Guilherme Magalhães Vale de Souza Oliveira Mestrando em Filosofia e Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo [email protected] DO ENCONTRO ENTRE FILOSOFIA E MÍDIA: A EXPERTISE FILOSÓFICA COMO GOVERNO DA CONDUTA Nosso trabalho tem como tema geral as relações entre filosofia e poder, relações estas entendidas como uma dimensão das relações de dominação e resistência de nossos modos de vida frente às variadas configurações de valores morais e práticas sociais na atualidade. Esta pesquisa, então, se propõe a investigar o encontro entre os discursos filosóficos contemporâneos no Brasil e os meios de comunicação em geral, comumente chamados de mídias. Contudo, este trabalho não pretende se inserir nos estudos que analisam, avaliam e criticam a mídia. No nosso caso, debruçamo-nos sobre os escritos dos filósofos nos meios escriturais das revistas de divulgação cultural e de variedades, dada sua periodicidade e sua ampla tiragem e circulação na sociedade. Para tal enfrentamento, somos acompanhados da teoria pós-crítica ou pósestruturalista, principalmente, de Michel Foucault, com respeito à noção de governamentalidade e dos jogos de subjetivação tramados entre os regimes de verdade e as práticas sociais cotidianas. Tratamos os discursos filosóficos não no seu tradicional âmbito de afastados da realidade ou por sua natureza crítica e emancipadora, mas como inseridos na complexa batalha que configuram o que Foucault também explicita como relações de poder. Para afastarmo-nos de qualquer ensejo moralizante de tal pesquisa, Michel Foucault provoca-nos assim: Nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso – um modo cético e meticuloso de encarar os constantes embates dos dizeres e das práticas que constituem, ao longo dos tempos, nossos modos de vida. Apesar de tratarmos de um encontro da filosofia com uma dimensão cultural deveras estudada por outras orientações científico-filosóficas, como a teoria crítica da Escola de Frankfurt, nossa escolha pelo aporte teórico principalmente foucaultiano se deve pelo seu tratamento dado aos discursos sociais e/ou científicos que realça os efeitos produtivos da circulação e da vinculação nas relações que um indivíduo estabelece consigo mesmo e com o outro. Tais efeitos, ao invés de configurarem uma relação de alienação e manipulação das ideias pelos meios de comunicação sobre os indivíduos, são entendidos como subjetivadores ou produtores de certo modo de entendimento de si mesmo, do outro e do mundo. Para imbricarmos na análise desse encontro, utilizamos como disparador o alegado fenômeno denominado de popularização da filosofia, estipulada por alguns estudiosos brasileiros como sendo a fomentação e a difusão da atividade filosófica (SANCHES, 2012; SILVA, 2011). Aproximando-nos de alguns primeiros estudos sobre o tema da popularização, vimos que as argumentações dos autores oscilam entre a banalização da filosofia e de seu suposto rigor crítico, muito vinculado a um academicismo; e uma inflação das benesses da filosofia, crida por natureza como um discurso que promove a habilidade crítica e a emancipação do sujeito de outras formas de apreensão do mundo. Contudo, pretendemos operar uma problematização, segundo a acepção foucaultiana, da popularização da filosofia com o fito de desestruturarmos as evidências mais corriqueiras – o enfraquecimento de pressupostos religiosos, a emergência de uma modernidade líquida e carente de respostas, a demanda cada vez maior de flexibilidade e capacidade crítica nos dias de hoje – e, logo, para vislumbrarmos as descontinuidades desse processo de popularização e as condições de possibilidade não necessárias dos investimentos em certos tipos de enunciados, bem como de certas subjetividades – todos ensejados por esses discursos filosóficos. O arquivo de nossa pesquisa ao longo de seu processo foi modificado. Abrangendo uma multiplicidade de aparições nos meios de comunicação, tínhamos a intenção inicial de averiguar tal acontecimento em jornais de publicação diária no Brasil. Contudo, o jornalismo esteve numa relação próxima com a filosofia desde os meados do século XVIII. Assim, seria mais interessante perceber como a filosofia e o filósofo foram invadindo outros meios, não tão antigos como os jornais, nem tão específicos ou midiáticos como os DVD’s ou programas de TV. Reservamo-nos, deste modo, a pesquisar as próprias revistas de divulgação cultural que produzem, junto com um mar de outras publicações, uma proeminente noção de cultura presente na nossa sociedade. A escolha de nosso campo empírico recaiu na CULT, Revista Brasileira de Cultura, fundada em 1997, uma das pioneiras no campo no Brasil. Acompanhados de Tatiana Sanches (2011), supomos que o marco histórico da popularização, em termos mundiais, é 1991, ano de lançamento de O mundo de Sofia, do escritor norueguês Jostein Gaarder. Na dimensão nacional, as primeiras aparições do tema da filosofia e da inserção de filósofos escrevendo na revista ocorreram, mormente, a partir dos anos de 2001/2002, atingindo uma espécie de hiperatividade no ano de 2004. Na CULT, estamos procurando quem são os filósofos/autores mais recorrentes; quais são os temas e as teorias mais assíduas nas argumentações; qual é a própria noção e definição de filosofia ou da atividade filosófica segundo esses próprios autores. O que nos parece estar em questão na popularização, não é entender se a filosofia que se faz aqui ou acolá é falsa ou verdadeira, ou se tal filósofo ou teoria está mais correta do que outra. A questão é pensar os jogos de produção de saber, pensando a atividade do próprio filósofo como um configurador e estrategista das formas de interpretação do mundo e de regulação da conduta do indivíduo nos jogos sociais. Hipótese de trabalho: a expertise filosófica como governo da conduta Para analisar melhor tal processo, segundo Foucault, seria preciso observar as relações sociais em termos de governamentalidade. Resumidamente, tal conceito é usado para compreender o conjunto de práticas em um determinado período histórico marcado por formas de governar os homens não mais a partir de um poder soberano, mas por artes de governar cuja relação com a verdade estava em jogo de determinada maneira. Um poder da verdade, nesse caso, ligado a uma racionalização dos discursos políticos, morais e científicos sobre a vida, atrelados, por sua vez, a um comportamento de sujeição, cujo fim seria a salvação daqueles que se conformassem a tais discursos. As artes de se governar pela verdade e pela sujeição, oriundas e difundidas pela pastoral cristã à época do início da modernidade, foram se alargando socialmente como práticas modernas de direção de consciência (FOUCAULT, 2000, p.171). Desenvolvendo a noção de governamentalidade, Foucault deu um passo adiante no sentido de escapar às aproximações que se poderiam fazer com as teorias da alienação e da manipulação elaboradas pelo marxismo. Para ele, a noção de governamentalidade deveria ser entendida como um campo estratégico de relações de poder, no sentido mais amplo do termo, e não meramente político, entendida, pois, como um campo estratégico de relações de poder no que elas têm de móvel, transformável, reversível [...] a reflexão sobre a noção de governamentalidade [...] não pode deixar de passar, teórica e praticamente, pelo âmbito de um sujeito que seria definido pela relação de si para consigo (FOUCAULT, 2006, p.306). No entanto, tais jogos de governo nos séculos XIX e XX – resumidos na ação do que se conveniou chamar de Estado do bem-estar social, com sua preocupação com a saúde da população, sua educação, suas trocas comerciais – vêm sofrendo modificações nas últimas décadas. Segundo Nikolas Rose (2007)1, nas sociedades ditas liberais avançadas ou neoliberais, a proposição desses jogos não estaria mais exclusivamente nas mãos do Estado, cujos custos e abusos de autoridades foram criticadas ao longo do século XX tanto pela esquerda quanto pela direita. Nas últimas décadas daquele século, viram-se transformar essas críticas em novas estratégias de governo aliadas aos já tradicionais modos de disciplinamento e monitoramento, tais como as técnicas de “monetarização, mercadização, aumento dos poderes dos consumidores, contabilidade financeira e auditorias” (ROSE, 2007, p.295). O que salta à vista, segundo Rose, é uma espécie de desgovernamentalização do Estado e a transferência da autoridade de governar e regular a vida para uma série de instituições não governamentais, as quais vêm assumindo o papel de regulação da conduta humana, incorporadas na figura do expert ou do especialista. O que se vê aqui, então, é a autoridade de governar pelo conhecimento passando das mãos do Estado para um rol de experts – entre médicos, psiquiatras, professores, consultores, palestrantes etc. – que, por sua vez, transferem ou ensinam aos sujeitos modos de compreender e de conduzir a si mesmos, fornecendo-lhes conhecimentos variados para que eles próprios se autogovernem. Como exemplo da análise da popularização da filosofia em termos de estratégias de governo e regulação, consideremos a revista Época que, na edição de 03 de setembro de 2012, publicou uma matéria intitulada Lições de um filósofo pop. Sua chamada dizia: “com textos de autoajuda leves e eruditos, repletos de referências aos grandes pensadores, o suíço Alain de Botton quer nos ensinar a viver melhor” (VENTICINQUE, 2012, p.82). Mostrando algumas variações de nomenclatura adotada por outros autores para esse tipo de literatura, como “lifestyle design” ou “psicologia aplicada”, a reportagem cede amplos espaços por página para apresentar a nova coleção de livros organizada pelo filósofo suíço, “A escola da vida”, The school of life, nome dado também a sua escola de filosofia, em Londres. Nessa coleção de livros, as ideias de como se pode e/ou como se deve viver enreda-se em toda a concepção e a argumentação dos textos, escritos por especialistas de diferentes áreas e selecionados por de Botton, cujos títulos vão desde Como encontrar o trabalho de sua vida a Como pensar mais sobre sexo. Apesar das críticas, seus livros têm se tornado best-sellers nas línguas em que foram traduzidas, e sua escola vem angariando novos seguidores – nome que não é mera coincidência mediante a vontade do filósofo suíço em construir um “templo para ateus”. 1 O texto, originalmente em inglês, será utilizado com traduções nossas. Supomos que esse movimento de conhecimento aplicado à vida prática, tão recorrente nessa discursividade filosófica popularizada, aproxima-se do que Foucault denominou de governamentalização da sociedade. Talvez seja possível supor, então, que a ideia de uma expertise do como viver redunda na regulação do como se deve viver ou, mais precisamente, em como se deve governar a si mesmo – ideias convergentes ao que Foucault denominou de práticas de si coordenadas por práticas da ordem do poder pastoral/poder disciplinar (2006; 2010; 2011) e ao que Rose denominou como expertise nas sociedades liberais avançadas (2007). O acontecimento da popularização da filosofia como um espraiamento ou uma variação das práticas e das artes de direção de consciência pela verdade através dos meios de comunicação pode ser problematizado, por sua vez, não em termos de ideologia ou manipulação, mas como uma luta perene na constituição do sujeito e do conhecimento. O sujeito constituído na trama do saber como estratégias de poder. Antes, relações de poder (entre autor, público, mídia, economia) que conformam saberes e que fazem circular ideias com o propósito de codificar modelos de conduta de vida e de pensamento que sejam adotados por pessoas a fim de se governarem. Considerações finais para um desdobramento analítico porvir Se na atualidade, frente aos saberes, as palavras, as coisas, não há nada a compreender, nada a interpretar, tal como Deleuze sugeriu a partir de sua conceitualização de uma filosofia pop (DELEUZE; PARNET, 2008), pois não há uma compreensão ou interpretação última e definitiva, podemo-nos crer sendo todos algozes e vítimas, carrascos e supliciados – comandamos e somos comandados com relação ao conhecimento. Seria o caso de, ao problematizar a popularização da filosofia, fazer surgir nos seus discursos, a sua performatividade e encontrar sua singularidade. Desenvolvendo nossa hipótese, tal performatividade da popularização produz uma demanda de um modo de fazer filosofia pedagogizado e pedagogizante. Um modo que converte o discurso filosófico em matriz de experiências relacionadas à formação e à terapêutica. Em poucas palavras, a discursividade em torno da popularização da filosofia faria parte de um processo de governamentalização da sociedade pelo saber e pela verdade filosófica cujos fins são ora educacionais, ora terapêuticos, ora complementares à formação global do indivíduo – todas, práticas carreadas por um talvez contemporâneo papel do filósofo como intelectual. Nesse sentido, nossa hipótese de trabalho recai sobre a ideia da formação de uma expertise filosófica; expertise essa que estaria intimamente ligada à atualidade das funções do intelectual. Cabe-nos indagar como vem aparecendo a função do filósofo expert, do filósofo intelectual na mídia, para que possamos colocar à prova nossa hipótese da emergência de uma expertise filosófica para o governo do social. Governamentalização, pedagogização, popularização. Mas não nos apressemos: os pensadores irem a público para exporem suas ideias e debaterem livremente com outros não constitui um problema. Este, a nosso ver, seria o caráter pedagogizante da expertise e da autoridade arrolada ao papel do filósofo com relação à conduta, aos valores morais, aos modos de se pensar e de se endereçar ao próprio pensamento e à realidade. Um papel de aconselhamento e tutela da conduta e do pensamento alheios, valendo-se de obras filosóficas históricas para responderem problemas precisos do presente. Em jornais, revistas variadas e publicações especializadas, a filosofia e os filósofos passaram a figurar como tema e atores sociais autorizados a refletir e emitir uma gama de pareceres sobre os acontecimentos, os problemas e as soluções para a sociedade contemporânea. Tanto a filosofia como os filósofos passaram a estabelecer uma relação singular com a cultura de massa: ambos passaram a integrar o rol de discursos que compõem um amplo campo da expertise intelectual, a qual analisa e prescreve ações e condutas, que produz e julga políticas públicas e políticas educacionais etc. A preeminência de certos autores, temas e abordagens teóricas nos meios de comunicação, bem como a própria discursividade em torno da popularização, parecem-nos se constituir como formações discursivas que suscitam imperativos de consumo de saberes e de modos de conduta pessoal. Quiçá, com tal abordagem analítica, consigamos exercer uma filosofia, contra e a favor dela mesma, como um trabalho sobre seus limites que, por sua vez, seja “um trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade” (FOUCAULT, 2008, p.351). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). Trad. Antônio C. Galdino. In: BIROLI, Flávia; ALVAREZ, Marcos César (orgs.). Michel Foucault: histórias e destinos de um pensamento. Cadernos da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC-UNESP), Vol.9, n.1. Marília: UNESP-Marília-Publicações, 2000. p.169189. _____. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). São Paulo: Martins Fontes, 2006. _____. O que são as Luzes? In: _____. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p.335-351. (Ditos e escritos II). _____. O governo de si e dos outros: curso dado no Collège de France (1982-1983). São Paulo: Martins Fontes, 2010. _____. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: curso no Collège de France (1983-1984). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. ROSE, Nikolas. Government, authority and expertise in advanced liberalism. Economy and Society, 22:3, p.283-299, 2007. SANCHES, Tatiana Amendola. Filosofia pop: o fenômeno da popularização da filosofia e suas relações com a cultura midiática. Mediação, vol. 13, n. 13, jul-dez 2011, p.124-135. SILVA, Saulo Henrique Souza. A filosofia em meio à popularização e ao estranhamento. Disponível em: < http://www.ufs.br/conteudo/filosofia-meiopopulariza-ao-estranhamento-3163.html >. Acesso em: 10/11/2012. VENTICINQUE, Danilo. As lições de um filósofo pop. Época, p.82-90, 03 set. 2012.