vinha da cidade do Rio de Janeiro, então
Distrito Federal, com 48,1% de analfabetos. Tais números fortaleceram a defesa em favor da
escola pública, firmando-se na década de 1920. O movimento da Escola Nova5 inspirou
4
Folha Dirigida, 11/11/2003, Seção Educação, ‘A dívida com a escola pública’. Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil
5
O movimento chamado Escola nova esboçou-se, na década de 1920, no Brasil. O mundo vivia, à época, um
momento de crescimento industrial e de expansão urbana e, nesse contexto, um grupo de intelectuais brasileiros
sentiu necessidade de preparar o país para acompanhar esse desenvolvimento. A educação era por eles percebida
como o elemento-chave para promover a remodelação requerida. Inspirados nas idéias político-filosóficas de
125
jovens reformadores liderados por Anísio Teixeira, que irá atuar na área das políticas públicas
pela educacionais de meados da década de 1920 até 1971.
A história da educação brasileira se confundiu com a luta pelo acesso das crianças às
escolas, o que acabou por abrir portas para outros movimentos, que lutariam pelo acesso ao
conhecimento das operações mentais desenvolvidas com as habilidades da escrita, da leitura e
dos cálculos elementares. Na década de 80 ocorreram mudanças no quadro internacional
provocadas pelas transformações tecnológicas, provenientes do desenvolvimento de sistemas
de automação e informatização. Tal quadro concorre para fazer do Brasil do fim do século
XX, um país despreparado ainda com muitos analfabetos, embora os 74,6% do final do século
XIX, tenham dado lugar aos 17% no final dos anos 1980.
De acordo com Guará (2009), o conceito de educação integral encontra amparo
jurídico significativo na legislação brasileira, assegurando sua aplicabilidade no campo da
educação formal e em outras áreas da política social. O arcabouço normativo oferecido pelo
paradigma da proteção integral, garante os direitos de toda criança ou adolescente a receber
atendimento em todas as suas necessidades pessoais e sociais, desenvolvendo adequadamente.
Por outro lado, recorrendo-se à Constituição Brasileira (1988), ao Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº
9.394/96), podem-se constatar nesses marcos legais as bases para a educação integral na
perspectiva que queremos adotar aqui. Não se pode negar que o Brasil tem avançado muito
em termos normativos, embora também exista uma reconhecida distância entre a lei e o ritmo
das mudanças por ela sugeridas. Esse descaso no cumprimento das responsabilidades legais
não diminui a exigibilidade do direito e o fato de que a população infanto-juvenil goze, hoje,
de uma proteção legal expressiva, alinhada às indicações da Convenção Internacional sobre os
Direitos da Criança (GUARÁ, 2009).
O tema da educação integral renasce também sob inspiração da Lei nº 9.394/ 96, que
prevê o aumento progressivo da jornada escolar para o regime de tempo integral (arts. 34 e
87, § 5º) e reconhece e valorizam as iniciativas de instituições que desenvolvem como
parceiras da escola, experiências extra-escolares (art. 3°, X). A previsão disposta no artigo 34
– de ampliação da permanência da criança na escola, com a progressiva extensão do horário
igualdade entre os homens e do direito de todos à educação, esses intelectuais viam num sistema estatal de
ensino público, livre e aberto, o único meio efetivo de combate às desigualdades sociais da nação. Denominado
de Escola Nova, o movimento ganhou impulso na década de 1930, após a divulgação do Manifesto da Escola
Nova (1932). Nesse documento, defendia-se a universalização da escola pública, laica e gratuita.
126
escolar – gera para os pais a obrigatoriedade de matricular e zelar pela freqüência dos filhos
às atividades previstas. Ao mesmo tempo, a idéia de proteção integral inscrita no ECA está
fundada, em primeiro lugar, no reconhecimento de que a situação peculiar da criança e do
adolescente como pessoa em desenvolvimento exige uma forma específica de proteção,
traduzida em direitos, tanto individuais como coletivos, que devem assegurar sua plena
formação.
A década de 1990 foi uma década de grande importância na história da educação
brasileira, uma vez que suas deficiências e incapacidades foram expostas de maneira mais
clara. Ribeiro (1991) denunciou “a pedagogia da repetência” e dessa forma, propiciou uma
retomada das discussões, destacando agora não somente os fatores externos que se
interpunham ao sistema educacional impedindo seu florescimento satisfatório, mas, os
impasses internos aos próprios sistemas de ensino.
Devido a precária situação educacional do país, governos estaduais se movimentaram
com plataformas específicas de intervenção, uma delas, nacionalmente conhecida, foi a que
deu notoriedade aos dois mandatos de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, nos períodos de
1983-1987 e 1991-1994. Bandeira de luta dos reformadores da educação no Brasil conhecidos
como os pioneiros da Educação Nova, cujo líder foi Anísio Teixeira.
3 - CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RISCO: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES
Criança é coisa séria. A criança é o princípio sem fim. O
fim da criança é o princípio do fim. Quando uma
sociedade deixa matar as crianças é porque começou seu
suicídio como sociedade.
Herbert de Souza (Betinho)
Cada vez mais, as políticas de atenção à criança em situação de risco enfrentam o
desafio das precárias condições de vida em que estas se encontram, vivendo no cotidiano,
muitas vezes, situações extremas de exclusão social, em que os direitos assegurados no
Estatuto da Criança e do Adolescente não são respeitados (ECA, 1990).
Por situação de risco, entende-se a condição de crianças que, por suas circunstâncias
de vida, estão expostas à violência, ao uso de drogas e a um conjunto de experiências
relacionadas às privações de ordem afetiva, cultural e socioeconômica que desfavorecem o
pleno desenvolvimento bio-psico-social (LESCHER et al, 2004).
127
Esta situação de risco acaba se traduzindo por dificuldades na freqüência e no
aproveitamento escolar, nas condições de saúde de forma geral e nas relações afetivas consigo
mesmo, com sua família e com o mundo, tendo como conseqüências à exposição a um
circuito de sociabilidade marcado pela violência, pelo uso de drogas e pelos conflitos com a
lei. Muitas vezes estas experiências de vida facilitam dinâmicas expulsivas da família nuclear
e da casa e o ingresso no circuito da rua e das instituições de abrigamento.
No campo da prevenção e do tratamento do uso de drogas observa-se que esta
população é bastante vulnerável às circunstâncias da violência. Embora crianças em situação
de risco façam parte de um grupo com muitas necessidades, por suas condições de vida
acabam tendo dificuldades de acesso aos serviços públicos existentes em seus bairros de
origem, agravando a situação de risco em que se encontram.
A complexidade da atenção às crianças em situação de risco passa por repensar as
práticas da saúde e da assistência social, na medida em que a forma como os serviços estão
organizados e como os profissionais se relacionam podem facilitar ou não o acesso e a
permanência no serviço. Nesse âmbito, a noção de acolhimento tanto da criança ou jovem,
quanto do adulto que acompanha, seja ele um educador ou um familiar, ganha importância
(LESCHER et al, 2004).
A presente pesquisa sinaliza que para o profissional envolvido no atendimento de
crianças e adolescentes em situação de risco, tão importante como conhecer as fases do
desenvolvimento infantil, visando à adaptação do atendimento a cada faixa etária, é ter em
mente os condicionantes sócio-econômicos para seu comportamento. Nesse sentido, cabem
algumas considerações a respeito do contexto sócio-cultural em que se encontram crianças e
adolescentes que, desassistidas pelos familiares, necessitam da intervenção do Estado na
proteção de seus direitos fundamentais.
As crianças e os adolescentes estarão mais vulneráveis a esta aprendizagem do que
adultos, que, porventura, tragam consigo configuração diversa de valores éticos e morais. Na
medida em que estarão ainda formando tais valores dimensionados numa realidade adversa,
materializada por situação de risco pessoal e social.
Por outro lado, configuram-se situações de risco pessoal/social na infância e
adolescência, casos de: abandono e negligência; abuso e maus-tratos na família e nas
instituições; exploração e abuso sexual; trabalho abusivo e explorador; tráfico de crianças e
adolescentes; uso e tráfico de drogas e conflito com a lei, em razão de cometimento de ato
128
infracional.
Ainda se pode verificar que a maioria dos indicativos de situação de risco
correlaciona-se com a situação econômica precária da família que não consegue cuidar de
suas crianças, enquanto outros, relaciona-se a problemas de saúde psíquica e emocional dos
seus membros. A violência doméstica ocorre em todas as classes sociais, embora seja mais
visível nas classes menos favorecidas. Muitos são os casos que chegam aos hospitais de
crianças vítimas de violência física e sexual perpetrada pelos próprios familiares.
4 - O PROGRAMA ALUNOS-RESIDENTES
[...] É...
A gente quer viver pleno direito
A gente quer viver todo respeito
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
A gente quer viver uma nação
Gonzaguinha
Durante os anos 80 foi implantado no estado do Rio de Janeiro um conjunto de escolas
públicas de tempo integral, os CIEPs, funcionando a partir de concepções administrativas e
pedagógicas próprias. Os dois Programas Especiais de Educação, criaram 406 CIEPs e cinco
CIACs6. O que a pesquisa revelou foi que tal projeto se realizou em um período curtíssimo de
tempo, o que só foi possível graças à dedicação do Professor Darcy Ribeiro, somado ao
esforço e comprometimento de mais de 200 professores do Estado e Município do Rio de
Janeiro, responsáveis pelas Coordenações do Programa, sob responsabilidade do I PEE.
Ao longo da realização do programa dos CIEPs foram criadas coordenações que
ficaram responsáveis pelas obras, pelo trabalho pedagógico e pela gestão. Também
reformaram equipes pedagógicas que desenvolveram os seguintes projetos: material didático,
6
O Programa Especial de Educação – I e II PE, incluiu na sua proposta político pedagógica integrada, nas
décadas de 80 e 90. Sua implantação e implementação tinha como meta a construção de 500 CIEPs no Rio de
Janeiro, Baixada Fluminense e Interior do Estado. No projeto arquitetônico constavam modelos diferenciados
de residência (sobre a lage ou sobre biblioteca) com capacidade de acolher de 12 a 15 crianças e adolescentes
em alojamentos separados, com idades entre 6 e 14 anos, inseridas no segmento escolar. As residências foram
totalmente equipadas para o casal, seus filhos e os alunos residentes. A intenção do Programa Especial foi
incluir na escola crianças em situação de risco social, com sérias dificuldades familiares considerando
sobretudo, ser este o seu espaço de direito.
129
treinamento de pessoal, cultura e recreação, assistência médico-odontológica, projeto alunosresidentes (PAR), educação juvenil, estudo dirigido, biblioteca e alunos-renitentes (Ribeiro,
1986). O objetivo da Comissão era formular e orientar a execução de toda a política
educacional do estado.
Ao objetivarmos privilegiar o estudo acerca dos alunos residentes, propiciando um
melhor entendimento desta política pública, através das falas e memórias, que expressam
representações do significado histórico daquele projeto, como uma das propostas educacionais
dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs). Também analisamos o impacto social
do projeto, junto aos militares da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, que forneciam os
casais sociais, que atuavam como responsáveis das crianças inseridas no projeto, destacando
um olhar ousado, em meio a um cenário político de redemocratização do país e de
fortalecimento da escola pública.
O PAR, mesmo tendo sido responsável por algumas incompreensões, ensejou teorizar
sobre a função social da Escola pública, contrapondo com preconceitos cristalizados que
entendiam que as crianças mais “desiguais socialmente” seriam casos para o atendimento por
órgãos assistenciais e não pela Escola. Para Freire (1997), nessa relação, os oprimidos são
submetidos à “invasão cultural” ao “silenciamento” da sua palavra e a constante
“desumanização”, o que os impede de concretizar a sua “vocação ontológica” na direção de
“ser mais” e de sua “humanização”.
De acordo com Lobo Júnior (2001), o Projeto Alunos-Residentes inseria os alunosresidentes nas atividades de rotina, a partir das 8 horas, recolhendo-os às residências do CIEP
no final do dia. Nos finais de semana, feriados e férias escolares, os alunos deveriam retornar
à convivência com seus pais ou responsáveis, minimizando dessa forma, o rompimento dos
laços familiares.
Enquanto para Cavalieri (1996), pesquisadora da UFRJ, o PAR encaminhava e apoiava
o aluno que iniciava seu processo de evasão escolar. Paralelamente, se desenvolvia um
trabalho conjunto com os familiares, procurando meios de superação os problemas
encontrados. No caso das crianças abandonadas ou em estágio de pré-marginalização, o
projeto funcionava como instrumento de inserção da criança no sistema escolar,
proporcionando também, e principalmente, a reversão, ou seja, o retorno dos alunosresidentes ao seio da família.
Entretanto, tal projeto foi alvo de controvérsias, visto que muitos estudiosos
130
acreditavam tratar-se apenas de uma proposta marcada meramente por um viés
assistencialista, tendo sido criada com objetivos político-partidários. Segundo Bomeny
(2008), o aluno residente participava das atividades escolares, retornando à residência do
CIEP no fim da tarde. Era a partir desse momento que surgiam as oportunidades de um
trabalho mais intenso dos casais junto às crianças – conversando com elas em grupo ou
individualmente.
O projeto da residência era ambicioso: oferecer aos meninos e meninas dormitórios
separados, equipados confortavelmente. O foco seria atender as crianças candidatas futuras às
ruas e reeducá-las, dando-lhes educação de qualidade dentro dos CIEPs. O que se observa é
uma contraposição ao projeto de ressocialização fracassado da tão criticada Funabem
(Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor). Uma experiência de moradia assistida em
espaço menor, sendo unidade integral, com assistência social e pedagógica especializada
(BOMENY, 2008).
Desta forma, o Projeto de Aluno Residente, objetivava assistir em particular às
crianças ou adolescentes em situação de carência ou abandono, gerada pela inteira ou parcial
impossibilidade dos pais, principalmente em áreas mais carentes, cuidando do acolhimento,
nas residências construídas nos CIEPs, de grupos de no mínimo 15, no máximo 24 crianças e
adolescentes entre 6 e 14 anos. O aluno residente é a criança que, diante de uma situação
social crítica, precisava de apoio para que pudesse freqüentar a escola como é seu direito.
As investigações realizadas ao longo da pesquisa identificaram 298 CIEPs, em 1994,
atendendo a alunos residentes com 332 residências em funcionamento (algumas unidades que
abrigavam até 24 crianças possuíam duas residências) em setenta e quatro municípios do
Estado. O trabalho nesses municípios foi articulado com outros órgãos oficiais e nãogovernamentais, reunindo: Ministério Público, Juizado da Infância e Juventude, Conselhos de
Defesa (Tutelar e Municipal), Secretarias Municipais etc.
Assim sendo, um grupo de doze crianças – os alunos residentes – permanece na escola
durante toda a semana, sob os cuidados de um casal representado por uma “mãe social” e um
“pai social”7. Os pais sociais, seus filhos e os alunos residentes moram em um espaço
7
No Projeto Alunos Residentes, o marido da mãe social não é pai social. Desde a concepção do Projeto, tal
situação era prevista: “constituirão uma família sob a responsabilidade de um casal ou de uma senhora em
qualquer caso elementos cuidadosamente selecionados segundo critérios estabelecidos pela contratação. Essa
contratação implicará em deveres explicitamente definidos e permitirá uma autonomia de ação no âmbito
doméstico, estabelecerá uma vinculação administrativa direta ao Diretor Geral do CIEP e assegurará a
orientação de técnicos da área social e de especialistas em assuntos educacionais”. (SÁ EARP, 1996, p.119)
131
construído para essa finalidade: a “residência”, onde ficam até o dia seguinte, quando vão
novamente para as atividades na escola, ou seja, tal projeto reunia em uma mesma instituição
educação e assistência. (SÁ EARP, 1996). As mães das crianças residentes podem visitá-las
durante a semana. Esse é um dos aspectos que diferencia o Projeto alunos residente de outras
instituições, como os internatos da FUNABEM, FEBEM e FEEM/RJ. Ainda segundo Sá Earp
(1996), as crianças residentes têm condições de moradia extremamente precárias, geralmente
casas de poucos cômodos, onde vivem muitas pessoas. Os alunos com laços familiares moram
com as mães e a figura paterna parece distante, algumas vezes substituída por um padrasto.
Para algumas crianças residentes, o CIEP representa um internato. Para crianças sem laços
familiares, os chamados “desassistidos”, o atendimento na “residência” assume características
de internação.
5 - FALAS E MARCAS DO PAR
Mesmo considerando a diversidade de arranjos
familiares no plano empírico, a unidade doméstica é,
ainda, o grupo mais importante para transmitir capital
cultural e para orientar a ação dos filhos na aquisição
de capital escolar
Romanelli
Quanto ao processo de entrevistas, os sujeitos selecionados foram 8 (oito) ex-alunos
do PAR, bem como 5 (cinco) ex-professores; 3 (três) ex-diretores; 3 (três) coordenadores do
projeto e 2 (dois) ex-pais sociais.
Cabe também salientar que os entrevistados pertenceram e, alguns ainda fazem parte
da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME- RJ), embora o Projeto tenha
sido gerenciado, tanto pelo município, quanto pelo estado do RJ.
Pelos estudos realizados, acreditamos que a vivência longe dos pais, a situação de
risco e a miséria em que se encontravam produza, inicialmente, resistências, dor, negação e
fragilidade diante da necessidade de expor as experiências vividas na época. Essa resistência
inicial deverá atingir os ex-alunos, dificultando a retirada de informações importantes. Para
minimizar esse problema, foi construído um contato empático, solidário, não-julgador, que
favoreça a confiança e a exteriorização de sentimentos e emoções, visando o alívio de tensões
e elaboração da dor ao relembrar o passado.
Cabe preliminarmente informar que o tempo que os ex-alunos permaneceram no
132
Projeto Aluno Residente variou de 3 anos a 7 anos. Dos 8 anos entrevistados, 3 (37%) tinham
7 anos de idade quando entraram para o PAR; 3 (37%) tinham 8 anos; 1 (13%) tinha 6 anos e
1 (13%) tinha 9 anos de idade (Gráfico 1).
Gráfico 1 – Idade que os alunos entrevistados entraram para o PAR
13%
13%
37%
37%
6 anos
7 anos
8 anos
9 anos
Quanto ao tempo de permanência desses alunos no projeto verificou-se que 4 (49%)
permaneceram no PAR por 3 anos; 2 (25%) por 4 anos; 1 (13%) por 7 anos e 1 (13%) por 6
anos (Gráfico 2).
Gráfico 2 – Tempo de permanência dos ex-alunos no PAR
13%
13%
49%
25%
3 anos
4 anos
6 anos
7 anos
A resistência ao abordar o passado foi percebida desde o início, devido à dificuldade
de conseguir que os ex-alunos relatassem a sua trajetória no referido Projeto. Os que
aceitaram falar não queriam se aprofundar muito na temática e, alguns chegaram a mentir seu
próprio nome. Em outros casos, as respostas foram bem sucintas, não havendo
133
aprofundamento.
Tal atitude é compreensível, uma vez que abordar o passado, nesse caso, traz de volta
sentimentos de dor, sofrimento e desamparo. Esses sentimentos ficam claros na fala de um
dos ex-alunos.
Muitos dos ex-alunos mencionaram que foram para o PAR, uma vez que o Conselho
Tutelar visitou seu ambiente familiar e verificou que seria melhor que fossem inseridos no
Projeto Alunos Residentes. Um ex-aluno inclusive mencionou que todos os irmãos foram
levados ao PAR por meio do Conselho Tutelar.
Dois dos ex-alunos entrevistados eram filhos de pais sociais, sendo que uma ficou
durante dezoito anos, convivendo com os alunos residentes. As lembranças desses alunos não
são tão difíceis, pois a situação era outra, eles estavam com os próprios pais, não eram
crianças historicamente excluídas.
Outro tema recorrente é a violência em família, revelando que na sua grande maioria,
o Conselho Tutelar optou por levar as crianças para o Projeto Alunos Residentes. Vários
foram os relatos dessas situações familiares.
Em contrapartida, duas ex-alunas mencionaram que não sofriam violência por parte
dos pais. Em um dos casos o problema era unicamente a miséria em que viviam, o que não
deixa de ser uma outra forma violência social, imposta pelo modelo econômico brasileiro.
Quanto à convivência com os pais sociais, os ex-alunos entrevistados relatam certa
dificuldade inicial no relacionamento com os novos pais, mas afirmam que significaram muito
para eles, como pode ser observado em seus depoimentos abaixo.
Dando prosseguimento, todos os ex-alunos que vivenciaram aquela experiência,
assinalaram a importância do PAR na suas vidas.
Mesmo
não
sendo
um
abrigo,
o
PAR
traz
algumas
características
de
institucionalização de menores e a preocupação relativa aos efeitos prejudiciais da
institucionalização no desenvolvimento e na saúde de um indivíduo. A base de todos estes
prejuízos é a impossibilidade de se formar e manter vínculos afetivos, pois estes são um
referencial primordial na elaboração da concepção de si e do mundo. É a vinculação afetiva,
inclusive, que propicia as estimulações sensorial, social e afetiva fundamental para que o
indivíduo adquira amplas condições de aprendizagem em todas estas áreas. A infância
conturbada e privada de laços afetivos fortes traz conseqüências futuras para o repertório
comportamental dos indivíduos, inclusive para sua auto-estima, que pode definir sua forma de
134
relacionamento com o outro e com o mundo em geral.
No caso específico do PAR, embora as crianças tenham a possibilidade de encontrar
seus pais nos fins de semana, ocorre que muitas delas não têm pais, o que propicia uma
angústia muito grande por parte da criança.
Ao mesmo tempo, muitas crianças do PAR eram proibidas pelo Conselho Tutelar
retornar para casa no final de semana, devido à total falta de condições apresentadas por parte
da família.
Algumas crianças chegavam ao PAR através do Conselho Tutelar, uma vez que as suas
famílias, geralmente mono parentais (nas quais só a mãe está presente) e desfavorecidas
economicamente. Muitas, a partir do momento em que chegavam ao PAR, eram proibidas de
visitar suas famílias. Devido ao total desfavorecimento das mesmas no que tange à questão
econômica, como também devido a muitas famílias terem mães e pais sem condições de criar
os filhos (alcoólatras, prostitutas), ou também casos de crianças que viviam em ambiente de
total violência física ou abuso sexual. Diante disso, passam a fazer parte de um contingente
especial da população: os filhos de ninguém. As famílias, que a princípio pensavam em
utilizar o PAR como um colégio interno, ou como simplesmente um local onde os filhos
teriam o que comer, desaparece. As famílias, no entanto, continuam detentoras do pátrio poder
e, as crianças nem sequer têm o direito de serem colocadas em uma família substituta.
De outro lado, quando questionados se o PAR seria útil atualmente, no sentido da
inserção social das crianças em situação de risco, todos entrevistados acreditam que sim.
Paralelamente, no que tange ao que representou o PAR, de um modo geral, verificouse que este propiciou uma maximização da visão de como ligar com as crianças que tem
necessidades sociais e que precisam promover para o bem estar social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da presente investigação, podemos assinalar que o PAR foi um projeto
inovador na área da educação pública, uma vez que antecipou-se às disposições do ECA,
atendendo crianças e adolescentes em situação de risco. Também constatamos que até o início
da década de 90, foram atendidas mais de 5.000 crianças, considerando o número
significativo de reintegrações familiares, com a permanência da criança na escola de horário
integral e ingresso de novas crianças/adolescentes.
135
Tal proposta educativa de assistência foi uma possibilidade que abriu caminhos para o
rompimento da situação de crianças nas ruas e/ou internações em estabelecimentos de modelo
asilar. A intenção do PAR foi incluir na escola, crianças em situação de risco social, com
sérias dificuldades familiares considerando, sobretudo, ser este, o seu espaço de direito.
O PAR apresenta-se como contexto principal de desenvolvimento para aquelas
crianças, proporcionando novas relações de amizade, ampliando as suas redes de apoio. Os
pais sociais foram de vital importância na vida das crianças inseridas no PAR, pois
forneceram apoio, tendo em vista que, frente às situações adversas a que as crianças estavam
expostas. Percebe-se que para as crianças entrevistadas, a falha ou mesmo a ausência de apoio
familiar faz com que o apoio fornecido pelos pais sociais seja mais valorizado.
O Projeto foi percebido por todos como uma oportunidade e como uma possibilidade
de crescimento e desenvolvimento pessoal que permitiu o acesso a um futuro mais promissor.
Desta maneira, sentiram-se ocupando um espaço, ou seja, julgaram-se incluídos na sociedade,
pois o projeto permitiu a integração familiar, a participação política e social e controle de
risco da marginalidade e da violência em que viviam essas crianças.
Assim, queremos ressaltar que os sentidos construídos por esses jovens não são
generalizáveis devido à especificidade do Projeto Alunos Residentes. Apesar disso,
gostaríamos de destacar que iniciativas como esta podem ser “um dos” caminhos para evitar a
marginalidade do jovem, possibilitando seu acesso ao acervo cultural de nossa sociedade.
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Dissertação de Mestrado em Educação – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
1996.
__________________. Infância, pobreza e educação: o projeto alunos residentes em CIEPs.
In FRANCO, Creso & KRAMER, Sônia. Pesquisa e educação: história, escola e formação de
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Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais CBPE/Inep/MEC (1950-1960). Bragança
Paulista: Ifan/ Cdaph/Edusf, 2000.
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MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA E PARTICIPAÇÃO POPULAR
Do Brasil-colônia ao Governo Lula
Leonardo Vereza de Freitas1
RESUMO
O trabalho expõe alguns episódios da história do Brasil, onde elites buscaram promover
transformações sociais e políticas no país. Analisamos a modernização neo-pombalina no
período da transferência da corte portuguesa ao Brasil em 1808, bem como na transação de
independência de 1822, entendendo esses dois processos enquanto antecipações das elites a
mobilizações de setores ora desfavorecidos à época. Analisamos também a proclamação da
República em 1889, observando o nível de participação das classes populares no movimento e
os três matizes políticos envolvidos da idealização da República: jacobinos, liberais e
positivistas. Já em período contemporâneo, analisamos o governo Lula, debatendo o sentido
das chamadas “mudanças” promovidas por este, questionando o não-atendimento de
demandas populares históricas no país. Relacionamos os fenômenos coronelismo,
clientelismo e corrupção, resgatando origens históricas e verificando a vigência dos mesmos
até hoje. Analisamos os impactos do programa Bolsa-família, como fenômeno de estatização
do clientelismo, sustentado pela relação entre a prática assistencialista e a retribuição pelo
voto nas eleições estatais. Para avaliar a qualidade da chamada “mudança” no governo Lula,
debatemos os conceitos gramscianos de revolução passiva, reforma e contra-reforma. Com
esta base conceitual, interpretamos práticas políticas do governo Lula, como o Bolsa-Família
e o processo de transformismo, relativo à cooptação de lideranças populares pelo Estado.
Como um todo no trabalho, debatemos o protagonismo das classes trabalhadoras em todos
esses movimentos de transformação, para buscar entender como os processos de
modernização no Brasil têm jogado o moderno sempre um pouco mais a frente.
Palavras-chaves: Modernização, Clientelismo, Lula.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho buscará de forma objetiva, expor alguns importantes episódios da
história do Brasil, onde as elites buscaram promover transformações sociais e políticas no
Brasil.
1 Leonardo Vereza de Freitas é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense e Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da mesma
universidade. E-mail: [email protected]
140
No senso comum muitas vezes esses episódios se apresentam com nuances positivas,
dando a impressão de que o povo de fato foi atendido em suas demandas. Há pouco anos
atrás, em 2008, o Rio de Janeiro era tomado por cartazes e debates acerca da importância da
vinda de D. João VI e da Corte portuguesa ao Brasil em 1808. A tônica dos debates era sobre
como se modernizou o Rio de Janeiro e o Brasil em função daquele evento e como as
condições precárias de vida da população foram melhoradas.
As datas de celebração de independência do Brasil e da proclamação da República,
constituem-se como atos cívicos anuais em que enaltece-se um sentido de pátria que a
população aplaude de pé, mesmo sem ter entendimento muitas vezes do que é essa pátria e
como ela foi em fatos constituída.
Já o governo de Luis Inácio Lula da Silva segue sendo considerado por significativa
parcela das classes trabalhadoras como o melhor presidente dos últimos tempos, em função de
todo um simbolismo que sua origem operária suscita no imaginário popular, bem como
devido a sua habilidade política em sustentar o projeto das classes dominantes, fazendo-o
passar como o interesse de melhoria de vida dos dominados.
Buscaremos debater aqui então sobre qual foi a preponderância e protagonismo das
classes trabalhadoras em todos esses processos de mudança, para buscar entender como os
processos de modernização tem jogado o moderno sempre um pouco mais a frente.
A TRANSAÇÃO – Do domínio colonial a independência antecipada
“O pensamento político brasileiro é o pensamento político português.” É a partir dessa
afirmação que Raimundo Faoro, em sua obra Existe um Pensamento Político Brasileiro?
(FAORO, 2007), busca apresentar as origens do pensamento político brasileiro, relacionando
o mesmo com a colonização brasileira e o particular modo em que se deu mesma. Faoro
questiona as razões do atraso político no Brasil, sobre o porquê de sucessivos processos de
modernização, onde as classes dominantes souberam alijar as classes populares do centro das
transformações.
Distanciando o Pensamento Político da concepção de que ele estaria restrito ao plano
teórico, Faoro afirma que o mesmo é uma atividade, circunscrita no território da prática. É
nesse sentido que o autor expõe as transformações políticas, no período de colonização do
Brasil, na metrópole e na colônia, demonstrando como as mesmas contribuíram para a
formação de uma determinada via de transformações no Brasil, em que a modernidade, além
de defasada no tempo, sempre chegava de forma incompleta. Como diz Faoro: “a
modernização, pelo seu toque voluntário, senão voluntarista, chega a sociedade por um grupo
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condutor que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes” (FAORO, 2007, p. 125).
Demonstrando o descompasso político e cultural de Portugal com relação à Europa no
século XVIII, Faoro analisa as reformas promovidas pelo Marques de Pombal. Enquanto uma
parcial modernização de Portugal, implicava numa descompressão cultural que abria caminho
para o fomento da então atrasada economia portuguesa, “artificialmente ativada pelo ouro do
Brasil e subterraneamente devastada pela Revolução Industrial, à qual o país permanecia
alheio e, pelo Tratado de Methuen, vendido” (FAORO, 2007, p. 70).
Os entraves culturais foram superados pela expulsão dos jesuítas em 1759 e com a
renovação do ensino e do modelo universitário. Do ponto de vista da organização política do
Estado, promove uma transformação parcial no modelo absolutista, na medida em que atenua
o poder da aristocracia, ao removê-la do papel de controle político, sem substituí-la,
entretanto, por outra classe em ascensão – a burguesia comercial. Em uma transação com essa
burguesia, tais medidas consistem num enfraquecimento do setor mais conservador da
aristocracia, que abre as possibilidades para o caminho liberal português, inaugurado na
Revolução de 1820 e que por consequência instala uma dita forma liberal no Brasil, oficial e
dirigida pelo alto, como apêndice do Estado.
A via das transformações, ainda que contida pela severidade da Real Mesa Censória e
pelo poder régio, agora colocado como se emanado diretamente de Deus, liberta a direção do
Estado das restrições eclesiásticas, das Cortes e do Papa. Isso permite uma abertura parcial
aos debates filosóficos e políticos iluministas que tomavam a Europa, levando ao preparo das
elites que iriam decidir os caminhos da colônia e do curto Império do Brasil.
Os reflexos das transformações promovidas por Pombal vêm se manifestar no Brasil a
partir da transferência da Corte para a colônia em 1808. Aquilo que veio a ser chamado de
neo-pombalismo traduziu-se na transação que resultou no fim do pacto colonial e no conjunto
de adequações econômicas e de infra-estrutura necessárias a transformação da colônia em
metrópole do reino português. Isso virá afetar diretamente as tensões crescentes que
decorriam da crise do sistema colonial.
A insatisfação dos senhores de engenho que viviam sob um crescente arrocho em suas
receitas era o termômetro da falência de um sistema colonial que começava a dar seus
espasmos. Com o preço de seus produtos regulados pela metrópole, os senhores de terras não
possuíam muito mais que a aparência de ricos e a ostentação no interior de seus perímetros. E
além da crise no meio das elites locais, fermentavam movimentos contestatórios de maior
monta que propunham a aliança de setores desprivilegiados da sociedade, incluindo os
escravos. No rumo dos influxos da Revolta de São Domingos de iniciada em 1791 no Haiti, a
142
Inconfidência Baiana de 1798 retrata bem no Brasil o perfil dos movimentos de ruptura que a
Coroa não hesitará sobrepujar.
Como observa Faoro (p. 128):
A modernização, no Brasil, encontra, na sua primeira versão histórica, uma
modernização em maturação. As inovações de d. João recaíram sobre um país em
transformação, dirigindo-o e, ao mesmo tempo, freando-o e renovando-o com o
transplante da Corte portuguesa no Rio de Janeiro.
O segundo movimento de modernização no Brasil se dá em 1822 por meio da
Independência transacionada por Pedro I e as elites locais, para que se mantenha, à custa de
reformas, o núcleo neopombalino. Anos antes, a Revolução Pernambucana de 1817 aventava
para o risco de sucesso de movimentos de independência nacional que corressem por fora dos
arranjos que se estabeleciam desde 1808. Logrando êxito, ideais liberais hasteados pelas
classes desprivilegiadas poderiam alterar a estrutura do Estado, de uma forma não prevista.
Daí a necessidade de mais uma vez, haver a antecipação das elites aos intentos populares,
projetada nessa vez pelo reformismo da transação da Independência.
Através de um constitucionalismo de restauração, tomava corpo um novo Estado
nacional. No entanto, o mesmo não fazia mais que renovar a tradição absolutista, moderada
pelo sentimento de união nacional, cooptando interesses econômicos divergentes, como o
senhor rural e o comerciante urbano.
A Constituição de 1824 inaugura o Poder Moderador, que, como quarto poder e
“neutro”, serviria à vigilância do equilíbrio dos três poderes constituídos, assegurando que
nenhum deles tomasse um viés popular. Além disso, o constitucionalismo toma para si o
rótulo de liberalismo sem o sê-lo. Dá forma ao absolutismo reformista brasileiro para, em
nome do liberalismo, desqualificar os liberais.
O pensamento liberal genuíno, por sua vez, além de não conseguir alçar-se a cabeça do
Estado, sofria de carências no próprio movimento contestatório, que o tornavam insuficiente
enquanto uma proposta de poder assegurador dos direitos individuais. Não se traduzia em
democracia, mas na defesa da integridade do Império, tendo como horizonte no máximo o
liberalismo norte-americano e europeu, socialmente conservador. Como atesta Faoro, o
liberais, quanto ao poder, “serão potencial ou realmente sediciosos, ou, sem tocar no Estado,
farão a política conservadora” (FAORO, 2007, p. 99).
O liberalismo ao se desenvolver genuinamente poderia superar o invólucro da
consciência do possível e ampliar o campo democrático, que lhe é correlato, mas que pode ser
antagônico. Das insuficiências e fracassos do mesmo resulta uma continuidade do
absolutismo, agora pretensamente “nacional” pela base do reformismo, sem nunca voltar os
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olhos ao povo brasileiro, quanto às suas reivindicações sociais e no respeito aos seus direitos.
A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA ÀS MARGENS DO POVO
O processo de Proclamação da República no Brasil demonstra um terceiro movimento
de elites que implica em uma reestruturação política ao nível nacional. Num ato em si
predominantemente de cunho militar, suas lideranças tiveram a preocupação de tentar angariar
alguma legitimidade fora dos círculos militares. Legitimidade essa que não necessariamente
significava participação popular.
Tomando como base a descrição de José Murilo de Carvalho em A Formação das
Almas (1990), centramos aqui na análise das três vertentes do pensamento republicano – os
liberais, os jacobinos e os positivistas – no período que antecede a data de 15 de novembro de
1889, de forma a identificar que influências de fato tiveram nos acontecimentos, bem como o
apelo popular que puderam alcançar.
Já com alguma tradição política no país, registrada pela Revolução Pernambucana de
1817 e pela difusão do Manifesto Republicano em 1870, entre outros episódios, os liberais
brasileiros tinham como referência o liberalismo estadunidense, na forma da constituição de
uma República Federalista, com sistema parlamentar bicameral. O pensamento liberal tinha
significativo apelo entre os proprietários rurais, em especial os paulistas, que se sentiam
asfixiados pela centralização monárquica no período de expansão do café. Com adeptos
também em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, teve como personalidades marcantes as
figuras de Alberto Sales e Quintino Bocaiúva.
Embora o modelo liberal estadunidense atender aos interesses de grandes proprietários
rurais, no Brasil este tinha sentido bem distinto do sistema estabelecido de fato nos Estados
Unidos. Isso, pois, apesar dos sucessivos e graduais atos abolicionistas concluídos em 1888, o
Brasil sofria de profundas desigualdades sociais e grande concentração de poder – cenário
esse, bem distinto da realidade dos Estados Unidos, quando do estabelecimento do
federalismo. Este país tinha passado por uma revolução que desembocara numa quase
ausência de hierarquias sociais, segundo Carvalho (1990, p. 25). Pensar em liberalismo
americano no Brasil pressupunha a consagração da desigualdade, por meio de um regime
presidencialista profundamente autoritário.
A vertente positivista, por sua vez, baseada na lei dos três estados (Teológico,
Metafísico e Positivo), defendia a superação da fase teológico-militar – que corresponderia à
Monarquia, pela fase positivista – cuja encarnação era a República. E apesar de serem contra
a monarquia, entretanto, viam no Estado a instituição-mor capaz de promover o progresso,
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que necessitava, por sua vez, de se separar da Igreja para cumprir seus intentos. Tinha grande
apelo entre militares, atraídos pela ênfase positivista dada a ciência e ao desenvolvimento
industrial, mas seduziu também os republicanos do Rio Grande do Sul, que na constituição
daquele estado incorporaram importantes elementos positivistas. Tiveram à testa Benjamin
Constant e teorizavam acerca do papel da Ditadura Republicana, para ao largo do conflito de
classes incorporar o proletariado à sociedade, mediante o reconhecimento dos ricos à
necessidade de proteger os pobres.
A terceira vertente, a dos chamados radicais da república ou jacobinos, tinha como
pregador ilustre a figura de Antônio da Silva Jardim e forte apelo entre pequenos
proprietários, profissionais liberais, jornalistas, professores, estudantes – em suma, setores das
classes médias. Estabeleciam postura radical contra o regime monárquico, invocando críticas
semelhantes às tecidas ao Ancien Régime francês, na revolução de 1789. Consideravam
também que a solução liberal ortodoxa era insuficiente para colocar as classes
desprivilegiadas em vantagem num sistema de competição livre, na medida em que não
controlavam recursos de poder econômico e social.
Apesar das limitações na defesa das bandeiras de igualdade, liberdade e participação,
desenvolvidas de forma um tanto abstrata, e de terem também uma abstrata concepção sobre o
povo, os jacobinos eram o único segmento que defendia a intervenção popular para a
derrubada do Estado autocrático. Mas pelo alto nível da abstração de suas ideias, conseguiam
ter pouca penetração entre camadas populares, que marcadamente nutriam simpatias pela
Monarquia no Rio de Janeiro.
Dentre as três correntes políticas, as vertentes positivista e liberal foram as que mais
conseguiram se aproximar dos acontecimentos que resultaram na eclosão da Proclamação da
República. Entretanto, isso seu deu mais pela visibilidade dos seus ilustres representantes
históricos junto ao movimento de 15 de novembro, do que pela real aplicação de seus
ideários. Movimento de cunho estritamente militar, a derrubada da monarquia encenada por
Deodoro da Fonseca e a parada militar que percorreu as ruas do centro do Rio de Janeiro,
resultaram em mais um movimento conservador no Brasil.
A dicotomia e insegurança dos militares à época não era em torno do cunho popular ou
elitista que o movimento poderia tomar. Esse era um paradigma fora dos horizontes dos
militares, que se preocupavam somente em ter, em aparências, um lastro civil. Daí a
necessidade de ter presente aos eventos figuras como Benjamin Constant e Quintino
Bocaiúva. Já a representação jacobina não foi admitida ao palco no dia 15.
Como descreve José Murilo de Carvalho:
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A afirmação do papel dos históricos era, portanto, importante para garantir a posição
dos civis na proclamação e a perspectiva liberal da República. Mas era impossível
negar o aspecto militar do evento e o caráter inesperado da eclosão. [...] Um
compilador de notícias publicadas nos primeiros dias da República reconhece “o
sentimento de surpresa unânime, produzido pelo estabelecimento da forma
republicana no Brasil” (Carvalho, 1990, p. 51).
Em realidade o grupo de militares que esteve à frente do movimento do dia 15 de
novembro não possuía uma visão elaborada de república. A transação dos militares buscava
apenas uma posição de maior prestígio e poder, que consideravam ser de direito do exército
após o esforço de guerra contra o Paraguai. Democracia, renovação e implantação de direitos
individuais eram expressões que não faziam parte do ideário da vanguarda militar.
Governo Lula e Hegemonia às Avessas
A eleição do governo Lula estabelece novos paradigmas e elementos na estrutura de
dominação política no Brasil. Tendo como referência a tradição brasileira na qual reformas
movidas pelo alto se sucederam desde os tempos de domínio colonial, é inevitável que um
governo originado de lutas sindicais suscite questionamentos diferentes daqueles colocados
quando de governos constituídos por representações diretas das oligarquias.
Na sequencia dos processos que vieram modernizar o Brasil de forma conservadora no
período final do sistema colonial, no efêmero Império “independente” e na proclamação da
República, o país passa ainda por significativas transformações ao longo do século XX.
Transformações, entretanto, que ou não envolviam as classes trabalhadores ou no máximo as
integravam no processo como coadjuvantes para legitimar as novas transações. A chamada
Era Vargas e o período do gerenciamento militar do país são expressões marcantes destes
processos.
O primeiro governo Vargas (1930-1945) fica marcado pela utilização do par
Mobilização/Desmobilização como método para construção do regime corporativista. “Para
assumir a ‘representação’ das classes subalternas, primeiro o Estado teria de liquidar suas
organizações independentes, tendo reprimido seus líderes, cooptado outros e corrompido a
uns tantos” (VIANNA, 1976, p. 142).
Já no gerenciamento militar do Estado brasileiro, ocorrido de 1964 a 1985, os
militares, para realizar o programa capitalista em suas formas mais violentas lançaram mão de
outros métodos, como atesta Francisco Oliveira:
[...] o regime militar sucumbiu não ao seu fracasso, mas ao seu êxito em construir
uma ordem capitalista avassaladora. O regime militar relegou a burguesia nacional
ao papel de coadjuvante, submeteu a classe trabalhadora a pesadas intervenções e
não abriu ao capital estrangeiro, como faria supor seu ato mais imediato, a
revogação da Lei de Remessa de Lucros de Goulart, que deu pretexto ao golpe
(OLIVEIRA, 2010, p. 372)
146
O desfecho da gestão militar, a chamada “transição democrática”, fica marcado como
mais um pacto firmado pelo alto entre o partido oficial de oposição a ditadura e o falido
partido da ditadura, que entrega o poder, por meio de uma eleição indireta, a um civil mais
conservador que o próprio general (OLIVEIRA, idem).
Nesse sentido, quando um governo se elege com uma proposta de acabar com a
pobreza, recuperar os direitos alijados das classes trabalhadoras – apontando ainda para a
integração das mesmas ao projeto de governo – e ainda aplicar um Plano de Aceleração do
Crescimento no país, é natural que haja questionamentos sobre a possibilidade de mudança de
rota no curso de nossa história. Entretanto, há que tomar alguns dados, observar remanências,
aprofundamentos e possíveis rupturas nas formas de dominação e de organização do Estado.
E é claro, pôr todas essas questões a luz do conceitual teórico que trata das transformações da
ordem político-social.
O programa Bolsa-Família é elemento chave para essa análise. É carro chefe de Lula
em toda sua propaganda sobre redução da pobreza e democratização no país. Por outro lado, é
criticado severamente, como instrumento da perpetuação eleitoral de Lula e do PT. José de
Souza Martins vai mais além (MARTINS, 2011). O autor avalia que tal programa se
converteu em instrumento para estatização do clientelismo.
Foi o modo de institucionalizar o conformismo político e, ao mesmo tempo,
incorporar as massas desvalidas ao processo político por meio do Estado,
arrancando-as da tutela privada dos régulos de província, sem acabar com eles,
substituindo-os pelo intermediário cúmplice, transformando-os em sócios menores
do poder (MARTINS, 2011, p. 9).
Martins dá ênfase a essa questão por considerar o clientelismo como uma prática
política resultante da forma que a arcaica estrutura fundiária latifundista tomou e preservou
em nosso país. Suas chagas seriam “um conformismo preguiçoso, uma desmemoria política,
uma espera messiânica, um milenarismo retrógrado, um apreço reacionário pelas aparências”
(MARTINS, 2011, p. 11)
A prática do clientelismo está intimamente ligada à política do coronelismo. Nesta
estabelecem-se valores antimodernos de cunho feudal, baseados na troca de favores entre
potentados locais e população, que retribui a supostas benesses concedidas pelos senhores
através da prática do “voto de cabresto”, reafirmando e continuando o poder oligárquico
regionalmente e sua influência a nível nacional.
O coronelismo é originário dos tempos ainda do sistema colonial, no qual a Coroa
instituiu uma hierarquia que partia do Rei, aos capitães generais (governadores das
capitanias), aos capitães de ordenança, que eram responsáveis pela companhias de ordenança.
Essas companhias eram formadas pelos chamados cabos de ordenança – cabeças de família
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convocados pelas câmaras para realizar serviços públicos (à época chamados “serviços de
bem comum”). Organizações de cunho civil com tendências a militarização, tiveram seu
caráter alterado, quando no período da Regência, passando a possuir uma hierarquia militar
completa e submetida ao Ministério Justiça. Surgia assim a Guarda Nacional, na qual os
potentados locais ganhavam maior visibilidade e forma política como coronéis da Guarda.
Guardiões do Estado Nacional recente, estes senhores eram fonte de legitimidade política do
país. Tal legitimidade não fora perdida a partir do fim da Guarda Nacional, quando as
estruturas locais de poder seguiram sendo as mesmas.
Desde aquele período até então, a política coronelista e clientelista (senão que
umbilicalmente complementares), mantida pela estrutura latifundista, tem sido instrumento de
freio e retardamento das possibilidades de transformação social profunda e de democratização
do país (MARTINS, 2011, p. 18).
Ampliando o conceito de clientelismo, Martins relaciona tal fenômeno com a prática
da corrupção. Buscando fugir do senso comum, argumenta que a corrupção não está restrita a
prática do roubo na máquina pública, ou no uso escuso de poder de cargos mesmo em
instituições privadas. Para o autor, a corrupção se estabelece mediante a troca de favores e
interesses. Prática esta que acomete como doença crônica o poder público, mas que se estende
a práticas cotidianas da população, pelo sentimento de dever e culpa, ao se cumprir ou não o
hábito de conceder o “presentinho”, a gorjeta, o “agrado”, chegando até as pequenas propinas
e os altos subornos.
E é a partir de uma análise macro que Martins considera o clientelismo como uma
prática não marcada pela relação entre políticos ricos e eleitores pobres. Sustenta que o
oligarquismo brasileiro se apoia, na verdade, numa relação entre todos que dependem de
alguma forma do Estado e são induzidos a uma relação de troca de favores com os políticos. E
nisso está contida a política de sobrevivência de populações pobres inteiras, mas também e
principalmente na relação entre poderosos e ricos. E se as relações de interesses ocorrem entre
grandes corporações, bicheiros, etc. e políticos, as mesmas se colocam também como tática de
governabilidade, mediante a relação promiscua entre partidos e poderes públicos. Anualmente
tomam vulto na mídia, as discussões polêmicas que ocorrem sobre apoio político no
Congresso e a liberação de verbas para “as emendas”: dinheiro público cedido pelo governo a
parlamentares para bancar seus projetos locais, seja com a finalidade de investimentos para
proveito pessoal ou familiar, seja para a realização de obras regionais que revertem-se em
capital político angariado junto às populações locais.
O Bolsa Família passa a ter o status de política clientelista estatal, pois estabelece a
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prática da troca de favores direta entre o governo e populações pobres. Os resultados
apareceram nas eleições de 2010 e 2006, esta última logo após o escândalo do “mensalão”,
que longe de abalar a popularidade de Lula, reverteu a ele estrondosos índices de votação,
principalmente no nordeste. Martins fundamenta:
A grande inovação do PT no poder foi a estatização do clientelismo, inovação que
não é pouco significativa. Por meio dela, ganha consistência o processo de
esvaziamento político das oligarquias, iniciado, com estratégia própria, no governo
Fernando Henrique Cardoso. Mas uma inovação que, se suprime do oligarquismo o
propriamente privado, fortalece-o como prática institucional, o que seria o mesmo
que transformar os antigos coronéis do sertão em funcionários públicos da
dominação patrimonial (MARTINS, 2011, p. 94).
Mas a forma inovadora de fazer política do governo Lula não se resume ao
clientelismo estatizado do Bolsa Família. Lula mantém a estrutura social conservadora
mediante um consentimento construído junto a população. Este só é possível mediante a
incorporação e atendimento de algumas demandas populares que não impactam no processo
de exploração do capital. Afinal quais os impactos negativos para o capital hoje, em função do
financiamento das centrais sindicais? E do aumento de vagas universitárias pelo Prouni e pelo
Reuni? E pelo incentivo ao consumo através do crédito consignado? E pelas grandes obras de
infra-estrutura do PAC, onde não tem faltado empreendimentos para empreiteiras? O Bolsa
Família se inclui nestes questionamentos, mas já foi suficientemente comentado.
Aquilo que poderia ser chamado por “Hegemonia às Avessas” tem nítido exemplo na
África do Sul. As classes dominadas tomam a “direção moral” da sociedade e a dominação
burguesa se faz mais descarada. Como comenta Francisco de Oliveira: “As favelas de
Johannesburgo não deixam dúvidas. Assim, a liquidação do apartheid mantém o mito da
capacidade popular para vencer seu temível adversário, enquanto legitima a desenfreada
exploração pelo capitalismo mais impiedoso” (OLIVEIRA, 2010, p.24).
O já bastante debatido Bolsa Família poderia ser considerado a concessão em certo
nível equivalente ao fim do apatheid da África do Sul. Mas há outros tipos bem evidentes. O
transformismo de lideranças populares é marcante no governo luta. A cooptação de
representações sindicais e lideranças camponesas atinge os movimentos de contestação como
um todo, excluindo as camadas populares do efetivo protagonismo nos processos de
transformação social. No governo Lula, pululam nas direções de empresas estatais, fundos de
pensões e nos ministérios, históricos militantes da CUT e ainda representantes do MST. No
interior desses movimentos se instauram crises, na medida em que suas direções se veem ao
mesmo tempo pressionadas pelas bases enquanto precisam defender ainda a agenda do
governo, defendendo em realidade as políticas públicas definidas por seus pares instalados no
149
governo.
Esses são alguns dos elementos que expostos aqui de forma bem breve servem ao
debate sobre o significado político do governo Lula, debatido por Carlos Nelson Coutinho
(2011) no livro e no seminário homônimo Hegemonia às Avessas organizado pelo CinedicUSP.
O autor debate os binômios restauração versus revolução, conservação versus
modernização. Fundamentalmente situado pela leitura gramsciana, busca identificar no
momento da luta de classes da época do lulismo, como se articulam os aspectos da
conservação e da inovação.
Carlos Nelson Coutinho aventa para a possibilidade de se passar nesse período uma
revolução passiva. Ele resume assim as características desse tipo de revolução:
1) as classes dominantes reagem a pressões que provêm das classes subalternas, ao
seu “subjetivismo esporádico, elementar”, ou seja, ainda não suficientemente
organizado para promover uma revolução “jacobina”, a partir de baixo, mas já capaz
de impor um novo comportamento às classes dominantes; 2) essa reação, embora
tenha como finalidade principal a conservação dos fundamentos da velha ordem,
implica o acolhimento de “uma certa parte” das reivindicações provindas de baixo;
3) ao lado da conservação do domínio das velhas classes, introduzem-se
modificações que abrem caminho para novas modificações (COUTINHO, 2010, p.
33).
Para situar o debate sobre esse tema, Coutinho aborda um aspecto da contrarreforma
de Grasmci, considerando o advento da mesma como não necessariamente resultado da ação
de um bloco hegemônico, “mas uma combinação substancial, se não formal, entre velho e
novo”2. Expõe isso, pois considera importante diferenciar o aspecto transformador parcial da
revolução passiva, onde se fala de “revolução-restauração”, do fundamento do processo de
contrarreforma que é a pura “restauração”, apesar de admitir nesse caso a combinação entre o
novo e o velho. A revolução passiva teria seu sentido ligado diretamente ao de reforma,
enquanto um movimento realizado pelas classes dominantes, mas que atende parcialmente os
anseios das classes subalternas – movimento limitado, mas com aspectos progressistas.
Podemos supor, assim, que a diferença essencial entre uma revolução passiva e uma
contrarreforma reside no fato de que, enquanto na primeira certamente existem
“restaurações” – mas que “acolhem uma certa parte das exigências que vinham de
baixo” – na segunda é preponderante não o momento do novo, mas precisamente o
do velho. Trata-se de uma diferença sutil, mas que tem um significado histórico que
não pode ser subestimado (COUTINHO, 2010, p. 34).
Sob os tempos do chamado “neoliberalismo”, argumenta Coutinho, o sentido de
reforma tem sido manipulado, apontando não para um cenário de acolhimento dos interesses
dos “de baixo”, mas sim por uma inversão desse sentido. Sob a argumentação de promover os
2
Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2003, v.5, p. 143, apud COUTINHO,
2011, p. 29.
150
ajustes necessários na economia e na organização social, visando o crescimento e melhoria
das condições de vida, as “reformas” apresentadas têm ido, em realidade, de encontro aos
interesses das classes trabalhadoras. E o período do governo Lula tem sido o momento em que
tal tipo de “reformas” puderam parcial ou integralmente ser implementadas, com uma
determinada forma de consentimento popular, na medida em que os movimentos
contestatórios encontravam-se anestesiados pelas suas lideranças sindicais e populares
alocados no governo e pelas deficientes políticas compensatórias implementadas em paralelo.
Tudo isso embalado pelo discurso carismático do presidente.
Quanto ao protagonismo das classes trabalhadoras na transformação do país, esse
ficou nos discursos de campanha eleitoral e nas intervenções políticas das greves do ABC.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória histórica abordada brevemente neste trabalho, buscou por um lado
exemplificar sucessivos movimentos de modernização conservadora, para situar importantes
questionamentos dos dias de hoje: estamos vivendo ou não período de transformações
sociais? Em que nível essas transformações atendem aos interesses históricos das classes
trabalhadoras? Em que nível as mudanças percebidas hoje se diferenciam de falsos e
limitados projetos de transformação no Brasil?
Como elemento em comum entre os processos de modernização conservadora
observados no Brasil colônia, na proclamação da independência e na proclamação República,
pode-se atestar como as classes dominantes souberam identificar conturbações sociais que
poderiam desestabilizar o regime e agir de acordo. Anteciparam por diversas vezes
movimentos que apesar de quaisquer limitações poderiam alçar ao poder classes populares, ou
ao menos abrir caminho para futuros movimentos emancipatórios.
Foi assim que Dom João VI e Dom Pedro I derrotaram os movimentos liberais. O
período colonial e o do Império foram marcados por diversas revoltas, todas elas sem estar
organizadas por um núcleo único, uma vanguarda e uma organização com um projeto
complexo de poder para o Brasil. Entretanto, eram a expressão de tentativas de ruptura com o
sistema de exploração atrasado da época. Ao realizar determinadas concessões, souberam
neutralizar esses movimentos, ou até cooptar adeptos. É a conhecida política do “dar os anéis,
para ficar com os dedos”. Apesar de que nesses casos, nem tantos anéis assim foram
concedidos.
O embuste da proclamação da República, na qual os elementos centrais do movimento
eram originários material e ideologicamente do próprio Império – a alta oficialidade do
151
exército – serve a uma exposição complementar. Expõe como que entre os movimentos
republicanos, nota-se a quase ausência do aspecto popular do movimento contestatório como
um todo. Os únicos a defender uma intervenção popular eram o minoritário grupo dos
jacobinos. Estes por sua vez, dada à limitação de suas formulações, não conseguiam obter
apoio popular, de um povo que pouco entendia o nível de abstração de suas ideias.
Movimento militar de elite, no 15 de novembro não se preocupava em haver um lastro
popular, mas um lastro civil, para fugir de uma cisma contra os militares, por falta de
legitimidade.
No governo Lula vê-se uma nova modalidade de “mudança”. As concessões se
repetem, tal qual no período de domínio lusitano, mas dessa vez são apresentadas por um dito
representante do povo. Para esse povo, as benesses deixam de ser dadas em parte pelos
coronéis para serem dadas por um histórico sindicalista. Por sua vez, as concessões se não são
localizadas e fragmentadas para atender específicos setores, de forma a não impactar nos
lucros do capital, possuem na verdade um sentido contrário aos anseios de emancipação
popular. O exemplo do Bolsa Família demonstra como é possível como uma “concessão”,
ampliar uma estrutura arcaica de dominação, do plano local para o plano nacional, dando
maior legitimidade institucional inclusive aos potentados locais.
É nesse sentido que expressamos acordo, com a expressão Hegemonia às Avessas de
Francisco de Oliveira. Vivemos num período em que as classes dominantes concederam
licença a que uma representação das classes subalternas tomasse a direção moral do sistema
de produção, para em realidade aplicar o programa já dominante. Usamos a expressão direção
moral, pois entendemos que ter representantes oriundos das classes populares no poder não
significa ter as classes populares no poder. Sem romper com as estruturas de dominação
arcaicas através de um longo processo de transformações revolucionárias, o máximo que
poderemos ter serão caricaturas populares no poder. E caricaturas muitas vezes servem
somente a exacerbar determinadas qualidades, mas sem nunca refletir a totalidade de seu
objeto. E dessa caricatura só saem piadas de mal gosto, ficando somente a burguesia e o
latifúndio a sorrirem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990
COUTINHO, Carlos Nelson. A Hegemonia da Pequena Política, in OLIVEIRA, Francisco,
152
BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.), Hegemonia às Avessas. São Paulo: Boitempo, 2010.
FAORO, Raymundo. A República Inacabada: São Paulo. Globo, 2007
MARTINS, José de Souza. A Política do Brasil: lúmpen e místico. São Paulo: Conmtexto,
2011
OLIVEIRA, Francisco de. Hegemonia às Avessas, in OLIVEIRA, Francisco, BRAGA, Ruy e
RIZEK, Cibele (orgs.), Hegemonia às Avessas. São Paulo: Boitempo, 2010.
VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra,
1976.
153
GRUPO DE TRABALHO 02: MEIO AMBIENTE, TERRITÓRIO E PODER
A GESTÃO DOS RECURSOS NATURAIS EM MOÇAMBIQUE NA ERA DA
SUSTENTABILIDADE E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA EROSÃO COSTEIRA:
QUEM DISSE? O QUE DISSE? PARA QUEM DISSE?
SOCIOLOGIZANDO COM HANNIGAN À BEIRA DA COSTA DO SOL
Giverage Alves do Amaral1
RESUMO
O presente artigo constitui um requisito para participação no seminário fluminense de
Sociologia, especificamente para o grupo de trabalho (GT) de sociedade e meio ambiente, e o
mesmo tem como objectivo central, perceber os contornos da gestão dos recursos naturais em
Moçambique na era da sustentabilidade, pretendemos também entender a relação entre a
erosão Costeira na praia da Cosa do Sol como resultado da acção humana no meio ambiente,
visto tratar-se de um dos problemas ambientais mais gritantes da actualidade Moçambicana.
Palavras-chave: Erosão Costeira, Meio Ambiente, Sustentabilidade, Legislação Ambiental
1.
INTRODUÇÃO:
O presente artigo tem como objectivo central desenvolver uma análise sobre os
contornos da gestão dos recursos naturais em Moçambique na era da sustentabilidade,
procurando entender o fenómeno da Erosão Costeira na Praia da Cosa do Sol como resultado
da acção humana no meio ambiente à luz do construcionismo ambiental, visto tratar-se de um
dos problemas ambientais da actualidade Moçambicana.
Num primeiro momento, procederemos a apresentação das ideias principais do
construcionismo, seus elementos teóricos de análise e os conceitos, fazendo articulação com o
pensamento construcionista de Hannigan. O segundo momento, dedicamos a (des) construção
o problema da erosão costeira em Moçambique, especificamente na praia da Costa do sol,
apresentando as ideias ou estratégias retóricas que estiveram por detrás do levantamento do
problema, mostrando as perspetivas e a forma como o fenómeno foi abordado pelos diferentes
actores. A revisão bibliográfica e a consulta documental permitirão, ter acesso aos diferentes
discursos proferidos e a identificação dos actores envolvidos.
1
Mestrando em Sociologia, PPGS/UFF (Universidade Federal Fluminense). E-mail: [email protected]
154
A escolha da praia da Costa do Sol deveu-se ao facto de ser um assunto/exemplo
muito referenciado nos últimos tempos tanto pela imprensa assim como pelas organizações e
instituições Estatais de defesa do ambiente, que alertam para o perigo da erosão costeira e as
implicações que poderá induzir na vida económica e social da população.
Nos propomos a analisar esta questão tendo como referência a construção social dos
problemas Ambientais, cabe aqui já em jeito de introdução referir que o significado do
construtivismo foi discutido por vários autores, tanto da sociologia como da psicologia, assim
podemos verificar que segundo Becker (1992) por exemplo, falar de Construcionismo
significaria dizer que o conhecimento não é estático e está em constante transformação e em
Hegel e Marx podemos ver que este movimento dá-se pela dialéctica, onde este princípio da
transformação está na essência do próprio ser. Para Piaget, na psicologia e influenciado pela
física relativista, esta ideia da transformação encontra-se no que ele denominou de
“Epistemologia Genética”, que quer dizer que o homem possui uma carga hereditária ao
nascer, porém esta não lhe permite emitir um pensamento sequer, assim como o sistema social
em que o indivíduo nasce não lhe permite ter algum conhecimento objectivo, apesar de
sintetizar em si (sistema social) milhares de anos de civilização, com estas considerações
queremos chamar atenção ao facto de o indivíduo ou o sujeito humano ser sempre um
projecto a ser construído, tal qual o objecto. Ora se os dois (objecto e sujeito) têm de ser
construídos, significa que eles não têm existência prévia, mas são construídos mutuamente na
interacção. Entender isto é importante porque daqui nasce uma negação explícita ao
apriorismo e ao empirismo, por onde se entende que o conhecimento não nasce com o
indivíduo, nem é dado pelo meio social, o conhecimento é socialmente construído, é na
interacção com o meio físico que o sujeito constrói o seu conhecimento, sendo que tal
construção depende das condições do sujeito, conforme pretendemos demonstrar no caso da
erosão costeira da costa do sol. Na visão de Becker (1992), construtivismo é a ideia ou teoria
de que nada, a rigor, está pronto e acabado, e de que o conhecimento não é dado a priori, em
nenhuma instância, como algo terminado. Ele se constitui pela interacção do indivíduo com o
meio físico e social, com o simbolismo humano, com o mundo das relações sociais e se
constitui por força de sua acção, e que assim nos permite estudar e interpretar o mundo (do
conhecimento) em que vivemos:
“Vê-se, pois, que, assim como Marx derrubou a ideia de uma sociedade
constituída por estratos, ricos e pobres, que existem desde toda a eternidade, e criou
a ideia de uma sociedade que se produz e reproduz, estabelecendo um sistema de
produção que a perpetua, Piaget derruba a ideia de um universo de conhecimento
155
dado, seja na bagagem hereditária (apriorismo), seja no meio físico ou social
(empirismo).” (Becker, 1992).
Com esta ideia do construtivismo consolidada, podemos agora partir para entender o
exercício feito por Hannigan ao falar sobre “a construção social dos problemas ambientais”.
2.
HANNIGAN E A CONSTRUÇÃO DOS PROBLEMAS AMBIENTAIS
Antes porém de entrar para exposição do pensamento de Hannigan, cabe aqui
distinguir o construcionismo social do construtivismo social. O “construcionismo” se
aproxima etimologicamente e conceitualmente do “construtivismo”, e parte da ideia de que os
assuntos ambientais, não se materializam por si; eles são construídos por indivíduos ou
instituições que definem os problemas ambientais por exemplo, como altamente inquietantes,
e que ocupam-se a procurar possíveis soluções para resolver o problema” (Hannigan, 1995).
Porém, há uma diferença muito importante: Construcionismo social refere-se aos
aprendizados que são criados através de interacções sociais de grupos, enquanto o
construtivismo social foca no aprendizado do indivíduo, que acontece como resultado de sua
interacção com um grupo. Não é minha intenção fazer uma discussão mais aprofundada sobre
esta distinção, visto que me dedicarei a usar o construcionismo de Hannigan, para apresentar
aspectos da desconstrução do problema da erosão na costa do sol, tendo em conta discursos de
grupos, falo do governo e da sociedade civil.
Agora sim, podemos adentrar o pensamento de Hannigan, segundo o qual, na análise
das questões ambientais é necessário considerar a natureza das exigências dos problemas
sociais. A ideia de Hannigan é a do construcionismo, aplicado a análise dos problemas
ambientais. E isto é possível fazer aplicando algumas questões sobre o que é dito sobre o
problema em alusão? O modo como o problema está a ser tipificado? Quais as análises da
retórica das exigências? O modo como as exigências, são apresentadas ao público? E qual a
perspetiva adoptada pelos analistas/atores?
Como forma de demonstrar que o construtivismo é uma ferramenta valida, a ser usada
na análise dos problemas ambientais, Hannigan faz referência a Best (1989), que propôs as
suas duas novas tácticas ou temas retóricos e que variam segundo a natureza do público.
A primeira é a rectidão retórica (valores e moralidade), que segundo Best é a mais
eficaz no início da campanha de criação de exigências, pois geralmente é o momento em que
os públicos são mais polarizados e os activistas tem menos experiencias. A segunda é a
retórica da racionalidade (ratificar uma exigência dará ao publico um tipo de beneficio), e
156
funciona melhor, segundo Best (1989), nas últimas fases da construção dos problemas sociais,
pois os públicos são mais facilmente persuadidos, e os temas destina-se as agendas políticas.
Ainda uma terceira acrescentada por Raffer (1992), que é a formação do arquétipo, onde os
arquétipos são modelos a partir dos quais os estereótipos são inventados e tem um poder na
campanha de criação das exigências. Hannigan faz ainda menção ao pensamento de Ibara e
Kitsuse (1993), que propuseram estratégias retóricas na criação de exigências, esboçando uma
variedade de idiomas retóricos, motivos e estilos de criação de exigências, e assim, estes dois
autores consideram a existência de idiomas retóricos de perda, de insensatez, de calamidade,
de titularidade e de perigo.
Para definição dos problemas sociais ambientais, que são a sua preocupação,
Hannigan faz a análise de 2 modelos, nomeadamente o de Carolyn Wiener (1981), que
apresenta 3 passos principais e que segundo o autor são passos sobrepostos, em constante
interacção e não independentes, são: a animação, a legitimação, e a demonstração do
problema. Hannigan na sua análise, considera como tarefas essenciais para a definição dos
problemas sociais ambientais: a reunião, a apresentação, e a contestação de exigências.
A primeira tarefa é reunião, onde os formuladores se dedicam a descoberta e a
elaboração do problema. Distinguindo-o dos demais, através da determinação da base legal,
técnica, moral da exigência, determinando-se também o responsável por procurar soluções.
Para Hannigan os problemas ambientais são frequentemente originados da ciência, e uma das
razoes para isto deve-se ao factos de as pessoas comuns não terem nem conhecimento e nem
os recursos para encontrar novos problemas.
Ao procurar as origens das exigências ambientais é importante para o investigador
perguntar de onde vem as exigências, a quem pertencem ou quem lida com elas? Que
interesses económicos e políticos os formuladores de exigências representam e que tipo de
fontes elas trazem para o processo de criação das exigências. A segunda tarefa é a
”apresentação das exigências ambientais”, que aparecem como importantes novidades. A esta
tarefa equivaleria a chamar de a “etapa da caça a atenção” na área científica, dos meios de
comunicação social e pública, utilizando por vezes meios de estratégias retóricas, tácticas, e
os patrocinadores. A terceira e última tarefa, é a contestação das exigências, onde o problema
é principalmente contestado no âmbito da arena política” (HANNIGAN, 1995, p. 68).
Contudo, Hannigan (1995, p. 75) apud Moro & Miranda (2001: 309) sistematiza o processo
de construção das exigências ambientais de maneira completa, introduzindo novos
componentes por intermédio de seis (6) factores: 1) Uma autoridade científica sobre o
problema ambiental para a validação das exigências. 2) Existência de “propagadores” que
157
possam estabelecer a ligação entre ambientalismo e a ciência, ou seja, transformar uma
investigação fascinante numa exigência ambiental proactiva. 3) Atenção dos meios de
comunicação em que o problema é “estruturado” como novidade e importante. 4)
Dramatização do problema em termos simbólicos e visuais. 5) Incentivos económicos para
tornar uma acção positivam. 6) Emergência de um patrocinador institucional que possa
assegurar legitimidade e continuidade.
2.1 CRÍTICAS AO PENSAMENTO DE HANNIGAN
Este pensamento social construtivista de Hannigan, sofreu duras críticas do realismo
ambiental, que foram muito bem sintetizadas por Luciano (2000) no seu artigo sobre o lugar
da natureza na teoria sociológica contemporânea, onde o autor afirma que as críticas mais
profundas que esta abordagem construtivista de análise dos problemas ambientais tem
recebido referem-se ao facto dela carregar uma subestimação da existência dos problemas
ambientais, não contribuindo assim para a solução ou resolução desses problemas.
Segundo Luciano, não se trata de uma crítica que negue o carácter socialmente
construído do conhecimento, já que boa parte destes autores reconhecem que "todo
conhecimento é de certa forma socialmente construído" Assim, a abordagem de Hannigan
falharia por ser "sociológica demais" (Benton, 1994 e Martell, 1994, apud Burningham e
Cooper, 1999: 300), e por isso perderia sua eficácia prática.
Luciano (2000) ao apresenta sobre a génese deste pensamento realista, argumentar que
deve-se ao facto de sua agenda realista na sociologia ambiental ser repleta do imperativo de
contribuir com eficácia na administração dos problemas ambientais, e assim, como e’ possível
verificar no pensamento dos próprios Dunlap e Catton, o social construtivismo é “incapaz” de
contribuir para este objectivo porque "se todas as demandas têm validade, então não há base
para apoiar alguma em lugar de outra, e portanto não há base para se tornar pró-activo"
(Burningham e Cooper, 1999: 300).
Ao apresentar os vários problemas que teriam estas críticas realistas, Luciano (2000)
citando Burningham e Cooper, afirma que as criticas realistas se baseiam na consideração de
um construcionismo extremo, e que não é aquele que tem dado subsídio a maior parte dos
estudos empíricos construcionista, os quais são ignorados pela crítica realista.
Sendo dai possível notar que os aspectos ou equívocos implícitos nas críticas realistas
se confundem quanto ao ponto de partida metodológico do construtivismo, desconsiderando
que na verdade a abordagem construcionista não nega a existência de uma "realidade"
externa, mas defende que aquilo que essa realidade "é", o significado que ela carrega, é
158
socialmente construído e não pode ser considerado como dado, (Luciano, 2000).
3.
CONTEXTUALIZAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO
A costa moçambicana, com cerca de 2.770 km² de extensão é caracterizada por uma
ampla diversidade de habitats incluindo praias, recifes de corais, estuários, bacias, mangais
tapetes de ervas marinhas e a cidade de Maputo representa territorialmente a área sujeita à
mais alta e mais diversificada intensidade de utilização das condições naturais de
Moçambique e é onde se registam por consequência, as transformações mais significativas
(HATTON, 1995). O litoral de Moçambique possui uma grande riqueza natural mas,
contrariamente, possui um ecossistema frágil, (CHEMANE, 1997).
Segundo Meneses (2001), parte significativa da população moçambicana vive ao
longo do litoral e após um longo período de guerra, está a reinstalar-se ao longo da costa e
dependem essencialmente de recursos naturais, costeiros para à sua subsistência. A agricultura
de pequena escala, é praticada na base do corte e queima em solos arenosos, pobres em
nutrientes ao longo da costa. Verifica-se igualmente na área de estudo a prática de actividades
turísticas, que contribui para a receita do Estado. Geralmente, as zonas costeiras atraem
concentrações humanas por serem lugares lindos geralmente uniformes de climas moderados
e muitas vezes convenientemente planos com terra baixa a prática da agricultura e a utilização
do mar para a pesca e para a comunicação. Para os membros de uma dada comunidade, a sua
sobrevivência, a reprodução da flora e da fauna locais como um todo dependem da
diversidade do ecossistema, e das várias formas de uso e adaptação a este, que possibilitam a
sua sobrevivência e asseguram a sua manutenção (Meneses, 2001: 4).
Os problemas ambientais na praia da Costa do Sol estão relacionados com a erosão
costeira sendo que já foram divulgados trabalhos científicos e jornalísticos alertando sobre o
perigo indicando como exemplo o possível desaparecimento da estrada que liga a Cidade de
Maputo a outros bairros da cidade, bem como o possível desaparecimento de algumas
habitações devido a velocidade com que as águas do mar avançam para o interior.
Um elemento a ser tido em conta é que ao nível dos estudos realizados sobre o assunto
constata-se que grande parte das análises foi feita por geógrafos debruçando-se sobre aspectos
de planeamento físico. Assim a análise sociológica e a sua investigação sobre a influência
humana na erosão costeira, tem obrigatoriamente de passar pela operacionalização dos
elementos teóricos de análise que conduziram a elaboração dos mesmos, ou seja, a definição
dos conceitos de erosão, erosão costeira, gestão ambiental. Confesso que ate fiquei tentado de
fazer toda uma análise destes conceitos e sua aplicação nas ciências naturais e nas ciências
159
humanas, mas isso extrapola os nossos objectivos, vou mesmo simplesmente apresenta-los de
forma breve, com o objectivo de deixar claro sobre o que estamos falando.
A erosão é considerada como sendo o desgaste da superfície do solo provocado por
vários agentes naturais, tais como o gelo, a água e o vento, nessa ordem de ideais, segundo o
agente causador, podemos ter erosão hídrica, erosão eólica, erosão costeira etc. Assim erosão
costeira é um processo, em geral natural, que pode actuar tanto em costa rasa, como praias, e
também em costa escarpada batida pelo mar, (Cristofoletti, 1979). Esta definição permite
pensar na possibilidade da consideração do homem como agente causador, mas não toca no
aspecto antropogénico da erosão, quem o faz é Mungoi (1997), Segundo o qual a erosão
costeira, é um processo de deslocamento de terras ou de rochas de uma superfície, e no caso
em análise a erosão relaciona-se com o deslocamento de terras que pode ser pela acção natural
dos ventos ou das águas ou ainda por práticas humanas de retirada da vegetação, aqui já temos
a componente antropogénica bem presente, e é esta definição que nos permite entender a
questão por exemplo do impacto da inoperância de uma lei ambiental sobre o ambiente, ou
sobre o agravamento da erosão como vimos falando.
Este nosso pensamento vem acordar com, Moreira (1984), que por seu turno define a
erosão costeira, como sendo um processo natural através de dinâmicas das marés, eventos e a
quantidade de precipitação, mas que pode ser acelerado pela acção antropogénica. Enfim, está
claro que o homem é um factor influente para o ambiente. Todas as operações que reduzem a
cobertura do local, podem induzir uma erosão acelerada (GTA, 1996).
Os estudos anteriores feitos sobre a erosão e degradação ambiental na praia da Costa
do Sol, atribuem causas humanas e naturais ao problema. As causas humanas seriam
designadamente o aumento demográfico na cidade, o comportamento dos utentes da praia e
da população que devido a sua condição sócio-económica, recorreu ao abate indiscriminado
das árvores (casuarianas) e a destruição do mangal, a falta de acção consistente das
autoridades, assim o impacto da actividade humana nesta zona é elevado.
O outro aspecto humano relevante é que estas zonas pelas suas qualidades
paisagísticas e com uma função de lazer, conheceram o aumento de edificações de unidades
turísticas e casas de veraneio, as infra-estruturas neste caso barracas, montadas sobre as dunas
costeiras também contribuem para o deslizamento da terra devido aos constantes movimentos
dos clientes, aceleram sobremaneira a degradação das condições ambientais na cidade de
Maputo. Os factores naturais são: a redução de sedimentos que alimentavam o crescimento
das praias; O facto de o mar na sua acção contínua de erosão, transporte e deposição de
sedimentos fazer com que a linha da costa esteja em constante alteração, sendo difícil atingir
160
um estado de equilíbrio. Contudo, o problema de erosão é também causado pelo homem
(Muchangos, 1985: 35).
O outro conceito que nos interessa é o de gestão ambiental considerado como o
maneio e a utilização racional e sustentável dos componentes ambientais incluindo o seu uso,
reciclagem, protecção e conservação, (Gulele, 2004). Marcadamente, esta definição aponta
para a existência de práticas de actividades que lesam o ecossistema natural, através por
exemplo da pesca ilegal, uso de veículos ao longo das dunas, campismo, onde se considera
que a população tem trazido mudanças extensivas nos processos geradores da erosão costeira
na área de estudo, então para a gestão ambiental deste espaço existe a necessidade da
consideração da convergência de factores naturais (marítimos, atmosféricos) e humanos.
Mas e a sociologia ambiental, o que teria a fazer ou dizer a respeito deste assunto?
Buttel e Taylor (1992: 214) fundamentados no pensamento de Hannigan (1995),
argumentaram que a sociologia ambiental deve dar mais atenção a construção social do
conhecimento ambiental, pois que a construção (…) dos problemas ambientais ou das
questões ambientais é uma questão de construção social e politicas da produção de
conhecimento, visto tratar-se de uma reflexão directa da realidade biofísica, e a forma como o
conhecimento e os riscos ambientais são conceptualizados e o relativo êxito destas
construções, são impelidas e canalizadas para as estruturas existente do poder económico e
político, ademais que os problemas ambientais progridem desde a sua descoberta inicial até a
politica de implementação, e esta é sua ordem temporal de desenvolvimento.
Como é nosso objectivo articular o pensamento construtivista de Hannigan ao
problema da erosão na praia da costa do sol, vamos começar por analisar os discursos de cada
actor envolvido na discussão, é salutar referenciar que na análise sobre o que se diz sobre o
problema, foi possível identificar dois actores nomeadamente o governo e a sociedade civil,
não temos discursos relacionados a população, o que já de partida nos permite pensar que o
surgimento do problema da erosão como problema, não tem as suas exigências baseadas na
população, mas sim, é uma contestação feita pelo governo e por académicos, cientistas de
varias áreas, assim só através da análise dos seus discursos poderemos identificar, as bases, as
definições, as conclusões, e os esquemas retóricos por eles usados na construção deste
problema da erosão na costa do sol.
4.
EXPOSIÇÃO ANALÍTICA DOS DISCURSOS “CONSTRUTIVISTAS”
4.1 DISCURSO DO GOVERNO:
“Incumprimento das normas ambientais agrava erosão na Costa do Sol”
161
De acordo com os relatórios do Ministério da Coordenação da Acção Ambiental
(MICOA) sobre a erosão costeira, o litoral da Capital do país, mais concretamente, a praia da
Costa do Sol (outrora chamada praia da Polana), apresenta níveis alarmantes de erosão do
solo que vão tomando proporções gigantescas, por falta de cumprimento das políticas de
protecção ambiental. Hoje, assiste-se na praia da Costa do Sol, uma forte pressão sobre os
recursos naturais e a erosão está a tomar contornos preocupantes pois já não é apenas a praia
que se encontra em risco de desaparecer, mas também as habitações e outras infra-estruturas
da região, pois que as águas marinhas estão em progressão fazendo frente a muralha
protectora, ameaçando o corte da estrada marginal e a invasão das residências periféricas da
praia.
A principal causa desta degradação, está na prática do Comércio Informal, por parte de
algumas pessoas que montam “barracas” no local, bem como a ignorância das leis ambientais,
(Chicatsa, 1996). Assim, o lixo provocado pela prática do comércio informal, já tomou conta
do litoral, perigando a vida dos banhistas que frequentam a praia.
Segundo o MICOA, a praia da Costa do Sol já foi uma das mais concorridas e
apreciadas pelos turistas nacionais e estrangeiros, mas ultimamente, eles preferem passar uma
tarde em uma outra praia mais próxima. Um outro aspecto levantado pelo governo refere-se a
o facto de que nos dias que correm, devido à prática da actividade pesqueira ilegal em larga
escala, o litoral da zona dos pescadores está exposto a uma degradação acentuada, as barreiras
que antes protegiam a terra do mar já desapareceram, tudo devido ao desrespeito e
desconhecimento das leis ambientais. Casos mais alarmantes, são os desabamentos de terra e
das barreiras que protegiam a região costeira, largamente causados pela acção do próprio
Homem: pelos banhistas que utilizando veículos passeiam pelas mesmas, e ao abate
descontrolado e desnecessário da floresta de mangal.
Hoje, a erosão é bem visível na praia da Costa do Sol, constituindo uma preocupação
não só para as autoridades Municipais, assim como para os munícipes. Para conter o processo
erosivo que se verifica na praia da Costa do Sol, o Município com apoio de algumas
organizações não-governamentais colocou em alguns pontos críticos sacos de areia e
construiu uma barreira protectora na zona próxima ao bairro Triunfo. O Município pretende
fazer o plantio de árvores, construir muralhas, quebra-marés e gaviões para conter a erosão.
Ao nível do Governo Central estão sendo feitos esforços no sentido de se conseguir cerca de
18 milhões de dólares para solucionar o problema da erosão na zona costeira da cidade de
Maputo. Estas entre outras acções a serem concretizadas, poderão segundo o MICOA, reduzir
a situação dramática que vive ao longo da praia da Costa do Sol. Reconhecendo a gravidade
162
do problema no âmbito do Plano Nacional de combate a erosão, o governo pretende
desenvolver infra-estruturas ambientais, nomeadamente o plantio de árvores, colocação de
sacos de areia para travar a progressão da erosão, gaviões e muralhas. Segundo o IDPPE
(2002)2 existem mais de 298 pescadores a exercerem à actividade pesqueira no Bairro da
Costa do Sol e que tem três (3) centros de pesca: (1) A aldeia de pescadores, com um efetivo
de 175 (59%) de pescadores artesanais; (2) O centro de marítimo, com um efetivo de 65
(22%) de pescadores artesanais; e (3) O triunfo, com um efetivo de 58 (19%) de pescadores
artesanais.
4.2
DISCURSO DA SOCIEDADE CIVIL
“A utilização múltipla das áreas costeiras requer uma gestão através de agências
governamentais a nível nacional e local responsável pela protecção do Meio ambiente
costeiro”
A erosão na Costa do Sol é causada pela abertura de pequenas machambas familiares,
pastorícia, queimadas, corte da madeira para a comercialização e construção de pequenas
embarcações, abertura de picadas, trânsito de pessoas e veículos por cima das dunas. Portanto,
todas estas facetas da utilização humana da costa produzem resultados específicos em cada
lugar, condicionada por circunstâncias históricas e locais. Assim é na conjugação da
operacionalidade de todos estes factos que reside à explicação científica do fenómeno da
erosão costeira na praia da Costa do Sol, embora a incidência da acção antropogénica seja
mais evidente e contribua significativamente para a prevalência dos actuais padrões de erosão
(Moreira, 1984).
Com a destruição de dunas costeiras e o crescente abate indiscriminado da cobertura
vegetal (que são os principais dispositivos de protecção natural da costa), vão aumentando em
toda a cidade os perigos da erosão e o desaparecimento das trolhas freáticas. Acresce-se a este
factor a falta de um sistema de planeamento físico que respeite a dinâmica costeira, segundo
Muchangos (1985). Para este autor, a construção da estrada hoje denominada avenida
Marginal foi a razão que concorreu para a destruição das dunas, e aponta o avanço das águas
do mar como consequência. A destruição das dunas para a construção da estrada, poderia ter
sido evitada com um sistema de planeamento físico que respeitasse mais a dinâmica costeira
(idem: 45).
No final do ano passado segundo Chicatsa (1996: 45), decorreram obras de protecção
2
Para uma informação mais detalhada, vide: Jorge Jerónimo Gulele (2004,) Relação entre a expansão
urbana e a actividade pesqueira: estudo de caso do Bairro da Costa do Sol. Maputo: FLCS/UEM.
163
na praia, com o incremento de pedras e areia, mas, estas obras não seriam necessárias se a
vegetação de mangal que cobria a Península em frente à ponte lá existente, não tivesse sido
cortada ou arrancada, não se sabe bem por quem (há quem diga que isso aconteceu
precisamente na altura em que a ponte foi reconstruída por uma Empresa Italiana.
Mas o certo é que “já lá não existe o mangal” e assim, a ausência de uma estratégia
oficial para enfrentar o problema, dá lugar a intervenções de carácter “individual” (seja do
proprietário, seja dos próprios munícipes agindo independentemente), que sem desejar
acabam contribuindo para o agravamento do problema, pois as obras de estabilização rígida
(muros) são efectuadas normalmente em carácter emergencial e improvisado, sem a
orientação técnica adequada, o que resulta na pequena durabilidade das mesmas.
Para a sociedade civil a degradação da região costeira esta directamente associada a
não divulgação das Políticas ambientais bem como a uma ausência de educação ambiental,
pois muitos dos Comerciantes (ou vendedores informais) atribuem culpas ao Conselho
Municipal que, segundo afirmam, limita-se a cobrar impostos e nada faz para criar melhorias
e repor a ordem. Segundo pescador que opera naquela área, existem colegas seus que não
entendem nada acerca do ambiente e: “a culpa não é dos colegas, pois nunca foi divulgada
nenhuma lei ambiental (...), o Ministério que lida com o ambiente deveria criar um projecto
de educação Ambiental para toda a população que pratica actividades comerciais junto a
C
.”. Frisou Ernesto Sitoe3. Contudo, para a sociedade civil é importante introduzir
medidas legais e incentivos para a conservação dos ecossistemas, habitats e paisagens
importantes que estejam fora das áreas de conservação; e que o planeamento físico deve ter
máximo respeito pelas dunas, visto que, a melhor forma de ter uma costa equilibrada deverá,
necessariamente passar do respeito pelas dunas.
5.
ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE A EROSÃO COSTEIRA Á LUZ DE
HANNIGAN
I
Apoiando-se no pensamento de Hannigan, podemos conjecturar que os construtores
das exigências existentes na formulação de possíveis soluções ligadas ao problema da erosão
fornecem dados ou factos básicos que moldam os discursos dos actores envolvidos.
Assim, é possível perceber que existe uma tentativa de adequação do discurso sobre o
3
Entrevista realizada no dia 04 de Maio de 2009, pelas 13:00 horas em frente ao “Mercado do Peixe”. Ernesto
Sitoe, nome fictício, de 23 anos de idade, pescador e vendedor de peixe na zona da Costa do Sol.
164
problema ambiental da erosão costeira ao discurso político do governo moçambicano na
construção deste problema ambiental. O discurso político baseia suas afirmações retóricas 4 na
teoria da administração por descentralização do poder que sustenta que o envolvimento da
comunidade na gestão dos problemas locais passa necessariamente em o Estado descentralizar
algumas funções, competências e recursos, ainda que continuem sob o seu controle (MICOA,
2002). Nesta óptica, o governo considera que uma das vantagens da descentralização é
permitir que as decisões sejam tomadas pelas unidades situadas nos níveis mais baixos da
organização social, acrescentando que as pessoas que vivem os problemas são mais indicadas
para resolve-los no local, economizando o tempo e dinheiro.
A importância da descentralização deve-se ao seu mérito na defesa da solução local
dos problemas pelas comunidades locais e neste caso, incluindo os usuários (os pescadores,
por exemplo) da praia e a classe empresarial que explora unidades económicas na sua
periferia, Moreira (1984).
Esta teoria usada pelo Governo vem demonstrar sua convicção de que os problemas da
erosão de origem humana podem ter solução através da educação cívica e a participação
pública no processo de gestão ambiental. Analisando o discurso do governo conclui-se
facilmente que o problema ambiental da praia da Costa do Sol, está sendo associado também
a difícil gestão do ambiente urbano Moçambicano, em virtude da existência de dois sistemas
sócio-económico em permanente competição e por vezes com interesses conflituosos,
designadamente, o sector tradicional dito informal e rural por um lado, e o sector moderno
dito formal e urbano do outro.
As dificuldades de gestão ambiental urbana tornam-se mais graves, na óptica do
governo, devido a fraca capacidade humana, material e financeira do Município do Maputo e
de outras instituições governamentais que tutelam a gestão urbana da cidade de Maputo.
O discurso retórico do governo oferece garantias5 e baseia-se também na ideia da
ilegalidade como ”origem de todos os males” e na necessidade da adopção de estratégias e de
mecanismos que estaquem à pesca e o comercio ilegal pois que a não implementação das
mesmas, pode afectar a reprodução do pescado, morte de outras espécies marinhas e outros
4
Hannigan existem 3 tipos de exigências principais que são as de afirmações retóricas as quais Hannigan
considera serem de base, que são: definições, exemplos, e estimativas numéricas; Sendo que as definições
dão as fronteiras e as dimensões do problema social; Os exemplos facilitam a identificação com o problema e
as pessoas afectadas, principalmente quando se vêem como vítimas indefesas; As estimativas numéricas
facilitam o estabelecimento da importância do problema, seu alcance, e seu potencial para o crescimento,
(HANNIGAN, 1995 p. 70)
5
As Garantias, estas seriam o conjunto de justificações que permitem exigir que seja levada a cabo uma acção,
estas podem incluir a apresentação das vítimas como inocentes, ligando as exigências a direitos básicos a
liberdade (HANNIGAN, 1995 p. 70).
165
moluscos que residem nestas zonas, destruindo largamente a diversidade biológica que ocorre
nas zonas costeiras de todo o pais onde se realiza a pesca – na área de estudo, por exemplo onde em geral os pescadores usam plantas tradicionais ou silvestres para às suas práticas, deve
sempre ter em conta a sustentabilidade dos mesmos;
Podemos portanto inferir que o problema da erosão costeira da praia da costa do sol,
foi construído ao nível do governo tendo como contexto, a dependência financeira, a
ilegalidade e a necessidade de incremento da capacidade humana, é assim que segundo ilação
do pensamento de Becker (1992), o governo Moçambicano, vai “escolher” se associar - para
construção do problema ambientais ou objecto de risco - a diferentes instituições
internacionais, capazes de financiar formações de capacitações institucionais e dar doações
para a resolução dos problemas ambientais e as actividades ilegais na sua jurisdição.
Para análise dos formuladores de exigências Best (1989) apud Hannigan, aconselha
algumas questões tais como, a organização a que eles pertencem ou estão filiados, os
interesses que representam, e o grau de experiencia que possuem. Considerando esta dica dos
autores torna-se possível entender o discurso subsequente da ONU por exemplo, que é a
parceira por excelência para o desenvolvimento de Moçambique, segundo o qual
“Moçambique apresenta um quadro legal para os riscos ambientais, e que a política de
desenvolvimento visa realmente a promoção de práticas sustentáveis no uso da terra, sendo
que os constrangimentos financeiros é que impedem a sua implementação”. (UN-HABITAT:
Perfil do sector urbano em Moçambique, 2007).
Estaria assim bem fundamentado e justificado o porque da existência do problema e
que acções devem ser levadas a cabo para resolução do problema, estariam assim dadas as
“conclusões” retóricas do problema da erosão na costa do sol 6.
II
O segundo actor é a sociedade civil e antes de lançar um olhar para o seu discurso,
devemos começar por considerar que falar de Sociedade Civil (SC) em Moçambique, é
completamente diferente de falar sobre sociedade civil em qualquer outro contexto,
6
As conclusões, nesta componente das afirmações retóricas, o discurso é feito ou composto de modo a tornar
clara a acção que é necessária para aliviar ou erradicar um problema social, geralmente envolve a formulação de
novas politicas sociais de controle, (Kingdon 1980, citado por HANNIGAN, 1995, p. 69) apresenta dois critérios
básicos para que as propostas políticas “sobrevivam” na “selva política”: primeiro que as propostas sejam
tecnicamente exequíveis – “cientificamente sã e politicamente administráveis” – e que sejam concomitantemente
compatíveis com os valores dos formuladores de políticas; e para além disso, contestar uma exigência ambiental
com êxito na arena política “[...] q
m m
h m
, m
”,
m “[...]
m
” (MORO & MIRANDA, 2001, apud HANNIGAN, 1995 p. 70).
166
infelizmente não me vou ater a detalhar sobre os aspectos específicos da sociedade civil
Moçambicana, somente referir que ela é composta por ONG’s Internacionais, Nacionais, e
pelos académicos, e se enquadra inteiramente no pensamento de Hannigan que considera que
hoje em dia os movimentos sociais, que se dedicam as questões sociais actuam como
“
m
v
v
çã
m
,
m
m
çã de
fundos fortes e sofisticados, ligações institucionalizadas em relação aos meios de
m
çã
” (HANNIGAN, 1995,p. 61). Contudo, a sociedade
civil tem como objectivo central ser o “porta-voz” das exigências da população, promovendo
o desenvolvimento em todas suas vertentes, mas na maior parte, acabam sendo a “Voz”, por
inexistência de “vozes” na população, o que até entende considerando dados estatísticos sobre
o elevado índice de analfabetismo e outros problemas sócio-histórico ligados aos sistemas de
governação pelos quais o país passou, mas isso é outro assunto, pois até porque a sociedade
civil não tem conseguido ser “porta-voz”, pelo menos tem exercido bem o seu papel de
consciencialização sobre os problemas sociais para a população.
Agora lançando um olhar sobre a visão da sociedade civil em relação ao problema da
erosão costeira, tendo em conta o pensamento de Hannigan, podemos auferir que, segundo a
sociedade civil a problemática da erosão costeira na cidade de Maputo tem dupla raiz:
primária e secundária. Ao nível da raiz primária, encontram-se factores como: as condições
naturais, as marés altas, o abate ao mangal, a pesca artesanal e a fragilidade institucional, e na
raiz secundária, destacam-se: a destruição de dunas costeiras e, a falta de manutenção dos
sistemas de drenagem urbana e suburbana, e consideram que estes factores não actuam
isoladamente senão numa acção conjugada.
A natureza das exigências e suas afirmações retóricas de base passam
consequentemente pela necessidade da definição de lugares de acesso a praia para pescadores
artesanais e banhistas, a fixação de dunas costeiras, são entre outras medidas, as de grande
vulto para a redução da erosão costeira; urge a proibição do abate ao mangal; replante das
casuarianas ao longo da costa para a protecção da mesma;
Assim a sociedade civil defende que é necessário trabalhar em parceria com o Instituto
de Desenvolvimento Pesqueiro no estabelecimento de formas apropriadas de pesca a nível dos
pescadores de pequena escala, como forma de garantir que estes tenham o seu sustento a
longo prazo.
A educação ambiental é uma das medidas de prevenção que se recomenda aqui, pois
que esta permite uma interacção entre os vários parceiros na resolução deste problema,
tornando-os mais conscientes sobre o problema e preocupados em reagir para reduzir o seu
167
impacto no ambiente, proporcionando um plano preciso e bastante definido, que consolide
cada um dos núcleos de população existentes. São igualmente exigidas políticas que não
possibilitem a ampliação das habitações, pois a construção de novas habitações sobre as dunas
acaba sendo demasiado dispendiosa em termos monetários e em termos ecológicos;
A sociedade civil baseia as suas afirmações retóricas de base, na consideração dos
comerciantes, os pescadores e os outros actores indirectamente envolvidos, como vítimas da
indolência do governo em oferecer uma educação ambiental de qualidade a população.
Deste modo as suas conclusões vão de acordo com as inquietações do Governo, que
como apontamos acima, incide sobre o problema da escassez de recursos financeiros e
humanos para “cuidar do ambiente”, assim eles oferecem um conjunto de acções necessárias e
que devidamente implementadas evitariam gastos económicos, portanto conforme defendido
por Hannigan, ao considerar os estilos de criação das exigências, refere que para que as
formas de uma exigência estejam em sincronia com o público pretendido (Público, burocratas,
Artesãos, Governo, etc.), estas tem de ser adequadas ao estilo do público, (seja este científico,
estilo cómico, teatral, cívico, legal, subcultural, etc.) Assim os formuladores dos problemas ou
das exigências combinam um estilo certo para a situação e públicos certos, tal qual vimos no
discurso da sociedade civil evidentemente dirigido ao Governo.
6.
A EROSÃO COSTEIRA: REFLEXO DE UM CONTEXTO DE CONFLITOS
SÓCIO-AMBIENTAL NA COSTA DO SOL
Sendo que um dos factores apresentados aqui foi o crescimento da população
moçambicana, acreditamos que seja pertinente entender a possível relação existente entre o
crescimento demográfico e a degradação dos recursos naturais. De acordo com McElroy &
Townsend (1996: 24-25), o ambiente pode ser quebrado em três (3) partes, nomeadamente: o
ambiente abiótico (físico) o qual a biologia e a ecologia definem como sendo um conjunto de
factores que afetam directamente o desenvolvimento fundamental à vida. Estes factores
incluem a luz, o ar, o solo e a temperatura; o ambiente biótico (biológico) que inclui os
animais, as plantas e os alimentos; e o ambiente cultural que se refere as relações
estabelecidas com o meio em que se vive, e cujo produto de aprendizado é partilhado por
todos os membros da comunidade. Estas partes são interdependentes e estão em contínua
interação, uma mudança em uma das variáveis frequentemente conduz à uma variação noutra
variável. Contudo, usualmente são evidenciados aspetos separados e pensamos neles como
causas e efeitos de processos em mudanças, porém é também possível imaginar todas estas
esferas e variáveis individuais funcionando como uma unidade singular. Se olhar-nos para o
168
todo desta maneira, teremos um modelo de um ecossistema, onde todos os componentes:
físico, biológico e cultural - formam um ecossistema total - um passo de relações entre
organismos e seu ambiente.
A nossa convicção é a de que uma governação local autárquica assente no princípio de
gestão participativa de recursos naturais e dos bens públicos pode solucionar muitos
problemas relacionados com a degradação ambiental na área em estudo, num sistema em que
o público utente, os pescadores, os residentes, as unidades económicas e as autoridades
governamentais estabeleçam um vínculo de pareceria em defesa do bem comum. Somos
assim impelidos a antes das considerações finais, tecer comentários em relação a política
ambiental de Moçambique e algumas das suas especificidades.
7.
A POLÍTICA AMBIENTAL EM MOÇAMBIQUE: IDEIA OU UTOPIA?
Lançando um olhar rápido sobre a questão do ambiente e seu lugar na vida política do
país, é possível afirmar, que a questão tem ocupado lugar de destaque, bastando para tal
considerar que Moçambique é signatário de vários tratados internacionais relativos ao
ambiente, e entre as convenções principais está a Convenção Africana sobre a Conservação de
Natureza e Recursos Naturais, a Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas, a
Declaração de ONU sobre Assentamentos Humanos – a Agenda Habitat, a Declaração do
Milénio, e o Plano de Acção para o Desenvolvimento Sustentável – Agenda 21.
A responsabilidade global pela política ambiental em Moçambique é do Ministério
para Coordenação da Acção Ambiental (MICOA). A Lei do Ambiente existente e por este
órgão elaborada foi aprovada com o Nº. 20/97, de 1 de Outubro e tem como objectivos
promover o desenvolvimento sustentável e da utilização nacional dos recursos naturais,
pugnando pela inclusão dos princípios e práticas ambientais no esforço nacional de
reconstrução e desenvolvimento do País, estabelecendo as políticas e a legislação apropriadas
para esse efeito.
Esta Lei estabelece a utilização e gestão racionais dos componentes ambientais de
forma, não só a promover a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, como também a
valorizar as tradições e o saber das comunidades locais com vista à conservação e preservação
dos recursos naturais, bem como a responsabilizá-las nos atos propositados da degradação do
ambiente. Nos termos do Artigo 6 da Lei do Ambiente, foi criado o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Sustentável (CONDES) - que é um Órgão Consultivo do Conselho de
Ministros e Fórum de auscultação da opinião pública sobre as questões ambientais e legisla as
medidas de proteção do ambiente, a prevenção dos danos ambientais, os direitos e deveres dos
169
cidadãos, as responsabilidades, as infrações e sanções e fiscalização ambiental, com a
participação das comunidades (Relatório Nacional da Consultoria de Moçambique, 2009).
A lei do ambiente constituiu um quadro legal, por exemplo, para permitir a exigência
de uma licença ambiental para empreendimentos cujas actividades mostrem potencial de
prejudicar o ambiente, assim como obriga que sejam envolvidas as populações locais no
processo de tomada de decisão. Um aspeto a referir é que o Ministério para Coordenação da
Acção Ambiental depende dos fundos do Orçamento do Estado que é essencialmente para
cobrir custos administrativos e insuficientes para implementar actividades no campo, assim a
maioria dos recursos para a preservação do ambiente e combate aos impactos ambientais
negativos provém de parceiros de cooperação, pois as instituições estatais ainda continuam
incapazes de colher receitas (renda) provenientes das avaliações de impacto ambiental. (UNHABITAT: Perfil do sector urbano em Moçambique, 2007)
8.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de nossa análise ser extremamente limitada e parcial, eis uma desconstrução de
um problema ambiental de acordo com a proposta de Hannigan, que brilhantemente
evidenciou a necessidade de se desconstruir os problemas ambientas de modo a obter uma
compreensão mais apurada do problema e sobretudo facilitar a compreensão da génese dos
problemas, o que vai de acordo com a ideia de Buttel e Taylor (1992: 214) que argumentaram
que a sociologia deve dar mais atenção a construção social do conhecimento ambiental.
Assim, foi possível identificar que o problema da erosão costeira, apesar de ser de facto um
problema fisicamente identificado, é também uma construção social, trespassada por
problemas políticos e até financeiros, seja na conceção do estado ou da sociedade civil.
Este artigo mostra também que este problema não tem sua origem na população e que
as exigências a ele associadas são pervadidas de estratégias retóricas de diferentes estilos,
motivos e idiomas, referenciados por Best (1989), Ibara (1993), Kitsuse (1993) e por
Hannigan como predominantes na construção de demandas ambientais.
Podemos facilmente notar, por exemplo, o quanto o discurso ambientalista do governo
apresenta predominantemente um estilo retórico legal e cívico, enquanto a sociedade civil
recorre a um estilo mas cientifico, legal e subcultural. Estilos retóricos, que são possíveis
compreender considerando que enquanto o governo pretende convencer seus parceiros de
cooperação a financiar as acções a serem levadas a cabo, a sociedade civil esta a dialogar com
o governo, com o intuito de chamar a sua atenção para diferentes possibilidades de acção.
Infelizmente não nos é possível fazer uma análise das modificações das exigências, o que nos
170
permitiria ter a ideia clara sobre a legitimidade e a relevância das exigências apresentadas.
Contudo, claro ficou que os problemas ambientais da praia da Costa do Sol estão
associados a difícil gestão do ambiente urbano em virtude da existência de dois sistemas
sócio-económico em permanente competição e por vezes com interesses conflituosos,
designadamente, o sector tradicional informal e rural por um lado e o sector moderno formal e
urbano do outro, contudo, estes factores não atuam isoladamente, senão numa acção que
conjugada, acelera sobremaneira a degradação das condições ambientais e concorrem para a
sua extinção.
Podemos também conjeturar que o incumprimento das normas ambientais agrava a
erosão na Costa do Sol, constituindo uma preocupação não só para as autoridades Municipais,
assim como para os munícipes, pensamos nós que assim acontece também por falta de
cumprimento e efetivação das políticas de proteção ambiental em Moçambique, e enquanto
isso não se verificar, a erosão costeira na praia da Costa do Sol estará a tomar contornos
preocupantes.
Pensamos ainda que as ações a nível local têm como objectivos introduzir valores à
gestão acompanhados pela valorização das tradições locais, que ajudariam a fortalecer a
identidade local, assim, além da comunidade ter que assumir o papel de “comunidade agente”,
se poderia induzir políticas de participação e captar recursos e espaços para a sua
implementação, de modo que o gozo da independência para a tomada de decisões, resultassem
na durabilidade das ações, isto implica que as ações locais sejam dirigidas com vista a
sensibilização da comunidade para suas vocações e potencialidades, explorando as vantagens
locais através de um processo participativo, democrático e solidário, envolvendo o Governo,
as organizações da sociedade, permitindo o exercício de uma cidadania activa.
Por ultimo, consideraríamos que seria uma vantagem para Moçambique permitir que
as decisões fossem discutidas com as unidades situadas nos níveis mais baixos da organização
político-administrativa, o que para o caso de Moçambique seriam os municípios,
acrescentando que as “pessoas que vivem os problemas são mais indicadas para resolvê-los”
economizando deste modo, tempo e dinheiro, isto é, “assegurar a sustentabilidade ambiental”
local, (UN-Habitat, 2007).
9.
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UN-HABITAT: Perfil do sector urbano em Moçambique, 2007
173
PERCEPÇÃO AMBIENTAL NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: O CASO
DE PORTO REAL – RJ
Iuri Duque da Incarnação1
RESUMO
Este trabalho apresentou como tema “A Percepção Ambiental dos alunos da Educação de
Jovens e Adultos: o caso de Porto Real – RJ”. O estudo visa investigar os conceitos
ambientais difundidos entre os estudantes e saber qual a predominância nas abordagens sobre
percepção ambiental: globalizante, antropocêntrica ou naturalista. A pesquisa foi realizada
com alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), no município sul fluminense de Porto
Real. Entendeu-se como percepção as representações sociais que os alunos têm sobre o meio
ambiente e seu entorno, as quais são influenciadas pela cultura, família, religião, mídia,
colegas e etc. O presente trabalho consiste em uma pesquisa de campo e qualitativa, onde se
utilizou como procedimento metodológico entrevistas individuais, aplicação de questionários
junto aos estudantes, bem como a consulta a dados oficiais. Valeu-se da legislação vigente, de
dados oficiais, fundamentos teóricos e identificação do local da pesquisa. Ao final foi feita
uma análise dos dados coletados apresentando a percepção ambiental dos estudantes.
INTRODUÇÃO
No contexto atual, a sociedade enfrenta o problema de uma degradação crescente
dos ecossistemas o que envolve uma necessária produção de conhecimentos interdisciplinar.
Neste sentido a educação como uma das práticas sociais tem um papel importante de buscar
alternativas sustentáveis ao desenvolvimento, e essa preocupação cada vez maior da
sociedade com os problemas ambientais e de conservação dos recursos naturais vem
crescendo no Brasil e no mundo.
A Educação Ambiental (EA) busca a mobilização de instauração de processos de
mudanças, nos estudantes e nas instituições escolares visando uma postura ética, crítica e
cidadã pela formação consciente das responsabilidades individuais nessa questão de gerência
contínua e de forma sustentável.
Cada vez mais cresce o número de publicações que tratam da questão ambiental e
1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito – UFF
Cientista Social (UFF) e Especialista em Gestão Ambiental (UCAM)
Iuri Duque da Incarnação
[email protected]
174
em específico da percepção ambiental. Este artigo pretendeu trazer o debate sobre percepção
ambiental a fim de contribuir na elaboração de políticas públicas de gestão do meio ambiente
e aprofundar o estudo nesta área.
Essa busca de novos padrões de práticas sociais justas ecologicamente e viáveis
economicamente com a noção de novos preceitos socioambientais sem comprometer as
gerações futuras passa a ser uma preocupação da maioria das nações, conforme visto na “Rio
+ 20”, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável realizada no Rio
de Janeiro em junho de 2012.
A legislação brasileira através da Política Nacional de Educação Ambiental –
PNEA - (Lei nº 9795/99, art.9º), estabelece a inserção da Educação Ambiental (EA) na
Educação de Jovens e Adultos - (EJA), a ser desenvolvida de forma integrada, contínua e
permanente e a EJA é tratada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, lei nº
9394/96) como uma modalidade da Educação Básica. Essa modalidade ocorre em qualquer
nível de conclusão de estudos da Educação Básica, e é apropriada ao aluno que não teve
oportunidade de realizar ou completar seus estudos em idade regular.
Nos últimos anos tem-se intensificado um questionamento crescente da sociedade
com os problemas ambientais e dos riscos que podem surgir para a humanidade com as
consequências do desleixo. Desta maneira, atentar para essa preocupação é de suma
importância na formação do estudante da Educação Básica principalmente ao conhecer suas
percepções sobre a problemática com o intuito de superação de valores adquiridos pelo senso
comum, para a aquisição de novos valores ambientais, o que justifica esse artigo.
A discussão dessa temática para se conhecer as representações sociais dos alunos
permitirá uma reavaliação crítica de seus conceitos dentre as diferentes concepções de mundo
e das relações do dia a dia com o meio ambiente. Os alunos sempre fazem representações
sociais sobre um tema baseados na sua cultura, na família, na mídia, na religião, nos colegas,
etc. Essas representações com relação à percepção ambiental servem para transformar o que
não é familiar em familiar.
A prática pedagógica, no processo social, tem como condição para o
conhecimento o diálogo entre gerações e culturas como mediação e essa relação dialógica
representa um compromisso com o outro e com os saberes dos alunos. (FREIRE, 2002)
A pesquisa foi realizada na cidade sul fluminense de Porto Real - RJ com alunos
de três turmas do ensino médio de uma escola pública municipal que oferece a modalidade do
ensino da Educação de Jovens e Adultos, no turno da noite. A escolha da cidade se deu pelo
fato de ser o município mais rico do estado (PIB per capta, IBGE, 2010) e o interesse em se
175
conhecer como as questões ambientais são percebidas pelos alunos.
O principal objetivo da pesquisa consiste em desenvolver um estudo sobre
percepção ambiental dos estudantes do EJA como estratégia direcionada para a gestão de
ações de sustentabilidade. Também é importante destacar que se pretende com o artigo
investigar as representações sociais dos alunos sobre o meio ambiente do município, explicar
as práticas individuais voltadas para a conservação e preservação do meio ambiente em
benefício da coletividade e levantar os principais problemas ambientais de Porto Real na visão
dos estudantes.
O local da pesquisa: Porto Real-RJ
O jovem município sul fluminense de Porto Real, com apenas dezesseis anos,
pertencia ao município de Resende - RJ. Hoje possui uma população de aproximadamente 17
mil habitantes (16.592 habitantes) e uma área de 50.748 km² de acordo com o Censo do IBGE
de 2010.
Localizado na região do Vale Médio Paraíba do Sul, próximo da Rodovia
Presidente Dutra que liga o município do Rio de Janeiro à capital paulista, Porto Real
apresenta características físicas, geográficas e históricas privilegiadas. O município está
distante, a menos de 500 Km de três das principais metrópoles brasileiras: São Paulo, Rio de
Janeiro e Belo Horizonte.
Verifica-se no município uma vocação industrial comparada a grandes centros
nacionais e um crescimento econômico favorecido pela instalação de fábricas multinacionais
como a Peugeot-Citröen, a Coca-Cola e a Guardian, entre outras. Essa vocação, entretanto,
não prejudicou o desenvolvimento agrícola com o destaque no plantio de feijão, milho e
inhame.
De acordo com dados do IBGE/2010 sobre Produto Interno Bruto dos municípios,
foi constatado que Porto Real ocupa o primeiro lugar em PIB per capta do Estado do Rio de
Janeiro e o segundo lugar entre os municípios brasileiros (R$ 215.506,46 per capta). Seu
Índice de Desenvolvimento Humano foi registrado em 0,743 de acordo com o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2010).
Sua população, na maioria católica com a predominância da cultura italiana,
possui tratamento de esgoto em 92% dos domicílios e seu lixo mensal é reciclado em 15
toneladas. Os habitantes tem transporte coletivo gratuito para todos atendendo aos 33 bairros
do município o qual conta, também, com 942 empresas (IBGE, 2010).
O censo escolar 2010 mostra a rede pública de ensino básico com 3.231 alunos
176
matriculados e uma população alfabetizada de 14.179 pessoas. A rede municipal de ensino
apresenta nove escolas e uma creche além de uma escola estadual e duas particulares. Apenas
duas escolas públicas oferecem a Educação de Jovens e Adultos.
O município de Porto Real fica próximo à região das Agulhas Negras, e pertence
ao bioma da Mata Atlântica, contando com uma Secretaria de Meio Ambiente, Saneamento
Urbano e Defesa Civil.
A localidade possui um avançado Código de Direito Ambiental, Lei nº 322/08
elaborada conforme a Política Nacional do Meio Ambiente. Esse documento legal trás em seu
bojo os dispositivos sobre educação ambiental no capítulo XII, de acordo com os artigos
abaixo:
Art. 66 - A educação ambiental, em todos os níveis de ensino da rede municipal, e a
conscientização pública para a preservação e conservação do meio ambiente são
instrumentos essenciais e imprescindíveis para a garantia do equilíbrio ecológico e
da sadia qualidade de vida da população. (Lei n°322/08)
A educação ambiental do município também é tratada nessa legislação através do
seu artigo 67 que propõe:
Art. 67 - O Poder Público, na rede escolar municipal e na sociedade, deverá: I apoiar ações voltadas para introdução da educação ambiental em todos os níveis de
educação formal e não formal; II - promover a educação ambiental em todos os
níveis de ensino da rede municipal; III - fornecer suporte técnico/conceitual aos
projetos ou estudos interdisciplinares das escolas da rede municipal voltados para a
questão ambiental; IV - articular-se com entidades jurídicas e não governamentais
para o desenvolvimento de ações educativas na área ambiental no Município,
incluindo a formação e capacitação de recursos humanos; V - desenvolver ações de
educação ambiental junto à população do Município. (Lei 322/08)
Educação Ambiental e Percepção Ambiental
A degradação ambiental é uma preocupação antiga e está expressa nos fóruns
internacionais e nos remete às décadas passadas. Já em 1942 surge a preocupação em
organizar eventos internacionais de discussão da questão ambiental.
Acontecimentos ocorridos no mundo entre os anos de 53 e 65 do século XX,
como a contaminação do ar, a intoxicação por mercúrio os efeitos nocivos do pesticida DDT
levaram a criação de organismos internacionais especializados no assunto.
Os estudos iniciais sobre a percepção da EA surgiram na década de 50 e 60. O
termo EA ou “environmental educátion” foi usado pela primeira vez em 1965 na Inglaterra,
na Universidade de Keele durante uma conferência de educação, antes se usava o termo
“estudos ambientais”. (FREITAS & MAIA, 2009)
Ele surgiu para unir teoria e prática socioambientais no cotidiano escolar como
prática pedagógica. Assim experiências educativas facilitam a percepção conjunta do meio
177
ambiente e isso é o resultado da transdisciplinaridade.
Nesse sentido a percepção ambiental é fundamentada na compreensão das interrelações entre o homem e o ambiente, suas satisfações, anseios e condutas. Várias são as
entidades que se preocupam com a educação ambiental, porém a escola é o espaço que melhor
contribui para essa formação do aluno.
O livro “A Primavera Silenciosa” da autora Rachel Carson, publicado em 1962,
serve como um marco de referência, pois nele a autora coloca o ser humano como centro da
questão ambiental. Neste sentido, uso de pesticidas no espaço agrícola afetaria
consideravelmente a natureza e modificaria suas características originais, provocando
inclusive o desaparecimento de espécies.
O marco histórico, internacional sobre o ambiente humano surge com a
Conferência de Estocolmo em 1972, preparada pela Organização das Nações Unidas - ONU.
Em seguida veio a Carta de Belgrado, em 1975, realizada na extinta Iugoslávia onde foi
promulgado o documento que se formulou orientações para um programa de educação
ambiental.
Em 1977 na cidade de Tbilisi atual Geórgia (antiga URSS) a Conferência de
Educação Ambiental formulou estratégias ambientais inovadoras, apresentando objetivos
onde o meio ambiente foi definido como: “O conjunto de sistemas naturais e sociais em que
vive o homem e os demais organismos e de onde obtém sua subsistência”. Em seguida veio a
Conferência de Moscou em 1987 que teve como meta a indicação de um plano de ação para a
década de 90.
No Brasil, a educação ambiental foi instituída pela lei nº 6938//81 onde se criou a
Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA que mais tarde se ampliou em lei específica
para a educação e com isso criou, também, o Sistema Nacional de Meio Ambiente.
A preocupação de conservar o meio ambiente está objetiva e clara na Constituição
Federal de 1988 ao colocar que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, de uso comum, essencial à qualidade de vida e todos tem o dever de preservá-lo e
defendê-lo para a atual e futuras gerações.
Na Constituição Federal/88 a Educação Ambiental se tornou exigência a ser
garantida em todas as esferas do governo no seu artigo 225 § 1º, inciso VI, onde foi
implantado o tema transversal e daí surgiram as legislações específicas como a Lei nº 9795/99
(Política Nacional de Educação Ambiental) com a obrigatoriedade de se trabalhar o tema de
forma transversal interdisciplinar e ainda em discussão se deve ou não ser disciplina escolar.
Na escola a temática se justifica no sentido de promoção do entendimento das
178
questões ambientais e do uso adequado dos recursos naturais disponíveis o que visa a
formação consciente do cidadão. Ela não é uma disciplina e sim uma prática interdisciplinar.
Na educação nacional, a EA está em todos os níveis e modalidades de ensino formal e não
formal e procura integrar a escola com a comunidade.
A questão ecológica trás em seu todo, a influência de questionamentos ideológicos
que podem ser traduzidos em perspectivas biocêntricas, ou antropocêntricas preservacionista
ou conservacionista e envolvem ou não a participação da sociedade como um todo no seu
tratamento.
A partir da segunda metade do século XX, ao mesmo tempo em que se começava
a debater a tema ambiental, surgem também os primeiros estudos a respeito da percepção
ambiental. O objetivo era tentar conhecer as atitudes e valores que a população pesquisada
atribuía ao meio ambiente (FREITAS & MAIA apud. MENDES, 2009).
Desde então, estudos sobre a percepção ambiental vêm trazendo a relação entre
teoria e prática onde se busca compreender o que se pensa e o que se faz quando o assunto é a
questão ambiental.
Conforme afirma VASCO & ZAKRZEVSKI em 2010:
Estudos de percepção ambiental oferecem subsídios para o estabelecimento de
estratégias para amenizar os problemas socioambientais e para a elaboração e
implementação de Programas de Educação e Comunicação Ambiental, que
assegurem a participação social e o envolvimento dos distintos atores nos processos
de gestão ambiental. (VASCO & ZAKRZEVSKI, 2010, p.18)
O conceito de percepção ambiental envolve a relação do homem com o ambiente,
onde o homem toma consciência sobre seu meio. Como defende Panceri (1997, p. 29) “a
percepção envolve um ator ativo, pertencente a um determinado ambiente que constrói e
reconstrói suas percepções. Na medida em que suas estruturas de sensibilidade e cognitivas
vão se transformando, transforma sua forma de olhar”.
De acordo com Palma 2005:
Percepção é a interação do indivíduo com seu meio. Esse envolvimento dá-se
através dos órgãos do sentido. Para que possamos perceber é necessário que
tenhamos algum interesse no objeto de percepção e esse interesse é baseado no
conhecimento, na cultura, na ética, e na postura de cada um, fazendo com que cada
pessoa tenha uma percepção diferenciada para o mesmo objeto. (PALMA, 2005,
p.16)
O homem percebe o meio a partir das sensações e percepções geradas pelos
órgãos dos sentidos e o conhecimento sobre o que está a sua volta. Essa percepção depende da
objetividade – conforme seus estímulos - e subjetividade – conforme sua personalidade e
atitudes pessoais.
179
A forma com que um determinado sujeito concebe o meio em que vive, também
se relaciona com os aspectos sociais, culturais e econômicos que o cerca. Uma vez que se
retira o sujeito de sua comunidade e sociedade muda também a percepção que ele tem sobre o
ambiente. (MASSON, 2004)
Penna (1997) acrescenta que a relação do ser humano com o meio ambiente está
ligada à história de vida, alegrias, expectativas pessoais, frustrações entre outros sentimentos
adquiridos ao longo de sua vida. Daí ser necessário perceber para conhecer e promover a
coordenação de conduta conforme o percebido. Assim, conhecer a interação do indivíduo com
o meio ajuda na elaboração de estratégias de ações voltadas para o planejamento da gestão
ambiental.
A percepção ambiental das pessoas pode-se direcionar para visões diferentes e que
segundo Bezerra et. al. (2008) o seu conteúdo pode-se relacionar com as visões:
antropológica, naturalista e globalizante.
Visão antropológica é a que mostra a supremacia do homem sobre todas as formas
de vida. É uma concepção utilitarista que considera o meio ambiente um cenário útil à sua
sobrevivência. Ela envolve o homem e os seres vivos como partes do meio ambiente, mas o
homem é o mais importante.
Visão naturalista é caracterizada pelos aspectos naturais, são restritos à dimensão
ecológica voltada para a conservação da natureza e dos ecossistemas. Tem a noção de meio
ambiente como natureza pura, exclui o ser humano como parte integrante do ecossistema. O
indivíduo se julga como não-pertencente a esse meio.
Sobre isso, Trigueiro (2003) fala da preocupante constatação de que muitos
brasileiros não se percebem como seres inseridos no meio ambiente. Os mesmos se
consideram a parte da natureza.
Visão globalizante é a visão que mostra dinâmica na interação entre o sistema
social e natural e engloba, também, aspectos socioeconômicos e culturais. Nessa visão as
pessoas entendem o conceito de meio ambiente de uma maneira mais abrangente, percebem
que pertencem a este, e sugerem propostas de sustentabilidade para a preservação ambiental.
(FREITAS & MAIA, 2009).
O presente artigo considerou que essas três visões abrangem outras que são
tratadas em vários estudos, daí a opção adotada na metodologia deste trabalho. Pretende-se
identificar os entrevistados a partir de uma destas visões a respeito da questão ambiental.
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
180
A educação passou a ser direito de todos os brasileiros independente da idade com
a Constituição Federal de 1988 e ela foi reafirmada na lei nº9394/96 Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional – LDB - a qual trata também da Educação de Jovens e Adultos - EJA.
Para ANDRADE (2004), o tema da juventude foi incluído na Educação de
Adultos nos anos 90 devido a presença de jovens nas turmas do EJA, os quais com fracasso
escolar no ensino regular e necessidade de arrumar um trabalho passaram a frequentar o
ensino noturno, mais apropriado.
A Educação de Jovens e Adultos se iniciou internacionalmente, como direito a
partir da I Conferência Internacional Elsimore na Dinamarca, em 1949, e foi convocada pela
UNESCO e a partir daí outras conferências foram surgindo no mundo. (PAIVA, 2005).
No Brasil, conforme falam Hadad (2007); LOPES & SOUSA (2004), a educação
de adultos teve início com os jesuítas no trabalho de catequização e ensino das primeiras
letras durante o Brasil colônia e com a adoção de políticas necessárias, sobretudo em forma de
campanhas e de legislações específicas.
Na década de 1970, foi promulgada a lei nº 5692/71, Lei de Diretrizes e Bases.
Ela implantou o ensino supletivo o que levou a criação no país dos centros de ensino supletivo
em 1974, sem frequência obrigatória e avaliação em dois módulos, interna ou externa pelos
sistemas educacionais, mas não atingiu o objetivo.
Foi a Constituição de 1988 que colocou a educação como obrigatória a todos os
brasileiros e isso foi reafirmado com a lei nº 9394/96 LDB. Três documentos evidenciam o
discurso político educacional: a Proposta Curricular do Primeiro Segmento, o Parecer CNE –
CEB nº 11/2000 e a Resolução 2000 do CNE que define as orientações curriculares da EJA.
Na última década foi criada a Secretaria Extraordinária de Erradicação do
Analfabetismo com o Programa Brasil Alfabetizado lançado. A história do EJA entre nós está
muito ligada a figura do educador Paulo Freire criador do método de alfabetização de adultos
baseado na realidade do aluno.(PAIVA, 2005.)
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A fase inicial do estudo serviu para a preparação dos argumentos teóricos com a
revisão da literatura e da leitura de documentos oficiais e a partir daí elaborar o material
necessário às etapas posteriores.
Organizou-se os instrumentos e procedimentos a serem utilizados, como análise
documental, observações, entrevistas semiestruturadas, questionários sobre as representações
sociais dos alunos.
181
Buscou-se o conhecimento dos dados do Censo Escolar do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE- do município em questão bem como conhecer o Índice do
Desenvolvimento Humano – IDH de Porto Real, RJ, já descritos no corpo do texto.
Após ter coletado os dados oficiais sobre o município (IBGE/2010) e Prefeitura
Municipal, procurou conhecer o setor educacional local entrando em contato com a direção,
orientação pedagógica e educacional e professores da escola para realizar o trabalho com a
proposta de apresentar o resultado final.
A escolha da escola foi feita mediante ao fato do estabelecimento de ensino
municipal ser considerado uma referência com relação ao maior número de alunos do ensino
médio onde se inclui também a EJA e as turmas escolhidas conforme a disponibilidade dos
horários sugeridos pelos responsáveis.
A coleta de dados na escola teve o questionário aplicado pelo pesquisador. Os
dados foram analisados, tratados e sistematizados em forma de tabelas, gráficos e extratos o
que permitiu se chegar a uma síntese conclusiva. Toda a discussão dos resultados foi
permeada pelo confronto com os objetivos propostos. O enfoque dado à representação social é
o senso comum que se tem sobre determinado tema, e que pode ou não envolver ideologias,
preconceitos e atividades cotidianas. Cada aluno tem a sua ideia própria a respeito de
determinado assunto.
As informações sobre a identificação do perfil dos alunos e suas condutas nas
ações realizadas seguem a seguir:
A idade dos alunos entrevistados varia entre 18 e 47 anos e a maior frequência
recai em 18 anos. Do total, 9 são do sexo masculino e 11 do sexo feminino. A maioria reside
na cidade há mais de 10 anos sendo que 6 estão há mais de 20 anos em Porto Real.
O número de alunos que trabalha é de 7, sendo principalmente o setor o industrial
para os homens e trabalhos em casa (domésticas e babá) para mulheres. Apenas 2 nasceram
em Porto Real, sendo 4 em Barra Mansa, 1 em Andrelândia-MG, 1 em Volta Redonda e os 12
restantes são naturais de Resende, município original de Porto Real.
A percepção sobre o conceito de meio ambiente teve como categoria de análise e
interpretação de conteúdo dentro das categorias escolhidas conforme as visões dos
entrevistados: globalizante, antropológica e naturalista. Os extratos mais significativos das
falas coletadas, apresentam os resultados obtidos.
Extrato 1 – Percepção Globalizante:
“é o homem e a natureza tentando viver em harmonia”
Extrato 2 – Percepção Antropológica:
182
“que o meio ambiente depende de nós”; “devemos cuidar bem do lugar onde moramos”;
“cuidar do planeta para mantê-lo limpo”
Extrato 3 – Percepção Naturalista:
“eu entendo como as matas, rios animais e florestas”; “é tudo que se relaciona
com a natureza”; “é o ar que respiramos”; “as árvores, o ar, os rios, a natureza em geral”; “é
um assunto que fala sobre a natureza e o planeta”
Como pode-se observar, a definição mais recorrente de meio ambiente entre os
alunos entrevistados se relaciona com uma visão naturalista. A maior parte dos alunos
associaram meio ambiente com a natureza, não incluindo o homem neste processo.
Todos os alunos que responderam ao questionário mostraram grande preocupação com
o lixo. Quando perguntados o que faziam para melhoram a questão ambiental em Porto Real,
associaram com a separação, tratamento, reciclagem, ou destinação adequada ao lixo.
Quando perguntados sobre qual a reação deles quando encontram uma pessoa jogando
lixo nas ruas a maioria se mostrou indiferente, pois fazem o mesmo, conforme apresentado no
gráfico a seguir:
Orienta a jogar o
lixo no lugar correto
Não faz nada, pois
também joga lixo na
rua
Pega o lixo no chão
e o coloca na lixeira
Os alunos foram questionados sobre como se informam a respeito da questão
ambiental. A tabela a seguir mostra que a televisão é o meio mais utilizado para se
informarem sobre meio ambiente. Alguns alunos apontaram mais de um meio de comunicação
para se informarem.
Meio para
Nº de
se
alunos
informar
Televisão
10
Radio
3
Escola
4
183
Internet
6
Jornais
4
Com relação aos problemas ambientais enfrentados pelo município de Porto Real,
a maior parte afirmou que a poluição das águas dos rios é o que mais preocupa os estudantes,
seguido da poluição do ar, do tratamento do lixo, do saneamento e por último está a
preocupação com a extinção de animais e plantas.
Dos entrevistados a grande maioria disse saber que o município dispõe de uma
secretaria de meio ambiente, como revela o gráfico a seguir:
SIM
NÃO
O questionário permitiu o uso de categorias de análise como: representações
sociais sobre meio ambiente, ações realizadas contributivas para a melhoria da vida no
planeta, problemas ambientais e tipos de visões percebidas.
Além disso, procurou identificar hábitos e atitudes de seus participantes e levantar
o conhecimento da sua comunidade sobre ações e órgãos governamentais. Os extratos das
falas coletadas dos alunos e os instrumentos aqui apresentados expressam suas representações
sociais sobre a problemática.
CONCLUSÃO
A percepção dos estudantes sobre a questão ambiental deve levá-los a uma interrelação entre escola, poder público e sociedade, por meio do diálogo, promovendo uma
transformação mais favorável ao tratamento com o meio ambiente.
A investigação revelou uma preocupação dos alunos mais direcionada para a
percepção ambiental em uma visão naturalista e identificou que eles abordam questões
relativas aos problemas ambientais, e realizam ações contributivas na melhoria de sua
participação e na aquisição de novos conceitos socioambientais.
O aprofundamento do estudo neste campo se faz necessário tendo em vista a
urgência da temática a qual deve ser voltada para a transformação do modo de vida com ética
184
comportamental e justiça social. O respeito ao direito ambiental pelo homem e as nações, com
base no conhecimento científico, promoverá uma mudança de pensamento e o engajamento na
luta pela vida qualitativa no planeta para todas as gerações.
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186
SUBVERTENDO A ORDEM: OS MOVIMENTOS AMBIENTAIS EM
MOÇAMBIQUE FACE AO PODER DO ESTADO E DO CAPITAL.
Nurdino Cassiano Macata1
RESUMO
A questão ambiental vista enquanto fato social total (Mauss, 2003) ao qual acrescentamos a
noção de historicamente gerado e situado (Hannigan, 1995), serve de lócus para um conjunto
de reflexões e discussões sobre a modernidade, capitalismo, democracia, participação política,
sustentabilidade entre outros campos temáticos (Ascelrad, 2002, 2004, 2009; Alonso & Costa,
2002; Giddens et al. 1996; Giddens & Beck, 1997), o que nos mostra a riqueza e
potencialidades desse campo de análise. No entanto apesar desta multiplicidade de estudos e
perspectivas, existe de acordo com Alonso & Costa (2002) uma lacuna no que diz respeito a
analisar o contexto sociopolítico no qual todos estes elementos surgem, interagem e se
redefinem. Pretendemos então objetivar o a questão ambiental em Moçambique, considerando
as estruturas de oportunidades políticas inerentes a questão ambiental, o que condiciona e
significa o surgimento de novos movimentos sociais e consequentemente novos atores
(Habermas, 1990), ligados ao movimento ambientalista, o que será feito atentando para a
dinâmica conflituosa e estruturante que se estabelece entre estes movimentos, o capital e o
Estado enquanto processos eminentemente globais.
Palavras-Chave: Movimentos ambientais; Novos atores sociais; Capital, Estado e Ambiente.
INTRODUÇÃO
O tempo trabalhou a nossa alma coletiva por via de três
materiais: o passado, o presente e o futuro. Nenhum destes
materiais parece estar feito para uso imediato. O passado foi
mal embalado e chega-nos deformado, carregado de mitos e
preconceitos. O presente vem vestido de roupa emprestada.
E o futuro foi encomendado por interesses que nos são
alheios. – Mia Couto, A Fronteira da Cultura
Desde a década de 1970, quando as preocupações ambientais ascenderam à agenda
política e alcançaram uma perspectiva global (Acselrad e Mello, 2002; Alonso e Costa, 2002;
Oliveira, 2008), tem estado a emergir no mundo todo um conjunto de organizações cuja
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF);
Contacto: [email protected]
187
atuação enquadra-se na resposta a chamada crise ambiental, propondo um novo modelo de
percepção e ação homem-natureza.
Estes movimentos têm inevitavelmente uma forte componente política e ideológica, e
é apartir desse viés que pretendemos no presente artigo, fazer uma leitura sobre as
potencialidades políticas dos movimentos ambientalistas em Moçambique, considerando as
estruturas de oportunidades políticas existentes, e a ação do capital predador aliado aos
interesses desenvolvimentistas do Estado moçambicano.
A questão ambiental enquanto construção social historicamente gerada e situada,
possibilita discursos e praticas que se contrapõem ao sistema de produção capitalista,
agenciando deste modo a constituição de novos atores sociais que lutam pelo controle da
historicidade, se contrapondo no campo social, econômico e político as dinâmicas do capital e
do Estado.
E na medida em que a questão ambiental se tornou um problema global, ela
possibilita o surgimento de novos atores, que no caso dos movimentos ambientais em
Moçambique se encontram incrustados num contexto local, que é de onde advém sua
“legitimidade prática”, mas inseridos num contexto global que é de onde advém sua
“legitimidade teórico cientifica” na defesa e construção da questão ambiental.
Pretendemos então, problematizar a forma como estes movimentos integrados numa
lógica global-local surgem, interagem e se redefinem constituindo a questão ambiental, o que
será feito considerando as estruturas de oportunidades políticas inerentes a questão ambiental,
que condicionam e significam o surgimento de novos movimentos sociais, atentando para a
dinâmica conflituosa e estruturante que se estabelece entre estes movimentos, o capital e o
Estado em Moçambique.
OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A CONSTITUIÇÃO DA ARENA POLÍTICA EM
MOÇAMBIQUE
É hoje lugar comum, tal como pontua Weber (1983) que toda a ação social se situa
dentro de um quadro contextualmente racional, o que leva a que a legitimidade e/ou a
validade racional dessas praticas e ações, tenha que ser necessariamente compreendida por
meio de uma análise do contexto que a produziu.
Partindo desta premissa, torna-se mister para perceber a dinâmica dos movimentos
ambientais em Moçambique, perceber os contextos nos quais estes novos atores2 surgem e se
2
Por novos atores pretendemos designar os movimentos sociais surgidos após a instauração da segunda
república em Moçambique - período que se inicia com a constituição de 1990 que instaura o Estado de direito
188
afirmam, na medida em que eles representam uma “reconfiguração” das lógicas até então
estabelecidas de participação e constituição de atores sociais, pois,“a compreensão do
aparecimento e da institucionalização dos movimentos sociais é indissociável do contexto
histórico-social existente em cada país, não sendo possível conhecê-los sem se regressar ao
seu passado” (Fernando, 1997: 190).
A história de Moçambique enquanto Estado independente se inicia a 25 de Junho de
1975, data em que o país se tornou independente de Portugal. Assim como todas as excolônias portuguesas em África, a independência só veio a ser alcançada depois de uma
insurreição armada, que foi no caso de Moçambique orquestrada e executada pela Frente de
Libertação de Moçambique-FRELIMO (Newitt, 2002).
No mesmo ano da independência de Moçambique (1975), se inicia uma guerra civil
no país opondo a FRELIMO que, entretanto se veio a assumir oficialmente em 1977 durante o
seu III congresso, como partido-estado de ideologia marxista-leninista, e a RENAMOResistência Nacional de Moçambique- movimento criado em 1975 que se opôs ao modelo
socialista de estado (idem).
Em função da orientação marxista-leninista que foi adotada pela FRELIMO
enquanto partido-estado (que “procurava” instaurar um Estado socialista), com exceção das
chamadas “instituições de massas” originalmente criadas no seio do partido3, não existia
espaço jurídico e nem liberdade para a criação de movimentos independentes do partido e do
Estado4 (Mazula, 1995).
A identificação do Estado moçambicano com o sistema socialista vinculou até a
adoção da constituição de 1990, que introduziu o Estado de Direito Democrático alicerçado
na separação e interdependência dos poderes e no pluralismo, lançando segundo Ngoenha
(1993) “os parâmetros estruturais da modernização”, contribuindo de forma decisiva para a
instauração de um projeto democrático que levou aos acordos de paz (fim da guerra civil) em
1992, tendo as primeiras eleições multipartidárias acontecido em 1994, iniciando-se deste
modo também a abertura jurídica e política para o surgimento das chamadas “organizações da
sociedade civil”, categoria na qual se enquadram os movimentos ambientais em Moçambique.
A sociedade civil refere-se habitualmente às formas de organização dos cidadãos que
democrático - possibilitando o multipartidarismo e o surgimento das organizações da sociedade civil
(Ngoenha e Castiano, 2011).
3
São os casos da OMM (Organização da Mulher Moçambicana); OJM (Organização da Juventude
Moçambicana); OTM (Organização dos Trabalhadores Moçambicanos) entre outras de menor porte (Yussuf,
1997:83).
4
Com exceção do caso particular do Conselho Cristão de Moçambique que se manteve no país desde a sua
fundação em 1948 (Afrimap, 2009).
189
não se inserem nem no sector público nem no privado, ou seja, o meio associativo na sua
globalidade e de forma generalista. No entanto, a designação de “organizações não
governamentais e/ou organizações da sociedade civil”, é bastante polissêmica, uma vez que
são propostos vários sentidos em função das diferentes fontes5. Aspecto este que:
“(...) Não favorece a compreensão da ideia de organização cidadã num país como
Moçambique, em que a experiência democrática é relativamente recente. O papel de
grupo de pressão da sociedade civil e o seu lugar como parceiro do Governo, cuja
vocação é participar (de uma forma que ainda está por determinar) na governação de
um Estado, não estão até ao momento totalmente assimilados. Essa falta de
compreensão parece atingir tanto as esferas de decisão como uma boa percentagem
dos próprios atores não estatais” (Homerin, 2005:12).
O fato da delimitação daquilo que constituem as fronteiras das organizações da
sociedade civil não ser consensual, e ser um termo em disputa que é “utilizado e reivindicado
por vários tipos de organizações que são bastante dispares em suas características” (Oliveira,
2004: 69), nos leva a considerar os movimentos ambientalistas partindo do conceito de
“atores não estatais (ANE)”, conforme proposto pelo acordo de Cotonou assinado em 2000,
pelos países da ACP (incluindo Moçambique) e que preconiza o fato de os ANE, serem
organizações nascidas da vontade dos cidadãos e que são independentes do Estado, cujo
objetivo é promover um tema ou defender interesses supostamente comuns a uma maioria de
cidadãos (Homerin, 2005: 12).
Como podemos constatar pela história de Moçambique enquanto país independente,
o surgimento dos movimentos sociais6 é ainda recente, o que contrasta com a grande
importância que estas organizações têm para o processo de democratização e
desenvolvimento econômico e social do país (Mazula, 1995: 73).
Mais importante ainda, é que estas organizações representam uma oportunidade de
participação política, possibilitando a configuração de atores exteriores à esfera do Estado,
pois:
“Em Moçambique, as marcas do autoritarismo colonial e do controle social exercido
durante o período de partido-estado ainda se fazem presentes nas instituições e
práticas políticas do país, e são percebidas e vivenciadas pelos cidadãos (...) resta
claro o receio demonstrado pelos moçambicanos ao responder a perguntas com
conteúdo político-partidário que são sempre associadas ao Estado (...) notando-se
um claro receio na manifestação livre da opinião e do descontentamento. Neste
5
A título de exemplo a agência norueguesa de desenvolvimento em Moçambique NORAD define a
sociedade civil de acordo com os seus atores, reagrupando todas as organizações não estatais. Ao passo que,
segundo a USAID (agencia norte-americana de desenvolvimento) a sociedade civil se define pela sua função
de vetor de democratização, e é composta por organizações não estatais envolvidas na adoção e consolidação
das reformas democráticas (Homerin, 2005).
6
O conceito de movimento social esta sendo aqui usado em linhas gerais como se referindo à ação coletiva
de um grupo organizado que objetiva alcançar mudanças sociais por meio do embate político, conforme seus
valores e ideologias dentro de uma determinada sociedade e de um contexto específicos, permeados por
tensões sociais (Gohn, 1995).
190
ponto, pode-se argumentar que anos de autoritarismo e centralismo inculcaram nos
moçambicanos uma relação de exagerado respeito e medo em relação aos agentes
governamentais, dos quais não ousam discordar abertamente” (Brito, 2003:187).
Percebidos enquanto movimentos sociais, as organizações ambientalistas politizam
suas demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil, suas ações
estruturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações de
conflitos, litígios e disputas ligados ao modelo de exploração capitalista e a defesa do meioambiente (Leff, 2011).
Desta feita, consideramos os movimentos ambientais e seus atores enquanto se
enquadrando no campo da ecologia política (Lipietz, 2002), que é onde se configuram as
estratégias discursivas de sustentabilidade, e se estabelecem as arenas7 nas quais se
confrontam as diferentes visões e interesses pela reapropriação social da natureza (Leff, 2011:
34).
O CAPITAL, O ESTADO E OS MOVIMENTOS AMBIENTAIS.
Os movimentos ambientais enquanto se integrando no vasto campo dos movimentos
sociais, que tem a particularidade de no seu agir focalizar a questão ambiental, podem ser
considerados como empreendimentos coletivos para o estabelecimento de uma nova
configuração de vida que:
“Tem raízes num estado de inquietação e social, e derivam seu impulso, de um lado,
da insatisfação com a vigente forma de vida, e, de outro, dos desejos e esperanças de
um novo modo ou sistema de vida. O curso de um movimento social representa a
luta pela emergência de uma nova ordenação de vida (...)” (Blumer, 1969: 83).
Essas “novas configurações da vida” se tornam possíveis na medida em que com o
surgimento da questão ambiental, surge algo radicalmente novo que redefine o social, não só
enquanto uma nova questão filosófica ou um novo método de analise dos processos naturais e
sociais de interesse eminentemente teórico, mas, sobretudo enquanto uma nova forma de
compreensão que propõe um novo agir prático no mundo, que emerge da consciência dos
limites e perigos da intervenção humana sobre a natureza em função da ordem econômica e
social vigentes.
“Contrariamente ao fim da historia anunciada por Fukuyama, da morte do sujeito
7
A noção de arena é aqui trazida segundo proposto pela Escola de Manchester para perceber os espaços de
interação efetiva, buscando compreender os diferentes pontos de vista, racionalidades, interesses e estratégias
dos diversos atores implicados, as suas posições e as suas concepções de agency, enquanto capacidade de
ação e competência. (Sardan 1995).
191
anunciada desde a crítica filosófica ao humanismo de Heidegger, e a crítica
estruturalista ao antropocentrismo, hoje emergem os novos atores sociais do
ambientalismo. Os atores do ambientalismo surgem da emancipação (...) de uma
consciência ecológica que confronta a racionalidade de uma modernidade
insustentável, resignificando seus modos de vida e reinventado novas identidades”
(Leff, 2011: 34).
Por outro lado, conforme aponta Alain Touraine (1976), para se compreender os
movimentos sociais, mais do que pensar em valores e crenças comuns para a ação social
coletiva, seria necessário considerar as estruturas sociais nas quais os movimentos se
manifestam, ou seja, sua historicidade8.
Assim, os movimentos sociais fariam explodir os conflitos já postos pela estrutura
social geradora por si só da contradição entre as classes, sendo uma ferramenta fundamental
para a ação com fins de intervenção e mudança daquela mesma estrutura (Leff, 2011;
Touraine, 1976). Sendo que a ação desses movimentos (no caso especifico o movimento
ambiental em Moçambique) é potencializada e agenciada por meio da incorporação da
questão ambiental na modernidade, percebida sobre o viés do sistema mundo (Wallerstein,
1974 e 2004; Gonçalves, 2006).
Ou seja, na medida em que a questão ambiental se tornou um problema global, ela
possibilita o surgimento de novos atores, que no caso dos movimentos ambientais em
Moçambique se encontram incrustados num contexto local, que é de onde advém sua
“legitimidade prática”, mas inseridos num contexto global que é de onde advém sua
“legitimidade teórico cientifica” na defesa e construção da questão ambiental.
DA PERSPECTIVA FILOSÓFICO-AFRICANA DA RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA
À QUESTÃO AMBIENTAL
Ao abordar a relação homem-natureza Ngoenha (1994), pontua que o homem é por
natureza desprovido de qualidades naturais, não estando “naturalmente equipado para
sobreviver de forma ecológica”, o homem deve a sua sobrevivência ao saber empírico, técnico
e moral que vai adquirindo, afastando-se naturalmente da natureza, uma vez que tem uma
relação com o mundo baseado em mediações simbólicas e técnicas9.
Daí que para o homem a cultura (entendida como meio de mediação simbólico e
técnico entre o homem e a natureza), torna-se condição sine qua non para a sua sobrevivência,
8
Cada sociedade ou estrutura social teria como cenário um contexto histórico (ou historicidades) no qual, assim
como também apontava Karl Marx, estaria posto um conflito, entre classes, terreno das relações sociais, a
depender dos modelos culturais, político e social. Touraine (1976).
9
Para os objetivos a que nos propomos nesse trabalho, não nos interessa problematizar a relação técnicasociedade, que pode ser percebida de acordo com Benakouche (2007), sobre três diferentes abordagens: a que
destaca o conceito de sistema; a que insiste em seu caráter socialmente construído; e a que privilegia o conceito
de rede.
192
pelo que Ngoenha a denomina de segunda natureza:
“Esta segunda natureza existia até relativamente pouco tempo em todos os países do
mundo, entre limites muito estritos, em todas as esferas culturais e em todo o mundo
a segunda natureza limitava-se a rectificar os defeitos mais evidentes do ambiente
natural, mas no essencial imitava-o (…) até que o progresso científico e a tecnologia
moderna romperam este equilíbrio” (Ngoenha, 1994: 11).
De certa forma “o homem ocidental” libertou-se da natureza em decorrência dos seus
avanços técnico-científicos, fazendo com que a segunda natureza já não mais exista em
complementaridade a primeira natureza, mas sim em substituição a primeira, sendo em certos
casos mutuamente exclusivas, o que se agrava pelo facto de a segunda natureza alimentar-se
da primeira, assim a medida que esta vai avançando a primeira natureza vai recuando.
Enquanto a primeira natureza coloca o homem como ser idêntico aos outros seres
naturais, a segunda afasta e diferencia o homem não só em relação aos outros seres naturais,
mas também em relação aos outros homens através de uma cultura específica para cada
sociedade, sendo que em decorrência da racionalidade instrumental, tais culturas são
valorativamente hierarquizadas (Ngoenha, 1994).
Esta concepção da realidade é característico das sociedades ocidentais posteriores
aos valores e premissas da revolução industrial, sendo que os alicerces de uma concepção
africana da realidade, o coloca fora do modelo antropocêntrico da racionalidade instrumental
que “utiliza as coisas para os seus fins utilitários”, por sua vez o “africano vive
tradicionalmente da terra, com a terra, no cosmos e através dele” a razão europeia é analítica
para a utilização enquanto a razão negra é intuitiva para a participação (Ngoenha, 1994).
Deste modo, a relação do africano com a natureza10 é a expressão de uma simbiose
consciente:
“Onde o africano sente-se parte integrante da natureza e a sua acção inscreve-se num
sistema de relações com o cosmos, com as plantas, com os animais e num sistema de
relações sociais. A epistemologia negro-africana ignora a separação entre a ordem de
conhecer e a ordem do ser, sendo que o conhecimento é um ser e não só um
instrumento ao serviço do homem ” (Ngoenha, 1994: 24).
Com o advento da modernidade11 e da nova ordem impostas pela dinâmica do
sistema mundo (Wallerstein, 1974), tal como afirma Benakouche (2007:79) se existe um
consenso a respeito das principais características das sociedades contemporâneas, este se
10
Um exemplo de uma etnografia que detalha a concepção filosófico africana da relação homem-natureza,
pode ser encontrada em EVANS-PRITCHARD, E.E. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978.
11
Referimo-nos aqui as sociedades nascidas depois da revolução industrial que segundo MATHIAS, Peter
(1992). A Revolução Industrial: Conceito e Realidade. Lisboa: Ática. Situa-se apartir do séc. XVIII, embora
reconheçamos as diferenças e as múltiplas “dinâmicas ou metamorfoses” decorrentes da própria historia que
separa a sociedade do séc. XVIII da sociedade atual, o que nos interessa aqui é de modo grosseiro a primazia
da economia de mercado e o modelo de produção capitalista industrial, que embora tenha “evoluído”
permanece como característica comum das sociedades desde o séc.XVIII.
193
refere à presença cada vez maior da tecnologia na organização das práticas sociais, das mais
complexas às mais elementares.
Sendo que inserida num contexto de exploração capitalista, esta tecnologia é usada
no sentido de potencializar o “desenvolvimento”, pois, o avanço da civilização moderna tem
como signo distintivo a tentativa da imposição do controle humano sobre os meio ambientes
de ação, entre eles o natural. Esta orientação para o controle, por sua vez, liga-se fortemente à
ênfase num tipo de desenvolvimento econômico contínuo e que se impõe a todas as
sociedades (Giddens, 1996).
Surge deste modo, na medida em que a “segunda natureza” se alimenta da “primeira
natureza” (como proposto por Ngoenha, 1994), um conjunto de preocupações que podem ser
aglutinadas sob a denominação de “questão ambiental12” que longe de serem percebidas per
si, trata-se de uma construção social com fortes implicações políticas, ideológica, econômicas,
culturais, etc.
A CONSTRUÇÃO DA QUESTÃO AMBIENTAL E O AGIR DOS MOVIMENTOS
AMBIENTAIS EM MOÇAMBIQUE EM CONTRAPOSIÇÃO AO CAPITAL E AO
ESTADO
A abordagem trazida por Hannigan (1995) em “Sociologia Ambiental. A formação de
uma perspectiva social” mostra-se bastante útil para perceber a legitimidade teórica cientifica
das demandas dos movimentos ambientalistas em Moçambique, uma vez que de acordo com
esta abordagem, os problemas ambientais só passam a existir a partir do momento em que
determinado grupo social passa a encarar determinadas situações como situações de risco.
“(...) Os problemas ambientais não se materializam por eles próprios; em vez disso, eles devem ser ‘construídos’ pelos indivíduos
ou organizações que definem a poluição, ou outro estado objetivo como preocupante, e que procuram fazer algo para resolver o
problema .
” (Hannigan, 1995:11).
Em Moçambique, um dos exemplos do agir dos movimentos ambientais como
contraponto aos interesses do Estado e do capital, pode ser encontrado na controvérsia que
opôs os movimentos ambientais ao funcionamento da empresa Mozal13 (Mozambique
12
Por questão ambiental referimo-nos a relação meio ambiente-sociedade no sentindo mais lato do termo,
reconhecendo, contudo as diferentes demandas, movimentos e posições que esta mesma questão traz consigo,
assim como a forma como este “recurso” (no sentido de poder potencializar a ação) pode ser
estrategicamente usada por diversos atores para legitimar demandas que nada tem haver com a relação
ambiente-sociedade. Cf. Acselrad, Henri (2010). Ambientalização das lutas sócias- o caso do movimento por
justiça ambiental. Estudos avançados. 24 (68), p-103-119. 2010
13
Escolhemos este exemplo devido a repercussão e aos acesos debates que o mesmo trouxe a nível da mídia
Moçambicana, nos quais o governo deliberadamente se colocava em defesa da Mozal e contrario aos
argumentos trazidos pelos movimentos ambientalistas. A Mozal é desde o inicio da sua produção em 2000 até
a realização do último senso em 2011, a empresa líder do raking das 100 maiores empresas de Moçambique
194
Aluminium). Desde que se tornou de conhecimento público a 5 de Abril de 2011 a intenção da
Mozal de proceder ao bypass dos centros de tratamento de fumos e gases.
Desde essa altura foi formada uma coligação de protesto envolvendo seis conhecidas
organizações moçambicanas, nomeadamente a Justiça Ambiental, Centro Terra Verde, Centro
de Integridade Pública, Lida dos Direitos Humanos, Livaningo e a Kulima. A coligação
constituída por essas organizações utilizou todos os mecanismos disponíveis ao seu alcance
para evitar que o processo de bypass requerido pela Mozal as autoridades governamentais
moçambicanas fosse de fato levado a cabo.
Tendo recorrido ao Tribunal Administrativo e à Assembleia da República,
envolvendo sempre os órgãos de comunicação social, e promovendo discussões em torno da
matéria, comentando ativamente todos os documentos disponibilizados ao longo do processo
e procurando junto das instituições governamentais responsáveis obter informação válida e a
oportunidade para participar num processo aberto, transparente e justo.
E, por fim, dada a falta de resultados obtidos a nível da justiça Moçambicana, a
coligação recorreu a instituições internacionais. Tendo submetido no início de Outubro do ano
passado, queixas a cerca de 24 instituições internacionais a que de alguma forma a Mozal,
através do seu principal acionista, a BHP Billition, está ligada.
Estas queixas basearam-se na violação de princípios e valores que a BHP Billiton diz
seguir e respeitar e que contribuem imenso para a sua imagem, tais como responsabilidade
social e ambiental, transparência na disponibilização de informação, entre outras. Tendo
obtido respostas positivas uma vez que as queixas foram aceites pelo Banco Europeu de
Investimentos (EIB) e pelo Compliance Advisory Ombudsman (CAO), do International
Finance Corporation (IFC) 14.
Segundo Hannigan (1995:65) um acontecimento dá origem a uma questão ambiental
quando: a) estimula a atenção dos meios de comunicação social; b) envolve alguma arma do
governo; c) exige uma decisão governamental; d) não é eliminado pelo público como um
fenômeno que acontece apenas uma vez; e) relaciona-se com os interesses pessoais de um
número significativo de cidadãos.
Assim, visto sob esta perspectiva os movimentos ambientais construíram uma
demanda ambiental, que foi cientificamente validada, pois, foge ao vulgo os efeitos que a
em termos de volume de negócios (572,5 milhões de Euros em 2010), liderando ainda o rankig das empresas
que mais exportam. O que a transforma num recurso econômico e político considerável.
14
As informações aqui avançadas em torno desse caso tem como fonte o Jornal “a verdade”, que foi aqui
escolhido por ser o jornal de maior circulação em Moçambique e podem ser consultadas em
http://www.verdade.co.mz/ambiente/23139-mozal-alvo-de-24-queixas-internacionais-em-conexao-com-aoperacao-bypass .
195
transmissão direta ao ambiente externo por parte da Mozal de substâncias como o Fluoreto de
Hidrogênio, Dióxido de Enxofre, Dióxido de Azoto e Ozono podem causar a saúde e ao meio
ambiente envolvente.
Ainda, uma vez que a dimensão filosófico africana da relação homem natureza,
pressupõe aquilo que Ngoenha (2004) denomina de “simbiose consciente”, é preciso todo um
processo de consciencialização pública sobre os efeitos do agir técnico sobre a natureza, para
que o público tenha consciência prática do que esta sendo discutido, em termos dos efeitos
que uma operação bypass pode vir a trazer.
Podemos perceber apartir desse caso que a construção social da (in) sustentabilidade
se dá através de estratégias discursivas15 nas quais se confrontam as razões da racionalidade
moderna e as motivações da racionalidade ambiental, pois, se por um lado uma operação por
parte da Mozal por meio do bypass vai permitir uma poupança de mais de 10 milhões de
dólares (preço da operação de manutenção dos filtros que foram removidos por seis messes),
por outro lado, operar no esquema de bypass traz a longo prazo danos incalculáveis ao
ambiente.
Ora, embora a situação do bypass da Mozal se refira a um espaço territorial
especifico regido por legislação “autônoma e independente” – a legislação Moçambicana- este
exemplo nos mostra também o quanto a demanda ambiental é uma demanda por um “projeto
de vida global, e não apenas a defesa dos recursos ou da biodiversidade” (Escobar e Prado,
2005:05), pois, não tendo encontrado solução no nível das instâncias jurídicas moçambicanas,
as organizações ambientalistas recorreram a múltiplas instituições internacionais, tendo por
via destas conseguido que os relatórios e estudos ambientais da Mozal se tornem público.
Pois, tal como refere Castells:
Os Estados não se tornam irrelevantes na sociedade de, mas eles se tornam
dependentes de uma rede de poder mais ampla, constituindo-se como nós dessa rede.
Sua autoridade declinante depende de, e está situada entre, por um lado, redes de
capital, produção, instituições internacionais de comunicação e organizações não
governamentais, e por outro lado, pelo espaço do lugar, com comunidades, tribos,
localidades, cultos, gangues e identidades locais. (Castells, 1996: 406).
Dada a historia política e social de Moçambique, o largo debate que se originou em
torno do bypass da Mozal, e que se alastrou incitando toda uma discussão em torno do
impacto dos mega projetos desenvolvimentistas em Moçambique, tendo levado a um
questionamento sobre o lugar e pertinência política, econômica, social e ecológica que os
15
Percebidas de acordo com a arqueologia do poder de Foucault (2008) apartir de quatro dimensões,
nomeadamente a formação dos objetos, a formação das modalidades enunciativas, a formação dos conceitos
e a formação das estratégias.
196
mesmos ocupam no contexto Moçambicano, possibilitou o agenciamento de uma maior
participação política por parte da população, que se manifestou por meio de um abaixo
assinado dirigido a assembleia da republica, com mais de 150.000 assinaturas, colocando-se
contra o modus operandi da Mozal e o agir do Estado.
Á GUISA DA CONCLUSÃO.
O papel participativo da sociedade civil, na qualidade de interlocutor na definição e
implementação das políticas sociais e econômicas de Moçambique, permanece ainda um
campo de estudos relativamente novo.
Se por um lado os atores do meio associativo se afirmam como sendo movidos pela
única vontade de “ajudar as comunidades mais desfavorecidas”, colocando-se fora da arena
política, por outro lado os efeitos (ainda que não desejados da sua ação) são inevitavelmente
políticos, na medida em que elas instauram a possibilidade de um diálogo e participação
política.
Embora ainda frágeis do ponto de vista institucional, cientifico e econômico, visto
que as organizações ambientais em Moçambique são totalmente dependentes de
financiamentos externos, é útil olhar para as suas potencialidades como mediadores e
agenciadores da participação política, ligada principalmente aos interesses do Estado e do
capital, o que deve ser analisado tendo em conta o peso da história política do país, em que o
poder esteve sempre centralizado (desde a época colonial, a guerra e o regime socialista)
sendo a emergência dos atores sociais não estatais um processo ainda recente, fruto da
constituição de 1990.
Estes movimentos têm, portanto, permitido o agenciamento da participação dos
cidadãos no processo político, sendo que a sua capacidade de influenciar a formulação das
políticas públicas, a abertura do governo às demandas da população e a transparência com que
o governo trata dos assuntos públicos, devem ser vistos a luz da tradição política e dos
interesses econômicos do capital em Moçambique.
Dessa forma, para além das instituições democráticas como os partidos, as eleições e
o parlamento, a existência dos movimentos sociais é de fundamental importância para a
sociedade civil enquanto meio de manifestação e reivindicação, e na medida em que esses
movimentos se colocam deliberadamente em defesa da sustentabilidade e justiça ambiental,
em meio a exploração predatória dos recursos engendrados por uma dinâmica capitalista
hegemônica e global, esse papel ganha mais importância ainda.
197
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199
PLANO PILOTO PARA BAIXADA DE JACAREPAGUÁ: O que foi realizado e o que
foi modificado ao longo de quatro décadas
Tatiana Fernandes Dias da Silva
Sigla da Instituição:UFF
Titulação: mestranda
E-mail: [email protected]
O Plano Piloto não foi concebido em função do chamado milagre econômico ou das
normais flutuações do mercado, mas visando a racional ocupação volumétrica da
área, independentemente da consideração do padrão econômico dos futuros
usuários, e se definiu previamente s critérios de ocupação para a faixa litorânea e
para a antiga BR-101, deixou, deliberadamente, em aberto, as demais áreas a
proposições e iniciativas cuja aceitação estará sempre condicionada à ambientação
paisagística local. (Lúcio Costa, Jornal Recreio da Barra, 1980.)
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo comparar o Plano Piloto de urbanização e zoneamento para a
Baixada de Jacarepaguá elaborado e apresentado pelo arquiteto Lúcio Costa em 1969 e a realidade
atual da região, com ênfase ao crescimento urbano, políticas públicas e proteção ao meio ambiente.
Para tanto será examinado o Decreto-lei n. 42, de 23 de junho de 1969, que aprovou o Plano Piloto de
urbanização e zoneamento da região, legislações posteriores, doutrina, artigos acadêmicos e
periódicos. O intuito da pesquisa é analisar e enumerar as discrepâncias entre o projeto do arquiteto e
as características atuais da localidade. O trabalho mapeará a área onde se localiza a baixada de
Jacarepaguá, fará uma descrição do projeto do arquiteto, discutirá o que foi realizado e o que foi
modificado do traçado original ao longo dessas quatro décadas.
1. INTRODUÇÃO
Em 23 de junho de 1969, o governador do estado da Guanabara, Francisco Negrão
de Lima, promulgou o Decreto - Lei n. 42, que aprovava o Plano Piloto de urbanização e
zoneamento da Baixada de Jacarepaguá. Uma área de 165 quilômetros quadrados, situada
entre os maciços da Tijuca e Pedra Branca.
O artigo 1° do citado Decreto-lei determinava que a elaboração e apresentação do
Plano Piloto para a região seria do arquiteto Lúcio Costa. Da criação do Plano Piloto até a
atualidade, a Baixada de Jacarepaguá sofreu inúmeras transformações de ordem espacial,
urbana e ambiental. Ao longo desses 43 anos, contados a partir da edição do Decreto-Lei
42/69, foram sancionadas 62 legislações para a localidade, dessas, 23 alteraram o projeto
inicial de ocupação urbana da área e apenas 12 enfocaram a preservação do meio ambiente.
O Plano Piloto visava o planejamento espacial da Baixada de Jacarepaguá, Zona
Oeste da cidade do Rio de Janeiro, região composta por diversos bairros, são eles: Anil, Barra
200
da Tijuca, Camorim, Cidade de Deus, Curicica, Freguesia, Gardenia Azul, Pechincha, Praça
Seca, Recreio dos Bandeirantes, Rio das Pedras, Tanque, Taquara, Vargem Pequena, Vargem
Grande e Vila Valqueire.
(Bairros que compõem a Baixada de Jacarepaguá. Fonte: http://ihja.blogspot.com.br/)
Na época da elaboração do projeto de Lúcio Costa a Barra da Tijuca e demais
bairros que compunham a Baixada de Jacarepaguá eram um patrimônio natural exuberante
com dunas, agreste, lagoas e praia que o arquiteto tentou ao máximo preservar mesmo sem
possuir a conscientização ambiental dos dias de hoje.
Infelizmente, apenas parte do que foi previsto pelo arquiteto foi realizado. De
1970 até o presente a região teve um crescimento urbano galopante, um surto de crescimento
imobiliário e econômico. Como consequência a natureza que haveria de ser preservada, muito
se perdeu e obras de estruturação que deveriam ser realizadas, um exemplo é o metrô, ainda
encontra-se no papel.
Com a expansão urbana, a especulação imobiliária é crescente. Esta especulação
apesar de levar ao crescimento econômico, conforto e melhoria da condição de vida para os
que ali residem, traz também destruição e poluição ao ecossistema.
2. CONTEXTO HISTÓRICO
A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada por Estácio de Sá em 1°
201
de março de 1565.
Na segunda metade do século XVII, com aproximadamente 30 mil habitantes, o
Rio
de
Janeiro
se
tornou
a
cidade
mais
populosa
do
Brasil.
Após a Proclamação da República, especificamente as últimas décadas do século XIX e início
do XX, a cidade enfrentou graves problemas sociais, consequência do seu crescimento rápido
e desordenado.
Com o fim do trabalho escravo, a capital do Estado passou a receber grandes
massas de imigrantes da Europa e de antigos escravos atraídos pela oportunidade de
crescimento da nova região. Entre 1872 e 1890, a população dobrou passando para 522 mil
habitantes. Com o aumento populacional ocorreu o crescimento da pobreza, o que agravou a
crise habitacional. Reformas urbanas do centro do Rio, realizadas pelo engenheiro Pereira
Passos demoliram vários cortiços e a população pobre da região central foi deslocada para as
encostas de morros na Zona Portuária e Caju. Esse novo povoamento cresceu de forma
desordenada, iniciando o processo de favelização.
No início do século XIX, o desenvolvimento industrial contribuiu muito para a
urbanização das cidades brasileiras acelerando o desenvolvimento habitacional. Em 1902, o
prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos desalojou milhares de moradores e
comerciantes para realizar reformas urbanísticas no centro da cidade. Foi nesta época que foi
construída a Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), o Cais do Porto, a Cinelândia, além
do alargamento de algumas ruas.
Os anos se passaram e de lá para cá o município do Rio de Janeiro cresceu
rapidamente, dominando os espaços naturais e fazendo necessária e expansão da cidade para
sua área ainda muito pouco habitada, a Baixada de Jacarepaguá.
A decisão de planejar a ocupação da região pelo Governo surgiu em decorrência
de uma matéria pública no Jornal do Brasil, em 1º de setembro de 1968, com o título “Falta de
Planos Ameaça o Futuro da Barra da Tijuca”, de autoria dos repórteres Israel Tabak e Luiz
Paulo Coutinho. O Governo, sentindo-se pressionado, reuniu-se para buscar uma solução. O
secretário de obras, Raimundo Paula Soares, convidou o urbanista Lúcio Costa para a
realização do empreendimento. Num primeiro momento o arquiteto declinou do convite feito
engenheiro Geraldo Heleno Segadas Viana, mas, ao final, acabou por aceitar.
Assim, no final dos anos 60, com a abertura do túnel Dois Irmãos e do elevado do
Joá, que ligou a Zona Sul à Barra da Tijuca, iniciou-se o projeto de urbanização da Baixada de
Jacarepaguá. O objetivo precípuo para a região era controlar a expansão urbana e preservar a
geografia do lugar, suas belezas naturais como as praias, as dunas, restingas e lagoas, já que
202
era uma das últimas áreas disponíveis para onde a cidade poderia se expandir.
3. O PROJETO DO ARQUITETO LÚCIO COSTA
Como já afirmado, com a promulgação do Decreto - Lei n. 42, em 23 de junho de
1969, Lúcio Costa foi convidado pelo governo do Rio de Janeiro para planejar a urbanização
e o zoneamento da Baixada de Jacarepaguá.
Nesta época a área era formada por uma planície agreste preservada e articulada
pelas Avenidas Brasil e BR – 101. O objetivo do plano era criar além do grande centro
metropolitano Norte/Sul e Leste/Oeste dois centros metropolitanos principais, um em
Sernambetiba e outro na Barra da Tijuca.
O projeto modernista, similar ao Plano de Brasília, que também foi elaborado por
Costa, teve inspiração no urbanismo racionalista, com grandes avenidas e espaços abertos. A
proposta era ordenar o uso do solo, numa visão global que articulasse o novo centro de
negócios da Barra da Tijuca, ao centro histórico da Cidade do Rio de Janeiro e ao novo centro
de Santa Cruz, ligando a cidade de leste a oeste, reestruturando seu espaço, direcionando a
migração populacional rumo à Zona Oeste.
Seu ponto central foi à construção de duas vias principais, a Avenida das Américas
e a Avenida Alvorada (atual Avenida Ayrton Senna), que fariam a ligação de todo o bairro.
O Plano Piloto previa para a localidade a criação em quilômetro em quilômetro de
numerosos núcleos urbanizados ao longo da BR -101 formados de torres com 25 a 30 metros
de andares, com um pequeno comércio térreo ao redor, além de lotes residenciais espaçados.
Os núcleos residenciais seriam constituídos por conjunto de edifícios de 8 a 10
pavimentos e próximo deles um sistema autônomo de lojas com venda de diversos produtos.
Os núcleos urbanizados seriam ligados na diagonal por uma via que teria pequenos conjuntos
de edificações para utilidades pública ou privada.
As moradias se concentrariam em uni ou plurifamiliares, formando os condomínios
fechados, que reproduziriam internamente um pequeno centro com comércio e serviço, dando
segurança a seus moradores.
Foi previsto para a Baixada um aeroporto executivo, metrô, campo de golfe,
museu, orla hoteleira, áreas de reserva biológica, bosque, zona agrícola e autódromo. Todas as
áreas já urbanizadas deveriam ser arborizadas.
Haveria um octógono alongado, articulado por duas vias que comandaria dois
eixos ortogonais, um maior Leste/Oeste, paralelo a praia e um menor na direção de
203
Jacarepaguá, dividindo a área em quatro partes que se subdivide em quarteirões de quatro
lóbulos cada um. Os quarteirões centrais teriam gabarito mais alto, cerca de 200 metros, o
equivalente a 70 andares.
O arquiteto, modernista, queria definir os usos do espaço: residencial, comercial,
lazer e preservação ambiental. Também acreditava que a construção e ocupação da zona
litorânea deveria ser feira de forma a não bloquear a vista do mar dos demais quarteirões, por
isso limitaria os gabaritos para construção desses prédios.
(Projeto Lúcio Costa. Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br)
Como bem define Luciana Araújo Gomes da Silva, em sua obra intitulada Barra
da Tijuca: O Concebido e o Realizado, página 8: “O plano constituía-se, então, em um
regulamentador de diretrizes para a ocupação da àrea.”
Foi criado um grupo de trabalho da Baixada de Jacarepaguá (G.T.B.J.) para
fiscalizar e analisar os projetos de urbanização da região, o qual Lúcio Costa trabalhou como
consultor. Esse grupo adotou uma postura flexível de planejamento analisando as construções
uma a uma. Lúcio Costa creditava que deveria possibilitar uma gradual ocupação da área,
sem, contudo, abrir mão da preservação ambiental, expressa nas diretrizes contidas no Plano
Piloto.
Contudo, em 1981, Lucio Costa abandonou o cargo de consultor pois, as
204
significativas alterações promovidas no Plano Piloto pelo poder público municipal
descaracterizavam o projeto urbanístico que havia concebido originalmente.
O bairro da Barra da Tijuca apresentou a partir de então um grande impulso de
ocupação. O crescimento foi puxado principalmente pela explosão da Região Administrativa
(RA) da Barra da Tijuca, cujo total de habitantes em 2010 era de 300.823 habitantes.
Não posso deixar de destacar que Jacarepaguá, na mesma ocasião já contava com
572.617 habitantes, sendo a área mais populosa da cidade.
4. PLANO PILOTO: O QUE FOI REALIZADO E O QUE FOI MODIFICADO AO
LONGO DE QUATRO DÉCADAS
Após os 10 primeiros anos da concepção e aprovação do Plano Piloto de urbanização e
zoneamento da Baixada de Jacarepaguá, em 1980, Lúcio Costa forneceu entrevista ao repórter André
Holanda, publicada no Jornal Recreio da Barra e já afirmava seu descontentamento face às alterações
efetuadas pelo poder público ao seu projeto:
“Só posso atribuir a não cumprimento destas determinações à falta de entrosamento
administrativo, ou a um deliberado propósito de não respeitá-las, talvez por
incapacidade congênita de compreensão.”
No artigo o arquiteto continuou a enumerar o que estava sendo descumprido do traçado
original e lembrou que na memória descritiva do Plano Piloto havia uma preocupação em preservar as
características agrestes da região, o que, notadamente, não estava sendo cumprindo pela falta de
sensibilidade e imaginação dos empresários e arquitetos. Ressalva-se que, diferente do que também foi
determinado, a urbanização da área, não iniciou pela infraestrutura, o que seria o mais correto e
praticado pela maioria dos países desenvolvidos.
As primeiras modificações do plano urbanístico tiveram por fito atender aos interesses do
setor imobiliário. Para Costa esse grupo deveria ter suas práticas monitoradas pelo ente público, para
que houvesse “oferta de compensações para uma civilizada e melhor vivência dos usuários, inclusive,
ou principalmente, quando se trate de programas destinados a populações de padrão econômico
baixo”.
Uma grande alteração do embrionário projeto ocorreu em 1976, com a edição do Decreto
n° 322, alterando a cota de utilização das áreas localizadas entre o antigo Caminho de Guaratiba e
todas as terras consideradas utilizáveis no Maciço da Pedra Branca, além da área contida entre a
Estrada de Jacarepaguá e o Maciço da Tijuca.
Desiludido, continua o urbanista na sua entrevista afirmando que:
“Como já era de se esperar-se, o aspecto negativo do ponto de vista da
prevenção do primitivo agreste é uma decorrência fatal da própria
urbanização: a cota baixa de grande parte da área impõe aterros afim de
possibilitar o devido escoamento à necessária infra-estrutura, e as dunas
205
exigem nivelamento para a implantação das vias, dos estacionamentos, das
áreas do recreio e próprias edificações. Lamento apenas que as dificuldades
de financiamentos pioneiros do Centro da Barra – quando outros foram
generosamente aquinhoados – tenham, de certo modo, retardado a
caracterização do esquema urbanístico proposto.”
Para que pudesse ser conciliada a urbanização com a manutenção da ambientação
paisagística do local, seria necessário que o governo cumprisse o papel de regulador e de fiscalizador,
fiel às diretrizes do projeto, o que nunca aconteceu.
Outro importante descumprimento as determinações do plano foi a transformação da Av.
Sernambetiba em uma via de mão dupla, o que era proibido pelo rascunhado original, uma vez que ela
deveria ser integrada ao ambiente agreste que deveria ser preservado. No entanto, ocorreu justamente
o inverso, além de mão dupla a Av. Sernambetiba se tornou uma avenida de tráfego de alta velocidade.
A ocupação da orla marítima da Barra da Tijuca, ao invés de manter o mapa primário,
alterou-o na tentativa de recuperar o modelo do bairro de Copacabana que tinha uma diversidade de
usos e elevados índices de ocupação. Desse modo, o Decreto 3.046, de 22, de abril de 1981, mexia nos
gabaritos das edificações e criava novas condições de parcelamento, autorizando, ainda, a construção
de apart hotéis ao longo da orla. Esta norma impunha as condições de uso do solo, de parcelamento da
terra e das edificações refletindo o microzoneamento de cada subzona, em especial a Zona que
consiste nos bairros da Barra da Tijuca e Jacarepaguá.
Tratava-se de uma medida que promoveria a verticalização e a diversificação de uso da
terra urbana. A autorização para implantação desses empreendimentos na Barra da Tijuca,
especialmente Avenida Sernambetiba, contrariava nitidamente a concepção inicial do Plano Piloto, que
previa a construção de hotéis apenas em pontos preestabelecidos nas extremidades da orla marítima.
Em 1994, por ocasião da comemoração dos 25 anos de criação do Plano Piloto, o
urbanista afirmou em entrevista ao Jornal do Brasil, no dia 10 de junho de 1994, que:
“O plano foi uma concepção pessoal para a ocupação racional daquela área. Eu não
contemplava, por exemplo, essa ideia da falta de convivência entre os moradores de
cada condomínio.”[...]“Nem tenho lembrança de ter sido o criador deste projeto. Ele
nasceu como um belo filho, muito elogiado e sempre querido. Depois cresceu e
sumiu no mundo. A única certeza urbanística é a de que as coisas nunca ocorrem
como planejadas”.
Outro descaminho das diretrizes apresentadas pelo Plano Piloto na década de 90
foi a expansão dos loteamentos e construções irregulares nos bairros de Vargem Pequena e
Vargem Grande. O gabarito inicial determinava para esses bairros uma ocupação rarefeita,
preservando as características originais do local.
Em 2000, o então prefeito do Município do Rio de Janeiro, César Maia, em artigo
publicado no jornal O Globo, no dia 28/01/2000 afirmou:
“autorizações de construções, sejam elas respaldadas por operações interligadas ou
de discutível legalidade urbanística, afetam a ocupação do solo através de novos
206
gabaritos, nova volumetria, impacto populacional concentrado, impacto ambiental
imprevisto ou avanços que deformam a paisagem urbana” [...] “tanto na Avenida
Sernambetiba quanto na periferia da Avenida das Américas, da Barra ao Recreio dos
Bandeirantes”.
Após 43 anos da elaboração do Plano Piloto, a Baixada de Jacarepaguá está muito
descaracterizada do seu projeto primitivo. O rápido crescimento urbano, impulsionado pela
expansão imobiliária, evidencia os pontos fracos da região como o deficitário sistema de
transporte público e a poluição hídrica de seu complexo lagunar ocasionada pela precariedade
nos serviços de saneamento, tratamento de esgotos e pela ocupação regular e irregular das
margens de lagoas e rios. Essa poluição é um obstáculo ao desenvolvimento sustentável da
Barra da Tijuca por gerar sérios problemas ecológicos e impactos ambientais.
O arquiteto e urbanista Nireu Cavalcanti, professor da Universidade Federal
Fluminense (UFF), em artigo publicado no site G1 (globo.com), no dia 01 de julho de 2011,
comenta que o ponto crítico das lagoas representa, uma conivência histórica do governo
municipal carioca "com tudo o que há de pior na ocupação urbana". Ele ainda destaca o
favorecimento da classe média em detrimento da população pobre. “O discurso é o mesmo de
Brasília. Ele projetou a capital, mas não as cidades satélites. Elas foram se construindo igual a
qualquer favela. O mesmo conceito foi aplicado na Barra”.
Diante desse abrupto crescimento urbano, os bairros de Camorim, Vargem
Pequena e Recreio dos Bandeirantes mais que dobraram sua população com aumentos de
150%, 136% e 118%, respectivamente, enquanto a taxa de crescimento da cidade do Rio de
Janeiro foi de 7,9% nesta última década.
Dados fornecidos pela Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado
Imobiliário (Ademi) mostram que 68,5% de todas as unidades habitacionais lançadas na
cidade entre 2005 e 2010 estavam concentradas em quatro bairros da zona oeste: Barra da
Tijuca, Jacarepaguá, Recreio e Campo Grande.
Continua o docente Nireu Cavalcanti, afirmando que: "Mais uma vez, esse
crescimento se dá de forma desordenada, em função do mercado imobiliário". Para o docente
a falta de planejamento urbano na região é preocupante e cita, como exemplo, a ausência de
transporte público eficiente e a precária infraestrutura sanitária. Ressalta o professor:
“Costa foi convocado para fazer o projeto de uma nova cidade, já que a ‘cidade
velha’ não atendia às necessidades do mundo moderno. É um absurdo que em 1970
se conceba uma urbanização sem transporte de massa, sem nenhum espaço para
habitação daqueles que iam trabalhar na própria construção da cidade”.
Agora, as portas da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, a
207
Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro tem muito que fazer na Baixada de Jacarepaguá. Criar
um transporte público de massa eficiente, controlar o uso e ocupação do solo e despoluir o
sistema lagunar da Baixada de Jacarepaguá são pontos primordiais. A expansão do transporte
público rodoviário com a criação do sistema denominado BRT, que tem como objetivo
precípuo agilizar o tempo da viagem de ônibus, já é um começo, mas a região necessita de
muito mais.

(Barra da Tijuca nos dias de hoje – Fonte: Google)
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LEITÃO, Gerônimo Emílio Almeida. A construção do Eldorado Urbano. O plano piloto da Barra da
Tijuca e Baixada de Jacarépaguá – 1970/1988, 1. Ed. Niterói, RJ, Editora da Universidade Federal
Fluminense, 1999.
LEFEBVRE, Henry. O Direito à cidade. Ed. Moraes, São Paulo, 1991.
VILLAÇA, Flavio. As ilusões do plano diretor. 2005.
MARICATO, Emília. O que esperar dos planos diretores? 2005.
MARICATO, Emília. Metrópoles brasileiras. 2006.
MARICATO, Emília. Conhecer para resolver a cidade ilegal.
PAVIANI, Aldo (Org). Brasília: Moradia e Exclusão. Coleção Brasília. Ed. UNB. Brasília. 1996.
EPPINGHAUS, Annie Goldberg; POPPE, Márcia; TÂNGARI, Vera Regina. Barra da Tijuca- Um
estudo privatização dos espaços públicos no Rio de Janeiro. UFRJ.
COSTA, Lúcio. Lúcio Costa: O registro de uma vivência. Ed. Empresas das Artes. São Paulo. 1995.
www2.rio.rj.gov.br/smu
www.inea.rj.gov.br
http://www.recreiodabarra.com.br/luciocosta.htm
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/reportagem/urbanismo-para-quem
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/07/ibge-bairros-na-zona-oeste-do-rio-crescem-ate-150.html
208
http://ihja.blogspot.com.br/
http://www.revistadehistoria.com.br
209
GRUPO DE TRABALHO 03: PESQUISAS URBANAS E ARTE
A CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADE DE ARTISTA NA FEIRA ARTES E
ARTESANATOS DO CAMPO DE SÃO BENTO
Leila Maribondo Barboza1
RESUMO
O trabalho busca compreender a constituição da identidade de artista na Feira de Artes e
Artesanatos do Campo de São Bento, situada na cidade de Niterói, no bairro de Icaraí. Com
isso, partiu-se para uma revisão bibliográfica sobre indivíduo, sociedade e arte, a fim de
perceber a malha social trançada nas interações do processo de constituição de identidade de
artista. De modo a compreender a complementaridade entre as linhas teóricas e suas
contribuições no pensamento sociológico, o trabalho parte da sociologia configuracional de
Norbert Elias para discutir a noção de habitus social na relação indivíduo, sociedade e
identidade; passando pelo construtivismo estruturalista de Pierre Bourdieu, a fim de pensar
sobre a arte nas práticas sociais e trocas simbólicas, as quais são estruturadas e estruturantes,
estudando termos como habitus e estilo de vida; e, assim, concluindo com o interacionismo
simbólico de Erving Goffman de modo a refletir sobre a representação do eu no processo de
constituição de identidade de artista no espaço da Feira de Artes e Artesanatos do Campo de
São Bento. Com isso, o trabalho toma como base para o presente artigo um recorte dos
relatos, centrando na narrativa em um dos artistas plásticos observados.
Palavras-chave: arte; identidade; espaço.
INTRODUÇÃO
O trabalho busca compreender a constituição da identidade de artista na Feira de
Artesanatos do Campo de São Bento, situada na cidade de Niterói, especificamente no bairro
de Icaraí. Com isso, partiu-se para uma revisão bibliográfica sobre indivíduo, sociedade e arte,
a fim de perceber a malha social trançada nas interações do processo de constituição de
identidade de artista.
De modo a compreender a complementaridade entre as linhas teóricas e suas
contribuições no pensamento sociológico, o trabalho parte da sociologia configuracional de
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia/ Universidade Federal Fluminense. E-mail:
[email protected].
210
Norbert Elias para discutir a noção de habitus social na relação indivíduo, sociedade e
identidade; passando pelo construtivismo estruturalista de Pierre Bourdieu, a fim de pensar
sobre a arte nas práticas sociais e trocas simbólicas, as quais são estruturadas e estruturantes,
estudando termos como habitus e estilo de vida; e, assim, concluindo com o interacionismo
simbólico de Erving Goffman de modo a refletir sobre a representação do eu no processo de
constituição de identidade de artista no espaço da Feira de Artesanatos do Campo de São
Bento.
Para tal, o primeiro tópico segue para o estudo da relação indivíduo e sociedade,
buscando não dicotomizar o indivíduo de seu grupo, da sociedade. De modo a perceber os
indivíduos como figurantes e figurados, o trabalho é orientado pela explanação de Norbert
Elias, com sua obra A sociedade dos indivíduos (1994), especificamente na parte Mudança na
balança nós-eu, a qual constitui uma leitura na transformação da identidade ao longo da
história, no processo de configuração do lugar e sentido do indivíduo na sociedade, o qual a
incorpora e a constitui, e vice-versa. Dessa maneira, Elias (1994) contribui na compreensão de
que não se trata do artista em si mesmo, mas sim em constante constituição e valoração nas
interações sociais, figurando uma “sociedade dos indivíduos”.
Em seguida, no tópico intitulado de Arte no indivíduo, arte na sociedade: as práticas
sociais e as trocas simbólicas, o estudo pretende discutir a arte como prática social, a qual
significa e é significada nas interações. Com isso, o trabalho se direciona na perspectiva de
Pierre Bourdieu, de modo a compreender o sentido da arte nas trocas simbólicas, constituindo
um valor e um lugar da arte e do artista na cadeia hierárquica da vida social.
No terceiro tópico, intitulado de A constituição de identidade de artista na Feira de
Artesanatos do Campo de São Bento, o estudo parte para a observação das pesquisas de
campo realizadas nos meses de junho, julho, agosto de 2011 e janeiro de 2012, tomando como
exemplo a entrevista de um dos artistas plásticos entrevistados, o qual é chamado aqui de T..
Com objetivo de compreender os discursos produzidos pelo artista, principalmente a
constituição de um discurso artístico sobre si e sua obra na afirmação de sua identidade de
artista, o trabalho é orientado pela obra de Erving Goffman, A representação do eu na vida
cotidiana (2002), a qual busca refletir os papeis apresentados pelos atores nos espaços, que se
configuram como palcos do espetáculo das interações sociais.
Ao final, introduzimos Howard Becker, em Arts Worlds (1982), o qual situa o artista
no mundo da arte, compreendendo seus significados na vida social. Em conjunto, o estudo
retomará as discussões anteriores de Elias e Bourdieu de modo a perceber a
complementaridade entre as linhas teóricas apresentadas, que colaboram para o entendimento
211
do processo de formação da identidade de artista.
1. INDIVÍDUO NA SOCIEDADE, SOCIEDADE NO INDIVÍDUO: FIGURAÇÃO SOCIAL E
IDENTIDADE PROCESSUAL
O social é um “conjunto de relações”, constituindo-se como um todo relacional
(WAIZBORT, 2001, p.91). Por serem relações em processo, essas “se fazem e desfazem, se
constroem, se destroem, se reconstroem, são e deixam de ser” (WAIZBORT, 2001, p.92). Ou
seja, as relações, que são fluidas e vivas, se atualizam a cada momento, podendo se fortificar
ou se enfraquecer. Dessa forma, é necessário pensar os conceitos que delineiam “indivíduo” e
“sociedade”.
Para Elias (WAIZBORT, 2001, idem), não é possível falar de “indivíduo” autônomo, e
sim de indivíduo na sociedade. Assim como não é possível falar de “sociedade” desligada do
seu corpo, do que a compõe, e sim de “sociedade” no indivíduo. Isto é, os indivíduos
constroem a sociedade, assim como a sociedade constrói os indivíduos. As noções de
sociedade em si, ou o indivíduo em si não passam de um “mito”, os quais a sociologia deve
desmistificar.
As interações sociais, figuradas e figurantes em constante movimento, se entrelaçam,
constituindo uma interdependência entre os homens. Segundo Elias (1994, p.130), a “balança
nós-eu” sofreu modificações ao longo dos séculos, constituindo-se como um processo de
longa duração.
Na época do Estado romano da Antiguidade, a “identidade-nós”, caracterizada pelo
sentimento de pertencer a determinado grupo, “mal era separável da imagem que as classes
formadoras da língua tinham da pessoa individual” (ELIAS, 1994, idem). Assim, a identidade
grupal, “identidade-nós”, de uma determinada pessoa se configurava com relevância na práxis
social da Antiguidade.
Nesse mesmo período, a palavra latina persona figurava-se semelhante ao sentido do
“indivíduo” moderno, embora seu conceito “nada tem do nível de generalidade ou de síntese
dos atuais termos ‘pessoa’ ou ‘indivíduo’” (ELIAS, 1994, p.131). Persona se referia às
mascaras, pelas quais os atores proferiam suas falas, derivando do verbo personare. Dessa
maneira, o sentido de persona consiste nas “nuanças da máscara”, “como as referentes ao
papel de um ator ou caráter da pessoa por ele representada” (ELIAS, 1994, idem).
A partir de uma sociologia dos processos, Elias (1994, p.132) oferece uma discussão
sobre o caráter instrumental dos conceitos, a partir de uma reflexão de seu desenvolvimento, o
qual se constitui como parte do desenvolvimento social mais amplo, cumprindo uma “função
212
explicativa”.
O sentido de “pessoa” não evoluiu a partir de uma abstração individual sobre o
conceito teatral persona, e sim se configurou em um processo social, em que a linguagem se
conforma no desenvolvimento da sociedade, dos indivíduos. Ou seja, o caráter linguístico dos
símbolos comunica e orienta conceitos, precisando ser “compreensíveis não apenas para uma
pessoa isolada, mas para uma comunidade linguística, um grupo específico de pessoas”
(ELIAS, 1994, p.133).
De acordo com ELIAS (1994, idem), a palavra individuus, o qual o emprego
simbolizava uma “unidade indivisível”, pode ter se ligado na “comunicação entre os eruditos
da Igreja medieval”, estabelecendo uma “ponte para o desenvolvimento do conceito mais
recente de ‘indivíduo’”. A filosofia escolástica, portanto, contribuiu substancialmente nesse
processo de elevação desse conceito, em que “cada entidade singular tem sua própria história
individual e suas peculiaridades”.
Na época Renascentista (ELIAS, 1994, p.134), ocorre uma ascensão social, em que
humanistas passaram a ocupar cargos públicos, caracterizando um “aumento das
oportunidades sociais de progresso individual”. Assim, no século XVII, configurou-se uma
distinção entre “o que era feito individualmente e o que era feito coletivamente” (ELIAS,
1994, idem). Nesse processo, se conformou uma necessidade de existência de equivalentes
linguísticos: “a formações vocabulares como ‘individualismo’, de um lado, e ‘socialismo’ e
‘coletivismo’, de outro” (ELIAS, 1994, idem). Essas formações vocabulares contribuíram na
significação dos termos “indivíduo” e “sociedade”, situando tais conceitos como opostos na
comunicação.
Na sociologia dos processos que reflete Elias (1994, p.150), o conceito habitus social
(ou “de composição”) constitui-se como um instrumento sociológico importante na
compreensão da relação “indivíduo” e “sociedade”, evitando abordagens que dicotomizem
tais termos. O habitus se configura como “cada pessoa singular, por mais diferente que seja de
todas as demais, tem uma composição específica que compartilha com outros membros de sua
sociedade” (ELIAS, 1994, idem). Ou seja, o habitus se caracteriza como uma “composição
social dos indivíduos”. Desse modo, é formada uma linguagem comum, na qual os indivíduos
compartilham símbolos e sentidos, como parte do habitus social – “um estilo mais ou menos
individual inconfundível que brota da escrita social” (ELIAS, 1994, idem).
Elias (1994, p.151) destaca que “é do número de planos interligados de sua sociedade
que depende o número de camadas entrelaçadas no habitus social de uma pessoa”. A
“identidade eu-nós”, parte integrante do habitus social, encontra-se aberta a individualização,
213
em que uma pessoa é ao mesmo tempo individual e social. Ou seja, “a existência da pessoa
como ser individual é indissociável de sua existência como ser social” (ELIAS, 1994, p.151),
uma vez que o indivíduo constitui-se como membro de um grupo e o que esse espera dele. A
pessoa, portanto, carrega o sentido do grupo, em combinação com o individualizante. “Não há
identidade-eu sem identidade-nós”, uma vez que “tudo o que varia é a ponderação dos termos
na balança eu-nós, o padrão da relação eu-nós” (ELIAS, 1994, p.152).
Cabe ressaltar que o habitus social, “parte da bagagem intelectual das pessoas
civilizadas” e da construção da “identidade eu-nós”, está longe de se constituir como um
produto acabado. Elias (1994, p.153) ressalta a importância da teoria sociológica dos
processos, uma vez que “a maneira como interagem e se entrelaçam os diferentes aspectos do
desenvolvimento da personalidade de uma pessoa ainda não foi claramente entendida”. “O
processo de desenvolvimento e sua representação simbólica, o processo como tal e como
objeto da experiência individual, são igualmente entrelaçados e inseparáveis” (ELIAS, 1994,
idem).
Dessa maneira, o estudo segue com a discussão na abordagem de Pierre Bourdieu
sobre práticas e trocas simbólicas, de modo a compreender a arte como vida social. Ou seja,
as interações sociais como significantes da arte, e vice-versa. Assim, é buscado situar a arte no
processo de configuração do sentido das conformações sociais, como parte constitutiva do
significado da relação social e individual.
2. ARTE NO INDIVÍDUO, ARTE NA SOCIEDADE: AS PRÁTICAS SOCIAIS E AS
TROCAS SIMBÓLICAS
Em Gostos de classes e estilos de vida (1983), Bourdieu oferece uma discussão das
práticas e estruturas sociais, articulando noções como gosto, habitus, classe e prática, as quais
significam e são significadas nas interações. A escala hierárquica que compõe o espaço social
constitui fronteiras simbólicas, em que o acúmulo de capital corresponde ao acúmulo de poder
e legitimidade na cadeia hierárquica, nas posições ocupadas pelos indivíduos na estrutura.
Na perspectiva de Bourdieu (1983), a arte se manifesta como forma de dominação,
uma vez que as próprias relações sociais se estruturam desse modo. Como um item da vida
social, a arte compõe o estilo de vida dos agentes. O autor entende estilo de vida como
correspondente das posições ocupadas pelo indivíduo no espaço social, como um sistema “de
desvios diferenciais que são a retradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas
condições de existência” (BOURDIEU, 1983, p.01). As práticas sociais, assim, configuram
uma “expressão sistemática das condições de existência” – estilo de vida – uma vez que “são
214
o produto do mesmo operador prático” – habitus.
Cabe ressaltar que habitus se constitui como um “sistema de disposições duráveis e
transponíveis que exprime, sob a forma de preferências sistemáticas, as necessidades objetivas
das quais ele é o produto” (BOURDIEU, 1983, p.01). Esse “sistema de disposições”, as quais
são estruturadas e estruturantes, se constitui na prática social.
Por gerar e organizar as práticas, o habitus orienta as ações dos indivíduos, sendo um
princípio passível de mudança. Cabe ressaltar quanto mais consciência o sujeito tem da
prática, mais o habitus é passível de mudança, embora seja coletivamente orquestrado. O
habitus, portanto produz e reproduz hierarquias, uma vez que carrega princípios de
classificação. Cabe ressaltar que o habitus oferece uma margem para improvisação, em que o
indivíduo se desloca no espaço.
Para Bourdieu (2009, p.100), para que os indivíduos se reconheçam enquanto classe, é
preciso adquirirem consciência do habitus incorporado, uma vez que a classe está ligada ao
habitus. As regras, atreladas as posições, evidenciam o sentido do jogo. O senso do jogo é o
senso do por-vir do jogo, ou seja, o senso do sentido da história do jogo que dá seu sentido ao
jogo (BOURDIEU, 2009, p.136).
A lógica da prática, logo, não se resume em si (BOURDIEU, 2009, p.142). No interior
da prática encontram-se sua coerência, a qual corresponde ao sentido do jogo, e a memória
dos indivíduos, o corpo pelo qual é possível concretizar e reproduzir a prática (BOURDIEU,
2009, p.148). As práticas só existem em vida, ou seja, existem a nível do corpo, uma vez que
necessitam serem incorporadas para pulsarem. O corpo, portanto, é a unidade que permite
sintetizar o objetivismo e a consciência, em que as trocas entre os indivíduos são
caracterizadas por Bourdieu (2009) como materiais e simbólicas.
Ao configurar-se em determinadas condições materiais de existência, o “sistema de
esquemas geradores” – habitus – possui sua lógica e leis próprias, exprimindo a necessidade
dessas condições em “sistemas de preferências”. As diferenças referentes à “posição na
estrutura da distribuição dos instrumentos de apropriação” são transmutadas em distinções
simbólicas (BOURDIEU, 1983, p.01). A condição econômica e social, que prevê um
determinado acúmulo de capital desde o volume até a estrutura da qual foi apreendido,
evidencia a posição do “indivíduo ou grupo no espaço dos estilos de vida” (BOURDIEU,
1983, p.02).
Nesse sentido, o estilo de vida se configura na “apropriação material e/ou simbólica de
uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e classificadoras”,
conformando aptidões, propensões e gostos. O estilo de vida é um conjunto de
215
preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos
subespaços simbólicos, mobília, vestimentas, linguagem ou héxis corporal, a mesma
intenção expressiva, princípio da unidade de estilo que se entrega diretamente à
instituição e que a análise destrói ao recortá-lo em universos separados.
(BOURDIEU, 1983, idem).
Os estilos de vida são significantes e significados das e nas práticas sociais, em que os
indivíduos são classificados e hierarquizados. Portanto, há uma hierarquia dos estilos de vida,
em que a matriz de gosto constitui-se no modelo de estilo de vida.
Esse modelo diz respeito a uma cultura configurada como superior, possuidora de
legitimidade, de poder distintivo e classificatório, desempenhando uma dominação simbólica
na cadeia hierárquica da vida social. A dominação, que se sustenta no acúmulo de capital –
econômico, cultural, social, simbólico –, evidencia uma distinção de gostos, de fala,
vestimenta, produtos consumidos, comunicando posições ocupadas pelos indivíduos nas
interações humanas (BOURDIEU, 1983).
“A própria disposição estética, que, com a competência específica correspondente,
constitui a condição da apropriação legítima da obra de arte, é uma dimensão de um estilo de
vida” (BOURDIEU, 1983, p.06). O consumo da obra de arte, seja esse material ou simbólico,
faz parte de um dos elementos constitutivos da “estilização da vida”. A “estilização da vida”,
logo, é um conjunto de escolhas, preferências e práticas que é construída em relação com a
estrutura. Nesse sentido, os estilos de vida são relacionais, ou seja, possuem hierarquias entre
esses evidenciadas pelos produtos consumidos, pelas trocas simbólicas nas interações.
Segundo Miceli (apud BOURDIEU, 2007, p.LXI), é preciso “proceder à investigação
dos processos de produção simbólica para o qual concorrem de maneira determinante os
próprios agentes produtores dos diversos aparelhos e instâncias do campo simbólico”. Nessa
lógica, constitui-se um sistema de regras, “de um habitus que orienta as condutas e os
pensamentos [...] que justifica a ordem social prevalecente de uma determinada sociedade”
(MICELI apud BOURDIEU, 2007, p.LIX).
De modo concomitante ao desenvolvimento do sistema de bens simbólicos há um
processo de diferenciação, que se acomoda no princípio “da diversidade dos públicos as quais
as diferentes categorias de produtores destinam seus produtos e cujas condições de
possibilidade residem na própria natureza dos bens simbólicos” (BOURDIEU, 2007, p.101).
Os valores mercantil e cultural da obra de arte, para Bourdieu (2007, p.102), subsistem
de maneira independente, “mesmo nos casos em que a sanção econômica reafirma a
consagração cultural”. Ou seja, quando se configura um mercado da obra de arte, os artistas
podem afirmar – “por via de um paradoxo aparente” – “a irredutibilidade da obra de arte ao
216
estatuto de simples mercadoria, e também a singularidade da condição intelectual e artística”,
através de “suas práticas e nas representações que possuem de sua prática”.
A arte não se constitui a partir dela mesma, e sim a partir das práticas sociais,
constituindo o valor e lugar da arte, do artista, da posição e imagem do artista no mundo
artístico e no mundo social mais amplo. Não se trata, portanto de uma hierarquia dos objetos
artísticos, valorados em si mesmos, mas sim de uma hierarquia a partir de interações e
representações sociais as quais legitimam de acordo com uma ordem racional de dominação.
Nesse sentido, o estudo seguirá com a discussão no próximo tópico, no qual será
abordada a constituição de identidade de artista na Feira de Artesanatos do Campo de São
Bento. Para tal, será utilizada a pesquisa de campo realizada nos meses de junho, julho e
agosto de 2011 e janeiro de 2012, tomando como exemplo a entrevista com um artista
plástico, o qual será chamado aqui de T..
De modo a perceber as práticas sociais e trocas simbólicas serão retomadas as
reflexões de Pierre Bourdieu, assim como as abordagens de Norbert Elias (1994) na
compreensão da constituição da “identidade eu-nós”. Com o objetivo de complementar a
discussão, será utilizada a perspectiva de Erving Goffman (2002) a fim de perceber as formas
de representação do eu nesse processo, em conjunto com Howard Becker (1982), na busca por
situar o artista no mundo artístico.
3. A
CONSTITUIÇÃO
DE
IDENTIDADE
DE
ARTISTA
NA
FEIRA
DE
ARTESANATOS DO CAMPO DE SÃO BENTO
O Campo de São Bento, formalmente chamado de Parque Pereira Ferraz, é um espaço
público de referência de Niterói, com diversos atrativos para a população. Situado no bairro
de Icaraí, Zona Sul da cidade, o campo possui uma biblioteca com cursos e eventos variados,
o Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, com exposições artísticas, um rink de patinação,
parquinho, área verde e a Feira de Artesanatos no final de semana, pela manhã.
O campo, que fica entre as ruas Gavião Peixoto, Domingues de Sá, Lopes Trovão e
Avenida Roberto Silveira (Figura 1) o que contribui para sua visibilidade e acesso, possui um
percurso interno chamado Al. Edmundo de Macedo Soares e Silva, que acomoda a Feira de
Artesanato.
217
Figura 1: Campo de São Bento - Google Maps – 07 de
janeiro de 2012.
Nesse caminho da feira, que comunica as partes da malha social do campo, dispõe de,
aproximadamente trezentas barracas, as quais são ocupadas por produtos feitos de panos,
crochês, peças decoradas de madeira, bolos, doces, quadros, etc. – marcando um mosaico
heterogêneo de expressões do modo de vida urbano (Figura 2).
Figura 2Figura 02 (Campo de São Bento, final de semana, 2011) Pesquisa de campo: Leila Maribondo
Na parte da feira com maior circulação de pessoas, constituindo a parte mais
privilegiada, encontram-se os quadros dos artistas plásticos. Os objetos artísticos são expostos
em estruturas maiores do que as barracas de artesanato, sendo do próprio artista (Figura 3).
Foi possível perceber que a feira acomoda atores com diferentes desejos, intenções e
origens, desde o seu público até os vendedores da feira, compondo uma unidade heterogênea,
improvisada e imediata.
Nesse trabalho, serão utilizadas partes da entrevista informal realizada com o artista
plástico, que chamarei aqui de T., o qual vende quadros de pinturas abstratas que se
assemelhando à arte contemporânea.
Cabe ressaltar que a narrativa do artista, acomodada em seu corpo, corresponde, ao
mesmo tempo, a uma voz individual e social, a qual adquire sentido nas interações sociais. Ou
seja, no corpo, unidade que possibilita sintetizar o objetivismo e a consciência, a memória é
218
constituída, a qual se configura nas trocas materiais e simbólicas. A lógica da prática,
portanto, encontra sua coerência – o sentido do jogo – na memória, corpo no qual é possível
concretizar e reproduzir a prática (BOURDIEU, 2009).
Figura 3 (Feira de Artesanatos do Campo de São Bento, final
de semana, 2011) Pesquisa de campo: Leila Maribondo
T., que está na feira há dezoito anos, diz que pinta quadros há vinte e oito anos. T.
cursou o primeiro semestre da graduação em artes plásticas, na Universidade Federal do
Espírito Santo. Apesar de ter cursado apenas um semestre, T. parece deter um saber legítimo
frente aos outros artistas estudados durante as pesquisas de campo, os quais não possuem
formação formal em artes. Enquanto conversava com T., J., outro artista plástico, se
aproximou e abraçando-o de forma amistosa disse: “esse é um grande artista!”.
No decorrer da entrevista, pergunto a T. sobre a inspiração e técnica de seus quadros.
T. explica, animado, os motivos de seus traços, e diz: “me referencio muito ao abstracionismo
alemão, que desconstrói a pincelada, o que é aparente”. As telas de T. não acompanham o
formato quadrado das demais telas expostas pelos outros artistas plásticos da feira, e sim
utiliza telas sobrepostas, com formatos e tamanhos diferenciados, resignificando seu sentido e
textura (Figura 4).
219
Figura 4 (Quadros do artista plástico T., Feira de
Artesanatos do Campo de São Bento, final de semana,
2011) Pesquisa de campo: Leila Maribondo
Para T., a arte abstrata possibilita maior liberdade do que a arte “mais evidente”. Sua
arte possui “uma linha poética”, e diz ser “diferente de muitos outros quadros expostos aqui,
como esse daqui ó, que...”. E começa a explicar o que os outros quadros “tem de errado”.
Sem parecer se incomodar com as críticas de T., J. sorri como se estivesse
agradecendo pelas “dicas” do artista e se retira de seu espaço para lhe dar mais abertura de
apresentar os supostos equívocos técnicos dos quadros expostos. No decorrer desse momento,
T. explica que “a arte abstrata não prende o entendimento, as outras artes são dadas, não dá
para abstrair nada”.
É possível perceber que o breve contato com a academia posicionou T. como detentor
de um discurso artístico legitimado pelos outros artistas no espaço da feira, como forma de
dominação simbólica, adquirindo um poder de fala e julgamento. A dominação simbólica,
sustentada pelo acúmulo de capital simbólico que o fortalece na luta pelo poder, evidencia
uma distinção de T. frente os outros artistas, marcando sua posição nas interações.
As obras de T., que se assemelham às técnicas da arte contemporânea, também
significam essa hierarquia, compondo estilos de vida distintos. Ao perguntar sobre o público
que consome seus quadros, T. diz ser composto por “mulher que tem dinheiro”, afinal,
segundo ele, “é preciso ter educação para entender os meus quadros”.
O gosto “civilizado” evidenciado pelos produtos consumidos marca uma distinção dos
estilos de vida. O público que consome as obras de T., por possuírem estilos de vida
220
hierarquicamente acima do público que consome as demais obras de arte dos artistas
plásticos, comunica a dominação e legitima a posição que T. ocupa no espaço da feira. Cabe
destacar que o acúmulo de capital cultural não está necessariamente atrelado ao acúmulo de
capital econômico, apesar de se encontrarem frequentemente.
Nesse sentido, são evidenciados os “processos de produção simbólica para o qual
concorrem de maneira determinante os próprios agentes produtores dos diversos aparelhos e
instâncias do campo simbólico” (MICELI apud BOURDIEU, 2007, p.LXI).
Vale ressaltar também que a exposição de seus quadros realizada no Centro Cultural
Paschoal Carlos Magno, em 2007, no próprio Campo de São Bento, legitimou seu saber
artístico contribuindo para que T. ocupasse um espaço privilegiado na malha hierárquica dos
artistas plásticos, podendo usufruir, assim de status e prestígio.
É possível perceber que a significação do eu se constitui na comunicação entre os
indivíduos, em que as práticas sociais delineiam a constituição da identidade, demandando
papéis e formas a serem representadas que condizem com as expectativas de um ou mais
grupos. Ou seja, os indivíduos interagem seguindo um script de seu espetáculo, construído por
ele mesmo, mas também socialmente.
O roteiro da vida cotidiana oferece possibilidades de símbolos nos quais os atores
podem representar seus papéis, com a melhor desenvoltura possível de forma a beneficiar-se
desse mecanismo. As relações sociais, portanto, uma vez intermediadas pelas imagens
apresentadas, comunicam intenções, legitimam espaços ocupados, estabelecem distinções.
De acordo com Goffman (2002, p.25), “quando um indivíduo desempenha um papel,
implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante
eles”. Ou seja, é necessário haver uma crença mútua no papel representado pelo indivíduo, em
que os atributos do personagem devem parecer verdadeiros. Esse espetáculo da representação,
portanto, é significado nas interações sociais, dependendo de uma troca simbólica entre os
indivíduos, na qual seja possível estabelecer uma comunicação de papéis e intenções.
Em um dos extremos, o ator, compenetrado em seu número, pode estar convencido da
impressão da realidade que produz, considerando-a como real. Assim como seu público,
significante também dessa interação, acredita no que é apresentado.
No outro extremo explanado por Goffman (2002, idem), é quando um “ator pode não
estar completamente compenetrado de sua prática”, uma vez que o executante usufrui de uma
posição privilegiada para apreciar sua própria execução. Nesse sentido, o ator detém controle
considerável de manipular a impressão que seu público pode ter, dirigindo sua apresentação.
Porém, “o executante pode ser levado a dirigir a convicção de seu público apenas como um
221
meio para outros fins, não tendo interesse final na ideia que fazem dele ou da situação”
(GOFFMAN, 2002, idem). Quando o indivíduo não acredita em sua atuação e nem está
preocupado com a crença do seu público, o autor denomina-o de “cínico”, e reserva o termo
“sincero” aos que acreditam na impressão de sua atuação.
Referente a esses dois extremos de representação do eu, é possível perceber “típicas
carreiras de fé, começando o indivíduo com um tipo de envolvimento pela representação que
deve fazer, oscilando em seguida para trás e para adiante várias vezes entre a sinceridade e o
cinismo” (GOFFMAN, 2002, p.28). Cabe destacar aqui a noção de representação destacada
por Goffman (2002, p.29), a qual se refere a “toda atividade de um indivíduo que se passa
num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular”.
Na Feira de Artesanatos do Campo de São Bento, é possível perceber as encenações de
papéis como forma de legitimação do espaço ocupado e valoração de seus produtos artísticos.
O discurso artístico dominante evidenciado nas entrevistas se constitui como parte do
espetáculo de artistas, construindo identidades em um movimento contínuo com o espaço.
Os símbolos incorporados nas representações comunicam os papéis e hierarquias nos
espaços ocupados, prestígios e status. O modo como a estrutura materializa a figuração pode
ser percebida na ocupação de espaços pelos artistas plásticos, desvendando uma assimetria
entre os próprios, desvendando uma hierarquia de prestígio. A organização das localizações
dos agentes revela as formas da figuração, conformando a materialidade do espaço.
É válido ressaltar que a hierarquia das posições que compreende a conformação de
correlação de forças é construída socialmente e historicamente, em que a luta pelo prestígio se
comunica com a disposição espacial dos agentes. Dessa forma, é possível perceber as pressões
e contrapressões entre os artistas plásticos na busca por prestígio e etiqueta e como os mesmos
procuram usar sua influência sobre si nesse processo. Nessa figuração de delimitações dos
espaços há também conformações de mecanismos de controle, em que os agentes treinam seu
discurso na busca por legitimação de seu trabalho artístico, como forma de afirmação de sua
identidade de arista.
T. conta que passou a pintar formas abstratas após ter estudado artes plásticas na
Universidade Federal do Espírito Santo. Antes disso, T. explica que pintava paisagens de
Paris. Mesmo sem nunca ter ido a essa cidade, o artista diz que quadros desse tipo “vendiam
muito”.
Relativizando suas explicações dos benefícios de se pintar arte abstrata, T. conta que o
quadro que a deixou mais satisfeita foi uma encomenda que um cliente fez: “fiz um quadro
todo vermelho, com um touro, ficou muito bonito aquele quadro!”. T. diz que recebe muitas
222
encomendas e que os clientes escolhem desde as cores do quadro até as formas geométricas a
serem pintadas – intermediadas e concretizadas por T. “Tem cliente que fala que quer um
círculo laranja aqui, com um fundo preto e um quadrado vermelho no canto da tela, eu faço,
se o cliente gostar é o que me deixa mais satisfeito”. Mesmo frente de uma aparente e possível
parceria com o cliente na criação artística, para T. a autoria das obras é dele, uma vez que é
sua pincelada que concretiza a ideia: “mesmo preso a uma encomenda, eu coloco um tanto de
mim na obra”.
Becker (1982, p.292) destaca que a desenvoltura e adequação das habilidades de um
artista comercial contribuem na sua promoção e aceitação no mercado, atraindo consumidores
os quais consideram suas habilidades úteis para seu fim.
Geralmente, os artistas que
dominam suas habilidades técnicas começam a falar, pensar e agir como artesãos, uma vez
que se orgulham de suas virtuosidades e controle do trabalho artístico que produzem, o qual
está acima do seu conteúdo (BECKER, 1982, p.294), Ou seja, mesmo que a arte comercial
possua as mesmas técnicas e materiais das artes plásticas, essas se disponibilizam e variam de
acordo com o fim que o mercado demanda.
Bourdieu (2007, p.102) ressalta que nas trocas simbólicas, constituem-se realidades de
mercadorias e significações, em que o valor mercantil e o valor cultural da obra de arte
subsistem de forma independente – “mesmo nos casos em que a sanção econômica reafirma a
consagração cultural”. Ou seja, a obra do artista também se curva as demandas do mercado,
mas não se separa de sua significação cultural, não sendo reduzida, logo a uma mercadoria
dura e racionalizada.
É válido ressaltar que entre os quadros abstratos posicionados quase em todo o seu
painel, há um pequeno quadro de uma paisagem niteroiense, de modo a expor as suas
habilidades e técnicas artísticas para pintar a “encomenda que vier”. Ao perceber minha
curiosidade nesse quadro, T. saca de sua maleta um álbum de fotos de seus demais quadros.
Agora, diferente do que é exibido no painel, o álbum possui uma oferta variada de opções de
formas artísticas.
Cabe ressaltar que a concepção de Becker (1982) sobre habilidade consiste em ser um
domínio da capacidade física e mental a qual permite ter um controle sobre os materiais e
técnicas. Porém, os membros dos mundos artísticos percebem as habilidades artesanais como
um desafio tanto do ponto de vista social como estético frente à indústria. Os diferentes
aspectos do trabalho são valorados de acordo com as diferentes definições sobre habilidade
Para Becker (1982), as formas de coordenação das atividades de todos os agentes que
cooperam no mundo artístico são reveladas nas concepções convencionais que legitimam e
223
impõem formas verdadeiras de obra de arte. Os agentes, por sua vez, incorporam as
convenções e materializam nos seus trabalhos artísticos, permitindo um consenso cooperado
desses valores como um elo de atividades.
É válido ressaltar que os objetos da feira se encontram posicionados e hierarquizados
dentro do sistema classificatório artístico, o qual se insere no sistema classificatório mais
amplo que os agentes vivem, da mecanização expressada na vida humana.
Em A representação do eu na vida cotidiana (2002), Goffman destaca que, no palco,
um ator se apresenta sob a máscara de um personagem para personagens projetados por outros
atores. A plateia, essencial para essa mecânica ensaística, contribui na conformação de
estereótipos da vida social.
A representação do papel ocupado como artista plástico requer que T. saiba se
comportar como um, causando impressões em seu público por meio de símbolos do mundo da
arte incorporados no seu discurso e na sua obra que irão evidenciar sua valoração e
merecimento do espaço ocupado. Dessa maneira, a constituição da identidade de artista, que é
processual, se configura no desenrolar das interações. As práticas sociais são tecidas nas
relações de interdependência entre os homens, configurando uma malha de possibilidades de
representações, na qual os indivíduos improvisam suas intenções e representações, testando a
margem de suas atuações.
Cabe ressaltar que a representação do eu não se resume a um fingimento apenas. O
próprio fingimento significa o processo de constituição de identidades, de forma contínua e
mutável – construindo e desconstruindo, fazendo e desfazendo.
Segundo a visão de Erving Goffman (2002), a moral, peça fundamental que civiliza as
representações e comunica as expressões e impressões, se evidencia no roteiro. Nesse sentido,
o domínio das regras do script possibilita que o ator manipule-as, estendendo uma margem de
atuação. Portanto, a margem é elástica, podendo estender-se de acordo com as habilidades do
ator.
As convenções do mundo da arte descritas por Becker (1982) pode se encontrar como
valores morais que Goffman (2002) propõe, em que quanto maior o domínio do ator dessas
convenções – tanto a nível do discurso, quanto a nível de materialização do discurso por meio
de suas produções artísticas – maior é a margem de representação e legitimidade de seu
espetáculo.
É importante ressaltar que o equilíbrio do interior das representações se encontra com
a manutenção do equilíbrio externo, na manutenção da ordem. O nível de cinismo tolerável é
o nível de funcionamento necessário, em que o script se constitui no consenso moral dos
224
papeis. Vale destacar que os scripts possuem lacunas, mas que são preenchidas pelos artistas e
suas representações.
De acordo com a perspectiva de Norbert Elias (1994), a constituição de identidade de
artista figura-se nas dinâmicas sociais, situadas no habitus social. Ou seja, a identidade de T.
enquanto artista é conferida coletivamente, evidenciando uma “identidade nós-eu”. Na
“composição social dos indivíduos”, Elias (1994, p.150) destaca que no interior dos grupos é
formada uma linguagem comum, em que os indivíduos compartilham os símbolos e
significados. É possível perceber que a identidade de T. enquanto artista se constitui nas
práticas sociais, em que o significado e legitimidade de seu trabalho artístico se entrelaça no
significado e legitimidade de seu eu. Ou seja, o eu, constituído na relação nós-eu, incorpora os
códigos do grupo, de modo a acomodar-se e orientar-se da melhor maneira possível na
composição social.
Dessa maneira, Elias (1994, p.151) ressalta como parte integrante do habitus social, a
“identidade eu-nós” sintetiza o social e o individual, sendo ao mesmo tempo um e outro. T.,
portanto, constitui sua identidade de artista na relação nós-eu, constituindo as interações
sociais e se constituindo nelas, dividindo formas de linguagem, as quais simbolizam sua
posição, legitimidade e valoração artística.
Na visão de Goffman (2002), T., localizado espacialmente na estrutura das interações
sociais da feira, apresenta a si mesmo na busca constante por identificar-se no papel por ele
representado, de modo a afirmar e reafirmar sua legitimidade enquanto artista.
Porém, Elias (1994) atenta que a figuração social é processual, podendo construir e
desconstruir, significar e resignificar. Dessa maneira, as práticas sociais que legitimam
determinadas trocas simbólicas nos mercados artísticos (BOURDIEU, 2007), assim como
convenções do mundo da arte (BECKER, 1982) na constituição de identidade de T. enquanto
artista são mutáveis. Por constitui-se como uma luta por poder, o sentido do jogo pode sofrer
mutações, resignificando as formas de interações ou reafirmando posições.
Cabe ressaltar que, de acordo com a perspectiva de Bourdieu (2009) devido à lógica
hierárquica e classificatória que guia a vida humana, mesmo quando há uma inversão do
sentido do jogo, em que dominantes alcançam níveis mais altos da cadeia hierárquica,
assumindo o poder legítimo, o mecanismo de dominação persiste. Ou seja, as formas de
interações podem se transformar, porém o seu conteúdo de dominação continuará, uma vez
que a engrenagem mais ampla da vida humana funciona dessa maneira – o capitalismo e a
luta de classes.
225
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou compreender o processo de conformação de identidade de
artista na Feira de Artesanatos do Campo de São Bento, direcionando-se nas teorias de
Norbert Elias (1994), Pierre Bourdieu, Erving Goffman (2002) e Howard Becker (1982).
Orientado pelas pesquisas de campo de junho, julho e agosto de 2011, e janeiro de
2012, especificamente na observação da entrevista com um dos artistas plásticos, o estudo
pretendeu apresentar a complexidade da realidade, a qual não se restringe a uma linha teórica
apenas. Suas múltiplas faces que significam o corpo da malha social se entrelaçam
continuamente, construindo e desconstruindo sentidos, tomando e retomando direções,
conformando e acomodando intensidades. Dessa maneira, o trabalho buscou relacionar os
autores, de modo a compreender sua complementaridade na observação sociológica do
campo.
A relação indivíduo e sociedade possui variadas corporificações, configurando um
sistema de significados, códigos, pulsações, sintetizando a materialidade e a imaterialidade da
vida humana em constante processo. A arte, como parte constitutiva da vida social, é
significada nas interações, construindo o valor e lugar do artista no mundo artístico, no mundo
social mais amplo (BECKER, 1982).
O estudo demonstrou que o sistema classificatório dos artistas possui múltiplas
dimensões, em que as hierarquias atravessam as práticas e trocas simbólicas, conformando
uma cadeia das representações artísticas. A partir de uma ordem racional de dominação, os
artistas são posicionados e valorados de acordo com sua performance (GOFFMAN, 2002),
com seu acúmulo de capital (BOURDIEU, 2009) – instrumentos que possibilitam legitimar-se
enquanto artistas. Ou seja, quanto maior habilidade e destreza em se adequar no sentido do
jogo, mais o artista se firma no campo.
Portanto, foi possível perceber que a constituição de identidade de artista, no Campo
de São Bento, sintetiza as variadas dimensões da malha social. Na representação de papeis
que discute Goffman (2002), as interações sociais adquirem um sentido coletivo,
materializando uma vida de espetáculos, construída na relação constante do eu com o nós. O
sentido coletivo do grupo fusionado com o sentido individual constrói uma “identidade nóseu” (ELIAS, 1994), figurando o significado do artista na sociedade, o significado da
sociedade no indivíduo.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BECKER, Howard. Art Worlds. Berkeley, University of California Press, 1982.
226
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227
A PRODUÇÃO COTIDIANA DE SENTIDO NO ESPAÇO DE MORADIA:
O caso do Jardim Icaraí, em Niterói/RJ
Nathália Carneiro Campagnani*
RESUMO
Este trabalho trata da discussão acerca da construção e ressignificação cotidiana do espaço
urbano do “bairro” Jardim Icaraí pelos moradores dos novos empreendimentos residenciais
que surgem na região em função de um processo de verticalização e remodelação urbana.
Sendo esses novos prédios caracterizados por alguns elementos particulares como estilo
arquitetônico “sofisticado” e oferta de amplas áreas de lazer comum, ambas remetendo a um
estilo de vida diferenciado, a proposta é pensar como se dá a articulação entre o espaço
territorial e o espaço social como geradores de mecanismos de classificação social desses
moradores. Os principais pontos de interesse do trabalho giram assim em torno de três eixos
principais: a caracterização do que é o “bairro” Jardim Icaraí e de como se dá a demarcação
dos seus limites a partir de uma discussão que pensa a disputa entre o planejamento urbano e
a vida cotidiana; a caracterização dos novos empreendimentos residenciais que são ofertados
na região e a maneira como se inserem na proposta de um conceito de moradia e de estilo de
vida; a maneira como a partir desses elementos são construídos os mecanismos de
classificação social pautados na moradia.
Palavras-chave: bairro, estilo de vida, cotidiano, remodelação urbana, classificação social.
INTRODUÇÃO
As metrópoles urbanas, de grande e mesmo de médio porte, se caracterizam pela
diversidade que não apenas comportam, como também estimulam. São diferentes
comportamentos, maneiras de se mover e de se localizar no espaço, perpassados
cotidianamente por ininterruptos rearranjos táticos, que caracterizam essa diversidade e que
fazem do ambiente urbano um espaço de efervescência, heterogeneidade e mutação
permanente.
As mudanças na paisagem urbana, no sentido de uma modificação dos tipos de
atividades e construções que podem ser observados em diferentes áreas da cidade, nos dão
pistas sobre como vão se organizando aí as diferentes ordens de atores sociais e sobre que tipo
*
Aluna de graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense.
E-mail: [email protected]
228
de significação atribuem ao espaço no qual interagem. A cidade compreendida como um
“mosaico de mundos sociais” (WIRTH, 1979) supõe a segmentação do espaço urbano em
função de diferentes necessidades e modos de vida dos diferentes grupos.
Essa segmentação deve, no entanto, ser confrontada com os processos de mudança e
movimento ao nível das práticas cotidianas que conferem a vitalidade dos espaços urbanos.
Isso porque se tomamos as cidades como esse mosaico do qual nos fala Wirth, podemos
argumentar que esse é um mosaico em construção e com peças intercaladas e
permanentemente trocadas. Assim é que percebemos que uma “mudança de paisagem” na
maior parte das vezes não se mostra assim tão marcada quando lhe dedicamos um olhar mais
atento e percebemos um ou outro elemento que foge ao padrão.
Particularmente para os interesses desse artigo, pensemos em como vão se
organizando os diferentes grupos no território da cidade no que se refere ao endereço que
ocupam, tendo em vista diferentes bairros e também diferentes tipos de prédios. Explicita-se
assim um padrão de moradia específico de um grupo a partir da compreensão de maneiras de
morar que privilegiam as práticas cotidianas dos agentes como definidoras do espaço e,
portanto, de limites que não são rígidos nem tampouco arbitrários, pois estão intimamente
relacionados com uma percepção e identificação de e com o lugar.
Da mesma maneira, esse padrão de moradia específico está diretamente associado a
um dado estilo de vida com o qual se procura identificar-se e com o qual se é identificado. A
partir da percepção das práticas sociais e territoriais de um grupo temos então elementos para
averiguar o modo como esses agentes são capazes de modificar o sentido que o espaço de
moradia adquire na sua vivência cotidiana. Portanto, é possível pensar em como o endereço
na cidade permite a identificação de um grupo com determinado estilo de vida e até mesmo
com um padrão estético.
Atentando para os diferentes atores sociais que compõem a rede de relações que
organizam a configuração de um determinado território, podemos pensar no papel
desempenhado, por exemplo, pelo mercado imobiliário, pelo poder público e principalmente
pelos próprios moradores. De maneira mais imediata vemos que no primeiro caso há uma
organização territorial de acordo com faixas de renda, uma vez que potenciais compradores
são selecionados em função dos preços dos imóveis localizados em uma ou outra área da
cidade.
No mesmo sentido, o poder público estabelece uma organização espacial que tem o
planejamento urbano como principal componente. Trata-se de um plano de cidade
normatizado que pode ou não estar em consonância com o que faz parte do cotidiano da
229
própria cidade, opondo-se assim muitas vezes uma “cidade planejada” a uma “cidade vivida”
(NUNES, 2010). E nesse particular é essencial compreender o papel que desempenham os
moradores nessa rede, visto que eles são capazes de, por meio das suas práticas concretas e
cotidianas, ressignificar e se apropriar simbolicamente do espaço no qual atuam e interagem.
Certamente outros fatores entram em cena nessa organização socioespacial da moradia
e estão muito relacionados com a oferta e proximidade de certos equipamentos urbanos e com
um determinado padrão de construção, por exemplo. O que procuramos ressaltar com essa
afirmativa é que não apenas os critérios classificatórios baseados na renda ou na classe social
são importantes para se pensar na maneira como se distribuem os diferentes grupos pela
cidade, mas também aqueles que são da ordem do status (WEBER, 1966) e que dizem
respeito a um estilo de morar e de viver.
Esse é necessariamente o motivo do por que não se compra qualquer imóvel em
qualquer lugar, do por que a propaganda publicitária é tão importante e valorizada pelas
empresas imobiliárias para “vender” um estilo de morar ou do por que os financiamentos de
imóveis tem cada vez mais importância como possibilitadores da aquisição de um bem
material muitas vezes com preço superior às posses do comprador e em certos casos de um
padrão de moradia que em um primeiro momento pode encontrar pouca correspondência com
as demais práticas daquele sujeito.
O CASO DO JARDIM ICARAÍ
O recorte empírico da pesquisa que deu origem a esse artigo centra-se na realização de
um estudo de caso do “bairro” Jardim Icaraí na cidade de Niterói e dos seus moradores que
optam por morar nos novos empreendimentos ofertados na região que passa por um processo
de expansão vertical e de consequente remodelação urbana1. Inicialmente duas características,
uma em relação ao bairro e outra em relação aos prédios, podem ser destacadas como
interessantes para a análise desse caso:
1) O Jardim Icaraí não possui institucionalmente uma classificação políticoadministrativa como bairro da cidade de Niterói;
2) Os novos empreendimentos residenciais multifamiliares dispõem de características
arquitetônicas de alto padrão e de áreas de lazer comum com diversidade de
equipamentos, ambas com forte apelo publicitário ao que pode ser descrito
1
Minha entrada em campo se deu na segunda metade do ano de 2010, momento no qual era possível perceber
com nítida clareza que o “bairro” passava por um processo de modificação dos tipos de construções que o
caracterizavam. Tendo como referência o ano de 2012, pode-se inferir, a partir da avaliação feita pelos
corretores de imóveis entrevistados, que esse processo teve início no período entre 5 e 8 anos atrás.
230
suscintamente como um “estilo de vida privilegiado no melhor que o bairro pode
oferecer”.
Tendo como questão principal o porquê de essas pessoas quererem morar nesse
“bairro” e nesses prédios, tomam-se as duas características mencionadas para avaliar em que
medida estão relacionadas ao modo como operam os mecanismos de classificação social a
partir do critério residencial, que conjuga aspectos materiais e simbólicos. Coloca-se então a
pergunta sobre que pessoas são essas que residem nesses locais e de que maneira elas se
relacionam com esses espaços, ressignificando-os.
Resta, portanto, a questão sobre quais são os fatores que compõem o processo de
identificação desse grupo, que inicialmente pode ser caracterizado como pertencente à classe
média, o que por sua vez implica um estilo de vida e um padrão estético2. Ambos se rebatem
em uma moradia e em um bairro, ou seja, em um espaço tanto físico quanto social, dimensões
essas priorizadas na análise.
Por isso, a hipótese que guiou a pesquisa gira em torno da ideia de que a localização
de um grupo em determinada porção do território da cidade se relaciona com o
desenvolvimento de um estilo de vida específico e que, portanto, há uma forte correlação
entre mobilidade espacial e mobilidade social ou entre as estruturas do espaço físico e as
estruturas do espaço social (BOURDIEU, 1997). Em suma, buscamos ressaltar que o local de
moradia aparece como um forte indicador do lugar social ocupado por esse grupo.
A VIDA SOCIAL DO “BAIRRO” EM PERSPECTIVA
O processo de expansão imobiliária pelo qual passa o Jardim Icaraí se dá de tal forma
que, de maneira acentuada e rápida, antigas casas, geralmente térreas, e pequenos prédios de
até cinco andares cedem lugar a prédios que contam com mais de dez andares, inclusive com
coberturas, e que abrigam cada um em torno de cem famílias. Trata-se de um processo tão
marcante que em praticamente todas as ruas do bairro é possível encontrar um ou mais desses
lançamentos imobiliários.
Essa modificação dos padrões habitacionais, que passa pela demolição dessas casas e
pequenos prédios, ultrapassa o desfazer de abrigos, significando a derrubada de um modo de
vida para o consequente estabelecimento de outro em seu lugar que altera o cotidiano do
bairro. Além disso, no caso do Jardim Icaraí vale destacar que tal expansão coincide com a
2
A definição de classes e também da própria classe média é bastante discutida no âmbito da sociologia e da
economia, mas é também relativamente imprecisa e questionável sob alguns aspectos. Particularmente nos
estudos sobre a classe média a denominação que mais se popularizou para caracterizá-la foi a de “White
Collars”. Para algumas referências sobre o assunto ver Stuart Mills e Anthony Giddens.
231
indefinição da sua delimitação física, o que em geral parece ser recorrente nas áreas urbanas
que são alvo da especulação imobiliária3.
Digno de nota, entretanto, é o fato de que falta ao Jardim Icaraí uma classificação
político-administrativa de bairro4, o que, por sua vez, faz dele um exemplo emblemático de
que a definição de qualquer espaço territorial como bairro não se esgota em uma classificação
desse tipo5. Desse modo, resta uma indagação: até que ponto aspectos como “convivialidade”
e identificação com elementos comuns podem ser geradores da noção de bairro, mesmo que
não haja aí uma definição normatizada? Diante desse aspecto, parece configurar-se uma
defasagem entre o que é vivido no cotidiano da cidade e aquilo que está estabelecido pelos
órgãos que regem o espaço urbano.
Isso porque o que ocorre no Jardim Icaraí, apesar dessa ausência de limites
institucionalizados, é que há em torno de 20 ruas que podem ser apontadas como
componentes desse espaço.6 O que atualmente é conhecido como Jardim Icaraí é na verdade o
resultado de um entrelaçamento das ruas que “antes” delimitavam os bairros vizinhos de
Icaraí e Santa Rosa ou em algumas versões o que originalmente era um pedaço apenas de
Santa Rosa7. Trata-se, sobretudo da ressignificação prática desse espaço urbano pelos diversos
agentes que nele atuam, pois “o bairro define-se através do vivido e do agir social,
consolidando-se a partir da sua história. O bairro é, pois, polissêmico e não rigorosamente
delimitável” (GONÇALVES, 1988, p. 30).
Sob essa perspectiva é possível pensar o bairro em termos de uma dupla existência:
concreta-objetiva e subjetiva-intersubjetiva (RAMOS, 2002, p.67). Isso quer dizer que
3
Como exemplo de um processo semelhante, vale observar o caso da Barra da Tijuca na Zona Oeste do Rio de
Janeiro que se “expande” para o bairro vizinho de Jacarepaguá principalmente.
4
O que é admitido no âmbito da Secretaria de Urbanismo da cidade de Niterói é que o local pode ser
caracterizado como um loteamento, mas não como um bairro. Outras denominações recorrentes são a de
“sub-bairro” e “invenção imobiliária”.
Não há menção ao Jardim Icaraí no orçamento da prefeitura para o ano de 2012, o que poderia ser um indicativo
do seu estatuto institucional de bairro. Por outro lado, alguns moradores entrevistados relataram que o nome
Jardim Icaraí consta no carnê de IPTU, o que é alvo de muitas queixas entre eles por acreditarem pagar um
imposto mais caro por esse motivo.
5
É claro, no entanto, que uma classificação nesses termos pode certamente reforçar esse estatuto de bairro.
6
Essa estimativa foi feita tendo como base os relatos dos moradores e também a existência de empreendimentos
imobiliários ou estabelecimentos comerciais cujos nomes fizessem referência ao Jardim Icaraí.
7
Digo “antes” porque no levantamento dos processos de licitação para a construção de edifícios residenciais
multifamiliares com entrada no sistema de protocolo e também com processos aprovados no período de
01/01/2006 até 13/09/2010, requerido à Secretaria de Urbanismo de Niterói e cuja classificação se dá em
função dos bairros onde serão construídos, não há menção ao Jardim Icaraí, mas sempre à Icaraí e à Santa
Rosa como sendo os bairros atuais. Esse foi, aliás, o motivo da inviabilização do trabalho de pesquisa com os
dados fornecidos pela Secretaria.
Ainda segundo o arquiteto Cornélio Mello, em nota publicada na revista “O Flu” de 6 de novembro de 2011, o
que vem sendo chamado de Jardim Icaraí é uma parte do bairro de Santa Rosa que tem esse nome desde os
anos 1940. A questão é que somente em período mais recente esta denominação está se convertendo em
domínio público.
232
devemos apreendê-lo tanto em termos do espaço material que é constantemente construído
pelos mais diversos agentes, quanto a partir dos critérios intersubjetivos e simbólicos desses
agentes que nele vivem ou atuam e que o aceitam e legitimam como bairro.
A dinâmica das suas ruas, o caráter das suas construções, as atividades que abriga, o
tipo de sociabilidade que engendra, as representações que comporta, os processos de
identificação que estabelece, enfim, os mais diversos fatores combinados permitem afirmar a
existência social do Jardim Icaraí em um espaço próprio. Apesar das dificuldades
classificatórias dos meus interlocutores em relação às regiões fronteiriças do bairro, há certo
consenso que gira em torno da afirmação de que “todas as ruas daquela meiuca” fazem parte
do Jardim Icaraí, tendo a Av. Gov. Roberto Silveira como principal marco delimitador em
relação ao bairro vizinho de Icaraí e a Rua Santa Rosa quando se trata do bairro vizinho de
Santa Rosa8.
Sendo contíguo aos bairros de Icaraí e Santa Rosa, o Jardim Icaraí toma uma posição
na qual aspectos que o aproximem de Santa Rosa são renegados, enquanto aqueles que o
aproximam de Icaraí são evidenciados, além de serem enaltecidas algumas características que
Icaraí já teria deixado de possuir por conta da expansão em fase mais avançada, como o
trânsito menos intenso. Assim, a proximidade com o bairro de Icaraí é tida como positiva,
enquanto acontece o contrário quando se trata de Santa Rosa. O próprio nome “Jardim Icaraí”
já permite tornar esse aspecto mais evidente, ainda que o Jardim Icaraí não possa ser
considerado uma cópia ou uma negação nem de um nem de outro.
Nesse par de oposições, o bairro de Icaraí, que goza de uma tradicional valorização
junto à classe média alta, sempre é citado pelos moradores como um bairro mais nobre, mais
bem servido e símbolo de prosperidade e “agito”, sendo destacados em relação a ele tipos
específicos de locais como praia, teatro, parque, estádio e polo gastronômico. Já quando a
referência é Santa Rosa, elementos como “favelas” e escassez ou pior qualidade dos serviços
são mencionados.
Os moradores atribuem também às ruas o papel de referência de bons e maus lugares
ou de um emblema de um modo de vida com o qual se busca compatibilidade ou
afastamento.9 Longe de serem apenas vias de circulação, as “ruas são um ‘microcosmo real’
8
Essas ruas-limite sofrem questionamentos quanto ao seu pertencimento ao Jardim Icaraí, apesar de haver uma
argumentação no sentido de que um de seus lados pertença ao bairro. Outras denominações, também
imprecisas, são evocadas para tentar definir o que seria outra localidade que se prolonga em direção ao bairro
de Santa Rosa: o “Recanto Icaraí” ou o “Recanto Santa Rosa”.
9
As alusões dos meus interlocutores à rua da praia de Icaraí e à Rua Cel. Moreira César, ambas em Icaraí, eram
constantes e servem de referencial para o estilo de vida que é valorado positivamente pelos moradores do
Jardim Icaraí em relação ao bairro vizinho. A menção desses locais se dava principalmente quando havia o
233
de espaços e relações que tem a ver com repouso e movimento, com dentro e fora, com
intimidade e exposição e assim por diante. Que servem para referenciar bons e maus lugares”
(JACOBS, 2003 apud SANTOS & VOGUEL, 1981, p.24). No mesmo sentido, como assinala
Jacobs (2003), ruas são também “cenários de um complexo balé de calçada” onde a vida
social se apresenta o tempo todo em sua complexidade.
Isso demostra a importância de compreender como se dá a construção do espaço do
bairro na relação com a própria dinâmica da cidade compreendida em sentido mais amplo,
que engloba os demais bairros. A partir dessa constatação, podemos supor que há uma
hierarquia de bairros na cidade (VELHO, 1973), através da qual os atores sociais percebem e
situam a si e aos outros no espaço urbano e também social, levando em conta a ideia de que
um deslocamento espacial pode muitas vezes sugerir uma “melhora de vida” e um ganho de
prestígio, sendo o contrário também verdadeiro.
Dentre as características do Jardim Icaraí mais destacadas nas entrevistas estão a
grande oferta de serviços e a possibilidade de realizar as atividades cotidianas a pé, além da
preservação de certa tranquilidade. Interessante é notar como essas características tem relação
com o próprio processo de expansão do Jardim Icaraí, no qual esses moradores estão
inseridos. Isso porque uma vez que a expansão residencial se consolida, traz consigo a maior
oferta de serviços, pois desperta o interesse de mais investidores. E é isso que precisamente
facilita os deslocamentos a pé no dia-a-dia. Por outro lado, a garantia da tranquilidade com
número menor de prédios e trânsito menos intenso é ameaçada justamente pelo movimento de
expansão pelo qual o bairro passa e para o qual esses mesmos moradores contribuem.
O que percebemos é que os moradores explícita ou implicitamente relatam uma
melhora na qualidade de vida ou o desejo de permanecerem desfrutando de todas as
facilidades que o Jardim Icaraí oferece ou até mesmo mostram o desejo de atingir um status
superior. Porém, essa característica não deve ser pensada em termos socialmente
homogeneizadores, pois quando se analisam os bairros de origem desses moradores em suas
diferentes configurações socioculturais e também a própria construção da imagem do
indivíduo na relação com o espaço que habita, é possível perceber a variação dos juízos de
valor.
Pessoas oriundas de regiões da cidade que gozam de menor prestígio social são as que
mais relatam essa mudança de estilo de vida, se referindo a caminhadas pelo bairro ou até a
questionamento acerca das carências do Jardim Icaraí: “aqui é bem servido das necessidades básicas como
padaria e farmácia, mas não tem tantas lojas de presentes como na Moreira César, que é um shopping a céu
aberto” ou então “daqui eu só sairia se fosse pra morar de frente pro mar, porque você chega da janela e olha
dali e é muito bonito!”.
234
praia, bem como ao fato de frequentarem o polo gastronômico local que vem se expandindo e
se tornando referência na cidade. Nas palavras do antigo morador do Barreto: “aqui as pessoas
não bebem em bar, bebem em restaurante!” Por outro lado, aquelas pessoas que saem, por
exemplo, de Icaraí, região com status superior, muito frequentemente expressam o desejo de
retornar ao bairro de origem, apesar de relatarem gostar do Jardim Icaraí, ou mesmo
lamentam por não terem tido recursos para lá permanecerem, sentindo falta da “confusão”
com a qual estavam habituadas.
Na percepção da dinâmica local, é notável a vitalidade e diversidade que caracterizam
o Jardim Icaraí, principalmente quando se trata do trânsito intenso de pedestres em diferentes
horários e da multiplicação da oferta de serviços como lojas de roupas, salões de beleza,
farmácias, inclusive de manipulação, cursos de línguas estrangeiras, clínicas médicas, etc.10
Também os diferentes tipos de construção que variam em função da idade e do estado de
conservação, permitem analisar essa configuração do bairro à luz dos quatro fatores
ressaltados por Jacobs como indispensáveis para a geração da diversidade urbana, quais
sejam: a multiplicidade de usos primários garantindo que diferentes pessoas sejam capazes de
utilizar boa parte da infraestrutura em horários diferentes, a necessidade de quadras pequenas,
a mistura de edifícios de idades e estados de conservação variados e certa densidade, inclusive
residencial (JACOBS, 2003, p.165).
Mesmo atestando que o Jardim Icaraí atende relativamente bem a essas condições, a
excessiva valorização da terra do bairro pode vir a se configurar como um fator de risco para
tal diversidade, já que tem o poder de expulsar muitos ramos de atividades e
consequentemente muitas pessoas da região. Apesar disso, certa homogeneidade pode
contribuir para a criação de algumas identificações comuns entre os moradores, reforçando o
sentimento de pertença ao bairro e a identificação com ele. Isso não quer dizer, no entanto,
que seja criada aí uma identidade comum, visto que as trajetórias e mesmo as identificações
de cada ator social são muito diversas entre si e também em relação às dos outros.
A DISTINÇÃO DE UM GRUPO A PARTIR DOS IMÓVEIS RESIDENCIAIS
A proposta de incidir na análise das dinâmicas que organizam a vida socioespacial do
bairro Jardim Icaraí encontra seu complemento justamente no modo de vida específico que é
10
Possíveis carências que possam ser sentidas são facilmente suprimidas pela proximidade com outros
bairros e pelo fato de haver diversas linhas de ônibus cruzando as ruas, levando em direção a quase todas as
regiões de Niterói e até mesmo ao município vizinho do Rio de Janeiro. Além disso, as quadras são pequenas,
havendo muitas esquinas para dobrar, o que favorece os deslocamentos a pé e a possibilidade de cruzar com
conhecidos.
235
ofertado através dos novos empreendimentos do mercado imobiliário aos indivíduos que ali
desejam se estabelecer. Os “condomínios verticais” que surgem na Zona Sul da cidade fazem
com que os bairros dessa região, principalmente Icaraí, Jardim Icaraí e Santa Rosa liderem a
lista dos que mais recebem esses empreendimentos11.
Nesses lançamentos imobiliários são recorrentes certas características como a imagem
de modernidade e sofisticação pressuposta pela arquitetura dos prédios, por sua vez altamente
valorizada pelos moradores. Eles demonstram orgulho ao se referirem à fachada ou ao
“visual” do prédio: “olha que bonito, não é para ficar de peito estufado?” ou ainda, “o que me
chamou a atenção aqui foi o visual do prédio, tem um ‘tchan’, eles usam aqueles vidros
verdes...”. E novamente podem mesmo falar com orgulho de uma portaria climatizada na qual
se observa uma mesa redonda com um lustre por cima “igualzinho no projeto”.
Outros elementos que se repetem nesses projetos são a venda dos apartamentos na
planta, a presença de varanda e pelo menos uma vaga na garagem, bem como uma suíte. Mas
a principal característica que identifica esses lançamentos imobiliários certamente é a
existência de uma área de lazer comum com equipamentos dos mais variados tipos e que são
veiculados como um diferencial na qualidade de vida: salão de festas, espaço pizza, espaço
baby/brinquedoteca, salão de jogos, espaço gourmet, lan house, piscina, spa/hidromassagem,
sauna, sala de cinema, churrasqueira e espaço fitness. No equacionamento dos “atrativos do
condomínio”, o usual é uma diminuição do tamanho da planta dos apartamentos em favor da
possibilidade de utilização dessa área de lazer como uma extensão da própria casa.
Como consequência da remodelação residencial, da substituição de antigos moradores
por novos moradores com maior poder aquisitivo e da forte expansão do setor de serviços e de
comércio no bairro, a propaganda publicitária dos condomínios conjuga aspectos que se
referem a um estilo de vida ao mesmo tempo livre e isolado. Livre para usufruir das
comodidades do setor de serviços e comércio do bairro e isolado para poder permanecer nos
espaços privativos das áreas de lazer sem a necessidade do deslocamento e da exposição à
insegurança das ruas para atividades como ginástica, reunião com amigos, etc.
O processo de renovação urbana do Jardim Icaraí pode ser entendido então como uma
espécie de gentrification ou “enobrecimento” do local a partir da reabilitação do estoque
arquitetônico e também da presença de novas construções (LEITE, 2004)
11
12
. Entretanto,
A referência são os dados da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Niterói – ADEMI- Niterói
publicados no Jornal “O Globo” de 7 de novembro de 2010. Apenas para o ano de 2010 estava previsto o
lançamento de 24 empreendimentos em Icaraí, 16 no Jardim Icaraí e 7 em Santa Rosa.
12
As construções novas são maciçamente representadas pelos empreendimentos residenciais. Mas no que diz
respeito aos estabelecimentos comerciais e de serviços, há um duplo movimento que engloba construções
236
distancia-se da noção de “higienização social”, pressuposta na transformação de uma zona
popular degradada em região nobre e que por vezes é associada ao termo, já que este não é o
caso do Jardim Icaraí. O que ocorre no bairro parece estar mais próximo do que seria um
processo de especulação imobiliária, mas que ao mesmo tempo está orientado pela
perspectiva de um “enobrecimento” do local e que conta com o aval de estratégias políticas
que liberam a construção de prédios de maior porte no local e também de estratégias
empresariais que deslocam seu capital de investimento para a área.
Segundo Leite, “as práticas de gentrification apostam na singularidade e diferenciação
dos atos de consumo” (2004, p. 70). Por esse motivo argumento que existem sim marcas que
distinguem os novos moradores do Jardim Icaraí e estas estão associadas a um tipo de
consumo de bens – os apartamentos – e de estilo de vida, que permitem a apropriação
diferenciada do local. São duas dimensões complementares do consumo presentes nesse
contexto: a material ou econômica, que garante o acesso aos produtos e serviços disponíveis
no mercado em razão de possibilidades financeiras e a simbólica, que enquanto prática social
diferencia gostos e estilos de vida (id, p. 66).
As motivações em termos mercadológicos e simbólicos para a compra desses
apartamentos nessa área específica da cidade obedecem a uma lógica de ocupação do
território urbano que tende a uma “aproximação dos semelhantes”, no caso aqui analisado,
indivíduos das camadas médias.13 Isso contribui para a formação de “paisagens de poder” que
são as expressões visuais de valores e visões de mundo de uma camada social que busca
apropriar-se de certos espaços da cidade (ZUKIN, 2000 apud LEITE, 2004, p. 63).
Particularmente no que diz respeito à disposição de recursos financeiros que permitam
a compra do apartamento desejado, os indivíduos tem inúmeras maneiras de lidar com a
situação de se por em disputa no mercado e de pretender um estilo de vida. Partindo de uma
representação inicial do lugar e do tipo de prédio que desejam, vão literalmente “jogando com
a situação” e ajustando ininterruptamente o que encontram – e que está dado - ao que
almejam.
São muitos os elementos que justificam a decisão pela compra do apartamento e que
13
novas e a reabilitação de construções antigas para abrigar consultórios médicos, lojas de roupas, salões de
beleza, etc.
O termo “camadas médias” é utilizado aqui como sinônimo de “classe média” e se refere aos grupos que,
dentre outras coisas, detêm um nível de renda relativamente alto que lhes permite disputar no mercado
imobiliário a compra de imóveis nessa área valorizada da cidade. O preço dos apartamentos de dois quartos
no segundo semestre de 2010 oscilava em torno de R$250.000, 00 dependendo da rua em que se localizavam,
enquanto os de três quartos ultrapassavam os R$350.000,00, ambos vendidos ainda na planta. Após a entrega
das chaves ou ainda mesmo no período das obras o aumento dos preços se dá em poucos meses podendo
alcançar R$400.000,00 e R$600.000,00, respectivamente.
237
revelam como esta foi possível. Primeiro há a questão de representar um investimento seguro
e rentável e em outro plano, a planta do apartamento divide com as áreas de lazer comum a
preferência dos entrevistados, seja por conta do tamanho ou mesmo pela presença de algum
diferencial como o tamanho da cozinha ou a presença de varanda. A compra dos apartamentos
na planta tem ainda um papel fundamental como elemento de diferenciação e de expressão da
subjetividade do morador, que pode tanto propor mudanças no período das obras quanto
“deixar do jeito que quiser” após a entrega das chaves, já que os apartamentos são entregues
“sem nada, até sem lâmpada”.
No que diz respeito à demanda por áreas de lazer comum nos condomínios, podemos
sugerir que “a adesão aos conjuntos e condomínios, de preferência fechados e dotados de
áreas de lazer comunitário” (SANTOS & VOGUEL, 1981, p. 100) se insere na busca por
solucionar questões de preconceito vigente em relação às ruas. Isso devido a insegurança e
impessoalidade que aparentemente as caracterizam e que parecem ameaçar principalmente as
crianças e os jovens, que nas entrevistas são justamente os mais apontados como utilizadores
dos equipamentos de lazer dos prédios.14 Ter acesso a essas áreas significa do mesmo modo
ter o privilégio de desfrutar de uma qualidade de vida superior e também de exclusividade (id,
p.101).
Por outro lado, dentre as táticas empregadas pelos moradores para realizar a compra
do apartamento, podemos mencionar a moradia durante um período na casa dos pais para
poupar dinheiro, a opção por um apartamento novo no Jardim Icaraí em detrimento de um
antigo em Icaraí ou a venda de um imóvel para possibilitar a aquisição de outro.
Certo é, no entanto, que os financiamentos de parte ou do total do preço do imóvel
representam um dos aspectos da dinâmica do mercado e dessas táticas dos agentes que
merecem atenção especial. Isso tendo em vista que todos os entrevistados obtiveram acesso ao
crédito15 para ter a possibilidade de viver no charme privilegiado de um bairro e de um
condomínio, o que é indicativo das táticas de grupos que valorizam altamente o status.
Por fim, podemos lançar mão dos argumentos de Michel de Certeau e de Pierre Mayol
(2009) para pensar em como o sujeito é capaz de impor à ordem externa, seja ela a da cidade
e do bairro ou a dos condomínios fechados e da casa, a sua lei de consumo do espaço. Jacobs
(2003) já chamava atenção para essa percepção, visto que fala sempre nessa refabricação dos
14
15
Os adultos, principalmente os que trabalham fora de casa, utilizam bem menos essas áreas e quando utilizam
acabam por se restringir aos equipamentos que geralmente estão presentes nos prédios mais antigos, como
piscina, sauna e salão de festas. Em relação à impessoalidade das ruas, essa parece se repetir no contexto dos
espaços privativos, já que a relação entre os vizinhos é geralmente distanciada.
Apenas uma das entrevistadas foi capaz de fazer o pagamento à vista do imóvel, recorrendo, entretanto, ao
regateio junto ao corretor de imóveis e à ajuda da mãe (que mora no imóvel) para a quitação do pagamento .
238
espaços para o uso próprio do sujeito nos seus sistemas relacionais.
As pessoas no seu cotidiano empreendem seleções de todo o tipo, repletas de
significado simbólico, além de “contra-usos” do espaço normatizado. Um exemplo bastante
ilustrativo desse último ponto é que um dos condomínios visitados que contava com uma
midiateca/lan house na sua área de lazer comum teve seu uso transformado em sala da
síndica, pois como declara a moradora “aqui todo mundo tem seu computador, então não
tinha necessidade”.
MANEIRAS DE MORAR NA CIDADE: QUEM MORA E COMO MORA?
É importante atentar para a transferência do foco de análise proposta por Michel de
Certeau (2011) para pensar o deslocamento dos lugares acabados para as operações práticas
dos usuários, onde “o que é” torna-se “o que se faz com”. Assim é que é possível para o
homem comum nas suas práticas cotidianas se valer de táticas e astúcias sutis, em oposição às
estratégias que implicam a elaboração de planos, para ressignificar aquilo que está posto. “Ele
cria na cidade planejada uma cidade ‘metafórica’ ou em deslocamento (id, p. 177).
No caso analisado pela pesquisa, os moradores do Jardim Icaraí nas suas decisões
acerca da compra de um imóvel e das possibilidades de definição e significação do espaço do
bairro, estão imbuídos de uma atividade criadora prática que põe em evidência as “maneiras
de fazer” e mesmo as maneiras de se colocar como pertencente a um grupo de status ou de
classe social.
Buscando ressaltar exatamente essas operações e usos individuais variáveis desses
usuários práticos do espaço, bem como a questão do contexto e das circunstâncias em que são
exercidas essas práticas é que podemos pensar nos critérios classificatórios que incidem sobre
esse grupo. De maneira imediata o que se quer evitar é recair em uma demarcação talvez um
pouco rígida e homogênea de classes sociais para a caracterização desse grupo, o que poderia
estar implícito no conceito de habitus de Bourdieu que pressupõe em última instância que
gostos são fortemente determinados por habitus de classe16.
Ao conceber também a formação de classes cujos integrantes partilham de uma
trajetória média comum (OLIVEIRA, 2008, p. 4), a abordagem de Bourdieu pode apontar
certo grau de repetitividade ou de previsibilidade estatística a partir da noção de que o habitus
é “uma potencialidade que tende a assegurar as condições de sua própria realização”
16
Apesar da definição do habitus como sendo ao mesmo tempo uma “ação determinada e espontânea”
(BOURDIEU, 2005, p.48), a sua concepção como um conceito indissociável de um processo de
incorporação, seja mais ou menos aprofundada para cada um dos diferentes habitus, acaba por fazer com que
as práticas recaiam mais em uma determinação por estruturas coletivas do que por motivações individuais.
239
(BOURDIEU, 2005, p.55), ainda que se trate de uma tendência de ação e não de uma
determinação.
Por outro lado, há que se considerar a ideia primorosa de Bourdieu de que os agentes
atuam em diferentes esferas (os campos) e que se põem em disputa nelas, sendo dotados de
recursos diferentes e em diferentes graus (os diferentes tipos de capital). Não há, portanto,
uma igualdade de oportunidades entre os diversos agentes e é claro que isso se reflete em uma
maior ou menor margem de manobra, que pode se apresentar ainda sob a forma de acesso ou
restrição à mobilidade social e residencial, por exemplo, havendo aí até mesmo uma relação
de correspondência entre uma e outra, como ressaltado pelo próprio Bourdieu (1997).
Podemos concluir, portanto, que o conceito de classe é muito mais operatório do que
propriamente revelador da maneira como se organizam os diversos grupos sociais.17 Isso
porque a própria classe é heterogênea, assim como são heterogêneos os percursos e os
pertencimentos de cada agente que, como afirma Certeau, seleciona o tempo todo dentro de
uma ordem de possibilidades (2011, p.165). São por meio das pequenas táticas que os
indivíduos se situam em um grupo, adequam seus recursos econômicos a um gosto ou estilo e
se apropriam dos lugares de diferentes maneiras.
Assim como assumimos que os indivíduos são o produto de multideterminações e que
por isso estão inseridos em um processo que envolve múltiplos pertencimentos e
identificações, podemos avaliar como isso se reflete nos sistemas classificatórios em
sociedade, visto que os indivíduos se organizam em grupos. O que se tem em vista é a ideia
de que esses indivíduos partilham entre si alguns pontos em comum que permitem em última
instância essa própria organização de grupo, mas sempre guardando uma margem de
particularidade que tem a ver com aspectos da sua trajetória, que é única.
A opção de morar em um local como o Jardim Icaraí tem como fator comum entre os
moradores a questão de uma adequação a um estilo de vida simbolicamente valorizado
positivamente. Está implícita aí a ideia de que há práticas, gostos e consumos que são mais
legítimos do que outros e aos quais se deve estar adequado, sendo esta crença proveniente da
internalização de certos valores por meio do processo de socialização ao qual os indivíduos
são submetidos (LAHIRE, 2006). A questão central de Lahire é que a cultura tem uma
importante função social em sociedades com divisão de classes e que é a partir da
configuração de processos culturalmente diferenciadores que emergem “elites” capazes de
17
O argumento de que o conceito de classe é mais operatório não quer dizer que se devem desconsiderar
aspectos do caso pesquisado que tenham a ver com a dimensão do mercado e até mesmo da renda,
comumente utilizados nas análises sociológicas e econômicas que tratam do assunto.
240
exercer dominação simbólica. E esse mesmo mecanismo parece figurar quando se trata de
pensar no papel exercido pelo local de moradia e no sentido que este pode adquirir, pois pode
tanto trazer prestígio ao seu morador quanto estigmatizá-lo.
Em suma, Lahire (2006) compreende que o processo de socialização naturaliza a
representação de “tipos” generalizadores ou aglutinadores, mas lembra que esses perfis não
são completamente incorporados pelos indivíduos heterogêneos. Se o que cria um ponto de
encontro entre os moradores do Jardim Icaraí é o compartilhamento de um mesmo endereço
de bairro, as motivações mais imediatas para a compra de um apartamento nesse local podem
ser variadas, dentre as quais se encontrou na pesquisa: proximidade ao trabalho, acesso às
“facilidades” da vida urbana, proximidade de familiares e amigos, adequação ao preço que se
podia pagar, investimento, custo-benefício (compra de um apartamento maior com preço
acessível), tranquilidade e melhor qualidade de vida.
Se para alguns dos moradores residir em um endereço no Jardim Icaraí significa
certamente subir na escala social, para outros, antigos residentes de bairros mais nobres como
Icaraí e Ingá, significa ter que descer um pouco nessa escala, mas sempre utilizando de
pequenas astúcias para não permanecer tão longe do almejado. Antes se trata de pesar os
benefícios e as desvantagens em relação à qualidade de vida e ao status que são oferecidos
pelo bairro e também pelo tipo de prédio no qual se vai morar. Talvez pareça mais vantajoso
nessas questões deixar de morar em Icaraí, por exemplo, para morar em um prédio novo e
com área de lazer diversificada no Jardim Icaraí ou conseguir comprar um apartamento de três
quartos no Jardim Icaraí que no Ingá só poderia ser de dois quartos devido aos preços
praticados na região.
Outro ponto de interesse e que permite questionar uma possível homogeneidade que
pudesse ser atribuída ao grupo desses moradores do Jardim Icaraí é a sua origem e as
diferentes configurações socioculturais que daí decorrem. De maneira alguma há como
englobar a todos no que seria ou a classe média tradicional ou apenas a nova classe média em
ascensão. Diferentes origens dentro da cidade e mesmo quanto ao local de nascimento dessas
pessoas fazem com que os valores que guardam quanto à estética e ao estilo de vida do local
possam variar consideravelmente. E isso mesmo que compartilhem um endereço comum.
Pode-se perceber então como está presente nesses fragmentos o entendimento de que
há elementos amplamente valorizados pelos praticantes daquele espaço, mas que também
cada um deles tem a sua própria forma de se relacionar e estabelecer uma significação com
esse espaço. Ou seja, a relação espaço-sociedade não se dá de forma homogênea, comporta
sutilezas que contribuem para a própria configuração desse grupo e do seu local de residência.
241
A esfera do consumo, e aí tanto o consumo de bens quanto de lugares em sua dimensão
material e principalmente simbólica, constitui campo fértil para a expressão de subjetividades
e evidencia a diversidade que se pode encontrar no seio de um mesmo grupo social e não
somente entre grupos sociais distintos.
Fica evidente também que são diferentes as esferas nas quais os sistemas
classificatórios são construídos e a análise weberiana, que compreende o espaço social a partir
de três esferas de ação, a econômica, a social e a política18, lança pistas interessantes para a
análise (WEBER, 1966). Levando em conta que “a estratificação por status caminha de mãos
dadas com uma monopolização de bens ou oportunidades materiais e ideais” (id, p.76) por
parte daqueles que desejam pertencer ao círculo social e compartilhar de suas convenções,
percebemos na pesquisa que se há uma correspondência entre um estilo de vida e um grupo
social, há também a conformação de uma situação de classe desse grupo em termos de uma
disputa no mercado por bens altamente valorizados, os apartamentos. Em suma, as distinções
pessoais de maneira alguma entram em contradição com as pretensões de aquisição
puramente econômica.
CONCLUSÕES
Este trabalho buscou responder à pergunta sobre quais são os aspectos motivadores da
decisão de morar em determinada área da cidade e não em outra. E mais ainda, do por que
morar nessa área em um tipo de prédio específico. Há por trás dessas questões um mesmo
plano de fundo que diz respeito à dimensão subjetiva da vida urbana e do ambiente
construído. É notadamente essa dimensão que perpassa a atividade prática dos atores sociais
em interação cotidiana e que merece a atenção dos pesquisadores do meio urbano.
Georg Simmel (1979) já ressaltava a importância de se perceber a cidade como um
espaço de experiências sensíveis, que se fazem sentir nos indivíduos por meio de estímulos
tanto físicos quanto psicológicos que são, nesse ambiente, muito mais intensos e até mesmo
perturbadores. A cidade como um espaço múltiplo é, para Simmel, geradora de formas de
sociabilidade e de estilos de vida que se redefinem permanentemente nas interações da vida
cotidiana, visto que por ser esse um ambiente de grande heterogeneidade são muito mais
amplas as possibilidades de escolha de que dispõem os indivíduos que aí vivem.
Assim é que para Simmel a sociedade é interação social e isso no meio urbano
significa exatamente indivíduos que integram uma rede bastante heterogênea de relações e
18
A esfera política, assentada na noção de poder, não faz parte da análise empreendida nesse trabalho.
242
por isso são capazes de empreender inúmeras táticas para se mover nesse espaço. Mas a ideia
principal que deve ser evidenciada é a concepção do espaço urbano como campo da
experiência sentida e vivida e em permanente mutação e que, desse modo, é capaz de adquirir
e transmitir significados e sentidos para os seus praticantes. Decorrem inclusive da
inobservância dessa dimensão subjetiva muitos equívocos recorrentes entre os planejadores
urbanos que, por muitas vezes abdicarem de uma experiência sensível da cidade, não
alcançam os processos próprios da cidade vivida e fruto da interação social dos mais diversos
atores sociais, apesar de serem eles mesmos integrantes dessa rede de agentes.
Muitas vezes então, escapam aos planejadores e às suas categorias globalizantes a
complexidade do meio urbano e as sutilezas dos processos que aí se desenrolam, como, por
exemplo, a dinâmica de um bairro – e aí o que o define e que aspectos promovem a
identificação com esse espaço? Em um esforço de compreensão do grupo estudado nessa
pesquisa e da sua organização socioespacial, fizemos referência ao longo do texto aos
mecanismos ininterruptos de ressignificação tanto do espaço habitado pelos moradores do
Jardim Icaraí quanto da apresentação de si que estes fazem perante os outros, valendo
destacar nesse ponto a relação de proximidade ou de afastamento que é feita com o estilo de
vida dos bairros vizinhos ao Jardim Icaraí.
Essas são questões que esbarram essencialmente em uma discussão do espaço como
espaço construído na prática cotidiana e também em uma discussão acerca dos mecanismos
de classificação social pautadas na diferenciação e no reconhecimento, que é a sua
consequência mais imediata. E isso principalmente quando se trata de uma diferenciação
prestigiosa, relacionada a uma maneira de morar na cidade, de onde se ressalta o estilo de
vida do bairro e também aquele dos prédios, com a exclusividade das suas áreas de lazer e a
beleza de suas fachadas.
Nesse sentido, por diferenciação entenda-se tanto uma diferenciação via mercado, por
meio da qual preços selecionam potenciais compradores, quanto uma diferenciação por status,
na qual prevalece a lógica do quem mora, onde mora e principalmente como mora. O que se
tem em vista aqui é, portanto, o estabelecimento de uma correlação socioespacial, através da
qual podemos afirmar que um espaço físico, seja o do bairro ou o dos prédios, adquire sentido
para seus moradores. Evidente que esse sentido comporta uma dimensão coletiva, mas da
mesma forma também uma dimensão mais particularizada que diz respeito à trajetória e
anseios de cada indivíduo.
E ainda esse é um sentido que se manifesta em diferentes esferas, podendo ser
inicialmente apontadas a estética, a social e a econômica. Na inter-relação entre essas esferas
243
é que é construída a configuração desse grupo, que por meio de critérios simbólicos e
materiais ganha consistência como grupo mesmo, e aí se quer dizer um grupo identificável
coletivamente e também formador de uma coletividade. No entanto, essa delimitação de
grupo não é restritiva, ou seja, comporta uma mobilidade intrínseca que lhe fornece a sua
dinâmica. Assim, o que é permanente é uma constante ultrapassagem de fronteiras, físicas e
sociais.
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de 2011.
246
O “PENSAR-DUPLO” NA URBANIDADE CUBANA
Heiberle Hirsgberg Horácio1
RESUMO
Este trabalho tem como lócus privilegiado de análise a “urbanidade” de Havana (capital e a
maior cidade de Cuba, local de destino dos indivíduos do interior da Ilha que migram a
procura de melhores condições econômicas, marcada pela combinação de religiões afro e
cristãs no cotidiano popular, pela efervescência turística, pelas vicissitudes consequentes da
prostituição e do tráfico de drogas, que seriam “toleradas” sem espanto, como em qualquer
cidade, se não fosse pela estrutura do regime que foi estabelecido com enunciados de não
aceitação dessas práticas, relacionando-as ao passado republicano pré-revolucionário). Nesta
análise, busca-se uma alternativa para apreciações que observam a sociedade cubana,
existente sob um regime político de governo centralizado, apenas em termos antinômicos –
favoráveis ao governo ou não favoráveis. Nela, intenta-se a perspectiva do “pensar – duplo”
no exame de comportamentos urbanos “habaneros”. Essa atividade vê no “pensar-duplo”
(imperativo de se “existir com duas imagens de si mesmo”, sem necessariamente
corresponder a uma contradição angustiante, em alguns casos uma no espaço privado e outra
no espaço público) a possibilidade de apreciação dos comportamentos que convivem com um
discurso governamental que explora a cultura cívica para a sua manutenção, por um lado. E
por outro, com um imperativo de se responder a situações de exceção e de necessidades de
ajustamento sociais, como a falta de moradia, a impossibilidade da mudança de domicílio e a
dualidade monetária, que tem acarretado desigualdades num regime edificado sob o discurso
de justiça social e equidade.
Palavras-chaves: Cuba, urbanidade, pensar-duplo, civismo.
INTRODUÇÃO
Este texto é meramente um ensaio, que tem como lócus privilegiado de reflexão e
análise o “pensar-duplo” na “urbanidade” de Havana2.
Este empreendimento qualifica-se como ensaio porque optou apenas por indicar
apontamentos que permitam investigações mais sistemáticas, uma vez que como ensaio ele
1
Doutorando PPCIR na área de Ciências Sociais da Religião – Universidade Federal de Juiz de Fora –
[email protected]
2
Todas as traduções desse trabalho foram realizadas por nós. Devido a natureza deste texto, e as exigências de
um texto acadêmico, mesmo nos moldes de um ensaio, ao longo dele estão inseridas várias notas explicativas.
Mesmo sabendo dos riscos de uma leitura cansativa, optamos pelos riscos às lacunas de informação.
247
não cumpre perfeitamente esta tarefa. Além disso, os autores nele utilizados foram encarados
como inspirações devido aos seus valores hermenêuticos, e não apreciados como aportes
teórico-metodológico no sentido stricto. Bem como as fontes aqui empregadas, que foram
utilizadas com o intuito prioritário de ilustrar as premissas das perspectivas assumidas no
trabalho.
No entanto, mesmo que consideremos que tal empresa seria melhor conduzida se feita
nos moldes de um trabalho acadêmico, a relevância dela se dá pela urgência do momento,
haja vista as mudanças significativas que ocorrem na sociedade cubana, sobretudo em
Havana.
Capital e a maior cidade de Cuba, local de destino dos indivíduos do interior da Ilha
que migram a procura de melhores condições econômicas, marcada pela combinação de
religiões afro e cristãs no cotidiano popular, pela efervescência turística, pelas vicissitudes
consequentes da prostituição e do tráfico de drogas, que seriam “toleradas” sem espanto,
como em muitas cidades latino-americanas, se não fosse pela estrutura do regime. Já que ele
foi estabelecido com enunciados de não aceitação dessas práticas, relacionando-as ao passado
republicano pré-revolucionário.
Assim sendo, diante dessa dinâmica mencionada, faz-se mister no mínimo reflexões,
mesmo no limite de um ensaio, sobre a mencionada peculiar cidade e seus componentes.
Importante demarcarmos que se busca também uma alternativa para apreciações que
observam a sociedade cubana, existente sob um regime político de governo centralizado,
apenas em termos antinômicos – favoráveis ao governo ou não favoráveis.
Neste empreendimento, como anunciado no título, intenta-se a perspectiva da reflexão
sobre o “pensar – duplo” no exame de comportamentos urbanos “habaneros”. Onde, pelo
“pensar-duplo”, observa-se a possibilidade de apreciação dos comportamentos que convivem
com um discurso governamental que explora a cultura cívica para a sua manutenção, por um
lado. E por outro, com um imperativo de se responder a situações de exceção e de
necessidades de ajustamento sociais, como a falta de moradia, a impossibilidade da mudança
de domicílio e a dualidade monetária, que tem acarretado desigualdades num regime edificado
sobre o discurso de justiça social e equidade.
A PERSPECTIVA DO “PENSAR-DUPLO”
A possibilidade de utilização da perspectiva do “pensar-duplo” como uma espécie de
categoria de análise para reflexões sobre o caso cubano, foi aberta, especialmente, após a
leitura dos escritos do historiador francês Pierre Laborie, no artigo Os franceses do pensar -
248
duplo. Ao ponto de vista aberto por esse artigo3, adicionamos a tese do complexo duplo de
valores em Cuba defendida pela pesquisadora da FLACSO, a professora Velia Cecilia Bobes.
Sobre o “conceito” desenvolvido por Laborie, vale a pena lembrar que o mesmo o
utiliza para analisar a difícil dinâmica do “verdadeiro sentido das escolhas coletivas” na
França de Vichy e da Ocupação4. Laborie busca uma alternativa a visão antinômica colocada
em vários estudos sobre esse período. Para ele,
as alternativas simples entre petanismo e gaullismo, resistência e vichismo ou
resistência e colaboração fornecem apenas imagens redutoras da vivência dos
contemporâneos. Sabe-se assim que uma maioria de franceses chorou a derrota sem
deixar desejar o armistício, que foram capazes de aplaudir fervorosamente o
marechal Pétain enquanto rejeitavam o regime de Vichy, que conseguiram ser
irredutivelmente hostis ao ocupante sem por isso se tornarem resistentes ou ainda
que alguns foram capazes de contribuir na salvação dos judeus enquanto mantinham
uma lealdade ao chefe de Estado. (LABORIE, 2010, p. 38).
Deste modo, Laborie vê a ambivalência como ocupante de um lugar “preponderante
nas atitudes dos franceses sob Vichy”, sendo ela, “um dos espelhos menos deformantes para
dar conta da plasticidade das situações attentistes e de suas aparentes contradições”
(LABORIE, 2010, p. 38).
Sobre o “duplo-pensar”, a definição dele diz respeito ao imperativo de se “existir com
duas imagens de si mesmo”, sem necessariamente corresponder a uma contradição
angustiante. Formando, uma espécie de “cultura do duplo”, onde no caso supracitado:
A imagem dos franceses trazendo em si mesmos sentimentos opostos, mais
partilhados entre dois impulsos contraditórios do que separados em campos hostis,
não pode ser reduzida unicamente à expressão da duplicidade. Ela remete à ideia do
homem duplo, daquele que é um e outro ao mesmo tempo, mais pelo peso da
necessidade exterior do que por cálculo cínico ou interesse (LABORIE, 2010, p. 40).
Desse modo, é por essa “cultura do duplo” (onde “sem pertencer à consciência clara, e
sem tampouco ser vivida como uma contradição dilacerante, mais como uma forma de
aculturação, a ideia do duplo ritma as formas do pensamento ordinário (...) (LABORIE, 2010,
3
Embora sedutora a associação do caso cubano e do “pensar-duplo” ao termo “duplipensar” desenvolvido na
ficção criada pelo autor George Orwell no livro 1984. A diferença fundamental entre os dois conceitos está
relacionada ao fato de que na obra de Orwell o duplipensar é uma espécie de mecanismo produzido pelo
“regime-partido” para “controlar, manipular” os indivíduos. Já o “pensar-duplo” do autor francês por nós
adotado, está mais próximo de uma solução criada pelos próprios indivíduos para dar conta das situações
extremas impostas por necessidades exteriores. Sobre o conceito de Orwell, ele pode ser definido como:
“Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e
aceitá-las ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas lembranças devem ser alteradas; portanto
sabe que está aplicando um truque na realidade: mas pelo exercício do duplipensar ele se convence também de
que a realidade não está sendo violada. O processo tem de ser consciente, mas também deve ser inconsciente, ou
provocaria uma sensação de falsidade e, portanto, de culpa”. (ORWELL, 2005, p. 206).
4
Regime de Vichy foi como ficou conhecido o regime instaurado em parte da França entre 1940 a 1944, após
um acordo com os alemães que tinham ocupado uma parcela da França. Considerado por alguns estudiosos
como um governo fantoche dos alemães, liderado por Pétain. Para informações mais precisas consultar
bibliografia especializada.
249
p. 40) que nos enveredamos para pensar o caso cubano, juntamente com a tese de Cecilia
Bobes, que servirá ora como fundamento da proposta do “pensar-duplo”, ora como fonte para
pensarmos esse conceito.
VELIA CECILIA BOBES E O COMPLEXO DUPLO DE VALORES EM CUBA
Está nossa análise parte de uma perspectiva que observa que existe em Cuba um
regime que implementou uma narrativa institucional que explora uma cultura cívica para a sua
manutenção. Este regime observa o socialismo5 como única opção econômica possível, que
articula seu discurso em busca de “consenso e/ou consentimento” em torno do imaginário
nacionalista (RAMONET, 2006) e da pátria revolucionária em construção, bem como a ideia
da ameaça de agressão externa (fundamentalmente norte-americana)6 (BURCHARDT, 1998)
e na legitimação através de uma noção de justiça social definida em termos de igualdade
econômica7 (BOBES, 2010, p. 520). Para a pesquisadora Velia Cecília Bobes:
além dos mecanismos de repressão e controle, a permanência e imutabilidade do
regime cubano tem descansado e repousa na efetividade de seus mecanismos de
legitimação, que em sua dimensão simbólica tem contribuído para legitimar uma
ordem política autoritária, centralizada, e verticalista que tem conduzido a
opacidade, quando não a oclusão, da autonomia social (BOBES, 2010, p. 521).
Em Cuba, na implementação dessa estrutura discursivo-simbólica levada a cabo pelo
governo, o mesmo lança mão de um sistema educacional público centralizado, praticamente
exclusivo, com programas e planos bem definidos e gerenciados. Lança mão também de uma
estrutura midiática uniforme, porque controlada, e igualmente centralizada.
5
Em uma etnográfica do ritual político que desenvolvemos no 26 de julho (2011) cubano em Ciego de Ávila,
essas foram as palavras ditas ao final do discurso de José Ramón Machado Ventura segundo secretário do
comitê central do Partido e primeiro vice-presidente dos conselhos de estado e ministros: “Não variará jamais
nossa decisão de defender e construir o socialismo”. Para Hans-Jürgen Burchardt: “No princípio, o socialismo
cubano mescla a pronunciada pretensão social do Estado, com uma doutrina estatal leninista. Esta mescla se
legitima como o imperativo de defender a soberania nacional. Por conseguinte, ‘unidade social’ e ‘independência
nacional’ podem resumir-se com o conceito geral de ‘unidade nacional’. Considero que este é o fator de
estabilidade mais importante e terceiro elemento estrutural endógeno do processo de reformas. Daí que
concluímos que segundo o regime cubano atual deve entender-se muito mais como ‘nacionalista radial do que
como ‘socialista ortodoxo’. (BURCHARDT, 1998, p. 39). Concordamos com o posicionamento do estudioso
alemão, pelo menos no que diz respeito ao discurso estatal que vem sendo enfatizado pelo PCC.
6
“Uns crêem que a agressão dos E.U.A. estabiliza o sistema político de Cuba apoiado sobre um nacionalismo
generalizado. Para outros existe o convencimento de que justamente a pressão norte-americana impede uma
abertura ampla e, ademais, exacerba um conservadorismo estrutural inimigo das reformas: ‘Não pode se esperar
uma distensão na política interna de uma sociedade submetida a tensões extremas’. Então, se analisam deste
ponto de vista os efeitos concretos da política norte-americana diante Cuba, há que considerar o bloqueio norteamericano como um segundo elemento estrutural exógeno de mudança.” (BURCHARDT, 1998, p. 28).
7
Para Velia Cecilia Bobes, “o modelo de cidadania vigente em Cuba desde 1959, se erige a partir de um ideal de
justiça social definido em termos de igualdade econômica (excluindo as dimensões política e civil), que induz
a um modelo de governo autoritário (...) O trabalho de Bobes, “parte de uma compreensão de justiça social
que não se reduz aos critérios de distribuição de bens e recursos, sim que deve incluir a equidade e a
pluralidade de interesses e preferências sociais.” (BOBES, 2010, p. 520).
250
Além disso, o regime se beneficia de um conjunto de liturgias e ritos público-político
exclusivos do Estado que reforçam o discurso igualitarista, conforme supramencionamos,
bem como da existência de “organizações sociais estatais”. Onde, ambas instituições
mencionadas, com “objetivos semelhantes contribuem a uma socialização homogênea que
favorece o desenvolvimento de aspirações e expectativas similares em uma mesma geração.”
(BOBES, 2000, p. 194).
No entanto, de acordo com as premissas por nós defendidas no início desse trabalho,
mesmo a permanência desses mecanismos e a existência de valores coletivistas, não implica
na geração de um consenso uníssono. Somos do parecer que “confirma a ideia de que na
sociedade cubana tem existido sempre um repertório simbólico que contém valores de
diversas naturezas, e que a quimera de homogeneizá-lo e impor um só de seus complexos no
máximo alcançou alguns espaços e em um período breve” (BOBES, 2000, p. 233).
Atualmente, para Velia Cecilia Bobes, enquanto nos âmbitos institucionais o
“complexo nacionalista revolucionário é ativo de maneira coativa. Nos espaços informais não
institucionalizados existe uma ‘sociabilidade submersa cujas práticas atualizam o complexo
individualista liberal”. (BOBES, 2000, p. 12) Deste modo, Velia Cecilia Bobes observa então
a existência de Cuba de um “duplo” relacionado ao sistema de valores, sendo um coletivista e
outro liberal.
O “DUPLO” NO DUPLO-ESPAÇO (HABANERO)
Evidentemente que precisamos delimitar os “lugares” do “duplo-pensar” de Laborie
com o duplo conjunto de valores de Bobes, evitando aproximações indevidas.
Haja vista que em Laborie o duplo sistema coabita as mentalidades e em vários
momentos não é nem visto como duplo (ou visto apenas como duplo pelo observador
externo), enquanto em Bobes, a autora aponta uma existência na sociedade de um duplo
complexo de valores, onde cada qual é acionado de acordo com as circunstâncias, embora ela
também observe em vários momentos da sua obra uma noção de “duplo valores” que se
aproxima muito do “duplo-pensar” do autor francês. Assim sendo, se utilizamos ambas
noções aqui, é porque consideramos que os dois processos podem ocorrer no cotidiano
cubano8, notadamente aqui o “habanero”.
8
Para acrescentar mais uma referência de reflexão, vale mencionar Leach e o caso dos Kachim e dos Shan na
Alta Birmânia, onde dependendo do espaço social que operam e do tipo de ação que executam os indivíduos
usam o sistema ético Kachim ou Shan, comportamento que pode ser evidente para um observador externo,
“porém para o ator esta mudança pode ser apenas notável. Ao fazer-se sofisticado, o indivíduo somente começa a
incorporar valores Shan a atos rituais que antes só tinham uma significação Kachim (BOBES, 2000, p. 159).
251
Referimo-nos especialmente a Havana porque consideramos que a sua dinâmica tornaa um espaço privilegiado para a observação das transformações ocorridas em Cuba.
Houve na sociedade cubana do Período Especial até agora mudanças importantes,
oriundas, entre outras causas, de uma migração significativa do campo para a cidade,
sobretudo para a grande Havana - proporcionalmente muito maior que outros movimentos
migratórios de períodos anteriores. Embora sempre tenha existido na Ilha, após a Revolução,
uma tendência de se migrar para a região de Havana. Pois,
após a Revolução ocorreu uma grande migração do Oriente da Ilha para Havana –
lembramos que cerca da metade da população do país se concentra, até hoje, no
entorno da capital -, o que aprofundou mais a diferença entre as duas regiões9”
(VILLAÇA, 2010, p. 290).
Segundo Hans-Jürgen Burchardt, nos idos do Período Especial as proporções que
antes eram “relativamente equilibradas entre cidade e campo cedem a disparidades cada vez
maiores” (BURCHARDT, 1998). Havana, por exemplo, se torna cada vez mais atrativa para
as populações rurais que procuram melhores níveis de vida.
Vale lembrar que o abastecimento de alimentos também é maior na cidade, segundo
pesquisas do final da década anterior, a “concentração nas cidades da oferta de viveres nos
mercados agropecuários é de 80%; e 50% corresponde a cidade de Havana” (BURCHARDT,
1998, p. 73). Para Hans-Jürgen Burchardt:
Uma massa importante dos campesinos da Ilha, independente das condições
surgidas depois de 1959, compartilha o destino de muitos de seus análogos no
‘Terceiro Mundo’. Mediante baixos preços estatais para seus produtos, eles
subvencionam indiretamente o abastecimento de viveres da população urbana, sem
poder melhorar significativamente seus próprios padrões de vida. Nas cidades, pelo
contrário, existem mais campos de atividades proporcionadoras de ingressos, sem
olvidar que em uma grande maioria abarcam trabalhos ilegais. (BURCHARDT,
1998, p. 35).
Sobre a questão da migração e as consequências que ela pode trazer para a cidade, um
relato, embora de uma fonte autobiográfico-literária10, é no mínimo ilustrativo. Como é o caso
9
A autora se refere as regiões Oeste e Leste de Cuba. Segundo ela, “costumava-se dizer que a identidade cubana
era comparável a uma árvore de dois ramos, um enraizado na parte Oeste da Ilha (Havana) e outro, na região
leste (Santiago de Cuba). O Oeste, ou Ocidente de Cuba sempre foi mais cosmopolita, mais desenvolvido e mais
diretamente influenciado pela presença espanhola e pelos Estados Unidos que o Oriente, onde se percebe mais a
presença de traços culturais africanos e o legado da imigração haitiana que ocorreu no final do século XIX.
(VILLAÇA, 2010, p. 290).
10
A menção da fonte como autobiográfico-literária se dá porque essa passagem foi retirada de uma obra que é
considerada como a narrativa de uma vida particular, mas de um modo literário. GUTIÉRREZ, Pedro Juan.
Trilogia suja de Havana. A despeito da utilização de fontes literárias, como aponta o historiador José D’
Assunção Barros “o texto que se está tomando naquele momento como fonte é já aquilo que deve ser analisado,
enquanto discurso de época a ser decifrado, a ser compreendido, a ser questionado. (p. 135). Para compreender a
literatura como fonte de pesquisa historiográfica, Daniel Arão Reis em Stalin, Stalinismo e Sociedade (In: A
construção social dos regimes autoritários.) sugere SELIGMANN-SILVA, M. História, memória e literatura. O
testemunho na era das catástrofes. Campinas. Unicamp. 2003.
252
de uma mulher, comportamento comum na sociedade cubana conforme nossas leituras e
pesquisas, que mudou para Havana quando:
Aos dezesseis anos viu que o café é trabalho para gente grossa e morta de fome.
Uma tarde tomou seu banho, vestiu roupa limpa e sem se despedir de ninguém foi
para estrada e chegou a Havana. Assim sem ter a menor ideia do que poderia ser
Havana. Ouvia dizer que em Havana, sim, era possível viver bem porque havia mais
dinheiro (GUTIÉRREZ, 2008, p. 210).
Interessante do resultado dessa situação é que essa mesma mulher não possuía moradia
e superlotou, como é costume na cidade, um apartamento de um conhecido, em um prédio por
sua vez também superlotado e com apenas um banheiro para todos os moradores. A pessoa,
nesse caso mencionado, acabou trabalhando como prostituta.
Pode-se mencionar ainda o caso do indivíduo que saiu do interior de Cuba e foi para
Havana morar de favor com uma prostituta em um prédio superlotado. Como em vários
outros casos por nós observados, nesse também o indivíduo acabou preso. Mas, a
peculiaridade dessa prisão foi a causa: vendia no mercado negro fígado humano como fígado
de porco, pois anunciara as pessoas que era açougueiro. (GUTIÉRREZ, 2008, p. 319).
Em fim, é constatável que as diferenças crescentes entre cidade e campo constituem
outro indício de uma regressão social em Cuba. Ademais, existem outros elementos
que se pode mencionar a margem, como o aumento da prostituição, a deliquencia
infantil, o incremento da mendicância assim como o aumento da corrupção e o
regresso das crenças religiosas11. (BURCHARDT, 1998).
Do interior para Havana chegam também, embora proibidos, alguns produtos que
abastecem o mercado negro. Não são poucas as situações de indivíduos que saem de Havana e
buscam no interior alguns gêneros alimentícios e procuram comercializá-los, mesmo com
todos os riscos que há nessa atividade.
Junta-se a essas causas de migração para a cidade, a procura por trabalho, alguns
ilegais, agora relacionados ao turismo. Já que o turismo é hoje uma das maiores fontes de
11
Conquanto houvesse, sobretudo antes de 1992 quando o Estado cubano se declarava ateu, na Ilha um sistema
de repressão formal e informal significativo em relação a religião. Pesquisas qualitativas indicam que “o povo
cubano é um povo majoritariamente religioso [...] porém não majoritariamente católico” (Carranza, 2011) já
que vive uma religiosidade sem adesão a uma instituição determinada. Onde a Igreja Católica tem “hoje alguma
ressonância, porém não é uma voz definidora” (Carranza, 2011). Em que pese a afirmação acima de que a Igreja
Católica não tem uma voz definidora, em uma sociedade que tem uma religiosidade tida como difusa (Calzadilla,
2000) e espontânea, de práticas não sistemáticas (Berges, 1997), pesquisas indicam que atualmente a Igreja
Católica tem resgatado sua “influência institucional e, ao mesmo tempo, um lugar significativo na demografia
religiosa cubana” (Alonso, 2011), comprovada pelo reconhecimento por parte do governo do seu papel de
mediadora. Essas características da religiosidade cubana mencionada por Calzadilla e por Berges demonstra que
a religiosidade foi um dos elementos “duplos” cubanos. Já que mesmo com impedimentos (lembrando que era
proibido adentrar ao PCC no caso de alguma associação religiosa) a religiosidade cubana foi vivida no espaço
privado.
253
divisas de Cuba12. Lembrando que a situação da migração para o trabalho com o turismo se
alarga após a implantação da dualidade monetária em Cuba, que aumenta a possibilidade dos
trabalhadores envolvidos com o dólar e o CUC (peso convertido) possuírem uma renda
superior13. Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira,
No mercado negro, em que se vendiam as mercadorias desviadas, i.e., roubadas dos
hotéis, lojas, fábricas e outros centros de produção, prática esta que se convertera em
rotina, bem como no mercado oficial para turistas e estrangeiros, os preços eram
cobrados em dólar ou em peso convertible, nova moeda à qual o governo cubano
assegurava a paridade 1:1 com o próprio dólar (BANDEIRA, 2009, p. 654) 14.
É certo que o fato de Cuba possuir hoje um forte apelo ao turismo, devido a ele ter se
tornado uma fonte importante de entrada de divisas, resulta em uma procura significativa de
trabalhos relacionados a essa atividade, com consequências que induzem a uma nova
dinâmica na sociedade cubana.
Não são poucas as pesquisas que indicam que a existência cada vez maior de
“trabalhadores do turismo” tem levado a uma desigualdade de renda na sociedade cubana.
Desigualdade que como já mencionamos, é oriunda da dualidade monetária, que faz com que
haja uma valorização maior do peso convertido e uma busca por dólares, moedas que apenas
os estrangeiros e os cubanos que trabalham com o turismo possuem15. Por isso,
12
Sobre o turismo como fonte de divisas, Luiz Bandeira menciona um exemplo esclarecedor de uma de suas
possibilidades: “em outras palavras o Estado pagava ao trabalhador de um hotel, por exemplo, cerca de 120 a
125 pesos cubanos, o que equivalia a USS 4 e USS 5, mas cobrava da empresa privada, a quem cedia a mão
de obra, cerca de US$ 120 a US$ 150. E, com essa diferença cambial, promovia acumulação de capital e
mantinha o funcionamento do seu aparelho, já a depender, em larga medida, dos dólares do turismo”
(BANDEIRA, 2009, p. 655).
13
Dentre os problemas causados pela a dualidade monetária, o posicionamento a seguir é no mínimo
interessante: “Certo, o regime castrista sobreviveu. Mas o preço a pagar é pesado. O dólar é rei, que símbolo! É a
primeira vitória política americana obtida após 40 anos”J. HABEL, 1999 In: THÉRET, Bruno. 2003.
14
Perguntado pelo jornalista Ignacio Ramonet como se explicaria as corrupções em Cuba e as desigualdades
econômicas que elas estavam causando, Fidel Castro respondeu: (...) “havia quem ganhasse, em um mês,
quarenta ou cinqüenta vezes o que ganham nossos médicos que estão nas montanhas da Guatemala ou em
outros lugares distantes da África (...) E esses médicos ganham 5, 10 por cento do que ganha um ladrãozinho
que vende gasolina a novos ricos, que desvia toneladas de recursos de portos em caminhões; que rouba nas
lojas em divisas; que rouba em um hotel cinco-estrelas, na melhor das hipóteses trocando a garrafinha de rum
por uma que trouxe, pondo-a no lugar da outra e recebendo todas as divisas pela venda das doses, que podem
ter saído de uma garrafa de rum de qualidade inferior. Quantas formas de roubo há neste país?” (RAMONET,
2006, p.519).
15
Lógico que essa disparidade surgida é consequencia não só do dinheiro do turismo, mas também da inserção
de divisas de exilados, que também tem causado desigualdades sociais em uma sociedade edificada sobre o
discurso da igualdade. Para Burchardt: “Aqui se origina a primeira fonte de desigualdade social. Com a
generalização do setor informal, “cuentapropista” e a existência da ilegalidade, muitas rendas deixam de
depender de critérios sociais ou de rendimentos específicos. As transferências monetárias estatais se
desvalorizam através da inflação, assim como os salários perdem sua antiga função como homegeneizadores
sociais. O padrão de vida, pelo contrário, depende muito mais de redes, atividades privilegiadas como o turismo,
ilegalidades, etc. Isto traz como consequencia uma estratificação clandestina e assimétrica das rendas.
(BURCHARDT, 1998, p. 32). É importante destacar que essa análise é do final da década de 90, e que hoje o
Partido Comunista Cubano, após constatação de tais problemas, iniciou um processo de ratificação e reformas
econômicas a fim de resolver tais questões. Os resultados dessas mudanças ainda carecem de análises
254
Os trabalhadores por conta própria, donos de pequenos restaurantes, camponeses
individuais, prostitutas e atores do mercado negro são hoje em dia os cubanos que
melhores níveis de vida alcançam e a diferença de seus consumos em relação aos
dos trabalhadores estatais sem acesso a dólares é abismal (BOBES, 2000, p. 237).
Inquietantes para o regime são os problemas surgidos relacionados ao turismo nas
cidades, principalmente em Havana, como, por exemplo, reaparecimento da solicitação de
gorjetas, que em alguns casos são também mendicância16. Para a pesquisadora Velia Cecilia
Bobes, outro problema arrolado ao fortalecimento do turismo, é o crescimento de “maneira
veloz (d)a prostituição” (BOBES, 2000, p. 228). Pois, como diria a própria filha de Fidel
Castro no final dos anos 90 “La Havana se convertiera en una feliz escala sexual y Varadero
en el paraíso de las venéreas (BANDEIRA, 2009, p. 652). Sobre a prostituição habanera, a
fala de um jornalista estrangeiro pode ser ilustrativa:
...por sua vez, o jornalista Andres Oppnheimer registrou que, na ausência de outras
formas de entretenimento, o sexo tornou-se o esporte nacional em Cuba e a
prostituição não apenas se espraiou como se tornou crescentemente aberta, com o
aparecimento das jineteras ao longo do Malecón e de outras avenidas. (BANDEIRA,
2009, p. 652)
Além da prostituição, na medida em que aumentam os ganhos com o “mercado livre”
e por conta própria “se incrementa também certo tipo de comércio ilícito” (BOBES, 2000,
p.227). Economistas cubanos indicam que já algum tempo que a maior parte das atividades
econômicas de Cuba não são “absorvidas pelo Estado sim [pelo] mercado negro. [Padilla]
Estima-se que quase 40% da população economicamente ativa está envolvida em um trabalho
desde tipo.” (BURCHARDT, 1998, p.72). Hans-Jürgen Burchardt expõe dados importantes
sobre essa atividade e suas conseqüências, embora sejam informações apenas do início do
período abrangido por nós, torna-se relevante no mínimo para esclarecimento:
Dados do Centro de Estudos Demográficos CEDEM tem registrado o potencial do
mercado negro em Havana. Segundo essas cifras, ‘entre 1989 e 1992, para cada
trabalhador que chegou a cidade, ingressaram 29,9 pessoas inativas, predominando
entre estas adultos de idade de laboral que buscavam trabalho (BURCHARDT,
1998, p.72).
No entanto, embora tenha havido um crescimento do comércio de ilícitos e do
mercado negro com o apogeu do turismo. Em cidades como Havana essas práticas parecem
ser tão antigas quanto a revolução, sobre isso falaremos mais adiante.
sistemáticas.
16
Ironicamente, no livro a Ilha da década de 70, o escritor Fernando Morais descreve, pelo menos no tocante a
mendicância ou gorjeta, outro cenário “O carregador do Nacional leva as malas ao confortável apartamento e
fica me olhando sorridente. Tiro do bolso moedas recebidas na troca de dinheiro e lhe ofereço. Sempre
sorrindo, o homem diz apenas ‘não’. Devo estar oferecendo pouco, imagino. Tiro uma nota em peso cubano –
nove cruzeiros, ao cambio da época – e entrego a ele. O carregador é obrigado a ser claro comigo: ‘
companheiro, aqui não existe mais isso. estou esperando, mas é para o senhor dizer que está satisfeito com o
apartamento’ (MORAIS, p. 22).
255
E talvez nisso incida um dos casos do complexo duplo de valores habanero, já que
mesmo existindo certa coerção contra esse mercado negro e um discurso moral estatal que
reprova tal atividade, ela permanece existindo. Como podemos observar na fala de um
indivíduo que tem como atividade buscar produtos no interior da Ilha para levar a Havana:
“No julgamento me deram uma multa de dez mil pesos. Só porque me pegaram com vinte
lagostas. Se eles tivessem se adiantado um dia e me surpreendido com a carne de boi, eu
pegaria três ou quatro anos de cadeia” (GUTIÉRREZ, 2008, p. 135).
COERÇÃO FORMAL E INFORMAL DO ESTADO, (MERCADO NEGRO) E O
DUPLO
O regime cubano, como já afirmamos, procura através do seu aparato litúrgicodiscursivo manter alguma coesão em torno da simbologia Estatal. Mas, ele lança mão também
de uma estrutura de coerção, com sanções legais ou espontâneas (a maneira de Durkheim),
para sustentar a organização centralizada do governo, que no caso cubano se confunde com a
do partido único (Partido Comunista Cubano).
Essas características do regime cubano fizeram com que a sociedade cubana
fosse construída sobre estruturas peculiarmente repressoras. Devido a quantidade de
mecanismos criados pelo regime para “assistir” ao comportamento dos indivíduos, a fim de
garantir as determinações estatais17.
Entre os mecanismos do regime, o “policiamento” foi um expediente
ininterruptamente utilizado. No entanto, esse “policiamento” cubano possui uma
singularidade importante. Em muitos dos casos é feito pelos próprios indivíduos cubanos. Já
que o regime conseguiu implementar uma lógica na sociedade que a dividiu entre os cidadãos
apoiadores da Revolução e os indivíduos que foram taxados pelo governo de contrarevolucionários. Sobre isso, as palavras de Reinaldo Arenas são categóricas: “vivíamos em
um estado policial, e o mais prático para alguns foi virar polícia.’’ (ARENAS, 2009, p. 177).
No tocante aos “cidadãos-policiais”, podemos mencionar os Comitês de Defesa
da Revolução. Criado em 1960 com a função de organizar e mobilizar as “massas” que
apoiavam a Revolução, essa instituição tinha como objetivo fundamental “o apoio ao governo
e a canalização dos esforços e ações coletivas em função das metas definidas pelo Estado”
17
Exemplo desses mecanismos são as prisões preventivas, “que é um invento fantástico porque eles prendem
você só porque pressentem que vai fazer uma coisa errada. Parece eu sabem por telepatia. E desse jeito
protegem você de si mesmo”. (GUTIERREZ, 2008, p. 49).
256
(BOBES, 2000, p. 92). No entanto, acabou se destacando também pelo papel de vigilância
que sempre manteve18.
O CRD chegou a cooperar em algum momento, para o surgimento de uma
“aura” de desconfiança e temor no seio da população. Tendo contribuído, como diz Pedro
Juan Gutiérrez, para “colocar um sistema repressivo na cabeça de todo mundo”.
(GUIÉRREZ, 2008, p.89).
O funcionamento da coação exercida pelos Comitês e seus membros, passa
pelo sistema de delação desenvolvido em razão das necessidades do governo19. Como
afirmara Reinaldo Arenas - em um período distinto do estudado por nós, mas não isolado- “a
delação é algo que a imensa maioria dos cubanos pratica diariamente.” (ARENAS, 2009, p.
247,258).
A respeito do sistema de delação, dentro da mesma lógica acima, seguindo alguma
precaução, podemos nos aludir a fala de Alina Fernandez, quando ela referindo-se a Cuba e
aos motivos que a levaram a exilar-se, diz que cresceu em um país “rodeada de delatores que
substituem os ordenadores da polícia com uma rede de denúncias20” (BANDEIRA, 2009, p.
620). A respeito disso, podemos observar a fala de Reinaldo Arenas:
Foi uma das coisas mais horríveis que o Castrismo conseguiu: romper os laços de
amizade, fazer com que desconfiássemos dos nossos melhores amigos, transformálos em informantes, em tiras. Eu já desconfiava de muitos amigos meus (ARENAS,
2009, p. 192).
18
Os Comitês de Defesa já foram mais efetivos em Cuba. Sua antiga efetividade pode ser vista em um relato da
década de 70. “No nosso bairro, como em todos os outros, el Comité reina supremo. Como o nome diz, eles
foram criados para defender a Revolução. Os vizinhos se ajuntaram para ajudar a patrulhar as ruas locais à noite,
ficando de olho aberto para identificar qualquer pessoa estúpida o bastante para tentar plantar uma bomba ou
grafitar slogans anticastristas nas paredes, coisa que acontecia de tempos em tempos depois do triunfo. Depois,
os CDRs foram usados para organizar ruas inteiras de voluntários para cortar cana-de-açúcar ... Nada é feito sem
o Comitê tenha metido o nariz. Por exemplo, se você quiser reclamar dos cachorros que latem no meio da noite,
tem de ir a El Comité...Se você quer viajar a Havana, é conveniente verificar com o El Comité primeiro, já que
vai precisar da permissão para se ausentar do trabalho e para comprar passagens de ônibus. (...) É a mesma coisa
se você quiser delatar alguma coisa sobre seus vizinhos – ou seus pais. Você vai até a mulher do El Comité e lhe
conta que seus pais andam dizendo coisas que não deveriam sobre Fidel; ela vai cumprir seu dever
revolucionário e relatar tudo à polícia... (GARCIA, 2007, p. 124, 125,126).
19
O sistema de delação cubano se entranhou tão fortemente na sociedade que até alguns estrangeiros
compreendem essa lógica. Como é o caso de um mexicano que tendo um problema de ordem pessoal,
relacionado a sexo e prostitutas, com um cubano, como forma de “vingança” foi a delegacia e delatou o
cubano acusando-o de ser um contra-revolucionário (GUTIERREZ, 2008, p. 72).
20
Talvez porque o regime cubano já foi baseado nas estruturas soviéticas de vigilância, talvez por mera
coincidência, os relatos sobre as redes de denúncia em Cuba possuem semelhanças com os relatos sobre os
soviéticos. Como nos diz B. Braczko sobre o Partido Soviético e sua relação com os membros: “Os membros
vigilantes do Partido – qualidade suprema, valorizada particularmente durante o ‘grande terror’- admite ao
mesmo tempo, ser objeto de uma vigilância permanente”. Sobre o “grande terror” e os delatores, diz ainda
Braczko: “Durante o ‘grande terror’, o poder impõe às mulheres que se divorciem de seus maridos
‘desmascarados’ e às crianças que reneguem seus pais condenados como ‘inimigos do povo’ (Palvlik
Morozov, um menino que denunciou o pai, é exaltado em canções e todas as crianças aprendem na escola sua
façanha gloriosa)” (BLACZKO, 1983, p. 31,32).
257
A “cooptação” de indivíduos por parte do governo para a composição dessas
instituições e comportamentos vigilantes, talvez possa nos abrir a possibilidade de refletirmos
sobre a perspectiva do “duplo”. Já que as causas da associação desses indivíduos a essas
instituições21 vão desde a aceitação e compreensão do discurso e da simbologia estatal,
inclusive em alguns casos por até por razões práticas, até o recebimento de benesses e de
privilégios dentro na estrutura governamental.
Dentro do nossa ponto de vista de análise, separar tais lógicas na maneira como o
indivíduo enxerga o mundo pode ser uma tarefa impraticável22, apontá-las pode ser mais
fecundo. Ou seja, apontar casos que nos permitam pensar o duplo e a inserção de indivíduos
nas associações governamentais. Como, por exemplo, os cidadãos do CDR que outrora
conseguiam TVs por serem “bons revolucionários23” (GARCIA, 2007, p. 153), mesmo tendo
esses próprios cidadãos atividades no mercado negro.
No entanto, mais evidente possa ser constatar que opera em Cuba um sistema
em que as pessoas necessitam de instituições para as legitimarem e a introduzirem em várias
estruturas sociais. Isto é, a associação dos indivíduos às instituições governamentais serve
como dispositivo para inserção dos mesmos em uma dinâmica propicia a garantir alguns
privilégios e benefícios. Como o caso da blogueira cubana que diz ter sido impedida de
participar de um congresso de informática porque não pertencia a nenhuma dessas
instituições. A propósito, diz Yoani Sanchez24 :
Muitos de nós chega a acreditar que, se não estamos debaixo do guarda-chuva de
uma entidade estatal, não existimos. Na porta de um ministério ou diante da
secretária de algum funcionário público, uma pergunta sempre nos recebe: E você de
onde é? Não se trata de curiosidade sobre a nossa origem regional, mas sim de uma
21
A despeito do fato de indivíduos escolherem o partido por interesses, Ramonet faz a seguinte pergunta a Fidel:
“Em muitos países do extinto bloco socialista, ser membro do Partido era uma maneira de obter privilégios,
benefícios e favores. Fazia-se isso mais por interesse que por convicção ou espírito de sacrifício. Não é o que
acontece em Cuba? [resposta de Fidel]: Este Partido não concede privilégios. Se há uma obrigação qualquer a
cumprir, o primeiro que tem o dever de ir é o militante do Partido. (...) O Partido não elege os deputados, são
as pessoas, repito, são todos os cidadãos que elegem os deputados. Entretanto, o Partido dirige, eu diria, de
uma forma ideológica, define estratégias, mas compartilha isso com o governo do Estado, compartilha com o
Parlamento da República, compartilha com as organizações de massas. É um conceito diferente do que houve
em outros países socialistas, onde foi fonte de privilégios, de corrupção, e foi fonte de abuso de poder
(RAMONET, 2006, p. 526).
22
A não ser por teorias como as da escolha racional.
23
Informações sobre o fato do governo cubano não conceder mais privilégios a membros do CDR, e a suposta
perda de força dessa instituição em Cuba pode ser visto em Sánchez: “Montar a guarda no CDR ou rebater as
críticas perdeu a graça, pois não parece que a recompensa será a doação de uma máquina de lavar, uma linha
telefônica ou um rádio Portátil” (SÁNCHEZ, 2009, p. 53).
24
Sobre os relatos de Yoani Sánchez utilizados como fonte, relevante que destaquemos que a referida autora é
considerada pelo governo cubano como uma contra-revolucionária financiada pelo governo norte-americano.
Tendo, inclusive, o governo cubano produzido uma espécie de série televisiva (intitulada Las Razones de
Cuba) onde em um “episódio” (Ciberguerra) Yoni é apontada como uma espiã norte-americana que seria
paga através de premiações que seu blog tem recebido. De acordo com a narrativa, essa forma de pagamento
a Yoani seria uma maneira de burlar a opinião pública e a verdadeira função da blogueira em Cuba.
258
cuidadosa investigação acerca da instituição que nos legitima25.
Essa lógica da necessidade de associação a essas instituições cria então um tipo de
membro figurativo. Velia Cecilia Bobes destaca que os jovens até se associam a essas
instituições, mas satisfazem suas necessidades de pertença e identificação na informalidade, já
que as organizações de massa “todas são oficiais, todas estão politizadas” (BOBES, 2000, p.
40).
Não obstante, todos são membros das organizações, e isto se explica porque é menos
custoso para eles pertencer formalmente e “alienar-se”delas que declarar o rechaço
‘ou seja, poder estar dentro, porém não participar’ (Esperanza). São ‘membros
figurativos das organizações porque não se sentem identificados com elas nem
representados. (BOBES, 2000, p. 240).
A despeito do caráter figurativo dos membros26, muitos se associam a essas
organizações em busca de benesses, vinculados a uma visão individualista e utilitária, mas
acabam sendo inseridos em uma lógica do próprio partido. Formando assim um duplo,
inesperado em alguns momentos até pelo próprio indivíduo. Como uma jovem participante
figurativa de uma organização que em uma entrevista dizia que “pessoalmente não me ocorria
(...) fazer nada que estivera contra a Revolução e que possa, sobretudo prejudicar-me a mim
como pessoa” (BOBES, 2000, 241). Corroborando nossa compreensão, podemos observar as
palavras de Velia Cecilia Bobes onde para ela:
Neste caso parecem estar funcionando simultaneamente valores de ambos os
complexos, por um lado, estar ‘contra a Revolução’ significa – do complexo
nacionalista- colocar-se do lado do inimigo e contra os interesses da pátria e da
nação, já que este sistema ético identifica a nação e o povo com a ordem estatal
socialista; por outra, funciona o cálculo de custos e benefícios e o proveito pessoal
central do outro complexo27 (BOBES, 2000, p. 241).
Vale destacar ainda no caso acima da jovem participante que, em um regime nos
moldes do modelo cubano, a participação política toma função de controle que “garante que
25
Segundo o depoimento de Yoani: “O resultado [da não associação aos órgãos do governo] é que, embora eu
caminhe, durma, ame e até me queixe, me falta a declaração de vida que me seria dada pela filiação a um
reduzido – e aborrecido- número de órgãos neogovernamentais. Na prática, sou um fantasma cívico, um nãoser, alguém que não pode mostrar diante do incisivo olhar do porteiro nem uma mínima prova de que está na
engrenagem oficial (SÁNCHEZ, 2009, p. 107).
26
Sobre o caráter figurativo e a possibilidade de consentimento desses “figurantes” em relação ao regime, David
Kertzer em uma pesquisa que realizou sobre a festa comunista no interior da Itália, identificou que alguns
moradores da localidade das festas (como os alborenses) observam que mesmo não participando
efetivamente do Partido, podem através das festas dele, “se identificar com o P.C.I. (e realmente se
identificam) como são levados a fazer parte dele”. Além disso, existem casos, como o dos imigrantes
presentes nessas localidades que “descobre que a identificação com os comunistas não o levará ao ostracismo
em relação á comunidade, mas, ao contrário, fará com que ele se torne uma parte dela” (KERTZER, 1983, p.
7).
27
Em relação as considerações acima sobre o caso da jovem participante e o seu “duplo”, Bobes explica: “Neste
sentido é que penso que ambos os complexos de amalgamam e começam a interpenetrar na medida em que se
iniciam a perda da diferenciação radical dos espaços formais e informais” (BOBES, 2000, p. 241).
259
as atividades dos cidadãos se concentre no que o Estado considera prioritário e, dado que
tanto as lideranças destas organizações como suas agendas de debates são decididas desde
cima” desse modo garante que a ação conjunta da sociedade “se estabeleça em uma só
direção, a dos objetivos estatais de reprodução28”. (BOBES, 2000, p. 154).
PARTIDÁRIOS DUPLOS E O MERCADO NEGRO
Essa condição de ser um “duplo” nas organizações estatais, ou seja, um membro
figurativo (que vimos não é sem consequencia, pelo menos quando se trata de adesão
simbólica) pode explicar em parte a assunção e efetivação da lógica do mercado negro em
Cuba, e Havana, inclusive entre os partidários formais do regime.
Já falamos em um tópico acima, da força do mercado negro na sociedade cubana,
especificamente em Havana. Mencionamos também a “antiguidade” de tal comportamento.
Sobre isso, alguns falam até em “cubaneo”, como, nas palavras da pesquisadora Mariana
Villaça, que “seria algo similar ao ‘jeitinho brasileiro29’(VILLAÇA, 2010, p. 371), onde entre
outras características é marcado pelo oportunismo, sobretudo de indivíduos “que apesar de
repetir os jargões socialistas” (VILLAÇA, 2010, p. 371) desejam desfrutar dos prazeres
materiais, em alguns casos, a qualquer custo30.
A respeito da antiguidade desse comportamento, ele pode ser visto, no mínimo de
modo ilustrativo, quando indivíduos vinculados as organizações estatais ou ao Partido operam
no mercado negro ilegal, como em um relato logo após a Revolução:
É assim que Cuba está dividida agora – existem os comunistas e os comunistas que
são boa gente. Os que são boas pessoas são aqueles cujo trabalho é proteger a
28
Interessante demarcarmos que os membros dos órgãos estatais cubanos, quando acusados de erro pelos seus
“superiores”, acabam por serem tronados. Conforme nos explica Mariana Villaça: “isto é, ser atingido pelo
trovão (trueno) emanado das altas esferas do poder, e rebaixado a um cargo menor. Ser tronado significava ser
acusado de alguma falha, o que implicava a destituição desse intelectual, que já não era mais considerado
‘revolucionário’” (VILLAÇA, 2010, p. 312).
29
Uma das referencias de Mariana Villaça para a afirmação de “cubaneo” vem do filme Se Permuta de Juan
Carlos Tabio, onde o filme tem um personagem Guillermito que “por ser um burocrata corrupto (trabalha
como projetistas de campanhas de mobilização popular) consegue várias facilidades para Glória [protagonista
do filme] e Yolanda, como um telefone residencial, ou a oferta de um emprego fácil (VILLAÇA, 2010,
p.371).
30
Apenas para pensarmos sobre o que Villaça denominou de “cubaneo” um relato da década de 70 pode ser
ilustrativo: “No entanto, eu e meu irmão estamos supersatisfeitos com o novo emprego do meu pai, porque
isso significa que todos os dias ele chega em casa com um grande saco de papel marrom cheio de biscoitos.
Nada de filas nem de libreta. E meu pai não é um caso isolado. Ele conta a minha mãe que metade da
produção diária de biscoitos e massas simplesmente desaparece da fábrica, o que significa que as pessoas que
trabalham lá devem estar sumindo com muitos biscoitos e massas, levando tudo para casa, para suas famílias.
Do modo como os cubanos vêem as coisas, isso não é roubo. Eles dão o nome de resolviendo; não acho que
as outras línguas tenham um termo exato para traduzir este conceito, mas quer dizer qualquer coisa como
‘dando um jeitinho’. E, se algum dia você teve de ficar duas a três horas em uma fila debaixo do sol, sem
chapéu ou sombrinha para protegê-lo, então entenderá perfeitamente o que resolviendo quer dizer. É o que
alega meu pai” (GARCIA, 2007).
260
Revolução contra os americanos, mas que também vêm bater a porta para lhe
oferecer porco no mercado negro (GARCIA, 2007, p. 39)
Outro relato dessa antiguidade e complexidade do comportamento de sujeitos ligados
ao Partido e atuando no mercado negro pode ser visto na fala de Reinaldo Arenas: “Minha tia,
que era presidente do Comitê de Defesa e, segundo ela mesma afirmava, alta informante da
Segurança cubana, prometeu [a uma] velha senhora [mãe de um preso político] que
providenciaria sua saída do país em troca de todos os seus móveis. A casa da senhora ficou
completamente vazia”. (ARENAS, 2009, p. 181). A senhora acabou morrendo em Cuba com
a casa vazia31.
Para Fidel as dificuldades e carências do Período Especial favoreceram os hábitos de
corrupção e roubo, embora ele afirme que esses hábitos antecedem esse período, já que ele
observa que “(...) alguns vícios podem estar arraigados”. (RAMONET, 2006, p. 519).
Ainda segundo Fidel Castro, mesmo que haja muitos vícios na sociedade cubana, o
Estado tem fechado o cerco aos corruptos de uma maneira muito mais enérgica do que apenas
com o antigo método da crítica coletiva ou autocrítica, considerado por ele ineficaz. Pois, “...
entre nós há alguns que dizem: ‘Sim, eu tenho autocrítica’. E ficam tranqüilos, morrendo de
rir! São felizes. E todo prejuízo que causaram? E todos os milhões que foram perdidos como
consequencia desse descuido ou dessa forma de agir” (RAMONET, 2006, p. 518).
Como podemos observar nos discursos de Castro e até nessa fala acima, o exgovernante reconhece esse comportamento existente no partido cubano e os compreende
apenas em termos de oportunismo (RAMONET, 2006).
Para nós, embora tais situações possam parecer apenas atos oportunistas se encarados
como atividades incoerentes por parte dos integrantes dessas instituições cubanas. Nós
optamos, pelo menos como possibilidade reflexiva, à alternativa de observarmos esses
mesmos comportamentos não só em termos de contradição, mas também em termos da
“lógica do duplo”, perspectiva que interessa a esse trabalho. Onde, talvez pelas circunstâncias
das necessidades existentes ou, na tese de Bobes, sendo tomando pelo complexo de valores
individualista, o indivíduo não tenha a percepção do seu comportamento como “contrarevolucionário”, para usar um termo do próprio regime. Mesmo que ele saiba da ilegalidade
do comportamento. Utilizando as palavras de Laborie, podemos ter aqui “as zonas cinzentas
do pensar-duplo” (LABORIE, 2010, p. 40), onde:
A despeito de suas névoas e perturbações, o pensar-duplo aparece como uma
31
No relato de Arenas, o escritor Lezama contava uma história que “Cintio [Vitier] e Fina foram a Porto Rico
fazer uma conferencia, na qual disseram maravilhas de Castro; em seguida, percorreram todo o país
comprando sapatos para revendê-los no mercado negro em Havana” (ARENAS, 2009, p. 278).
261
maneira uma realidade que se tornou insuportável, como uma resposta de
circunstância a uma situação de exceção, como elemento de um amplo processo de
adaptação. (LABORIE, 2010, p. 40).
Quanto a dúvida em considerarmos determinados comportamentos em termos de
incoerência ou pelo “raciocínio do duplo”, um relato nosso, baseado em um trabalho que
fizemos em Cuba no ano de 2011 pode contribuir para as reflexões.
Após fazermos uma “espécie de amizade” com um líder partidário “municipal” que
nos afirmou ser um ex-combatente. Fomos levados por ele a conhecer um comitê do partido.
O indivíduo nos mostrou fotos, livros e nos contou histórias. Mencionando inclusive que sua
família tinha partido para Miami enquanto ele decidira permanecer em Cuba. Após horas
conosco, nos sugeriu que ficássemos (ilegalmente) em uma casa de seu amigo. Casa essa que
não era registrada para o acolhimento de turistas, exigência indispensável para quem desejava
acolher estrangeiros em Cuba. Sua fala sobre isso em algum momento foi: “precisamos
sempre colaborar com Cuba, e desse modo sempre colaboramos trazendo dinheiro para cá,
né? Pois estamos precisando né”
Outra “fonte” que pode nos dar um indicativo dessa tensão entre corrupção e “duplo”
dos integrantes de instituições governamentais cubanas é o filme Fresa y Chocolate 32 de
Tomás Gutiérrez Alea y Juan Carlos Tabío, sobretudo o papel da personagem Nancy (Mirta
Ibarra).
Nancy uma vigilante, relacionada ao Comitê de Defesa da Revolução em Havana, é a
vigilante do prédio que mora e “pretende suicidar-se, onde o suicídio é visto como ato de
covardia” (NÚNEZ DE LA PAZ, 2004, p.72). Nancy onde mora atua no mercado negro, em
uma atmosfera que segundo a pesquisadora Núñez de la Paz (2004, p.110) a “mentira
funciona como porta de escape33”. No caso de Nancy, ela “mente com seu comércio ilegal
para sobreviver”( NÚNEZ DE LA PAZ , 2004).
32
Sinopse do filme: “Relação gradativa de amizade que se estabelece entre um intelectual homossexual (Diego)
e um estudante militante (David), que discutem suas visões do país, da cultura cubana e da Revolução.
Ambos encaram temas polêmicos como o homossexualismo e o exílio e têm em comum a amizade da
desiludida Nancy, que tenta o suicídio e depois vive uma história de amor com David”. (VILLAÇA, 2010, p.
410).
33
“A mentira transborda, desde o início do filme, até o seu final. A mentira é a porta de escape para situações
delicadas, ela resolve conflitos e que parece respirar-se no cotidiano cubano. Vivian, se casa mentindo para
resolver sua situação econômica. Diego, mente para conseguir que David visite sua casa. David, mente para
contar a Miguel porque visitou a casa de Diego. Diego, mente para Germán – a respeito da sua relação com
David – para ganhar reconhecimento. Nancy, mente para aproximar-se de David. Diego, mente para poder
acompanhar Nancy na ambulância. David, mente para poder se aproximar novamente a Diego com o fim de
investigá-lo. Miguel, mente para conseguir sancionar David. Nancy, mente com seu comércio ilegal para
sobreviver. Diego, mente para conseguir seus propósitos de saída do país” (Núñez de la Paz, 2004).
262
Para Núñez de la Paz, Nancy pode ser interpretada como uma mulher solteira, em uma
sociedade “machista e patriarcal” como a cubana, que precisa se virar para se alimentar e “que
desesperada quer salvar-se e para salvar-se recorre ao sexo possuidor de controle, da verdade,
autoridade e do poder” (NÚNEZ DE LA PAZ, 2004, p. 80) e, a nosso ver, ao cargo de
vigilante como mais um elemento de fortalecimento. Para citarmos Laborie:
Muito longe dos comportamentos heróicos e das rejeições declaradas, o duplopensar aparece como uma forma de resposta social a alternativas consideradas
insuperáveis, uma resposta datada que deve ser vista como tal, como tentativa
patética de ajustamento entre o desejo e o possível. (LABORIE, 2010, p. 41).
Quanto a esse subterfúgio que pode ter se tornado o mercado negro, a fala da
oposicionista ao governo Yoani Sánchez parece acrescentar um elemento a mais a nossa
perspectiva. Já que para ela:
Com os ganhos provenientes dessas ‘maracutaias’, reforçam-se as paredes da bolha
que os protege dos discursos, mas que também os dissuade de protestar
publicamente. O fruto de tantas ilegalidades vai parar no balcão das lojas que
vendem em moeda estrangeira e se materializa na lâmpada recarregável que neste
verão iluminará algumas casas. Enquanto isso, lá fora, pouco importa se existe
apagão (SÁNCHÉZ, 2009, p. 57).
A fala acima nos abre uma outra possibilidade de enxergamos o “duplo” em Cuba.
Sobre a perspectiva de se observar que o duplo se faz também conseqüente de um duploespaço.
Deste modo, podemos mencionar que em Cuba, notadamente em Havana, podem
operar duas lógicas distintas, sendo uma no espaço público e outro no espaço privado. O que
podemos chamar de tipos de práticas em diferentes espaços, onde observamos - “a assunção
de duas lógicas implica aprendizagens diferentes; estes indivíduos são conscientes de que
cada âmbito tem suas regras e sabem operar com ambas e distinguir perfeitamente o que
funciona em um e outro para adaptar suas ações ao permitido e aprovado em cada um.”
(BOBES, 2000, p. 239, 241) 34.
Assim sendo, há uma lógica que opera no espaço público e outra no espaço privado,
sendo cada uma acionada pelo indivíduo de acordo com as necessidades do momento. Essa
“lógica dupla”, que Velia Bobes chama também de formal e informal, opera ainda no que diz
respeito a interações e sociabilidade. Onde, há uma sociabilidade “negra ou submersa que
coexiste com a sociabilidade oficial e aberta” (BOBES, 2000, p. 43, 44). Velia Cecília Bobes
34
Velia Cecilia Bobes indica que algumas pesquisas comensuram níveis de interiorização de valores, como a
pesquisa de M. Dominguez. Todavia, ela afirma não compartilhar com tal perspectiva, já que de acordo com a
que ela defende “não tem muito sentido falar de uns valores que se interiorizam e outros não; antes, o que trato
de explicar é que todos os valores do repertório cultural estão a disposição dos sujeitos simultaneamente.”
(BOBES, 2000, p. 235).
263
chama esse fenômeno de complexos coletivista e liberal-individualista. Que, para ela, são
sistemas que orientam as condutas dos indivíduos (idem, p. 43,44).
Para Bobes, a diferença de comportamentos de acordo com o espaço, implica inclusive
no ordenamento moral do cidadão e suas relações na sociedade, em relação ao amor, ao
matrimônio, a questão racial, etc. Sobre a questão racial, por exemplo, e sua dinâmica no
espaço formal e informal, Bobes observa que:
é possível falar também aqui de duas lógicas diferentes que operam
simultaneamente na sociedade; no âmbito público o problema tem sido ‘resolvido’
por meio de um marco normativo e jurídico que ordena as relações a partir da
igualdade e sanciona qualquer desvio a esta regra. Sem embargo, na esfera privada
segue funcionando – ainda que veladamente- um sistema de valores e hierarquias
que supõe a superioridade de uma raça sobre a outra. (BOBES, 2000, p. 186)
No pensamento da autora, os indivíduos, “tem assumido a duplicidade de seus códigos
de comunicação tanto na esfera econômica como na social” (BOBES, 2000, p. 238). E a
natureza dos espaços de interação, pode se caracterizar por ser institucionalizada e não
institucionalizada, formal e informal, legal ou submersa, oficial e não oficial (idem, p. 43).
Para fins de ilustração desse movimento supramencionado por nós, podemos nos
remeter novamente ao filme Fresa y Chocolate, feito no interior do ICAIC, onde os indivíduos
operam, o caso se passa em Havana, em uma “dupla lógica”. Principalmente a personagem
Nancy, também já mencionada por nós, que mesmo sendo vigilante atua no mercado negro e
desenvolve formas de burlar o sistema em que ela seria uma das mantenedoras.
CONCLUSÃO
Podemos observar, através dos estudos da pesquisadora da FLACSO Velia Cecilia
Bobes, que em Cuba opera um “complexo duplo de valores” que atuam simultaneamente, sem
necessariamente serem concorrentes. As reflexões sobre o “duplo-pensar” de Pierre Laborie
nos abriu uma possibilidade para vermos esse “complexo-duplo” não só em termos
antinômicos - como menciona inclusive Yoani Sánchez quando diz que “aqui [em Cuba] só é
possível ser ‘revolucionário’ ou ‘contrarevolucionário’, ‘escritor’ ou ‘alheio a cultura’,
pertencer ao ‘povo’ ou a um grupelho’’. (SÁNCHEZ, 2009, p. 12). Mas, em termos de
reacomodações, recomposições.
Problematizando uma noção antinômica, observamos que o ponto de vista do “duplopensar” de Laborie nos abre a possibilidade de vermos de um modo alternativo o fato dos
cubanos terem que aprender a existir com uma dupla imagem de si mesmos, “um rosto para
mostrar publicamente a fim de subsistir e um para esconder a fim de preservar uma maneira
264
de ser e agir35” (LABORIE, 2010, p. 40). A ideia do duplo nos comportamentos cubanos pode
ser notada também na perspectiva da tese de Velia Cecilia Bobes e nas fontes ilustrativas
apresentadas nesse trabalho, que se não foram sistematizadas ao melhor modo, são no mínimo
indicações que estimulam algumas reflexões.
Laborie aponta que esse “duplo” pode surgir em momentos de extremos problemas
sociais ou em espaços de mudanças radicais. Assim sendo, essa foi a justificativa de
pensarmos o caso “habanero”. Pois, se os problemas não são exclusividades dessa cidade,
como vimos pela diversidade das origens das fontes, se dão nela de modo mais evidente.
Corroborando com a nossa opinião, Hans-Jürgen Burchardt menciona:
As novas contradições tem tomado múltiplas formas, sobretudo na capital cubana.
Havana, antes a pérola do Caribe, parece hoje uma metrópole atolada em agonia;
sem embargo, realmente volta a pulsar no Caribe. Porém o movimento agitado
obedece hoje a outras leis muito diferentes de dez anos atrás. Cada vez mais é
expressão de uma crescente desigualdade social. (BURCHARDT, 1998, p. 31).
Em Havana, embora pesquisas indiquem o processo em toda a Ilha, podemos observar
a “informalidade como traço da vida cotidiana, não só dos marginais” (BOBES, 2000, p.
159). Constatação apontada por Bobes de que as práticas dos sujeitos refletem a dualidade das
lógicas dos espaços formais e informais, onde:
a existência dessas lógicas e a sobrevivência do complexo censurado (mesmo
quando confinado ao oculto e como moralidade privada) geram a acumulação de
defasagens entre os valores que promove o discurso oficial e as práticas reais dos
sujeitos; entre elas a dupla moral ou a simulação, a falta de interesse pelo trabalho, o
afã pelo consumo, as diferenças não planejadas, a participação formal e a
indiferença, a concentração no privado e no individual e a existência de uma
sociabilidade submersa. Afirmo nesse caso que se trata de uma defasagem e não de
condutas de ruptura, porque nestes primeiros anos a lógica estatal é monolítica e
logra capitalizar a totalidade da atividade pública. (BOBES, 2000, p.265)
Esse “complexo duplo de valores” pode ser visto até mesmo quando se trata de
gerações distintas, onde aqueles que vivenciaram uma Cuba antes da Revolução ou nos
primórdios dela, tem uma percepção sobre Cuba que se diferencia da percepção da geração
nascida e crescida um pouco antes do Período Especial e após ele. Tal questão geracional leva
a afirmações como a emitida em 2005 pelo chanceler Felipe Pérez Roque de que a juventude
possuía pouco ou nenhum memória histórica (LATELL, 2008, p.320)36.
35
Importante relembramos que Pierre Laborie se refere ao vichysmo. Ele é por nós utilizado apenas como
inspiração e aporte para reflexão.
36
Se quisermos procurar algumas outras possibilidades de “duplos” em Cuba, poderíamos inclusive pensar sobre
a afirmação do prof. Marcos Pimentel, brasileiro que trabalha na EICTV-CUBA, onde em uma entrevista
(01/12/2011) para nós afirmou que se na capital há uma grande rejeição ao governo e uma crença não tão
forte, no interior cubano essa crença ainda é significativa.
265
Nesse caso novamente, a questão fica mais evidente em Havana, pois o aumento da
urbanidade e o déficit habitacional, além do seu “engessamento imobiliário37” levaram vários
jovens a morarem com seus avós (BOBES, 2000, p. 140). Esse fato, embora possa ser uma
possibilidade do jovem ter contato através dos seus avós de outros modos de vida e de
percepção do passado (Bobes, 2000). Pode fazer também que os jovens, a sua maneira,
possam convencer os seus antepassados sobre os benefícios arrolados ao “conjunto de valores
relacionados a individualidade”.
No entanto, o que suspeitamos é que ambos possam conviver com as suas duplicidades
em um processo contínuo de ressignificação e readequação permanente, de acordo com as
necessidades, sendo ora percebido como deslealdade, sendo em vários momentos nem visto
como contradições ao regime38.
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37
38
Havia em Cuba uma proibição a venda de casas, era permitido apenas trocas. O que se via, por isso, era
inclusive casamentos falsos, onde as pessoas se casavam, faziam a transferência do imóvel e depois se
divorciavam. Com as reformas efetuadas por Raul Castro tornou-se legal a compra e venda de imóveis.
Das mudanças na dinâmica de percepção da sociedade cubana, podemos mencionar o caso dos Gusanos
(exilados cubanos que eram chamados pelo governo de vermes, e eram estigmatizados na sociedade) que
com a possibilidade dos exilados enviarem divisas a Cuba passaram a ser olhados de modo diferente.
(BOBES, 222). Ainda sobre apontamentos das mudanças, se na década de 70, de acordo com Fernando
Morais, todos os cubanos eram chamados de companheiros (“Todo mundo é companheiro – menos, é claro,
os considerados contra-revolucionários. Estes são os gusanos, ou vermes”, p.105), hoje, para Yoani Sánchez
“Entre as evidências lingüísticas da nossa atual apatia, está o paulatino desaparecimento do termo
‘companheiro’ (...) Aconteciam até casos tragicômicos, por exemplo, quando uma pessoa chamava de
‘companheiro’ ao burocrata que o fazia esperar seis horas por um papel, embora na verdade tivesse vontade
de insultá-lo” (2009, p. 20).
266
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267
A ARTE DO COQUETISMO COMO ELEMENTO DE SOCIABILIDADE
EM CONTEXTOS DE LAZER
Gabriel Antonio Ogaya Joerke1
RESUMO
A arte da coqueteria ou coquetismo, entendida como uma forma de jogo do erotismo efetivase na sociabilidade urbana de forma leve, lúdica e ampla. Este estudo de cunho bibliográfico
tem por objetivo apresentar a contribuição do pensamento de George Simmel quanto às
formas e especificidades deste processo de socialização em contextos de lazer, subsidiando,
desta maneira, às pesquisas urbanas.
Palavras-chave: Sociabilidade; Coquetismo; Lazer
INTRODUÇÃO
A arte da coqueteria ou também chamada de coquetismo é tão antiga quanto a
história da humanidade. Como forma de jogo do erotismo e, um dos elementos de
sociabilidade, ocorre de forma leve, lúdica e ampla em contextos urbanos de lazer. Este
estudo introdutório, de cunho bibliográfico, tem por objetivo, apresentar aspectos do
pensamento de Georg Simmel quanto às formas e especificidades do coquetismo como
elemento de sociabilidade em contextos de lazer, subsidiando, desta maneira, às pesquisas
urbanas.
Georg Simmel, filho de pais judeus berlinenes, nasceu em Berlim (1858) vindo a
falecer em Estrasburgo (1918). Estudou História e Filosofia na Universidade de Humboldt,
em Berlim. Doutorou-se em Filosofia com decisiva influência do pensamento kantiano. Sua
origem judaica o levou ao ostracismo no meio acadêmico, muito embora o sucesso dos cursos
que ministrava. Somente aos 56 anos conseguiu a nomeação para professor de Filosofia na
Universidade de Estrasburgo. (WAIZBORT, 2000)
Embora se considerasse, antes de tudo, um filósofo, concebendo a sociologia como
uma extensão de seu pensamento associativo-analógico, foi fundador da chamada “Sociologia
Formal” ou “Sociologia das Formas”. Voltou-se para a microssociologia, sendo lembrado
1
Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT); Doutorando do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(IUPERJ/UCAM); Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT); Especialista
em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). E-mail:
[email protected].
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como seu precursor; onde, busca, na sociedade, os fenômenos, a partir das ações e reações dos
atores sociais em interação.
Para o filósofo e sociólogo da modernidade, a realidade só poderia ser apreendida a
partir de diversos pontos e olhares, sem com isso, esgotá-la (FRISBY, 2002). Daí seu caráter
interdisciplinar e estilo indisciplinado de seus ensaios. Concebe a sociedade como um “...
círculo de indivíduos que estão de uma maneira determinada, ligados uns aos outros por efeito
das relações mútuas, e que por isso podem ser caracterizados como unidade...” (SIMMEL,
2006b, p.18). Isso leva a entender o ser humano como ser social e a sociedade como portadora
de toda situação histórica; desta maneira, a sociologia não possui nenhum objeto que já não
tenha sido tratado por outras ciências (SIMMEL, 2006b).
A epistemologia, a sociologia e a filosofia da cultura foram as três principais áreas de
interesse do berlinense. Seu pensamento está prenhe dos princípios da dualidade ou paradoxos
que articulam a oposição entre: (1) as formas e os conteúdos (neokantismo)2 e, (2) da
interação (vitalismo). Este dois princípios estabelecem os pilares da sociologia formal que “...
propõe, por meio de uma interpretação dialética das formas e dos conteúdos, uma sociologia
interacionista das formas de associação.” (VANDENBERGHE, 2005)
Sociação e sociabilidade
Simmel (2006b, p. 60-61) entende sociação como
... a forma (que se realiza de inúmeras maneiras distintas) na qual os indivíduos, em
razão de seus interesses – sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes,
inconscientes, movidos pela causalidade ou teleologicamente determinados -, se
desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses
interesses se realizam. Esses interesses, sejam eles sensoriais, ideais, momentâneos,
duradouros, conscientes, inconscientes, casuais ou teleológicos, formam a base da
sociedade humana.”
Abstraída do conceito supracitado a sociabilidade seria “... a forma lúdica de
sociação...” (SIMMEL, 2006b, p.65). O prazer de estar com o outro, de ser para o outro e
estar contra o outro; nada além da satisfação dos instantes vividos ou de suas lembranças.
Desta maneira estariam fora deste contexto: riqueza, posição social, privilégios, fama,
erudição; bem como, o que se tem de mais pessoal tal como: maus humores, estados
depressivos e ansiosos etc. Isto garantiria o princípio da sociabilidade: “... cada indivíduo
deve garantir ao outro aquele máximo de valores sociáveis (alegria, liberação, vivacidade)
compatível com o máximo de valores recebidos por esse indivíduo.” (SIMMEL, 2006b, p. 69)
2
O neokantismo foi uma forma de filosofia pós-hegeliana, inspirada em Kant, dominante na Alemanha entre os
anos de 1850 a 1920.
269
Tendo em vista o anterior, não podemos esquecer que a necessidade de criar uma
relação democrática e livre de tensões materiais leva a um mundo artificial de sociabilidade.
Isto posto, como seres humanos, não conseguiríamos nos desprender das nossas tribulações
diárias. Por isso, Simmel (2006b) nos alerta para a forma mais pura de interação, aquela que
acontece entre iguais. Pessoas da mesma situação socioeconômica, com os mesmos valores
interagindo num certo “faz de conta” que todos são iguais. (SIMMEL, 1976). Encaixa-se
nesse âmbito, a coqueteria como elemento de sociabilidade.
A ARTE DA COQUETERIA OU COQUETISMO
Para a exposição das particularidades da arte do coquetismo no contexto de lazer
(DUMAZEDIER, 2008; PRONOVOST, 2011), aqui especificamente a praia, e, sem pretender
esgotar o assunto, utilizaremos como recurso, num primeiro momento, relação figura-fundo, a
letra de uma das canções mais tocadas no mundo, Garota de Ipanema3, composta em 1962
por Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim.
Olha que coisa mais linda/ Mais cheia de graça/ É ela menina/ Que vem e que passa/
No doce balanço, a caminho do mar/ Moça do corpo dourado/ Do sol de Ipanema/ O
seu balançado é mais que um poema/ É a coisa mais linda que eu já vi passar/ Ah,
porque estou tão sozinho/ Ah, porque tudo é tão triste/ Ah, a beleza que existe/ A
beleza que não é só minha/ Que também passa sozinha/ Ah, se ela soubesse/ Que
quando ela passa/ O mundo inteirinho se enche de graça/ E fica mais lindo/ Por
causa do amor.
O filósofo e sociólogo berlinense parte do pressuposto de que só acontece a arte da
coqueteria entre um homem e uma mulher4. Nesse jogo, a coquete tem como comportamento
característico
“... despertar o prazer e o desejo por meio de uma antítese/síntese original, através
da alternância ou da concomitância da atenção ou ausências de atenções, sugerindo
simbolicamente ao mesmo tempo o dizer-sim e o dizer-não, que atuam como que ‘à
distância’, pela entrega ou a recusa...” (SIMMEL, 2006a, p.95)
A possibilidade do ter e do não ter5, como paradoxo, estão presentes, quando não na
vida real pelo menos na forma lúdica6. Nesse jogo, onde o homem deseja7 e a mulher que
3
A versão original da música chamava-se Menina que passa. Foi composta por Vinícius com a seguinte letra:
Vinha cansado de tudo/ De tantos caminhos/ Tão sem poesia/ Tão sem passarinhos/ Com medo da vida/ Com
medo de amar/ Quando na tarde vazia/ Tão linda no espaço/ Eu vi a menina/ Que vinha num passo/ Cheio de
balanço/ Caminho do mar.
4
A garota de Ipanema e os compositores.
Ah, porque estou tão sozinho/ Ah, porque tudo é tão triste/ Ah, a beleza que existe/ A beleza que não é só
minha/ Que também passa sozinha.
6
Os compositores no Bar Veloso, hoje Garota de Ipanema, no bairro Ipanema, no Rio de Janeiro.
7
Olha que coisa mais linda/ Mais cheia de graça/ Moça do corpo dourado.
5
270
provoca esse desejo, é importante que aconteça de soslaio, sem se deter, furtivamente, quase
lá. Nas palavras de Simmel (2006a, p. 96) o olhar
“... não pode durar mais de alguns segundos, de sorte que, voltando-se para, ele já
prefigura, com inevitável, o movimento de se esquivar. Ele tem a tração do segredo,
do furtado, que não pode ter duração, onde, por conseguinte, o sim e o não estão
intimamente mesclados.”
Outro elemento importante no coquetismo é o andar, traduzido no requebrado, no
andar balanceado8, o “bambolear das ancas” (SIMMEL, 2008) numa alternância contínua de
mostra e ocultação, sem, contudo chegar a uma decisão definitiva. É um balanço, onde o
conceder e o recusar, realizados com maestria pelas mulheres, não deve chegar ao seu
definitivum. Caso isso venha acontecer porá fim à arte em pauta.
A próxima etapa da arte do coquetismo acontece quando ela toma forma adequada de
sociabilidade. Isso quer dizer, enfatiza Simmel (2006a), no momento em que o homem livrase da conotação erótica que, a priori, o jogo sinalizara. O papel do homem ultrapassa o papel
de mero objeto para entrar no jogo (SIMMEL, 2008). Ou seja, ao afastar-se do âmbito do
desejo erótico9, o jogo da sedução transforma-se em jogo da interação; onde, o gracejo e a
ironia deambulam no contexto encantador da sociabilidade10. É muito mais um jogo ou arte,
neste momento, do que a própria necessidade de agradar. É a forma mais pura do coquetismo,
a qual envolve uma atividade sem fim, como vemos a seguir:
Quando o homem já nada deseja além deste estádio, a convicção de que a coquete
não toma as coisas a sério dá-lhe, perante ela, uma certa segurança. Não desejando o
sim e sem recear o não, considerando indignas de atenção as eventuais recusas ao
seu anseio, o homem pode entregar-se mais plenamente ao encanto desse jogo do
que quando deseja, ou por ventura também receia, que o caminho empreendido leve
alguma vez ao seu termo. (SIMMEL, 2008, p. 80-81)
Num estágio último, a coquete, ainda retém, nesse balanço de dar-se e de revelar-se
“... um último quê misterioso, inacessível” (SIMMEL, 2006a, p. 105) quase numa visão da
eterna insatisfeita freudiana. O homem está consciente, nesse momento, da promessa inicial
que pode ou não ser cumprida pela coquete, mas também se compraz apenas com a arte ou
jogo da qual se deleita ao fazer parte. A essência da arte diferencia-se da do coquetismo. A
primeira situa-se para além da realidade, sendo que, dai, seu olhar se desvia; a segunda, além
de jogar com a realidade, faz parte dela.
8
Que vem e que passa/ No doce balanço, a caminho do mar.
“O ser erótico prefere despir-se com pouca luz”, diria ALVES (2008, p. 13)
10
Heloisa Pinheiro só ficou sabendo que tinha sido a musa de inspiração para a letra da música após dois anos.
Durante esse tempo o mundo inteirinho se encheu de graça e ficou mais lindo, por causa do amor.
9
271
O coquetismo, de certa maneira, está ligado ao amor. Este envolve um dualismo
intermediário entre o ter e o não ter. Simmel (2006a) utiliza-se de um dos diálogos de Platão
para ilustrar, como vemos a seguir.
O COQUETISMO PLATÔNICO
Uma das passagens que chama a atenção em Simmel (2006a), lendo seu texto
Psicologia do coquetismo, ao iniciar, o sociólogo, reporta-se à concepção de amor em Platão
(2011). Destaca, no escrito do filósofo grego, o dualismo intermédio entre o ter e o não ter,
como características e a sua concretização ou gozo, sua própria destruição. Platão já tinha
alinhavado a noção de amor no diálogo Fedro, vindo a consagrá-lo no Banquete. Neste, o
filósofo ratifica que o amor só pertenceria à alma.
Embora Simmel (2006a), ao tratar da arte do coquetismo, se refira tão somente ao
homem como aquele que deseja e a mulher como objeto desejado, única relação possível do
coquetismo como elemento erótico; percebe-se que, no diálogo Banquete de Platão,
especificamente na parte “Elogio de Sócrates”, trata da declaração de amor que o discípulo
Alcibíades faz para seu mestre Sócrates. Diferentemente da afirmação inicial, a dualidade
entre o ter e o não ter estão presentes nesse contexto; sendo que, o mesmo chega ao
definitivum possível, no momento em que o discípulo declara seu amor e o mestre rejeita a
materialidade desse sentimento. Quando se fala em um definitivum possível, abre-se a
alternativa de, o discípulo, após a negativa do seu mestre, sair do âmbito do desejo concreto
para a forma mais pura de sociabilidade: o jogo ou arte da coqueteria. Portanto,
... onde existe amor, existe também – quer no seu fundamento, quer à sua superfície
- posse e não posse; portanto, onde existe posse e não posse – embora não na forma
da realidade, mas do jogo – existirá também amor, ou, pelo menos, algo que ocupa o
seu lugar. (SIMMEL, 2008, p. 73)
OUTRAS FORMAS DE COQUETISMO
O coquetismo também pode apresentar-se em tipos de comportamento geral. As
pessoas “coqueteiam”, geralmente, com a realidade (SIMMEL, 2009; VERNIK, 2009). A
vida nas grandes metrópoles, além de nos influenciar com múltiplos incentivos, sejam eles,
sonoros, visuais, etc, (SIMMEL, 1976) também nos obriga a, constantemente, “coquetear”
frente às situações de tomada de decisões.
À GUISA DE CONCLUSÃO
272
Em sua forma mais suave e sutil, o coquetismo em contexto de lazer, como
vimos, é um dos elementos de sociabilidade tratado pelo sociólogo berlinense. Apresenta-se,
inicialmente, com um caráter fisiológico, onde o ter e o não ter se movimentam
prazerosamente num jogo erótico de sedução. Num segundo momento se estabelece
psicologicamente, tendo como possibilidades ou não a sua concretude. O último estágio seria
a forma pura de sociabilidade que envolve o coquetismo. Nesta, o homem, destituído do
caráter erótico que envolveria um fim, volta-se para o prazer do jogo ou da arte da coquete.
Pois, a concretude do ato, levaria ao fim da arte do coquetismo em si. A coqueteria pode
tomar outras formas. As próprias necessidades nos leva a coquetear com a realidade.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. As cores do crepúsculo: a estética do envelhecer. 8. ed. Campinas, SP:
Papirus, 2008.
DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia empírica do lazer. 3. ed. São Paulo: Perspectiva; SESC,
2008.
FRISBY, David. Georg Simmel. New York, NY: Routledge, 2002.
PLATÃO. Banquete. In: ______ Apologia de Sócrates. Banquete. Tradução de Jean Melville.
São Paulo: Martin Claret, 2011, p. 95-166.
PRONOVOST, Gilles. Introdução à sociologia do lazer. Tradução de Marcelo Gomes. São
Paulo: Senac/São Paulo, 2011.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O
fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 11-25.
SIMMEL, Georg. Filosofia da moda e outros escritos. Tradução de Artur Morão. Lisboa,
Portugal: Edições Texto & Grafia, 2008.
SIMMEL, Georg. Filosofia do amor. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2006a.
SIMMEL, Georg. Psicologia do dinheiro e outros ensaios. Tradução de Artur Morão. Lisboa,
Portugal: Edições Texto & Grafia, 2009.
SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Tradução de
Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Zahar, 2006b.
VANDENBERGHE, Frédéric. As sociologias de Georg Simmel. Tradução de Marcos Roberto
Flamínio Peres. Bauru, SP: Edusc; Belém, EDUPFA, 2005.
VERNIK, Esteban. Simmel: una introducción. Buenos Aires, Argentina: Quadrata, 2009.
WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.
273
O SIGNIFICADO POLÍTICO DO CINECLUBISMO
E AS PERIFERIAS CONTEMPORÂNEAS
Diego Moreira Maggi
RESUMO
Este artigo surgiu no âmbito das reflexões em volta do contato obtido com cineclubes
da Baixada Fluminense e de um levantamento de produções historiográficas. Buscou-se fazer
uma análise comparativa entre as práticas do cineclubismo do ponto de vista do significado
político atribuído pelos sujeitos no decorrer de sua história, relacionando-o às diferentes
configurações
sociopolíticas
da
sociedade
brasileira.
Conclui-se
que
ocorreram
transformações paradigmáticas no movimento cineclubista relacionadas intrinsecamente a
processos sociais mais amplos: ditadura civil-militar, estilhaçamento da figura do
“trabalhador” reivindicador de direitos, e advento de uma identidade de periferia. Em relação
a esse último, problematizam-se as condições de seu surgimento, suas características
constitutivas, sua relação com o poder público e seus desafios à frente.
Palavras-chaves: cineclubismo, identidade, periferia, política, formação de público.
INTRODUÇÃO
Este trabalho surgiu no âmbito das reflexões desenvolvidas pelo Núcleo de Pesquisa
Fronteiras e Transformações das Práticas Estatais e Políticas da Universidade Federal
Fluminense em volta da pesquisa “J v
â
,
j
çã
”, coordenada pela Professora Lívia De Tommasi e financiada pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
A proposta de pesquisa foi acompanhar as trajetórias de alguns jovens das cidades de
Rio de Janeiro, de Recife e de São Paulo, em particular os trânsitos entre diferentes espaços
de interação social, com o objetivo de estudar as práticas e as atividades culturais
desenvolvidas em regiões periféricas do ponto de vista do significado político atribuído pelos
sujeitos e desvendado pela análise do conteúdo e das formas de intervenção no espaço
público.
Durante as atividades de pesquisa, obtivemos contato com cineclubes da Baixada
Fluminense. Um estudo inicial apontou para uma mudança de práticas e objetivos por parte de
seus organizadores em comparação com aqueles historicamente constitutivos do movimento
cineclubista. Este trabalho, portanto, busca analisar as práticas e as transformações do
274
cineclubismo, assim como sua relação com políticas estatais e com as configurações
sociopolíticas em diferentes momentos da história brasileira. Meu interesse, portanto, é
analisar de que maneira o cineclubismo é atravessado por processos sociais amplos.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS: APREENDENDO O MOVIMENTO
Primeiramente, é importante ressaltar que a contemporaneidade exige a construção de
novas ferramentas analíticas capazes de abarcar as dinâmicas de transformação da estrutura,
das instituições e das práticas sociais. Enquanto a atividade sociológica historicamente se
restringia a um território específico e a um grupo social específico delimitado a esse território,
a chamada pós-modernidade significa também processos de formação de novas configurações
territoriais. Se considerarmos uma dupla perspectiva — material e simbólica — sobre o
conceito de território, as novas tecnologias, as instituições (empresariais ou não, estatais ou
não) de atuação a nível global, e os fluxos globais de capitais, de informações, de mercadorias
e de pessoas, implicam na formação de territórios descontínuos, em forma de rede.
Cidades globais interconectadas de onde podem sair decisões com certo grau de
independência do Estado nacional no qual estão inseridas, instituições políticas que atuam em
diversas localidades subnacionais ao redor do mundo, redes internacionais de comércio de
mercadorias que transitam entre lícito e ilícito1, bairros de imigrantes que mantém laços
materiais e simbólicos com seus países de origem ou ainda com mais outros países2. Tudo
isso constitui a formação de “territórios-rede” (Haesbaert, 2004) e a “desestabilização das
antigas hierarquias escalares” (Sassen, 2010). Além disso, do ponto de vista das práticas e dos
bens culturais, observa-se também que os fluxos não são unidirecionais, mas possuem via de
mão dupla (não com igualdade de condições) entre centro e periferia3.
Tendo em vista todas essas questões, devemos trabalhar para construir ferramentas
analíticas que tornem a análise das ciências sociais capazes de superar dicotomias e de
apreender o movimento dialético entre macro e micro, sistema e processo, estrutura global e
práticas locais, e ainda entre as diversas esferas sociais pelas quais os indivíduos perpassam.
Nesse
sentido,
a
orientação
metodológica
desse
trabalho
faz
referência
fundamentalmente às três linhas de intensidade citadas pela Socióloga Vera da Silva Telles
(2006). As trajetórias pessoais apanhadas através de entrevistas semi-estruturadas e
1
Ver Pinheiro-Machado, 2008.
2
Ver Berg, 2006.
3
Ver Hall, 2003.
275
articuladas com tempo social-histórico compõe a linha vertical das cronologias. A análise da
espacialização das práticas urbanas através de observação participante, e a correlação entre
diferentes histórias e eventos compõem a linha horizontal das espacialidades. Ambas vão ser
atravessadas por uma linha perpendicular, composta pelos eventos políticos e, nesse caso,
também por um levantamento de produções historiográficas a respeito do movimento
cineclubista.
CINECLUBE: CONSTRUÇÃO DE PARÂMETROS
Trabalhar com essa temática exigiu levar em consideração que não há uma ideia
fechada de cineclube, há cineclubes. Por esse motivo, é importante expor alguns parâmetros
de análise e características gerais que foram construídos e utilizados para conceitualização do
objeto.
As principais características encontram-se cristalizadas na Instrução Normativa nº63
de 02 de outubro de 2007 da Agência Nacional do Cinema (ANCINE). Cineclubes, segundo o
Art. 1º “são espaços de exibição não comercial de obras audiovisuais nacionais e estrangeiras
diversificadas, que podem realizar atividades correlatas, tais como palestras e debates acerca
da linguagem audiovisual”. Em linhas gerais, a atividade cineclubista, portanto, consiste em
um compromisso de difusão cultural sem fins lucrativos. Esse compromisso pode estar
vinculado a outros objetivos pedagógicos, como no caso de cineclubes criados pela Igreja
Católica ou por sindicatos.
A dinâmica das sessões consiste basicamente na exibição de uma obra cinematográfica
(alguns cineclubes misturam outras linguagens artísticas) seguida por um debate cujo eixo
variará conforme os objetivos do cineclube em questão. Desde uma discussão a respeito dos
valores cristãos até aspectos revolucionários da obra, o ponto comum é a construção de uma
relação entre público, obra e produtor que se diferencia daquela encontrada no circuito
comercial. Essa atividade possui um aspecto político que será melhor debatido mais a frente,
mas por ora é necessário ter em mente que os cineclubes objetivam construir uma relação
orgânica com seu público frequentador.
OS CINECLUBES DA BAIXADA FLUMINENSE
Na região metropolitana do Rio de Janeiro, há uma maior proliferação de cineclubes
na Baixada Fluminense e na Zona Norte da capital, estabelecidos em centros culturais ou
espaços improvisados. Não tenho o objetivo de abarcar aqui todos os cineclubes existentes,
isso seria uma tarefa difícil tendo em vista a dinâmica de transformação dessa atividade: é
276
grande a velocidade com que cineclubes param/retomam/encerram suas atividades enquanto
outros novos são criados. Porém, ao fazer um mapeamento inicial, destaco os cineclubes Mate
com Angú em Duque de Caxias, Buraco do Getúlio em Nova Iguaçu, Donana em Belford
Roxo, Subúrbio em Transe em Vista Alegre, Beco do Rato no Complexo da Maré, e
CineCamarim em Jacarepaguá.
Aqueles dois primeiros foram melhor analisados graças às atividades de pesquisa e à
dissertação de mestrado profissionalizante em História, Bens Culturais e Projetos Sociais pela
Fundação Getúlio Vargas “C m
v
M
m A
ú” de Maria Gôuvea. Ambos os
cineclubes Mate com Angú e Buraco do Getúlio surgiram no começo dos anos 2000. Por
estarem inseridos em uma região fora do eixo cultural comercial4, é constitutiva de suas
atuações a valorização da identidade e da produção cultural locais. À título de melhor
ilustração de suas motivações e objetivos, reproduzo a auto-descrição do Mate com Angu que
encontra-se em seu blog na internet5:
O Cineclube Mate Com Angu nasceu em 2002 da necessidade de alimentar na
Baixada Fluminense uma movimentação e uma discussão sobre a produção/exibição
de imagens e suas implicações sociais e estéticas na realidade e no modo de vida da
região. Sistematicamente, o grupo vem atuando em três frentes distintas, embora
interligadas. A primeira são exibições de filmes, que acontecem em alguns lugares
fixos e em algumas vezes itinerantes. Com o foco no curta-metragem, as exibições
apostam na força da produção mais atual dos realizadores independentes do cenário
brasileiro, cuja demanda é urgente e necessária para a vitalização da relação entre
público e o curta-metragem. As sessões são gratuitas e têm formado um grande
público na região ávido por informação cinematográfica, introduzindo o expectador
caxiense no fervilhante e instigante universo das novas produções curta-metragistas.
Nos sete anos o grupo vem promovendo a difusão da linguagem cinematográfica na
Baixada não só através de exibições, mas também com debates, produções, festas e
cursos. Outra linha de atuação é colocar a Baixada Fluminense no mapa cultural do
país, assim como gerar discussões sobre o cinema e a produção audiovisual na
Baixada Fluminense, notadamente, discussões sobre suporte (relações entre película
e digital, por exemplo), sobre distribuição, sobre tendências e sobre novos caminhos
da linguagem audiovisual. As discussões ocorrem em fóruns ao vivo e via internet e
já aglutinam boa parte dos interessados no assunto pela cidade, permitindo um
intercâmbio entre o conhecimento de profissionais e estudiosos da cidade do Rio de
Janeiro e o público em geral. A terceira vertente é a produção de filmes com a marca
dos habitantes da região, empreendimento que vem tendo êxito, uma vez que dois
dos filmes produzidos em 2004 já arrebataram importantes prêmios em festivas
nacionais. O Cineclube Mate Com Angu é um agente provocador na desmistificação
do fazer cinematográfico. Acreditamos que o cinema pode proporcionar uma
experiência lúdica e pessoal. Contribuindo minimamente a sermos maiores, livres, e
que de alguma forma viver possa se tornar divertido, intenso. É também através da
4 A Baixada Fluminense é consensualmente delimitada pelos municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu,
Belford Roxo, São João de Meriti, Nilópolis, Mesquita, Queimados e Japeri. É uma região com grande
participação no PIB brasileiro e constituída por boa parte da população do Estado fluminense, mas
caracteriza-se por ser uma área de população mais pobre na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Observa-se uma precarização da infraestrutura e uma grande concentração de renda. Duque de Caxias, por
exemplo, possui o segundo PIB do Estado, mas é apenas o 52º no ranking do IDH.
5
O cerol fininho da Baixada. Disponível em: <http://matecomangu.wordpress.com/sobre/>. Acessado em: março
2012.
277
educação cinematográfica que podemos construir uma sociedade mais humana, mais
digna e mais possível. Vamos fazer um filme?
As atividades de pesquisa, seja em campo ou por análise de material coletado,
levaram ao estudo sobre o conceito “formação de público”. Identificou-se que,
historicamente, essa expressão se dirigia a uma formação específica: política. O Professor
Ricardo Brisolla Ravanello, da Universidade Comunitária Regional de Chapecó
(Unochapecó), explica:
Ao se reduzir o cinema a uma atividade comercial, tem-se a implicação geral da
atividade capitalista, pois, enquanto produto, o filme passa a ter um caráter único de
entretenimento – e, por isso, menor. Passa a ser concebido não pela potência
criadora do cineasta ou do roteirista, mas pela expectativa de lucro no mercado. [...]
Com os cineclubes, inicia-se um processo em que criação, produção, distribuição e
consumo não se configuram como coisas separadas, mas um processo em que foi
possível ver e entender de forma completa o cinema. O aprofundamento de uma
proposta alternativa independente nos processos de recepção, produção e
distribuição de filmes foi o que podemos chamar de subversão do cinema comercial,
que se limitava a produzir e exibir, sem, em nenhum momento, relacionar esses
processos. Ao apresentar tal arte de forma segmentada e desconexa, não se
concretizam vários componentes que são fundamentais para se entender o cinema na
sua complexidade, como sistema potente de produção de bens simbólicos, de
atitudes e valores, como legitimador cultural ou como possibilidade de
representação e reflexão da realidade. (Ravanello, 2008)
Ou seja, a atividade cineclubista, nessa perspectiva, é subversiva ao tentar dissolver a
relação mercadológica do cinema e ao construir nos cineclubes uma relação alternativa entre
público, artista e obra cinematográfica.
Porém, ao analisar o discurso de atuais organizadores de cineclubes e o uso por eles
feito da expressão, observa-se um processo de deslizamento de sentido, chave pra
compreender uma mudança paradigmática da atividade cineclubista: a formação é de um
público fundamentalmente consumidor. A ideia de política foi ressignificada: os cineclubes
buscam valorizar a produção cultural local, ser um canal de acesso a bens culturais para uma
população à margem do eixo cultural, e formar um público que consuma uma produção de
cineastas que possuem pouco espaço no circuito comercial por estarem à margem das grandes
produtoras e por trabalharem com uma estética diferenciada — não massificada. O horizonte
se estreitou.
Para compreendermos melhor essas transformações, seguirei desse ponto em diante
com uma análise sociológica feita através de um levantamento de produções historiográficas e
de teorizações de sociólogos brasileiros. Busquei relacionar o percurso histórico do
movimento cineclubista com os diferentes contextos sociopolíticos da sociedade brasileira. É
importante ressaltar inicialmente que obtive dificuldade para encontrar produções acadêmicas
a respeito do tema, tendo sido utilizados os artigos “Cineclubismo no Brasil: esboço de uma
278
história” da mestranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense Débora
Butruce, e “Cineclubismo: prática subversiva” do mestre em Ciências da Linguagem pela
Universidade Federal de Santa Maria e Professor da Universidade Comunitário Regional de
Chapecó Ricardo Brisolla Ravanello. Para além da academia, foram utilizados escritos do
cineclubista Felipe Macedo e entrevistas fornecidas ao livro “Memória cineclubista de
Pernambuco”, organizado por Isabela Cribari.
MOVIMENTO CINECLUBISTA: ASCENSÃO E DECADÊNCIA
O primeiro cineclube surge em junho de 1928, no Rio de Janeiro: o Chaplin Club,
fundado por “personalidades de grande prestígio no meio cultural carioca da época, fazendo
com que o cineclube alcançasse forte repercussão” (Butruce, 2003, p.1).
A partir dos anos de 1940, inicia-se um primeiro momento de expansão quantitativa do
movimento caracterizado por um forte caráter acadêmico e intelectual. A Igreja Católica teve
grande importância para essa expansão. “Desde 1936, criado pela Ação Católica Brasileira,
funcionava o Serviço de Informações Cinematográficas, de onde eram divulgados boletins
com as cotações morais dos filmes exibidos no Brasil” (Butruce, op. cit., p.2). Em Recife, por
exemplo, cineclubistas da época, em entrevistas para o já citado livro “Memória cineclubista
de Pernambuco”, destacam a importância do Vigilanti Cura: cineclube de preceitos morais
católicos criado em 1953, cujo nome é uma citação de uma encíclica do Papa Pio XI e cujo
funcionamento se dava no edifício do Círculo Católico, no centro da cidade. Seu público entre
60 e 100 pessoas era composto, em sua maioria quase absoluta, por universitários e católicos
de classe média. A maioria dos filmes exibidos eram estrangeiros e em películas 16mm
alugadas em distribuidoras estadunidenses. O objetivo era debater a respeito de uma estética
“mais artística” e estimular a formulação crítica do público a respeito das obras. No mesmo
livro, os cineclubistas Celso Marconi e Jomard Muniz de Brito descrevem o caráter elitista e a
ausência de “uma reflexão acerca do modo de agir e de viver na sociedade” nesse momento
do movimento.
A partir de meados da década de 1950, o movimento encontra-se mais
quantitativamente amadurecido e surgem as primeiras entidades de representação e
organização. Primeiro, o Centro de Cineclubes de São Paulo, seguido pelas Federações do Rio
de Janeiro, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, do Nordeste e do Centro-Oeste. O
amadurecimento organizativo e quantitativo do movimento culmina na fundação do Conselho
279
Nacional de Cineclubes (CNC)6 em 1962. Nesse momento, segundo Butruce, os cineclubes
“apontavam para uma lenta superação de seu elitismo” (op. cit., p.5), provavelmente sob
influência da ascendente teologia da libertação.
Em tempos de ditadura civil-militar, o movimento cineclubista se junta aos
movimentos sociais de resistência e suas entidades caem na clandestinidade. Por conta da
censura, ter acesso às películas torna-se uma tarefa difícil e perigosa. Começa a delinear-se
um caráter mais militante na atividade cineclubista, como podemos observar na entrevista do
cineasta Cláudio Assis7:
Eu saí daqui com um projetor passando filme até o Ceará. Saí de ônibus, de carona,
com o operário Antonio Flores, passando Braços Cruzados, Máquinas Paradas. E eu
passava chapéu, comecei a passar chapéu pra andar. E passava no bairros operários.
E eu abri um cinema no Cabo de Santo Agostinho. [...] Era uma coisa organizada,
que debatia ideologicamente, debatia a arte, o cinema como uma arte, só passava
filme que tivesse um compromisso, só passava Bergman, só passava Buñuel, só
passava Fellini, só passava os fodão, ou filmes engajados, filme que tivesse alguma
coisa a dizer, dependendo do tema. [...] Existia essa posição, que era luta. Tinha uma
formação de liderança, era liderar essas pessoas que estavam aí, que lutavam. Era
uma resistência. Uma resistência cultural à ditadura militar. E toda esquerda estava
no movimento cineclubista: PCdoB, MR8, todas as esquerdas estavam no
movimento. E a direita também. [...] Se dava de congresso, de conselho, a reunião
do encontro no Conselho Nacional, federação, as federações. Tudo isso havia uma
movimentação. E lá era luta. Luta ideológica. Era pau!
As entidades se reorganizam na década de 1970 e o CNC cria, em 1976, um
departamento para distribuição alternativa de filmes em películas 16mm, em contraponto ao
constante crescimento das distribuidoras estadunidenses: a Distribuidora Nacional de Filmes
(Dinafilme). Sua atividade é marcada por constantes invasões e apreensões pela Polícia
Federal e por dificuldades financeiras. No final da década, “a maioria dos cineclubes – que já
são 600 filiados nominalmente ao CNC – é de bairros das periferias das grandes cidades”
(Macedo, 2004).
A partir da segunda metade da década de 1980, o movimento começa a entrar em
decadência, chegando praticamente à extinção no começo dos anos 19908. Entre as produções
historiográficas analisadas, há discordância a respeito dos motivos desse processo. Porém,
uma abordagem sociológica do contexto sociopolítico desse momento histórico pode dar
algumas pistas. O momento é de redemocratização e muitos grupos políticos, antes repelidos
6
Não confundir com o Conselho Nacional de Cinema (Concine), criado em 1976 e extinto em 1990.
7Cineclubista das décadas 70 e 80 e diretor de filmes como “Amarelo Manga” (2002), “Baixio das Bestas”
(2006) e “Febre do Rato” (2011).
8
Situação não somente retratada por Butruce (2003) e Macedo (2004), mas também visível pelo encerramento
das atividades do CNC e pela ausência de encontros regionais e nacionais do movimento cineclubista durante
esse período. Até mesmo nas entrevistas dos cineclubistas dos anos 1990 para o livro “Memória cineclubista
de Pernambuco” observa-se que suas atividades enquanto tais se deram fundamentalmente nos primeiros ou
nos últimos anos dessa década, evidenciando-se o vazio do movimento nesse meio tempo.
280
pela ditadura civil-militar e tendo encontrado no cineclubismo um campo frutífero de atuação,
agora redirecionam seu foco para a disputa do Estado. Além disso, devemos suspeitar que a
decadência do cineclubismo, o qual consistia em “militantismo” e “luta ideológica”, fizesse
parte de um processo muito mais amplo: a figura do “trabalhador” reivindicador de direitos e
cidadania protagonista dos movimentos sociais a partir da década de 1970, calcada na ideia do
trabalho fordista e estável, vai sendo estilhaçada nas décadas seguintes. Sobre sua cabeça
talvez caiam os cacos do muro de Berlim. Observa-se então um processo de formação de nova
configuração social em que
os “parceiros” da fábrica, da sociedade civil, das interseções entre público e o
privado [...] não mais se negam mutuamente. Busca-se, assim, despedir da cena
pública as figuras litigiosas do “trabalhador” e das “classes sociais”, que supõem
uma divisão “infrutífera” no seio da sociedade e que reivindicam o direito ao
conflito. [...] O corolário do consensualismo pós-democrático seria a proliferação de
um regime de sondagem permanente da opinião individual, diluidora de qualquer
figura coletiva anti-comunitária. (Bezerra, 2008, p.3)
No mercado cinematográfico, observa-se uma progressiva concentração de capital nas
mãos de distribuidoras estadunidenses, o fechamento de diversas salas de cinema pelo país e
uma despreocupação por parte do governo federal que se evidencia no fechamento do
Ministério da Cultura em 19909 e na privatização de empresas estatais ligadas a esse mercado.
A passagem para equipamentos de películas 35mm começa a se tornar ponto de discordância
dentro do movimento cineclubista. Até o começo da década de 1990, as atividades do CNC
cessam e as poucas salas de exibição em 35mm passam paulatinamente para um caráter mais
comercial. Destaco aqui o Estação Botafogo, no Rio de Janeiro, que posteriormente se tornou
uma rede, o Grupo Estação.
Os “novos” cineclubes – e já algumas salas de estrutura juridicamente comercial –
vão cada vez mais ocupando um segmento de mercado que sempre existiu e que
também havia ficado temporariamente vazio em meio às profundas transformações
que estavam ocorrendo no cinema no Brasil. Trata–se do nicho – bastante
significativo, aliás – de tudo que não é cinema americano, e mais claramente o
cinema europeu (Macedo, op. cit.).
O cineclubismo sai da inércia no começo dos anos 2000. Principalmente nas periferias
das grandes cidades, surgem cineclubes com novas características. Dentre eles, encontram-se
os cineclubes da Baixada Fluminense que foram observados pela pesquisa.
A NOVA GERAÇÃO DOS ANOS 2000
9
O Ministério da Cultura foi transformado em Secretaria da Cultura no governo de Fernando Collor de Mello.
Essa ação foi revertida dois anos depois durante o governo Itamar Franco, não significando, porém, a
construção de um projeto político voltado ao meio cultural.
281
Não busco, nesse artigo, dar explicações definitivas a respeito do surgimento de novos
cineclubes observado no começo dos anos 2000. Porém, novamente, alguns elementos
constitutivos desse processo podem ser dados do ponto de vista sociológico. A seguir, darei
quatro. Porém, gostaria de ressaltar que não se trata de uma tentativa de captar uma relação de
causa e efeito que culminou no processo de renascimento cineclubista. Essa divisão em quatro
elementos possui um caráter organizativo.
O primeiro elemento recebe sua posição por sua obviedade: o surgimento de novas
tecnologias digitais e seu processo de barateamento no Brasil, permitindo maior facilidade na
produção, no acesso e na exibição de produções audiovisuais. Os equipamentos voltados às
películas de 35mm começaram a perder espaço para os equipamentos digitais voltados aos
novos formatos de mídia e às novas formas de armazenamento (CD, DVD, e posteriormente
os discos rígidos portáteis). Seu barateamento foi permitindo cada vez mais sua obtenção por
parte de indivíduos ou de pequenos coletivos de periferia. Porém, a mera existência de
equipamentos não basta para explicar a motivação para a formação de cineclubes.
O segundo elemento é uma nova configuração identitária que só faz sentido se
analisarmos o contexto sociopolítico no qual está inserido. O estilhaçamento supracitado da
figura do trabalhador fordista protagonista dos movimentos sociais na década de 1970 ganha
ainda mais sentido se observarmos que, a partir do final da década de 1980, inicia-se um
processo de desproletarização do trabalho na medida em que se busca neoliberalizar a
economia brasileira. No Brasil, assim como em diversos outros países, o Estado “submete-se
a receituários ortodoxos de instituições financeiras e sua associação com grandes empresas
garante a estas últimas as condições de infra-estrutura e serviços necessárias” (Kovarick,
1988, p.29). Nesse período, o mercado financeiro é desregulamentado, as dívidas interna e
externa são totalmente financeirizadas, o controle cambial é deixado de lado, empresas
estatais são privatizadas. Francisco de Oliveira (2007) aponta que as medidas neoliberais
dobram a taxa de desemprego em um período de apenas 10 anos, alcançando 8% em 2002.
Ainda segundo ele, nos primeiros anos do século XXI, mais de 50% da população brasileira
era pobre, e um terço se encontrava abaixo da denominada “linha de pobreza”. A chamada
“flexibilização” das regulamentações jurídicas trabalhistas minou os mecanismos de
distribuição de renda que estão historicamente vinculados ao trabalho sob contrato formal e
proporcionou um acirramento da já existente distribuição desigual de renda. Nas periferias,
cresce uma massa que transita entre trabalho formal e informal, entre lícito e ilícito.
Essa categoria — periferia —, já antes utilizada na academia em estudos sociológicos
a respeito da classe trabalhadora, começa a percorrer a classe média demarcando um estigma.
282
São construídas (ouso dizer como nunca antes) representações da periferia ou da favela
enquanto espaços de desordem, violência, imoralidade e precariedade. Porém, nessa fluidez
“entre trabalhadores ativos e o que antes era então chamado de exército industrial de reserva”
(Telles, 2006, p.46), surge um movimento de fagocitose da categoria por seus próprios
moradores. Começa a ser moldada uma identidade de periferia ligada à potência e carregada
de orgulho. A arte ganha protagonismo, e no vácuo de um Estado que se pretende mínimo —
visão a qual será relativizada mais a frente nesse trabalho —, coletivos tentam construir suas
próprias alternativas à margem do eixo comercial cultural, valorizando a produção local.
O terceiro elemento parte da visão sobre Estado neoliberal não apenas como um
conjunto de medidas econômicas, mas como uma lógica de governo e seu conjunto de
técnicas, no sentido de “governamentalidade” (Foucault, 1987). Surgem, a partir do final da
década de 1980 “os programas técnicos governamentais e não-governamentais, dirigidos
diretamente para a atenuação das carências críticas em áreas pobres e degradadas da cidade e
para a falta de acesso a seus habitantes a meios de superá-las” (Paoli, 2007, p.228). As
mazelas, ou “problemas sociais”, provenientes do acirramento da desigualdade social
deveriam ser isoladas, objetificadas e pretensamente resolvidas com programas técnicos
específicos. Observa-se um processo de esvaziamento da política — no sentido de Ranciére
(1996), ou seja, constituída em dissenso, por ser a reclamação da parte dos que não tem parte.
O Estado, de força centrífuga de conflitos políticos e de agente distribuidor de renda, passa a
ser gestor da escassez. Nesse cenário, emergem a celebração do individualismo empreendedor
e novas formas de associação a ele vinculados atuantes nas periferias das grandes cidades.
Emergem projetos financiados por editais governamentais que identificam grupos de risco:
temos como exemplo os cursos audiovisuais voltados aos jovens carentes para que estes não
atuem junto ao tráfico de drogas. Observou-se nas atividades de pesquisa que muitos jovens
organizadores de cineclubes são provenientes desses cursos e tiveram neles seus contatos
iniciais com a produção audiovisual. Para além, portanto, do mero barateamento de
equipamentos audiovisuais, foi fundamental o acesso e a capacitação necessários
proporcionados por esses projetos.
Há ainda um quarto elemento: o interesse do governo federal no renascimento do
cineclubismo. Com esse objetivo, após um vácuo de 14 anos sem que houvesse encontros
nacionais, ocorre a 24ª Jornada Nacional de Cineclubes, por iniciativa do Ministério da
Cultura (MinC). As atividades do CNC são retomadas logo em seguida. Além disso, em 2008,
com o início das atividades do Programa Cine Mais Cultura, os cineclubes passaram a ganhar
equipamentos audiovisuais e acesso a um acervo de produções cinematográficas nacionais, a
283
Programadora Brasil. Encontrar-se a seguinte apresentação do programa em seu portal
online10:
Com a concentração de salas comerciais de cinema em apenas 8% do território
nacional e a quantidade muito reduzida de obras audiovisuais brasileiras na TV, a
maioria dos filmes produzidos no país permanecem inéditos para grande parte de sua
população. Norteado por demandas apresentadas em diálogos com a sociedade civil,
o Ministério da Cultura, sob orientação do Programa Mais Cultura, promove a
ação Cine Mais Cultura. Através de editais e parcerias diretas,
a iniciativa disponibiliza equipamento audiovisual de projeção digital, obras
brasileiras do catálogo da Programadora Brasil e oficina de capacitação
cineclubista, atendendo prioritariamente periferias de grandes centros urbanos e
municípios, de acordo com os indicadores utilizados pelo Programa Territórios da
Cidadania.
O Programa Territórios da Cidadania também foi lançado em 2008 e conta com a
atuação de 22 Ministérios e 120 territórios delimitados em áreas rurais de todos os Estados
brasileiros. Seu objetivo é a universalização de direitos básicos através de estratégias de
desenvolvimento territorial sustentável11.
Esses programas estão em consonância com a postura adotada pelo MinC a
partir de sua reestruturação em 2003: mais sensível aos movimentos sociais, ele passou a dar
mais atenção ao mercado cinematográfico brasileiro e a enxergar o acesso aos bens culturais
enquanto um direito. A estratégia, portanto, é incentivar a formação de cineclubes nas
periferias das grandes metrópoles e em municípios periféricos em relação às grandes
metrópoles, tendo em vista o grande déficit de salas de cinema no território nacional. Por
outro lado, na medida em que os cineclubes proporcionam o público para cineastas
independentes, ameniza-se a tensão criada pela grande concentração de capital por parte de
poucas produtoras e distribuidoras. Uma obra financiada pelo MinC, que dura pouco tempo
em cartaz nos cinemas comerciais e que pouco arrecada, passa a ser disponibilizado
gratuitamente na Programadora Brasil e pode alcançar um público telespectador maior nos
cineclubes, equipados pelo Cine Mais Cultura. A atividade cineclubista, portanto, não
somente garante o público de cineastas independentes, como garante para esse público, que
em boa medida se encontra à margem do eixo comercial, uma opção de acesso a alguma
produção cultural.
ALGUMAS REFLEXÕES CONCLUSIVAS
Considerando-se o papel delimitado pelo governo federal, o cineclubismo corre o risco
de perder o caráter de movimento social autônomo reivindicador de novos direitos, para
10
11
Disponível em: <http://www.cinemaiscultura.org.br/>. Acessado em: agosto 2012.
Ver <http://www.territoriosdacidadania.gov.br>. Acessado em: agosto 2012.
284
tornar-se uma política pública de acessibilidade ao mercado cultural. Na avaliação de Felipe
Macedo, cineclubista das décadas de 1970 e 1980:
Ao militantismo de outras eras substituiu-se uma certa “profissionalização” de um
núcleo central de “produtores” do cineclubismo em escala nacional, ligados à
pequena política e a suas carreiras pessoais e/ou que vivem do Estado ou da sua
condição de “representação” do movimento. [...] A defesa dos direitos do público
reduziu-se a uma concepção utilitária de “acessibilidade” que mal esconde a
ideologia de busca de uma plateia e um “mercado” para essa produção.
(Macedo, 2011)
À frente do cineclubismo, assim como da periferia enquanto categoria fagocitada e
transformada por seus moradores em uma marca identitária, colocam-se duas relações
problemáticas: com o mercado e com o poder público.
Se antes a periferia era vista enquanto espaço de ausência e de violência, hoje há um
movimento de hiperexaltação da periferia enquanto potência criativa. Celebram-se iniciativas
“façamos por nós mesmos” ou categorias como “gambiarra”. Essa guinada de um extremo ao
outro pode fazer perder de vista o âmbito do conflito gerado pela ausência que também é
constitutiva da periferia: ausência gerada pelo fornecimento visivelmente desigual de serviços
e equipamentos entre ela e o centro financeiro e simbólico.
Por outro lado, é constitutiva dessa identidade periférica uma crítica mais sistemática à
desigualdade social e à lógica comercial de produção cultural, porém, como mantê-la ao passo
que os artistas culturais periféricos conquistam um espaço no mercado e a arte de periferia
transforma-se em nicho de mercado? Em termos gramscinianos 12, o risco (ou talvez
tendência) do cineclubismo e dos movimentos periféricos nesse momento é perder o caráter
contra-hegemônico e passar a ser não-hegemônico na medida em que podem contrariar os
interesses das grandes corporações sem questionar a lógica mercadológica constitutiva. O
grande dilema atual é como ser contra-hegemônico e, ao mesmo tempo, lutar para viver
dignamente de sua atividade? A cultura de periferia, portanto, anda em uma corda bamba
entre criticar as regras do jogo e disputar um espaço no jogo.
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287
O ESPAÇO FREQUENTADO E O ESPAÇO PLANEJADO:
PERSPECTIVAS ANTAGÔNICAS?
Um estudo de caso no Morro Vital Brazil – Niterói.
Heitor Vianna Moura1
RESUMO
A partir de um diálogo entre o campo das ciências sociais e da arquitetura e urbanismo, o
presente trabalho visa promover um exercício de reflexão sobre as dinâmicas e as relações
entre o morador e o arquiteto durante um projeto participativo de requalificação de moradias.
Resultado do estudo de caso do “Projeto Arquitetos de Família” no Morro Vital Brazil
(Niterói), a pesquisa buscou decifrar as dinâmicas relacionais entre tais atores que, no fundo,
revelariam diferentes percepções do espaço privado. Nesse sentido, buscou-se confrontar o
modelo fragmentado, funcional, normatizado e, acima de tudo, desprovido da experiência de
frequentação dos projetos arquitetônicos tradicionais com as práticas reais e cotidianas do
homem ordinário. Portanto, para além da questão habitacional, o que estaria em questão é o
próprio papel do arquiteto e urbanista, que não mais deve pensar sua prática a partir de uma
coerência desincorporada, mas sim a partir da possibilidade da incorporação de tantas
coerências quantos os sujeitos sejam capazes de produzir.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa se insere no debate atual das políticas habitacionais em vigor na
cidade do Rio de janeiro. No entanto, ao contrário dos estudos focados nas políticas de
remoção, indenização, realocação e construção de conjuntos habitacionais, seu olhar está
focalizado na relação entre o arquiteto e o morador em projetos de requalificação de moradias,
buscando, assim, revelar as percepções destes atores sobre os espaços privados.
O interesse em estudar essa relação em particular se revelou na leitura de estudos que
apresentam as dinâmicas construtivas em conjuntos habitacionais após a sua ocupação2. O que
eles apontam é que ao desconsiderar seus futuros moradores enquanto produtores de signos
classificatórios próprios e possuidores de demandas particulares ignoram também que as
moradias sofrerão profundas modificações em seu processo de ocupação, sejam elas físicas e
1
Graduando do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) - Bolsista PIBIC-CNPQ.
Nome: Heitor Vianna Moura; E-mail: [email protected].
2
Andrade e Leitão (2000) apresentam uma leitura sobre o fenômeno da “favelização dos conjuntos
habitacionais”, que revela o descompasso entre os espaços físicos projetados e o viver cotidiano de seus
moradores.
288
estruturais ou em seus usos e significados.
Tendo em vista as consequências da exclusão do futuro morador e frequentador do
espaço projetado pelos arquitetos e urbanistas, o atual estudo buscou analisar uma experiência
em que morador tivesse um papel ativo na produção de sua habitação, permitindo que o
mesmo interagisse com arquitetos em um processo dialógico de elaboração de um projeto de
modificação em sua moradia. A experiência foi possível através da pesquisa de campo
realizada por intermédio das ações da ONG “Soluções Urbanas” no Projeto Arquiteto de
Família no Morro Vital Brazil em Niterói.
O estudo desse espaço interacional possibilitou a observação das diferenças entre as
normas lógico-acadêmicas manejadas pelos arquitetos-urbanistas em face às que se
manifestam de forma “espontânea” 3, a partir de valores culturais/subjetivos dos usuários das
moradias. O arquiteto, sobretudo, tentando submeter à habitação a padrões racionais de
organização, enquanto o morador busca criar um espaço de intimidade e comodidade que
fosse além da simples utilização de estruturas fisicamente bem definidas. Ou seja, tal
profissional pensa no espaço enquanto um fato material e objetivo a ser ocupado por atores
que devem se enquadrar as funcionalidades normatizadas e o morador, ao contrário, com sua
experiência da freqüentação e vivência de seu lar, que só se completa a partir da
resignificação do mesmo espaço a partir de sensações, lembranças e desejos pessoais
marcadamente subjetivos (LEITÃO, 2007). Nesse sentido, o que está em questão é a
capacidade do arquiteto-urbanista superar a imposição de uma funcionalidade-estética
formalista visando à uniformização do tecido urbano, em favor do respeito da especificidade e
complexidade desses espaços. Levantando, assim, questões que superam os limites da
habitação em direção ao espaço urbano como um todo.
OBJETO
Bachelard (1993), em sua célebre obra A poética do espaço, faz uma particular análise
sobre o espaço da moradia. Ao contrário de outros trabalhos sobre o tema, o autor busca
compreender a habitação independente da realidade em que está inserida, portanto
independente das condições concretas e reais não só do espaço, mas de seus sujeitos. A casa
por ele analisada é universal, para todo e qualquer sujeito, em qualquer lugar e qualquer
3
Na ausência de um termo mais apropriado na descrição fenômeno descrito, será utilizada a noção de
espontaneidade para descrever espaços em que a presença das normas construtivas formais (planos
urbanísticos, habite-se, impacto de vizinhança, estudos estruturais,...) raramente estão presentes. O que não
significa uma total ausência de normas, mas limites outros (acordos entre vizinhos, autorização da associação
de moradores, preocupação com a instabilidade do terreno,...).
289
momento histórico. Assim, seu estudo propriamente fenomenológico visa atingir a essência
primeira da função de habitar, “(...) tentando integrar todos os seus valores particulares num
valor fundamental.” (p. 198). Segundo o autor, a habitação é “o nosso canto no mundo”,
“nosso primeiro universo”, “um verdadeiro cosmo”. Assim, a casa não se resume a estrutura
física em que os homens se protegem das intempéries, mas o local em que o homem vive em
sua realidade e virtualidade, abrigando o devaneio, o sonho e os dias passados e futuros de seu
morador. Sem ela o homem seria um ser disperso.
O autor, portanto, dá a casa o status de objeto privilegiado do estudo dos valores da
intimidade. De Cearteau (1994), em uma análise menos filosófica, mas nem por isso mais
objetiva dos espaços privados, se aproxima de seu conterrâneo ao considerar tais espaços um
“lugar protegido” das pressões do corpo social sobre o corpo individual, onde, teoricamente, o
plural dos estímulos seria filtrado. Em última instância, o que esses autores nos apresentam é
uma dimensão da habitação que protege seus moradores não só fisicamente, mas
simbolicamente, permitindo que estes manifestem suas subjetividades, vivências e
idiossincrasias.
No entanto, o espaço da habitação não deve ser pensado apenas como o local em que o
sujeito exterioriza todas as suas qualidades, sentimentos e defeitos (ROUANET, 2007),
atendendo assim as todas as suas demandas, socioculturais, econômicas e idiossincráticas
(AMORIN, 2007), mas o resultado de um movimento espiral das demandas particulares do
morador e os limites impostos pelo próprio espaço e as regras que os regulam. Portanto, é
somente a partir dessa relação dialética que é possível pensar o espaço produzido e praticado
pelos sujeitos em seu cotidiano. Cotidiano este que é estruturado e estruturante de todos os
espaços frequentados por esses sujeitos.
A habitação, como foi definida pelos autores supracitados, é antes de tudo um espaço
que só se completa com a presença de seu morador e, mais do que isso, é produzida, mesmo
que em sua virtualidade, a imagem de semelhança deste. Nesse sentido, é possível pensar a
unicidade de cada lar a partir da unicidade de cada morador, sem que a análise fique restrita a
microcosmos particulares. Por isso a importância de não considerar as casas no Morro Vital
Brazil, inserido na lógica da flexibilização construtiva, como um elemento separado de seu
contexto, pelo contrário ela modifica e compõem o seu entorno, assim como o entorno
interfere direta e indiretamente na sua construção, sem que com isso as possibilidades de
transformação sejam norteadas por parâmetros que alheios aos seus sujeitos.
Tendo em vista o alcance das reflexões acerca das dinâmicas presentes no espaço
estudado, é fundamental explicar de que maneira o Projeto Arquiteto de Família, em execução
290
no Morro Vital Brazil, visa lidar com o complexo ambiente em que atua. Em linhas gerais, o
projeto está interessado em promover melhorias nas habitações existentes no local oferecendo
assistência técnica gratuita4, permitindo que os moradores tenham acesso a profissionais
capazes de oferecer soluções seguras, minimizadoras de riscos e promotoras de bem estar às
suas reformas. O projeto se diferencia através de sua metodologia participativa, que visa
eliminar a associação da figura do arquiteto e urbanista como elemento ordenador, impositor
de uma determinada lógica construtiva, em favor de um planejamento disposto a escutar e
incorporar os desejos de tais moradores na elaboração dos projetos de modificação. No
entanto, como foi observado ao longo da pesquisa, essa experiência nem sempre ocorre sem
disputas e conflitos.
TRABALHO DE CAMPO E ENTREVISTAS.
Dado que o ambiente estudado apresentava uma diversidade e dinâmica muito intensa,
optou-se pelo uso de duas metodologias de investigação: a observação participante e
entrevistas semi-estruturadas. O que permitiu uma percepção mais completa, dinâmica e
interativa do processo de produção de moradia.
No primeiro momento optou-se pelo uso da observação participante, uma vez que ela
proporcionaria não só o estabelecimento de relações comunicativas com as pessoas ou grupos
estudados, mas diminuiria a distância entre os discursos e as práticas concretas dos atores
sociais (MAYER, JACCOUD, 2008). Desde o princípio foi imediatamente percebido a
importância dessa relação mais próxima com o grupo pesquisado, sendo possível, ainda que
de forma limitada, senão partilhar o modo de vida dos atores, ao menos interagir de forma
duradoura com os mesmos. Nesse sentido, apesar de não ter sido viável “viver no seu íntimo a
tendência principal da cultura em que está estudando” (LAPLANTINE, 2004), a experiência
ao menos permitiu que fosse minimizada, mas nunca eliminada, a artificialidade criada
durante uma entrevista.
Numa etapa posterior da pesquisa, foram finalmente realizadas entrevistas
semiestruturadas com 9 moradores e 4 arquitetos, dentro de um universo de 100 famílias e 15
arquitetos. Na prática, foram marcadas entrevistas com os atores nos horários e espaços que
mais lhe convinham, privilegiando não uma suposta padronização, mas a produção de uma
situação em sua máxima cooperação. Seguindo essa linha de priorizar a fluidez do processo,
4
A assistência técnica é um direito legal de famílias moradoras de áreas de interesse social com renda de até três
salários mínimos, segundo a lei federal nº 11.888 sancionada no dia 24 de Dezembro de 2008. No entanto,
seu descumprimento acaba abrindo espaço para atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs),
como é o caso do projeto ora estudado.
291
negou-se a possibilidade de submeter os atores às mesmas perguntas, tendo em vista que cada
autor percebe as questões de uma maneira, não garantindo nenhuma univocidade das
respostas. Pelo contrário, a entrevista foi estruturada em eixos temáticos que se entrecruzaram
ao longo do processo, produzindo um material co-construído e, portanto, único tanto no
processo de construção como no seu resultado final.
A investigação, que se estendeu por um ano, não só buscou contemplar as mais
diversas etapas do projeto, mas ter contato com o maior número possível de interações entre
os moradores e os arquitetos. O que se observou nessas visitas foi uma relação dialógica
muito intensa, pois ao mesmo tempo em que o morador apresentava seus anseios, o arquiteto
deveria tentar satisfazê-lo, mas sem que isso rompesse radicalmente com as suas noções de
uma moradia ideal. Sendo o grande desafio a captação desses momentos de atrito, o que
dificilmente seria possível caso a pesquisa fosse produzida apenas através de entrevista.
Isso porque, em nenhuma das entrevistas aos moradores foi relatado qualquer atrito
com as opiniões dos arquitetos, tendo a sua totalidade afirmado que assim como todos os seus
desejos foram contemplados no projeto, as opiniões dos arquitetos foram de ótima serventia, o
que dificilmente se sustenta após a experiência de campo. Já os arquitetos apontam alguns
conflitos durante o processo, mas que foram quase todos superados após longos diálogos.
Contudo os mesmos divergem quantos os limites desses acordos, enquanto uns defendem
serem como consultores dos moradores, onde o fim último deve ser sempre a realização dos
desejos do habitante, outros acreditam que devem ser impostos limites claros nessa relação,
em que certos critérios de habitabilidade seriam inegociáveis.
Para exemplificar essa situação dois casos são bem elucidativos. O primeiro deles
ocorreu em uma das casas em que foi possível acompanhar duas visitas, assim como
entrevistar o arquiteto e o morador em um momento posterior. Nela os moradores gostariam
de construir um segundo andar para os quartos dos filhos, ampliando consideravelmente a
área de circulação da casa, no entanto durante o processo o primeiro andar da casa foi alugado
para um bar e seus moradores foram obrigados a construírem o segundo andar às pressas.
Essa situação inesperada obrigou que o arquiteto lançasse mão de um projeto em favor de
uma “consultoria” improvisada, como o mesmo denominou, o que no dia resultou em alguns
conflitos com relação à disposição dos cômodos5. Durante as entrevistas ambos os atores
contaram sobre o caso, mas os discursos não poderiam ser mais conflitantes. Enquanto o
5
Por exemplo, o arquiteto insistiu pela construção de uma coxinha em linha (fogão e geladeira separados pela
pia em uma linha reata), o que foi negado pelos moradores, que defenderam que tal disposição dificultaria a
preparação dos churrascos na casa.
292
morador contou ter sido essencial a presença do arquiteto e a relação não ter produzido
qualquer forma de conflito, o arquiteto relatou que essa casa abandonou o projeto e que ele
apenas opinou sobre alguns aspectos do projeto, a maioria das vezes sem sucesso. Em um
segundo caso a situação se repete, a moradora diz ter gostado bastante de ter a ajuda da
arquiteta durante a elaboração do projeto e que sem ela dificilmente a reforma de sua casa
seria possível. Já a arquiteta disse ter ficado impressionada com a distância entre o projeto e
as reformas executadas, uma vez que não reconhecia nenhum elemento do plano na
construção real.
Os dois casos nos fazem refletir sobre um aspecto importante sobre a dinâmica de
construção desses moradores. Apesar dos relatos poderem representar um indício de uma não
compreensão do morador ao projeto proposto ou um receio de contrariar o arquiteto durante a
sua elaboração, parece importante considerar que esses atores possuem noções distintas do
conceito “projeto”. Apesar de todos os moradores terem reconhecido a importância do
arquiteto no planejamento das obras, dificilmente o “projeto final” era tratado como fim
último, pelo contrário, este, na prática ou no discurso, se tratava de apenas mais uma das
etapas de uma dinâmica permanente. Já os arquitetos, mesmo enfatizando a importância de
produzir participativamente o projeto, tinham certa dificuldade em compreender a
centralidade da inconstância e perpétuo movimento nesses espaços, uma vez que o projeto,
enquanto ferramenta metodológica, parecia incapaz de responder a esses desafios.
Nesse sentido, a incompatibilidade entre as práticas tradicionais acadêmicas e os
“espaços-movimentos”6 observados no campo parece corroborar com a tese de Jacques (2004,
2006) de que são exatamente nesses espaços em que tais práticas devem ser questionadas
quanto a sua aplicabilidade. Por exemplo, foi possível observar três elementos que
constantemente estavam presentes nas casas visitadas e que indicam para processo construtivo
constante: a presença de materiais de construção guardados para futuras obras; a constante
transformação e realocação da configuração espacial dos cômodos; e o uso da laje como um
espaço de futura ocupação, ou seja, um local a ser transformado e ocupado. Tornando essas
casas o local da inconstância e do “não-planejamento" nos termos formais, o que não significa
6
Segundo Jacques (2002) “A ideia de espaço movimento não estaria mais ligada apenas ao próprio espaço
físico, mas sobretudo ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo e, ao mesmo tempo, ao
movimento do próprio espaço em transformação. O espaço movimento é diretamente ligado aos seus atores
(sujeitos da ação), que são tanto aqueles que percorrem esses espaços do cotidiano quanto os que constroem
e os transformam sem cessar. No caso das favelas os dois atores podem estar reunidos em um só, o morador
[...] no espaço em movimento o usuário passivo (espectador) se torna sempre ator (e/ou co-autor) e
participante.” (p. 56)
293
que a presença dos arquitetos seja despropositada, mas que os mesmos devem rever suas
práticas no sentido de permitir que tais dinâmicas não sejam cerceadas.
Essa questão ficou clara nas entrevistas realizadas com os arquitetos, em que muitos
deles relataram dificuldade, sua ou dos demais, em lidar com as constantes modificações
sugeridas pelos moradores ou com as obras que confrontam os projetos sugeridos. O que
revela certo apego aos projetos já planejados, quando, na verdade, deveriam ser concebidos
como um processo sempre sujeito a revisões, tendo em vista que é fruto das necessidades
imediatas e futuras de seus moradores. Como fica claro na resposta quase que unívoca dos
moradores quando questionados sobre a execução das obras, tais como foram planejadas no
projeto: “Acho que sim, mas
q
v
f
m
v
m
h
...”.
Tal dificuldade parece ter correspondência com duas questões: a flexibilidade
construtiva, que parece ter correspondência com que Jacques (2003) caracterizou de
rizomático7, e formação dos profissionais entrevistados, cuja graduação privilegiou em sua
grade disciplinas voltada para os aspectos estruturais, estéticos e funcionais da casa, assim
como a promoção de trabalhos práticos completamente divorciados da realidade dos
habitantes, tendo vista que são planejados a partir de um espaço e de um morador hipotético.
O que torna fundamental uma breve investigação sobre as bases teórico-metodológicas da
arquitetura e urbanismo, visando promover uma articulação entre esse campo e às ciências
humanas.
REFLEXÕES TEÓRICAS
Partindo de uma breve recuperação histórica do desenvolvimento da arquitetura e
urbanismo, é possível perceber que tal ciência assume os traços hoje conhecidos a partir das
transformações ocorridas durante o século XIX na Europa8. Isso por que acabou assumindo a
função de romper com o antigo modelo das cidades medievais (labirínticas, fragmentadas e de
desenvolvimento mais orgânico), em favor de um modelo mais eficiente e racional,
apropriado ao novo sistema produtivo em questão (JACQUES, 2003).
Françoise Choay, em seu ensaio “O urbanismo em questão” (1979), trata do
desenvolvimento das escolas de pensamentos que se formaram desde os movimentos pré7
Segundo Jacques (2003) o caráter rizomático (GUATTARI, DELEUZE, 1995) das favelas se opõem não só a
cidade projetada (cidade árvore), mas também a cidade semi-projetada (cidade-arbusto), sendo esta a cidade sem
projeto, a cidade-mato. Em poucas palavras, esse tipo de ocupação tem um movimento sempre surpreendente,
seguindo as linhas de fugas num constante fluxo, se opondo a qualquer demarcação fixa que visa cessar os
movimentos pré-existentes, portanto não é um sistema, mas um processo.
8
Apesar de historicamente a arquitetura e o urbanismo remontarem aos gregos clássicos, é possível dizer que
com o advento da modernidade estas ganharam uma dimensão até então inédita, pois passaram a explorar não
apenas a estética, mas, sobretudo, os espaços coletivos
294
urbanistas até os movimentos que atuantes no final do século XX. Nele será destacada, para
os propósitos da presente análise, a leitura do modelo racionalista-progressista sobre os
espaços, públicos e privados, uma vez que seu herdeiro imediato, o modernismo, foi uma das
correntes mais influentes no pensamento brasileiro.
Com o surgimento no início do século XIX, o progressismo buscou lidar com o temor
da desordem da cidade industrial através de um estudo sistêmico que ajudaria na
determinação de uma ordem-tipo capaz de ser aplicada em qualquer agrupamento humano,
não importando a sua localização espacial ou temporal. Tal ordem privilegiava uma lógica e
estética austera, dando forte importância à fragmentação e atomização a partir das funções
humanas básicas. Apesar de fracassado na tentativa de racionalizar os novos espaços
industriais, seus ideais foram revisitados já no século XX, quando uma das mais fortes
correntes da arquitetura e urbanismo passou a imperar: o modernismo ou progressismo
moderno.
Esse novo modelo, cujos princípios são descritos na Carta de Atenas 9, se coloca a
serviço da modernidade do século XX, tendo como máximas a eficácia e a estética. Através de
formas simples e geometricamente pensadas, os teóricos do movimento criam espaços
fragmentados e ordenados a partir de funcionalidades específicas. Inspirado na noção de
ordem-tipo, o movimento elabora a noção de homem-tipo, que seria representado por quatro
funções básicas: habitar, trabalhar, locomover-se e cultivar o corpo e o espírito (lazer). Frente
a essa divisão, a cidade passa a ser pensada a partir da necessidade de “completar nossas
capacidades naturais por meio de elementos de reforço” (LE CORBUSIER, 1976). Ou seja,
em favor das necessidades básicas desse homem universal passou-se a pensar a cidade e os
espaços que a compõe como locais isentos de qualquer particularismo e, mais do que isso, a
construção de espaços regidos por uma lógica matemática capaz de prover o encontro entre o
belo e o verdadeiro.
Le Corbusier, seu principal teórico, buscou formular os princípios fundamentais do
urbanismo moderno. Pensado em seu limite, o célebre urbanista nos interessa não só pela sua
concepção de cidade, cuja experiência máxima brasileira pode ser observada através do plano
piloto de Brasília elaborado por Lucio Costa e Oscar Niemeyer, mas principalmente pela sua
concepção de habitação. Segundo o autor, a casa deveria ser pensada a partir de sua
concepção de apartamento-tipo, que possuiria “(...) funções determinadas em um espaço
9
Manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional da Arquitetura Moderna, realizado no ano de
1933 em Atenas. Tendo como foco a “cidade funcional” o documento traça as principais diretrizes do
movimento, cujo principal teórico foi Le Corbusier.
295
mínimo, instransformável, obrigando os ocupantes a seguirem os esquemas de circulação
elaborados e pensados pelos arquitetos, que deduziu serem os melhores possíveis” (Choay,
1979, p. 25). Privilegiando os princípios da higiene, da luz, da ventilação e da circulação, os
arquitetos deveriam ser capazes de criar uma “célula perfeita humana”, ou melhor, projetar a
casa tal como “uma máquina de morar”, célebre expressão do autor.
Tal descolamento da realidade e distanciamento dos usuários não foi privilégio da
matriz progressista, pelo contrário, ele dominou durante grande parte do século XX. O esforço
de promover modelos e esquemas ideais estabelecidos aprioristicamente só começou a ser
contestado de forma mais incisiva a partir da segunda metade do século XX, quando teóricos
da área passaram a questionar a ilusão de um urbanismo científico, para se aproximar de um
urbanismo mais participativo, dialético, humano e histórico. No centro desse debate temos os
movimentos / escolas10 urbanístico-arquitetônicas: a antrópolis, em que se destaca a
americana Jane Jacobs, e a situacionista, assim como a própria Françoise Choay, que não se
encaixa em nenhuma dessas escolas.
Choay (1979), por exemplo, destaca a importância de desnaturalizar os discursos
urbanísticos, evidenciando as tendências e sistemas de valores que estão por detrás deles.
Mais do que isso, ela qualifica as tentativas de se propor uma ordem a uma realidade
supostamente desordenada como parte de projeções racionalizadas pelo imaginário coletivo e
individual, que, enquanto produto de uma imaginação, são profundamente arbitrárias. Além
disso, a autora critica a linguagem utilizada pelos urbanistas, devido o seu limite e seu tom
imperativo. Não só porque o habitante não participou da elaboração de tal linguagem, mas
também por não compartilhar dos sistemas semiológicos construídos pelos teóricos,
frustrando toda capacidade comunicativa que a urbanidade oferece. Por fim, a autora advoga
que é preciso deixar de conceber as aglomerações urbanas em termos de modelos e
funcionalismo, negando qualquer formula fixa que se propõe como solução verdadeira e
incontestável em favor de sistemas que privilegiam as relações, que criem estruturas flexíveis,
uma pré-sintaxe aberta a significados ainda não construídos. Ou seja, defende um urbanismo
onde os moradores são interlocutores e criadores de significados, negando a noção de
urbanismo como pai castrador dos jogos criativos de seus habitantes.
10
De difícil consenso, os termos escola ou movimento podem sugerir duas impressões. A primeira dela é de uma
escola de atividades, cujos componentes estão dispostos a trabalharem juntos, mesmo que seus pensamentos
se distanciem no plano teórico. Esse foi o caso dos situacionistas, grupo de diversas tendências artistas de
vanguarda que passaram a trocar ideias e trabalhos na Internacional Situacionista. O segundo caso são as
escolas de pensamento, cuja definição mais se aproxima de uma conceituação criada a posteriori com o
intuito de aproximar atores cujos pensamentos se conectam em um determinado espaço de tempo por sua
semelhança no plano das ideias ou dos atos. Caso dos antrópolis.
296
Também críticos do urbanismo teórico e abstrato, os “antrópolis” defenderam uma
reintegração do homem concreto no movimento de planificação urbana, lidando assim com
temporalidades e espacialidades concretas. Nesse sentido, a ruptura principal seria a negação
da noção de modelo, tendo em vista que não existiria uma cidade-tipo ou um homem-tipo,
mas tantas cidades e homens quantos casos particulares, sendo incoerente qualquer tentativa
de previsão ou criação de modelos utópicos padronizados. Para os estudiosos desse
movimento, podendo ser citados L. Duhl, D. Riesman, Geddes e Jane Jacobs, os habitantes
não deveriam ser submetidos a um planejamento urbano como fato consumado, mas deveriam
ser convidados a participarem ativamente, deixando a posição de objetos para se
transformarem em atores, ou melhor, interlocutores do arquiteto.
Jane Jacobs, a mais célebre autora do movimento, em sua obra clássica “Morte e Vida
de Grandes Cidades” (2003), apresenta uma consistente defesa em favor da diversidade.
Segundo a autora o arquiteto-urbanista deve deixar de encarar a cidade e sua diversidade
inerente como uma desordem a ser disciplinada, pelo contrário, o que a cidade apresenta é
uma ordem surpreendentemente complexa, com mistura de usos e vitalidades ímpares,
desconstruindo, assim, o binômio ordem e desordem proposto pelo modelo progressista. Por
isso a autora propõe uma mudança de perspectiva do olhar sobre a cidade. Ao invés de
observá-la a partir de um plano distante e cartográfico, onde são privilegiadas as repetições, as
figuras geométricas e a ideia de continuidade, deveriam observa-la a partir de uma perspectiva
visual de curta distância, onde os detalhes e a intensidade da vida saltam os olhos. Tal
mudança seria capaz de proporcionar a esse profissional uma visão cara ao cidadão usuário de
tais espaços, o mesmo que é plenamente capaz de dar um significado e uma ordem ao seu
olhar íntimo.
Em uma proposta mais crítica e radical, mas em sintonia com as anteriores, o
movimento situacionista11 teve uma posição combativa a espetacularização da cidade,
limitadora das práticas concretas. Segundo seus participantes, cujo mais célebre é Guy
Debord (1997), na “cidade do espetáculo” o cidadão é um mero figurante em um cenário
criado por urbanistas e arquitetos, exatamente o inverso da cidade proposta por eles:
construída coletiva pelos seus cidadãos, não mais espectadores, mas protagonista do processo.
Nesse sentido eles negavam qualquer forma de cidade pré-definida, tendo em vista que sua
criação dependeria das múltiplas participações. (JACQUES, 2006). Apesar de nunca ter
11
A Internacional Situacionista foi um movimento artístico e político dos anos 50 contra a não-participação, a
alienação e a passividade da sociedade, que apesar de terem dedicado seus estudos aos mais diversos campos da
vida social, contribuíram fortemente para o debate urbanístico.
297
existido uma forma material de cidade situacionista, mas formas situacionistas de viver e
experimentar a cidade, em que seus habitantes passam a construir, transformar e vivenciar
seus próprios espaços, tal movimento promoveu, e ainda promove, uma reflexão autocrítica
do urbanismo enquanto disciplina e prática construtiva. Portanto, ao contrário do que
pensavam os modernistas, que defendiam que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a
cidade, para os situacionistas seria a cidade e as experiências nela experimentadas que
transformariam essas áreas do saber. (JACQUES, 2003)
E é partindo dos espaços praticados que autores das ciências humanas contribuem na
promoção do debate ora proposto. Esse é o caso de Michel de Certeau (1994, 2001), que
rejeita a visão aérea dos urbanistas em favor dos praticantes ordinárias da cidade, sujeitos
estes que subvertem o ambiente normatizado a partir de dentro, criando pequenos espaços de
resistência, fissuras e conflitos. Questão que pode ser sintetizada a partir de dois conceitos
chaves de sua obra: estratégia e tática. Enquanto a primeira teria como objetivo perpetuar o
que é por ela mesma produzida, a segunda se infiltra em busca de espaços de flexibilidade.
Traduzido aos termos da produção do espaço urbano podemos compreender as estratégias a
partir de um urbanismo que se imaginar enquanto uma técnica de organização e
racionalização das aglomerações humanas, que, a partir de uma visão altamente funcionalista,
pensa os espaços como ações completamente estanques e que devem respeitar determinadas
regras na sua utilização. Sendo o povoamento desses espaços mortos o que Certeau chamou
de táticas, ou seja, a possibilidade do indivíduo subverter o ambiente normatizado a partir de
dentro, o que não necessariamente gera uma grande transformação ou rejeição ao espaço, mas
o faz funcionar em outro registro. Nas suas palavras a tática é acima de tudo a “arte do fraco”,
que tem a sua disposição a astúcia e com ela desafia o espaço disciplinar. Lógica que pode ser
pensada nos espaços privados quando os moradores resistem e rejeitam a possibilidade de
seus lares sofrerem intervenções fixadoras, como as casas sob intervenção de políticas
públicas.
Nesse sentido, o autor defende que “planejar a cidade é ao mesmo tempo pensar a
pluralidade do real e dar efetividade a este pensamento plural: é saber e poder articular”
(CERTEAU, 2001: 160), tarefa que não vem tendo êxito pelos planejadores, justamente por
pensarem ser sua função exatamente o contrário desta. Nesse sentido, o discurso dos
urbanistas ainda hoje reproduzem três operações daninhas a sua real tarefa: a produção de
espaços que visem delimitar qualquer elemento que o comprometa; estabelecer um não tempo
ou um sistema sincrônico capaz de eliminar as resistências da tradição; e a criação de um
sujeito universal anônimo que é a própria cidade, produzido a partir de um número finito de
298
propriedades estáveis, isoláveis e articuladas umas sobre as outras. Como resultado, é
produzido por tais profissionais um espaço geométrico com um “sentido próprio”, incapaz de
ser reconhecido no uso corrente. Restando aos moradores e praticantes desses espaços sacudilos com uma força que ameasse todos seus cálculos, repetindo, assim, a “experiência
jubilatória e silenciosa da infância.” (CERTEAU, 2001, p. 177).
Pensando ainda sobre a possibilidade dos atores romperem com a lógica dos espaços
projetados através de suas práticas cotidianas, é possível ainda citar brevemente outros autores
que privilegiam a temática dos espaços praticados, foco da atual pesquisa. O sociólogo Leite
(2002, 2009, 2010), por exemplo, articula seu conceito de “contra-uso” para analisar espaços
moldados para determinadas práticas econômicas ou culturais que foram apropriados pelos
sujeitos, que lá expressam suas singularidades e reivindicam seus direitos, onde as pessoas
compartilham e disputam realidades em um ambiente de pluralidade. Ideia também presente
no texto de Arantes (2001), que a partir do termo “guerra de lugares” descreve os conflitos,
tensões e trocas espacializadas numa sucessão e superposição de espaços urbanos. Ou Martins
(2010) que se opõe a noção de cotidiano do homem ordinário como algo repetitivo e banal,
portanto reprodutor e destituído da capacidade de transformação, em defesa de que sem essa
esfera o pesquisador se torna alheio ao acontecer histórico da vida urbana, assentado nas
contradições dos processos históricos. Ressaltando ainda importância de Lefebvre, (1999,
[1974] 2000), seja a partir da noção do cotidiano como contraponto da História; em sua defesa
por uma noção dialética de espaço12; a crítica da substituição da práxis pelas representações
que os urbanistas têm do espaço; ou, ainda, sua proposta de “ritmanálise”, que estimula a
percepção do observador sobre as múltiplas expressões da vida pública: sonora, visual,
olfativa, rítmica, histórica, entre outras (FORTUNA, 2009).
Em suma, o que esses autores apresentam é a capacidade do usuário dos espaços
projetados, pelos próprios ou por outros, de os atualizarem e ressignificarem através de suas
práticas, vivências e experiências cotidianas, tornando-os o espaço da impermanência e do
dissenso. O que não só indica a necessidade dos arquitetos e urbanistas reverem suas práticas
nas políticas habitacionais, mas inverterem seu olhar sobre a cidade, menos interessado em
ordená-la e mais focado na compreensão e gestão de seu movimento ininterrupto.
NOTAS CONCLUSIVAS.
12
Espaço como mediador das práticas sociais, portanto socialmente construído, mas também com produtor
dessas relações. Ou seja, ao ser produzido ele intervém na produção em si. (LEFEBVRE, [1974] 2000)
299
Ao longo do caminho percorrido, a particularidade do espaço estudado ficou evidente.
Em primeiro lugar, buscou-se descontruir a ideia de que a habitação é um mero espaço físico
com o intuito de abrigar seus habitantes das intempéries, mas que, muito além disso, é um
elemento constitutivo da própria experiência de seus habitantes, onde este abriga seu passado,
presente e futuro na forma de vivências cotidianas e devaneios.
No entanto, a pesquisa não tratou da habitação a-temporal e a-histórica, como assim o
fez Bachelard (1993), mas de casas localizadas no Morro Vital Brazil e habitadas por sujeitos
concretos únicos. A partir da análise mais ampla desse espaço, observou-se uma flexibilização
construtiva de seus moradores, que se liberam da submissão às normas formais de uso e
ocupação do solo, em favor de uma atuação mais livre. No entanto, isso não significa que seus
moradores vivam em um ambiente destituído de normas, mas que as normas que vigoram
nesses espaços possuem lógicas e limites outros, portanto, não reconhecidos por agentes
externos.
Nesse sentido, o estudo da habitação nesse local corresponde a uma tentativa de
promover um exercício de reflexão que permita não mais pensar os espaços ditos “informais”
ou espontâneos a partir da ótica da cidade racionalmente planejada, mas exatamente o inverso.
Logo, a investigação mais do que reconhecer a necessidade de uma mudança da atuação dos
arquitetos e urbanistas em locais como o MVB, como o fez o PAF, questiona as implicações
de uma atuação que visa eliminar a capacidade inventiva e criativa de seus usuários, em todo
e qualquer local da cidade.
Por isso o
interesse de compreender as teorias urbanísticas
enquanto um elemento norteador da prática de tais profissionais, assim como a o processo de
produção do lar, físico e simbolicamente, através da tradição sociológica e de áreas irmãs.
Tanto o trabalho de campo como as entrevistas indicaram que por mais que os
arquitetos que trabalham no projeto, idealizado em sua forma mais participativa, se coloquem
abertos às propostas e anseios dos moradores, ainda é difícil para eles a desconstrução de sua
imagem como elemento ordenador dos espaços ou ainda de idealizadores de cenários de longa
duração. Assim sendo, vale lembrar que esses profissionais norteiam suas atuações em
determinados contextos paradigmáticos, que não só influenciam sua prática, mas também sua
própria capacidade reflexiva.
Vale, portanto, pensar que muito do que hoje é produzido por tais profissionais é
orientado por tradições teórico-metodológicas incapazes de pensar seu espaço de atuação em
toda a sua complexidade, uma vez que costumam reduzi-los a modelos fragmentados,
funcionais, normatizados e, acima de tudo, desprovidos da experiência de frequentação e
vivência de atores reais e seus imponderáveis. Logo, não parece difícil compreender o porquê
300
de espaços como o MVB serem vistos como a imagem de semelhança do caos e do
desequilíbrio, ou melhor, do fracasso urbanístico, quando na verdade são exatamente os locais
onde a participação dos múltiplos atores se manifestam em sua forma mais próxima de sua
plenitude.
Diferente da produção de um discurso que romantiza espaços como MVB, buscou-se
reconhecer os problemas resultantes de uma atuação sem a presença desses profissionais, mas,
acima de tudo, a dificuldade de tais profissionais em atuarem em uma área em que a
permanência inerente a um projeto arquitetônico não faz sentido. No entanto, essa falta de
sentido, segundo certos teóricos da cidade, não é exclusividade de locais como o estudado,
mas uma questão referente a toda cidade. Seria possível continuar pensando a atuação desses
profissionais a partir de categorias como fixidez, permanência, projeção, racionalidade,
quando os mesmos estão tratando de espaços frequentados e produzidos por uma teia de
atores fluidos e inconstantes? Ou melhor, seria ainda pertinente basear a atuação desses
profissionais a partir das dicotomias ordem e desordem, equilíbrio e desequilíbrio?
A experiência confirmou a necessidade de tais profissionais superarem a imposição de
uma funcionalidade-estética formalista que tende à domesticação e uniformização de todos os
espaços urbanos, inclusive os privados, em favor de uma visão menos cartográfica e mais
próxima do cotidiano dos atores, permitindo que esses sujeitos sejam transformados em
protagonistas dos processos de produção espacial, mesmo que estes nunca tenham deixado de
serem. Deste modo, a negação de uma cidade pré-definida, em benefício das múltiplas
participações, permitiria o movimento em direção ao que os situacionista defenderam como
rompimento da “cidade espetáculo” e dos modelos paradigmáticos do modernismo /
progressismo: a cidade e as experiências nelas experimentadas como subsídios na produção
de novos constructos teóricos e práticas.
A atuação na cidade deve, assim, ser pensada a partir da atuação e frequentação das
estruturas fisicamente definidas pelos atores sociais, e não apesar deles. Logo, parece
essencial não mais pensar a cidade a partir paradigmas cuja noção de equilíbrio é o fim
último, cujos limites impedem que experiências concretas sejam incorporados por não
corresponderem aos seus pressupostos13, mas sim a construção de constructos teóricos
capazes de darem conta de todos os espaços da cidades como um processo multifacetado e
dinâmico em transformação, em que cada indivíduo, pelo simples fato de percorrê-lo, seja
13
O debate acerca da dominação da perspectiva funcionalista, em detrimento de uma perspectiva da dialética da
mudança na atuação dos arquitetos e urbanistas, será mais bem desenvolvido em um artigo publicado em
parceria com o Prof. Dr. Brasilmar Ferreira Nunes, em que discutimos a “racionalidade” e a espontaneidade
no espaço urbano. (NUNES, MOURA, 2012).
301
capaz de atualizar seu significado e usos sem que isso seja cerceado por lógicas externas a ele.
O que está em questão é o próprio papel do arquiteto e urbanista, que não mais deve pensar
sua prática a partir de uma coerência desincorporada, mas sim a partir da possibilidade da
incorporação de tantas coerências quantos os sujeitos sejam capazes de produzir. Processo
este que Jacques (2002) denominou “urbanismo incorporado”, mas que prefiro chamar de
“urbanismo plurifacetado”.
Por fim, o artigo propõe como exercício intelectual e epistêmico que os campos
disciplinares ultrapassem os flertes interdisciplinares na tentativa de criarem novos
constructos teóricos e paradigmáticos (CORRÊA, 2007), mais do que isso, se torna
fundamental a exploração de saberes aparentemente distantes, mas capazes de produzir o
novo, a ruptura, sem que isso signifique uma negação do conhecido, mas uma produção
dialógica e espiral em busca de respostas ao que hoje parece ofuscado por “verdades
dogmáticas”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMORIM, L. A casa – Espaços e narrativas. In: LEITÃO, L., AMORIM, L. (org). A nossa casa de
cada dia. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007
ANDRADE, L.; LEITÃO, G,.
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303
SABERES E CONSTRUÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS:
O CASO DOS MORADORES DE RUA EM SÃO CARLOS/SP
Luciano Márcio Freitas de Oliveira1
RESUMO
Nas últimas décadas observamos o surgimento de um fenômeno que passou a ser
caracterizado como uma das principais questões urbanas. A existência de pessoas vivendo nas
ruas das cidades propiciou a elaboração de um conjunto de “saberes” visando explicar esse
fenômeno, como o desenvolvimento de pesquisas em diversas áreas do conhecimento e a
criação de políticas públicas para atendimento a esse segmento. Este artigo pretende discutir,
a partir de um contexto situado, como as transformações nas políticas de atendimento aos
moradores de rua repercutiram em suas experiências cotidianas no espaço urbano. Sugerimos
que a partir das transformações na política de assistência social na primeira década dos anos
2000, e o encadeamento dessas mudanças no âmbito municipal, propiciaram o surgimento de
discursos e práticas que culminaram em um novo personagem o morador de rua de São
Carlos. Essa situação produziu novas formas de gerenciamento dos moradores de rua bem
como a organização bancas (agrupamentos de moradores de rua) em um determinado
território da cidade. Esta pesquisa é parte de uma dissertação de mestrado, na qual foi
realizada uma revisão bibliográfica acerca da temática, entrevistas com técnicos, a trajetória
profissional do pesquisador como gestor, que atuou na política de atendimento aos moradores
de rua na cidade de São Carlos, interior paulista. Ressaltamos também a realização de
pesquisa etnográfica em um agrupamento de rua no ano de 2011.
Palavras-chave: morador de rua, assistência social, interior paulista.
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas observamos o surgimento de um fenômeno novo, ao menos em
sua proporção, caracterizado progressivamente como uma das principais questões urbanas: a
existência de pessoas e grupos vivendo nas ruas das cidades, em situação considerada
degradante, indigna e, por vezes, ameaçadora. O fenômeno ensejou a elaboração de um
1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
bolsista CAPES/CEM: Centro de Estudos da Metrópole. Integrante do Núcleo de Pesquisas Urbanas
(NaMargem/UFScar). Contato: [email protected]
304
conjunto de “saberes” que visam explicá-lo, fomentando pesquisas em diversas áreas do
conhecimento, mas sobretudo reduzi-lo, pela criação de políticas públicas para atendimento
ao segmento populacional em questão.
No Brasil o crescimento do debate sobre as pessoas que vivem nas ruas, foi vivenciado
principalmente nas metrópoles do país. Enquanto essa questão não se tornou pauta na agenda
nacional, várias experiências de atendimento ao segmento foram praticadas pelos municípios
a partir de critérios elencados pelos mesmos. No que tange a consolidação de uma política
pública visando uma intervenção focalizada, Silva (2009) destaca as cidades de São Paulo,
Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre. No caso da capital paulista, o
atendimento a população em situação de rua ao longo de cinqüenta anos possibilitou o
surgimento de uma rede de atendimentos que compreendeu na construção de albergues, casas
de convivência e diversos programas de “reinserção social” coordenados pelas secretarias de
Assistência Social tornando referência no modelo de gestão dessa população (DE LUCCA,
2006).
Com o objetivo de discorrer sobre a questão dos moradores de rua2 no interior
paulista, dividimos este artigo em três partes. Na primeira procuraremos analisar brevemente
a produção dos saberes sobre os moradores de rua e as transformações na política de
assistência social a partir do início da década dos anos 2000. No segundo momento, como a
relação apresentada possibilitou a construção de discursos e práticas sobre o segmento no
interior paulista, especificamente na cidade de São Carlos, e terceiro como as práticas de
intervenção se relacionam com as bancas, termo que designa, em São Carlos e outras cidades
do interior paulista, agrupamentos de moradores de rua que se formam em determinados
lugares de cidade. A escolha das bancas como lócus de análise se deve a tática3 mais comum
de vida na rua no município pesquisado, além da visibilidade que tais agrupamentos
provocam no espaço urbano, ensejando formas de gerenciamento público do problema que
representam. Para concluir apresentamos algumas considerações buscando relacionar o debate
2
Pesquisar sobre as pessoas que vivem nas ruas, a primeira dificuldade que o pesquisador encontra para definir
seus sujeitos ou objetos de pesquisa é a quantidade de termos utilizados para representar a questão. Devido a
uma gama de áreas que discutem o tema, definir o termo torna-se uma disputa. É refletindo sobre esse campo
conflituoso da produção dos termos que se originou uma quantidade de expressões que tentam classificar, dar
sentido, como os exemplos: mendigos, povo de rua, morador de rua, população de rua e população em
situação de rua. Imerso em tantas classificações e na falta de outro termo mais apropriado para os objetivos
que nos propomos nesta pesquisa, utilizaremos a expressão morador de rua, um termo descritivo que permite
fugir, em partes, dos termos vigentes. O termo morador de rua será aqui apresentado como um termo geral,
relacionado às diversas formas de viver na rua.
3
Ao falarmos em táticas de vida na rua recorremos a De Certeau (1998) que destaca “a tática depende do tempo,
vigiando para ‘captar vôo’, possibilidade de ganho. O que ele ganha não o guarda, tem constantemente que
jogar com os acontecimentos para transformar em ocasiões” (DE CERTEAU, 1998, p.47).
305
apresentado e a relação dos moradores de rua com a cidade.
A PRODUÇÃO DOS SABERES SOBRE OS MORADORES DE RUA
No final dos anos de 1990 e início dos 2000, o debate sobre a existência dos
moradores de rua estava ancorado nos processos que produzem os novos excluídos. Nessa
chave explicativa destacamos, no período citado, três pesquisas, em campos distintos de
atuação como Serviço Social, Sociologia e Política Social, contudo complementares, que
influenciaram novos debates em diferentes contextos (políticas públicas e pesquisas), temos
Rosa (2005) na cidade de São Paulo, Escorel (1999) no Rio de Janeiro e Bursztyn (2000) em
Brasília.
Rosa (2005), ao retomar argumentos apresentados no início dos anos 1990, o qual
relaciona o desemprego e a população de rua, e influenciada pelos trabalhos de Castel (1998)
e Paugam (2003), por meio da análise de trajetórias de vida de alguns moradores de rua na
cidade de São Paulo, aponta a relação da vida nas ruas com as transformações no mundo do
trabalho e no Estado. A autora atenta que as condições de crescimento no Brasil nos anos
1970, assim como suas consequências nos anos 1990, possibilitou o crescimento cada vez
maior de trabalhadores que, alijados do mercado de trabalho formal, com baixa remuneração,
sem residência fixa, procuravam alternar a moradia entre pensões, albergues e ruas da cidade,
bem como a dependência cada vez maior dos recursos assistenciais para a sobrevivência,
produziu os novos excluídos, os desfiliados, no caso a população de rua.
O estudo de Escorel (1999) está inserido no campo do debate sobre a pobreza urbana,
procurando expor os condicionantes macroestruturais que se configuraram no Brasil,
especificamente na cidade do Rio de Janeiro dos anos 1980, até o início dos anos 1990. A
autora parte do conceito de exclusão social e de como os elementos constitutivos da exclusão
perpassavam o cotidiano das pessoas que viviam nas ruas da capital fluminense. A autora
aborda que, para a utilização do conceito de exclusão social, deve-se o mesmo estar
relacionado aos processos de vulnerabilidade, fragilização, precariedade e ruptura dos
vínculos sociais nas esferas “econômico-ocupacional, sociofamiliar, da cidadania, das
representações sociais e da vida humana” (ESCOREL, 1999, p. 17). Define a condição de
exclusão como “está sem lugar no mundo”, desvinculado ou com vínculos frágeis que não
conseguem constituir uma unidade social de pertencimento. Para Escorel (1999), a exclusão
social não é apenas caracterizada pela privação material, uma vez que ela “desqualifica”,
retirando a qualidade de “sujeito de direito” portador de desejos, “a exclusão social significa,
então, o não encontrar nenhum lugar social, o não pertencimento a nenhum topos social, uma
306
existência limitada à sobrevivência singular diária” (ESCOREL, 1999, p.81).
Como exemplo relevante referente à influência da teoria dos novos excluídos sociais
destacamos o conjunto de pesquisas desenvolvidas na Universidade de Brasília, sob a
organização de Bursnztyn (2000). Para os autores, a questão das pessoas vivendo nas ruas do
Brasil no limiar do século XXI é a emergência dos inimpregáveis como consequências do
sistema econômico e globalizado. Tais autores se voltam para uma questão global, na qual se
juntam aos “antigos mendigos” todos os que foram empurrados para fora do mundo do
trabalho. Nessa perspectiva, as investigações apresentadas buscam mostrar quem são os
moradores de rua da atualidade, o que os diferenciam dos “velhos miseráveis” e em que
medidas podem ser considerados como excluídos sociais. Para responder a essas perguntas,
Burnsztyn (2000) aponta que para a compreensão da questão, é preciso entendê-la como a
radicalização das desigualdades sociais, na medida em que um processo é desencadeado pela
pobreza, passa pela miséria e no limite a exclusão, a produção do excluído, sendo este último
definido por Nascimento (2000) como um grupo economicamente desnecessário,
politicamente incômodo e socialmente ameaçador, portanto, fisicamente eliminado.
Outro eixo que articula os trabalhos coordenados por Burnsztyn (2000) é a
necessidade do Estado em “combater” os processos que levam à exclusão contando com
políticas de inclusão, como a transferência de renda para as famílias migrantes defendidas por
Araújo (2000), ou pela inserção no mundo do trabalho e interação familiar, como destaca
Nascimento (2000).
Sobre a discussão sobre o morador de rua no interior paulista, ressaltamos que as
pesquisas e a produção bibliográfica sobre a temática são escassas, principalmente no que
tange às análises sociológicas sobre a questão fora do contexto metropolitano. Contudo,
algumas áreas como a psicologia social e a geografia trazem considerações sobre o tema nesse
contexto. Essas pesquisas enfatizam os deslocamentos dessa população entre as cidades do
interior paulista. Primeiro destacamos as pesquisas na área da psicologia social. Influenciados
pelo debate da desfiliação social, Nascimento e Justo (2000; 2009), desde o início dos anos
2000 apresentam análises sobre os trecheiros e andarilhos de estradas, destacando a errância
como característica dessa população. Referente à errância, Nascimento e Justo (2009) a
destacam como um fenômeno radical da normalização conjugada com a migração, o
desemprego, a pobreza e a desqualificação social. É caracterizada pela movimentação a pé
pelas rodovias do país, sem objetivos e rumo definidos. Ressaltam ainda que a errância
também seja definida pela solidão, desapego, miséria e processos de rupturas com a família e
o trabalho. E a interligação entre o desemprego, o alcoolismo, a falta de apoio familiar e a
307
vida errante.
No campo da geografia destacamos a pesquisa de Furini (2010), que traçou o perfil da
população de rua na cidade de Presidente Prudente, destacando aspectos relacionados às
estratégias de sobrevivência, assistência social, trabalho não regular, lugares de pernoite e
lazer. A partir do perfil estabelecido, o autor relaciona a questão da população de rua com as
particularidades locais da região estudada, como a instalação de diversos presídios aliada às
situações anteriores, os fluxos rodoviários, a oferta de abrigos e a atitude dos técnicos que
podem redefinir as trajetórias, tudo isso culminando na transitoriedade da população de rua
pelas cidades da região. Assim, uma das causas da dificuldade de encontrar essa população
em determinadas cidades é devido à expulsão, incentivada pela migração.
As primeiras pesquisas na cidade de São Carlos foram elaboradas por Granado (2010)
e Martinez (2011). Granado (2010) tem como foco a questão socioambiental, destacando por
sua vez a influência da água como elemento norteador no cotidiano do grupo vulnerável,
especificamente a população em situação de rua. Dentre as diversas questões que a autora
apresenta em relação ao perfil, chama atenção para os dados referentes à naturalidade dos
sujeitos pesquisados, evidenciando a migração do campo para a cidade, devido a não
absorção de sua mão de obra nos locais de origem.
Martinez (2011), ao estudar as trajetórias de rua na cidade de São Carlos, partindo de
uma etnografia realizada em instituição assistencial e nas ruas, buscou apresentar como essas
trajetórias de vida estão relacionadas às táticas de preservação da vida elaboradas nas ruas,
tendo nas transformações corporais a expressão das diferentes maneiras de como são
vivenciadas por cada sujeito. É por essas transformações que a autora atenta para a
interferência dos aparatos urbanos que legitimam essas vidas nas ruas, pela viabilidade das
políticas públicas.
Faz-se preciso reconhecer a contribuição desses pesquisadores que trouxeram
elementos importantes para a produção acadêmica e nas políticas públicas, influenciando na
produção de discursos e intervenções sociais. Utilizando-se de metodologias de pesquisa
variadas como o estudo de casos, trajetórias de vida, etnografias, esses autores lançaram
questões que hoje auxiliam os novos pesquisadores e gestores a avançarem na compreensão e
na qualificação do debate sobre a questão complexa que é a existência de pessoas que utilizam
das ruas como uma forma de vida.
AS TRANSFORMAÇÕES NA ASSISTÊNCIA SOCIAL
O que caracterizou as décadas de 1990 e 2000 foi a reorientação das políticas sociais
308
na focalização sobre os segmentos mais pobres, evidenciando a luta contra a pobreza que se
inicia a partir das orientações dos organismos internacionais como Organização das Nações
Unidas, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. Segundo Maranhão (2009), entre
os anos 1980 e 1990 destacou-se as reformas liberalizantes na América Latina e África
subsaariana. Na América Latina, as privatizações, desregulamentações e liberalização do
comércio avançaram rapidamente. Como ressalta a autora, essa agenda política se notabilizou
através da imposição para concessões de empréstimos oferecidos pelo Fundo Monetário
Internacional e pelo Banco Mundial à reestruturação das economias em crise a partir da
década de 1980. E foram as experiências nacionais responsáveis pela difusão desse ideário
por meio da influência na implementação de políticas públicas.
As primeiras transformações no campo assistencial estavam inseridas numa tensão, como
destaca Ivo (2008), de um lado estava o regime democrático nascente, tendendo a ampliar
a cidadania e incluir politicamente, e de outro estava a dinâmica de uma economia que
historicamente produziu as maiores taxas de desigualdades econômicas. No meio dessa
tensão, o arranjo adotado pelo Estado brasileiro foi a adesão às orientações dos organismos
internacionais, como Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, voltado para a
desconcentração do Estado, significando descentralizar as políticas, especificamente as
sociais, privatizou e flexibilizou grandes empresas estatais e, posteriormente, a focalização
das políticas sobre os mais pobres.
Segundo Palotti e Costa (2011), a redemocratização não foi conduzida apenas pelas
liberdades democráticas, visto que se procurou romper com o Estado unitário, estabelecendo
um sistema político federalista com maior autonomia para Estados e municípios. Para as
autoras, na década de 1990 a assistência social em sua consolidação institucional não foi
conduzida como as outras políticas sociais, como no caso da Saúde, com o Sistema Único de
Saúde (SUS). No governo de Fernando Henrique Cardoso houve a realização de algumas
normativas para a assistência, como a discussão da representação popular por meio do
Conselho Nacional e do Fundo Nacional de Assistência Social, assim como pela ampliação
dos conselhos, fundos e planos municipais até o ano de 2001.
Em 2003, com o início do governo Lula pelo Partido dos Trabalhadores (PT), se
acentuam as mudanças na política de assistência social, desvinculando essa política da
Previdência Social ao se criar um Ministério próprio, ou seja, primeiro o Ministério da
Assistência Social e depois o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Dessa forma, em 2004 é aprovada a Política Nacional de Assistência Social, e em 2005 ocorre
309
à normatização da Norma Operacional Básica (NOB-SUAS), em que participaram técnicos e
especialistas em fóruns de debates e articulação da política, no entanto, a grande mudança que
passa a assistência é o enfrentamento da pobreza e das desigualdades (COSTA; PAROLI,
2011).
Mauriel (2010) aponta que nos últimos anos, entre 1990 e 2000, observou-se o debate
sobre o combate à pobreza e às desigualdades, influenciando os direcionamentos das ações da
política de assistência social, reduzindo assim o princípio universalista ao se voltarem as
ações para os pobres e excluídos de forma focalizada. Para a autora, essa escolha se dá por
opções teóricas distintas, uma vez que no caso brasileiro a política nacional de assistência
social inclui a agenda internacional de combate à pobreza. E com a implantação da Política
Nacional de Assistência Social, em relação à população em situação de rua, se destacaram
apenas algumas considerações sobre o atendimento ao segmento, definindo-os como usuários
da proteção social especial e “serão priorizados os serviços que possibilitem a organização de
um novo projeto de vida” (BRASIL, 2004, p 37).
Com o crescente debate sobre as pessoas que encontram nas ruas sua sobrevivência,
aos poucos essa temática ganhou importância na agenda pública, inicialmente em nível
municipal, e somente no início dos 2000 foi que adentrou ao debate do Governo Federal,
como aponta Ferro (2010). Tal fato se deu graças à confluência de diversos fatores4, como a
sensibilidade do presidente Lula com a questão, a partir da visita aos catadores de materiais
recicláveis em dezembro de 2003, fazendo permanecer em sua agenda anual até o último ano
de seu governo, propiciando a abertura para a participação da população em situação de rua
no encontro. O massacre de moradores de rua na região central da capital paulista, fez com
que se houvesse uma abertura para essa questão, assim incluindo a discussão de políticas
públicas voltadas especificamente para esse segmento. Primeiro destacamos a realização da
Pesquisa Nacional sobre a população em situação de rua em 2007, esta pesquisa realizada nas
capitais brasileiras e nas cidades acima de 300 mil habitantes trouxe informações que deram
suporte as ações para a elaboração da Política Nacional de Inclusão da População em Situação
de Rua no ano de 2009 (FERRO, 2011).
SÃO CARLOS COMO LOCAL DE ESTUDO
São Carlos é uma cidade do interior paulista, localizada a 230 km da capital, e conta
4
Essa visibilidade teve como consequência a alteração do artigo da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS),
através da lei 11.258 incluiu o segmento da população em situação de rua e abrindo para a discussão de
políticas públicas em nível nacional. Ver Ferro (2010) e De Lucca (2009).
310
com aproximadamente 220 mil habitantes, além de uma economia industrial e agrícola
bastante desenvolvida, está situada em eixo de alta circulação de recursos do interior paulista,
próxima das cidades de Campinas e Ribeirão Preto. De acordo com o diagnóstico realizado
pela Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social do município, em 2007 apontavase que a taxa de urbanização da cidade era superior às médias regional e estadual. No ano
2000, o percentual residente na zona urbana era de 95% e 5% residia em área rural. Já em
2006, o grau de urbanização do município chegou em 96,5%, sendo superior ao índice do
Estado, que no mesmo período era de 93,7%.
Esses dados contribuíram para a elaboração do diagnóstico que justificou as mudanças
na política de assistência social no município, reorganizando os serviços a partir da
implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) na cidade, em meados dos anos
2000. É nesse momento que a visibilidade dos moradores de rua enquanto uma questão a ser
“resolvida” ganha novos contornos. Essa visibilidade está ligada à história da política local a
partir da mudança do governo municipal, com a eleição do Partido dos Trabalhadores (PT),
que inicialmente defendia uma visão política de esquerda e posteriormente o alinhamento às
visões políticas do Governo Federal. Quando Luiz Inácio Lula da Silva é eleito para
Presidente da República, também representante do Partido dos Trabalhadores. Esse
alinhamento político e as transformações na política de assistência social, que será discutida
no segundo capítulo, propiciaram ao município de São Carlos criar um dos primeiros Centro
Pop5 do Brasil.
ENTRELAÇANDO TRAJETÓRIAS
Muitos estudos sobre os moradores de rua se concentram em compreender a sucessão
de fatos que levaram homens e mulheres a viverem nas ruas, estes fatos em sua maioria
carregados de perdas e que tem nesta situação o ponto de chegada. Baseando-se na pesquisa
de De Lucca (2007) que utilizou como recurso as trajetórias de experiências de pessoas que
falaram sobre os moradores de rua, a utilização desse recurso metodológico é importante
porque não existem pesquisas na cidade de São Carlos que discorram sobre os processos
históricos relativos à política de atendimento na cidade6. É através das trajetórias de uma
5
O Centro POP é um equipamento estatal de acolhimento diurno aos moradores de rua. Sobre mais informações
ver Brasil (2009; 2011).
6
Recentemente na UFSCar se desenvolveram algumas pesquisas sobre tema, como trabalho de conclusão de
curso destaca-se Barbosa (2005). No Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social a pesquisa de
Mariana Medina Martinez (2007) e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia as pesquisas em
andamento de Luiz Fernando Pereira, Natália Máximo e Melo e Luciano Márcio Freitas de Oliveira. Na
Universidade de São Paulo campus de São Carlos, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da
311
assistente social e do pesquisador/gestor que remontamos a construção o percurso da
produção do novo sujeito das ruas da cidade de São Carlos.
“CONSTRUINDO” O MORADOR DE RUA DE SÃO CARLOS
Em 2006 realizou-se um concurso na prefeitura para a contratação de assistentes
sociais que complementariam o quadro de profissionais exigidos pelas novas diretrizes da
política de assistência social, visando à implantação dos serviços assistenciais no município. É
nesse momento que Vanessa ingressa na prefeitura, permanecendo até meados de 2009. Para
Vanessa, trabalhar com uma população específica, no caso a população de rua, era a que mais
lhe instigava enquanto profissional, “não sabia de nada, quem eram e como trabalhar”. Os
primeiros dias de trabalho foram difíceis em relação à aproximação com o novo público.
Através do Albergue Noturno, Vanessa iniciou seus primeiros contatos que consistiu em
conhecer os funcionários, a dinâmica de atendimento da instituição e as pessoas que eram
atendidas no local. Ela também realizou rondas noturnas7 acompanhada dos motoristas da
instituição para mapear os principais locais onde se concentravam os moradores de rua.
Em relação às abordagens, Vanessa ressaltou que não existia um serviço estabelecido
nas ruas. Em casos específicos, as abordagens aos moradores de rua e acolhimento no
albergue durante dia eram efetivados quando a cidade recebia a visita de autoridades como
Ministros, Senadores, Secretários de Estado ou algum político ligado ao governo:
A demanda crescia quando a cidade recebia uma visita de alguma pessoa pública do
partido, então a solicitação era pra que nos locais em que a pessoa fosse passar, não
tivesse a população de rua. Isso só mostra que quer esconder algo, um problema,
que talvez seja uma carência do atendimento. Qual era a ordem? A ordem é “tira
aquela pessoa do local”. Nesse caso o albergue era aberto durante o dia. Você podia
trancar a pessoa lá dentro ou pedia pra pessoa sair do local onde se encontrava e
mudar para outro. [Vanessa].
Ao elencar uma bibliografia específica sobre o tema, além de um contato frequente
com o público atendido, Vanessa percebeu que, no contexto de São Carlos, existiam duas
situações distintas em relação ao que considerava como população de rua: os
trecheiros/itinerantes e os moradores de rua, sendo que estes últimos não eram prioridades
para os atendimentos no Albergue Noturno. Assim apresentou-se uma primeira clivagem na
definição do público que pretendia atender.
No ano de 2007, foi elaborado o primeiro diagnóstico cujo objetivo era apresentar o
que se considerava como população de rua em São Carlos. Dos 93 prontuários analisados,
7
Engenharia Ambiental a pesquisa de Karina Granado (2010).
As rondas noturnas são ações realizadas pelos funcionários do Albergue desde o início dos anos 1990.
312
destacaram-se as seguintes variáveis: grupo etário, sexo, naturalidade, familiar na cidade,
situação de saúde e escolaridade. Foram encontrados 79 homens e 14 mulheres. A idade
predominante estava entre 25 e 59 e nove anos. Os dados que chamaram mais atenção foram
em relação à naturalidade, pois 25 pessoas haviam nascido em São Carlos e 57 pessoas
possuíam familiares na cidade.
Quando nós conseguimos montar o diagnóstico aí sim foi a mudança. Porque nós
mostramos que a maioria das pessoas que viviam nas ruas estavam há mais de dois
anos em São Carlos. A maioria era nascida em São Carlos. Então não dava pra se
falar que eram trecheiros que não eram cidadãos são-carlenses, não dava pra se
negar. [Vanessa].
No período acima citado, o Albergue Noturno atendia aos moradores de rua e
trecheiros/itinerantes entre os horários das 18 horas e 6 horas da manhã, oferecendo apenas
três dias de pernoite. Aqueles nascidos ou com familiares na cidade não eram aceitos na
instituição. Para Vanessa, esses critérios eram “uma tentativa de expulsão para ver se a pessoa
ia embora da cidade ou voltava para a casa da família”.
Simultâneo ao debate municipal sobre os moradores de rua, o Governo Federal, por
meio do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) apresentou a
primeira pesquisa nacional sobre a população em situação de rua8. Com o debate nacional,
segundo Vanessa, reforçou a pressão para a elaboração de uma política de atendimento em
São Carlos. O momento que vivia-se foi propício para que a gestora de assistência, visando
garantir os primeiros recursos em relação à criação de uma nova instituição, buscou como
estratégia discutir a temática no orçamento participativo9. Em uma das reuniões do orçamento
participativo, na região central, estiveram presentes a gestora da assistência social, os técnicos
envolvidos no projeto e os moradores de rua, apresentou-se a necessidade da criação de um
espaço e equipe para atendimento, além de um orçamento definido.
Em julho de 2008, conseguiu-se um local para atendimento, e no dia 10 foi inaugurada
Casa Dia10 nas proximidades da rodoviária. Para Vanessa, nesse momento duas questões
8
Sobre esta pesquisa ver Brasil (2008) e Silva (2009).
O Orçamento Participativo é um modelo de gestão pública que pressupõe a intervenção direta da sociedade na
gestão financeira e orçamentária. No Brasil, as primeiras experiências desse modelo de gestão se iniciaram
no final dos anos oitenta, nos municípios governados pelo Partido dos Trabalhadores (PT). As principais
experiências foram nas cidades de Porto Alegre e Santo André. Na cidade de São Carlos, a experiência de
gestão através do orçamento participativo iniciou-se em 2001 com a entrada do PT no governo municipal.
Sobre esse debate ver Marino Júnior (2005).
10
Nesse momento não existiam normativas referentes a serviços de acolhimento diurno para os moradores de
rua, cada município organizava a partir de sua experiência, como exemplo na cidade de São Paulo que esses
serviços diurnos eram denominados de casas de convivência. Em São Carlos optou-se por classificar a nova
instituição de Casa Dia. Após participação nas reuniões estaduais e federal sobre a Política Nacional da
População de Rua e as reorganizações nos serviços da cidade, o nome mudou para CREAS (Centro de
Referência Especializado de Assistência Social – Unidade de atendimento à população de rua) e, em 2011
9
313
foram essenciais para existência do Centro Pop: a primeira era definir qual o objetivo do
serviço e a segunda qual o público atendido. Em relação ao objetivo, sabia-se que o mesmo
deveria tornar-se referência para os moradores de rua. Um lugar para guardar os pertences,
referência domiciliar, bem como para alimentação e higienização. No entanto, para a
construção de um novo projeto de vida, como preconizava a Política Nacional de Assistência
Social, além de alternativas de intervenção dentro da instituição, a equipe não tinha clareza
das ações.
Nos primeiros meses de funcionamento, o novo serviço não conseguia atender a
demanda que chegava todos os dias, principalmente em relação aos trecheiros/itinerantes.
Para Vanessa, o trabalho do Centro POP deveria priorizar os moradores de rua de São Carlos,
e, devido ao fluxo de pessoas que passavam diariamente pela cidade, tornou-se fundamental
elaborar a primeira definição de quem era a população de rua. A primeira definição baseou-se
em dois critérios: o tempo de rua e vínculos na cidade. Sobre o tempo de rua entendia-se o
tempo em que o indivíduo utilizava as ruas ou o albergue como lugar de pernoite, e, na
medida em que aumentava esse tempo, a condição de morador de rua tornava-se estável. Esse
critério teve como base os estudos de Vieira (1997) que elaboraram diferentes situações de
vivenciar a rua, como ficar na rua, estar na rua e ser da rua.
Em relação aos vínculos com a cidade, compreendia-se a existência de alguma
referência familiar ou domiciliar anterior à situação de rua em São Carlos. Esta discussão
tinha como pressuposto a Política Nacional de Assistência Social, que destacava como o
principal objetivo a garantia dos vínculos comunitários, assim justificava-se a utilização desse
critério em relação ao público de referência para o Centro POP.
A preocupação em relação aos vínculos familiares na cidade de São Carlos para
definirem quem seriam os moradores de rua faz parte de um dos principais eixos da política
de assistência social no Brasil. segundo Castilho e Marloto (2010) após a Constituição de
1988 a família passa a ser o foco principal de ação das políticas sociais. De acordo com
Teixeira (2009), é no final dos anos 1990 que a preocupação com a família como foco de
atuação, acentua-se nos serviços da assistência social primeiro através dos NAF’S (núcleo de
apoio as famílias) entendendo o grupo familiar e a comunidade como “lugares naturais de
proteção e inclusão social” (BRASIL, 1999, p.50). E segundo Teixeira (2009) esta
reorganização propiciou a centralização na família como foco para a implementação de
benefícios, serviços e programas ao longo dos anos 2000. Primeiro através do Plano Nacional
com a criação do Guia de Orientações do CREAS, o equipamento estatal de acolhimento diurno aos
moradores de rua foram classificados como Centro POP. Sobre mais informações ver Brasil (2009; 2011).
314
de Atendimento Integral à Família (PNAIF) em 2003 e com a Política Nacional de Assistência
Social em 2004, o plano nacional transformou-se em Plano de Atendimento Integral a Família
(PAIF) que tem como objetivo a garantia da convivência familiar e comunitária dos membros
da família. Em 2005 destaca-se a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência
Social (NOB/SUAS) através da matricialidade sociofamiliar evidenciando a primazia a
atenção às famílias e seus membros a partir do seu território de vivência, com prioridades
aqueles com registro de fragilidades, vulnerabilidades e a presença de vitimação entre seus
membros (NOB/SUAS 2005 p. 28). Foi esse debate que norteou a primeira definição daqueles
considerados como os moradores de rua de São Carlos a partir do tempo de rua, entendido
como no mínimo seis meses vivendo nas ruas e a existência de familiares na cidade.
Fizemos um recorte e definimos que para ser considerado morador de rua de São
Carlos era preciso estar nas ruas no mínimo seis meses. O tempo de rua foi a
primeira classificação que adotamos para diferenciarmos dos trecheiros/itinerantes.
Os critérios não eram tão rígidos, foram criados a partir de nossa prática [Vanessa].
LUGARES PARA ATENDER
Definido os moradores de rua de São Carlos, enquanto gestores foi preciso organizar
os serviços de acolhida, especificamente o Albergue Noturno. Os primeiros dias de trabalho
na instituição foram para observar e compreender a rotina. O horário de atendimento
acontecia a partir das 18 horas e encerrava-se às 7 horas da manhã, quando todos deveriam
deixar o albergue e voltarem para as ruas. Caso precisassem de algum atendimento, dirigiamse até a secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social. Para os trecheiros/itinerantes
prosseguia-se a distribuição de passagens interurbanas, e em relação ao acolhimento noturno
prevalecia a regra construída no final dos anos 1980, de três pernoites11. Os
trecheiros/itinerantes que chegavam ao albergue esperavam três dias para conseguirem as
passagens, pois os embarques eram realizados apenas as terças e sextas-feiras.
Com a apresentação do primeiro levantamento dos moradores de rua elaborado por
Vanessa, iniciou-se uma pressão para que as pessoas com vínculos familiares na cidade
fossem atendidas. A direção da entidade acolheu alguns casos solicitados pela prefeitura como
os idosos e as mulheres que estavam pelas ruas.
Com o passar dos meses emergiram-se diversos conflitos com a diretoria da instituição
em relação às propostas para ampliação do número de atendimentos às pessoas com vínculos
em São Carlos, especificamente os jovens que estavam pelas ruas e procuravam por
11
Referente à regra dos três pernoites no Albergue Noturno ver Oliveira 2012.
315
acolhimento. A direção alegava que a capacidade de vagas para pernoite não comportava a
demanda crescente e para amenizar os conflitos, realizaram-se reuniões com os técnicos da
prefeitura e a diretoria da instituição para que viabilizassem algumas mudanças.
Como destacado por Vanessa, O Centro POP surge a partir da confluência de vários
fatores: 1) a visibilidade dos moradores de rua nas praças da cidade, causando incomodo à
população e ao governo municipal; 2) a implantação do Sistema único de Assistência
Social (SUAS), que orientava os municípios a estabelecerem projetos para a população de
rua; 3) a necessidade em garantir atendimentos diurnos aos moradores de rua.
Com a abertura do serviço em julho de 2008, procuramos vincular os casos
atendidos pelo Albergue para um acompanhamento no Centro Pop, nesse momento, todos
que se encontravam na cidade, moradores de rua ou trecheiros/itinerantes foram
cadastrados
no
serviço
como
população
de
rua.
Em
várias
situações,
os
trecheiros/itinerantes que chegavam à cidade após esse cadastramento queriam
atendimento fixo no local, sendo recusado. E na tentativa de resolução dessa questão, foi
necessário definir o que considerávamos como a população de rua de São Carlos, ou seja,
a urgência para elencar os primeiros critérios que definiram o público prioritário para
atendimento nos serviços aos moradores de rua de São Carlos (tempo de rua e vínculo
com a cidade).
Em 2009 muda-se a administração municipal e, consequentemente, a gestão da
Secretaria de Assistência Social. Em janeiro do mesmo ano é criada a Divisão de Políticas de
atendimento à população em situação de rua. Com a criação de uma divisão, o Centro POP
conseguiu recursos próprios, oriundos de repasse municipal e estadual.
Como ações prioritárias que a nova gestão elencou para a recém-criada Divisão: 1)
retirar do Albergue Noturno o gerenciamento da política de distribuição de passagens,
passando para o Centro POP; 2) a criação do serviço de abordagem nas ruas12; 3) a mudança
de local do Centro POP para a região central, especificamente em frente à Secretaria de
Cidadania e Assistência social. O serviço de abordagens nas ruas era realizado de forma
esporádica, apenas quando solicitado pelo governo municipal para atender algum caso
específico, no entanto, ao criar a Divisão com recursos próprios13, foi possível a contratação
12
O Serviço de Abordagens na rua foi criado em São Carlos no inicio de 2009, sendo este regulamentado a partir
da tipificação dos serviços socioassistenciais, que apresentou algumas diretrizes como a oferta do serviço de
forma continuada e programada, com a finalidade de assegurar o trabalho social de abordagem. Para maiores
informações ver Brasil (2009b).
13
Referente aos recursos financeiros destinados aos serviços de atendimento a população em situação de rua, a
Secretaria de Cidadania e Assistência Social (2010) apresentou uma estimativa do seu orçamento anual para a
316
de duas educadoras para realizarem o trabalho nas ruas da cidade14.
Com a implantação da Política Nacional da População em Situação de Rua no final de
2009, definindo por sua vez o que se considerava como pessoas em situação de rua e a
Tipificação dos Serviços Socioassistenciais,15 apresentando os serviços essenciais para o
segmento que, segundo o Decreto Nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009, defini-se como
população em situação de rua:
Considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que
possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou
fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os
logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento,
de forma temporária ou permanente, bem como unidades de acolhimento para
pernoite temporário ou como moradia provisória (BRASIL, 2009b, p. 1).
Essa definição abrangente não contemplava a principal questão que vivenciávamos
desde os primeiros dias de atendimento no Centro POP, o grande fluxo de
trecheiros/itinerantes que passavam diariamente pela cidade, demandando em alguns casos, o
atendimento na instituição alegando-se que também estavam em situação de rua e que tinham
direitos ao atendimento. O critério dos seis meses, baseado no tempo de rua que inicialmente
tentou organizar o fluxo de pessoas, não respondia às novas demandas que surgiam.
Para tentarmos resolver o impasse em relação aos trecheiros/itinerantes com a
elaboração do plano de atendimento do Centro POP, no início de 2010, mudamos os critérios
que definiam quem era a população em situação de rua em São Carlos. Partindo de um
segundo levantamento com 65 usuários que frequentavam a instituição, apenas 8 pessoas não
possuíam familiares na cidade de São Carlos. Assim definimos o público alvo a ser atendido
pelos serviços de acolhida para população de rua a partir de critérios como trajetória de
rua,16 vínculos familiares e comunitários17 com a cidade de São Carlos. Assim, de acordo com
o Plano de Atendimento do Centro POP:
população em situação de rua de aproximadamente 600 mil reais. Nesse orçamento está incluído o repasse
financeiro para o Serviço de Obras Sociais (Albergue Noturno) e o Centro POP (gastos com funcionários,
passagens e todo o custeio da unidade).
14
Sobre o serviço de abordagem de rua em São Carlos ver Martinez (2011).
15
Este documento tipifica os serviços socioassistenciais em âmbito nacional, dentre os quais os serviços
destinados ao atendimento à População em Situação de Rua na Proteção Social Especial destacam-se: o Serviço
Especializado em Abordagem Social, o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro POP), o
Serviço de Acolhimento Institucional (que incluem adultos e famílias em situação de rua) e o Serviço de
Acolhimento em República (que inclui adultos em processo de saída das ruas). Mais informações ver Brasília
(2009b).
16
Entende-se como trajetória de rua que a pessoa esteja vivendo nas ruas no momento em que procura a
instituição ou tenha em sua história de vida experiências de situação de rua.
17
Em relação aos vínculos familiares e comunitários, primeiro pela presença de muitas pessoas em situação de
rua com familiares em São Carlos, e também destacamos a Política Nacional de Assistência Social, que
prioriza ações possibilitando a reconstrução desses vínculos considerados “rompidos”.
317
Consideramos como população em situação de rua de São Carlos:
I – Pessoas de ambos os sexos com idade a partir de 18 anos que se encontram em
situação de risco pessoal e social e que utilizam a rua como moradia ou
sobrevivência; II – Pessoa natural de São Carlos ou proveniente de outra cidade que
possua trajetória de vida na rua, vínculo familiar ou comunitário no município (SÃO
CARLOS, 2010, p.4).
Em relação aos trecheiros/itinerantes, justificou-se que devido à grande circulação de
pessoas pelo município, o trabalho consistia em buscar alternativas através de parcerias com
outros municípios, a questão tornou-se regional. Com isso, para aqueles que não estavam
inseridos aos novos critérios, continuava-se a doação de passagens como a única alternativa
de atendimento. A primeira mudança após o ingresso da nova gestão municipal e a criação da
Divisão de Políticas de Atendimento à População em Situação de Rua, consistiu em gerenciar
o atendimento de distribuição de passagens para os trecheiros/itinerantes. Ampliou-se o
recurso para compra de passagens interurbanas, passando-se o atendimento a ocorrer de
segunda à sexta-feira em diversos horários18, e, dependendo das situações, aos finais de
semana.
A estratégia adotada na distribuição de passagens todos os dias tinha como objetivos:
1) controlar o fluxo de trecheiros/itinerantes na cidade, evitar o contato com os moradores de
rua de São Carlos e a possibilidade de permanência na cidade; 2) com a diminuição do
número de trecheiros/itinerantes pernoitando, ampliaram-se as vagas no Albergue Noturno
para os moradores de rua da cidade. As mudanças apresentadas resultaram na supressão da
regra dos três pernoites para os dois seguimentos atendidos. Para os moradores de rua de São
Carlos, o tempo de acolhida no albergue seria decidido em conjunto com a equipe do Centro
POP, mediante o atendimento da instituição. Para os trecheiros/itinerantes, pernoitavam no
Albergue, aqueles que chegassem após o horário estabelecido para a distribuição de
passagens.
VIVENDO NO BAIRRO: A BANCA DA DONA SÔNIA
Quando decidiram ficar pela rua, se iniciou uma divisão de tarefas para a realização
do almoço na “terra do nunca”. Elton se empolgou e contribuiu com um pacote de
suco. Joaquim saiu em busca de lenha para fazer o fogo. Santista, 28 anos, que veio
de Ribeirão Preto e está nas ruas de são Carlos desde 2010, ficou para pedir água no
bar do Zé Besouro. Luciene, Marta e Tiago saíram juntos para manguear nas
residências próximas ao cemitério. Júnior saiu sozinho. Elton foi pedir panelas nas
casas próximo ao bar da dona Sônia e conseguir dinheiro no caldo de cana. Sandro,
Valdir e Aparecido se dirigiram aos semáforos da Avenida São Carlos para
conseguirem dinheiro. Chegando às proximidades do cemitério, encontramos
18
A ampliação do recurso financeiro para a Divisão de Políticas de Atendimento à População em Situação de
Rua possibilitou expandir a distribuição de passagens para outras cidades. Em 2008 encaminhavam-se os
itinerantes para as cidades de Araraquara e Itirapina. Em 2009, era possível encaminhar para Rio Claro e, em
2010, atendia-se com passagens para Ribeirão Preto, Campinas e São Paulo.
318
Aparecido e Sandro mangueando nos faróis da Avenida são Carlos com a rua dos
Jasmins e Valdir mangueava no estacionamento do supermercado Jaú. Fomos à
praça acompanhados por Índio enquanto esperavam o restante do grupo. Marta e
Luciene apareceram na praça com temperos e verduras que ganharam na quitanda.
Também conseguiram R$ 2,00 e cigarros pedindo às pessoas que passavam pela
praça. Com um tempo outros retornaram, contribuíram na intera para a compra de
pinga e complementar o almoço. Como resultado do mangueio pela manhã:
mangueio no farol e nas pessoas que passavam pela praça e ruas próximas R$ 30,00.
Com esse dinheiro compraram cigarros e dois litros de cachaça (no bar ao lado da
praça), carne moída e de porco, e um refrigerante (supermercado). No mangueio nas
residências e comércios conseguiram arroz, feijão, verduras (cebolas, tomates, alho e
batatas), milho verde, macarrão, óleo, uma lata de sardinha, um molho de tomate.
Finalizado o mangueio nas ruas, seguimos para “terra do nunca”. Por último chegou
Júnior com cigarros, pinga e dinheiro (Diário de Campo, 23/02/2011).
Segundo Oliveira (2012) para a existência de uma banca é preciso um território,
membros e suas regras19. Para facilitar a compreensão procuraremos demonstrar e analisar
como essas transformações influenciaram nas formas de se virar dos moradores de rua em
São Carlos através da banca da dona Sônia, majoritariamente formada por moradores de rua
da cidade que circulam pela cidade a partir de um território específico, o entorno do Albergue
Noturno.
Os moradores de rua que frequentam a banca da dona Sônia circulam por diversos
lugares da cidade, porém, existe um território que é percorrido diariamente, relacionado à rede
de apoio20 construída pelos moradores de rua. Nas imediações do bar encontramos postos de
combustível, churrascaria e lanchonete. O segundo lugar frequentado pelos membros da
banca é a Praça do Cemitério, onde se encontra o velório municipal, estacionamentos,
churrascaria, bares, ponto de ônibus, semáforos, supermercados e quitanda, além da existência
de residências e um barracão abandonado nas proximidades. Os arredores do terminal
rodoviário são caracterizados por um fluxo contínuo de pessoas devido ao embarque e
desembarque de passageiros e ponto de integração dos ônibus urbanos. Nessa região temos
restaurantes, lanchonetes, padaria, supermercado, as praças e residências.
O cotidiano dos membros da banca da dona Sônia, em relação à vida nas ruas
(alimentação, lugar para dormir, condições para as necessidades fisiológicas, roupas, dinheiro
para pinga, cigarros e drogas) ocorre em razão da prática do mangueio, do corre21 e da
dependência institucional (Centro POP e albergue). Usualmente esses membros intercalam a
19
Referente às bancas de moradores de rua em São Carlos ver Oliveira (2012).
Classifico como “rede de apoio” a rede formada por todos os locais (residências, comércios, instituições,
transeuntes) acionados pelos membros da banca para a sobrevivência no território.
21
Mangueio é o nome dado a prática do pedido elaborada pelos moradores de rua de rua em São Carlos.
Consiste em contar uma estória que comova e assim conseguir dinheiro, alimentação cigarros etc. tudo que
for adquirido no mangueio deve ser dividido entre os membros da banca. O corre significa pedir
individualmente ou pequenos furtos, no entanto, o produto adquirido através do corre não tem a
obrigatoriedade de dividir com os membros da banca. Sobre os termos ver Oliveira (2012).
20
319
frequência entre as instituições e a permanência na banca.
A regularidade com que demandam das instituições lhes garante o atendimento para as
necessidades básicas. No Centro POP e no Albergue, dispõe-se de banheiros para a higiene
pessoal e da distribuição de roupas, calçados, produtos de higiene (barbeadores, sabonetes e
xampus) para todos os freqüentadores dos serviços. Cabe ressaltar que aos finais de semana, o
Albergue estende o horário de atendimento, servindo almoço e jantar aos sábados e domingos.
A alternância entre as instituições assistenciais e a rua é uma característica dos
moradores de rua que participam dessa banca. Tal alternância sé dá por dois motivos, o
primeiro quando decidem ficar pelas ruas e não frequentarem o Centro POP e o Albergue
durante alguns dias da semana, o segundo quando estão suspensos das instituições. Ao
ficarem pelas ruas, no território da banca da dona Sônia, os membros acionam diversas
táticas para suprirem suas necessidades fora das instituições como demonstrado no relato de
campo citado. Uma das primeiras táticas que destacamos é o mangueio e o corre, que
garantem alimentação, pinga, cigarros e drogas para a banca.
Como apresentado, ao optarem por não frequentar o Centro POP, os que estavam
presentes na banca acionaram a “rede de apoio” (comércios, residências, transeuntes) para
conseguirem alimentos e dinheiro para a pinga e cigarros. Ao transitarem frequentemente pelo
território da banca os membros fixos se tornaram conhecidos da vizinhança, possibilitando
constantes doações. Para realizarem suas necessidades fisiológicas, os recorrem aos banheiros
públicos do velório municipal, além de conseguirem água gelada e cafezinho. Ao lado do
velório existe um estacionamento e, para Índio, “quando morre alguém importante é bom
porque conseguimos dinheiro olhando carros”. Vale destacar também que na região da praça,
todos os dias, a partir das 14 horas, uma churrascaria vende por R$ 5,00 o churrasco que
sobram nos espetos para os moradores de rua.
Aos finais de semana a rotina é a mesma, a diferença consiste na distribuição de
alimentos por entidades religiosas. Aos sábados, a partir das 11 horas, um grupo de
voluntários da Pastoral de Rua percorre as principais bancas de São Carlos (estação, Vila
Prado, Mercadão e Dona Sônia) distribuindo marmitas e refrigerante para os moradores de
rua e trecheiros/itinerantes que se encontram nos locais citados. Aos domingos, a partir das
9h da manhã, o grupo espírita do Posto de Rua Eurípedes Barsanulfo 22 atende aos moradores
de rua que distribuem refeições. Nesses encontros são oferecidos café da manhã e almoço, a
distribuição de roupas e kit de higiene pessoal para os participantes, além da realização de
22
Sobre o Posto de rua, ver os trabalhos de Granado (2008) e (2010).
320
corte de cabelo no local. Em relação ao jantar, a tática que utilizada é pedir comida nas
residências no território por onde transitam: nas churrascarias e no restaurante próximo à
rodoviária. Em alguns dias da semana o jantar é distribuído por entidades assistenciais. Como
exemplo: nas quartas-feiras o jantar é oferecido pela igreja São Sebastião, as quintas
distribuem café, leite e pão nas proximidades da rodoviária, e às sextas-feiras, outro grupo
espírita23 entrega sopa e cobertores pelas ruas da cidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para compreendermos as formas de gerenciamento dos moradores de rua em São
Carlos, percebemos que em meados dos anos 2000 a partir das transformações na legislação
da política de assistência social, o morador de rua entendido como um excluído, sua
permanência nas ruas explica-se como um momento transitório, e a inserção nas políticas de
públicas possibilita a superação da situação. É a partir das transformações na política de
assistência social e o encadeamento dessas mudanças no âmbito municipal, propiciaram o
surgimento de discursos e práticas que culminaram em um novo personagem o morador de
rua de São Carlos.
Baseados nas reflexões de Arendt (2009) sugerimos que as mudanças aqui
apresentadas, especificamente o surgimento do morador de rua de São Carlos foi o
pertencimento a um lugar no mundo e reconhecimento deste lugar pelo outro. Seguindo as
análises da autora, é preciso o Estado para proteger e reclamar. E para compreendermos como
se deu o processo de reconhecimento do morador de rua de São Carlos destacamos primeiro
através das mudanças nas legislações federais como Sistema Único de Assistência Social e,
posteriormente no ano de 2005, quando é inserido na Lei Orgânica da Assistência Social o
desenvolvimento de ações municipais para a população em situação de rua e principalmente
com a promulgação do decreto presidencial nº 7033 de 23 de dezembro de 2009 apresentando
a política nacional de inclusão da população em situação de rua.
Simultâneo ao processo iniciado pelo governo federal, na cidade de São Carlos o
momento de reconhecimento da existência desse novo sujeito foi quando se inverteram as
normas no orçamento participativo as quais preveem que as demandas sejam lançadas pela
população. No caso em análise, uma parte do próprio Estado, representado por técnicos e
gestores, que reclamaram a existência e o reconhecimento de um grupo, demonstrando o nível
23
Ao acompanhar a banca no período da noite, fomos abordados por dois homens que distribuíam sopa nas ruas,
perguntamos qual igreja ou entidade eles faziam parte, apenas informaram que pertenciam a um grupo
espírita.
321
de exclusão política que se encontravam os moradores de rua, estes não fazendo parte da
agenda da política municipal. A resolução foi fixar o morador de rua a partir de critérios que
exigem o reconhecimento de pertencimento a cidade através de vínculos familiares ou uma
“rede de apoio” construída fora da vivencia nas ruas, critérios para justificar o
reconhecimento do pertencimento a um lugar, a uma comunidade humana. O resultado dessa
transformação possibilitou a reorganização dos equipamentos de atendimento como a
emergência do Centro Pop, um espaço físico primordial para a fixação do morador de rua de
São Carlos
A emergência desse novo sujeito nas ruas, amparado pelos discursos e práticas que
justificam seu pertencimento e reconhecimento a um lugar possibilitou a construção de novas
relações sociais entre os membros das bancas, os territórios por onde circulam e com os
agentes de intervenção, produzindo uma “rede de apoio” (instituições, comércios e pessoas
que vivem no território de circulação da banca). Estas novas relações, baseadas nos critérios
estabelecidos para definir os legítimos a “rede de atendimento” e, por conseguinte, a cidade só
foi possível ao pertencimento e reconhecimento desses moradores de rua a um lugar, a uma
comunidade.
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.
324
PÚBLICO DE CINEMA EM FOCO: UMA ANÁLISE SOBRE AS ESTREIAS
Bianca Salles Pires1
RESUMO
O presente trabalho busca analisar parte do material da pesquisa desenvolvida para realização
da dissertação de mestrado, que tem como objeto de estudo o público de cinema e das práticas
culturais. O público de cinema é aqui investigado a partir da frequência a três espaços de
cinema na cidade do Rio de Janeiro que se encontram geograficamente próximos, mas que
são comumente classificados como pertencentes a circuitos distintos de exibição pelas mídias
e por seus frequentadores. Tal investigação busca perceber os comportamentos e os discursos
dos frequentadores das práticas culturais, possibilitando uma apreciação que perceba as
diferentes e significativas formas de constituição do cinema como espaço público e as
distintas formas de interação que são comumente possíveis nestes ambientes. O material
levantado durante a pesquisa apontou os momentos de estreias dos filmes como ocasiões
chaves nas observações destas interações e na construção das subjetividades dos
frequentadores, destarte este artigo visa debater sobre o papel que a frequência aos cinemas
pode adquirir nestas ocasiões. A exclusividade, o estar entre os primeiros e o sentimento de
“ter que ver no final de semana da estreia” ou durante o Festival de Cinema do Rio são pontos
comuns que aproximam os três públicos ao mesmo tempo em que apontam as aspirações e
diferentes mecanismos de distinção e pertencimento que movem as ações e escolhas dos
indivíduos.
Palavras-chaves: Publico de cinema, estreia, exclusividade.
INTRODUÇÃO
O público pensado enquanto categoria de análise vem sendo estudo pela sociologia e
pela antropologia tendo comumente como foco a obra de arte e suas relações com a
recepção/públicos. Seja em pesquisas com um recorte quantitativo, que pensam o público e a
relação com os museus a partir de diferenças de classe e de seus respectivos capitais
simbólicos, fundada por Bourdieu e Darbel (2003) na França, seja por meio de uma
perspectiva do público enquanto receptores passionais de uma cultura de massa produzida por
uma indústria cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1974) na vertente alemã. Ou ainda nos
1
Mestranda PPGS-UFF.
325
estudos que envolvem a obra e a subjetividade dos receptores (GUY, 2000). O público e suas
relações com as obras são comumente pensados enquanto capacidades ou não de entendê-la,
como a expressão de uma relação de dominação, existindo ainda estudos que permeiam a
recepção de determinados bens específicos, com recortes de gênero, étnico ou etário,
principalmente relacionados aos públicos televisivos (SQUENAZI, 2006).
No Brasil os estudos sobre os públicos e recepção têm seguido o mesmo enfoque. No
estudo realizado por Almeida (1995) nas salas de cinema em São Paulo, este enfoca a
mudança ocorrida na passagem das antigas salas de rua para o interior dos shoppings centers,
buscando por meio dos relatos dos antigos frequentadores, remontar o que seria a experiência
do público com os cinemas nas décadas de 40/50. As conclusões da autora vão ao encontro da
setorização e segregação de classe existente entre as várias salas da cidade e da mudança
ocorrida a partir dos shoppings. Outros textos brasileiros que relatam o público de cinema são
os textos literários realizados por Capucho (1999) no cinema pornô Orly e por Durst (1996) a
cerca da existência de cineclubes na cidade do Rio de Janeiro e da chamada Geração
Paissandu que frequentava o local, por meio dos quais temos acesso a um relato minucioso
das experiências dos espectadores nestes espaços.
No entanto, a pesquisa ora apresentada, se aproxima das perceptivas de análise
realizadas por Vale (2000) quanto ao público de filmes pornô focando no que faz o público
durante a exibição dos filmes e Dabul (2005) que ao pesquisar o público de exposições de arte
levantou questões importantes quanto ao porque vão e como agem os indivíduos nestas
ocasiões. Sendo assim, percebe-se a relação entre a obra de arte e os expectadores como
atravessada pelas expectativas dos citadinos, por meio do qual as salas de cinema e seus
espaços externos são palco de verdadeiras interações sociais.
Neste contexto, optou-se pelo recorte geográfico de três cinemas localizados em
Botafogo, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, onde a partir dos espaços de cinema
pesquisamos as relações dos públicos com os mesmos2. São estes o Espaço SESC de Cinema,
antigo Espaço de Cinema, localizado numa das ruas mais movimentadas do bairro 3, o
Cinemark Botafogo, localizado no oitavo piso do Botafogo Praia Shopping junto à praça de
alimentação, e o Espaço Itaú de Cinema, antigo Unibanco Arteplex, localizado na Praia de
Botafogo. Estes cinemas encontram-se a no máximo quatro quadras de distância um do outro,
2
Levantamento de dados realizado em 2007, para obtenção do Bacharelado em Ciências Sociais e continuação
em 2011/2012 para elaboração da Dissertação de Mestrado em Sociologia.
3
Rua Voluntários da Pátria.
326
mas atraem públicos que se diferenciam e percebem aos outros como não semelhantes. 4 Tal
percepção nos leva a questionar os estudos dos públicos puramente voltados a recortes
econômicos e de classe, de fato se trata de três cinemas que se encontram em uma mesma
região da cidade e que tem um preço médio para seus ingressos equivalentes.
Contudo, quando pensado a partir das opções de lazer dentro da cidade tendo como
base as escolhas dos indivíduos, tais salas atraem frequentadores diferenciados. Aqui, os
estudos urbanos nos permitem questionar de que forma a proximidade física e a construção
social da diferença se dão (PARK, 1967), o que nos permite refletir sobre a transição dos
citadinos pelos espaços urbanos, e o caráter das escolhas e ademais, o porquê das escolhas
quando se trata de filmes e cinemas. Ainda que possamos dizer que se trata de uma etnografia
das classes médias cariocas (VELHO, 2011), o estudo permite perceber algumas estratégias
utilizadas pelos frequentadores dos cinemas na busca por diferenciação e pertencimento de
grupo, a partir do discurso que estes têm sobre os filmes, os cinemas e os usos que tais
frequências podem adquirir em outros contextos.
Destarte, buscou-se perceber o que está em jogo na escolha de se ir a um dos três
cinemas pesquisados. Como fazem, o que fazem, por que fazem? (SEEGER, 1977) são
perguntas chaves para entender não só o comportamento dos grupos estudados, mas também
perceber o que buscam e esperam ao irem ao cinema, qual a visão de mundo (FOOT-WHITE,
2005) que os públicos, pensados enquanto grupos, têm e de que forma manipulam suas
identidades nestes contextos. Encarando assim, o cinema como uma prática social em um
contexto urbano plural, lugar este onde ocorrem inúmeras interações entre os indivíduos que
buscam não somente a assistência de um filme, mas o status trazido pelo consumo de tal bem
e o reconhecimento no grupo de frequentadores.
O material recolhido durante a pesquisa, ainda que não possa ser aqui esmiuçado,
permite que algumas características gerais dos usos dos espaços e do comportamento do
público sejam percebidas. Algumas variáveis (os horários das exibições, dias da semana,
filme dublado e/ou livre) influenciam diretamente na plateia, e pode-se perceber que as
tolerâncias ao barulho, à comida dentro das salas e expectativas dos funcionários dos cinemas
seguem uma lógica de acordo com estas variáveis. No entanto, para efeito de análise, propõese que se faça um recorte restringindo e aprofundando o exame dos momentos de estreias de
filmes nos respectivos cinemas, que permitam perceber a forma como cada espaço de cinema
4
Os cinemas são apresentados em seus sites como exibindo: Espaço SESC Rio filmes alternativos e/ou arte
(estacaovirtual.com.br), o Cinemark passa os filmes que são os “últimos lançamentos do mercado” tento
como missão “ser a melhor empresa de entretenimento e lazer” (cinemark.com.br), já o Itaú Cinema utilizava
o termo Arteplex “que significa cinema de arte em formato multiplex” (itaucinemas.com.br) .
327
e público se relaciona com os filmes nestas ocasiões. Isso significa dizer que, a forma de agir
dos públicos varia dentro do mesmo espaço de cinema segundo as sessões, e que os conflitos
entre expectadores durante as exibições dos filmes são caracterizado pela quebra cívica de
alguns frequentadores (GOFFMAN: 2010), que desrespeitam a forma de agir numa
determinada sessão. Segundo o mesmo autor, isso não significa que não existe uma regra
explícita quanto ao barulho e a forma de se portar no cinema, mas de que essas regras são
frouxas e que os participantes de uma sessão de cinema podem se mostrar mais ou menos
tolerantes ao descumprimento das regras estabelecidas pelo cinema, o autor aponta a antiga
existência de lanterninhas como figuras importantes no comprimento destas últimas
(GOFFMAN: 2010, 227).
AS ESTREIAS DE FILMES
O funcionamento dos cinemas segue uma lógica de estreias de filmes em todos os
finais de semanas. A alta rotatividade de filmes torna a experiência e a pressa em assistir
pontos importantes na escolha de qual filme assistir para alguns espectadores. De um modo
geral, o ir às primeiras sessões de exibição implica em compra antecipada de ingresso(s), ao
menos com algumas horas de antecedência, sessões cheias e possíveis filas quando se trata de
um filme “muito esperado”. As películas se tornam bastante aguardadas por motivos variados.
O fato de serem continuações de grandes sagas, premiadas em festivais, de diretores famosos,
adaptações de livros, crítica positiva, etc. refletem diretamente na experiência dos públicos e
na vendagem de ingressos.
As pré-estreias e super-estreias no Cinemark englobam filmes muito divulgados nas
mídias e esperados pelo público. Referem-se a continuações de grandes sucessos de bilheteria,
muitas vezes seus personagens principais são oriundos de revistas em quadrinhos ou livros.
Em tais casos, os filmes estreiam em até três salas simultaneamente e têm durante o final de
semana de estreia todas as suas sessões com lotação máxima. Sabendo desta enorme
confluência de público, o Cinemark prepara uma sessão especial de pré-estreia, que ocorre na
virada da noite de quinta-feira para a sexta-feira à meia noite e um5, com a sala de exibição
completamente lotada e com toda uma organização prévia de venda de ingressos, que
começam a serem comercializados com até um mês de antecedência.
Os cuidados do cinema, evitando que o filme seja reproduzido pelos espectadores, e os
5
Toda estreia de filme se dá às sextas-feiras a menos que seja feriado. Algumas sessões como Amanhecer Parte
II ocorrerem às 23:55 de quarta-feira, em função do feriado na quinta-feira.
328
ingressos que já estão esgotados há alguns dias faz das pré-estreias6 ocasiões excepcionais,
onde um pequeno grupo terá acesso ao tão esperado filme antes de todo o restante do público.
Esta distinção é reforçada pelo clima que se instala no ambiente horas antes da sessão, quando
as filas são formadas desde bem cedo e o público, próximo fisicamente, transparecem sua
ansiedade e euforia. Em vários casos, os fãs mais fanáticos se caracterizam como os
personagens do filme e entram fantasiados para a exibição. Existem conversas entre grupos
durante a espera, e todos falam da felicidade e curiosidade de ver “O Filme”.
Dentro da sala o clima não é diferente, as pessoas conversam em tom de voz alto
enquanto esperam o início da exibição, gritando e batendo palma nas principais cenas dos
filmes7. Algumas das conversas e entrevistas feitas antes do início dos filmes demonstram o
caráter distintivo de tais ocasiões. O “assistir ao filme” e o “dizer que já o assistiu” no dia
seguinte se confundem, demonstrando que muito está em jogo no fato de se assistir ao filme
nesta primeira exibição.
“Eu agora só venho neste horário das estreias, é muito bom!” Quando questionado o
porquê da preferência respondeu: “Amanhã quando eu chegar na facu (faculdade) o
pessoal vai ficar falando: ah, hoje é e estreia do filme tal... e eu digo que já vi.”
Outro participante do mesmo grupo disse que: “Eu só venho ao cinema para ver
estas super-estreias ou um filme que estou muito afim. Se não vejo em casa8.”
(Três estudantes de engenharia na UFF, pré-estreia do Piratas do Caribe.)
Este mesmo grupo afirmou ainda, que veio também a sessão de pré-estreia do Homem
Aranha 3. Há ainda jovens que vem de cidades do interior do estado somente para assistir a
tal sessão, como é o caso de um rapaz entrevistado, que na companhia da avó disse: “Não tem
mais como esperar! Preciso ver este filme hoje! (...) Vou ligar para o pessoal zoando que eu
estou vendo o filme.” (Akira, 15 anos, morador de Armação dos Búzios).
Tais depoimentos demonstram que o “ver o filme” e o “dizer que viu” fazem do filme
um bem simbólico (BOURDIEU, 2008) distintivo junto aos grupos dos entrevistados. O
status adquirido por fazer parte de tal sessão se dá não somente no próprio dia, onde ainda na
fila a grande ansiedade e a sensação de pertencimento ao seleto grupo dos que conseguiram
comprar seus ingressos são reforçados pelo próprio cinema que adota várias atitudes
diferenciadas em tais exibições, mas também no dia seguinte junto aos seus grupos de
convívio. Seja na escola, na faculdade, no trabalho, ou mesmo junto aos amigos fãs dos
personagens e filmes, a utilização do “eu já assisti” será aproveitada como forma de distinção,
6
As pré-estreias que foram acompanhadas durante a pesquisa formam dos filmes: Homem Aranha 3, Piratas do
Caribe 3, o Harry Potter e a Ordem da Fênix, Shrek Para Sempre, Amanhecer parte I e II.
7
Alguns exemplos destas palmas foram: Guitarrista do Rolling Stones Keith Richards durante o Piratas do
Caribe; Cena em que o Homem Aranha dança em um bar; Cena em que o Venon aparece pela primeira vez
no filme do Homem Aranha; Cena da rebelião dos estudantes no filme Harry Potter.
8
Costuma baixar filmes da internet.
329
diferenciação e de pertencimento ao grupo dos que já assistiram, o que fica mais claro quando
confrontado com a “necessidade’ de se assistir as super-estreias no final de semana de suas
estreias.
Sendo assim, o assistir a determinado filme em determinado cinema reflete as
estratégias individuais, demarcando não apenas o pertencimento, mas interligando o assistir o
filme à rede social mais ampla dos citadinos (EPSTEIN, 1969). A multiplicidade e fluidez das
pressões sociais sofridas pelos indivíduos nos contextos urbanos nos permitem fazer análises
que levam em conta o caráter da escolha individual (BECKER, 2008) procedentes de tal
forma de organização dos espaços, opção entre filmes, ainda que esta escolha esteja
diretamente relacionada a expectativas de distinção e pertencimento.
Contudo, ainda que esta primeira sessão seja especial, o final de semana de estreia
como um todo é bastante movimentado, e atrai um grande número de pessoas. Em tais finais
de semana são comuns as grandes filas, que começam a se formar desde cedo e não param
durante todos os dias que se seguem à sexta-feira de estreia. Antes da marcação de lugares
eram comuns pessoas correndo no momento em que se libera a sala em busca de seus lugares
preferidos ou dos “melhores lugares”9. A euforia citada nas ocasiões de pré-estreias também
ocorre aqui, porém não para todo o público como no caso anterior. As pessoas correm,
sentam-se e em muitos casos só depois de instaladas saem para comprar seus produtos no
snack10. Conversas antes do filme e durante a exibição são bastante frequentes,
principalmente quando se trata de referências ao filme feitas em voz alta. O cinema
disponibiliza ainda uma sala com cópias dubladas dos filmes com classificação livre, o que
faz que um número grande de crianças e grupos de crianças acompanhadas de seus pais
assistam a estes. Foi possível inclusive perceber grupos de crianças comemorando o
aniversário de um de seus membros juntos no cinema em uma destas sessões, Homem Aranha
3: “Cara, eles fizeram a maior bagunça, jogaram pipoca nos outros. Nunca mais trago eles ao
cinema.” (Mãe acompanhando o filho e os amigos, sábado 05/05).
A curiosidade e a pressa em se assistir a tais filmes está ligada a várias situações que
se cruzam: a espera que às vezes dura mais de um ano pelo lançamento da continuação do
filme tão esperado, a existência de super-heróis e personagens carismáticos entre os
personagens principais, as conversas nas semanas anteriores e posteriores nos grupos a que
pertencem os espectadores sobre o filme e a questão de “estar por fora”:
9
Os melhores lugares para se assistir aos filmes variam bastante dependendo das necessidades e gostos dos
espectadores.
10
Lanchonete no espaço interno do cinema que vendem pipocas, refrigerantes e guloseimas em geral.
330
“Eu sempre trago ele ao cinema, é um programa legal e ele gosta.” Quando
questionada sobre o tempo que precisaria esperar pelo início da sessão, eram 14:30 a
sessão só iniciaria às 19:10, ela disse que: “Ele (o filho) disse que se eu não o
trouxesse neste final de semana, segunda-feira na escola todo mundo ia ficar
comentando e ele estaria por fora.”.
(Mãe acompanhando o filho de 9 anos, dia 05/05).
Depoimentos como estes foram recolhidos durante todos os finais de semana de superestreias, demonstrando que ir durante o final de semana de estreia é programa “obrigatório”
para determinados grupos. Assistir ao filme é um dos argumentos de pertencimento aos
grupos, sendo parte do assunto das conversas e das características do grupo saber sobre os
filmes e sobre os personagens retratados nos filmes, e não estar “por fora” significa assistir ao
filme o quanto antes.
Algumas das ocasiões sociais observadas durante a pesquisa podem ser entendidas
ainda, segundo a definição de ritual de interação pessoal de Goffman (2011). Existindo
verdadeiras ocasiões excepcionais quanto ao comportamento do público, como é o caso da
sessão que ocorre nas sextas-feiras de super-estreias11, no primeiro horário após 14h, que
coincidem com o final das aulas dos turnos da manhã das escolas, existindo uma confluência
destes alunos para o shopping, Cinemark. Em tais ocasiões vários grupos de estudantes
uniformizados encontram-se no cinema e começam a interagir e a performar (GOFFMAN:
1999) para os demais espectadores. Esta sessão acaba se estabelecendo como o ponto de
encontro dos jovens das escolas das redondezas, que vem em grupo e fazem da experiência de
se assistir ao filme “O Programa” de suas sextas-feiras.
Em tais ocasiões, vários jovens das mais variadas escolas, em sua grande maioria
particular, já começam a se encontrar nas lanchonetes e restaurantes do shopping enquanto
almoçam ou pegam seus lanches para levarem ao cinema. Na fila para aquisição dos
ingressos, que há esta hora já é significativa, o barulho e as conversas são frequentes, assim
como os encontros casuais entre conhecidos de escolas diferentes. Após a aquisição dos
ingressos, entram na fila de espera, onde muitos se sentam no chão e alguns aproveitam para
almoçar seus lanches. O clima de paquera e de bagunça é geral entre os jovens, que falam
entre si e entre grupos lembrando-se de conhecidos em comuns ou perguntando sobre algum
aluno da escola do outro grupo. Em tais ocasiões, mesmo os grupos que normalmente
frequentam outros lugares, como no caso da “galera da praia”, podem aparecer ao cinema
11
Por super-estréias chamamos as películas exibidas no Cinemark que são muito divulgados nas mídias e
esperados pelo público. Referem-se a continuações de grandes sucessos de bilheteria, muitas vezes seus
personagens principais são oriundos de revistas em quadrinhos ou livros. Em tais casos, os filmes estréiam
em até três salas simultaneamente e têm durante o final de semana de estréia todas as suas sessões com
lotação máxima.
331
para ver “qual é a do filme”12. Com a desculpa de que o dia não está com muito sol ou porque
“todo mundo da sala estava vindo”.
As sessões são então, verdadeiras ocasiões sociais, quando os jovens reunidos
aproveitam a presença de outros estudantes da mesma idade das mais diferentes escolas para
conversar e se aproximar, existindo demonstrações/exposições públicas destes últimos.
Comentários são feitos em voz alta, jovens jogam pipoca entre si, rapazes tentam puxar
assunto com grupos de meninas, se levantam e gritam alto, cantam parabéns em conjunto para
algum aniversariante, etc. A performace apresentada por Goffman (2004) nos ajuda a
perceber no que tais ocasiões se convertem para estes jovens que ávidos por chamar atenção
utilizam seus corpos e falas para que os olhares da plateia se voltem para eles. A sala de
cinema pode ser percebida como uma cena teatral no sentido de Goffman (2009), ocasião está
onde a troca de ações produz uma dramatização que é compartilhada pela plateia em geral.
Neste sentido, em tais ocasiões, uma definição compartilhada da situação acaba
prevalecendo (GOFFMAN: 2010, 109). Para além das performances individuais de cada ator
social, existe ainda uma atitude coletiva, da plateia como um todo, diante do filme. Durante a
exibição dos trailers o público canta junto com as músicas das propagandas, normalmente
comercializadas também nos canais de televisões, e fazem comentários durante os filmes que
remetem diretamente ao universo jovem da época. Entre os exemplos mais marcantes de tais
comentários estão os realizados durante o filme do Homem Aranha, quando em uma das
cenas o personagem: meche em seu cabelo que caía sobre o seu rosto; vários espectadores
gritaram: “O Homem Aranha é Emo13!”. Estes comentários causam risos, e nestas ocasiões o
público parece ser formado por um grupo único, o dos jovens das escolas da Zona Sul do Rio
de Janeiro.
Esta sessão não pode ser apresentada e pensada sobre uma ótica que não as leve em
conta como verdadeiros eventos sociais dos jovens. Pensá-las apenas como ocasiões para se
assistir a um filme deixaria de englobar as interações, expectativas e vontades destes jovens
ao irem ao cinema. Estes percebem tais sessões como um verdadeiro ponto de encontro entre
jovens estudantes, ocasião onde podem rever conhecidos, conhecer novas pessoas e flertar
com alunos de outras escolas. Goffman nos permite analisar essa ocasião social segundo uma
reincidência de tais comportamentos ao mesmo tempo em que nos chama atenção para vários
fatos excepcionais que podem ser tolerados neste tipo de ocasião, uma vez que as regras das
12
13
Como é o filme? Porque falam tanto sobre ele? (Fala de alguns alunos na fila de espera)
Emo, Emotional Hardcore. Movimento musical mundial que no Brasil se caracteriza por jovens que andam
com roupas pretas e quadriculadas e que tem como marca distintiva o uso do cabelo sobre o rosto e
maquiagens melancólicas.
332
interações são definidas durante a figuração, e refletem e são o reflexo das brechas e da
existência de frouxidão e firmeza quanto aos comportamentos nas ocasiões sociais e nos
espaços públicos (GOFFMAN: 2010, 214).
No Espaço SESC de Cinema, as estreias que atraem a um público maior estão
comumente associadas a diretores que alcançam um status de produtor de grandes filmes e/ou
filmes que recebem uma crítica favorável nas premiações internacionais14 e pela crítica
brasileira, mesmo durante o Festival de Cinema do Rio 2012 percebe-se essas variáveis como
importantes. A imagem do cinema enquanto experiência cinematográfica, tão recorrente nos
depoimentos dos frequentadores, nos leva a reflexões quanto ao que estes buscam ao irem ao
Espaço SESC e o que fazem a partir desta frequência. O Espaço SESC carrega consigo a
imagem da exibição dos bens simbólicos institucionalizados como melhores (BOURDIEU,
2003), são os filmes arte, de qualidade e que fogem do “circuito comercial”. Esta distinção
traz consequências claras na frequência, que é em sua maioria composta por adultos, bem
vestidos, que se utilizam do Atelier Culinário15 como um espaço de estudo e que priorizam
filmes que sejam mais do que roteiros bem escritos.
Contudo, os próprios depoimentos e a vivência no cinema levantam outras questões
quanto às escolhas dos filmes. São comuns que as primeiras sessões dos filmes que tenham
uma crítica favorável nos jornais sejam procuradas. Em tais ocasiões a expectativa e a
“necessidade” de se assistir ao filme o quanto antes faz com que muitos atores sociais, ávidos
pela distinção trazida pelo filme, ocupem as primeiras sessões, e em alguns casos acabam
saindo decepcionados. Um exemplo claro deste desconforto, quanto a não ter gostado de um
filme “tão elogiado”, se deu na semana do dia 29 de junho a 05 de julho 2007, quando estreou
o filme 500 almas. Após a exibição, na fila do banheiro, algumas espectadoras começaram a
falar sobre o que acharam do filme, primeiro de forma discreta, como se estivessem
incomodadas pela situação, e depois, quando percebendo a unanimidade quanto às críticas
negativas ao filme, falaram de forma mais aberta dizendo que o acharam “chato e parado”.
Nestas situações, a experiência individual ao ver o filme é atravessada pela crítica
14
Aqui a distinção se dá a partir de uma diferenciação entre os festivais. É unanime a citação dos festivais de
Veneza, Cannes e Berlim pelos entrevistados, os mais jovens citam também os festivais de Toronto,
Sundance e Locarno. Quase nunca se referem ao Oscar, normalmente acionado no Cinemark e Espaço Itaú,
mas não desconhecem os filmes que ganharam premiações neste último. Alguns sugerem algumas das
premiações do Oscar como possíveis, como no caso do Oscar de filme estrangeiro, “mas você precisa ver os
dois ou três primeiros lugares, pois nem sempre o que ganha é de fato o melhor. Festival tem muita
indicação” (Senhora, Espaço Itaú, 10/2012).
15
O Atelier Culinário é uma lanchonete que pode ser classificada como um dos Cafés que vêm se consolidando
em toda a Zona Sul da cidade como ambientes de leitura e consumo de cafés, comidas, doces e bebidas
alcoólicas.
333
positiva que este recebeu, e o sentimento buscado pela plateia é o de alcançar suas
expectativas diante do filme. Esta última traduz não só uma vontade de entender e
compreender o filme, mas também uma utilização do conteúdo destes em conversas e
discussões posteriores. Sendo assim, os filmes e o cinema, se interligam a rede social mais
ampla dos indivíduos, que no caso aqui analisado permite paralelos aos Nobres analisados por
Velho (2008), uma vez que o Espaço SESC incorpora, dentro das possibilidades de cinemas
da cidade, um habitus valorizado por este grupo (BOURDIEU, 1983), traduzido enquanto
gosto e um estilo de vida, que se afirma por meio de uma diferença no modo de se vestir,
consumir, o no que encaram como sendo um bom filme.
No livro Amor pela arte, Bourdieu (2003) aponta a pressão sofrida pelos indivíduos
que possuem “ambições culturais mais consistentes”, percebendo que durante uma viajem
turísticas os sujeitos são “coagidos” a frequentarem determinadas exposições consideradas
“imperdíveis”. O mesmo sentimento de “obrigação” apontado pelo autor pode ser percebido
com relação aos filmes do Espaço SESC, que respaldados pelas críticas positivas e pelos
grupos de referência dos frequentadores, acaba por criar uma necessidade de assistência e
entendimento do mesmo.
Nestes casos, assim como nas super-estreias do Cinemark, o que está em jogo não é
somente o “ver o filme”, mas o status trazidos ao se assistir a determinados filmes
considerados “obrigatórios”. Ficou claro durante a pesquisa, que os critérios que regem as
escolhas dos filmes “imperdíveis” são diferentes quando pensadas em cada um dos cinemas.
No Cinemark, está relacionada às superproduções muito aguardadas e fruto normalmente de
adaptações de quadrinhos e livros de sucesso. Já no Espaço são os filmes dos diretores
aclamados e prestigiados pelas “boas críticas cinematográficas”. No entanto, pode-se dizer
que, apesar de funcionarem para grupos distintos a lógica que rege a escolha dos filmes está
diretamente relacionada aos grupos de referência de cada ator social, que buscam na
assistência não apenas o filme, mas o “dizer que viu o filme” e o sentimento de pertencimento
ao grupo dos que já o assistiram.
A aspiração ao mundo culto e a sensação de se estar entre semelhantes são apontadas
pelos frequentadores do Espaço como motivos pela escolha deste cinema em relação aos
outros existentes no bairro.
“Eu sou elitista! Não curto muito estes filmes narrativos (americanos). Gosto do
filmes pelo diretor, filmes experimentais.”
(Pai acompanhado da esposa e da filha, 55 anos, 10/01, Espaço de Cinema).
“Venho aqui tomar um café e estudar, gosto do ambiente e das pessoas que
freqüentam o Espaço. Eu me identifico com o público daqui.”
(Rapaz, 25 anos, 25/02, Espaço de Cinema).
334
O “ser visto” nas dependências do Espaço e os encontros casuais também fazem parte
das experiências dos frequentadores, que encontram seus pares e conhecidos de forma causal
e trocam informações sobre os filmes que assistiram ou irão assistir. Há ainda a existência de
frequentadores esporádicos, que estão pela primeira vez no cinema e apontam diferenças
marcantes.
“Eu não gosto daqui, pois o pessoal é diferente do que tô acostumado. Todo mundo é
meio esnobe, metido... é porque o cinema fica onde fica 16 e os filmes diferentões
que não passam nos outros lugares.” Quando perguntado sobre quais eram as
diferenças ele disse: “Olha o jeito como se vestem, tem este jeito blasé, o óculos da
moda. Todo mundo fazendo tipo de intelectual.”
(Casal de universitários, 10/01, Espaço de Cinema).
O casal acima apontou ainda a questão étnica, me perguntando quantos negros eu já
havia visto frequentando o Espaço. O número foi realmente muito pequeno durante toda a
pesquisa, existindo um número maior no Cinemark e Espaço Itaú. O casal, contudo, afirmou
odiar os cinemas barulhentos, dizendo que o lado bom do Espaço SESC era que “o povo é tão
metido que não faz barulho”.
O Espaço Itaú de Cinema é comumente acionado quando os entrevistados do Estação
SESC se referem a algum “bom filme americano”, sendo visto como um cinema que passa
alguns dos filmes do chamado “circuito comercial” já pré-selecionados. Essa escolha dos
filmes é reafirmada pelo site do cinema e pelos funcionários, que percebem este espaço como
detentor de uma programação “mais
”
17
. A programação que mescla filmes que são
exibidos no Espaço SESC e no Cinemark, em um complexo que disponibiliza seis salas, faz
com que o Espaço Itaú tenha um movimento constante de pessoas das mais variadas faixas
etárias. No que tange aos momentos de estreias de filmes, este acaba se tornando uma
“alternativa ao cinema de h
”, percebido como cheio e com um “clima de shopping”.
Os encontros casuais e os comentários quanto aos filmes que estreiam na semana, como o
caso do “Elefante Branco” (09/11/12), demonstram como que alguns filmes devem ser vistos
e se tornaram assunto das conversas posteriores destes indivíduos, ainda que não produzam o
mesmo frenesi e comoção que os filmes mais divulgados pelas mídias causam entre os jovens.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho se caracteriza como um primeiro esforço para sistematização de
alguns dados que veem sendo levantado para elaboração do texto final da dissertação, e se
16
17
Refere-se a localização na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Os termos quanto aos circuitos de cinema não estão sendo aqui questionados, mas as definições e
classificações entre os filmes serão parte da análise da dissertação.
335
tornará parte de um capítulo voltado para os momentos de estreias dos filmes. Enquanto tal
busca produzir algumas reflexões que acerca destes momentos e dos espaços estudados que
vão ao encontro da importância e das escolhas dos filmes para os grupos e indivíduos
estudados.
Almeida (1995) em sua pesquisa na cidade de São Paulo percebeu diferenças
marcantes entre os cinemas de rua e os cinemas de shopping, que estavam diretamente
relacionadas à decadência do antigo centro da cidade e das mudanças urbanas ocorridas em
São Paulo. Aponta ainda a existência de cinemas arte, que se encontram no entorno da
Avenida Paulista junto aos museus da região. Sua contraposição, no entanto, está entre as
salas de rua a salas de shopping, percebendo o cinema arte como uma nova categoria restrita a
um espaço da cidade.
Na cidade do Rio de Janeiro, está oposição entre cinema de rua e cinema de shopping
não se dá como em São Paulo. Várias salas de rua foram adaptadas e transformadas segundo o
padrão multiplex (GOULARD: 2004), e abrigam cinemas com o mesmo padrão de serviços
dos Norte-Americanos18. As salas divididas em várias exibem muitas vezes os mesmos filmes
do cinema do shopping, e a oposição percebida por Almeida não nos ajuda a pensar tal
situação do Rio de Janeiro. A oposição aqui, não é entre cinema de rua ou de shopping e sim
de distribuidores e circuitos distintos, que exibem filmes diferentes e que buscam atingir a
públicos diversos.
As expectativas e propagandas dos serviços e filmes realizadas pelos cinemas acabam
por atrair clientes que vão em busca de seus serviços. Os usos dos espaços internos e externos
às salas de exibição juntamente com as entrevistas mostrou que são muitas as expectativas e
motivos que levam os indivíduos aos cinemas, espaços estes percebidos enquanto
demarcadores de suas identidades a partir dos projetos individuais de seus frequentadores. As
experiências cinematográficas são variadas e altamente influenciadas pela presença ou não de
acompanhantes. O ir ao cinema abarca mais do que a experiência estética contemplativa, são
verdadeiras ocasiões sociais, quando os atores sociais interagem com o restante da plateia,
assistem aos filmes e “dizem que os assistiu”, em alguns casos o comunicado é realizado
dentro do próprio cinema através de ligação ou postagens na internet via celulares.
As considerações finais a que chegamos neste trabalho, assim como apontado por Park
quanto às regiões morais, é que os indivíduos ao buscarem a mesma forma de diversão,
devem de tempo em tempo se encontrar nos mesmos lugares, resultando que a organização
18
Exemplos: São Luiz, Roxy, Espaço Itaú de cinema.
336
espacial citadina acaba por criar espaços de convívio que seguem padrões de gosto e de
temperamento (PARK, 1967: 70). Tais disposições acabam por criar uma segregação espacial,
ainda que no caso aqui estudado ela não se estabeleça enquanto definitiva, imprimindo aos
frequentadores de determinado cinema identidades de grupos e individuais. Sendo assim, o ir
ao cinema está aqui relacionado à liberdade de fazer escolhas que determinados indivíduos da
classe média carioca têm quanto às possibilidades de salas de cinema, estando diretamente
relacionada à multiplicidade de visões de mundo que coexistem na cidade.
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337
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338
RELIGIÃO, REDES SOCIAIS E “AGENTES MEDIADORES”:
AÇÕES PENTECOSTAIS NAS FAVELAS DE CAMPOS DOS GOYTACAZES
Vanessa da Silva Palagar Ribeiro1
Elson dos Santos Gomes Junior2
RESUMO
O segmento religioso evangélico tem apresentado grande dinamismo em suas estratégias e
ações na sociedade brasileira. O crescimento expressivo obtido nas últimas décadas também
intensificou as ações assistenciais entre este segmento religioso que incrementa seu
proselitismo junto à população. Num contexto de retratação das políticas sociais e de
precarização do trabalho e desemprego, as igrejas pentecostais se inscrevem territorialmente
em favelas por meio de redes e estratégias de enfrentamento da situação de pobreza de seus
fiéis. Contemplando as atividades de iniciação científica desenvolvidas desde 2009 busca-se
problematizar o campo de atuação dos pentecostais na cidade de Campos dos Goytacazes.
Inicialmente foram selecionadas três favelas da cidade de acordo com suas características
socioeconômicas e as condições de vida de seus moradores, em seguida buscaram-se fontes
e/ou dados sobre a formação destas favelas e, por fim, a imersão ao campo. Foram analisados
de forma especial alguns aspectos encontrados no campo relevantes e presentes na literatura
sobre pentecostalismo no Brasil, dessa forma, foram observados as redes de amparo/proteção,
os “agentes mediadores” e as ações assistenciais das igrejas face aos contextos de
precariedade de serviços e isolamento institucional. A partir de uma abordagem metodológica
qualitativa com pesquisa de campo, de observações diretas e entrevistas semiestruturadas
privilegia-se as narrativas de membros das denominações pentecostais investigadas nas
favelas da cidade.
Palavras-chave: Pentecostais; Redes Sociais; Mediação.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é resultado de um conjunto de atividades realizadas durante a graduação
em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense, a partir das experiências obtidas
1
2
Bacharelanda do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
(UENF);
Bacharelando do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
(UENF);
339
nos respectivos projetos de Iniciação Científica e em disciplinas cursadas. A abordagem qualitativa é a
predominante, dando ênfase a métodos antropológicos de pesquisa.
O trabalho a ser apresentado a seguir, num primeiro momento, tem por finalidade
traçar a trajetória da formação da cidade de Campos dos Goytacazes. Tendo em vista, que a
formação da cidade está intrinsecamente relacionada às terras que aqui se encontravam, pois
estas eram (e ainda o são) totalmente propicia para o cultivo da cana e o açúcar era fonte de
riqueza da época da colonial. Então, nesta parte do texto visamos tratar resumidamente,
pontos importantes que fazem do povo campista e da cidade de Campos o que são hoje, via o
desenvolvimento da agricultura açucareira, desde as primeiras tentativas de sua implantação
até sua ascensão como principal fonte econômica da planície goitacá.
Depois, tem-se por objetivo delinear a expansão pentecostal assim como algumas
estratégias realizadas pelo segmento evangélico para “conquista das almas” (ALMEIDA e
D’ANDREA, 2004, p. 105), desde a anexação de fiéis, trabalho assistencial realizado junto
aos membros da igreja e a dimensão política desta assistência. Ou seja, busca-se investigar o
campo de atuação dos pentecostais nas favelas de Campos dos Goytacazes enfatizando o
assistencialismo destas igrejas; procura-se compreender e interpretar, como estas
denominações religiosas atuam em face aos problemas sociais que se apresentam no cotidiano
dos moradores de favelas.
METODOLOGIA
A metodologia característica desta pesquisa é a qualitativa, que passa a ter devida
ampliação a partir do desdobramento da realização do trabalho de campo, envolvendo a
observação participante, conversas informais e entrevistas semi-estruturadas desenvolvidas
devidamente no campo de estudo.
A pesquisa etnográfica ou mesmo o texto etnográfico levantado com o diário de
campo, passa a ter grande importância para análise dos dados obtidos durante as conversas e
entrevistas, enfatizando sua relevância enquanto método de estudo e servindo como meio de
descrição e posteriormente, reflexão do contexto pesquisado.
Primeiramente foram selecionadas três favelas de Campos dos Goytacazes de acordo
com suas características socioeconômicas e as condições de vida de seus moradores. Em
seguida, é feito um levantamento das atividades realizadas pelas igrejas que envolvem ações
de caráter assistencialista. Também se realiza a observação participante dos cultos como
forma de aproximação das instituições pentecostais. E ainda, elaboração do diário de campo a
partir das observações e comentários sobre o contexto e dinâmicas focalizadas na pesquisa.
340
Foram aplicadas entrevistas semi-estruturadas com os responsáveis das organizações de
cunho assistencialista de confissão pentecostal, bem como os pastores dessas denominações.
Também será utilizado material extraído do grupo focal realizado pela Professora
Wania Mesquita para o projeto “Cidadania sob cerco: percepções e estratégias de ação dos
moradores de favela”. As seções foram divididas por grupos formados a partir das temáticas
levantas no referido projeto, e de acordo também com os contatos das pesquisas de outros
estudantes bolsistas de iniciação científica, foram convidados a participar grupos de homens,
mulheres, lideranças religiosas (pentecostais), pais e mães, e adolescentes; dividido assim,
cada grupo focal foi realizado em dias distintos durante o mês de Outubro de 2010.
CAMPOS DOS GOYTACAZES: DA CAPITANIA À CIDADE
A princípio, ao Brasil ser dividido em capitanias hereditárias por D. João III, a
Capitania de São Tomé – como era chamada toda a área que hoje se encontra toda a região
norte e noroeste fluminense do estado do Rio de Janeiro – foi doada a Pero de Góes da
Silveira. Pero de Góes, por sua vez, inicia em 1539 a colonização de suas terras, entretanto,
suas tentativas de construir engenhos de açúcar sempre eram destruídas pela população local
indígena, os índios Goitacá; que fez com que Pero de Góes abandonasse sua capitania, pois a
resistência dos índios Goitacá apresentava grande perigo a segurança dos senhores e suas
respectivas famílias. (LAMEGO, 1947, p. 64)
Depois de muitos anos abandonada, a capitania de São Tomé, também chamada de
capitania Paraíba do sul, após a morte de Pero de Góes, recebe um novo donatário, seu filho
Gil de Góes da Silveira. Apesar da dedicação de Gil de Góes o mesmo lhe passou, os índios
mostraram resistência. Então, Gil de Góes renuncia sua capitania em favor da Coroa
portuguesa. Mais tarde determinou o rei de Portugal que o Governador do Rio de Janeiro
dividisse as terras em sesmaria a sete capitães. Estes arrendaram e venderam parte de seus
‘terrenos’ para moradores da cidade do Rio de Janeiro. Assim, em pouco tempo divididos os
quinhões foram construídos os currais. (LAMEGO, 1947, p. 66)
A partir da leitura de Alberto Lamego (1947) podemos ver as muitas tentativas da
criação da vila de São Salvador pelos moradores locais e não pelos donos de currais e sítios,
os poderosos que viviam no Rio de Janeiro. Mostra-se neste processo de fundação da Vila de
São Salvador ser de fundamental importância a propriedade, ter propriedade de terras era
essencial para conseguir afirmar seus direitos, vontades, ter poder, posição social etc.
Porém, não basta somente ter propriedade para afirmar seu poder como elite, tem que
ter também o poder político, ou seja, o poder da Câmara. A formação de Campos dos
341
Goytacazes desde sempre foi baseada na luta, pelo conflito. A situação das classes mais
pobres – pequenos proprietários, trabalhadores livres, escravos etc. –, sempre esteve mais que
insatisfatória, pois não tinham voz neste cenário político e econômico em que a luta era
visivelmente inter-elite. (ALVES, 2009, p. 79)
Em 1677 é fundada a vila de São Salvador. Juntamente com a fundação da Vila está
construída a identidade da população campista, está construída sua história. A Vila de São
Salvador, futuro município de Campos dos Goytacazes é fundada pela perspicácia, fervor,
audácia que possui o seu povo; pelo conflito, resistência e superação que aspira uma
população que quer se libertar: a luta pela liberdade de Campos. (ALVES, 2009)
Dividida em latifúndios depois da queda dos Assecas (os que tiveram suas terras
doadas pelo Rei de Portugal) houve uma grande expansão da agroindústria açucareira. Em
Campos a principio não existiu os chamados engenhos reais, com grande número de escravos
etc.; na indústria açucareira campista era tudo muito rústico assim como Lamego filho cita
Couto Reis (1974):
“Para a casa da fabrica, que comumente é a mesma da vivenda, tudo serve. O fim
principal é moer cana e fazer açúcar. Há engenhocas que não têm cobertura senão o
espaço que ocupam as moendas, cuja cobertura anda à roda, por estar armada por
cima das almanjarras, e só mói em tempo de sol; outro há, senhor das tais
engenhocas, que não possui escravo algum e se serve com a sua família – filhos,
irmãos, mulher e alugados. Faze-se incrível o que se conta de algumas destas
fábricas, que assim mesmo fazem muito açúcar, com que se remedeiam os donos, a
vão deixando de cultivar outras culturas, a que antes se aplicavam.” (LAMEGO
FILHO apud COUTO REIS, 1974, p.139)
Mas essas famílias produtoras de açúcar também passam adquirir escravos, utensílios,
crédito com mercadores com o que ganham da sua produção e muitos chegam até a adquirir
engenhos. Portanto, afirma Lamego Filho (1974):
“Assim é que nasce em Campos a industria açucareira. Da engenhoca de 4 a 6
formas de açúcar diárias é que sai o engenho de 30 a 40 caixas e com essa
multiplicidade individual de iniciativas é que enxameiam as pequenas fábricas. O
desejo da terra acirrado na luta contra os Assecas é que leva o pequeno foreiro a
construir moendas próprias em suas fazendas penosamente adquiridas. Dessa
maneira é que, de 1769 a 1783, no espaço apenas de 14 anos, se levantam na
planície 223 novos engenhos e engenhocas.” (LAMEGO FILHO, 1974, p.139)
Sabendo-se que no relevo campista predomina a planície e uma forte presença se
recursos hídricos, como o próprio rio Paraíba do Sul e diversos lagos, lagoas e brejos. Neste
contexto, como nos diz Lamego filho, o meio geográfico se impõem e contribui para a
dispersão do homem. A disposição topográfica da região dificultava a comunicação da
população. Após 30 anos da passagem da capitania para a Coroa, a lavoura de cana já tende a
monopolizar toda a atividade econômica da região.
342
Assim, com o adensamento da região vai se criando possibilidades de comercio, há
melhorias nos transportes, o cultivo da cana traz toda uma modificação do ambiente social da
planície. “A cana tudo modifica e o novo método de vida traz maior convívio e mais
frequentes idas à vila pelas necessidades de intercambio.” (LAMEGO FILHO, 1974, p. 141)
A vida muda na planície, novos ricos surgem, é aparente um leve refinamento, se vê
sedas, cetins, belos objetos em prata, uma ostentação do que a cana trouxe para os que dela
tiram o seu trabalho. Diz Lamego Filho (1974):
“Todo esse refinamento, entretanto, é quase esterno. Não entra na epiderme. Os pés
desses novos-ricos ainda trazem a lama dos pantanais em que se atolaram, e suas
mãos os calos do laço. O rosto é curtido pelas soalheiras nos canaviais e pelo bafo
das fornalhas.
Mas o contágio da abastança pelo açúcar tudo invade. Por todo esse fim de século e
princípios do seguinte, as lavouras se derramaram na planície, e numa extraordinária
animação febrilmente se levantam centenas de novos engenhos e engenhocas.”
(LAMEGO FILHO, 1974, p. 142)
Se tratando da área norte e noroeste fluminense o fator diferenciador da região está na
presença da ordem religiosa, isto porque, entre outros fatores, apresentaram forte resistência a
utilização do trabalho escravo, havendo conflito entre senhores de engenhos e a ordem
eclesiástica durante a consolidação da agroindústria açucareira.
Em 1827 é instalado o primeiro engenho a vapor em Campos, já em 1877, surgiu o
primeiro engenho central do país: o Engenho Central de Quissamã. Para a construção deste
Engenho foram compradas máquinas francesas. Além disso, O aparecimento da ferrovia, em
1837, com a inauguração do trecho Campos-Goitacazes; e posteriormente em direção ao
trecho Norte-Sul, facilitou a circulação, transformando o município em centro ferroviário da
região. Em 1879/90, também no município de Campos, foi inaugurada a primeira usina de
açúcar do Brasil: Usina do Limão, situada na fazenda e engenho do Limão, pertencente a João
José Nunes de Carvalho. Época da aristocracia rural enriquecida pelo açúcar. (LAMEGO
FILHO, 1974, p. 150)
Já no Período Republicano a sociedade campista viveu um surto econômico e
urbanístico de grande importância na história fluminense, chegando a até mesmo entrar em
uma disputa política e econômica pela sede da capital estadual no início do século XX
(ALVES, 2009, p. 81). Porém, para que Campos atingisse a categoria de cidade era necessário
que o Governo central acabasse com as epidemias causadas principalmente pelos períodos de
cheias, e atribuísse a cidade uma imagem de progresso. (ALVES, 2009, p. 83)
Em 1835 Campos deixa de ser vila e passa a ser cidade. Então se pode dizer que o
processo de urbanização da cidade se dá em 1877 com a implantação dos engenhos centrais. E
343
aproximadamente, em 1890 a região passa do rural para o urbano. Com isto, a plena
circulação de negros, pobres etc. no centro urbano passa a ser um problema a nova ideia de
“civilização” advinda com o conceito de espaço urbano. Era necessário tornar o espaço
urbano civilizado e para isto, foi necessário estabelecer regras de circulação, plano
higienicista, etc., ou seja, uma serie de medidas institucionais, políticas, sociais e econômicas
para tal fim. Logo, a “política de reforma urbana” perpassava não só pela limpeza do espaço,
como acima de tudo acentuava, ou melhor, determinava a divisão do espaço. (ALVES, 2009,
p. 85-90)
A cidade de Campos dos Goytacazes apresentou no período entre 1950 e 2000 além de
um grande crescimento populacional, também um forte fluxo migratório no sentido campocidade, em decorrência da decadência de setores agrários na região. A crise do açúcar e álcool
levou ao fechamento de muitas usinas em Campos, e outras sofreram um processo de
modernização nos meios de produção. Logo, precisavam de mão de obra especializada, o que
não era encontrado na região. Os trabalhadores rurais se deslocaram para as cidades em busca
de melhores condições de vida e trabalho, porém mesmo na cidade, essa parte da população
desempenhava funções que exigiam bem menos “qualificações profissionais” (GUIMARÃES
e PÓVOA, 2005, p. 9).
O centro urbano da cidade não estava preparado para receber tamanho contingente de
pessoas; o acesso fácil e maior “oferta” de emprego nesta parte da cidade, levou a parcela
pobre da população a ocupar lugares próximos ao centro urbano, porém à margem do mesmo.
A modernidade trouxe assim uma transformação urbanística a cidade e, também, realocou esta
população pobre definindo o seu lugar, ou seja, as margens do espaço urbano da cidade
campista (na favela).
O CAMPO DE PESQUISA: LOCALIZAÇÃO, CONTEXTO HISTÓRICO E
TRABALHO ETNOGRÁFICO
De acordo com as saídas de campo foi possível caracterizar a localização mais exata
das favelas, são elas: Baleeira, Tira-gosto e Matadouro, determinando Ruas, Bairro, Avenidas
e pontos de referência de suas localidades, e a partir disto foi realizada a descrição a seguir.
A Baleeira está localizada entre quatro avenidas importantes da cidade: Av. Alberto
Torres; Av. Max de Vasconcelos; Av. Presidente Vargas; Av. Visconde de Alvarenga. Situa-se
atrás do Cemitério do Caju, o maior da cidade de Campos. O cemitério foi instalado no centro
urbano em 1855 por causa da epidemia de cólera que atingiu grande parte da população
devido à insalubridade dada a topografia de áreas alagadas. A ocupação da área atualmente
344
conhecida como Parque Leopoldina era de moradores que prestava serviços ao cemitério e de
ferroviários da estação Leopoldina Raiwllys.
A favela Matadouro está localizada em uma área que forma um corredor entre duas
margens laterais, sendo uma delas a Avenida Alberto Lamego e a outra o rio Paraíba do Sul.
Percebe-se nos últimos anos uma paulatina valorização dos imóveis da área no entorno da
favela, conforme mais se aproxima da Avenida. A favela é plana e cortada por ruas internas,
sendo a parte mais próxima do rio cortada por pequeninos becos e passagens. Assim pode-se
dizer que a planificação do bairro é tanto menos perceptível conforme mais se adentra no
espaço da favela, aonde os barracos vão ficando menores e exibindo uma estrutura mais
precária.
A extensão territorial da favela Matadouro se estabelece em continuidade entre a
favela Tira-Gosto e o Goiabal. Muitos dos seus moradores construíram suas casas próximo ao
dique de contenção do rio Paraíba do Sul, que delimita um dos lados da favela dando o
contorno sinuoso de seus limites. Conforme dito anteriormente, passam pela favela a Avenida
Dr. Adão Manuel Pereira Nunes que mais pra frente se encontra com a Avenida São João da
Barra e a Avenida Rui Barbosa, também as duas em contorno do mesmo rio.
Dentro dos limites da favela Matadouro se localizam ao longo da Avenida Dr. Adão
Manuel Pereira Nunes, quatro Igrejas Pentecostais: a Igreja Pentecostal Filadélfia com o
Pastor Isaías; Igreja Prebisteriana da Congregação do Matadouro com o Pastor Devid;
Assembleia de Deus Ministério de Volta Redonda com Pastor Emanuel; e Assembleia de Deus
Ministério Getsêmani com o Pastor Adilson, mas esta se encontra já no Goiabal, entretanto a
Pastor está construindo uma filial próximo a Portelinha3. E ainda na Rua Projetada Aguiar, ao
lado da UENF, se dá uma das entradas para a favela Matadouro, onde se localiza também os
prédios que são chamados pela comunidade de ‘Portelinha’, há uma Igreja Assembléia de
Deus do Ministério Madureira com o Pastor Marcos. E por fim, atrás da Avenida Adão
Manuel Pereira Nunes, na Avenida Rui Barbosa que beira o Rio Paraíba do Sul há também
outra Igreja Pentecostal intitulada de Igreja Evangélica Resgatar com a Pastora Luzia. Então,
ao todo, existem sete igrejas de origem Pentecostal localizadas no interior da comunidade
Matadouro.
Segundo depoimento de alguns destes pastores as igrejas não possuem muitos
membros, por exemplo, na igreja pentecostal Filadélfia o número aproximado de membros
fixos, sem contar com crianças e visitantes, gira em torno de 12 pessoas. Na igreja
3
Portelinha é como é conhecido o conjunto habitacional construído pela Prefeitura de Campos dos Goytacazes
na comunidade Matadouro. Ela está localizada no final da Rua Projetada Aguiar e fica ao lado da UENF.
345
Prebisteriana esse número é um pouco maior, e se pode dizer que a igreja recebe
aproximadamente 50 pessoas durante os cultos, incluindo membros e visitantes. E já na Igreja
Resgatar os membros fixos da igreja fica em 30 pessoas.
O exato limite entre as favelas Matadouro e Tira-Gosto são desconhecidos, não dá para
afirmar com precisão onde começa uma e termina a outra, mas em todo caso o Posto de Saúde
da favela Tira-Gosto delimita, pelo menos simbolicamente, este ponto de ruptura. Contudo
cabe mencionar que os moradores da Matadouro vêem a Tira-Gosto como uma favela muito
mais violenta, e esta proximidade com ela os afetam por esta última representar um perigo
eminente (MESQUITA, 2009).
A favela Tira-Gosto surgiu na década de 60 e se localiza próxima a favela Matadouro,
as margens do Rio Paraíba do Sul, no bairro Parque Riachuelo. Situa-se entre as Ruas Élson
de Souza Oliveira também conhecida pelos moradores como Rua São João da Barra (beirario) e a Av. Dr.º Adão Manoel Pereira Nunes, e segundo informantes, a favela se inicia desde a
fábrica Purac Sínteses Indústria e Comércio até o beco Risca Faca. As ruas de acesso a Tira
Gosto, sentido Alberto Lamego, são as ruas Siqueira e Silva e Felipe Uebe.
Observa-se na favela Tira-Gosto a predominância de becos, alguns mais estreitos do
que os outros e não possuem asfalto, as casas são em sua maioria bem simples e em muitas
delas residem famílias numerosas. Existem vários botecos de vendas de bebidas e alguns
produtos alimentícios de primeira necessidade, duas igrejas, uma católica (desativada) e uma
pentecostal (Igreja Caminho das Águas dirigida pelo Pastor Getúlio). Existe um campo de
futebol, que serve para brincadeiras esportivas, e também já foi muito utilizado para bailes
funks. A igreja Católica, segundo contam alguns dos moradores, já faz muito tempo que não
funciona, e quando é aberta se restringe apenas a velórios. Não há Padre fixo na igreja e esta
se localiza muito próxima ao campo da comunidade, porém, entretanto, ao lado da igreja
católica também se encontra um dos pontos de maior incidência do tráfico de drogas.
Historicamente a favela Baleeira foi formada por famílias que saíram das fazendas e
do campo em direção à cidade “... e como não tinham condições de pagar um aluguel
invadiram uma área localizada na malha urbana da cidade, que afirmam ter sido doada por um
fazendeiro à Prefeitura.” (GUIMARÃES & PÓVOA, 2005, p. 16). As favelas Baleeira, Tiragosto e Matadouro são reconhecidas no IBGE4 como “aglomerados subnormais”, mas alguns
moradores da Matadouro a identificam como Goiabal, mas esta por sua vez, tem sua origem
anterior a Matadouro que se formou posteriormente em contiguidade territorial.
4
Dados preliminares IBGE 2012. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/agsn/
346
Um fato ressaltado por Guimarães e Póvoa (2005) é que muitas favelas da cidade se
formaram em continuidade uma das outras, e como nos casos das favelas Tira-Gosto, Risca
Faca e Siqueira e Silva, que atualmente de acordo com alguns moradores da Tira-Gosto, é
possível agrupar a Tira-Gosto e Risca faca como uma única favela, recebendo o nome
somente de Tira-Gosto. Porém dados do IBGE5 contradizem os moradores, identificando e
delimitando espaços para cada uma dessas duas favelas.
A Siqueira e Silva é uma rua de entrada da Avenida Alberto Lamego para a favela
Tira-Gosto, mas esta vive um histórico diferente, pois os moradores dessa rua não se sentem
pertencentes à Tira-Gosto, e por isto, criaram uma própria maneira de identificação social, são
moradores da Siqueira e Silva, segundo relatos. Esta atitude pode ser observada como uma
forma de ‘fugir’ do estigma (GOFFMAN, 1974) referente à criminalidade dos territórios
favelados. No entanto, também dados do IBGE (2012) mostram que a Siqueira e Silva é
identificada como um dos “aglomerados subnormais” da cidade de Campos.
A EXPANSÃO PENTECOSTAL
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o catolicismo
era a religião que compreendia a maior parte dos fiéis no Brasil.6 Visto o Brasil como um país
majoritariamente católico desde o período da colonização, não é viável dizer, atualmente, ser
um país radicalmente católico; Isto porque, a partir da década de 80 com o avanço do
movimento evangélico nas principais cidades brasileiras, marco de um importante fenômeno
religioso impulsionado pela forte presença e participação de evangélicos em diversos âmbitos
da vida social do país (como a cultural, política, econômica e social), as igrejas evangélicas
passam a ocupar cada vez mais os espaços na sociedade brasileira. As estatísticas mostram
que os evangélicos pentecostais dobram a cada década: 3,9 milhões em 1980, 8,8 milhões em
1991 e 18 milhões em 2000. (Atlas da filiação religiosa e indicares sociais no Brasil, 2003, p.
39). Este aumento está relacionado principalmente a dois aspectos: publicidade (ou
divulgação pela mídia) e o proselitismo religioso fortemente utilizado pelos membros dessas
5
6
Id. IBGE 2012.
Não é mais cabível, hoje, afirmar que o Brasil é um país radicalmente católico, tornando-se impossível ignorar
a mudança em curso no quadro religioso brasileiro. A oferta de denominações religiosas é enorme. Os dados
do IBGE referentes ao ano de 2000 evidenciam não somente a pluralização religiosa brasileira, com a
maioria católica reduzindo-se de 83,76% para 73,8%, como também o aumento da taxa dos sem-religião, que
subiu de 4,78% para 7,28%. Esta ultima tendência parece indicar uma desistitucionalização da religião, com
um bom número de brasileiros procurando fora das religiões um sentido para a sua vida. O estado do Rio de
Janeiro apresentou em 2000 uma menor proporção de católicos (57,2%) e maior de pessoas sem religião
(15,5%). As pesquisas indicam que, ao longo dos censos, o Rio de Janeiro vem apresentando uma maior
diversidade de declarações de religião, e também, foi constatado expressiva concentração de evangélicos com
21,1% da população (Comunicação Social, 08 de maio de 2002).
347
igrejas.
De acordo com Silva e Costa (2007, p. 46) o crescimento dos movimentos religiosos
de ordem pentecostal na América Latina ocorreu a partir do ano de 1970 que coincide com o
crescimento da Teologia da Libertação7, o fim do milagre econômico e a industrialização dos
centros urbanos. Esses acontecimentos religiosos e econômicos não têm nada em comum à
primeira vista, mas estão completamente imbricados e interferem até hoje na vida política,
social e econômica brasileira.
O milagre econômico fez o Brasil crescer, mas beneficiou a poucos, para maioria da
população brasileira restaram o crescente desemprego, os baixos salários, a falta de
infraestrutura, etc. Com esse quadro econômico pouco favorável à parcela pobre da
população, surgem mudanças no campo religioso onde estes tipos de instituições religiosas
passam a buscar explicações e soluções para os problemas enfrentados pelos seus fiéis.
(SILVA e COSTA, 2007, p. 46)
A inserção dos evangélicos pentecostais no meio político pode indicar um suposto
enfraquecimento de influência da Igreja Católica, sob as instituições seculares, e uma
mudança no mundo evangélico. Essa mudança é assinalada na manutenção das características
próprias (dos pentecostais), ao passo que a esfera política, em nossa sociedade, está em
constante transformação.
Autores como Pierucci e Prandi (1996) destacam a utilidade de compreender a religião
como inovação, ruptura e mudança no intuito de perceber o papel que esta exerce em
determinado contexto social. Nessa perspectiva, o pentecostalismo brasileiro aponta para a
redefinição de valores ou redescoberta de valores religiosos em uma nova concepção. De
forma geral, estes fiéis buscavam respostas para seus males, tanto de ordem material como
espiritual, já que as instituições tradicionais não ofereciam o conforto ritual que precisavam e
nem correspondiam aos desejos da classe pobre que crescia de forma acelerada. Devido à
grande competitividade religiosa existente no Brasil, o não atendimento dessas necessidades
básicas de seus fiéis, implicaria consequentemente, na perda de membros que buscariam em
outras igrejas aquilo que desejavam (Silva, 2009).
Então, segundo Santos (2008 apud Pierucci, 2000) ao analisar os dados do censo 2000,
as religiões católica, protestante e umbanda, tidas como tradicionais no contexto brasileiro,
têm perdido seu vigor na anexação de novos adeptos; mostrando o caso do catolicismo onde
menos pessoas têm se confessado fiéis católicos, e o contrário ocorre quando comparado aos
7
A Teologia da Libertação diz respeito ao catolicismo, mas se difundiu para algumas igrejas protestantes
históricas.
348
evangélicos, pois segundo este dado, mais pessoas procuram se vincular a algum tipo de
denominação evangélica. Logo, o autor entende que a perda de adesão de católicos nas
ultimas décadas “reflete justamente os efeitos da secularização sobre a religião na
modernidade, ou seja, da pluralização do campo religioso e consequente afrouxamento dos
laços institucionais sobre os indivíduos.”. (SANTOS, 2008, p. 86)
Contudo podemos dizer que o crescimento do número de fiéis nas congregações
pentecostais, que passam a incorporar cada vez mais pessoas de classes sociais médias e
pobre, é proveniente em grande parte pela procura destes em encontrar respostas aos seus
problemas, principalmente de ordem material, vivenciados pelos altos níveis de desemprego e
subemprego e intensificados pela expulsão dos trabalhadores rurais do campo, característicos
da forte tendência capitalista ao afrouxamento da proteção do Estado nas relações
empregatícias; mas também em contrapartida, buscam consolo e explicação para seus
tormentos espirituais. (ALMEIDA, 2006; SILVA, 2009)
A autora Delma Pessanha Neves (2008) problematiza a categoria analítica de “
med
m
”, e neste sentido atribui a esta categoria o papel de
interventores entre dois universos de significações específicas e diferenciadas. Trabalhando
para além de uma visão simplista de um “terceiro ou intermediário”, o mediador faz da
relação um ato dialético, não imediato e atribui importância as representações e
transformações do mundo ao desempenhar seu papel. Por ser um ator social intelectual, ativo
e que lida com a ação política e justiça social estão “em geral agregados em torno de alianças
estabelecidas por redes de instituições ou movimentos associativos.” (NEVES, 2008, p. 10)
A partir da concepção desta autora será analisado, dentro do contexto pesquisado, os
“nossos mediadores sociais”, tidos como: os líderes de grupo religiosos, pastores e membros
ativos da comunidade evangélica. Onde suas respectivas ações vão muitas vezes além da
esfera religiosa e através das redes de proteção desenvolvidas fora e dentro das instituições
evangélicas constituem a ligação, o ponto de partida e a retórica das relações sociais
estabelecidas por eles; ou seja, além de serem a interseção, também são a união de dois
universos diferentes, neste caso o universo do morador de favela ao do cenário político e
social, ao reapresentar a esta parcela da população sua legitimidade enquanto sujeitos de
direitos: cidadãos.
Desta forma, a precariedade na realização dos direitos sociais faz da referencia
religiosa um agente que predomina na assistência aos necessitados. Contudo, a ideia de que a
sociedade pode contribuir de forma solidária com os projetos sociais na igreja, seja na forma
de dinheiro ou de trabalho voluntário, pode ampliar a percepção de que a efetivação destes
349
direitos não depende exclusivamente do Estado. Daí a importância das redes de inclusão,
construídas com a participação das igrejas. Essas redes incluem uma diversidade de serviços
como cursos profissionalizantes, pré-vestibular, assistência psicológica, médica, jurídica,
dentre outros (MESQUITA e SIERRA, 2008, p. 177). Com isto, pode-se argumentar que “as
redes religiosas de perfil evangélico geram maior integração social, principalmente naquelas
denominações que sobrepõem outros vínculos como de parentesco e de trabalho e isto é um
forte fator de atração de adeptos...”. (ALMEIDA, 2006, p. 120)
ASSISTÊNCIA SOCIAL E REDES DE PROTEÇÃO
Partindo da concepção de que as favelas de Campos dos Goytacazes focalizadas na
presente pesquisa se localizam em áreas de extrema pobreza, sobretudo em face do seu
entorno, que possui melhores condições de moradia e infraestrutura urbana, por exemplo,
formadas próximo à condomínios e casas de classe alta, além de uma universidade8, é
possível dizer, com base na observação e análise do campo da pesquisa, que os moradores
dessas áreas são frequentemente estigmatizados por viverem em território marcado pela
pobreza, criminalidade e pelo tráfico de drogas.
De acordo com Eduardo Marques (2010, p. 43) o fundamento teórico de análise das
redes sociais está na base dos fenômenos sociais, uma vez que o mundo social está repleto de
relações intensas entre indivíduos. Nesse sentido, sobre o tema, a literatura brasileira
atualmente explicita que políticas de combate a pobreza já possuem as redes sociais como
elemento de interesse. “As ações do Estado já impactam as redes sociais de forma não
intencional, mas sua consideração explícita pode ser bastante útil para o desenvolvimento das
políticas públicas” (MARQUES, 2009, p. 03). Vale ressaltar ainda que as redes são vistas
como componentes importantes no estabelecimento da coesão social – ajuda o indivíduo a
criar identidade, a ter a noção de pertencimento às comunidades e, na integração social –,
contribuindo para a diminuição do isolamento social que alguns grupos enfrentam e, por
conseguinte, atenuando sua condição de vulnerabilidade.
Em Campos dos Goytacazes as políticas públicas desenvolvidas pela prefeitura
direcionadas às favelas são bastante limitadas, ocorrendo apenas em casos emergenciais.
Como na Tira Gosto e na Matadouro que se localizam próximas ao Rio Paraíba do Sul, e
quando este enche, toma algumas casas da favela, prejudicando os moradores. A prefeitura,
por sua vez, retira os moradores das áreas alagadas e os leva para escolas públicas como é o
8
A exemplo da favela Matadouro que fica atrás da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.
350
caso da Escola Municipal Francisco de Assis, que recebe os moradores desde o final da
década de 80 e essa situação se repete até os dias atuais. Quando a situação normaliza, os
moradores retornam as suas casas e, portanto, pode-se dizer que as políticas municipais não
passam de medidas temporárias. Isso nos mostra que o poder público local está pouco
presente nas favelas e basicamente só atuam sobre elas quando realmente é necessário – como
nesse caso emergencial; ou em tempos de eleição.
Em suma, em Campos as medidas de intervenção sobre questões relacionadas à
política de habitação, sobretudo a população das favelas, são poucas e ineficazes face aos
problemas cotidianamente enfrentados. (GUIMARÃES e PÓVOA, 2005, p. 37)
Os moradores de favelas lidam com circunstâncias locais adversas, que por um lado
podem ser resultado e consequência, sobretudo da negligência, ausência ou inoperância de
algumas entidades governamentais que trata de forma diferenciada categorias sociais
distintas, o que pode ser percebido no caso dos moradores de favelas. Ademais a população
das favelas de Campos costuma ser geralmente atingida por carências e experiências de medo,
risco e insegurança em face de um cotidiano marcado pela violência, das drogas e das armas.
(MESQUITA, 2009, p. 10)9. Nesse sentido, percebe-se que a partir desse contexto
socioeconômico, se acentua um processo de perda significativa da rede de proteção e,
portanto, os moradores das favelas sentem dificuldade em serem reconhecidos no cenário
público.
No entanto, dentro dessas favelas existe o que Almeida e D’Andrea (2004, p. 95)
chamam de “estrutura de oportunidade”, na qual estratégias de melhoria social são geradas
para atender os mais pobres. Desta forma, diversas redes de relações sociais surgem com o
propósito de minimizar carências, fazendo circular benefícios materiais e afetivos para, do
mesmo modo, ampliar o acesso aos serviços urbanos e às outras vias da cidade.
As redes sociais criadas pelas igrejas ou grupos religiosos evangélicos acabam
servindo como apoio para o enfrentamento das dificuldades econômicas, sociais e espirituais.
De acordo com Silva (2009, p. 50) as igrejas, de modo geral, são fundamentadas pelos
princípios e valores dos dirigentes espirituais, mas do que a criação de instituições
assistências. Estes dirigentes são sensibilizados pela situação de pobreza das pessoas que
estão a sua volta, e se utilizam de práticas sociais para fazer uma intervenção ou uma tentativa
de amenizar tal situação, se justificando através de uma determinação bíblica, que diz que se
deve ‘cuidar’ dos mais pobres.
9
Relatório técnico-científico de pesquisa, conferido pelo Edital Primeiros Projetos FAPERJ/CNPq em Agosto de
2009. O título da pesquisa é “Cidadania sob cerco: percepções e estratégias de ação dos moradores de favelas”.
351
Assim, parafraseando Almeida e D’Andrea (2004, p. 105) as ações dos evangélicos
se concentram na regeneração individual e, dessa forma, o potencial de mobilização
evangélico está relacionado mais profundamente com a “conquista das almas” e não tanto em
questões coletivas. A partir de uma das nossas entrevistas pudemos confirmar isto, através de
um dos membros do grupo religioso evangélico que realiza um trabalho de evangelização
voltado para crianças, mas que também se utilizam do momento para caminhar pela favela e
conversar com jovens e adultos da comunidade Tira-Gosto, este grupo se autointitula
Ministério “Resgatando Vidas”. A seguir está transcrita a parte da entrevista que fizemos com
ele, onde trata destas questões, principalmente quando é perguntado sobre o que significa pra
ele o trabalho que realiza, não só na Tira-Gosto, mas também em Travessão10, com os
mendigos nas ruas, em casas de recuperação (de dependentes químicos) e hospitais:
“Rapaz isto significa, você pegar uma pessoa... Essa pergunta é meio pesada dá até vontade de
chorar... de você pegar uma pessoa na rua, uma pessoa que está ali sem mais nenhuma expectativa de
vida, uma pessoa que para ela é melhor morrer do que viver, porém por algum motivo ela ainda não
deu fim em sua vida e, você ir lá e pegar esta pessoa e chegar pra ela e dizer ‘Jesus te ama! E Ele quer
fazer obra em tua vida!’, e você chegar e pegar uma pessoa dessa e levar pra sua casa, você dar um
banho nela, pegar sua roupa dá para ela e vesti-la, depois leva-la pra dentro da igreja e mais pra frente
você ver esta pessoa se firmar dentro de uma igreja e, ainda depois de mais um tempo você ver esta
pessoa pregando, isso aí paga tudo! Paga todo o esforço, é claro que nem sempre a gente tem essa
alegria, mas a palavra de Deus diz que “mais vale uma alma que se converte do que um mundo
inteiro”, Deus se alegra quando uma alma aceita Ele, é uma alegria, a palavra diz que tem festa no
céu, então só há festa no céu quando uma alma se converte. E é interessante você ver essa uma alma
vivendo uma vida completamente diferente da que ela vivia a um tempo atrás, você ver essa uma alma
totalmente transformada, você olha para o semblante dela e o semblante é outro, as idéias são outras,
aquela pessoa que antes pedia para morrer porque acreditava que Deus não existia mais, que Deus não
queria mais nada com ela, esta pessoa agora prega o evangelho de Deus e vai resgatar pessoas que
estavam vivendo como ela, isso daí é uma recompensa muito grande. Isso aí é aquilo que explode
dentro da gente nos incentivando a pregar o evangelho, isso aí é o pagamento, eu acho que não há
nada melhor do que isso... isso não é um trabalho que vai ser de um dia para o outro, isso leva tempo,
mas quando as pessoas começam a notar que realmente existe um Deus que se preocupa com ela e se
preocupa tanto que enviou alguém para poder falar Dele pra ela, essa pessoa começa olhar a vida de
modo diferente, ela começa a se esforçar mais, ela começa a pensar melhor,...”. (out./2009)
Então, como já foi mencionado anteriormente, neste contexto socioeconômico que
vivenciamos hoje de grande crescimento da taxa de desemprego, informalidade, da redução
do papel do Estado e, da terceirização, proveio um processo de perda ascendente e
significativa da rede de proteção social. Dessa forma, pode-se dizer segundo Almeida (2006)
que
“as redes evangélicas trabalham em favor da valorização da pessoa e das relações
pessoais, gerando ajuda mútua com o estabelecimento de laços de confiança, além
do aumento de auto-estima e do impulso empreendedor. Elas atuam, para além da
sua finalidade religiosa, estrito senso, como circuitos de trocas que envolvem
dinheiro, comida, utensílios, informações e recomendações de trabalho, entre
outros.” (ALMEIDA, 2006, p. 120)
10
Travessão é o nome de um bairro de Campos dos Goytacazes, na verdade é um distrito da cidade, localizado as
margens da BR 101.
352
Podemos perceber estas formas de “proteção social” através das redes evangélicas
também pelo relato coletado por um dos entrevistados da pesquisa, uma missionária da
Assembleia de Deus do Ministério Madureira:
Muitas vezes também ajudamos, não só com o quilo, mas com luz. Chega um fiel aqui que está
desempregado e tá com a luz vencida; aluguel; gás.
Não tem a escola batista, então, quem são pastores tem o desconto muito além do normal então tem
muitos fiéis que não tem condições de pagar uma escola, ou então o filho estuda e tem que tirar o filho
daquela escola porque está desempregado, então através dos pastores nós vamos a escola,
conversamos com o diretor, diretora e recorre a bolsa, faz o que é pedido o que é solicitado e por
conhecimento lá o diretor sabe da nossa índole que somos sérios, porque tem pastores e tem pastores
tudo existe no meio de tudo né aqui nem todo mundo é anjo, quando se formar anjo Deus leva
(risos)... Então o pastor sabe ali da igreja batista o diretor sabe e ajuda muitas pessoas, esse ano então
foram muitos membros daqui ajudados com bolsas de um valor alto e o pastor deixa crianças lá pra
pagar 50,00 reais, é uma grande ajuda. Tem pessoas mesmo aqui que tá precisando de emprego nós
conversamos com o diretor se tiver precisando de pessoas para limpeza geral na escola aí, alguma
coisa aí e foram e foi pedido e mandamos pessoas daqui que não estavam desempregadas e acabaram
ficando, o pastor gostou deu a indicação né porque eu só vou indicar quem eu sei que é fiel ali que não
vai me dar dor de cabeça, porque é um problema que chega lá e a pessoa né..., aí a mãe que trabalha lá
os filhos não pagam nenhuma matricula, não paga nada, estuda de graça...
Às vezes nos procuram com uma receita médica, “me ajudam aqui, to com uma dificuldade aqui”, tá
bom, nós vamos lá ver o caso e nós quando compramos remédios eu ranço a caixa, tudo, porque?
Porque já aconteceu de ajudar com remédio e a pessoa vai devolve na farmácia e compra coisas que
não,... que é mentira. Então o que eu faço quando é remédio, eu rasgo a caixa e dou o remédio, aí não
tem como trocar. Só pra você ver que agente tem que tá atento pra tudo. Nós também ajudamos muito
não só com alimentos, os alimentos não é governo ou ninguém que dá não, são os próprios fiéis, nos
ajudam com os alimentos, tem pessoas que falam aí “a missionária, vou ajudar com duas caixas de
leite”, o que tem mais é crianças, né, muitas crianças e até pessoas idosas que precisam de tomar um
mingau, uma vitamina. (Missionária da AD, 2011)
Podemos dizer que as relações que a igreja estabelece ajudam nos circuitos de trocas,
na qual circula dinheiro, benefícios afetivos, comida, informações sobre trabalho, cuidado
com os filhos das mães que trabalham fora e também ajuda em casos de doença.
Particularmente uma das igrejas pentecostais na favela Tira-Gosto desenvolve ações de
superação das várias formas que a pobreza adota na comunidade. O vínculo de sociabilidade
dos pentecostais ganha forma não apenas no processo de conversão daqueles ligados ao
tráfico como também no processo de evangelização dos traficantes. (MESQUITA, 2009, p.
32)
De forma geral, as redes trazem, junto com a igreja, a perspectiva do viver. Segundo
relato do Pastor Getúlio da favela Tira Gosto, o problema do ser humano é ser desvalorizado.
Então, eles procuram a valorização, na maioria das vezes, nas drogas. Nas suas palavras:
“quando chegamos na comunidade Tira Gosto, por exemplo, as pessoas não tinham perspectiva de
adquirir nada. Eles não tinham endereço, eles não tinham família, não existia amor e o dinheiro que
eles pegavam era pra usar drogas. Esse era o problema. Quando a igreja chega, a primeira coisa que
eles conseguem é enxergar alguma coisa. Drogas não é a solução” (Pastor Getúlio, out./2010)
A partir do momento que o indivíduo ganha perspectiva do viver e passa a frequentar
353
a igreja, falta a ele o acesso a bens e serviços e um trabalho que não esteja relacionado ao
tráfico de drogas. Pois, por exemplo, por mais que o morador de favela esteja bem
espiritualmente, o que fazer se dentro da sua casa falta comida. As redes trabalham na
mediação ao acesso a ações e serviços do Estado e também no mercado de trabalho. Como os
moradores de favela sofrem discriminação e são estigmatizados por viverem num ambiente
onde é marcado pela violência, esse fato acaba prejudicando na obtenção de emprego fora da
favela. O mesmo pastor diz: era muito comum uma pessoa perguntar a um pai de família,
onde você mora? – ‘
f v
’.
q m á m
m
f v
?! (Pastor Getúlio,
out./2010)
As redes também são mobilizadas na obtenção de benefícios. Assim como Marques
ressalta “O fornecimento de informações a respeito de emprego pode se associar a todos os
tipos de ajuda, mas também pode ser veiculado pelos laços que carreiam as ajudas imediatas e
de baixo custo, em especial para os empregos mais locais” (MARQUES, 2009, p. 09).
Podemos verificar isto como no caso do membro do Ministério Resgatando Vidas, já citado
anteriormente, que reproduz essa ideia da mobilização em prol de emprego:
“Eu cheguei pra um amigo meu dono de supermercado e falei pra ele: “rapaz, você ta precisando de
um funcionário não?” ele falou: to sim. Eu falei: “to com um cara aí. Um cara bom, trabalhador, um
cara que quer viver a vida diferente...” Ele falou: “ manda ele me procurar e fala que foi você que
indicou.” (out./2010)
Sendo assim, percebe-se que entre os indivíduos que necessitam de ajuda, aqueles
que apresentam maior vínculo de sociabilidade tendem a ter condições sociais melhores, o
que nos mostra que as redes conseguem minimizar a pobreza e o isolamento social presente
na vida em favela.
Neste sentido Araújo complementa que “tais mecanismos de ajuda mútua são
fundamentais para a reprodução e fortalecimento do território pentecostal, aumentando ainda
mais a identificação do pentecostalismo clássico11 com os pobres, os sofredores e
marginalizados de uma sociedade cada vez mais seleta, tornando-se desta forma um
movimento popular.” (ARAÚJO, 2008, p. 04)
Em todas as igrejas pesquisadas foi possível identificar as formas de realização de
assistência às famílias necessitadas. Nestas igrejas predomina a contribuição de gêneros
alimentícios, e só em caso de necessidades emergenciais, há coleta e conseguinte doação de
medicamentos e roupas. Em sua grande maioria a ajuda é mútua, pois as próprias pessoas dos
11
Segundo o próprio autor, Bruno G. de Araújo, o Pentecostalismo clássico (1910) fica restrito a igrejas como:
Assembléia de Deus (maior igreja pentecostal do Brasil) e Congregação Cristã (com ênfase no batismo do
Espírito Santo).
354
templos evangélicos, havendo necessidade e por intermédio do pastor, colaboram com
doações principalmente de alimentos.
Nas Igrejas Assembleia de Deus do Ministério Madureira a forma de arrecadação é
predominantemente pelo sistema de Campanhas do quilo, sendo recolhidas doações feitas
pelos membros da igreja, mas uma parte fica com a própria congregação e outra vai para a
igreja matriz da denominação. Isto pode ser melhor entendido na fala de um dos membros da
igreja Assembleia, uma missionária, que foi entrevistada:
“Nós temos a campanha do quilo, essa campanha funciona assim, amanhã mesmo é dia da campanha
do quilo, então cada membro que tem condições, que tem posses traz um quilo de alimento não
perecível para a igreja, e depois levamos para a dispensa da igreja. Essa dispensa da igreja serve para
quando, caso uma hora, alguém esteja precisando, é só procurar o pastor e falar da sua necessidade,
que tendo as coisas na dispensa o pastor ajuda.
Mas no caso da igreja matriz, que fica na Rua Rocha Leão, como ela é a “mãe”, é maior, o pastor citou
que chegamos a meta de 700.000 membros. O nome do pastor da matriz é Josias e coordena todas as
congregações, tem muito trabalho nas costas do nosso pastor. Lá por ser uma igreja maior, eles
acodem mais números de cestas básicas, aqui, por exemplo, nós não damos cesta básica, não temos
assim famílias registradas para a doação, mas lá o pastor não fala dessa quantidade de famílias, porque
a bíblia ensina a fazer e não falar, o que a nossa mão esquerda faz a direita não precisa saber. Então as
doações que ele faz lá não precisam passar pela igreja, mas tem muitas famílias registradas para
doação, assim lá entra uma base de 200 ou 300 quilos de alimentos. E aqui na igreja nós temos o dia
de cota para recolher os alimentos e enviar para a matriz, isso acontece uma vez por mês. E todas as
congregações da região desse mesmo ministério possuem essa cota para levar para a igreja matriz e lá,
é que se faz a distribuição. Nessa época que teve enchente todas nós nos mobilizamos e, até mesmo o
pastor se mobilizou, indo de canoa lá na Lagoa de Cima para levar os donativos. Aqui na igreja nós só
recolhemos alimentos; e já as roupas, remédios e outras coisas mandamos direto para a matriz e de lá
fazem a distribuição entre as congregações que estejam precisando.” (maio/2009)
De modo geral, os pastores das igrejas e líderes de grupo que foram entrevistados,
em sua maioria relataram não receber nenhum tipo de ajuda econômica dos poderes públicos,
como por exemplo, da própria prefeitura da cidade, para a realização de suas ações
assistenciais. Entretanto o Pastor Getúlio nos informou que na eleição de 2004 procurou ajuda
política, de um vereador não evangélico e lhe disse que iria apoiá-lo, mas, no entanto não
conseguiu muita coisa e afirmou que o desinteresse por parte dos políticos de forma geral
(evangélicos ou não) é muito grande. Podemos comprovar isto no seguinte relato que nos deu:
Os rapazes do tráfico, na verdade vêem a igreja como a saída, devido a testemunhos de pessoas que
viviam no meio deles e que conseguiram sair, não sei se agente vai entrar em um ponto polêmico, mas
infelizmente o governo tem as condições, tem a verba, o dinheiro né, mas não sabem como fazer, a
igreja sabe como fazer, mas não tem o dinheiro, não tem a verba, porque a igreja evangélica na verdade,
ela vive, é auto-sustentável, ela se sustenta com os projetos dela tudo que ela faz é do jeito, ela que dá o
seu jeito de sobreviver, não existe verba de governo estadual, federal, municipal é projeto de
comunidade, a coisa mais difícil, então é essa parte de apoio pra se fazer um projeto, não existe
mesmo... Estes jovens mesmo ainda estando no tráfico vêem como saída deste meio a igreja, mas o que
acontece muito é o seguinte, infelizmente eu ouço muito isso, ‘pastor eu quero sair do tráfico de
drogas, mas tenho 2 filhos com uma mulher, e mais outros 2 com outra, e ainda tenho mais 1 filho com
m
m h
á...
m é q
? C m é q
?’. Esse é um
problema entendeu? Como fazer? A igreja em si ajuda um, dois, até pode, tem condições, de maneira
precária infelizmente, mais tem. Nós como igreja já cansamos de fazer isso, já cansamos de comprar, de
fazer compras e fazer coisas do tipo, mas agora não é só de pão, não é só comida que a família tem
355
necessidade, a família se veste, a família tem que ter o mínimo pra sobreviver, né?
Na eleição de 2004 procurei uma pessoa, já era vereador e nós queríamos apoiá-lo,... . Ele não era
evangélico. Eu apoio você. Mas não sei se vai importar o que eu estou dizendo, mas infelizmente, nós
temos que falar a verdade, nem mesmo um vereador evangélico se envolve, nem mesmo evangélico. Eu
não vou aqui botar pano quente porque é evangélico, porque é crente... infelizmente nem evangélico faz
isso. Você procura, pode procurar, agora nas eleições, agora em 2008 eu procurei um evangélico e... já
se foi a eleição...
Este ‘desinteresse’ de não tomar uma iniciativa de apoio por parte de políticos não sei bem porque isso
acontece, não sei se é a época..., mas eles cuidam do gabinete deles, cuidam das verbas deles, tiram o
máximo que puder. Na eleição passada de 2004 nós elegemos um candidato crente, e o retorno foi pior
possível, os projetos, a obra, o trabalho dele foi um dos piores. E em períodos de eleições eles sempre
têm a iniciativa de procurar as igrejas, ai enche de candidatos...
Teve um na semana das eleições que eu desenvolvi, na semana das eleições nós conversamos com um,
não vou falar o nome por ética, ta?. Ai ele prometeu como todos eles... E no fim foi eleito, já liguei
umas 500 vezes e não consigo falar com ele infelizmente. Na época das eleições antes dele ser eleito,
tive uma reunião com ele levei o projeto lá para Tira-Gosto, ele disse que era viável fazer. O projeto era
de fazer um campo de futebol, fazer uma quadra poliesportiva, fazer os vestiários, fazer os banheiros
tudo direitinho, uma quadra poliesportiva e um campo de grama sintética,... Sabe, porque você consegue
tirar a criança da rua naquela comunidade, que ali não é difícil ali é pequeno e você consegue. Se você,
lá na Tira-Gosto faz uma sala de computadores, coloca cursinhos pra aquelas crianças, se você coloca
esportes pra aquelas crianças, eles vão parar de brincar de bandido, de polícia e ladrão,... Se você pegar
essa criança e coloca pra praticar um esporte, você já começa a trabalhar a educação, no caso essa
criança vai começar a preparar uma árvore pra dar os frutos...”. (Pastor Getúlio, abr./2009)
Assim de acordo com a literatura pesquisada é frequente encontrar casos em que a
assistência social realizada por instituições religiosas, não servem apenas como forma de
ajuda ao próximo, mas também há casos em que estas instituições se utilizam deste meio
assistencial para a construção de uma carreira política (MESQUITA e SIERRA, 2008, p. 179)
ou então apoio a candidatos que estão na disputa eleitoral (religiosos ou não). Dessa forma é
possível dizer que existe uma grande influencia religiosa no campo político, e tomando em
conta o estudo realizado por Maria das Dores C. Machado e Cecília L. Mariz (2004, p. 33)
referente a conflitos religiosos na política do Rio de Janeiro, se confirma a ideia de que, em
alguns momentos a própria identidade religiosa é utilizada para mobilizar os eleitores e, em
outros, é frisado pelo partido o não vinculo religioso como código de conduta para a nação.
CONCLUSÃO
Durante as incursões ao campo de pesquisa foi constatado uma forte presença de
igrejas pentecostais e neopentecostais no interior das favelas de Campos. Todas elas se
utilizam de práticas assistencialistas para com seus respectivos membros, como forma de
ajuda mútua, pois as próprias pessoas dos templos evangélicos, havendo necessidade e por
intermédio do pastor, colaboram com doações principalmente de alimentos e vestuário, ou
então, a arrecadação mensal de doações para manutenção de um fundo para casos de ajuda
emergencial. Portanto, todas as igrejas pentecostais pesquisadas estabelecem redes de
proteção que servem para o enfrentamento dos problemas sociais vivenciados pelos
356
moradores de favela que, por sua vez, vivem num território marcado pela pobreza, violência e
estigmatização social.
Assim, pode-se concluir que as redes evangélicas, com todos seus circuitos de trocas –
dinheiro, informações sobre emprego, comida, etc. – ajudam na redução do isolamento social
por parte dos moradores favelados em relação ao restante da cidade, buscando então muitas
vezes, nas comunidades religiosas um pertencimento social.
Desta forma, de acordo com a literatura abordada no texto, o estudo mostra que as
redes nas favelas enfatizam o aumento de auto-estima, o impulso empreendedor no indivíduo
e fomentam a ajuda mútua por meio de laços de confiança e fidelidade (ALMEIDA, 2006, p.
10). Além disso, os pentecostais, a partir dos seus vínculos de sociabilidade, trabalham no
processo de evangelização e conversão de traficantes que estão inseridos em territórios onde
incide a ordem violenta, um espaço, portanto, estigmatizado. Assim se observa a importância
e existência destas redes evangélicas, como suporte moral e social ao enfrentamento das
condições adversas que muitos dos fiéis moradores de favelas se deparam cotidianamente.
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359
A PICHAÇÃO DOS JOVENS NO CONJUNTO TAQUARIL
“Passo fome, passo sede, mas uma coisa eu sei... Na minha casa falta tudo menos
spray...” (MDDO)
Flávia Cristina Soares1
RESUMO
Este artigo propõe investigar o fenômeno da pichação e a relação deste com a juventude no
Conjunto Taquaril, localizado na periferia da cidade de Belo Horizonte. Durante a pesquisa
de campo, foi possível perceber as relações estabelecidas entre os jovens e a forma de
constituição de identidades, demarcação territorial e a transgressão da lei através dos
relatos da juventude local e de moradores da comunidade. De acordo com as entrevistas
realizadas, os programas sociais podem minimizar os efeitos desta prática na juventude,
pois a oferta de oportunidades ressalta que os jovens possuem maiores condições sociais e
econômicas. A pesquisa investigou duas áreas da comunidade denominadas Taquaril A e B
em que se destaca a forma das pichações, o estilo da letra e a apropriação do espaço
público entre os jovens que tem como objetivo a obtenção de fama e reconhecimento
social.
Palavras chave: Pichação, identidade, território e transgressão da lei.
INTRODUÇÃO
O presente artigo se propõe a discutir a relação entre as características
socioeconômicas e a prática de pichação realizada por jovens do Conjunto Taquaril. Este
aglomerado está localizado na região leste de Belo Horizonte, uma área que pertencia à
CODEURB – Companhia de Desenvolvimento Urbano de Minas Gerais – e passou a ser
ocupada pelos atuais moradores em 1981. Após seis anos, a Prefeitura de Belo Horizonte
regularizou os terrenos e iniciou-se a implantação de serviços básicos como redes de água,
saneamento, escolas públicas e postos de saúde. No entanto, a região passou a se expandir
desordenadamente, principalmente, nas áreas verdes e margens de córregos, considerados
como locais de risco geológico eminente. De acordo com os dados do Censo Demográfico
de 2000, a área possui em torno de 12.306 habitantes e apresenta o pior índice de qualidade
de vida dentre os principais aglomerados de Belo Horizonte, conforme observado na
1
Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Especialista em Gestão
Social pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro e Psicóloga.
360
Tabela 1, em anexo (ANDRADE; PEIXOTO; AZEVEDO, 2007).
Também é possível constatar, nessa mesma tabela, que o percentual de jovens, no
Conjunto Taquaril, com idade de 10 à 19 anos, representa uma das maiores populações em
comparação com os outros aglomerados de Belo Horizonte. Os dados coligidos
demonstram que o maior percentual de pessoas sem renda também é predominante nesta
área (ANDRADE; PEIXOTO; AZEVEDO, 2007). Os outros percentuais de renda
continuam baixos e não influenciam para uma melhoria significativa na região.
FIGURA 1 – Foto mostrando uma vista parcial do Conjunto Taquaril
Fonte: Arquivo pessoal.
Tomando como perspectiva que os grupos de jovens pichadores se formam nas
periferias com a finalidade de tecer redes de sociabilidade (PEREIRA, 2010, p.145), é de
fundamental importância investigar o discurso dos jovens envolvidos com a pichação, além
dos aspectos sociais e econômicos relacionados ao indivíduo e ao espaço em que habita
fazendo uma distinção entre a cidade e a favela. O processo de constituição de identidades,
a demarcação territorial e a transgressão serão contemplados no desenvolvimento deste
artigo.
O interesse em abordar o fenômeno da pichação foi suscitado pelo Curso de
Gestores realizado pelo CRISP – Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública
– no Núcleo de Prevenção à Criminalidade do Conjunto Taquaril2, em 2009. O curso era
dividido em dez encontros sendo que, nos dois últimos, as lideranças comunitárias e os
jovens formulavam o Plano Local de Prevenção à Criminalidade. Dentro deste plano, uma
das ações propostas foi a de intervenção nos grupos de pichadores, uma vez que esta
2
O Núcleo de Prevenção à Criminalidade é composto pelos Programas Fica Vivo! e Mediação de Conflitos.
361
atuação estava provocando conflitos entre os jovens de regiões distintas da comunidade.
Inclusive, entre os grupos de pichadores, chegaram a ocorrer tentativas de homicídio em
decorrência de uma rasura3 realizada por um grupo rival. O CRISP optou por intervir no
Conjunto Taquaril por ser considerada uma área que possui alto índice de criminalidade
violenta em Belo Horizonte (BEATO, 2012). O Programa Fica Vivo! implantou oficinas de
comunicação, grafite, axé e mobilização sócio-cultural, visando atender a demanda dos
jovens pichadores e estabelecer uma aproximação dos oficineiros e dos técnicos que
trabalhavam nesta localidade. O Grupo de Gestores desenvolveu o projeto Praça Viva,
Cidadania Ativa com a finalidade de revitalizar a Praça Che Guevara. Com a aproximação
dos jovens na oficina, foi possível contar com a presença dos pichadores no dia do evento.
Os jovens elaboraram um material de intervenção na saúde, educação e instituições locais
com o intuito de conscientizar a comunidade acerca da preservação dos espaços
comunitários. Os participantes da oficina de grafite construíram moldes de desenhos que
seriam estampados na praça. A oficina de comunicação editou um documentário que
registrou o movimento das instituições, dos jovens e dos representantes da comunidade
para alcançar com êxito o objetivo do projeto. A oficina de axé consolidou uma coreografia
para que os jovens pudessem apresentar no dia da revitalização da praça. O registro dessas
ações e a participação dos jovens nas oficinas promoveu o reconhecimento dos pichadores
em outras práticas para além da pichação. O Grupo de Gestores ressaltava a importância de
envolver os pichadores na revitalização deste espaço, pois os pichos representavam um
aspecto de “ j
m
”e“
v
v
f
j v
” (SOARES,
2010).
No dia destinado à revitalização foi possível perceber a presença de grupos de
regiões diferentes, que se encontraram para reconstruir a praça. A circulação de jovens
vindos de regiões distintas da comunidade foi essencial para intervir nos conflitos entre os
grupos, uma vez que o principal objetivo era a construção de um espaço a ser utilizado por
toda a comunidade. Este momento marcou o cotidiano dos grupos de pichadores,
observando-se entre eles o abandono das práticas violentas e dos conflitos para a
participação nas atividades. Para avaliar a intervenção, foi realizado um encontro com os
participantes das oficinas, no qual um dos jovens relatou a dificuldade em “
” para não pichar a praça revitalizada. A partir desta intervenção proposta pelo Grupo
de Gestores, pôde-se verificar que os jovens participantes das oficinas e do projeto não
3
Rasura significa um nome pichado em cima de outro já pichado.
362
picharam a praça revitalizada.
FIGURA 2 – Foto do evento Praça Viva, Cidadania Ativa, que contou
com a participação de jovens pichadores na revitalização da Praça Che
Guevara, localizada no Taquaril B, em julho de 2009.
Fonte: Arquivo pessoal.
Sendo assim, quais seriam as intervenções possíveis na prática de pichação?
Existiria uma relação estabelecida entre os grupos de pichadores e a constituição de
identidades? Como se dá a demarcação territorial? Qual a relação entre estes jovens e a
transgressão? O conhecimento acerca do fenômeno da pichação na comunidade
investigada favorece a compreensão da dinâmica social do local o que se considera como
importante justificativa a implantação de programas e projetos sociais que melhorem a
qualidade de vida dos habitantes e, consequentemente, permite intervir nas causas deste
fenômeno no Conjunto Taquaril.
A metodologia adotada para esta investigação partiu de uma revisão bibliográfica
que contemplou os temas relacionados à pichação, identidade, território e transgressão.
Para obter maiores informações, a pesquisa documental nas instituições localizadas na
região foi fundamental para conhecer a história do bairro e o movimento da juventude, no
que diz respeito às formações de grupos. As entrevistas semi-estruturadas, realizadas entre
o período de Julho à Outubro de 2009, contemplou seis jovens pertencentes ao grupo
Possuídos pela Arte Maligna (PAM) localizado no Taquaril A e seis jovens pertencentes ao
grupo Bonde dos Jacarés (BDJ) localizado no Taquaril B, abordando características da
pichação e da juventude, além da relação dessa última com a comunidade o que
possibilitou colher dados relacionados aos grupos investigados. A escolha dos
363
entrevistados foi feita a partir dos jovens que participavam das oficinas oferecidas pelo
Programa Fica Vivo!, no Taquaril A e B e que possuíam como principal característica a
prática de pichação. Além dos jovens entrevistados, realizou-se um levantamento de líderes
comunitários que conheciam os pichadores e possuíam um vínculo estabelecido com eles
expressando a relação da juventude com a pichação. Realizou-se seis entrevistas semiestruturadas com moradores do Conjunto Taquaril A e mais seis entrevistas semiestruturadas com os moradores do Taquaril B.
1- IDENTIDADES
A partir dos dados apresentados na introdução, estudar a prática da pichação no
Conjunto Taquaril é importante porque através dos pichos, os jovens constituem as suas
identidades. Estabelecer uma conexão entre as características sociais e econômicas do local
de moradia dos jovens e a pichação é fundamental para se compreender esta prática
realizada pelos jovens moradores do aglomerado e pela juventude localizada nas periferias
das grandes cidades. Durante a pesquisa foi possível verificar que, devido ao processo de
ocupação, os jovens se agrupam de acordo com a separação territorial. A BHTRANS4
dividiu as linhas de ônibus, concomitantemente ao processo de ocupação dos moradores,
para atender ao Taquaril A, B e R sendo esta última uma denominação incorporada pela
própria comunidade. Na pesquisa foi possível observar uma variedade de grupos
envolvidos com a criminalidade local, porém, uma vez que o escopo do trabalho era
investigar apenas aqueles ligados à pichação, optou-se por entrevistar jovens dos grupos
chamados BDJ (Bonde dos Jacarés) e PAM (Possuídos pela Arte Maligna), pois seu
objetivo definido era o ato de pichar.
A baixa renda e a segregação espacial observados no Conjunto Taquaril5, aliados à
sociedade de consumo – evidenciada principalmente nos grandes centros urbanos –
propiciam o desenvolvimento do estigma e do preconceito imposto àquela região. Para
Goffman (1975), os indivíduos se identificam pela formação de grupos encontrando nesta
categoria uma forma para se expressarem e reconhecerem enquanto pertencentes a uma
determinada sociedade. Através do estigma, o indivíduo vivencia o próprio esmagamento
pela sociedade sem ter consciência da sua condição de sujeito. Segundo o relato de um
morador do Conjunto Taquaril:
4
5
Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte/MG.
Bairro situado no extremo leste de Belo Horizonte/MG e área limítrofe com o município de Sabará.
364
“[...] se a gente for parar pra analisar a fundo, o que motiva um jovem a se
tornar pichador – eu bato muito na tecla de que o que favorece a intenção do
jovem em grupo de pichação, até mesmo a desenvolver essa prática – é questão
da afirmação. De uma forma ou de outra eu preciso mostrar que eu existo, né?
Igual, eu consegui afirmar o meu potencial no meio social, né? Todo mundo,
todo mundo, procura o seu lugar ao sol [...]”.
Stuart Hall (1987) ressalta que o sujeito sociológico demonstra uma necessidade de
interação entre o indivíduo e a sociedade, no qual a essência interior do sujeito se forma a
partir das relações estabelecidas com o mundo exterior e as identidades que este mundo lhe
oferece. Essa identidade preenche uma lacuna entre o mundo pessoal e o mundo público,
suturando o sujeito à estrutura, tornando ambos unificados. O processo de constituição de
identidades fortalece as identidades locais e a produção de novas identidades. Na pesquisa
realizada com os jovens e os moradores do Conjunto Taquaril, eles descrevem o espaço de
moradia como uma favela. Gomes (2003) destaca que a favela possui características
marcantes, como a pobreza e a desorganização social. Estas características são
fundamentais para se indagar o espaço do aglomerado na cidade e também considerar as
formas de controle e coerção social como precários e ineficientes. Para o autor, a favela e a
cidade são dotadas de uma ruptura total que se divide entre a cidade formal e informal,
“cada qual com sua moral, seus costumes e seus valores” (Gomes, 2003, p.173). A falta de
políticas públicas, de programas ou projetos sociais para oferecer aos jovens outras formas
de constituição de identidades, fomenta a inserção deles na prática de atos infracionais ou
criminosos, como a pichação, na medida em que o fácil acesso à ilegalidade é uma
característica fundamental dos espaços onde vivem (BEATO, 2012). Coura (2009) destaca
que os jovens dos aglomerados carregam em si mesmos a periferia nos espaços em que
circulam, vivenciando os imperativos simbólicos da segregação urbana através da
introjeção do estigma. Segundo o relato de um morador do bairro:
“[...] pelo contexto social do Taquaril A, os meninos da PAM [...] até meio
irônico o que eu vou falar, mas foi uma ação assim [...] Eu vou ter um olhar mais
cuidadoso, foi uma ação política que eu acredito que eles tiveram aqui no
Taquaril. O que eu estou definindo como uma ação política? [É] aquela ação de
falar assim: pô, o Taquaril A existe, ou seja, se não for possível da gente ter esse
reconhecimento de forma passiva, de forma tranquila, [se] as pessoas [não]
conseguirem nos enxergar como moradores, como pessoas que participam
ativamente da vida da comunidade, a gente vai tentar fazer esse caminho de
forma controversa do que a sociedade espera. Então, assim [é o modo] que eu
compreendo. A PAM surgiu mais para dar um sinal de fogo, sinal de fumaça.
Estamos aqui, existimos. E hoje a PAM é o grupo mais, com mais membros
dentro da comunidade [...]”.
A relação existente entre a formação de grupos de jovens para a prática da pichação
365
e o processo de constituição de identidades se caracteriza pelo estilo de vida destes jovens
com assinaturas elaboradas e uma preocupação estética com o seu próprio tag e do grupo
do qual será pichado nos muros da cidade. Pennachin (2003) estabelece uma conexão entre
os grafismos urbanos e a produção de identidade, afirmando que o picho é uma das
maneiras pelas quais os jovens se tornam visíveis socialmente, superando a sensação de
despertencimento no meio em que vivem. Ela observa que os pichadores se expressam
através dos rabiscos dos muros como forma de transformar as ruas numa extensão da sua
individualidade, criando identidades e participando da vida na cidade. Cada pichador cria
um nick ou signature, ou seja, um código para reforçar sua singularidade e estabelecer uma
marca que o diferencia e, ao mesmo tempo, o identifica perante a sociedade.
FIGURA 3 – Foto de estabelecimento comercial, localizado no Taquaril A,
que foi pichado pelos jovens pertencentes ao grupo PAM
Fonte: Arquivo pessoal.
As investigações de Souza (2007) acerca dos traços característicos de jovens
pichadores na cidade do Rio de Janeiro revelou que os pichos devem ser pequenos (de três
a quatro letras) em função da rapidez exigida pela prática. A escolha do rabisco se deve à
facilidade que os jovens possuem para estilizá-las, adotando uma estética da pichação.
Estes estudos demonstraram que a palavra escolhida pelo pichador é a identidade que será
reconhecida por outros grupos. Através da pesquisa de campo realizada por Souza (2007),
ele destaca outra característica marcante dessa prática que são as reuniões feitas pelos
pichadores – consideradas espaços de prestígio e de interação social – o que provoca o
fortalecimento de laços sociais entre os jovens e fomenta o desenvolvimento da prática de
366
pichação nas grandes cidades. Tendo em vista este contexto a pichação pode ser concebida
como uma forma de obtenção de fama e reconhecimento.
FIGURA 4 – Foto do local onde os pichadores se reúnem para discutir a
prática no Conjunto Taquaril A.
Fonte: Arquivo pessoal.
2- TERRITÓRIOS
Dentro do Conjunto Taquaril é possível perceber a demarcação territorial imposta
pela juventude do local, ou seja, os membros dos grupos de regiões distintas da
comunidade não picham o local de moradia de outros grupos da mesma comunidade, uma
vez que eles relatam o respeito e a demarcação de cada grupo. No contexto da cidade, os
jovens ressaltam que possuem liberdade para pichar qualquer região. De acordo com As
marcas da cidade: a dinâmica da pixação6 em São Paulo, “as alianças com outros grupos
de pixadores para se fazer um rolê em outras quebradas não impede, entretanto, que muitos
deles dirijam-se sozinhos a outras regiões da cidade, pois não há uma demarcação de
territórios onde um grupo ou outro não possa pixar” (Pereira, 2010, p.151). Este autor
aponta que não se pode considerar que os pichadores sejam desterritorializados. A partir de
tal argumento, ele diz que a pichação está relacionada a uma cultura de valorização da
periferia, no que tange ao pertencimento e ao reconhecimento destes jovens com o local de
moradia. Então, pode-se considerar que a pichação realizada pelos jovens é
hiperterritorializada, pois são as relações da periferia que estão sendo postas em prática.
6
O autor utiliza a expressão pixador com “x” fazendo referência à cultura de rua.
367
Em todo momento os jovens estão reterritorializando a cidade através das pichações
impressas nos muros. Segundo o relato de um pichador do Conjunto Taquaril:
[...] Você faz as pessoas verem, chegam e comentam [...] tem muito respeito, [se]
você tem muita pichação, tem respeito. Em festa o camarada chega e fala ‘eu
picho e eu já vi preza sua’. [Eles ficam te] chamando para dar role aqui bairro [e
se] você quer ficar conhecido por aqui. Lá onde você presta serviço comunitário
tem uns menorzinho que ficam assim ‘Colé Slim’. Eles ficam tipo seu fãzinho,
tipo como se você fosse aqueles ator de novela [...] adrenalina, ibope [...] Dá uma
sensação tão doida. Já fiz uma [pichação] na avenida Amazonas, uma grandona,
que no outro dia eu passei lá e tinha um tanto de senhor mais velho olhando
impressionado, o tamanho, fico doido. [Eles ficam só] olhando, não fala nada,
passa direto, mas você fez alguma coisa que as pessoas prestaram atenção. Você
acha que se tivesse só um desenho no vão lá eles iam ficar olhando pro teto?
[Mas] quem entende de pichação vê lá no alto [e] pergunta como que o cara
subiu? Aí viaja no cara, né? Mas já tem pessoa que não gosta. Tem gente que é
doido pra pegar pichador [...].
Ao estudar Etnografia Urbana, Magnani (1992) destaca os pedaços, as manchas e
os trajetos realizados por membros de grupos que circulam pela cidade. O autor ressalta
que pedaço é algo formado pelo elemento espacial caracterizado pela rede de relações,
tendo o efeito de uma marcação territorial como, por exemplo, um bar, um terreiro etc.
Para ele, ser do pedaço implica situar-se numa rede de relações similar a dos laços
familiares, ou dos vínculos afetivos, ou da proximidade da moradia, ou da presença nos
mesmos espaços, querendo, com isso, dizer que a rede de relações determina a
classificação dos indivíduos. Esta noção designa o intermédio entre o espaço público e o
privado7. O pedaço determina uma rede ampla em que os vínculos familiares são
significativos em decorrência das relações formais impostas pela sociedade. Dessa forma,
“pertencer ao pedaço significa também poder ser reconhecido em qualquer circunstância, o
que implica o cumprimento de determinadas regras de lealdade que até mesmo os
‘bandidos’ da vila, de alguma forma, acatam” (Magnani, 1992, p.192). Este contexto
possibilita verificar que a circulação de jovens nas regiões a que não “pertencem” provoca
um sentimento de hostilidade por parte de outros grupos, podendo, inclusive, significar que
o desconhecido naquele local pode se colocar em perigo.
A exposição desse autor observa que os pedaços são disseminados pela cidade e
possibilitam a formação de manchas pelos jovens. A circulação de jovens nos espaços
através dos trajetos caracteriza uma aglutinação em torno dos estabelecimentos com uma
implantação estável na paisagem e no imaginário. Essas aglutinações são denominadas
7
Para Bignoto (2002), o espaço público é considerado como uma possibilidade de construir um objetivo
comum para a sociedade. Já o espaço privado se refere a uma definição de privação em que o indivíduo é
destituído das características essenciais da vida humana (BIGNOTO, 2000, p. 286).
368
manchas. Este termo remete à identificação dos indivíduos pelas áreas, ou seja, “uma
mancha é recortada por trajetos e pode abrigar vários pedaços” (Magnani, 1992, p.195).
Estas manchas são equipamentos que propiciam pontos de referência entre os jovens,
resultando no estabelecimento de relações e transformando o lugar em um encontro entre
os praticantes.
Segundo o autor, o trajeto representa um sistema de compatibilidade. Este conceito
fornece aos jovens a possibilidade de escolhas com a finalidade de se identificarem com as
manchas e pertencerem a pedaços, provocando a circulação de pessoas no espaço urbano
(Magnani, 1992, p.196). É importante destacar que o autor considera a mancha enquanto
uma delimitação de trajetos, observando a presença de pedaços. O relato de um jovem
demonstra as marcas da pichação na cidade:
[...] não é só no Taquaril, tem muita pichação minha por aí. Muita pichação no
Centro, no Oiapoque [...]
Durante a pesquisa de campo, foi possível compreender como os pedaços, as
manchas e os trajetos possuem relação com os pichos. Os jovens dos grupos PAM e BDJ
mostraram as pichações que estavam localizadas pela cidade. É importante destacar que os
jovens picham aqueles locais em que a sua comunidade possa reconhecê-los. Ou seja, os
jovens deixam suas marcas nos trajetos feitos pelas linhas de ônibus até o centro da cidade,
caminho realizado pelos moradores do bairro. Um morador comenta:
[...] Eu percebo fora do bairro, não é só no bairro, no Centro da cidade, a gente
consegue perceber, mas sempre em locais estratégicos no sentido de que alguém
do bairro vai passar por esse local e vai ver, ou que seja o caminho do ônibus, ou
que seja um ponto de ônibus, essas plaquinhas. [Se] estou sentado no Parque
Municipal lá tem um PAM pequenininho escrito, rabiscado ou com corretivo, e
eles vão para fora sim [...].
As fotos tiradas com os jovens dos grupos demonstram como é realizada a
apropriação do espaço da cidade pelos pichadores.
369
FIGURA 5 – Foto mostrando a pichação Slim, Snaco e Sol,
localizada na Rua Jequitinhonha, bairro Vera Cruz, feita por
jovens da PAM
Fonte: Arquivo pessoal.
FIGURA 6 – Foto mostrando a pichação Spim, Stom, Menor e
Snaco, localizada na Rua Niquelina, bairro Saudade, feita por
membros do grupo PAM
Fonte: Arquivo pessoal.
370
FIGURA 7 – Foto mostrando a pichação Slim, no Cemitério da
Saudade. Autoria de jovem pertencente ao grupo PAM
Fonte: Arquivo pessoal.
FIGURA 8 – Foto mostrando pichação dos jovens da PAM, na
Avenida dos Andradas.
Fonte: Arquivo pessoal.
3- TRANGRESSÃO
Os moradores do Conjunto Taquaril intitulam os pichadores como vândalos e
relatam que eles possuem uma tendência para se inserirem no “mundo do crime”, como o
tráfico de drogas. Porém, neste artigo, considera-se importante utilizar o conceito de
371
transgressão. A transgressão possui um caráter de “valorização desta ideia e de certa
postura marginal, que está presente em diversos momentos de seu cotidiano e não apenas
no ato de pixação” (Pereira, 2010, p.152). Segundo o relato de um morador do Conjunto
Taquaril:
[...] [os jovens do PAM] não são temidos por ações de amedrontar a comunidade:
eles são odiados! Talvez use essa palavra pela ação deles. Quando as pessoas
moram na comunidade (e moram há mais tempo) existe um vínculo criado com
essa comunidade. Tenho comigo uma revolta em relação a isso, até mesmo
porque a minha casa é pichada. A relação que eu tenho é de incômodo, porque o
problema maior não é a minha casa. [A pichação] não está ligada à minha casa,
ela está ligada a um contexto maior. Então, o meu incômodo com relação a eles é
esta ação num contexto geral. Eu me preocupo com o Taquaril, porque é o local
que eu moro desde quando eu tinha 7 anos de idade, e eu vim criando vínculos
com o bairro [...].
FIGURA 9 – Foto mostrando a casa de um morador
entrevistado. Nesse local os jovens do grupo PAM se reúnem
durante a madrugada.
Fonte: Arquivo pessoal.
Becker (1928) utilizou o termo outsiders para descrever aqueles que estão envolvidos
em ações coletivas consideradas como erradas. Os grupos sociais tecem as regras de como
os indivíduos devem constituir suas vidas e determinam o modo de imposição entre as
ações certas e erradas. Assim, “quando uma regra é imposta, a pessoa que
presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se
espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como
outsider” (Becker, 1928, p.15). Para o autor, os outsiders podem ser considerados como
desviantes, principalmente, das regras sociais impostas.
O desvio possui várias concepções. Em primeiro lugar, um comportamento só pode
ser considerado como desviante através da estatística, ou seja, aquilo que varia em relação
372
à média. Outra concepção é aquela em que o desvio é considerado como patológico, uma
doença. Os sociólogos rotulam os desviantes como “sintomas de desorganização social”
(Becker, 1928, p.20), ou, como falhas em obedecer às regras do grupo dominante. Becker
considera que o desvio é criado pela sociedade. Sendo assim, neste caso, o desvio não é
uma qualidade do comportamento, mas uma interação entre o pichador, por exemplo, e
aqueles que reagem contra ele. Deste modo, os indivíduos constituem identidades através
do desvio como uma maneira de viver. O autor expressa que “o indivíduo aprende, em
suma, a participar de uma subcultura organizada em torno da atividade desviante
particular” (Becker, 1928, p.41).
Em um contexto social, os pichadores são rotulados pela sociedade provocando
uma identificação com o ato e com a postura de desviante, ou indesejável, para conviver
entre os “normais”. Assim, Becker expõe que o jovem “é identificado como desviante,
antes que outras identificações sejam feitas” (BECKER, 1928, p.44). O desvio para estes
grupos de pichadores se transformam em algo dominante para reger a vida de cada um dos
participantes. Após a pesquisa realizada com os grupos de jovens do Conjunto Taquaril,
verificou-se que eles se identificam como pichadores que fazem parte de um grupo
desviante organizado o que provoca uma identidade com o grupo. É nesse sentido que
Becker (1928) ressalta a formalização de uma cultura desviante, conjunto de atividades
rotineiras com um mesmo propósito. Assim, “o pertencimento a um grupo desse tipo
solidifica a identidade desviante” (BECKER, 1928, p.48), contendo um repúdio às regras
morais do mundo convencional. Um morador do Conjunto Taquaril demonstra de maneira
clara como os pichadores se organizam em torno da transgressão:
[...] Já teve caso de guerra por causa da pichação, mas não chegou a levar à
morte. Mas troca de tiro, menino tomar surra, [isso] já. E ameaça. Recentemente,
com esse movimento da praça, alguns traficantes chegaram a anunciar que ia
pichar essa parte e que ia tomar. Foram ameaças indiretas, mas meio que não
inibiu não [...].
Outro estudo interessante concretizado por Elias (2000) foi demonstrado em seu
livro Os estabelecidos e os Outsiders. A pesquisa de campo realizada pelo autor em uma
cidade denominada Winston Parva no final dos anos 50, ressalta aspectos como violência,
discriminação e exclusão social, termos concebidos, também, para os pichadores. Nesta
cidade, havia o grupo estabelecido e o grupo outsider – que ocupou a cidade num período
posterior. O grupo estabelecido era dotado por uma posição de virtude humana superior
que eles mesmos se atribuíam. Conforme exposto por Elias (2000):
“... um grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração
373
diferencial contribui substancialmente para seu excedente de poder; sua maior
coesão permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com
potencial de poder mais elevado e de outro tipo, o que vem reforçar sua coesão, e
excluir dessas posições os membros dos outros grupos – o que constitui,
essencialmente, o que se pretende dizer ao falar de uma figuração estabelecidosoutsiders” (ELIAS, 2000, p.22).
A conexão entre os estabelecidos (sociedade e suas regras de uma forma geral) e os
outsiders provoca uma concepção de que o próprio grupo dominante concebe os outsiders
numa posição de inferioridade e desonra. Estes conceitos provocam aos estigmatizados um
efeito paralisante. Elias (2000) ressalta que o rebaixamento de grupos na ordem hierárquica
reduz a capacidade de competição pelo poder e status colocando-os em uma posição de
estigmatizados. As análises dos grupos estabelecidos e outsiders em Winston Parva
demonstram, claramente, de que maneira os indivíduos devem seguir uma obediência
grupal. Segundo o autor, “a punição pelo desvio do grupo ou, às vezes, até pela suspeita de
desvio, é perda de poder, acompanhada de rebaixamento de status” (Elias, 2000, p.40). Na
pesquisa de campo realizada no Conjunto Taquaril, por ser aquele o espaço de moradia dos
jovens, fica claro como os indivíduos moradores da periferia de uma grande metrópole
procuram um status à sua maneira, neste caso, através das assinaturas estampadas nos
muros da cidade, pode ser considerado como um contra-ataque daqueles dominados pelas
regras sociais. De acordo com o relato de um pichador:
[...] Então, eu acredito muito nisso, que a minha inserção no crime foi por causa da
pichação. Porque, a partir da pichação, eu tive contato com outras pessoas que não
eram pichadores, mas que também não era boa influência pra mim. Porque,
naquela época que eu comecei pichando, a minha intenção era de ficar famoso,
mostrar que eu existo, e o pessoal sabia que eu existo, tem uma pessoa, um
moleque que picha, então, eu queria reconhecimento [...].
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das considerações realizadas neste artigo é possível perceber que a maior
predominância de pichos na comunidade advém do grupo PAM – Possuídos pela Arte
Maligna. Conforme exposto, este grupo está situado no Taquaril A que até o ano de 2009
não possuía programas e projetos sociais para atender a comunidade, principalmente a
juventude.
O grupo BDJ – Bonde dos Jacarés – está localizado no Taquaril B, local
onde se concentrava uma série de intervenções, como o Programa Mediações de Conflitos,
Programa Fica Vivo!, Instituto Planetários, Projeto Providência, Associação Shekinah,
Igrejas, Escolas e Postos de Saúde. Como as políticas sociais são implantadas, em sua
maioria, no Taquaril B – por constituir uma infra-estrutura adequada para a implantação
374
dessas instituições – os moradores do Taquaril A não possuem acesso aos dispositivos
públicos o que influencia na maneira como é constituída a juventude naquele local. De
acordo com as observações realizadas na pesquisa de campo, os jovens entrevistados e os
moradores do Taquaril A não concluíram o Ensino Médio e possuíam dificuldades para se
inserirem no mercado de trabalho em função da falta de oportunidades ocasionadas pela
região. Os jovens entrevistados do Taquaril B, no momento das entrevistas, estavam
estudando, alguns haviam concluído o Ensino Médio em função da proximidade com a
escola e já estavam trabalhando ou possuíam experiência profissional. No entanto, cabe
ressaltar que os jovens do Taquaril B possuíam outras atividades diferentes da pichação, o
que minimizava esta prática na comunidade e na cidade. Um jovem do grupo BDJ relata:
[...] Eu acho, tipo assim, que a gente ficou tipo famoso assim porque nós tinha
nosso grupo e todo mundo trabalhava, aí nós num parava no Taquaril, nosso
negócio era só sair pra fora, ou então de vez em quando fazia uma festinha, mas,
tipo assim, só nós e num chamava ninguém. Por exemplo, tinha uns colega, mas
envolvia só a gente mesmo [...]
O contexto citado pode provocar um sentimento de impotência por parte dos
moradores do Taquaril A o que dificulta a relação com a juventude local. As percepções
durante a pesquisa de campo demonstram que a pichação é uma forma de manifestação
social, verificada a partir da atuação dos jovens em busca pelo direito da cidade. Como o
Conjunto Taquaril está situado em uma área limítrofe com o município de Sabará, esta
situação impossibilita o acesso de muitos jovens às oportunidades como educação, inserção
no mercado de trabalho, lazer, entre outros, da cidade de Belo Horizonte. Eles buscam o
reconhecimento social e a visibilidade, ressignificando a metrópole pela cultura popular. O
muro seria o único espaço que não exclui ideias e nomes. A pichação, como uma
manifestação marginalizada, é absorvida pela própria sociedade que a exclui. Os jovens
provocam a sociedade pichando os muros de suas residências, patrimônios públicos,
comércio entre outros e, dessa forma, são reconhecidos (mesmo como vândalos), tornandose foco da percepção da população.
6-BIBLIOGRAFIA
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e Antropologia – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
ANEXOS:
Tabela 1: Condições socioeconômicas dos principais aglomerados de Belo Horizonte
Variáveis
P. casa
P.
apartamento.
BH
favelas
0.668
0.319
sem
Morro
Pedras
0.931
0.053
das
Cabana de
Pai Tomás
0.947
Pedreira
Prado Lopes
0.916
Alto
Cruz
0.941
0.014
0.037
0.004
Vera
0.948
Conjunto
Felicidade
0.926
Ribeiro
Abreu
0.899
0.042
0.023
0.078
Taquaril
de
376
P. comodo
P. abast. água
P. esgoto
P. banheiros
P. coleta lixo
P. 1 residente
P.
2
residentes
P.
3
residentes
P.4 residentes
P.5 residentes
P.mais de 6
residentes.
P.alfabetizado
s
P.alfab. de 15
a 29 anos
P. de homem
P. até 9 anos
P. de 10 a
14anos
P. de 15 a
19anos
P. de 20 a 24
anos
P. de
25 a 29anos
P. de 30 anos
ou mais
P. sem renda
P. renda até 1
salário
P.renda – 1 a
3 salários
P.renda – 3 a
5 salários
P.renda– 5 a
10 salários
P.renda–mais
de 10 sal.
0.013
0.992
0.932
0.985
0.987
0.116
0.016
0.989
0.920
0.938
0.943
0.092
0.039
0.995
0.969
0.954
1.000
0.098
0.047
0.993
0.976
0.949
0.997
0.113
0.055
0.992
0.880
0.947
0.991
0.100
0.010
0.982
0.567
0.909
0.834
0.081
0.052
0.994
0.870
0.971
0.994
0.046
0.023
0.990
0.825
0.971
0.931
0.073
0.193
0.148
0.156
0.147
0.153
0.130
0.117
0.140
0.223
0.232
0.137
0.191
0.224
0.145
0.220
0.216
0.139
0.181
0.203
0.151
0.201
0.217
0.151
0.191
0.214
0.174
0.190
0.234
0.185
0.218
0.231
0.171
0.098
0.200
0.171
0.205
0.178
0.210
0.228
0.167
0.943
0.846
0.848
0.865
0.854
0.834
0.882
0.882
0.988
0.467
0.142
0.966
0.480
0.213
0.975
0.484
0.206
0.970
0.471
0.197
0.975
0.480
0.210
0.958
0.489
0.239
0.978
0.489
0.194
0.979
0.488
0.202
0.079
0.105
0.097
0.104
0.100
0.129
0.113
0.104
0.095
0.114
0.107
0.109
0.108
0.120
0.140
0.116
0.101
0.116
0.112
0.108
0.104
0.102
0.117
0.111
0.088
0.082
0.089
0.088
0.092
0.072
0.082
0.084
0.494
0.061
0.370
0.117
0.388
0.123
0.395
0.113
0.387
0.132
0.337
0.179
0.353
0.098
0.382
0.110
0.094
0.247
0.248
0.305
0.243
0.233
0.211
0.181
0.242
0.441
0.453
0.408
0.413
0.466
0.482
0.419
0.152
0.100
0.116
0.106
0.120
0.087
0.140
0.165
0.207
0.046
0.053
0.056
0.075
0.030
0.060
0.104
0.244
0.049
0.008
0.012
0.017
0.005
0.009
0.022
Nota: P. significa proporção. O primeiro conjunto de variáveis se refere à proporção de domicílios, o
segundo conjunto à proporção de residentes e o terceiro conjunto à proporção de responsáveis pelo domicílio.
Fonte:
Censo
Demográfico
2000.
(ANDRADE;
PEIXOTO;
AZEVEDO,
2007)
377
GRUPO DE TRABALHO 04: TRABALHO E MODERNIDADE
TENSÕES E INTENSÕES DA JUVENTUDE NO MERCADO DE TRABALHO
BRASILEIRO:
Um olhar a partir dos jovens do Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano
Banjaqui Nhaga1
Bruno Mota Braga2
RESUMO
O presente artigo faz parte de um primeiro esforço de pesquisa desenvolvido no Pólo de
Confecções do Agreste Pernambucano, tendo por objetivo, demonstrando os mais
variados rostos, sentidos e reverberações assumidos pela juventude brasileira, durante
sua imersão no mercado de trabalho. Neste sentido, sua primeira análise centra-se em
um olhar sobre as principais conjecturas assumidas pela juventude no mercado de
trabalho, mais especificamente sobre a experiência singular dos jovens da “sulanca”
inseridos no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, este que tem em suas
principais características, a informalidade, trabalho domiciliar, barreiras frágeis de
inserção comercial e produtiva, tecnologia do domínio popular e uma extrema
precarização das relações de trabalho.
Palavras Chave: Juventude, Trabalho, Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano
INTRODUÇÃO
O ingresso no mundo do trabalho constitui-se, tradicionalmente, um dos
principais marcos da passagem da condição juvenil para a vida adulta. No entanto, nas
últimas décadas, em funções de intensas transformações produtivas e sociais, ocorreram
mudanças nos padrões de transição de uma condição à outra. As pesquisas apontam para
as enormes dificuldades dos jovens em conseguir uma ocupação, principalmente em
obter o primeiro emprego, dado o aumento da competitividade, da demanda por
experiência e por qualificação no mercado de trabalho. Com isso, a transição para a vida
adulta tem sido retardada.
Os jovens em idade legal de trabalhar tornam-se um dos segmentos mais frágeis
1
2
Mestrando do PPGCS-UFCG
Mestrando do PPGCS-UFCG
378
na disputa por um posto de trabalho em meio ao elevado excedente de mão-de-obra e a
perda de oportunidades ocupacionais em empregos regulares.
Pesquisas nacionais têm mostrado que o trabalho está entre os principais
assuntos que mais mobilizam o interesse dos jovens. O trabalho também é por eles
indicado como um dos direitos mais importantes de cidadania, assim como um dos
direitos essenciais dos quais deveriam ser detentores. Vale dizer que a centralidade do
trabalho para os jovens não advém tão-somente do seu significado ético, ainda que este
seja relevante, mas resulta também, e sobremaneira, da sua urgência enquanto
problema:
(...) é, sobretudo enquanto um fator de risco, instabilizador das formas de
inserção social e do padrão de vida, que o trabalho se manifesta como
demanda urgente, como necessidade, no coração da agenda para uma
parcela significativa da juventude brasileira. Ou, de outra forma, é por sua
ausência, por sua falta, pelo não trabalho, pelo desemprego, que o mesmo se
destaca. (GUIMARÃES, 2004, p.12)
Nesse sentido o presente artigo, propõe uma reflexão sobre alguns aspectos
sobre a inserção e as condições de trabalho dos jovens no mercado de trabalho
brasileiro, mais especificamente o mercado de trabalho da “S
”, mais conhecido
como o Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, um arranjo produtivo que tem
em suas principais características, a informalidade enquanto elemento constitutivo das
relações de trabalho, tendo unidades produtivas domiciliares e precárias, tecnologia de
domínio popular, pouca presença de lideranças, entre outras.
Atualmente o Estado de Pernambuco abriga uma das mais importantes e
intrigantes experiências produtivas do Nordeste, dado a amplitude e dinâmica assumida
no referido clusters, que surge sem a participação da SUDENE (Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste) e sem a participação da Guerra Fiscal que trouxe
plantas industriais para o Nordeste, inclusive de confecções. O Pólo de Confecções de
Confecções do Agreste Pernambucano tem como referencia as suas três principais
cidades Caruaru, Santa Cruz do Capibaribe e Toritama, juntas são responsáveis por 60%
da produção do vestuário do Estado (LIMA & SOARES, 2002, p.168). Mas, segundo
dados da Secretária Especial da Juventude e Emprego do Governo do Estado de
Pernambuco, existem mais 13 municípios da região como atividades ligadas ao setor
têxtil e de confecções, são eles, Agrestina, Bezerros, Brejo de Madre de Deus, Cupira,
Frei Miguelinho, Riacho das Almas, Santa Maria do Cambucá, São Caetano, São
Joaquim do Monte, São Vicente Ferrer, Surubim, Tacaimbó e Taquaritinga do Norte
379
(DIEESE, 2010, p.9), ressaltando grande estas atividades são realizadas em unidades
produtivas domiciliares de trabalho domiciliar e com predominância de jovens de 14 a
29 anos
No Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, observa-se um mercado de
trabalho precário, informal e domiciliar, ao mesmo tempo em que se verificam
tentativas nos últimos anos de fazê-lo adequar-se aos novos padrões estabelecidos por
instituições governamentais e não governamentais (ANDRADE, 2008), nesse sentido
alguns atores como o SEBRAE, SENAI, EJA tem se mobilizado como o intuito de
modernização e reconfiguração na imagem do referido clusters, tendo nos jovens uma
de suas portas de entrada.
Tendo como ponto de partida essas considerações iniciais, e considerando o
trabalho nas unidades produtivas e comerciais de confecções como elemento central
entre os jovens do Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, lanço às seguintes
questões:
1.
Quais a condições de trabalho encontradas por esses jovens?
2.
Em que tipo de ocupação e com qual jornada estão inseridos os jovens no
mercado de trabalho?
3.
Quais seriam os encontros e desencontros entre a situação juvenil no mercado
de trabalho e as ações públicas?
4.
Como se dá a relação trabalho-escola?
5.
Como se dá a entrada juvenil no mercado de trabalho, se existe, já que este
clusters tem como característica principal o trabalho familiar?
Não tentaremos responder todas as questões e inquietações suscitadas na
abordagem acima, mais nos lancemos na tentativa de demonstrar como ainda hoje as
várias formas de inserção ou não do jovem no mercado de trabalho, produz e reproduz
formas contrastantes de desigualdade social em contextos sociais, políticos e
econômicos singulares, distintos e heterogêneos.
. Pretendemos, aqui, não propriamente apresentar resultados de pesquisa, mas
principalmente propor algumas indicações para uma interpretação sobre tal experiência.
Este texto se encontra estruturado em quatro partes. Depois desta Introdução, a
parte que segue busca situar os principais elementos que caracterizam o olhar singular
sobre o conceito de juventude. A segunda parte se detém sobre as dinâmicas, tensões e
380
intenções, mais evidentes, da intersecção escola, juventude e trabalho, na terceira parte,
um olhar específico sobre as condições e inserção da juventude no Pólo de Confecções
do Agreste Pernambucano, na quarta e última parte, proponhamos algumas
considerações acerca dos primeiros resultados de pesquisa e os fios proporcionados
pelas abordagens teóricas da “Produção e Reprodução da Desigualdade”.
1. A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE JUVENTUDE
Dentre as várias questões colocadas as Ciências Sociais, a juventude sempre
esteve em evidência, como um período caracterizado pela intersecção de várias lógicas,
dentre elas o trabalho, estudo, família e preparação para a vida adulta, entre outros.
Refletir os rostos assumidos pela juventude na modernidade é ter no trabalho o
eixo central de análise. Observa-se que na modernidade há uma nítida demarcação das
etapas e ciclos de vida com valorizações distintas: a infância é vista como fase de
dependência; a juventude, como sinônimo de transição; a idade adulta, reconhecida
como o apogeu da vida, e a velhice, como decadência (Debert, 1999). A juventude é,
assim, vista como uma fase de transição que tem que ser transportada para se chegar
àquilo que se considera ideal de adulto, representado como auge do percurso de
existência, e cuja marca repousaria em uma formação relativamente sólida, na
decorrente estabilidade de emprego e independência financeira como a definitiva saída
da casa dos país e constituição de uma nova família, trio que resultava na “completa” e
irreversível” autonomia do sujeito.
Claro que não é a sociedade que “inventa” a juventude, já que jovens sempre
existiram e foram reconhecidos como tais em outros contextos, mas é na modernidade
que a encara como transição. Nas sociedades tradicionais, em geral estáticas, não havia
muita dificuldade de se passar de uma geração a outra, pois aqueles que chegavam as
novas gerações, tendiam a valorizar o mundo adulto e, assim, reviver os modos de vida
de seus predecessores, a passagem dos jovens aos papéis adultos sendo realizada por
meio de rituais que organizavam e controlavam essa entrada, de modo a dotá-la de
sentimento. Já nas sociedades modernas,
... as práticas de uma geração só são repetidas se forem
reflexivamente justificadas. O curso de vida transforma-se em um espaço de
experiências abertas e não de passagens ritualizadas de uma etapa para
outra. Cada fase de transição tende a ser interpretada, pelo indivíduo, uma
crise de identidade e o curso da vida é construído em termos da necessidade
antecipada de confrontar e resolver essas fases de crise. (Debert, 1999, p.53)
Se nas sociedades tradicionais, o ritual de passagem do jovem à fase adulta é
381
definido pela transmissão de um status social, que tem a ver com o estágio de
maturidade, nas ocidentais modernas, ele é determinado por um “mecanismo básico de
atribuição de status (maioridade legal), de definição de papéis ocupacionais (entrada no
mercado de trabalho), de formulação de demandas sociais” (Debert, 1999, p.26). Em
suma, pela idade cronológica, baseada em um sistema de datação que independe das
estruturas biológicas e dos estágios de maturidade.
Na realidade, não foram propriamente os rituais que desapareceram, eles se
transformaram em “quase ritos”, definidos pelo calendário escolar: passagem pela
universidade, salário ligado ao primeiro emprego, são marcos que denotam a
possibilidade de conquista de autonomia, mas sim a tolerância ao desvio, que passa a
ser visto como patologia. Assim, como nenhum desses momentos representa a
estabilidade, a claridade e o reconhecimento público dos verdadeiros ritos de passagem,
essa perda de conexões entre a vida pessoal e a troca de gerações faz com que, para os
jovens, a entrada no mundo adulto seja mais rápido e mais hostil na sociedade moderna.
Simultaneamente, a juventude passa a ser vista como uma etapa transitória, que se torna
objeto de atenção na medida em que parece romper com a ordem social estabelecida
pelas gerações anteriores.
Ou seja, não só a juventude passa ao segundo plano, como a própria idéia de
transição para ser vista como problema. Ao mesmo tempo é somente aí, quando seus
mecanismos de reprodução estão ameaçados, que uma sociedade passa a se preocupar
com seus jovens. Como sintetiza Helena Abramo (1997),
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já
foi assumida por muitos autores: a juventude só se torna objeto de atenção
enquanto representa uma ameaça a ruptura com a continuidade social:
ameaça para si própria ou para a sociedade. Seja porque o indivíduo jovem se
desvia do seu caminho em direção à integração social – por problemas
localizados no próprio indivíduo ou nas instituições encarregadas de sua
socialização ou ainda por anomalia do próprio sistema social -, seja porque
um grupo ou movimento juvenil propõe ou produz transformações na ordem
social ou ainda porque uma geração ameace romper com a transmissão da
herança cultural. (p.29)
Por outro lado, a juventude é simultaneamente revestida de um ideal e de uma
aposta: vista como um estado de espírito permanente, ela se transforma em mito para as
outras gerações como condição para a felicidade eterna e para a resolução de todos os
males da sociedade (Debert, 1999). Muito desse modelo simbólico que a adjetiva como
“progressista” provém da massificação cultural dos anos 60, expressa pelos jovens da
moda, na música e na dança, etc...
Vê-se, assim, que a modernidade produz o aparente paradoxo de encarar a
382
juventude como uma fase transitória e (por isso mesmo) problemática e,
simultaneamente, de valorizá-la como um estilo de vida independente de um grupo
etário específico.
Mannheim (1975) foi o primeiro a problematizar o conceito de juventude da
perspectiva sociológica. Ou seja, foi o primeiro a desnaturalizá-la, afirmando que, por
cima da idade, da condição biológica, esta sim, universal, há construções sociais
diversas. Por isso, a juventude não possui atributos inerentes, ela não é nem
revolucionária, nem conservadora por natureza, mas sim uma energia latente que,
conforme as condições históricas, dirigi-se a uma direção ou a outra. Além de latente,
ela é marginal no sentido de vir de dentro (da esfera privada), ou seja, de não ter ainda
sobre ela os encargos da estrutura social e também de estar fora do centro do poder (da
esfera pública).
A transição também é um elemento que Mannheim atribui à juventude, mais é
preciso relembrar que essa característica é limitada para compreendê-la, não só porque a
condição provisória é comum a qualquer grupo etário, mais também porque a ênfase na
“passagem” como pertencente à condição juvenil faz com que a idéia de juventude seja
ressaltada pela sua negatividade, por aquilo que ela não é (Sposito, 2002); tudo o que
não é voltado para a preparação para a vida adulta é, assim, considerado perca de
tempo. Entretanto, se quer apenas pela sua transitoriedade, por isso implica cair no
ideal centrado nos adultos forjado pela sociedade salarial, para a qual o tempo livre
representa um perigo.
Se a transição é um aspecto limitado, isso não significa que a própria transição
seja desconsiderada, desde que se façam algumas ressalvas. Primeiramente, é preciso
que há especificidades nessa transição, que a torna inegavelmente singular (Sposito,
2005) e fazem com que ela tenha sentido em si mesma: é a fase da vida que o indivíduo
não tem sobre ele os encargos da estrutura social (Mannheim, 1975) e,
simultaneamente, se distancia do grupo de origem, sem que tenha clareza do grupo
aonde se quer chegar (Gallland, 1996). Por isso mesmo ele potencializa atitudes de
experimentação, vivência de situações limite (Sposito, 1994), tanto para a conquista de
autonomia (De Singly, 2000) quanto para a construção de sua(s) identidade(s) e dos
estatuto(s) que lhe deve(m) corresponder (Dubar, 2005; Galland, 1996), por meio de
auto-classificações e de status, que culmina com a realização de papéis de adulto
(Hasenbalg, 2003) é também marcado pela “insegurança frente ao futuro” (Rama apud
Sposito, 1994, p.162).
383
A juventude é, pois, uma condição que será vivida conforme os distintos
contextos socioestruturais e socioculturais e, dentro dele, conforme alguns ativos como
posição social, o sexo, o próprio momento de ciclo de vida (ter 15 é diferente de ter 24),
ou como venho a trabalhar mais à frente, os jovens inseridos em cidades pertencentes a
arranjos produtivos. Por um lado, essa própria condição também é uma representação,
ou seja, é revestida de valores que diferem historicamente conforme os rostos assumidos
pelas juventudes.
Da perspectiva sociológica, a juventude não pode, assim, ser definida apenas por
critérios biológicos ou jurídicos, pois cada sociedade vê seus jovens de uma maneira, o
que significa dizer que a juventude é uma construção social. A “juventude” é, portanto,
diferente dos “jovens”, estes são concretos e se afastam ou se aproximam dessa imagem
social construída, seja como fase da vida com determinados papéis e/ou com estilo de
vida.
A juventude é, ao mesmo tempo, uma fase da vida, uma força social renovadora
um estilo de existência. Se a concebermos como uma etapa que antecede a maturidade e
que apresenta características singulares, notaremos que ela corresponde a um momento
definitivo de descoberta da vida e da história. Sob este aspecto, é uma experiência
particular que se universaliza como componente indispensável da formação da pessoa,
como afirmação dos seus recursos e das suas potencialidades humanas. Os quadros
dessa experiência particular e os caminhos da sua universalização são, no entanto,
socialmente estabelecidos. Isto quer dizer que cada sociedade constitui o jovem à sua
própria imagem. As representações que valoriza
e as manipulações que estimula
tendem, o geral, a fazê-lo agir dentro dos limites que ela mesmo estabelece e que são os
limites da sua preservação (Foracchi, 1977, p. 302)
Nas propriamente nos anos 2000 se inicia várias pesquisas voltadas para a
compreensão do modo como se faz a transição à vida adulta no país, seja apartir de
metodologias de cunho quantitativo (Camarano ET al., 2004; Guimarães, 2006) ou
qualitativo (Pimenta, 2001). Marcados pela perspectiva de que há múltiplas juventudes,
esses estudos mostram que, dentro do próprio país, há múltiplas formas de adentrar a
vida adulta, nas quais se inserem novos estilos de vida (Camarano et al, 2004). Essas
passagens também se diferenciam das que ocorrem em outros países, especialmente
quando se leva em conta os regimes de proteção social e o modo como se configuram as
políticas públicas (Guimarães, 2005). Igualmente se amplia o número de pesquisas
centradas particularmente no campo de trabalho, dada a dificuldade cada vez mais
384
crescente dos jovens se inserirem e permanecerem no mercado, apesar dos níveis
crescentes de escolarização. É nessa perspectiva de juventude e trabalho que pretendo
relacionar esses conceitos na tentativa de revelar o olhar brasileiro sobre essas lógicas
distintas e singulares.
2. JUVENTUDE E TRABALHO NO BRASIL
As transformações na instituição escolar e no mundo do trabalho têm um lugar
importante, parecendo significativo aprofundar a observação dos percursos juvenis nas
duas esferas, considerando o mundo do trabalho, ainda se encontra em curso um intenso
processo de crise e transformação.
A partir dos anos 1970, nos países desenvolvidos, e do final dos anos 1980, no
Brasil, os mercados de trabalho tornaram-se cada vez mais heterogêneos e
fragmentados, observando-se um grupo de trabalhadores com alta qualificação,
atividades em período integral e direito trabalhistas assegurado convivendo ao lado de
uma grande massa de trabalhadores pouco qualificados, ocupando postos de trabalho
precários, mal remunerados, muitas vezes sem quaisquer direitos trabalhistas, e junto
ainda a um número cada vez maior de desempregados (Gorz, 1991; Harvey, 1996).
Sendo assim, as transformações no mundo do trabalho e o aumento dos ganhos de
produtividade não significaram aumento do nível de emprego, tornando o desemprego
um problema estrutural no cenário global. O período mais recente mostra um contexto
de maior crescimento da atividade econômica e das oportunidades de empregos e
ocupações que, embora ainda insuficientes, podem ser indicativos de relevantes
mudanças socioeconômicas em curso.
De todo modo, em todos os países, os jovens são apontados como um dos grupos
mais afetados pelo aumento do nível de desemprego e pelo processo de precarização do
mercado de trabalho seja do ponto de vista estritamente subjetivo ou objetivo,
considerando-se as taxas de desemprego juvenil.
No campo educacional, os números tornam evidente a ampliação das
oportunidades de acesso à educação formal e da permanência dos jovens na escola. Mas
persistem trajetórias escolares marcadas por intermitentes reprovações e evasões, e está
longe de se completar a universalização da educação dos adolescentes e dos jovens.
Somam-se a isso importantes questionamentos em torno da qualidade do ensino e das
chances da escola constituir-se em um espaço significativo para os jovens. Convém
ainda investigar o que o maior tempo de permanência na escola tem produzido nas
385
gerações mais jovens, e há muitas maneiras de fazê-lo.
Assim, considerando as mutações que atingem a esfera do trabalho e da escola, é
cada vez mais necessário um olhar aprofundado para os percursos dos jovens nessas
esferas, principalmente em países como o Brasil, pois aqui, para além da escola, o
trabalho também faz a juventude. Tal como afirma Sposito (2005, p. 106): “[...] para os
jovens brasileiros, escola e trabalho são projetos que se superpõem ou poderão sofrer
ênfases diversas de acordo com o momento do ciclo de vida e as condições sociais que
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Isso não quer dizer que maior escolarização garanta automaticamente aos jovens
o ingresso em bons postos de trabalho, pois o incremento na oferta de mão-de-obra
qualificada não segue necessariamente o mesmo ritmo do aumento na demanda por
profissionais qualificados (CASTRO e AQUINO, 2008).
Reconhecer que no Brasil, que o trabalho também faz a juventude, não significa, de
maneira ingênua, defender o trabalho de adolescentes e jovens, mas, ao contrário,
“implica admitir que, se a construção da condição juvenil decorre de um complexo de
valores sedimentados sob o ponto de vista social e histórico, no Brasil, uma alteração
desse quadro deveria ser expressão de mudanças estruturais mais substantivas que
atenuem as profundas desigualdades sociais, submetidas a processos de longa duração”
(Sposito, 2005, p. 226).
Estas considerações evidenciam a complexidade da temática da juventude e das
características que orientam a definição de “jovem”, inclusive no que se refere à
delimitação do início e do final desse período na vida das pessoas. Por outro lado, a
Constituição da República Federativa do Brasil determina os 16 anos como idade
mínima para o trabalho, admitindo, a partir dos 14 anos apenas o trabalho na condição
de aprendiz. Por sua vez, a atual política nacional para a juventude definiu que a faixa
etária para sua atuação vai dos 15 aos 29 anos.
Vale registrar que, embora muitos jovens entrem no mercado de trabalho por
necessidade ou por precariedade econômica e social de suas famílias, há, também,
aqueles que, por desejo de autonomia, independência financeira, crescimento pessoal ou
outras razões de cunho subjetivo, entram no mundo do trabalho de forma voluntária.
Também parece ser crescente entre os jovens a percepção de que a experiência no
mundo do trabalho faz parte da equação de construção da trajetória ocupacional. Para
muitos jovens, é seu próprio trabalho que lhes possibilita arcar com os custos vinculados à educação. Desde o meados da década de 1990, assistimos a um conjunto de
386
reformas institucionais, que induziram a uma forte expansão do ensino superior,
integrando um plano que atingisse as camadas as classes médias e altas, tem em si, um
diferencial importante donde vários adultos e jovens que entram no mercado de trabalho
de forma precária, retomam a escola enquanto uma necessidade de estabilidade e
oportunidade de ascensão social.
No Brasil, o padrão peculiar encarnado na figura do trabalhador ‑estudante
não e exatamente novo, já que desde sempre os indivíduos mais pobres tem
sido atraídos para o mercado de trabalho em idade muito precoce, o que lhes
reserva como melhor cenário possível a combinação entre trabalho e estudo.
A novidade e que este padrão tem viabilizado a expansão do ensino superior,
na escala a que assistimos, dada a prevalência do ensino pago e a cobertura
ainda muito insuficiente das políticas de subsidio e inclusão muitos
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empregabilidade, o aquecimento do mercado de trabalho e o aumento da
renda dos mais pobres lhes infundiram otimismo e renda para suportar a
árdua convivência de jornadas extensas de trabalho com o estudo
noturno....(Comim; Barbosa 2011)
Para muitos também, especialmente os integrantes das camadas populares, os
baixos níveis de renda e capacidade de consumo da família redundam na necessidade do
seu trabalho como condição de sobrevivência familiar. No Brasil, segundo a Pnad de
2007, 30,4% dos jovens na faixa etária de 15 a 29 anos poderiam ser considerados
pobres, pois viviam em famílias com renda domiciliar per capita de até ½ salário
mínimo (SM); 53,8% pertenciam ao extrato intermediário, com renda domiciliar per
capita entre ½ e 2 SMs; e apenas 15,8% viviam com renda domiciliar per capita
superior a 2 salários mínimos.
Salienta-se que, mesmo quando o trabalho não é uma imposição ditada pela
necessidade de subsistência familiar, o que por si só o justificaria, os jovens têm a
tendência de encará-lo como uma oportunidade de aprendizado, de ter acesso a variados
tipos de consumo e de lazer, de alcançar a emancipação econômica. Desse modo, a
associação entre os baixos níveis de renda familiar e a possibilidade de o jovem estar
inserido como estudante e trabalhador na estrutura ocupacional não é tão imediata
quanto parece. São muitos os jovens cuja renda familiar possibilitaria uma dedicação
exclusiva aos estudos, mas que acabam optando, ou melhor, escolhendo também
trabalhar.
2.1 MERCADO DE TRABALHO E INSERÇÃO JUVENIL
A prática tipicamente humana do trabalho adquiriu um papel central tanto na
inserção social de cada indivíduo e na decorrente formação de sua identidade quanto na
387
constituição e na sustentação da sociedade, principalmente nos Estados nacionais
modernos fundados na concepção do contrato social (Cf. CASTEL, 1998). O ser
humano promove a transformação da natureza para garantir a sua sobrevivência, bem
como cria conhecimento e cultura transformando a sua própria natureza pelo trabalho;
mas, ao longo da história humana, essa condição não foi compartilhada livre e
igualmente (Cf. GORZ, 2003).
Atualmente, não sem grandes questionamentos e conflitos, a noção de trabalho
figura simultaneamente como uma forma de distribuição de renda da sociedade e,
sobretudo, de garantia de dignidade humana e de direitos, tal como figura na Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Hobsbawm (2000) destaca que a luta de trabalhadores
operários por direitos trabalhistas promoveu a extensão da reivindicação para a luta por
Direitos Humanos mais amplos. No Brasil, essa noção dos direitos de trabalho
constituiu-se principalmente relacionada com sua modalidade de emprego, regida por
uma relação específica de contrato que atribuiu direitos e deveres a empregados e a
empregadores, o que ainda mantém relativamente à margem modalidades de prestação
de serviços, trabalhos informais e ocupações precárias (Cf. ESTEVES, 2002;
CACCIAMALI, 1999; ANTUNES, 1999). Em consonância, o pleno emprego, grosso
modo, que é a ocupação relativamente total da mão-de-obra de trabalhadores disponível
no mercado de trabalho, ao longo do século XX, no Brasil, constituiu-se como uma
meta do desenvolvimento econômico nacional.. Mesmo assim, desde a década de 1970,
o então crescente mercado de trabalho brasileiro foi submetido a uma crise que tem
comprometido a possibilidade de acesso da população ao trabalho e, em decorrência, à
renda, aos bens sociais e à garantia dos direitos individuais e sociais básicos.
Em período mais recente, desde a década de 1990, como aponta Mattoso (1999),
evidencia-se um grande aumento do desemprego, um rebaixamento da renda
assalariada, um incremento do trabalho e da economia informal e uma grande
dificuldade para os trabalhadores serem incluídos no sistema econômico. Esse mergulho
na crise econômica chegou associado a reformas do Estado, ajustes econômicos
neoliberais e crescimento exponencial da automação e da tecnologia nos sistemas de
produção, tudo isso implicando a dispensa em massa de mão-de-obra humana. Nota-se
que, nesse contexto, como em estudos de Pochmann (2000), os jovens enfrentam
dificuldades adicionais para encontrar trabalho e nele se manterem, uma vez que além
de inexperientes, encontram poucas oportunidades. Isso fica significativamente mais
grave entre jovens pobres, pois eles são impelidos a precipitar a ocupação de um posto
388
de trabalho para obter uma renda a fim de sustentar as despesas familiares ou a própria
sobrevivência, o que costuma comprometer a possibilidade de formação escolar e de
maior qualificação profissional, as quais adiante provavelmente contribuiriam para a
seqüência de sua carreira de trabalho.
3. OS JOVENS NO MERCADO DE TRABALHO DO PÓLO DE CONFECÇÕES
DO AGRESTE PERNAMBUCO
Para compreender melhor a inserção e as condições de trabalho dos jovens no
mercado de trabalho no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, foram
necessários alguns incursões a campo no ano de 2011, leituras acerca das produções
bibliográficas sobre o referido clusters e do arcabouço teórico desenvolvido na
disciplina acadêmica Tópicos Especiais Produção e Reprodução da Desigualdade Social
PPGSA/UFRJ. Nesse sentido pretendo ressaltar como a categoria juventude e sua
inserção trabalho assume
percursos distintos e reverberações para os indivíduos
inseridos neste respectivo experimento coletivo, denominado Pólo de Confecções do
Agreste Pernambucano.
3.1
DA “SULANCA” AO
PÓLO
DE
CONFECÇÕES
DO AGRESTE
PERNAMBUCANO
O Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano surgiu entre os anos de 1940 e
1950, na cidade de Santa Cruz do Capibaribe, no momento em que a cultura algodoeira
no Nordeste passava por um forte declínio, deixando numerosos contingentes de
famílias em situação de miséria, sem alternativas para sobreviver da agricultura,
restando-lhes aventurar-se na migração para as cidades do Sudeste do país. Vários dos
comerciantes que residiam na cidade da cidade de Santa Cruz do Capibaribe saiam do
interior de Pernambuco para a região sudeste à compra de mercadoria e voltavam
trazendo restos de tecidos, os quais vieram a ser trocados pelos por galinha, queijo,
carvão vegetal, que foi base para as primeiras confecções, denominadas sulanca, sul =
origem do tecido e elanca = tipo do tecido. Aos que permaneceram na região agrestina,
a produção da sulanca se colocou como alternativa a geração de renda. O estudo do
Dieese (2010) nos aponta que a atividade
da sulanca surgiu de um movimento
espontâneo dos pequenos empreendedores locais, como estratégia de sobrevivência da
população local:
A necessidade de se reinventar promoveu a busca pelo tecido em outros
389
Estados, como São Paulo e, mais recentemente, na Paraíba, ou até mesmo a
sobra do produto. A arte de transformar restos de tecido em produto e a
intensificação do fluxo comercial entre os estados de Pernambuco e São
Paulo, pelos comerciantes pernambucanos que viajavam para São Paulo,
pelos comerciantes pernambucanos que viajavam a São Paulo para comprar
matéria-prima, deram origem ao nome da famosa feira semanal de
confecções na cidade de Santa Cruz do Capibaribe, a Feira da Sulanca
(DIEESE, 2010, p.8)
Um elemento de destaque no surgimento da sulanca foi o papel das mulheres,
que passam a utilizar as sobras de retalhos para confeccionar, inicialmente, peças de uso
doméstico, como colchas e, em seguida, peças do vestuário em geral.
(...) a gente comprava, trazia pra casa, agente colecionava tudinho, com uns
mais pequenos agente fazia coberta, com uns mais maior gente fazia uns
shortinhos, aqueles shortinhos que botava a ligas. Aí quando era de
madrugada, que a feira começava de madrugada, eu ia mais ela [sua filha],
Sivi, e compadre João. Nós ia vender na feira. Chegava lá, agente vendia
tudinho (entrevistada, 08/10/2011)
A indústria de confecções é caracterizada pela sua atomização do processo
produtivo, onde participam de forma autônoma ou interligada as micro, pequenas,
médias e grandes empresas, embora haja predominância na participação da micro e
pequenas empresas na estrutura industrial da região.
Segundo Araújo (2006) atualmente 75% das indústrias de confecções do Estado
de Pernambuco encontra-se no Agreste, havendo uma considerável concentração de
empregos. Diante do número expressivo, para facilitar o acompanhamento nas empresas
locais, O SEBRAE utiliza uma classificação de acordo com o número de funcionários
por empresas: microempresa, até 19 funcionários; pequenas, 20 a 99 funcionários;
média, entre 100 a 499 funcionários; grande, acima de 500 funcionários.
Além das características citadas, é possível encontrar ainda empresas informais
que trabalham como “facção”, desenvolvendo atividades de costura, e que são
contratadas ou terceirizadas por outras empresas informais, como meio de garantir a
produção, uma vez que não têm estrutura suficiente para desenvolver todo o processo de
produção em suas dependências, formando assim uma grande rede de prestação de
serviços.
Observando as características dos processos e produção das empresas do Pólo
de Confecções, é possível verificar que o grau de interação entre elas é visto
nas relações de subcontratação e faccionamento de algumas fases do processo
produtivo. (DIAS, 2007, p.89)
Tanto a produção quanto a organização acontecem dentro das próprias casas das
famílias, como a mão de obra familiar, estruturas de trabalho precárias, tecnologia de
domínio popular e em muito dos casos com a utilização do trabalho infantil. Com o
390
crescimento da confecção, é construída uma garagem aos fundos ou ao lado da casa, de
modo que o ambiente de produção dificilmente se separa do espaço doméstico.
No que se refere às empresas maiores, geralmente se começa com a mesma
estrutura, e com o aumento da produção e das vendas sentem a necessidade de melhorar
a qualidade de seus artigos, de aumentar o espaço de produção, de formalizar seus
funcionários em empresas. Mas continuam utilizando os mais variados tipos de
estratégias para baratear ao máximo o custo da produção e garantir a margem de lucro,
como por exemplo, a contratação de “f çõ ”, não se responsabilizando pelos encargos
sociais em relação aos funcionários que estão localizados fora da indústria.
A “precariedade está em toda a parte” (BOURDIEU, 1998, p. 120), envolvendo
a família, agrupando parentes e funcionários, que em sua maioria são jovens, em um
processo de trabalho bastante cansativo, com ritmo de produção elevadíssimo, uma
jornada de trabalho, principalmente nos período junho e dezembro (épocas de grandes
vendas), de até 14 horas por dia. Há uma combinação de máquinas industriais em
combinação com o trabalho manual.
O comércio está, também, está voltado para as confecções, disponibilizando
proporcionalmente muitos empregos nesse setor, assim como as atividades de prestação
de serviços relacionados ao segmento de confecções, fato este que faz com que muitas
pessoas se desloquem de seus municípios, do entorno, para conseguir um emprego
nesses locais.
3.2 OS JOVENS: INICIAÇÃO AO TRABALHO, IDADE E ESCOLARIDADE
Para compreender melhor a inserção juvenil no mercado de trabalho local e pela
inexistência de dados específicos, foram realizadas algumas incursões e campo no ano
de 2011, uma das incursões diz respeito a visita a oito unidades produtivas dos mais
variados tamanhos, onde farei uma breve apresentação das primeiras impressões e
apontamentos da pesquisa.
Desde o surgimento, o Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano tem
atraído muitos migrantes para a região, que buscam uma alternativa de sobrevivência
para a família. No entanto a presença de jovens advindos é notória e crescente. Os
jovens advindos de outras cidades geralmente são convidados por outros parentes ou
amigos já empregados nas fábricas de confecções, e chegam sozinhos à região. Quando
conseguem se organizar trazem o resto da família.
A trajetória de trabalho da juventude do Pólo de Confecções nas indústrias de
391
confecções começa desde a infância. Fato este identificado por Marx (1988, p. 450)
referindo ao contexto da revolução industrial na Inglaterra, quando destaca o trabalho
não deixou de fora as crianças e o jovem, tomando o lugar dos “folguedos infantis e do
trabalho livre realizado, em casa, para a própria família dentro dos limites estabelecidos
pelos costumes”.
Tal situação é encontrada também na família camponesa, onde a iniciação no
trabalho se dá apartir da mais tenra idade, e se associa “à falta de brincadeira ou de
tempo de brincar nessa fase da vida” (MENESES, 2002, P.6). Vale destacar ainda que há
dois tipos de trabalho infantil: o “remunerado”, que é efetivado mediante condições
penosas de trabalho, impedindo o crescimento físico, social, moral e profissional das
crianças e dos adolescentes; e o baseado na construção de saberes e construção de
profissões”, como é encontrado entre os artesãos e na agricultura familiar (NEVES,
1999).
Os relatos dos jovens, deixa claro o trabalho infantil é tido como uma
transmissão de saberes, no que se refere ao processo de socialização que ocorrem no
interior das famílias que realizam a produção com uma mão de obra estritamente
familiar, não havendo remuneração para os mais novos, assim como, de outro lado,
nota-se a presença do trabalho infantil remunerado, que restringe as atividades lúdicas e
educativas na vida das crianças e adolescentes e os tornam o elo mais precário das
relações de trabalho. Durante algumas visitas a campo, foi encontrado algumas crianças
trabalhando, nas microempresas, nas empresas que prestam serviço de casear, bodar,
estampar e ainda nas facções (como mostra a foto 1) geralmente fazendo acabamento
nas peças produzidas ou aparando pontas de linha, dobrando ou ainda embolsando
peças.
392
Foto 1: Facção de casear, microempresa prestadora de serviço as médias empresas.
Fonte: Arquivo pessoal.
No entanto, nos últimos anos houve certas diminuição desse do trabalho infantil,
devido à intensificação da fiscalização por parte do Ministério Público, no que se refere
à efetividade do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), que vem atentar para os
direitos à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e
comunitária, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização e à proteção ao
trabalho. Outro fator que contribui para a diminuição do trabalho infantil foi o Programa
do Governo Federal Bolsa Família, visto que, segundo os critérios estabelecidos pelo
programa, a criança em idade escolar de 6 a 15 anos precisa estar matriculada e
freqüentando a escola.
No entanto, observa-se claramente que não houve erradicação do trabalho
infantil, mas apenas a sua diminuição, até mesmo porque há a justificativa de que a
criança deve ajudar na renda familiar. Uma estratégia encontrada pra não prejudicar a
freqüência escolar é a combinação prévia com os padrões de trabalho oposto ao da
escola. Isso não significa a diminuição da jornada de trabalho que esta organizada em
uma faixa de nove horas por dia, sem cortar as horas-extras, que têm uma variação de
acordo com a necessidade de aumento de produção em épocas de pico de vendas,
ocorridas geralmente próximas aos meses de junho e dezembro.
O grande índice de desistência pelos jovens é justificado pela dificuldade em
conciliar os estudos com o trabalho, devido à longas e exaustiva jornada de trabalho nos
fabricos, sem contar que é muito comum se encontrar jovens que têm suas produções
independentes com o objetivo de futuramente abrir seu próprio negócio.
393
[...] às vezes eu fico pensando, a pessoa vai, deixa o trabalho, que é onde a
pessoa grana um trocadinho extra, que é no trabalho à noite. E posso até
fabricar pra mim. Como agora, que eu já venho fabricando, e é nesse
horário vago. E se eu tivesse na escola também não tava dando, né [...]
Entrevistado, 08/07/2011.
Outra coisa que influencia a desistência escolar é que muitos, além de
trabalharem nas empresas de confecções, também trabalham nas conhecidas Feiras da
Sulanca em Toritama, Santa Cruz do Capibaribe e Caruaru. Geralmente vendem
mercadorias para o patrão, para a família que tem a própria produção, ou pegam
mercadoria de outras pessoas como forma de complementar a renda. A saída para a
feira, geralmente acontece na noite anterior ou de madrugada.
3.2 CONDIÇÕES DE TRABALHO E RENDA
As condições, ritmo, jornada de trabalho e renda dos jovens inseridos no
mercado de trabalho seguem em mesmo no mesmo padrão no que se refere à
organização e produção, entre as empresas de pequeno e médio porte, que são a grande
maioria no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano.
A jornada de trabalho está fixada em média de 9 horas por dia, sem contar as
horas-extras, que têm uma variação de acordo com a necessidade e aumento de
produção em época de pico de venda, que ocorrem geralmente próximos aos meses de
junho a dezembro. O horário de expediente é das 7 h às 11h30min, e 13h às 17h,
havendo um intervalo de 15h para o lanche (quinze minutos). O registro de horas de
trabalho e das horas-extras é feito em um caderno, onde cada funcionário anota a hora
que chega e em que sai do estabelecimento. O horário estabelecido de entrada, de saída
e para o lanche é determinado pelo patrão.
O espaço físico é bastante fragmentado, geralmente funcionando em garagens,
sendo constantemente readaptado para atender as necessidades de aumento de produção.
É em geral muito quente e com pouca ventilação. A higiene do ambiente é feita
diariamente pelos próprios funcionários, no entanto no modo precário como são
acondicionados os estoques de tecidos produzindo uma quantidade excessiva de poeira,
principalmente durante o processo de corte e costura. A estamparia, além de ser o
espaço mais quente de todo o processo de produção, é também um espaço de trabalho
com exposição às substâncias tóxicas advindas nas tintas e das outras substâncias
utilizadas durante o processo. Vale ressaltar que os jovens trabalhadores, mesmo
estando expostas a poeira e a substâncias tóxicas, grande maioria não fazem o uso de
máscaras de proteção.
394
O barulho constante das máquinas trabalhando é consideravelmente alto, e no
que se refere a proteção auricular observa-se a negligência quanto ao uso de
equipamentos de proteção individual, como demostra a foto 2 e 3:
Foto 2 : Fabrico de Costura em Sta. Cruz do Capibaribe
Fonte: Arquivo Pessoal.
Foto 3: Facção de costura(microempresa prestadora de serviços).
Fonte: Arquivo Pessoal
O ritmo de trabalho no processo de produção de confecções é intenso e
exaustivo. Uma vez que a produção é de larga escala, há uma constante necessidade de
grande produção semanal. Nas empresas de maior porte, a quantidade de peças
produzidas semanalmente chega aproximadamente a 40.000.
O jovem que melhor se adéqua ao trabalho nas empresas são os que “ ã
produção”, ou seja, aqueles que conseguem acompanhar o ritmo imposto pela empresa
mediante a quantidade de peças a serem produzidas semanalmente. Deste modo, um dos
395
requisitos básico para a inserção no mercado de trabalho é a experiência e prática nos
diversos processos de produção e confecção. É comum que os jovens se insiram no
trabalho de confecções seguindo uma seqüência de aprendizagem que se dá no interior
das fábricas, onde começam a trabalhar em atividades mais elementares, por exemplo,
aparar pontas de linha e embolsar camisas.
Quando mudam as atividades, geralmente as mulheres atuam na costura, ou
fazendo bordados à mão, ou ainda na venda de mercadorias nas diversas feiras. Os
homens trabalham em atividades mais pesadas, que exigem maior força física, ou o
corte e no bordão industrial, na estamparia, ou ainda no estoque de empresas maiores. A
questão da divisão sexual do trabalho, no caso do Pólo de Confecções do Agreste
Pernambucano, é de modo particular no recorte aqui feito, se coloca em constante
mudança que é própria do processo de produção das empresas locais. Desse modo, é
possível encontrar homens e mulheres atuando em diversos locais, homens atuando na
costura, mulheres atuando na comercialização, durante a gravidez as mulheres voltam
pra os trabalhos mais manuais, costura e em trabalhos que não exigem muito esforço,
entre outros.
O processo de aprendizagem e especialização não acontece em cursos
profissionalizantes, mas dentro de casa, com os pais, ou no ambiente próprio do
trabalho. São comuns jovens mulheres, de modo particular, as que são de outras cidades,
começarem em atividades domésticas e, aos poucos, na própria casa em que estão
trabalhando, irem apreendendo as diversas tarefas do processo de produção, incluindo
costura. No caso dos jovens (homens), geralmente começam no acabamento das peças
e, em seguida, aprendem a trabalhar na estamparia, bordado, ou corte.
Conforme o nível de aprendizagem do funcionário, ao longo das atividades
exercidas no processo de produção e diante da necessidade da empresa, é possível que
ocorra troca de funções. Fato que geralmente funciona com a ascensão no trabalho,
melhorando suas condições.
A remuneração salarial é feita de duas maneiras, grande maioria dos jovens
recebem o pagamento fixo, com valor baseado no salário mínino e outra parcela
recebem por produção. No que se refere ao salário fixo, geralmente é acrescido por um
valor advindo da produção realizada em hora extra, que pode ser feita ou na mesma
empresa em que se trabalha, ou ainda em outra como forma de prestação de serviço. Há
ainda jovens que combinam o trabalho em outras empresas e a produção de suas
próprias confecções.
396
No que diz respeito ao trabalho formal e regularizado com direitos sociais
garantido, devido grande maioria das unidades produtivas serem domiciliar, a
informalidade se estabelece como elemento constitutivo nas relações de trabalho,
valendo ressaltar que mesmo havendo um grande investimento para a formalização da
mão-de-obra na região, a informalidade é consideravelmente significativa do Pólo de
Confecções do Agreste Pernambucano, como demonstram as pesquisas. No entanto, a
linha que separa o formal do informal atualmente é tênue, pelo fato de que o Governo
Estadual tem investido fortemente me prol do seu desenvolvimento, sendo assim estão
sendo realizadas várias campanhas de formalização das empresas.
Sobre o desejo de autonomia dos jovens observa-se que pelo baixo salário e pelo
ritmo intenso imposto pelas empresas, muitos jovens trabalham em casa na própria
confecção, ou em outra empresa no período da noite, prestando serviço de corte,
estamparia, costura, dentre outros.
Tal realidade e demonstrada fortemente por um jovem entrevistado em
maio/2011, relevando como maioria dos jovens do Pólo de Confecções do Agreste
Pernambucano, tem sua perspectiva de futura baseada no desejo de ter sua própria
confecção:
Pergunta: Quais são os seus sonhos e seus projetos para o futuro?
Resposta: No momento eu tava pensando em fabricar pra mim.
Pergunta: E sair da empresa que você está trabalhando?
Resposta: Sim, eu tava pensando. E eu já não sai porque devo um pano lá que eu
comprei. Eu to pensando em pagar pra ele para fabricar pra mim.
Pergunta: Mas, em ter carteira assinada e fabricar, você prefere fabricar?
Resposta: Eu acho que sim.
Pergunta: Você acha que ganharia mais?
Resposta: Eu acho que ganharia mais. Eu acho que se a pessoa conseguisse uma
mercadoria boa e que venda bem, a pessoa dá pra ganhar bem [...] Só que essa
mercadoria eu to fabricado agora, eu não to tendo lucro dela ainda, porque eu comprei
o pano fiado, to fazendo ela toda, vendendo e pagando o bordado. Um pouco que eu
vendi deu pra pagar o bordão que foram feitas [...] quando eu conseguir pagar esse
pano. E o resto que vai sobrar vai ser o lucro desse pano.
Pergunta: Aí você pretende só fabricar pra você?
Resposta: É, eu pretendo fabricar. E se eu conseguir fabricar e me estabelecer, eu to
pensando em comprar uma casa e um terreno pra mim. É o próximo investimento que
397
eu vou fazer pra mim [...] Mas tem um problema tem semana que vende e tem semana
que não vende. Feira, tem que ter sorte. Tem que ter sorte, porque ninguém sabe se as
feiras, tem feira que você espera ser bem boa, não é. E tem umas que a pessoa vai por
ir mesmo, aí vai e é boa. A pessoa nunca sabe.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletir sobre a juventude e sua inserção no mercado de trabalho no Brasil é
antes de tudo deparar-se com as mais variadas faces e interfaces assumidas em seus
contextos econômicos, sociais e políticos, o que demonstra de forma mais específica os
vários sentidos assumidos pelo juventude e trabalho no referido clusters...
A juventude inserida no Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano precisa
constantemente adequar-se à precária estrutura física, das empresas, além do ritmo
intenso que é imposto pela quantidade de peças que são produzidas semanalmente. O
cansaço físico, ao término do dia, é nítido, mas muitos estendem sua jornada de
trabalho, ou prestando serviço para outras empresas, ou ainda “f b
” para si e
sua família. É ainda muito comum encontrarmos jovens que conciliam o trabalho nas
empresas de confecções com as diversas “Feira da Sulanca”.
Apesar de toda a precariedade existente e da longa jornada de trabalho, tais
atividades são vistas como um importante passo para alcançar o objetivo da maioria dos
jovens, que é tornar-se autônomo, abrindo seu próprio fabrico, deixando definitivamente
de ser empregado. Dada essa configuração, muitas das jovens mulheres, ganham ao
longo do tempo uma certa autonomia, não vendo mais só no casamento, uma forma de
ascensão social.
Diante disso, vemos que o trabalho nas unidades produtivas domiciliares de
confecções, inicia-se na infância como parte do processo de socialização, sendo uma
primeira entrada para o estabelecimento do jovem para entrada no mercado de trabalho
e pela transmissão de saberes para sua constituição de forma autônoma, dado que o
conhecimento adquirido para a produção se dá pela transmissão dos parentes ou
familiares. As políticas públicas de combate ao trabalho infantil se constituem enquanto
uma dificuldade de inserção e aplicabilidade, perante das configurações assumidas no
trabalho domiciliar.
No atual ano, várias instituições como o SEBRAE e SENAI tem se voltado para
o público jovem pólo no intuito de qualificação, criando cursos de lavanderia, corte e
costura, atendimento ao cliente, entre outros e mobilizando-se com o discurso de
398
modernização das atividades ali existentes
Por fim, concluimos que, mesmo levando em conta sua singular constituição
histórica, o desenvolvimento do Pólo de Confecções do Agreste Pernambucano, o
crescimento e o investimento tecnológico de algumas empresas e a possibilidade de
geração de emprego e renda para os jovens locais, é necessário ressaltar que as
condições de trabalho continuam precárias. A melhoria do ambiente de trabalho, na
segurança do trabalhador, na remuneração salarial e na jornada de trabalho, ainda está
longe de se tornarem realidade, pois também no Pólo cada vez mais se destrói e
precariza a força humana de trabalho e o meio ambiente a favor do capital (ANTUNES,
1999, P.34)
Referências Bibliográficas:
ABRAMO, Helena. W. Considerações sobre a tematização social da juventude no
Brasil. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n5/6, 1997.
ADORNO, Sérgio. Adolescentes, crime e violência. In: ABRAMO, Helena Wendel;
FREITAS, Maria Virgínia de; SPÓSITO, Marília. Pontes. (Orgs.). Juventude em Debate.
São Paulo: Cortez, 2002.
ANDRADE, Tabira de Sousa. A estrutura institucional do APL de confecções do agreste
pernambucano e seus reflexos sobre a cooperação e a inovação: o caso do município de
Toritama. Dissertação de Mestrado, UFPB/CCSA, 2008.
ANTUNES, Ricardo. O mundo precarizado do trabalho e seus significados. Cadernos
de Psicologia Social do Trabalho, São Paulo, v. 2, no. 1, p. 55-59, 1999.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e negação do
trabalho. Boitempo: São Paulo, 1999.
BORDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Tradução
Lucy Marinho. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
Disponível em: https://www.presidencia.gov.br/casacivil/site/static/le.htm. Acesso em:
22 de Julho/2012
CACCIAMALI, Maria Cristina. Transformações nas relações de trabalho e na política
pública. Cadernos de Ps
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