A EVOLUÇÃO DA HISTÓRIA DO HOMEM
SEGUNDO GIAMBATTISTA VICO
Rosa Maria Marangon
Membro do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da UFJF.
Formada em Letras pela UFJF.
Aluna do Curso de Especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea da UFJF.
[email protected]
O homem, pela natureza
ilimitada da mente humana, onde quer
que esta refocile na ignorância, erigese a si próprio como regra do universo.
Giambattista VICO, A Ciência Nova.
RESUMO
1
Anticartesiana... Obscura... Ignorada... Profética... Esta é a Ciência Nova, obra-prima do
pensador italiano do século XVII Giovanni Battista Vico, ou apenas Giambattista Vico, o maior filósofo
italiano, que busca demonstrar, através de uma minuciosa análise, que pode-se conhecer as etapas
pelas quais passou a humanidade. E isto pode ser provado cientificamente pela História, que é uma
ciência, e que apenas deve ser demonstrada de forma diferente das ciências naturais. A História é
representada por ciclos, cada um com suas características próprias e ela é a união de dois fatores: a
atividade humana e a Providência. Partindo do princípio indubitável de que o mundo civil foi criado
1
Trabalho apresentado, em novembro de 2007, como exigência final do Curso de Especialização em Filosofia
Moderna e Contemporânea da UFJF, sob a orientação do prof. Mário José dos Santos.
pelo homem, Vico busca conhecer o homem, suas idéias, explorando os territórios onde nascem os
mitos, as línguas e as instituições humanas. Lança-se na busca de um Método Histórico, uma vez
que a história é feita pelo homem, o homem a conhece.
Palavras-Chave: Filosofia. história, ciência, método.
RIASSUNTO
Anticartesiana... Oscura... Ignorata... Profetica... Questa è la Scienza Nuova, capolavoro del
pensatore italiano del XVII secolo Giovanni Battista Vico, o semplicemente Giambattista Vico, il
maggiore filosofo italiano, che cerca di dimostrare attraverso una inuziosa anmalisi che si può
conoscere le tappe per cui ha passato l'umanità. E ciò può essere provato scientificamente dalla
Storia, che è una scienza, e che solo deve essere dimostrata di forma diversa delle scienze naturali.
La Storia è rappresentata dai cicli, ognuno con le sue caratteristiche proprie e lei è l'unione di due
fattori: l'attività umana e la Providenza. Partendo dal principio indubitabile di che il mondo civile è stato
creato dall'uomo, Vico cerca di conoscere l'uomo, le sue idee, sfruttando i territori dove nascono i miti,
le lingue e le istituzioniumane. Si lancia nella ricerca di un Metodo Storico, una volta che la storia è
fatta dall'uomo, l'uomo la conosce.
Parole chiave: Filosofia, storia, scienza, método
ABSTRACT
Anti-Cartesian... Obscure... Ignored... Profetic... This is the New Science, masterpiece of the
Italian thinker of the XVII century Giovanni Battista Vico, or simply Giambattista Vico, the biggest
Italian thinker, who tried to demonstrate through a strict analyses that it’s possible to know humanity
steps. This can be proved scientifically by History, which is a science, and should only be
demonstrated in a different way from the natural sciences. The History is represented by cycles, which
one with its single characteristics and it’s the union of two factors: human activity and the Providence.
Starting from the indubitable principle that the civil world was created by man, Vico tries to know the
man, his ideas, exploring the territories where the myths were born, the languages, and human
institutions. He launched into a History Method finding, once history is made by man, man knows it.
Key words: Philosophy, history, science, method.
INTRODUÇÃO
Há no mundo um mistério que nem mesmo a voracidade do cotidiano
consegue tragar...
Em uma era como a nossa, voltada para o resultado e a satisfação
2
imediatos, dialogar com esses homens é entrar em contato com um outro
lado de nós mesmos – aquele lado, às vezes meio esquecido, que não se
contenta com o circunstancial, mas ainda se encanta com o mundo e que
2
Estes homens são os grandes pensadores, os grandes filósofos que dedicaram suas vidas na busca incansável de
respostas para o grande enigma do universo.
procura, ao buscar desvendá-lo, compreender seu sentido. (ABRÃO, 2004,
p. 6)
Falar em história, hoje, é um grande desafio. Os acontecimentos atingiram
tamanha velocidade que as pessoas sequer notam o correr dos dias. O imediatismo
exigido nas decisões não deixa mais espaço para a meditação e quando nos
deparamos com pensamentos tão bem elaborados, vindos de um passado tão
distante, precisamente do século XVII, somos invadidos por aquele sentimento que é
peculiar a todo filósofo, a admiração. Assim, ao aproximarmos de Vico não podemos
deixar de sentir esta curiosidade que já num primeiro instante nos encanta. Alguns
comentadores de sua obra, como Vittorio Hösle3, Patrick Gardner4 e outros, falam
que Vico chegou a ser ignorado na época do lançamento de sua obra, tendo que
vender um anel para pagar a sua publicação, mas, mesmo assim, ele jamais se
distanciou daquele pensamento original que o afastava do cartesianismo e que de
forma completamente nova inaugurava um novo método de pesquisa no campo das
ciências humanas.
O filósofo está absolutamente convencido de que tudo que o homem sente,
pensa e produz, em determinado tempo, mantém vinculação entre si, formando
unidades estruturais, e estas estruturas espirituais se modificam com o passar dos
tempos. Ele conclui que o homem percorre três etapas distintas em sua evolução, ou
seja, a idade divina, a idade heróica e a idade humana. Para provar suas convicções
vai empregar um trabalho de busca na filologia para investigar o sentido do universo
humano em seu desenvolvimento histórico. Nas suas pesquisas, Vico, além de
encontrar explicações para suas teses, faz leituras da realidade humana que serão,
mais tarde, objetos de estudo de grandes filósofos como Hegel e Marx.
Analisando a proposta de Vico na sua Ciência Nova pode-se dizer que ele foi
o primeiro filósofo a propor estudos humanos como Ciência e também mudou o
paradigma de linearidade do tempo que fazia parte da visão cristã para uma visão
cíclica que mais tarde foi amplamente estudada e aprofundada por Hegel.
3
Filósofo ítalo-germânico, professor da Universidade de Notre Dame. Éle é autor de Hegels System; O café dos
filósofos mortos (Ed.Angra/Inst.R.Lúlio) e Moral und Politik, sua obra mais importante, etc.
4
Autor de Teorias da História, nasceu em 1922. Estudou na Westminster School em Londres. Cursou História
em Oxford, licenciando-se em 1974 em Filosofia, Política e Economia. Em 1948 iniciou sua carreira de docente
universitário em Oxford.
2 - A VIDA, A OBRA E A FORMAÇÃO CULTURAL DE GIAMBATTISTA VICO
Nasceu em Nápoles em 23 de junho de 1668. Na sua Autobiografia5 descreve
sua filiação com as seguintes palavras: “... filho de honrados pais, que deixaram
muito boa fama de si. O pai era de humor alegre, a mãe, de temperamento muito
melancólico; assim ambos concorreram para a natureza deste seu filho”.6 Foi aluno
dos jesuítas e por eles estimulado a intensas leituras, primeiramente de lógica e
depois de metafísica. Seu pai queria que se tornasse um advogado e ele se formou
talvez em Salerno entre 1693 e 1694.
Tendo aceitado o cargo de preceptor do filho de um nobre napolitano,
Domenico Rocca, marquês de Vatolla, passa nove anos em relativa solidão, num
castelo onde o marquês vivia em Cilento, de 1686 a 1695. Neste período ele vai se
dedicar ao estudo da história e do direito romanos e da filosofia grega sem, contudo,
deixar de conhecer as obras mais importantes daquele momento histórico. Ao
retornar a Nápoles passa a freqüentar os melhores salões literários onde começa a
ser admirado por sua poesia e pelo grande conhecimento que demonstra. Em 1669
torna-se professor de Retórica na Universidade de Nápoles e neste mesmo ano se
casa. Pai de oito filhos leva uma vida apertada financeiramente, porque o cargo que
ocupa na Universidade é de baixa remuneração.
Um dos encargos de Vico, na Universidade, era fazer a abertura do ano
acadêmico. Entre os anos de 1699 e 1708 ele faria sete pronunciamentos e o último
é o mais importante. Ele vai falar sobre os métodos de estudo daquele tempo
relacionando-os com os dos tempos passados. Neste pronunciamento ele torna
pública sua posição anticartesiana. Analisando a forma de estudo acadêmica, ele
indaga qual seria a melhor: a moderna ou a antiga forma. Respondendo, Vico vai
condenar a modernidade uma vez que ela, baseada no ensino crítico e na arte de
julgar, inibe no aluno a criatividade o que o incapacita para a vida prática. Critica os
métodos de ensino da física, da mecânica, da medicina e a utilização do mesmo
método para as ciências naturais e humanas. Defende a ligação entre a erudição
5
Frederico Gaymonat comenta em sua obra Storia del Pensiero Filosofico e Scientifico que esta obra é um
documento muito interessante, mas não merece muita fé; foi de fato escrita quando Vico tinha pouco menos de
cinqüenta anos e é explicável que ele não recordasse mais de todos os detalhes de sua própria infância. Que ela
representa de fato um desejo do autor de apresentar um quadro de sua própria vida, em particular de sua própria
formação, que ele via a partir das novas posições agora maduras em longos anos de estudo.
6
Prof. Dr. Antonio Lázaro de Almeida Prado em sua tradução de 1979.
filológica e histórica e entre o conhecimento abstrato e dedutivo. Para Vico, a
Filosofia não deve isolar-se no plano das puras abstrações lógicas, mas deve
mergulhar no terreno concreto dos produtos culturais humanos.
Em 1723, Vico candidata-se a professor de Jurisprudência na Universidade
de Nápoles, mas foi recusado. Este fato deixou-o profundamente entristecido. Assim,
desiludido com a carreira universitária, passa a dedicar-se à escritura de sua obra
prima, Ciência Nova, que terá sua primeira edição em 1725. Foi reescrita e em 1730
sai a Segunda Ciência Nova. Em 1735, é indicado ao cargo de historiógrafo real e
assim começa a receber um salário que é o dobro daquele recebido na
Universidade. Agora, a fama do filósofo vai se consolidando e também a sua
situação financeira. Em 1744 é lançada a terceira edição da Ciência Nova, mesmo
ano em que a morte o colhe, em sua terra natal, a 23 de janeiro de 1744.
As leituras de Platão, Tácito, Bacon e Grotius foram de fundamental
importância para a formação do seu próprio pensamento. Vico se preocupava com a
natureza e a história do direito, da poesia, do mito e da linguagem. Também o
anticartesianismo foi um fator essencial do seu pensamento. Junto aos que
difundiam as conquistas científicas e filosóficas dos europeus, havia ainda na Itália à
época de Vico uma tradição de erudição acadêmica de gramáticos e latinistas, que
não conseguiam superar seus antecessores da Renascença. Vico não vai se aliar a
nenhuma corrente, terá um pensamento original e revolucionário que será ignorado
pelos pensadores europeus da época.
Apesar desta rejeição, Vico exercerá influência sobre alguns pensadores
italianos do seu tempo como Mário Pagano (jurista e político), Gaetano Filangieri
(jurista e pensador), Gian Domenico Romagnosi (jurista e filósofo), Vincenzo Cuoco
(escritor, jurista, político e economista) e seu filho Gennaro que será seu sucessor
]na Universidade de Nápolis. No século XIX criou-se um clima favorável ao seu
pensamento e ele foi admirado e citado por Thomas Arnold e Samuel Coleridge,
escritores ingleses. Na França, o historiador Jules Michelet considerava-o seu
mestre e divulgou a Ciência Nova, traduzindo suas passagens mais importantes. Na
Alemanha, Karl Marx apontou-o como precursor de muitos estudos históricos do
século XIX.
Entretanto, seus méritos só foram plenamente reconhecidos no século XX
quando o filósofo Robin George Collingwood chamou atenção para sua obra e foi
profundamente influenciado por ela. O mesmo acontecendo com Benedetto Croce7,
possivelmente seu mais importante intérprete.
3 - O PANORAMA EUROPEU QUE MARCOU A TRANSIÇÃO DA IDADE MÉDIA
PARA A IDADE MODERNA
A transição da mentalidade medieval para o pensamento científico moderno
não foi um processo súbito, tranqüilo e sem resistências. Muitas forças ligadas ao
passado medieval lutaram bravamente contra todas as transformações que surgiam.
3.1 - RENASCIMENTO
No século XIV inicia na Europa e, principalmente, na Itália, um movimento que
mais tarde passaria a ser conhecido como Renascimento. Este movimento foi uma
busca pelos valores da Antigüidade clássica. Textos greco-romanos eram leituras
onde os intelectuais buscavam redescobrir valores e tradições a partir das quais
iriam construir um mundo diferente daquele em que viviam. A ciência e a técnica
levaram este homem a lançar-se também ao mar em busca de novas descobertas.
Por causa da sua posição geográfica, a Itália controlava o comércio no
Mediterrâneo e era a região muito rica. Foi aí que a atividade mercantil tomou corpo
com a criação de bancos, seguros e outros mecanismos que a tornavam mais ágil. A
criação das cidades-Estado impedia a unificação nacional e essas cidades eram
controladas por famílias burguesas muito poderosas, como os Visconti, os Sforza e
os Medici. Estas cidades tinham também outros motivos para se tornarem o berço
do Renascimento, além da riqueza que permitia a contratação de sábios, filósofos,
cientistas e artistas, a proximidade da Itália com Constantinopla fez com que se
tornasse refúgio daqueles que fugiam da invasão turca trazendo consigo a rica
tradição intelectual e cultural do Império Romano do Oriente, incluindo-se aí os
textos gregos até então desconhecidos no Ocidente.
7
Benedetto Croce nasceu em Pescasserolli, na região dos Abruzzi, em 25 de fevereiro de 1866, mas passou a
maior parte da vida em Nápolis. Aos dezesseis anos perdeu os pais num terremoto em Casamicciola, experiência
que o deixou marcado para o resto da vida, caracterizada pela solidão. Estudou Direito em Roma e, de volta a
Nápoles, depois de estudos históricos e filológicos, dedicou-se por completo à filosofia. (Enciclopédia Britânica
do Brasil Publicações Ltda)
Até o Renascimento o Ocidente não conhecia Platão. Sabia-se apenas
através de alguns comentários, mas suas obras eram desconhecidas. Mas, alguns
manuscritos gregos, comprados em Constantinopla por uma das famílias
importantes da Itália, levados a Florença por volta de 1430, trouxe entre eles a obra
completa de Platão. Seus Diálogos foram traduzidos e nesta época foi também
fundada a Academia florentina, influente centro de filosofia. A partir deste momento
o pensamento toma um novo rumo. Se, na Idade Média, a Escolástica incorporou o
aristotelismo ao cristianismo, no Renascimento, a oposição às idéias medievais se
fez a partir de uma “reabilitação” de Platão.
Nas artes, nas ciências e na filosofia surgem novas idéias, concepções e
valores. A fé cristã no teocentrismo se transforma numa visão antropocêntrica,
valorizando a obra humana. Isso levou ao desenvolvimento do racionalismo e de
uma filosofia laica que acredita na capacidade da razão de intervir no mundo,
organizando a sociedade e aperfeiçoando a vida humana. Assim, inspirando-se no
Humanismo8 e em seus principais atributos, a razão e a liberdade, surge o
Renascimento.
O homem renascentista busca moldar o mundo à sua imagem e
semelhança, como um empreendimento seu. Mas essa é também uma
experiência dolorosa. Ao descobrir a própria individualidade frente à ordem
do mundo, ele não se conforta mais com a certeza medieval de uma vida
cujo princípio e fim encontra-se em Deus, mas este parece cada vez mais
indiferente ao mundo. (ABRÃO, 2004, p.135)
O retorno à Antiguidade, que inspira o humanismo renascentista, confere-lhe
agudo senso de historicidade, e disto careciam as culturas medievais, construídas
em função do ideal de intemporalidade. Há, por parte dos humanistas, um desejo de
recuperar a eloqüência e a linguagem genuína da época clássica que havia sido
deformada na Idade Média. Isto, entretanto, não quer dizer que se tenha
abandonado completamente as questões cristãs medievais, o que se torna claro
8
Como primeira tentativa coerente de elaborar uma concepção do mundo cujo centro fosse o próprio homem,
pode-se considerar o humanismo a origem de todo o pensamento moderno. Ele foi um movimento intelectual
que germinou durante o séc. XIV, no final da Idade Média e alcançou pleno desenvolvimento no Renascimento
orientado no sentido de reviver os modelos artísticos da antigüidade clássica, tidos como exemplo de afirmação e
independência do espírito humano. No final da I. Média ocorrera um notável crescimento da burguesia urbana.
Nobres e burgueses enriquecidos adquiriram condições de dar à cultura um apoio antes exclusivo da igreja e dos
grandes soberanos. A necessidade de conhecimentos que habilitassem os burgueses a gerir e multiplicar suas
fortunas também os impelia na direção da cultura. Juntaram-se duas linhas com um mesmo fim: maior
valorização da cultura e necessidade de uma educação mais prática do que a teologia medieval podia
oferecer...Esses estudos compreendiam a leitura de autores antigos, o estudo de gramática, retórica, história e
filosofia moral. A partir do séc. XV deu-se a esses cursos o nome de studia humanitatis ou “humanidades”, e aos
que os ministravam Humanistas... (Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda)
quando observamos o fundo religioso que ainda existe nas obras artísticas deste
período. Existe no Renascimento uma associação do espírito científico nascente e
de um misticismo de origens diversas.
O homem agora está disposto a questionar os mistérios do mundo, ele
aguçou seu espírito de observação sobre a natureza, dedicou mais tempo à
pesquisa e às experimentações, deixando a mente mais aberta ao livre exame do
mundo.
3.2 - A NOVA RELAÇÃO DO HOMEM MODERNO COM O MUNDO OS SÉCULOS XVI E XVII
As profundas mudanças ocorridas na vida e na visão de mundo do homem
renascentista europeu vão sendo moldadas, também, a partir das mudanças
ocorridas na área científica. Os horizontes alargaram-se com o desenvolvimento da
arte da navegação, a descoberta do caminho marítimo para as Índias, a descoberta
do continente americano e do circuito para uma volta completa pelo mundo. A
natureza, revalorizada, era mostrada como fonte de vida e beleza e não mais como
o perigoso mundo material, fonte de pecado. As regras da vida cristã estavam
enfraquecidas e os rigores da moral católica não eram mais obedecidos com tanta
severidade. Os homens agora se viam sob novas coordenadas e não podiam mais
seguir a orientação teocêntrica que prevalecera durante séculos. A Reforma
Protestante9 iniciada por Lutero e depois por Calvino abala profundamente as bases
religiosas. O que era visto como mero local de tentações agora é objeto de
conhecimento científico. O estudo experimental dos fenômenos iniciados no século
XIII ganha contornos definidos com os trabalhos de Leonardo da Vinci (1452-1519),
e de outros pensadores que prenunciam a física de Galileu e Newton, desenvolvida
no século XVII. Copérnico (1473-1543) formula a teoria heliocêntrica, Tycho Brahe
(1546-1601) faz observações sobre o movimento dos astros e Kepler (1571-1630)
prepara caminho para a descoberta da lei da gravitação universal de Newton.
Nesta época os conflitos foram inevitáveis, porque tantas novidades
significavam uma mudança radical de ordem espiritual, social e econômica que há
séculos constituía o cerne da vida européia. Os setores tradicionais, ameaçados,
9
Iniciada por Lutero com seu desafio aos legados papais e à excomunhão se caracteriza pela oposição à doutrina
e à disciplina da igreja romana.
reagiram e enfrentaram as inovações, as vezes com violência, levando à morte
alguns representantes da nova mentalidade.
Um exemplo seria o Tribunal da
Inquisição10, órgão da Igreja, encarregado de descobrir e julgar os responsáveis pela
propagação de heresias, isto é, concepções contrárias aos dogmas dos católicos.
Foi o que aconteceu com Giordano Bruno (1548-1600), uma das figuras mais
importantes da Renascença italiana, condenado à morte na fogueira por contestar o
pensamento católico que tinha como um dos pontos básicos a crença que o planeta
Terra era o centro imóvel do universo.
Porém toda a exuberância cultural e científica experimentada pela Europa e
especificamente pela Itália no período do Renascimento passa ao obscurantismo por
mais de dois séculos, de meados do século XVI até o século XVIII. Os grandes
artistas italianos desta época partiam dali para outros países europeus em busca de
apoio que na maioria das vezes lhes era oferecido. O pensamento renascentista já
havia se alastrado na Europa e estava produzindo muitos frutos fora da Itália. Com o
triunfo da Contra-Reforma11 que propiciou o poder da igreja sobre a Península, a
condenação da teoria heliocêntrica de Copérnico, além da censura a Galileu, que o
obrigou a retratar-se porque suas concepções eram contra o entendimento medieval
do mundo físico, geraram muita insegurança por causa das perseguições religiosas.
Isto fez com que a Itália buscasse o isolamento e se mantivesse longe do
pensamento de vanguarda que agora era desenvolvido na França, Inglaterra, etc. e
houve nesta época um florescimento dos estudos histórico-eruditos, especialmente
aqueles que a ajudassem a manter a união religiosa. Preocupando-se mais com sua
situação interna e esquecendo-se do que se desenvolvia nos países ao seu redor, a
Itália passou a desempenhar um papel secundário na história das idéias.
Nesta época, na Europa, precisamente na França, o pensamento que se
destacava como original e inovador era o de René Descartes (1596-1650). Este,
temendo perseguições religiosas, foi muito cauteloso na exposição de suas idéias.
Apesar de ter até se autocensurado para evitar problemas, tanto com os católicos
quanto com os protestantes, o que ele publicou foi suficientemente vasto e valioso.
10
Tribunal da Inquisição: Criado em 1232 pelo papa Gregório IX. Sua ação estendeu-se por vários reinos
cristãos – Itália, França, Alemanha, Portugal, e especialmente Espanha. Com o decorrer do tempo reduziu suas
atividades, que somente foram reativadas em meados do século XVI diante do avanço do protestantismo.
11
Contra-Reforma: Reação oficial da Igreja católica para deter a propagação da Reforma protestante e instaurar,
de forma orgânica e oficial, uma Reforma católica, o que vai ocorrer através do Concílio de Trento que se
desenvolve em três etapas durante 1545 a 1563.
Para Descartes a única verdade absolutamente firme, certa e segura era que
seus pensamentos existiam (Cogito ergo sum) e que ela deveria ser adotada como
princípio básico de toda a sua filosofia12. Este cogito abrange tudo que afirmamos,
negamos, sentimos, imaginamos, cremos e sonhamos. Ele foi um racionalista
convicto. Recomendava que desconfiássemos das percepções sensoriais, elas
poderiam nos levar ao erro. Dizia que o verdadeiro conhecimento das coisas
externas devia ser conseguido através do trabalho lógico da mente. Ele considerava
que só os matemáticos13 tinham, no passado, conseguido encontrar algumas razões
certas e evidentes.
A obra de Descartes passa a ser estudada na Itália por intermédio de um
professor universitário de Nápoles chamado Tommaso Cornelio, matemático,
astrônomo e médico. O cartesianismo foi se expandindo e muitos se aliaram a este
pensamento. Entretanto, Vico, se manteve à margem, sustentando suas idéias e se
colocando numa postura anticartesiana.
O contexto histórico no qual se movia o autor da Ciência Nova, como
acabamos de relatar, foi uma fase de profundas transformações e por isto mesmo
muito rica e de onde brotaram muitas idéias que até hoje discutimos sem jamais
conseguirmos esgotar qualquer assunto proposto.
4 - UMA NOVA CIÊNCIA
Ao
iniciarmos
a
leitura
da
principal
obra
de
Vico,
“La
Scienza
Nuova”,realmente nos surpreendemos com a forma incomum que ele usa para dizer
o que pensa. Mas, não é sem motivos que sua escrita seja tão criteriosa no que se
refere até mesmo a pequenos detalhes que são amplamente explicados para que o
leitor não tenha motivos para interpretações que não sejam aquelas que ele
realmente deseja que sejam feitas de sua obra. Ele, como quer estabelecer as bases
de uma ciência reconhece que não pode deixar nenhuma questão em aberto, pois
uma ciência deve dar conta do universal. A ciência que ele pretende é uma ciência
humana, ou seja, a História, que até este momento era escrita considerando fatos
que se baseavam nas explicações religiosas e por isto mesmo fatos inquestionáveis.
12
Na filosofia pré-cartesiana o ser é quem propõe a verdade – ele se impõe através das sensações. Descartes
inverte este paradigma quando afirma que as sensações nos enganam , o cogito , as idéias, nos remetem ao ser.
13
Descartes foi um grande matemático que deixou importante contribuição: a criação da geometria analítica que
tornou possível a determinação de um ponto de um plano através de duas linhas perpendiculares fixadas
graficamente – as coordenadas cartesianas.
O desenvolvimento científico do Renascimento e os grandes questionamentos
do homem renascentista vão também despertar em Vico uma consciência reflexiva
no que se refere ao homem. Este homem que não aceita mais o determinismo como
única saída para suas angústias, este homem que quer ser o dono do seu destino e
que quer ele mesmo moldar a natureza que o rodeia segundo suas necessidades
mais íntimas, sem, contudo, imergir no caminho sem volta que o levaria a uma
encruzilhada impondo-lhe uma direção inversa, completamente oposta ao caminho
que leva a Deus. O filósofo vai justificar a organicidade das coisas terrenas através
da Providência Divina que age nas mentes humanas e que, inconscientemente, o
homem trilha o caminho que lhe satisfaz pela utilidade, para conservar a justiça e
viver em sociedade. Assim ele propõe que se contemple o mundo a partir das
mentes humanas - Metafísica, e não apenas através dos recursos naturais:
... a Metafísica, como que em ato de êxtase, o contempla, qual o têm
contemplado , até agora, os filósofos, ou seja, por sobre a ordem das
coisas naturais. Justamente essa a razão de ela (a Metafísica), nesta obra,
elevando-se sempre mais altaneira, contemplar em Deus o universo das
mentes humanas, ou seja, o universo metafísico, manifestando assim a sua
providência no universo das mentes humanas, que é o mundo civil ou
mundo das nações. (VICO, 2005, p. 7)
Ao comentar a obra de Vico, o filósofo alemão Vittorio Hösle diz que é
realmente curiosa a atitude do filósofo em relação ao pensamento do seu próprio
tempo. Além de ignorar (propositalmente) grandes historiadores, se retira do
pensamento a ele contemporâneo e elabora seu próprio sistema filosófico.
Esta atitude talvez se deva ao fato de Vico não ter conseguido realizar a
carreira acadêmica tão almejada, pois só conseguira lecionar Retórica, devido ao
seu vasto conhecimento em todas as áreas, inclusive a filologia, enquanto seu
sonho era se tornar professor de Jurisprudência14, cargo nunca alcançado. Este fato
contribuiu para seu isolamento intelectual. Outra razão seria a sua grande
hostilidade em relação às ciências naturais e ao cartesianismo que, segundo ele,
levavam os homens a uma “nova barbárie da reflexão”. Por isto Vico preferiu estudar
14
Disciplina que, nesta época, na Itália, representava maior prestígio porque se estudava muito a respeito do
direito que deveria ser tratado de forma prática e não mais teórica nestes tempos novos. Vico certamente,
acreditava que suas teorias poderiam ser de grande utilidade neste campo.
os clássicos, os humanistas e os grandes filósofos do século XVII, como Spinoza15 e
Hobbes16.
Vico não concordava com o tratamento dado aos fatos humanos pelos
filósofos do seu tempo. Suas teses se opunham às principais linhas do Iluminismo,
ramo do pensamento europeu que no século XVIII procurava estudar de maneira
análoga as ciências humanas e os procedimentos das ciências naturais. Ele achava
que deveria haver um processo metodológico diferente para tratar estas duas áreas,
para ele opostas, do conhecimento.
A desilusão profissional e a discordância de suas idéias com o pensamento
racionalista de Descartes servirão para que Vico invista cada vez mais na
elaboração de “sua ciência” que terá como bases inspiradoras quatro pensadores
fundamentais: Platão e Tácito entre os antigos e Bacon e Grotius além de outros
autores que não foram citados na sua Autobiografia tais como Lucrécio, Maquiavel e
Spinoza. Hösle diz que a genialidade de Vico está em integrar as teorias de grandes
materialistas e naturalistas em um sistema “idealístico” de matriz platônica. Vico vai
dizer na Dignidade 5:
A filosofia para aproveitar ao gênero humano, deve soerguer e
governar o homem decaído e débil, sem lhe distorcer a natureza nem
abandoná-lo à sua corrupção.
...Admitem-se na escola desta ciência os filósofos políticos, máxime
os platônicos, que se põem de acordo com todos os legisladores nestes três
pontos principais: o exercer-se da divina providência, o deverem-se moderar
as paixões humanas, convertendo-se em virtudes humanas, e o serem
17
imortais as almas humanas. E, em virtude destes fatos, esta dignidade os
há de constituir nos três princípios desta Ciência. (VICO, 2005. p.46)
5 - AS INFLUÊNCIAS NA FILOSOFIA VIQUIANA
15
Defensor da liberdade de pensamento. É sua a pioneira proposta de interpretar historicamente os textos
bíblicos, pois acreditava que o homem se salva pela filosofia, verdade da religião. Seu espírito libertário
manifestou-se também na crítica da monarquia e na defesa do regime democrático.
16
Para Hobbes, a igreja cristã e o estado cristão formavam um mesmo corpo, encabeçado pelo monarca, que teria
o direito de interpretar as Escrituras, decidir questões religiosas e presidir o culto. Segundo ele a primeira lei
natural do homem é a de autopreservação, que o induz a impor-se sobre os demais, por isso a vida seria “uma
guerra de todos contra todos “ na qual o homem é o lobo do homem”. Para construir uma sociedade o homem
tem que renunciar a parte de seus direitos e estabelecer um “contrato social”, garantido pela soberania. Esta, para
ser efetiva, tem que recair sobre uma só pessoa, donde a conveniência da monarquia absoluta. Para Hobbes a
fonte do poder monárquico não residia no direito divino, mas na manutenção do contrato social.
17
Aforismo: texto curto e sucinto, fundamento de um estilo fragmentário e assistemático na escrita filosófica,
geralmente relacionado a uma reflexão de natureza prática ou moral. (Houaiss)
Como grande leitor dos clássicos, Vico buscará inspiração nos dois maiores
poemas épicos da Grécia antiga, Ilíada e Odisséia, obras atribuídas a Homero para
explicar como se deram as origens dos homens e seu desenvolvimento. Além destas
obras, vai se inspirar em Platão. Vico vai defender uma educação global e esta é
uma influência atribuída a Platão que também defendia a universalidade do saber e
a unidade das várias esferas do conhecimento. Tácito, famoso historiador romano,
além de muitas outras obras, escreveu dois grandes tratados, Histórias e Anais. Eles
foram escritos pouco antes de sua morte e perfaziam um total de trinta livros. Ali, ele
descreve e analisa a história do Império Romano a partir da morte de Augusto.
Entre os modernos, os que mais o influenciaram foram Bacon e Grotius.
Bacon foi o fundador do método empírico, indutivo, como nova maneira de estudar
os fenômenos naturais. Hugo Grotius, jurista holandês, considerado o fundador do
direito internacional, cujas idéias exerceram influência sobre o pensamento
racionalista e também iluminista do século XVII. Além destas influências foram
também importantes para o pensamento de Vico os filósofos: Spinoza e Hobbes.
Finalmente, algo que incomodou Vico foram as teorias de Descartes. Assim, a
base de sua filosofia será composta pela oposição ferrenha que ele faz ao
cartesianismo, ou seja, à pretensão racionalista que quer subordinar todas as coisas
ao conhecimento matemático, o que levaria todas as demais esferas do
conhecimento à evidência da razão abstrata. Isto vai colocar em xeque todo o
pensamento viquiano, porque ele entende que existem certezas humanas que não
podem ser demonstradas. Podem-se citar exemplos como a retórica, a poesia, a
história e a própria prudência que regula a vida prática, não podem se basear em
verdades matemáticas, pois são crenças apenas verossímeis, não podendo ter
garantia infalível de verdade. Ele insere, desta forma, o que é provável, no campo da
indagação filosófica. Mas, Vico não se detém apenas nisto, ele vai além, buscando
mostrar que a base da filosofia cartesiana também tinha seus defeitos. Para
demonstrar todas as suas idéias, Vico propõe uma nova ciência, onde expõe os
problemas essenciais e suas soluções no terreno da história. Suas idéias, mais
tarde, servirão de base para o positivismo e o historicismo.
6 - A CIÊNCIA NOVA
A Ciência Nova é uma tentativa de fundar uma nova ciência sobre a natureza
comum dos diversos povos e de entender as leis que determinam o desenvolvimento
das várias culturas. Assim a história assume um estatuto fundamental e deve-se
entender que ela não é um amontoado confuso de fatos, mas um conjunto deles,
que segue determinadas leis e que se desenvolve segundo alguns princípios.
Como dissemos anteriormente, Vico foi um grande estudioso dos clássicos e
se declarou anticartesiano. Sua grande obra Ciência Nova, cujo título é Princípios de
uma Ciência Nova acerca da natureza comum das nações, tem sua primeira parte
escrita sob a forma de aforismos aos quais ele chama de Dignidades. São axiomas,
o que é definido no dicionário eletrônico Houaiss como sendo “premissa considerada
necessariamente evidente e verdadeira, fundamento de uma demonstração, porém,
ela mesma indemonstrável, originada, segundo a tradição racionalista, de princípios
inatos da consciência ou, segundo os empiristas, de generalizações da observação
empírica...” Outros definem axioma como aquele princípio evidente por si mesmo. O
matemático grego Euclides definiu axioma como sendo aquela noção comum ou
afirmação geral aceita sem discussão, cujo exemplo seria “a parte é menor que o
todo”.
Entretanto, apesar de Vico querer com isto enfatizar toda a clareza e
objetividade de sua obra, ele coloca, no início, uma gravura à qual vai chamar de
Idéia Geral da Obra e, em seguida, vem o primeiro texto que é “Explicação da
Gravura Ilustrativa proposta no frontispício e que serve de introdução à obra”. Nesta
explicação ele vai expor tudo que representa cada componente daquela figura que,
segundo o autor, equivale ao conteúdo de sua obra, a qual o leitor poderá
compreender mesmo antes de ler, e ele a chamou de Tábua das coisas civis.
Esta ciência dos fatos humanos, isto é, a História, tem como disciplinas
mais importantes, a Filosofia e a Filologia. Na Filosofia se encontra a sabedoria
ideal, a ciência do verdadeiro, da idéia, e seus temas são as idéias eternas de
justiça e a incidência de tais idéias na mente humana. Já, a Filologia, faz parte da
sabedoria vulgar, onde encontramos a ciência do fato, do certo, tendo como temas
as tradições dos povos e a linguagem destes povos. Vico busca uma junção destes
dois campos: o verdadeiro e o real. Vico está convencido de que só podemos ter
ciência daquilo que fazemos. Tudo que fazemos é o verdadeiro. O grande artífice é
Deus que tudo fez e, portanto, tudo conhece. Ao homem, resta o mundo da história,
com suas instituições, guerras, comércios, costumes e mitos. Da História, o homem
pode ter ciência, uma vez que esta foi feita por ele. Assim, Vico vai se comprometer
a esclarecer os elementos, princípios e método desta “ciência nova”.
6.1 - ELEMENTOS
Este grande pesquisador das coisas humanas nos diz que devemos
mergulhar nos aspectos mais concretos da história a fim de conhecer o homem. O
material usado por ele é, sobretudo, a linguagem, a qual conserva em seu seio os
mitos, as fábulas, as tradições e expressões do espírito humano. Ele procura, assim,
uma união íntima entre filologia e filosofia.
Devemos , ademais, destacar que na presente obra, com uma nova
arte crítica, de que até agora carecíamos, ingressando na pesquisa da
efetiva realidade acerca dos fundadores das mesmas nações (nas quais
terá decorrido mais de mil anos para se chegar aos escritores de que se
ocupou a crítica até hoje), por isso mesmo há de aqui a filosofia haver-se
com a filologia, que é a doutrina de todas as coisas que dependem do
humano arbítrio, quais, por exemplo, todas as histórias das línguas, dos
costumes e dos fatos pacíficos ou bélicos dos povos. Com tal doutrina, por
efeito da lamentável obscuridade de seus motivos e da quase infinita
variedade de seus efeitos, a filosofia como que sentia um horror em
racionalmente entreter-se. E só a reduz em forma de ciência ao descobrir
nela o projeto de uma història ideal eterna, sobre a qual fluem no tempo as
histórias de todas as nações. Dessa forma, e em virtude deste outro seu
relevante aspecto, converte-se esta Ciência em uma filosofia da autoridade.
(VICO, 2005, p. 11)
Vico vai fazer uma leitura da história a partir de uma síntese entre universal e
particular, entre abstrato e concreto, entre ideal e factual e, portanto entre filosofia e
filologia. A filosofia é vazia sem a filologia e a filologia é cega sem a filosofia.
Contrário a uma filosofia abstrata, cujo exemplo é o racionalismo cartesiano, ele
queria ser o teórico daqueles princípios universais cuja validade e fecundidade deve
emergir da capacidade de explicar a história em suas fases principais.
A filologia, não pode existir sem um arcabouço teórico. Em meio a tantas
análises desconexas e fragmentárias a que tinha se reduzido ainda pode tornar-se
uma ciência. Para ele, não existem fatos brutos, neutros, desprovidos de implicações
teóricas. Montar este quadro teórico e utilizá-lo na atividade filológica significa
transformá-los em ciência rigorosa.
A filologia tem por finalidade a definição dos fatos que vão das instituições
civis e religiosas às várias linguagens, às mitologias, à poesia, a tudo o que se
inscreve nos fragmentos da antiguidade ou material documentário de natureza
histórica. Ela é a doutrina de tudo que foi produzido nas comunidades humanas, dos
costumes mais díspares às linguagens e às instituições religiosas e civis. Mas seria
impossível ou incompleta a definição dos fatos se ela não se sustentasse no
“verdadeiro” da filosofia, se não se guiasse por um projeto teórico que possa
confirmar ou desmentir suas teses.
Podemos, resumidamente, dizer que, para Vico, a filosofia e a filologia são as
guias da Ciência Nova. A filosofia, representando a sabedoria ideal, tem por objeto o
verdadeiro, enquanto a filologia, a sabedoria vulgar, ocupa-se do certo, isto é, o fato.
Para o filósofo, verdade e certeza, idéia e fato, devem se juntar e se converterem
transformando consciência em ciência. Assim fica evidenciado o caráter empíricoteórico do discurso de Vico, onde filosofia e filologia são indissociáveis. Afirma
também a influência de Platão, destacando “o homem como deve ser”, não podendo
ser separada da influência recebida de Tácito, “o homem como tem sido”.
O verdadeiro que a filosofia elabora e oferece à filologia se articula
em três núcleos teóricos: a idéia eterna resultante do conjunto de valores
(justiça, verdade, etc.) tematizados por Platão; a incidência de tal idéia na
mente humana, à qual as pesquisas empíricas devem finalmente chegar; a
reconstrução da gênese que permitiu o nascimento de um fato histórico
importante, nele indicando as modificações provocadas sobre os mesmos
homens que foram seus atores.
O certo que a filologia elabora e oferece à filosofia move-se em dois
âmbitos: as tradições, entendidas como expressão do vulgo, de seus
costumes, crenças e instituições; a linguagem, uma vez que o nexo entre
língua e vida é constante e radical, razão pela qual não é possível entender
uma sem a outra. (REALE e ANTISERI, 2005, p. 198)
6.2 - PRINCÍPIOS
.
Em sua obra, Vico vai dizer que o primeiro dever de quem cultiva a Ciência
Nova é reconstruir uma língua que preceda a formação de todas as linguagens
históricas, ”uma língua mental comum a todas as nações, com base na qual se pode
compor um vocabulário mental comum a todas as diversas línguas faladas, mortas e
vivas18“. Esta sintaxe e este léxico mental constituem a estrutura fundamental da
vida psíquica do homem e presidem o desenvolvimento gradual de seus
sentimentos, das suas fantasias e de seus pensamentos.
Independente dos lugares e das culturas nas quais nascem, os homens têm,
portanto, alguma forma comum de sentir e de pensar, e então de agir, segundo o
grau de desenvolvimento histórico no qual se encontram. É através destas
comunidades que a história revela suas verdades. “Idéias uniformes que nascem
entre povos desconhecidos entre si devem ter um motivo comum de verdade19”.
Segundo este critério, Vico demonstra a existência de um direito natural reconhecido
por todas as nações, assim como os três usos: a religião, os matrimônios solenes e
a sepultura dos mortos, presentes entre todos os povos, quase três “sensos comuns”
18
19
Ciência Nova, 2005. Dignidade XXII, p.53.
Idem. Dignidade XIII, p.48.
do gênero humano, tanto que eles podem valer como princípios gerais da Ciência
Nova. Ele diz que observou todas as nações; que elas, mesmo afastadas por
imensos espaços de lugar e de tempo e fundadas de maneiras diversas, guardam
entre si estes três costumes. Por isto, ele os considera eternos e universais e os
princípios primeiros da Ciência Nova.
Assim sendo, depois do primeiro (referente à Providência Divina) e do
segundo (que trata dos matrimônios solenes), a crença universal na
imortalidade da alma (que se iniciou com as sepulturas) é o terceiro dos
três princípios sobre que discorre esta Ciência. (VICO, 2005, p.17)
6.3 – MÉTODO
Os homens primeiramente sentem sem se aperceberem, a seguir
apercebem-se com o espírito perturbado e comovido, e, finalmente refletem
com mente pura. (VICO, 2005, p. 66)
Vico estava certo de que, para sustentar suas idéias, deveria enfrentar
polemicamente as idéias cartesianas. Como precisava deixar claros os princípios
nos quais baseava sua ciência, a primeira oposição dele ao cartesianismo foi em
relação ao critério de verdade que Descartes afirmava em sua teoria do
conhecimento. Para Descartes o conhecimento matemático era o único possível e
Vico se opunha a isto.
Ele critica o método analítico cartesiano tanto no plano científico quanto no
filosófico. No plano científico, este método, inspirado na matemática, e totalmente
abstrato, é privado do controle factual das hipóteses científicas; as verdades físicas,
que não são produzidas pelo homem, não são, de fato, demonstráveis, com a
mesma credibilidade dos axiomas geométricos, que são criação humana. No plano
filosófico, Vico diz que com o Cogito cartesiano pode-se chegar à consciência da
existência, isto é, à aceitação do fato, mas não à ciência que, ao invés, refere-se às
causas e aos elementos que constituem o fato; além disso, o método cartesiano
fecha-se ao acesso dos fatos verossímeis, aqueles que estão entre o verdadeiro e o
falso e são, na realidade, a verdade humana por excelência, na qual se inspiram a
poesia, a arte e a história.
Segundo Collingwood, Vico reconhece o saber matemático proposto por
Descartes, o que ele não concorda é que seja este o único método capaz de levar o
homem ao conhecimento. Que mesmo as idéias claras e distintas propostas por
Descartes são garantia de conhecimento. Podemos estar enganados e essas idéias
só provam que acreditamos nelas e não que são verdadeiras. Vico diz que o que
busca é um princípio que permita distinguir aquilo que pode ser conhecido daquilo
que não pode.
Ele vai buscar sustentação para suas teorias no verum et fatum convertuntur,
ou seja, a condição para se conhecer verdadeiramente qualquer coisa é que seu
conhecedor a tenha criado. Desta forma Vico conclui que a natureza só é inteligível
por Deus que a criou e que a matemática é inteligível pelo homem porque é
composta de ficções ou hipóteses criadas pelos matemáticos. A História, que é algo
feito pelo espírito humano, está especialmente apta a ser objeto de conhecimento do
homem. Reconhece no homem o verdadeiro criador de seu desenvolvimento
histórico, logo, esta criação é um fato humano eminentemente cognoscível pelo
espírito humano.
Vico acredita que o historiador pode reconstruir, no seu espírito o processo
pelo qual as coisas foram criadas pelos homens no passado. Que existe entre o
historiador e seu objeto de estudo uma harmonia fundamentada numa natureza
humana.
O pensador diz que o homem, além de ser o protagonista da história, é por
natureza um ser sociável. Este não é um traço originário do homem, mas um traço
original dele, que, impelido por paixões e finalidades egoístas, se pudesse, viveria
sozinho. Mas, apesar da vida em comum exigir o refreamento das paixões, os
homens se associaram. Isso significa que a dimensão social, que emergiu apesar
dos sacrifícios que impõe, se insere na natureza mesma do homem, a tal ponto que
é lícito defini-lo como animal sociável.
Além disso, o homem é livre. Revelando-se contra a idéia dos estóicos20 que
falam em destino e dos epicuristas21 que se baseiam no acaso, Vico sustenta a
centralidade do arbítrio humano. Segundo ele, a história não é fruto de uma
necessidade cósmica ou pura acidentalidade. Tanto uma quanto a outra versão não
20
Estoicismo: Doutrina filosófica baseada na crença em uma estrutura racionalmente organizada do universo.
Surgida na Grécia com Zenão de Cítio, por volta do ano 300 a.C.
©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
21
Epicuro e epicurismo: Os princípios enunciados por Epicuro e praticados pela comunidade epicurista
resumem-se em evitar a dor e procurar os prazeres moderados, para alcançar a sabedoria e a felicidade. Cultivar
a amizade, satisfazer as necessidades imediatas, manter-se longe da vida pública e rejeitar o medo da morte e dos
deuses são algumas das fórmulas práticas recomendadas por Epicuro para atingir a ataraxia, estado que consiste
em conservar o espírito imperturbável diante das vicissitudes da vida.
©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
explicam o efetivo desenvolvimento da história. Ela é o que os homens quiseram que
fosse dentro de condições e meios disponíveis. Esse arbítrio, entretanto, é incerto,
pois só se manifesta no ato em que opera. Reconhece que pode haver
conseqüências não desejadas nem previstas nas atitudes do homem. Isto acontece
porque o homem está sujeito à heterogênese dos fins, ou seja, o que ele cria
retroage sobre ele modificando-o.
O homem cria as instituições e estas irão influenciar ele mesmo. Esse é o
caminho pelo qual, potencialidades ocultas e germes de idealidades superiores se
afirmam lentamente, antes que o homem se dê conta. A história não amadurece
contra o homem ou apesar dele, mas é nela que necessidades recônditas, inscritas
em sua natureza, emergem e se impõem à sua atenção e ao seu espírito, que desse
modo se amplia e se afina. Não é possível conhecer as instituições sem conhecer o
homem, e vice-versa.
O homem muda no tempo e, com ele, tudo o que por ele é produzido. Com a
instituição do casamento, o homem primitivo satisfez suas paixões de modo novo e
sua psique enriqueceu-se com outra emoção, o amor. Este novo sentimento
funciona como pólo agregador de outros sentimentos, como o sentido de
propriedade e as respectivas instituições de proteção. Trata-se de elementos novos,
provocados pelos próprios institutos criados pelo homem que agora reagem sobre
ele, em intercâmbio constante e incisivo A heterogênese dos fins, portanto, é uma
tese central de Vico na interpretação da história, porque mostra com quanto trabalho
e por que tortuosos caminhos a consciência humana se clarifica e se afirma.
Só ao fim de um trabalho minucioso o homem percebe de que germes estava
dotada sua natureza. Vico estava certo de que “inicialmente os homens sentem sem
perceber, depois percebem com o espírito perturbado e comovido para, finalmente,
refletirem com mente pura”.
Vico entende que cada Nação passa por fases de desenvolvimento e cada
uma destas fases possui um caráter específico que permeia todos os setores da
expressão e da vida humana. Ele compara as fases de crescimento de um homem
com as fases pelas quais passa a humanidade. O homem passa de sua infância,
estado de vida onde prevalecem os sentidos e que existe um conhecimento obscuro
e ainda confuso das coisas, à adolescência onde prevalece a fantasia, a clareza das
representações é acompanhada dos sentidos e da emotividade e, enfim, à
maturidade, fase de uma reflexão serena, livre da obscuridade dos sentidos e da
emotividade da fantasia. A isto ele faz corresponder a humanidade, que também
atravessa por fases que podem ser assim chamadas: idade dos sentidos, ou seja,
dos deuses, fase primitiva da história humana, depois a idade da fantasia, ou seja,
dos heróis, descendentes dos deuses, e, finalmente, aquela da razão, ou seja, dos
homens.
7. AS ERAS DA HISTÓRIA
Assim, esta Ciência Nova, ou seja, a Metafísica, considerando, à luz da
providência divina, a natureza comum das nações, havendo intuído tais
origens das coisas divinas e das coisas humanas entre as nações
gentílicas, estabelecendo-lhes um sistema do direito natural das gentes,
que, com suma coincidência e constância, passa pelas três idades, pelos
egípcios relatadas como ocorrentes ao longo do mundo que os precedeu. A
idade dos deuses, em que os homens da gentilidade acreditaram viver sob
governos divinos, julgando que tudo lhes fosse determinado através dos
auspícios e dos oráculos, ambos representando os mais velhos eventos da
história profana; a idade dos heróis, na qual entre todos eles, tiveram
domínio as repúblicas aristocráticas, já que se apoiavam numa por eles
considerada qualificação de natureza superior à dos seus plebeus; e,
finalmente, a idade dos homens, em que todos se reconheceram iguais pela
natureza humana, razão porque, primeiramente, celebraram as repúblicas
populares e, finalmente, as monarquias, ambas, ... , formas de governos
humanos. (VICO, 2005, p. 31)
Interessado em esclarecer como história, os períodos remotos e obscuros dos
povos, Vico estabeleceu algumas regras. A primeira delas é a afirmação de que
certos períodos da história tinham características semelhantes que lhes conferia um
caráter geral, sendo possível analisá-los analogicamente22. Em segundo lugar,
busca mostrar que estes períodos semelhantes tendem a repetir-se periodicamente,
com a mesma ordem. Em terceiro lugar, que o movimento cíclico não é meramente
circular e de fases fixas, mas é espiral, pois as fases históricas nunca se repetem.
Ele exemplifica dizendo que o barbarismo cristão da Idade Média é diferente do
barbarismo pagão da idade homérica. Esta visão histórica não permite ao homem
prever o futuro, uma vez que a história está em constante movimento. Esta é uma
forma de diferenciação da visão histórica greco-romana que mantinha uma idéia de
história como movimento circular.
22
“Citou, como exemplo, a semelhança genérica entre o período homérico da história grega e a Idade Média
européia – aos quais atribui a designação genérica de períodos heróicos. Os seus traços comuns eram: governo
constituído por representantes duma aristocracia guerreira, economia agrícola, literatura de baladas, moral
fundamentada na idéia de coragem e lealdade pessoais, etc. Deste modo, para aprendermos mais sobre a idade
homérica, além daquilo que o próprio Homero pode dizer-nos, devemos estudar a Idade Média, vendo então até
que ponto podemos aplicar à Grécia primitiva o que aprendemos.” (COLLINGWOOD, 1972, p. 92)
Vico divide a história em eras. A primeira seria a dos deuses, cujos homens
são “insensatos e estúpidos” sobre os quais prevaleciam os sentidos. Estes homens,
incapazes de refletir, identificavam os fenômenos da natureza com divindades.
Assim, os primeiros governos foram divinos: “os homens creram que os deuses
comandassem todas as coisas”. A segunda era, dos heróis, tem o predomínio da
fantasia. Agora os homens já se associam para proteger-se contra opressores e já
surgem os primeiros líderes que se destacavam com base no uso da força.
Finalmente, a terceira, era dos homens, “ou da razão totalmente explicada, quando
os homens chegam à consciência crítica”.
7.1 – A PRIMEIRA ERA: DOS DEUSES
Os homens ignorantes das razões naturais que produzem as coisas, onde
quer que não possam explicar sequer pelas similaridades, transferem para
as coisas a sua própria natureza [ deles, homens], assim como quando o
vulgo afirma que o ímã está enamorado pelo ferro. (VICO, 2005, Dignidade
32, p. 58)
Era dos sentidos; era dos deuses ou era da infância. A natureza da mente
humana faz com que ela atribua ao efeito sua natureza e, em tal estado sua
natureza era de homens todos robustos em força corporal que, urrando e
resmungando, expressavam suas violentas paixões. Estes homens imaginavam que
o Céu era um grande corpo e o chamaram de Júpiter. Ele lhes falava através dos
raios e trovões. Esta idéia da natureza habitada por divindades terríveis e punitivas
levou os homens a cultivarem costumes salpicados de religião e piedade. Os
homens achavam que Júpiter governava por sinais e que estes sinais fossem
palavras reais e que a natureza fosse a língua de Júpiter. Acreditavam que sua
ciência fosse a adivinhação, que pelos gregos foi chamada “teologia” que quer dizer
“ciência do falar dos deuses”.
Vico diz que esta é a primeira grande fábula divina, a maior que já se
inventou, isto é, Júpiter rei e pai dos homens e dos deuses. Assim, na teologia
poética, os primeiros governos foram divinos e os gregos os chamavam
“teocráticos”. Os homens acreditavam que tudo era comandado pelos deuses; esta
foi a época dos oráculos; e estas foram as mais antigas coisas que lemos na
história. Governos teocráticos ou repúblicas monásticas fundadas na autoridade
paterna como representante da autoridade divina. A natureza do primitivo se reflete
nas crenças religiosas, estas na organização social e esta, na própria natureza dos
homens primitivos, não mais inteiramente desenfreada, mas em vias de domínio e
contenção. A religião é o primeiro passo dos gigantes, em direção à civilização. Em
primeiro lugar, estes gigantes, temendo a ira dos deuses, abandonam o costume
animalesco de se unirem ao acaso e logo surgem os matrimônios solenes de onde
nascem as famílias e já sinaliza um início de moralidade. Em segundo lugar, eles
começam a enterrar seus mortos e a considerar sagrados os recintos onde se
localizam as sepulturas (nascem os cemitérios). Na idade dos deuses já estão
presentes os três princípios que Vico acredita serem comuns a todos os homens,
uma vez que eles já começam a ter uma atividade espiritual.
7.2 – A SEGUNDA ERA: DOS HERÓIS
Tanto mais robusta a fantasia, quanto mais débil o raciocínio.
( VICO, 2005, Dignidade 36, p.59)
Esta era tem o predomínio da fantasia sobre a reflexão racional. Ela é
representada pela Grécia homérica e pela Roma dos reis. A continuidade com a
idade dos deuses é demonstrada pelo fato de que os heróis, os grandes homens
que dominam este período (Aquiles, Teseu, Rômulo), se dizem descendentes das
divindades. Nesta idade surgem as primeiras instituições políticas: de fato os heróis,
a quem se atribui a construção das primeiras cidades, eram servos, aqueles homens
gigantes que ainda permaneciam naquele estado de natureza originário e que
buscavam reparar as violências de seus semelhantes. As primeiras associações,
formadas para se autoproteger dos agressores nômades, foram logo subjugadas
pela auctoritas dos patres ou chefes de tribo.
Essas tribos se ampliaram pela chegada de povos que pediam asilo e
proteção, os chamados plebeus. Para manter a vida internamente sob controle e
preparar-se para os conflitos com as tribos rivais, foi elaborado o direito heróico,
baseado na força “já sustentada pela religião, a única que pode manter a força
dentro da justiça”.Trata-se de uma estrutura social baseada na autoridade,
indiscutida e indiscutível, porque é a expressão da vontade dos deuses. Com o
tempo, os servos se voltam contra o poder dos fortes que os dominam obrigando-os
a se organizarem em verdadeiros estados aristocráticos de forma que cada “patrere” que havia anteriormente passa a fazer parte da nova classe dirigente.
Vai se configurando nos estados a distinção entre duas classes fundamentais:
por um lado os patrícios, que tinham como inclinação natural a manutenção
inalterada da organização do estado e , por outro lado, os plebeus que buscavam
mudanças nesta organização para melhorar suas condições de vida. Esta é uma era
de grandes inimizades entre os povos primitivos, que, tendo alcançado certa coesão
interna, canalizavam para o exterior todo o seu poder destrutivo. É um mundo ao
mesmo tempo heróico, poético e religioso, cantado por Homero na Ilíada e na
Odisséia.
7.3 – A TERCEIRA ERA: DOS HOMENS
Os costumes nativos, e máxime o da liberdade natural, não se
mudam todos de um golpe, mas por graus e ao longo de muito tempo.
(VICO, 2005, Dignidade 71, p. 72)
A transição para a era dos homens foi um processo longo e trabalhoso. Este
foi um tempo marcado por lutas internas nas cidades e entre os povos em particular.
Apesar das concessões por parte dos patrícios aos plebeus, às vezes para manter
uma melhor dominação (leis agrárias). As tensões entre os dois grupos sociais eram
constantes, até levá-los ao progressivo reconhecimento da igualdade entre todos os
cidadãos. Com o reconhecimento de igualdade, estritamente ligado a idéia de uma
razão comum entre eles, se entra na idade dos homens. A esta idade correspondem
como realizações históricas, a Grécia clássica, a Roma republicana e a civilização
moderna.
Nesta idade as repúblicas aristocráticas se transformam em populares, nas
quais as distinções sociais e políticas não são mais confiadas a uma ascendência
nobre ou plebéia, mas ao patrimônio, isto é à riqueza e à capacidade de trabalho
dos cidadãos. Na idade dos homens a razão encontra seu mais vasto campo de
aplicação: só nela então pôde nascer a filosofia, isto é, uma metafísica que não seja
mais simplesmente sentida ou fantasiosa, mas seja confiada à reflexão de uma
mente pura. A filosofia retorna de alguma forma ao âmbito do mundo civil, uma vez
que ela tem entre as suas tarefas a busca de um princípio de justiça comum a todos.
O reconhecimento dos direitos dos cidadãos leva a formas de legislação
escrita e, portanto, à prosa. Daí o surgimento das lutas políticas. Penetrando no
sofisticado mundo da lógica e, portanto,da razão filosófica, passa-se da metafísica
fantástica à metafísica racional; da vaga percepção dos ideais de verdade e justiça
para a sua explícita tematização. Esta fase é sintetizada na pólis grega através da
filosofia de Platão. O que nas eras anteriores era vagamente antevisto pelos homens
agora se torna prática necessária ditada pela razão.
Na era dos homens a história se baseia em uma natureza inteligente e,
portanto, modesta, benigna e racional, que reconhece por lei a consciência, a razão
e o dever .As mudanças operadas em todos os sentidos não vão apagar as
dimensões típicas das épocas anteriores, mas seus conteúdos vão apresentar-se
mais elaborados e assumidos racionalmente. Existe, então, enriquecimento e
integração, não rejeição entre eles. A metafísica natural dos primitivos agora se
torna metafísica racional, com repercussões sobre as instituições sociais, religiosas
e civis.
O esquema triádico que marca as fases da história, segundo Vico, não é
irreversível. Por causa do ceticismo23, da anarquia e do luxo desenfreado, os
estados da idade dos homens podem cair numa inexorável decadência, que os faz
retornar ao início do ciclo mental da humanidade. Um exemplo clássico deste retorno
à barbárie é o período Medieval, no qual Vico vê a perda total daqueles valores
históricos idealizados pelo classicismo greco-romano. Naturalmente este fato
também comporta o retorno, com renovado vigor, dos sentidos e da fantasia que
estavam enfraquecidos na idade racional dos homens: assim, o período medieval
torna-se também a idade de Dante.
A teoria viquiana dei corsi e dei ricorsi
(dos avanços e dos retornos),
apresenta então algumas analogias com as interpretações cíclicas do processo
histórico elaborado na antigüidade pelos estóicos: mas, Vico vai se distanciar destes
pensadores, uma vez que, para ele, os ciclos não são necessários nem repetitivos.
O retorno histórico, a volta às origens é apenas uma possibilidade, que deriva da
idéia de que a sucessão das três idades não tem um caráter necessário ou definitivo,
23
Ceticismo: Doutrina filosófica que prega a impossibilidade de se conhecer ou de se transmitir a verdade.
Nascida na antiguidade, influenciou diferentes pensadores de todos os tempos.
©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
mas reflete a tendência ideal da humanidade a seguir o desenvolvimento daquela
que é sua intrínseca estrutura mental.
8 – A LINGUAGEM, A POESIA E OS MITOS
Na obra de Vico a linguagem ocupa um lugar central. Para ele, ela não é uma
criação arbitrária, mas foi surgindo a partir das necessidades do povo. Assim, a
linguagem é citada sob diferentes formas em que se apresentou desde o início: a
gestual, a hieroglífica, a cantada e finalmente a linguagem em prosa. Além disso, o
filósofo vai dizer que a poesia é a expressão mais apropriada para “o ânimo
perturbado e comovido”, e o valor dela é reconhecível nos mitos, os “universais
fantásticos”, aos quais ele atribui grande importância.
8.1 – A LINGUAGEM
Para Vico, as línguas têm uma origem natural, pois são a tradução fônica das
imagens poéticas que os povos desenvolveram na Antigüidade, de acordo com os
seus graus de desenvolvimento mental e histórico. Sobretudo na terceira idade, dos
homens e da razão, surgem os componentes convencionais da linguagem.
Fundamental para ele e extremamente atraente no estudo de sua filosofia é o
entendimento excepcional que ele dedica à linguagem. Todos os tipos de linguagem
são reflexos que brotam do interior das atividades do homem e é a partir da
linguagem que podemos captar a unidade que existe entre todos os humanos. É o
lugar universal e o repertório original das imagens, o lugar do inconsciente e do não
formulado. E Vico nos diz na sua Ciência Nova, nas Dignidades 17 e 18,
respectivamente:
As dicções tipicamente populares devem ser os testemunhos mais
autênticos dos antigos costumes dos povos, celebrados ao tempo em que
esses povos se forjavam as próprias línguas.
A língua de uma nação antiga, que preservou a sua soberania até o seu
desabrochamento nacional, deve ser um relevante testemunho dos
costumes dos primeiros tempos do mundo.
Para nosso filósofo, a análise filológica da linguagem permite que nos aproximemos
das instituições civis e religiosas não a partir do exterior, como se elas fossem
“resíduos históricos”, mas do interior, para nelas captar conflitos e tentativas de
superação.
A linguagem não é uma criação arbitrária. Inata como disposição para a
comunicação, a linguagem formou-se lentamente sob a pressão de urgentes
necessidades, ou seja, de problemas imediatos e urgentes que tinham que ser
resolvidos. Essa naturalidade que lhe é característica a torna um veículo privilegiado
do mundo dos primeiros povos.
As primeiras linguagens eram gestuais. A comunicação se dava através de
movimentos ou ações particulares. A evolução desta linguagem é a forma
hieroglífica que é seguida pela linguagem cantada, precedente da linguagem
recitada e à linguagem em prosa.
Podemos dizer que, para Vico, às três eras da história correspondem três
formas de linguagem: a língua dos deuses que era quase totalmente muda, muito
pouco articulada; a linguagem dos heróis, também mesclada em falada e muda,
contendo falares vulgares e caracteres heróicos e, finalmente, a linguagem dos
homens, articulada e muito pouco muda. Estas três fases, entretanto, não se
compõem de estágios separados, mas há uma absorção, ainda que parcial, das
formas anteriores por parte da linguagem posterior.
8.2 – A LINGUAGEM POÉTICA
A concepção viquiana da poesia se reflete sobre a de linguagem. Como os
homens começaram a pensar através dos universais fantásticos e não por conceitos,
eles começaram a falar de forma poética e não em prosa.
Os primeiros poetas, os poetas teólogos, que imaginavam Júpiter e as outras
divindades serem os criadores da realidade. Através da poesia os povos primitivos e
heróicos criaram idéias, costumes, comportamentos e, de forma geral, uma
realidade que antes não existia. Daí vem o grande interesse de Vico pela sabedoria
poética. Esta sabedoria dos antigos, de fato, não é desprovida de verdade: verdade
poética e verdade metafísica coincidem. Os conteúdos da sabedoria poética não são
diferentes daqueles da sabedoria racional. Isto, entretanto, não significa, como
sustentavam os racionalistas do século XVI, que fosse uma sabedoria oculta, e isto
quer dizer uma sabedoria já conhecida de forma racional, mas intencionalmente
encoberta por expressões alegóricas que deveriam ser despidas para, enfim,
evidenciarem sua pureza conceitual. Ao contrário, para dar significado às imagens
fantásticas nas quais se exprime a sabedoria dos antigos são necessárias
expressões de todas as maneiras de sentir e de pensar.
O que Vico faz é afirmar o valor autônomo da poesia nos confrontos do
pensamento
lógico-racional.
Em
conseqüência
disto,
vai
mostrar
que
os
instrumentos de que se vale a sabedoria poética são muito diferentes daqueles do
conhecimento racional.. O conhecimento racional trabalha com conceitos abstratos
do intelecto, a poesia, ao contrário, representa universais fantásticos nos quais uma
imagem particular do sentido ou da fantasia exprime um conteúdo cognoscitivo de
caráter geral. Assim, na cultura homérica, Aquiles24 é a representação da coragem,
Ulisses25, da prudência.
Considerando que a sabedoria poética tem sempre um conteúdo verdadeiro,
também os universais fantásticos não são mera fantasia, mas são uma realidade
superior, ainda que fantástica, à realidade física. Afastando-se do objetivismo grego,
segundo o qual a poesia é uma imitação comovida da realidade com finalidades
catárticas, Vico destaca a criatividade, a originalidade, a alogicidade e a autonomia
da poesia em relação à razão e às suas expressões.
8.3 – A LINGUAGEM DOS MITOS
Vico dá aos mitos o mesmo valor que à poesia. Contrariando outros
pensadores, que diziam ser os mitos “delírios de selvagens e invenções de
tratantes”, ele vai dizer que os mitos são “verdadeiras e severas histórias dos
costumes das antiqüíssimas gentes da Grécia”. Ainda desprovidos de conceitos e
incapazes de abstrações lógicas, os primeiros homens davam lugar aos mitos, com
os quais resumiam e transmitiam suas experiências, muitas vezes conflitivas e
24
Aquiles
Herói da mitologia grega, filho de Peleu e da ninfa Tétis. Ao nascer, a mãe segurou-o pelo calcanhar e
mergulhou-o no rio Estige, para torná-lo invulnerável. Morto na guerra de Tróia com uma flechada no calcanhar,
que não fora banhado pelas águas do rio. Suas proezas estão narradas na Ilíada de Homero.
©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
25
Ulisses
Herói da mitologia grega, filho do rei Laerte e de Anticléia. Protagonista das epopéias homéricas, tornou-se
símbolo da capacidade humana para superar as adversidades
©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
violentas. Os mitos, portanto, eram as únicas formas que permitiam aos primitivos
pensar e transmitir suas experiências. Ele atribui autonomia a estas formas de
expressão cultural quando diz que cada estágio de nossa história tem sua lógica e
seu fascínio.
Em plena harmonia com seus pressupostos teóricos está a doutrina da
descoberta do verdadeiro Homero, que Vico considera um dos maiores resultados,
no plano filológico e filosófico, de seus estudos, tendo dedicado a este assunto um
livro inteiro da sua Ciência Nova.
Em sua tese, de grande importância histórica para o desenvolvimento da
“questão homérica” 26, Vico defende a idéia de que Homero não seja nem um poeta,
considerado como indivíduo singular, nem um poeta imaginário, mas o povo grego
no seu conjunto. Para ele, Homero é uma realidade histórica, não enquanto pessoa
física, mas porque representa o caráter heróico único no qual são reconhecidos
diversos rapsodos, aqueles que, na Grécia, recitavam obras épicas, como a Ilíada e
a Odisséia, nas ruas.
Antecipando teorias que serão retomadas no século XVIII pelos românticos,
Vico afirma que a poesia homérica não pode ser considerada como produto de um
só autor, mas de todo o povo grego no seu tempo fabuloso, produto coletivo de
gerações inteiras de poetas populares que se auto elogiavam sob o nome simbólico
de Homero.
Segundo Diego Fusaro, a linguagem, para Vico, não é o produto do intelecto
humano, mas uma operação da fantasia, o fruto daquele momento em que o homem
percebe as coisas com a alma perturbada e comovida. Isso começou por causa das
emoções dos homens primitivos; é típico entre os homens como obra poética, como
expressão emotivo-fantástica. Esta é uma das concepções mais audaciosas de Vico,
uma concepção que faz da linguagem um comportamento totalmente criativo, um ato
que se repete ainda hoje nas páginas dos escritores quando eles usam as palavras
26
Homero:
Poeta grego que segundo a tradição é o autor dos épicos Ilíada e Odisséia. As muitas lendas e a escassa
confiabilidade dos dados biográficos sobre Homero fizeram com que já no século XVIII muitos questionassem
até mesmo a existência do poeta. As diferenças de tom e estilo entre a Ilíada e a Odisséia levaram alguns críticos
a aventar a hipótese de que poderiam ter resultado da recomposição de poemas anteriores, ou de que teriam sido
criadas por autores diferentes. Já a tese que defende a autoria única baseia-se na afirmação de Aristóteles, de que
a Ilíada seria uma obra da juventude de Homero, enquanto a Odisséia teria sido composta na velhice, quando o
poeta decidiu redigir a segunda obra como complemento da primeira e ampliação de sua perspectiva essas
dúvidas constituem a chamada "questão homérica".
©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
comuns, mas numa situação nova que lhes dá um sentido renovado, rendendo-se às
novas exigências, às novas visões propostas pelas coisas e pelos homens.
9 – A PROVIDÊNCIA
Vico afirma que a história é obra do homem e também de Deus, cuja
Providência é artífice da história ideal eterna, que se desenvolve a partir das
histórias de todas as nações nos seus surgimentos, progressos, estados,
decadências e fins. Isto quer dizer que o nascimento, o desenvolvimento, a
maturidade, o declínio e o desaparecimento dos povos não são, portanto, acidentais,
mas obedecem a um desenho que nasce na metafísica das mentes humanas, nas
modificações necessárias que elas devem sofrer no percurso do desenvolvimento
das atividades espirituais da humanidade. Segundo o filósofo, a Providência é a
arquiteta da história enquanto o arbítrio humano é apenas o operário que obedece
àquela arquiteta. Isto esclarece em que sentido o autor, ao elaborar a Ciência Nova,
pretenda fundar a história com base numa metafísica. Em primeiro lugar, isto
significa para ele a introdução de um novo significado para a metafísica ampliada do
plano da ontologia ao plano da gnosiologia: a metafísica não se refere apenas à
determinação da natureza do ser e da realidade em geral, mas se refere, antes de
tudo, à configuração da mente humana, do aparato cognitivo específico do homem,
considerado tanto nas suas manifestações racionais quanto naquelas pré-lógicas.
Ao mesmo tempo, o retorno à dimensão teológica conserva o caráter objetivo da
metafísica e confere à história um fundamento pleno que exclui todo o perigo de
relativismo e de subjetivismo.
A Providência, da qual fala Vico, tem uma racionalidade, sem dúvida, superior
à racionalidade consciente do homem em particular porque governa os eventos que
estão além dos fatos singulares, que têm como protagonistas todos os homens, é
uma racionalidade que pode ser explicada de forma natural. A história ideal é um
projeto divino ideal, que se esclarece pouco a pouco através dos séculos, do qual os
homens percebem a presença desde os primórdios, porém sem poder dominá-la; ao
contrário, são por ela dominados: é o veículo de comunicação dos homens com
Deus, é a ponte entre o eterno e o tempo, é o sentido da história empírica a ela
imanente e ao mesmo tempo transcendente.
Os homens, mesmo dominados por grandes paixões e por fantasias,
conseguiram desencadear o nascimento da grande cidade do gênero humano;
mesmo sendo comparáveis aos animais tornaram-se com o passar do tempo
sempre mais humanos. Como podemos explicar essa transformação sem pressupor
nos homens, latentes, mas operantes, os germes desse mundo ideal? Devemos
excluir o destino porque ele não explica a liberdade, e o acaso, porque ele não
explica a ordem; devemos admitir uma mente divina como artífice desse projeto.
A Providência age nos homens através do projeto ideal que não é obra dos
homens nem fruto da história. Os ideais de justiça, de bondade, e de verdade se
realizam ou não, são propostos ou traídos na história, mas não estão à mercê dos
homens nem da história porque não são produtos de sua criação. Como o homem
tem primeiro um vago pressentimento e só depois uma consciência mais lúcida,
pode-se dizer que os efeitos de suas ações vão sempre além da sua
intencionalidade explícita. Ele faz mais do que sabe e, freqüentemente, não sabe
aquilo que faz.
A obra da Providência é universal, mas não como coisa necessária. Os
homens mantêm sua liberdade e responsabilidade, podendo tanto se manter fiéis ao
projeto ideal eterno como traí-lo. Muitas nações desapareceram sem alcançar o
estágio de maturidade e algumas chegaram rapidamente à última era. A lei dos
ciclos históricos não é uma lei universal nem necessária, é uma possibilidade
objetiva, no sentido de que, dadas certas condições, se recai na barbárie e nos cabe
o dever de retomar o caminho. Diz-se que o ciclo está concluído quando o domínio
da razão é tal que cai na abstração, na sofisticação, na progressiva esterilização do
saber, não estando mais em condição de se alimentar nas fontes profundas e
remotas dos sentidos e da fantasia, considerados como vitais no projeto ideal.
A perda de relação com o nosso passado e com os estágios anteriores
esteriliza as fontes de vida e do pensamento criando um homem sem raízes e sem
seiva vital. Quando a razão, pela ruptura com suas fontes primárias, entra em crise,
temos o enfraquecimento de todo o homem e do seu mundo institucional. Mas
mesmo nesse estágio podemos sentir a presença do projeto ideal eterno, através do
qual opera a Providência, impelindo os homens a retomarem a caminhada.
10 – INFLUÊNCIAS DO PENSAMENTO VIQUIANO SOBRE O PENSAMENTO
MODERNO
Como vimos anteriormente, a obra de Vico foi praticamente ignorada na
época em que foi por ele escrita. Entretanto, mais tarde, muitos pensadores
reconhecem seus méritos e muitos foram influenciados pelo seu pensamento.
Apesar de não ser nossa intenção nos estendermos sobre este assunto, não
podemos deixar de citar alguns filósofos, que pelo grande valor de suas obras, ainda
hoje são muito estudados. Entre estes filósofos europeus, destacamos: Kant, Hegel,
Comte e Marx. Também na Itália, Vico exercerá influência sobre algumas figuras do
seu tempo.
Entre os italianos podemos citar Mario Pagano (1748-1799), representante da
escola napolitana, que tentou harmonizar as idéias de Vico com a filosofia de
Rousseau (1712-1788); este é também o caso de Gaetano Filangieri (1752-1788),
outro napolitano, autor de Ciência da Legislação, que tinha Vico em alta conta e
ofereceu a Ciência Nova a Goethe (1749-1832). Além destes dois, pode-se citar:
Gian Domenico Romagnosi (1761-1835), Gennaro, filho de Vico, que ocupou sua
cadeira de Retórica na Universidade de Nápolis e, ainda, Vincenzo Cuoco.
Entre os europeus, poucos leram as obras de Vico durante o século XVIII.
Entre estes poucos constam os alemães Johann Hamann (1730-1788) e Johann
Gottfried Herder (1744-1803) cuja filosofia chega a ter muitos pontos em comum
com a Ciência Nova. Também, na obra de Immanuel Kant, nascido em Königsberg,
Prússia, hoje Alemanha, em 22 de abril de 1724 e falecido neste mesmo local em 12
de fevereiro de 1804, existem semelhanças com o pensamento viquiano. Patrick
Gardner afirma:
Este ensaio (A Idéia de uma História Universal do Ponto de Vista
Cosmopolita) tem interesse por uma série de razões. Exprime muito
claramente os motivos que deram origem a muitas e mais complicadas
“filosofias da história”... Ao longo de todo o ensaio, Kant sugere que, se
pretendemos que o curso da história humana tenha sentido, temos que
pressupor a ação de um “plano secreto”, ou de um princípio teleológico,
segundo o qual os males imediatos da história humana podem ser
justificados por aquilo que finalmente ajudaram a promover: idéia que
provou ter grandes atrativos para muitos sucessores de Kant (incluindo
Hegel)...(GARDNER, 2004, p.27)
Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, em 27 de agosto de 1770
e morreu em 14 de novembro de 1831, em Berlim, vítima de uma epidemia de
cólera. O que se pode notar é que existe entre este pensador e Vico uma analogia
profunda entre o conceito de Providência em Vico e aquele de astúcia da razão em
Hegel. Porém, esses dois conceitos têm uma atuação completamente diferente no
curso da história dos homens. Para Vico não existe um plano providencial geral, uma
história universal como na filosofia da história hegeliana. Enquanto a história ideal
eterna é o desenvolvimento típico de cada comunidade e se desenvolve em seu
interior de todas elas, a filosofia do espírito hegeliana é o desenvolvimento do
espírito no seu passar através dos povos. Um povo é portador do espírito e investido
da racionalidade, mas depois é abandonado e sua vida ideal termina enquanto
continua apenas a sua vida temporal.
Isidore-Auguste-Marie-François-Xavier Comte nasceu em Montpellier, França,
em 19 de janeiro de 1798 e, em conseqüência de uma gripe, morreu em Paris, em 5
de setembro de 1857. É bastante significativa a semelhança entre as idéias de
Comte e Vico. Pode-se citar os três estágios pelos quais passa a mente humana e
também sua afirmação de que a sociedade humana constitui um objeto de
investigação científica como qualquer outro.
Outro grande filósofo que, como Hegel e Comte, traz consigo grandes
semelhanças de pensamento com Vico é Karl Heinrich Marx. Ele nasceu em Trier,
na Renânia, então província da Prússia, em 5 de maio de 1818 e morreu em 14 de
março de 1883, em Londres. As semelhanças entre Vico e Marx se mostram em
relação ao fator econômico e seu reflexo na sociedade, como fator de união ou
desagregação dos povos. Sob o invólucro mais fantástico e pitoresco é clara em
Vico a interpretação materialista do fato histórico que teve e tem tantos seguidores
até hoje, ainda que esta explicação tenha se mostrado insuficiente para explicar os
mais significativos momentos da história. Toda a história romana é reduzida por Vico
a uma luta econômica entre patrícios e plebeus. Luta-se pela igualdade de direitos,
mas de fato, é uma luta entre duas classes pela igualdade econômica. O primeiro
embrião da sociedade é para Vico, contemporâneo ao surgimento da propriedade e
as primeiras lutas, que são lutas agrárias, entre os proprietários e os servos. Os
primeiros políticos surgem da união de proprietários contra os trabalhadores que
tornam-se sempre mais fortes e ameaçadores e buscam, também eles, o seu lugar
nas assembléias e seu representante na tribuna. E inumeráveis mitos são, para
Vico, a expressão poética dessa gigantesca e implacável luta entre aqueles que têm,
e não querem perder e aqueles que não têm e que querem ter.
Mas os verdadeiros méritos de Vico só serão reconhecidos plenamente no
século XX. O filósofo Robin George Collingwood (1889-1943) chamou a atenção
para sua obra e foi profundamente influenciado por ela. O mesmo aconteceu com
Benedetto Croce (1886-1952), possivelmente seu mais importante intérprete. Ele se
entusiasmou pela reciprocidade entre filosofia e história e viu em Vico “o século XIX
em germe”, isto é, um confuso filósofo do espírito, um gênio, na desolação da Itália
da sua época, antecipador dos grandes temas do idealismo historicista oitocentesco.
11 – CONCLUSÃO
Esperamos ter demonstrado através deste estudo a grande importância do
pensamento viquiano para o desenvolvimento do pensamento moderno, uma vez
que ele, invertendo o paradigma de linearidade do tempo para uma visão cíclica, irá
influenciar grandes pensadores da cultura ocidental.
Leitor sensível, não se preocupa apenas com a beleza de seu trabalho, mas
muito mais com as particularidades que dão a ela o caráter de grande escritura.
Atento aos fatos que lhe servem de base e profundo conhecedor daqueles fatos,
Vico elabora sua ciência não levando em conta os grandes desafios que, certamente
sabia, iria enfrentar. Não só conseguiu elaborar, como também deixar discípulos que
mais tarde iriam aperfeiçoar aquelas teses por ele defendidas.
Seu grande desafio era demonstrar que a História era uma ciência. Isto,
porque, sendo feita pelo homem, seria perfeitamente cognoscível. Assim, lançando
mão dos elementos concretos da filologia, expressos através de qualquer forma de
linguagem, aliados à filosofia tem-se o material eficaz para a comprovação dos fatos
históricos. Além disto, demonstrou que a sua Ciência está baseada em princípios
universais destacados através de uma grande pesquisa por ele empreendida e que
obteve como resultado o seguinte fato: independente do lugar onde nascem, os
homens têm sempre alguma forma de sentir, pensar e agir, de acordo com o grau de
desenvolvimento histórico em que se encontram. Logo, existem elementos comuns e
demonstráveis que são encontrados em todas as civilizações, ou seja, são
universais.
Finalmente, discordando do método cartesiano, afirma que o homem só pode
ter ciência a partir daquilo que ele faz, porque para se conhecer verdadeiramente
qualquer coisa ele tem que tê-la criado. Ele conclui que, como o homem é quem faz
a história, ele a conhece e então ele pode ter ciência dela. Como Vico, nós,
humanos, seguimos sempre em busca de respostas para questões que nunca irão
se esgotar. O que temos certeza é que criamos nossa História sempre; que esta
História é um instrumento que nos impulsiona porque age sobre nossas vidas
dando-nos sempre um sentido novo para nos lançarmos em novas buscas.
12 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Integrale). Disponível em: < www.filosofico.net/vitavico.htm> Acesso em 20 set.
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