CIÊNCIAS DA LINGUAGEM: AVALIANDO O PERCURSO, ABRINDO CAMINHOS Sandro Braga Maria Ester Wollstein Moritz Mariléia Silva dos Reis Fábio José Rauen (Organizadores) CIÊNCIAS DA LINGUAGEM: AVALIANDO O PERCURSO, ABRINDO CAMINHOS 2008 Ciências da Linguagem: avaliando o percurso, abrindo caminhos Sandro Braga Maria Ester Wollstein Moritz Mariléia Silva dos Reis Fábio José Rauen (Organizadores) Universidade do Sul de Santa Catarina Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem Coleção Linguagens Av. José Acácio Moreira, 787, Dehon 88.704-900 – Tubarão, SC – (55) (48) 3621-3369 Comissão Editorial Maria Marta Furlanetto (Presidente) Mariléia Silva dos Reis Fábio José Rauen Diagramação: Fábio José Rauen Capa: Nova Letra Figura: Aquarela “Pátio do Dehon”, de Jony Coelho Nova Letra Gráfica e Editora Ltda. Rua Governador Jorge Lacerda, 1809 – fundos Bairro da Velha – Blumenau – SC Fone 47 3325-5789 – www.novaletra.com.br C51 Ciências da linguagem : analisando o percurso, abrindo caminhos / Sandro Braga, Maria Ester Wollstein Moritz, Mariléia Silva dos Reis, Fábio José Rauen (orgs.). Blumenau : Nova Letra, 2008. 278 p.: il. ; 21 cm Inclui bibliografias ISBN 978-85-7682-357-5 1. Ensino Superior – Santa Catarina. 2. Universidades e faculdades – Santa Catarina – História. I. Braga, Sandro II. Moritz, Maria Ester Wollstein III. Reis, Mariléia Silva dos IV. Rauen, Fábio José V. Universidade do Sul de Santa Catarina. Mestrado em Ciências da Linguagem. VI. Título CDD (21. ed.) 378.8164 Elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul APRESENTAÇÃO Como o próprio nome infere, esta coletânea é muito mais que um conjunto de textos, é uma intenção. Ciências da Linguagem: avaliando o percurso, abrindo caminhos é a intenção de trazer à baila o estado de arte; fazer uma retrospectiva histórica; e estabelecer perspectivas em relação às pesquisas desenvolvidas pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que este livro celebra os dez anos de implantação do PPGCL, também renova a intenção do Programa de ajudar a construir, desenvolver e fortalecer a comunidade de pesquisadores, professores e alunos que trabalham temas com implicações, tanto em lingüística, como em literatura, comunicação social e pedagogia. Os textos que constituem esta coletânea são resultados de pesquisas desenvolvidas no Programa e servem ainda para situar futuros trabalhos, demarcando áreas de possíveis investigações científicas. Consideramos que este seja um passo importante para a consolidação da pesquisa em Ciências da Linguagem em nossa universidade, uma vez que nos pautamos por um viés multidisciplinar no campo da linguagem e sociedade. O presente compêndio reafirma essa tradição interdisciplinar e está subdivido em três grandes áreas, tal como o próprio PPGCL se estruturou: Textualidade e práticas discursivas Análise Discursiva de processos semânticos e Linguagem e processos culturais. Dentre essas linhas gerais do Programa, os textos procuram focar as áreas específicas de pesquisa dos docentes/pesquisadores. Deste modo, temos a seqüência de textos: Apresentação Textualidade e práticas discursivas Adair Bonini, no capítulo As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros: relato das pesquisas do ‘projeto gêneros do jornal’, apresenta os resultados do Projeto gêneros do jornal, em execução no PPGCL da Unisul. Em um primeiro momento, o autor descreve os objetivos do projeto em termos das motivações teóricas e aplicadas. Em um segundo momento, faz um retrospecto crítico da metodologia empregada no projeto, favorecendo uma reflexão sobre as metodologias de análise de gênero. Por último, estabelece um quadro das pesquisas e debates realizados em termos desse projeto, possibilitando uma visualização dos problemas teóricos e metodológicos envolvidos no estudo dos gêneros do jornal. Alguns aspectos desse debate, como a proposição do termo hipergênero e a discussão sobre as fronteiras genéricas no jornal, favorecem a reflexão sobre as teorias de gênero de um modo geral. Débora de Carvalho Figueiredo e Maria Ester Wollstein Moritz, no capítulo Discurso e sociedade: a perspectiva da análise crítica do discurso e da lingüística sistêmico-funcional, apresentam uma visão panorâmica da Análise Crítica do Discurso, uma abordagem teórico-metodológica voltada para a investigação do papel do discurso ou da semiose na constituição de visões de mundo, de relações sociais e de identidades sociais. Além disso, as autoras descrevem os projetos e trabalhos de pesquisa desenvolvidos no PPGCL que se filiam à ACD e que, como grande parte dos trabalhos nessa área, adotam a Lingüística Sistêmico-Funcional, LSF, como base teórica e analítica para a investigação de textos em situações concretas de uso e suas ligações com as práticas e as estruturas sociais mais amplas. Fábio José Rauen, no capítulo Teoria da relevância e ciências da linguagem: estado da arte, evolução e tendências, apresenta estudos de ordem textual-discursiva com base nos aportes da teoria da relevância. Após apresentar os conceitos centrais da teoria, são destacados os principais resultados de pesquisas abrigadas nos projetos: Pragmática, cognição e interação, que analisa aspectos cognitivos e interacionais da comunicação humana; e Teoria da relevância II: práticas de leitura e produção textual em contexto escolar, que aplica a teoria em contextos de leitura e produção textual em ambiente escolar. Mariléia Reis, no capítulo Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento, propõe uma síntese reflexiva de trabalhos que abordam o ensino de língua (incluindo a aprendizagem inicial da leitura), a partir de seus aspectos funcionais, cognitivos e sociais. Trata-se de pesquisas 6 Sandro Braga; Maria Ester Wollstein Moritz; Mariléia Reis; Fábio José Rauen realizadas no contexto do Grupo Análise do discurso: pesquisa e ensino – GADIPE, e que integram o projeto Letramento, ensino e sociedade, cujo foco temático recai sobre a premente necessidade de uma base teórica atualizada, que fundamente a ação pedagógica sobre os processos de aprendizagem inicial da leitura e da escrita que implicam a aprendizagem neuronial (Dehaene, 2007), com vistas a práticas sociais efetivas e significativas. São focalizadas: a formação do professor-alfabetizador estendida a todos os anos/séries iniciais (e não somente ao primeiro ano); a importância do desenvolvimento da consciência fonológica para a alfabetização, e a alfabetização com e para o letramento, com o objetivo de se prevenir o analfabetismo funcional no Brasil. Análise Discursiva de processos semânticos Marci Fileti Martins, Rosângela Morello e Solange Leda Gallo, no capítulo Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento, refletem sobre questões envolvendo, por um lado, a análise de materiais produzidos pela mídia e, por outro, o papel da ciência na sociedade contemporânea. A abordagem tem incidido, atualmente, em quatro eixos de reflexão: questões de autoria; ciência – processos e produtos; discurso científico na contemporaneidade – heterogeneidade e descontinuidade; e línguas, ciências e tecnologias. O objetivo dessas reflexões tem sido elaborar uma discussão no entremeio dos trabalhos de divulgação da Revista Laboratório Ciência em Curso (www.cienciaemcurso.unisul.br) e dos estudos sobre os modos de formulação e circulação do conhecimento, levando em conta as tecnologias, as línguas, os ambientes de ensino a distância e as linguagens midiáticas de modo geral. Maria Marta Furlanetto e Sandro Braga apresentam dois capítulos em co-autoria. O primeiro, intitulado Análise do discurso: o campo, tem como objetivo situar o leitor iniciante aos pressupostos teóricos da Análise de Discurso de corrente francesa, bem como aventar possibilidades de se desenvolverem pesquisas pautadas por essa corrente teórica. O segundo, Análise do discurso e ensino, põe em foco a linha de pesquisa Análise discursiva de processos semânticos, em sua vertente preferencial de compreensão das práticas de ensino e de aprendizagem, bem como de formação de professores, especialmente para o ensino fundamental. O objeto discurso é o que reúne todas as propostas apresentadas, de quadro teórico, de projetos, de realizações em geral, de produção acadêmica dos 7 Apresentação pesquisadores e de produção dos estudantes envolvidos. A par do que foi produzido desde que o grupo de pesquisa se formou e se consolidou, efetua uma análise dos resultados desse trabalho coletivo e apresenta, no final, as perspectivas do grupo, em meio às intempéries, bem como as provocações que estimulam a sofisticar e diversificar o trabalho, incluindo parcerias que podem significar enriquecimento de perspectivas e concretização de metas institucionais. Linguagem e processos culturais Aldo Litaiff, no capítulo Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina, trata do projeto Sem Tekoa não há teko: sem terra não há cultura, um estudo sobre o desenvolvimento auto-sustentável de comunidades indígenas guarani. Esse projeto teve como objetivo geral incentivar formas econômicas apropriadas ao etnodesenvolvimento e à auto-sustentabilidade das terras indígenas guarani do litoral do estado de Santa Catarina, medidas compatíveis com teko, ou seja, modo de ser da cultura Guarani. Partindo de uma experiência de mais de vinte anos junto às populações guarani do Brasil, buscou-se também contribuir no processo de regeneração da mata atlântica e do solo (para fomento da agricultura familiar, coletiva e outros tipos de manejo florestal, característicos desses índios), recentemente ocupado por cerca de 850 índios. O objetivo principal no projeto Registro audiovisual da execução do projeto Sem tekoa não há teko foi o de criar um registro (audiovisual) da execução do projeto Sem tekoa não há teko (também denominado projeto-base). Antonio Carlos Santos, no ensaio A imagem como matriz histórica da nação moderna, faz uma abordagem de suas pesquisas, a partir das noções de imagem e de nação. O objetivo é trabalhar com a produção de imagens da segunda metade do século XIX no Brasil – pintura, fotografia, literatura – para mapear uma constelação de problemas que envolvem a representação, o realismo, a nação como ficção. As teorias da imagem do século XX, de Benjamin, de Roland Barthes, de Susan Sontag, de Rosalind Krauss, de Vilém Flusser, segundo Santos, ajudam a pensar a fotografia e seus problemas como um análogo da modernidade. Se, como afirma Éric Michaud, as imagens produzem a realidade e não apenas são o testemunho delas, o autor indaga que realidade é essa que as imagens do século XIX constroem da nação? Que futuro é esse que a arte produz para o Brasil? 8 Sandro Braga; Maria Ester Wollstein Moritz; Mariléia Reis; Fábio José Rauen Eliane Santana Dias Debus, no ensaio A literatura de recepção infantil e juvenil: caminhos trilhados e perspectivas de pesquisas, apresenta os conceitos da literatura de recepção infantil e juvenil, mapeando os caminhos do gênero no Brasil, bem como os projetos de pesquisa desenvolvidos, delineando expectativas de trabalhos futuros. Fábio Messa, no capítulo Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime, faz um passeio pelo estado da arte de seu projeto de pesquisa Mitos e mídia, no PPGCL, apresentando um pouco das noções teóricas que o norteiam. O autor mostra de que forma estende a proposta do seu livro O Gozo Estético do Crime (2007), que tem como foco o texto ficcional, para o estudo da narrativa jornalística sensacionalista. Faz também, brevemente, algumas constatações sobre os trabalhos de mestrandos já egressos e suas relações com o tema. Fernando Vugman, no capítulo Estudos culturais, cinema e mito, faz uma apresentação inicial do surgimento dos estudos culturais, apontando seus fundadores, seus primeiros investigadores, rumos e paradoxos. A seguir, discute brevemente a relação entre o cinema, a sociedade de massas e as condições de surgimento dos estudos culturais. Na seção seguinte, já a partir da apresentação de suas pesquisas, indica seu interesse por literatura e cinema, pela discussão sobre modernidade e pósmodernidade, e a produção de mitos nas sociedades de massas contemporâneas. Ao final, descreve os resultados obtidos em suas pesquisas focadas principalmente no cinema hollywoodiano e, mais recentemente, no cinema brasileiro, fazendo menção a futuros caminhos de investigação. Jorge Hoffmann Wolff, no capítulo Documentos do presente, apresenta sua pesquisa homônima, voltada para as relações entre literatura e cinema brasileiros contemporâneos, incluindo suas vertentes ficcionais e documentais, em abordagem crítica ao “neonaturalismo” ou “neodocumentalismo” (Sussekind) predominante na cultura do país desde o século XIX. São discutidos, além dessas noções, os conceitos de documento (versus monumento, segundo LeGoff), de ficção documental (vista como “documento revelador do que não se quer ver”, conforme Bernardet), de mito moderno, como “fala despolitizada” e de efeito de real (segundo o primeiro e o último Barthes). Em função do debate ligado à representação na modernidade, é posta à tona a questão da fotografia, segundo o mesmo Barthes, sobretudo em A câmara clara, assim como em Benjamin, Sontag, Flusser, paralelamente às teorias do cinema e da imagem de Deleuze, Rancière e Comolli. 9 Apresentação Jussara Bittencourt de Sá, no capítulo A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações, apresenta aspectos teóricos e reflexões sobre sua trajetória como professora e pesquisadora do PPGCL. A autora destaca a relevância dos estudos, na medida em que se colocam em cena, dentre outros, os elementos da estética, a identidade da linguagem da arte e os meios de comunicação que a veiculam. Sublinha que suas aulas e pesquisas estão direcionadas às diferentes manifestações artísticas e ao contexto, observando também, além do transitar de mitos: o lugar que a arte ocupa nas sociedades, os mitos que a arte traz à cena, as mídias que a veiculam e, também, a práxis pedagógica que a didatiza. No âmbito das reflexões, são apresentadas pesquisas já concluídas e em fase de elaboração, como também aspectos do grupo de pesquisa A estética das linguagens verbais e não-verbais e dos projetos de pesquisa: Os Artistas e Seus Lugares e Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual, escrita e midiática. Por fim, a pesquisadora evidencia que os olhares para a estética e a identidade das linguagens artísticas e midiáticas, que advêm das aulas e das pesquisas, demarcam a percepção de que a cultura (arte e mídia) pode possibilitar o abrir de muitas portas ainda fechadas em nosso contexto. Boa leitura! Sandro Braga Maria Ester Wollstein Moritz Mariléia Reis Fábio José Rauen 10 DEZ ANOS DE HISTÓRIA Aos 2 de dezembro de 1998, em reunião da Câmara de Gestão da Universidade do Sul de Santa Catarina, cria-se o Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem. Não se tratava de um evento trivial. A Resolução CAMGES No 028/98, assinada pelo professor Silvestre Heerdt, materializava uma aspiração antiga do Curso de Letras e coroava exitosamente o trabalho pioneiro das professoras Albertina Felisbino, Amaline Boulos Issa Mussi, Mara Stringer da Fonseca, Maria Felomena Souza Espíndola e Maria Marta Furlanetto. A denominação do curso, Ciências da Linguagem, foi uma feliz sugestão de Maria Felomena Souza Espíndola. Já se desenhava com essa denominação, desde o nascedouro, o perfil mais abrangente que o curso abraçaria. Em abril de 1999, recebo o convite de Albertina Felisbino para coordenar o curso. Que decisão aquela, lembro-me. Não era apenas o caso de executar um projeto. Eu sabia que era o caso de dar formas concretas a um sonho, e sonhos estão entre os bens mais preciosos que alguém pode receber de outras pessoas. Talvez esteja aí o segredo dos segredos! Fomos aprendendo a coordenar, fomos aprendendo a criar uma cultura de stricto sensu, desde coisas mais simples até aquelas mais complexas: desde a organização da seleção de novos estudantes até a homologação do diploma. As aulas da primeira turma foram iniciadas em 15 de julho de 1999 em Tubarão. A segunda turma, um ano depois, teve início em 19 de julho. Oferecíamos, na época, duas áreas de concentração: Teoria e análise de linguagens e Lingüística aplicada ao ensino. Em 2001, o Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem expandiu-se para o campus da Grande Florianópolis, com a oferta de uma terceira área de concentração: Linguagem e tecnologia da informação. Sob a coordenação da professora Solange Leda Gallo, o campus de Florianópolis abre duas turmas em 2001 e 2002, enquanto o campus de Tubarão abre, nos mesmos anos, sua terceira e quarta turmas. Dez anos de história Ainda em 2000, demos início a um projeto de que muito nos orgulhamos: precisávamos canalizar a produção emergente e ser o lócus de discussão de questões de linguagem. Surge, então, a revista Linguagem em (Dis)curso, cuja denominação foi uma oportuna contribuição da professora Albertina Felisbino. Hoje, com a competente organização do professor Adair Bonini e sua equipe de editores, Linguagem em (Dis)curso é uma publicação quadrimestral dedicada a colaboradores do Brasil e do exterior interessados em questões textual-discursivas com inúmeras indexações internacionais e um portfólio que não se limita a seus números ordinários, mas inclui números especiais de significativa relevância para o debate nos estudos da Linguagem. Refiro-me aos números sobre: Subjetividade (2003), Análise crítica do discurso (2004), Teoria da relevância (2005), Gêneros textuais e ensino aprendizagem (2006), Metáfora e contexto (2007); e, em breve, sobre Letramento (2008). Naquele mesmo ano, com a meta de tornar todas as atividades do curso públicas e transparentes, criamos o sítio do mestrado na internet, no endereço www.unisul.br/linguagem. De pouco em pouco, o sítio foi se constituindo como um portal para os estudos da linguagem. Lembro-me, por exemplo, de nossa decisão histórica em 2003 de publicar todas as dissertações do curso. A Capes só torna essa medida obrigatória em 2006. Hoje, o sítio conta com um acervo público e gratuito de aproximadamente 250 artigos científicos, 200 dissertações, centenas de resumos e textos completos de anais de eventos locais e internacionais, promovidos ou patrocinados pelo curso. Além disso, podem ser obtidas inúmeras informações sobre a estrutura e a efervescência mesma do curso. Em 2002, o curso passou por sua primeira avaliação externa para fins de reconhecimento pelo Conselho Estadual de Educação. Naquela oportunidade, recebemos a visita de uma Comissão Verificadora formada pelos professores Osmar de Souza (Furb/Univali) e Loni Grimm-Cabral (UFSC). Com base no relatório da Comissão, que muito contribuiu para a as mudanças curriculares que vão se seguir, o curso foi reconhecido em Sessão Plenária do Conselho Estadual de Educação, em 9 de julho de 2002, ação que foi referendada pelo Decreto 5.458, de 29 de julho de 2002, publicado no Diário Oficial do Estado de Santa Catarina, em 30 de julho de 2002. 12 Fábio José Rauen Tão logo obtivemos o reconhecimento na esfera estadual, elaboramos uma revisão curricular, a fim de alinharmos o curso ao Sistema Nacional de Pós-graduação, que contou com a contribuição do professor Eduardo Guimarães (Unicamp). Entre as inovações, o curso aglutinou-se em uma única área de concentração, que denominamos Linguagem, mídias e processos discursivos. Com essa nova organização, a área de concentração passou a ser analisada sob três ângulos, as linhas de pesquisa: Análise discursiva de processos semânticos, Textualidades e práticas discursivas e Linguagem, cultura e mídia. Elaborado o novo projeto de curso de mestrado e seguindo as determinações da Capes, recebemos a visita de uma Comissão Verificadora formada pelos professores Sírio Possenti (Unicamp) e Dermeval da Hora (UFPB), em fevereiro de 2003. Considerando todas as instruções da Comissão, em abril de 2003, o projeto e seu regimento foram encaminhados à Capes. Naquele ano, recordo-me, não ofertamos uma nova seleção. Passados os trâmites legais, o curso foi aprovado pelo Comitê da Área de Letras/Lingüística, presidido pelo professor Antônio Dimas (USP), em janeiro de 2004. O Conselho Técnico Consultivo da Capes homologou essa decisão, em 10 de fevereiro de 2004. No mesmo ano, deu-se entrada no Processo de Reconhecimento junto ao Ministério da Educação – Processo n. 23038.017119/2004-21. O curso obteve parecer favorável da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, em 10 de novembro de 2004 – Parecer n. 314/2004. O reconhecimento ocorre em 21 de dezembro, pela Portaria 4.310 do Ministério da Educação, publicada no Diário Oficial da União, em 23 de dezembro de 2004 (seção 1, p. 33). Em março de 2004, o curso apresentou seu edital de seleção para as primeiras turmas do Currículo Capes. A turma de Florianópolis teve seu início em 5 de julho, e a turma de Tubarão em 7 de julho deste mesmo ano. Desde então, regularmente, foram ofertadas turmas em 2005, 2006, 2007 e 2008. Em 2006, o curso cria os periódicos científicos Crítica Cultural e Ciência em Curso. Critica Cultural é uma publicação semestral. A revista atende colaboradores do Brasil e do exterior que estejam interessados em questões relativas ao campo da produção cultural, a partir de perspectivas teóricas originadas da crítica literária, em diálogo com os campos da arte, comunicação, cinema e audiovisual. 13 Dez anos de história A Revista Laboratório Ciência em Curso, por sua vez, busca polemizar a forma de divulgação de ciência feita pela mídia, uma vez que o que se percebe nos textos de divulgação de ciência, sobretudo nos textos de jornalismo científico, é uma tendência a fazer prevalecer conhecimentos da própria mídia sobre ciência, ou seja, as matérias publicadas são sustentadas por materiais midiáticos provenientes de produções anteriores, não constituindo, portanto, um conhecimento baseado na memória da ciência e da pesquisa, mas na memória da própria mídia sobre a ciência. Em 2007, o curso realizou o 4º Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais/4th Symposium on Genre Studies. Nessa edição, organizada pelos professores Adair Bonini (Unisul), Débora de Carvalho Figueiredo (Unisul) e Charles Bazerman (California University, USA), os objetivos do evento foram os de: congregar pesquisadores brasileiros e estrangeiros envolvidos em estudos sobre gêneros textuais; discutir questões teóricas e aplicadas relacionadas à pesquisa em gêneros textuais; divulgar estudos teóricos e aplicados que possam contribuir para releituras de diferentes enfoques e abordagens postos sobre esse objeto de pesquisa; e oportunizar a discussão de questões relevantes para a construção de uma agenda política e pedagógica que possa contribuir para as políticas governamentais. O evento contou com cerca de mil participantes, dentre os quais uma centena de pesquisadores estrangeiros, reunindo em Tubarão, SC, os maiores expoentes da área no mundo. Ainda em 2007, o PPGCL promoveu nova reformulação curricular com vistas à proposição de curso de doutorado. Nessa reformulação, o Programa reformulou a denominação de sua área de concentração para Processos textuais, discursivos e culturais e reformulou a denominação de suas linhas de pesquisa para: Textualidade e práticas discursivas, Análise discursiva de processos semânticos e Linguagem e processos culturais. Em dezembro, em fórum específico realizado no campus da Pedra Branca, em Palhoça, SC, o projeto foi apreciado pelo coordenador de área de Letras/Lingüística da Capes, professor Benjamin Abdala Júnior. Em março de 2008, o projeto foi apresentado à Capes e, até o momento, aguardamos a visita de Comissão Verificadora formada pelas professoras Diana Luz Pessoa de Barros (UPM) e Célia Marques Telles (UFBA). Destaco ainda que, neste último dia 31 de outubro, em Assembléia do VIII Encontro do Círculo de Estudos Lingüísticos, realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi eleita a nova diretoria da entidade, integralmente formada por professores do Programa. Presidirá o 14 Fábio José Rauen CELSUL, no biênio 2009-2010, a professora Débora de Carvalho Figueiredo, com a vice-presidência da professora Maria Marta Furlanetto, a secretaria da professora Maria Ester Wollstein Moritz e a tesouraria do professor Adair Bonini. Valho-me, por fim, da apresentação de Paulo Markun e Duda Hamilton em seu livro Muito além de um sonho sobre a história da Unisul. Nesse texto, os autores afirmam que o livro “narra a trajetória de uma idéia utópica, de um sonho desacreditado por muitos e que, contra os obstáculos, conseguiu-se sobrepor ao medo, à descrença e à confortável apatia”. Decorrência de utopia, desacreditado por alguns poucos, felizmente, dez anos de Mestrado em Ciências da Linguagem revelam coragem, crença e vivacidade de todos seus professores, colaboradores, alunos e egressos. O produto acadêmico dessa história, cada capítulo que se segue revelará. Todavia, sei que há um algo a mais nesse projeto. Algo que se sente muito mais do que se discursa. Esse algo me faz convicto de que os anos vindouros serão ainda mais plenos de sucessos. Tubarão, 10 de novembro de 2008 Prof. Dr. Fábio José Rauen Coordenador PS – Quero expressar meus mais sinceros agradecimentos a todos os alunos, egressos, estagiários, professores e secretárias do curso de Mestrado em Ciências da Linguagem, sem os quais o sucesso do curso não seria possível. Em especial, quero agradecer aos nossos professores: Adair Bonini, Albertina Felisbino, Aldo Litaiff, Antonio Carlos Gonçalves dos Santos, Débora de Carvalho Figueiredo, Dulce Márcia Cruz, Eduardo Búrigo de Carvalho, Eliane Santana Dias Debus, Fábio de Carvalho Messa, Fernando Simão Vugman, Ingo Voese (in memoriam), Jorge Hoffmann Wolff, Jussara Bittencourt de Sá, Luiz Felipe Guimarães Soares, Marci Fileti Martins, Maria Ester Wollstein Moritz, Maria Felomena Souza Espíndola, Maria Marta Furlanetto, Mariléia Silva dos Reis, Mário Guidarini, Oscar Ciro Lopez Vaca, Rosângela Morello, Sandro Braga, Solange Maria Leda Gallo e Wilson Schuelter; e às nossas secretárias: Layla Antunes de Oliveira, Maricélia de Moraes e Sheila Teresinha Viana Bardini. 15 SUMÁRIO PARTE I TEXTUALIDADE E PRÁTICAS DISCURSIVAS .............................. 19 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros: relato das pesquisas do ‘Projeto Gêneros do Jornal’ Adair Bonini .......................................................................................... 21 Discurso e sociedade: a perspectiva da análise crítica do discurso e da lingüística sistêmico-funcional Débora de Carvalho Figueiredo Maria Ester Wollstein Moritz ................................................................ 47 Teoria da relevância e ciências da linguagem: estado da arte, evolução e tendências Fábio José Rauen .................................................................................. 67 Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento Mariléia Silva dos Reis.......................................................................... 99 PARTE II ANÁLISE DISCURSIVA DE PROCESSOS SEMÂNTICOS........... 113 Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento Marci Fileti Marins Rosângela Morello Solange Maria Leda Gallo .................................................................. 115 Análise do discurso: o campo Sandro Braga Maria Marta Furlanetto ...................................................................... 129 Análise do discurso e ensino Maria Marta Furlanetto Sandro Braga....................................................................................... 143 PARTE III LINGUAGEM, CULTURA E MÍDIA.................................................. 167 Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina Aldo Litaiff........................................................................................... 169 A imagem como matriz histórica da nação moderna Antônio Carlos Santos ......................................................................... 185 A literatura de recepção infantil e juvenil: caminhos trilhados e perspectivas de pesquisas Eliane Santana Dias Debus................................................................. 199 Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime Fábio de Carvalho Messa.................................................................... 213 Estudos culturais, cinema e mito Fernando Simão Vugman .................................................................... 229 Documentos do presente Jorge Hoffmann Wolff ......................................................................... 239 A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações Jussara Bittencourt de Sá .................................................................... 255 Os autores................................................................................................ 271 18 PARTE I TEXTUALIDADE E PRÁTICAS DISCURSIVAS AS RELAÇÕES CONSTITUTIVAS ENTRE O JORNAL E SEUS GÊNEROS: RELATO DAS PESQUISAS DO ‘PROJETO GÊNEROS DO JORNAL’ Adair Bonini 1. Introdução Os estudos sobre gêneros textuais surgiram atrelados ao debate sobre ensino de produção e compreensão de textos. A contribuição para o entendimento e aprimoramento dos processos e práticas de ensinoaprendizagem, portanto, tem sido uma diretriz básica nessas pesquisas. Outro objetivo evidente desses estudos é propiciar resultados que viabilizem uma melhor compreensão de práticas sociais em esferas, ambientes e comunidades sociais específicos. 1 Dentro desse campo, o estudo dos gêneros do jornal se revela válido em ambas as direções. Por um lado, devido ao fato de o jornalismo tomar parte nas mídias de massa (um dos fenômenos estruturantes da sociedade na modernidade e, de forma mais enfática, na modernidade tardia), ele se revela matéria essencial no ensino de linguagem. A indicação de trabalho com os gêneros da imprensa consta, por exemplo, dos Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998, p. 53). Por outro lado, o estudo desses gêneros também traz contribuições para o entendimento do modo como as práticas a eles atreladas se realizam. Resultados da pesquisa em gêneros relacionados a esse foco de atenção são de relevância evidente, uma vez que essa é uma faceta do jornalismo ainda pouco estudada, pelo menos dentro dessa ótica, conforme demonstra o levantamento da literatura da área de Comunicação no Brasil apresentado em Bonini (2003a). 1 Bhatia (2004) assinala quatro espaços a que o estudo dos gêneros textuais pode se ater: a) o social (discurso como prática social/conhecimento pragmático social); b) o profissional (discurso como prática profissional/expertise profissional); c) o tático (discurso como gênero/conhecimento de gênero); e d) o textual (discurso como texto/conhecimento textual). As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... O projeto Gêneros do Jornal (PROJOR-UNISUL) atua nessas duas vertentes, embora enfatizando uma contribuição para o ensino de leitura e escrita nos níveis fundamental e médio (cf. BONINI, 2005). Neste artigo faço um relato das pesquisas realizadas no interior desse projeto. Procuro centrar a atenção nos resultados alcançados até o momento, de modo a possibilitar uma visualização crítica do ponto de partida do projeto e do impacto desses resultados para entendimento desse conjunto de gêneros e no debate teórico. Nas seções que se seguem, são expostos: 1) as bases do projeto; 2) os resultados produzidos até o momento; e 3) um balanço dos resultados e o que se revela viável para o futuro dessas pesquisas. 2. Projeto Gêneros do Jornal Para possibilitar uma visualização do modo como o PROJOR está estruturado, me centro aqui em três aspectos: a metas, as bases teóricas e a metodologia. 2.1. Escopo do projeto De acordo com o levantamento desenvolvido por Bhatia (2004), o quadro dos estudos de gêneros textuais vai de uma abordagem centrada em aspectos lingüísticos, ampliando-se gradativamente para aspectos do contexto (fases: 1. da textualização, centrada em aspectos léxicogramaticais dos textos; 2. da organização, centrada na estrutura dos textos e práticas; e 3. da contextualização, centrada nos usos e nas razões sociais para tais usos). Tem havido, portanto, um esforço para se entenderem os processos de produção e a compreensão de textos como práticas sociais e, nesse sentido, como conhecimento situado. Dentro deste enquadramento, os pesquisadores e teóricos de gêneros textuais têm procurado se desvencilhar de pesquisas centradas em gêneros exclusivos para se centrar na relação entre gêneros em certos meios sociais específicos. Procuram desvendar as inter-relações que se estabelecem, por um lado, entre gêneros e, por outro, entre gêneros e práticas constitutivas de determinado ambiente social. Na esteira desse esforço, têm surgido novos conceitos que procuram descrever essa complexidade, a exemplo dos conceitos de sistema de gêneros 22 Adair Bonini (BAZERMAN, 1994), conjunto de gêneros (DEVITT, 1991), hierarquia e cadeia de gêneros (SWALES, 2004), textografia (SWALES, 1998), ecologia de gêneros (SPINUZZI, 2003). O PROJOR se alia a esse esforço de levantar dados que expliquem o modo como, em conjunto, os gêneros funcionam em relação a práticas empíricas. Os gêneros do jornal, embora muitas vezes encarnados em ações individuais, confluem para um todo que é o próprio jornal. Neste caso, os gêneros, presumivelmente, constituem-se uns em relação aos outros e em relação ao todo do próprio jornal, tanto em termos dos propósitos comunicativos que compartilham quanto em termos da configuração formal (ou estrutural). A análise global do jornal no PROJOR, no sentido do entrelaçamento entre propósitos comunicativos e formas textuais, procura responder duas questões centrais, quais sejam: a) Como o jornal funciona e se estrutura do ponto de vista do meio em que é produzido e do ponto de vista dos gêneros que nele circulam? b) Quais são os gêneros do jornal e como se constituem individualmente e em relação ao conjunto? Procurando compreender a sistemática de propósitos comunicativos e dispositivos textuais envolvidos na produção do jornal, a pesquisa tem como objetivos: a) descrever a organização textual do jornal e sua função no meio em que é produzido; b) descrever o funcionamento dos gêneros na constituição do jornal; c) produzir um inventário dos gêneros do jornal; d) descrever os gêneros do jornal. O tema do PROJOR, portanto, é a inter-relação entre gêneros e jornal, de modo que o projeto tem como grande meta descrever a estrutura e o funcionamento do jornal em relação ao meio social em que é produzido e em relação aos gêneros que caracteristicamente nele circulam. Neste caso, 23 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... a descrição/interpretação do jornal produzirá necessariamente um inventário do conjunto de gêneros que lhe são próprios. O projeto existe oficialmente desde 2003, embora sua organização tenha se iniciado em 2000. No interior desse projeto, foram orientadas, até o momento, as seguintes dissertações: Figueiredo (2003), Kindermann (2003), Simoni (2004), Innocente (2005), Cassarotti (2006), Borba (2007), Caldeira (2007), e Monteiro (2008). Outras quatro estão em fase de desenvolvimento: Corrêa (2007), Fogolari (2008), Francischini (2008) e Lima (2008). 2.2. Embasamento teórico A abordagem sócio-retórica de estudo da linguagem concebe o gênero como ação social de natureza intersubjetiva que emerge em situações retóricas recorrentes (MILLER, 1984). Neste sentido, procura-se verificar sob quais condições sociais, lingüísticas e cognitivas os usos da linguagem ocorrem para serem entendidos como bem sucedidos. Os gêneros, bem como as práticas e ações sociais a eles relacionadas, são observados em termos de sua ocorrência em comunidades retóricas (MILLER, 1984) ou comunidades discursivas (SWALES, 1990). Outra forma de considerar os gêneros é mediante sua ocorrência em sistemas de atividade (BAZERMAN, 1994, 2005) que, em geral, estão relacionados diretamente a determinados meios sociais, embora, muitas vezes, possam cruzar tais fronteiras. Nesse último caso, eminentemente relacionado ao sistema de atividades, está o “sistema de gêneros”, que são, segundo Bazerman (1994): “gêneros inter-relacionados que interagem uns com os outros em locais específicos” (p. 98). O estudo de sistemas de gêneros permite visualizar os processos de produção e compreensão textual como realizações em cadeias de atividades em meios sociais específicos. 2 As pesquisas realizadas no PROJOR têm como orientação central os conceitos de gênero e comunidade discursiva de Swales (1990). Para esse autor, o “gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos exemplares compartilham os mesmos propósitos comunicativos” (p. 58), consistindo em uma dinâmica de linguagem que envolve a realização de propósito(s), segundo uma lógica subjacente, uma organização textual 2 Para uma introdução sobre os trabalhos de Swales e Bazerman, bem como para uma noção geral sobre a perspectiva sócio-retórica de análise de gêneros, consultar Bonini, BiasiRodrigues e Carvalho (2006). 24 Adair Bonini prototípica e uma identificação pela comunidade mediante um nome específico. As comunidades discursivas, por sua vez, “são redes sócioretóricas que se formam com a finalidade de atuar em torno de conjuntos de objetivos comuns” (p. 9). Há, portanto, uma relação imediata entre a organização discursiva da comunidade (o que os membros fazem no conjunto, por que fazem) e as ações retóricas realizadas por seus membros (quais textos produzem, com base em quais pistas de validade). Nas pesquisas do PROJOR têm sido considerados também os trabalhos subseqüentes de Swales (1992, 1998, 2004), que reformulam ou complementam aspectos da obra de 1990. Além disso, tem-se procurado, nessas pesquisas, complementar as reflexões de Swales de vários modos, com outras bases teóricas, mas principalmente com a teorização sobre sistema de gêneros, formulada por Bazerman (1994, 2005). 3 O quadro conceitual proposto pela abordagem sócio-retórica possibilita tanto o estudo da organização dos gêneros – mediante, por exemplo, a análise de movimentos retóricos (SWALES, 1990) – quanto o levantamento de suas condições de produção – mediante o estudo de comunidades discursivas (SWALES, 1990), de sistemas de gêneros (BAZERMAN, 1994), e da relação entre os processos de produção e leitura e os papéis sociais assumidos pelos praticantes desses gêneros (PARÉ; SMART, 1994). 2.3. Metodologia O desenho metodológico empregado no projeto tem evoluído com o passar do tempo. Inicialmente, propus um quadro de procedimentos que possibilitassem um estudo relacionado do jornal com seus gêneros (BONINI, 2002). Essa metodologia consistia em dois níveis de análise: o macroestrutural (do jornal em relação aos gêneros) e o microestrutural (dos gêneros em relação ao jornal) (cf. quadro 1). 3 Vale lembrar que nem sempre a teoria adotada consegue dar conta dos aspectos mais importantes de um gênero em estudo. É nesse sentido que, em Bonini (no prelo), procurei analisar os conceitos de notícia e reportagem presentes na literatura da Comunicação a partir de uma mescla da explicação de gênero de Swales (1990) e Paré/Smart (1994). Considerei, desse modo, que um gênero pode ser visualizado a partir das seguintes características: 1) propósito; 2) aspectos de produção e/ou leitura e papéis sociais envolvidos; 3) organização textual/retórica; e 4) a nomenclatura empregada na comunidade. Os aspectos 1, 3 e 4 provêm de Swales (1990) e o aspecto 2 (ou aspectos) provém de Paré e Smart (1994). 25 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... MACROANÁLISE (1) Levantar a literatura a respeito do jornal. Nesta etapa, procede-se à leitura, com vias a determinar a tradição relativa ao jornal e fazer um inventário dos gêneros: i) dos principais manuais de jornalismo; ii) dos textos acadêmicos sobre o jornal; e iii) de possíveis estudos que o analisem do ponto de vista genérico; (2) Estabelecer uma interpretação estrutural para o jornal. Nesta etapa, procede-se: i) ao levantamento dos padrões textuais (partes e mecanismos característicos) e lingüísticos (léxico, emprego verbal, padrão oracional, etc.) de estruturação do jornal; ii) ao levantamento dos gêneros ocorrentes no jornal; e iii) ao levantamento das relações com outros gêneros amplos; (3) Estabelecer uma interpretação pragmática para o jornal. Nesta etapa, procede-se: i) à análise da comunidade discursiva em que jornal se insere; ii) ao estabelecimento dos papéis interacionais (incluindo-se aí também a análise dos propósitos, objetivos e interesses compartilhados e intervenientes; e iii) à consulta a informante da comunidade discursiva. MICROANÁLISE (1) Levantar a literatura a respeito do gênero. Nesta etapa, com vias a determinar a tradição relativa ao gênero em estudo, procede-se à leitura: i) dos principais manuais de jornalismo; ii) dos textos acadêmicos sobre o gênero; e iii) de possíveis estudos que o analisem do ponto de vista genérico; (2) Estabelecer uma interpretação estrutural para o gênero. Nesta etapa, procede-se: i) ao levantamento dos mecanismos textuais (movimentos, passos e seqüências) e lingüísticos (léxico característico, emprego verbal, padrão oracional, etc.) de estruturação do gênero; e ii) ao levantamento das relações com outros gêneros e com o jornal; (3) Estabelecer uma interpretação pragmática para o gênero. Nesta etapa, procede-se: i) à análise da comunidade discursiva em que o gênero se insere; ii) ao estabelecimento dos papéis interacionais (incluindo-se aí também a análise dos propósitos, objetivos e interesses compartilhados e intervenientes); e iii) à consulta a informante da comunidade. Quadro 1 – Uma proposta metodológica para o estudo inter-relacionado dos gêneros do jornal (BONINI, 2002). Dentro deste quadro de procedimentos, inspirados em Swales (1990) e Bhatia (1993), a macroanálise correspondia a um levantamento da composição estrutural do jornal, tendo em mente o fato de que os gêneros que lhe são próprios desempenham um papel em sua constituição. A macroanálise, neste caso, teria a função de produzir também uma explicação do modo como o jornal funciona socialmente. 26 Adair Bonini No nível microanalítico de funcionamento desses gêneros, seriam considerados os gêneros do jornal em relação ao papel comunicativo/enunciativo que cumprem no meio social jornalístico e em relação ao modo como estruturam o todo do jornal (como o jornal se organiza, quantas seções e cadernos, quais gêneros predominam nessas seções, quais gêneros organizam o jornal). Nesse enquadramento, o segundo conjunto de procedimentos da microanálise (estabelecer uma interpretação estrutural para o gênero) tem sido realizado, essencialmente, mediante a análise de movimentos de Swales (1990). Esse método de análise textual consiste na comparação entre os exemplares de determinado gênero, procurando-se verificar, pela recorrência, as ações retóricas que são realizadas no sentido de produzi-lo (ou compreendê-lo). O exemplo clássico dessa metodologia é o modelo CARS (create a research space) que Swales (1981, 1990, SWALES; NAJJAR, 1987) construiu para explicar a organização retórica da introdução de artigos de pesquisa. Em sua última versão (SWALES, 1990), o modelo apresenta três movimentos que são materializados pela realização dos passos que o compõem. 4 Para realizar o movimento 3 de uma introdução de artigo de pesquisa (“ocupar o nicho”), e portanto para produzir a parte final da introdução, é necessário, desse modo, que o produtor realize, inicialmente, os passos 1A (delinear os objetivos da pesquisa) ou 1B (apresentar a pesquisa), que são opcionais, e, em seguida, os passos 2 (apresentar os principais resultados) e 3 (indicar a estrutura do artigo). 5 Embora pudessem permitir o trabalho da inter-relação entre gêneros e jornal, os procedimentos expostos no quadro 1 se revelavam limitantes para o estudo de outros aspectos contextuais dos gêneros. A tentativa de se estudar o encadeamento de um gênero em estudo com outros (o sistema de gêneros), por exemplo, não era possível dentro desse enquadramento, a não ser com alguma adaptação. Não se tornava fácil também levantar outros aspectos de determinado gênero (processos de composição e leitura) ou as identidades dos enunciadores envolvidos. 4 Estou considerando esta a última versão do CARS, devido ao fato de ser a última formulação teórica, mas é preciso considerar que aparece uma reformulação posterior no curso de escrita acadêmica desenvolvido por Swales e Feak (1994). 5 Para maiores detalhes sobre essa metodologia, consultar Hemais e Biasi-Rodrigues (2005). 27 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... Desse modo, mais recentemente nas pesquisas do PROJOR, o enquadramento metodológico proposto por Paré e Smart (1994) tem sido eleito como diretriz, a partir da qual outros aspectos são observados: relações hipergenéricas e sistemas de gêneros (cf. figura 1). 6 Esses autores propõem que sejam considerados quatro aspectos em relação a determinado gênero em estudo: 1) as regularidades textuais; 2) as regularidades nos processos de composição; 3) nas práticas de leitura; e 4) nos papéis sociais dos envolvidos. 7 Ao se considerar essa proposta de Paré e Smart (1994), o sistema de gêneros, a relação entre os gêneros e o jornal, entre outros aspectos, podem ser estudados como parte de um (ou mais de um) dos componentes desse grande enquadramento (fig. 1). Dependo da delimitação posta sobre um gênero em estudo, o sistema de gêneros pode ser estudado como uma forma de explicar seu processo de composição (o impacto de um gênero sobre a produção de outro), o processo de leitura (como a leitura de outro gênero é necessária e impacta a leitura do gênero em estudo), e os papéis sociais (quais relações sociais são necessárias para realização de determinado gênero e de que tipo são essas relações). O estudo do sistema de gêneros pode ser ampliado para uma pesquisa de campo que envolva observação, questionário, entrevista, etc. De modo complementar ao estudo dos quatro componentes apontados por Paré e Smart (1994), as relações entre gênero e hipergênero podem entrar como parte do estudo das regularidades da organização textual do gênero. O lugar e modo de funcionamento no jornal produzem uma contextualização para o estudo da organização do gênero. Ao mesmo tempo, o estudo do gênero segundo essa perspectiva possibilita compreender aspectos da organização do jornal como um hipergênero. No interior do jornal, o gênero cumpre funções hipergenéricas: alguns, por exemplo, organizam o hipergênero (a chamada de capa, o sumário, o expediente, etc.), outros cumprem o(s) objetivo(s) do hipergênero (a notícia, a entrevista, o artigo de opinião, etc.). Em termos dessas relações hipergenéricas, podem ser observados: os lugares de ocorrência do gênero (na seção, na página, nos cadernos, no jornal) e a recorrência do gênero no jornal por um período de tempo (uma semana, um mês, etc.). 6 As relações hipergenéricas se dão entre o hipergênero (o jornal, nesse caso) e o gêneros componentes (notícia, reportagem, editorial, etc.) 7 Para uma introdução à metodologia de Paré e Smart (1994), consultar Carvalho (2005). 28 Adair Bonini Figura 1– Enquadramento metodológico do estudo dos gêneros no PROJORUNISUL. O gênero é um objeto bastante complexo que pode ser explorado de diversos ângulos. Contudo, quanto maior o número de ângulos e a profundidade da observação, maior será o tempo necessário para a consecução da pesquisa. O pesquisador pode, portanto, considerando as peculiaridades do gênero em estudo, delimitar um conjunto maior o menor de aspectos a serem observados. No caso do PROJOR, uma vez que se tem trabalhado essencialmente com pesquisas de mestrado, nas últimas delas (BORBA, 2007; CALDEIRA, 2007; CORRÊA, 2007; FOGOLARI, 2008; FRANCISCHINI, 2008; LIMA, 2008) se tem optado por considerar: a) as regularidades textuais do gênero, levantadas via análise de movimentos retóricos, e complementadas pelo levantamento das relações hipergenéricas; e b) as regularidades nos processos de composição do gênero, complementadas pelo levantamento do sistema de gêneros envolvido nessa composição. As primeiras pesquisas (FIGUEIREDO, 2003; KINDERMANN, 2003; SIMONI, 2004; INNOCENTE, 2005; CASSAROTTI, 2006) apenas se concentravam nos componentes 1 e A da figura 1, de modo que tem havido uma ampliação do foco. Embora a sócio-retórica seja uma escola de estudos da linguagem (com representantes principalmente nos Estados Unidos e no Canadá), ela não apresenta uma teoria unificadora. Desse modo, a composição de um 29 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... conjunto de procedimentos de pesquisa faz-se em virtude das peculiaridades do objeto em estudo e do foco de observação posto sobre ele, tendo como base, no entanto, as pesquisas e debates anteriores, bem com uma perspectiva de observação de natureza etnográfica. Por ser um conjunto de procedimentos relativamente abertos, a figura 1 poderia ter arranjos distintos, nos quais se poderia tomar como fio norteador o sistema de gêneros, as relações hipergenéricas ou mesmo outros aspectos intervenientes no funcionamento social do gênero (hierarquia de gêneros, conjunto de gêneros, cadeias de gêneros, por exemplo). Embora os aspectos focalizados e os procedimentos possam variar em alguma medida, tem sido comum nas pesquisas dentro dessa tradição a consideração das explicações postas sobre o gênero em estudo, conforme constem na literatura técnico-profissional e acadêmica da área em questão. Esse trabalho vai além de uma simples revisão da literatura, pois cabe ao analista de gênero envolvido com essa perspectiva analisar as explicações prévias do gênero no sentido de determinar o quanto elas conseguem delinear o gênero como um conjunto de práticas e ações sociais. 8 Para o corpus do projeto, foram coletados, previamente a seu início (durante todo o primeiro mês do ano de 2000), exemplares de nove jornais da grande imprensa brasileira (Diário Catarinense, Diário do Nordeste, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Gazeta do Povo, Jornal do Brasil, O Globo, O Povo e Zero Hora), totalizando 272 exemplares. As primeiras pesquisas tiveram esse corpus como base, embora focalizando apenas alguns deles: Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, O Globo, Diário Catarinense. A partir de 2007, como os jornais estivessem se tornando de difícil manuseio, em função de seu estado de conservação, foram descartados, e as pesquisas seguintes passaram a considerar exemplares atuais, por vezes recorrendo a outros jornais: citar pesquisas – Caldeira (2007), por exemplo, levou em consideração o jornal A Tribuna de Criciúma. 8 Essa distinção entre práticas e ações sociais não tem sido esclarecida na literatura. Em geral, diversos termos (tais como prática, ação, atividade) têm sido utilizados com o mesmo sentido (intercambiando-se uns pelos outros livremente). Como esse uso cria uma certa dissonância, tenho optado por diferenciar ação de prática social. Em Bonini (2007) propus que o termo prática social fosse utilizado para designar a o aspecto mais geral da realização social do gênero (por exemplo, relatar pesquisas) e ação social, para designar os procedimentos de textualização (o que, no caso do artigo de pesquisa consistiria em: delinear os objetivos da pesquisa; apresentar a pesquisa; apresentar os principais resultados; indicar a estrutura do artigo, etc.). 30 Adair Bonini 3. Resultados do projeto Nas próximas duas seções, procuro descrever os resultados das pesquisas no PROJOR, atendo-me às duas perspectivas focalizadas no projeto: do jornal em relação aos gêneros e vice-versa. 3.1. O jornal e seus gêneros Em temos do modo como os gêneros constituem o jornal, três resultados maiores das pesquisas e discussões do PROJOR podem ser destacados: a) a descrição da organização do jornal; b) a realização, mediante a literatura da área de comunicação, de um inventário de possíveis gêneros do jornal; e c) a proposição do conceito de hipergênero. Em um dos primeiros trabalhos publicados dentro do escopo desse projeto (BONINI, 2001), realizei uma análise da estrutura composicional do jornal Folha de São Paulo. Esse levantamento apontava para uma organização da Folha em três componentes estruturais: a) um módulo básico (Brasil; mundo); b) os cadernos fixos (economia; variedades; esportes; cultura); e c) os cadernos alternáveis (adolescência; turismo; agricultura; informática; infância; veículos e empregos). Na época, propus que o conteúdo do jornal seria organizado em função de dois campos de atenção (quadro 2). O primeiro deles seria o campo do jornal, onde se concentrariam textos que têm sua funcionalidade relacionada ao próprio jornal. Nesses termos, a chamada, por exemplo, não cumpre a função, pelo menos em primeiro plano, de levar ao leitor o relato de um fato. Pelo contrário, ela serve como uma espécie de sumário, resumindo a edição e apontando o local do jornal onde o texto se encontra. Além disso, ao relatar o suposto conteúdo mais interessante da edição, ela cumpriria a função de persuadir o leitor quanto à leitura e compra do jornal. Trata-se, portanto, de um texto que funciona metatextualmente em relação aos demais textos do jornal. Os textos potencialmente alvos dessas chamadas, por sua vez, comporiam o segundo campo da produção textual dentro do jornal, o que denominei campo das ações sociais. Eles consistiriam em relatos dos dados coletados pelos jornalistas, sendo, em sua maioria, dados relativos a fatos sociais ocorridos recentemente, em ocorrência ou por ocorrer. 31 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... NO CAMPO DO JORNAL NO CAMPO DAS AÇÕES SOCIAIS I – Cabeçalho II – Chamada de capa III – Índice IV – Editorial V – Expediente VI – Cartas do leitor VII – Caderno de notícias gerais VIII – Caderno temático IX – Página temática ou assinada X – Coluna assinada XI – Encarte XII – Caderno especial Quadro 2 – Organização temática do jornal. Esta análise conduziu a outras duas distinções: a) a dos gêneros em relação aos aparados de edição; e b) a dos gêneros presos e livres (quadro 3). A primeira distinção baseava-se no fato que, no jornal, alguns elementos são a base para se compor a maior parte dos gêneros praticados. Além disso, esses elementos, tais como o chapéu, olho, e título, compõem os textos de gêneros específicos, mas, ao mesmo tempo, fazem parte da própria organização do jornal, de modo que os denominei ‘aparatos de edição’. 9, 10 Com relação à segunda distinção, os gêneros presos são entendidos como sendo aqueles que têm o propósito central ligado à própria constituição e estruturação do jornal, tendo lugares fixos no jornal. O editorial é um destes gêneros, pois aparece em um espaço fixo do jornal e tem uma função evidentemente ligada ao jornal: expressar a opinião da empresa jornalística. Por outro lado, os gêneros livres (tais como a notícia, a reportagem, a entrevista, etc.) são aqueles que de fato trazem o conteúdo alvo do jornal (identificado no jargão da área como a “informação”). Não têm, em geral, um lugar fixo no jornal, pois dependem dos acontecimentos que estarão em evidência no dia da apuração. Além disso, o gênero que irá emergir nas páginas depende do tipo de material que foi apurado no dia 9 Chapéu é a “palavra ou expressão curta colocada acima de um título. Usada para indicar o assunto de que trata o texto ou os textos que vêm abaixo dela” (FOLHA de S. Paulo, 1998, p. 130-131). 10 O olho é um pequeno trecho da fala da pessoa abordada pelo texto, podendo aparecer como antetítulo, chamada, intertítulo, ou na forma de janela no meio do texto. Essa última talvez seja a forma mais corrente, sendo a definição adotada no manual de estilo da Folha de S. Paulo (1998, p. 157-158). 32 Adair Bonini pelo jornalista e de uma série de decisões editoriais. A depender dessas decisões editoriais, como afirma Borba (2007), a gravação de uma entrevista face a face pode se transformar em um texto de entrevista pingue-pongue ou de entrevista corrida. GÊNEROS Presos: Editorial Carta do leitor Expediente Chamada Índice Cabeçalho APARATOS DE EDIÇÃO Manchete Lide Lista Painel Chapéu Olho Tabela Gráfico Citação Exemplo Perfil Selo Livres: Notícia Nota Crítica Comentário Opinião Reportagem Entrevista Claquete Quadro 3 – Gêneros e aparatos de edição do jornal (BONINI, 2001). Esse conjunto de distinções serviu como parâmetro para a organização de um levantamento dos possíveis gêneros do jornal (BONINI, 2003a) (quadro 4). Nesse caso, houve a tentativa de separar os gêneros externos e internos ao jornal e, em relação a esses segundos, a distinção entre centrais (relacionados aos objetivos principais do jornal, tais como informar e discutir eventos e temas sociais) e periféricos (relacionados a atividades que apenas atingem o jornal, mas não constituem seu fim último). Os gêneros centrais, por sua vez, foram alocados em duas categorias: presos e livres (com a mesma concepção exposta acima), sendo que esses últimos foram divididos em autônomos e conjugados. Essa classificação passa a mostrar os aparatos de edição como gêneros que estão a serviço de outros (conjugados). 33 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... NA ATIVIDADE JORNALÍSTICA * reunião de pauta * pauta * coletiva: entrevista NO JORNAL CENTRAIS PRESOS LIVRES AUTÔNOMOS * carta do leitor * expediente * cabeçalho * chamada * editorial * fotomanchete * índice * análise * artigo * nota [suelto, obtuário] * notícia * reportagem * entrevista * enquête * fotorreportagem * foto-legenda * comentário * crítica * resenha * tira * cartum * charge * roteiro * previsão do tempo * carta-consulta * efeméride PERIFÉRICOS CONJUGADOS * cronologia * gráfico * mapa * perfil * story-board * tabela * errata * fotografia [fotopotoca, portrait, de cena] * ficha técnica * galeria * grade * indicador * cotação * infográfico * lista [questionário, vocabulário, discografia, bibliografia] * lidão * endereço eletrônico * caricatura * referência bibliográfica * endereço * cineminha * anúncio [teaser, classificados, saia-e-blusa] * propaganda * aviso * cupom * expressão de opinião * informe publicitário * ensaio * editorial de moda * crônica * horóscopo * teste * folhetim * charada * palavra cruzada * poesia * conto * edital * balancete * receita * ata * apostila * dama * xadrez Quadro 4 – Gêneros relacionados ao jornal, arrolados nos manuais de estilo, nos dicionários de comunicação e na literatura acadêmica da área de comunicação [Os itens em negrito só foram encontrados no dicionário, os grifados, somente nos manuais de estilo e os com duplo grifo, somente na literatura acadêmica] (BONINI, 2003a). Hoje, considerando essas classificações em retrospectiva, observo certa fragilidade em alguns aspectos. Elas, contudo, tocam, penso, em problemas importantes da relação entre o jornal e seus gêneros. Na análise de um gênero qualquer do jornal, por exemplo, deve-se considerar o chapéu 34 Adair Bonini como um componente desse gênero ou do jornal? Como apontei em um texto no qual analiso duas edições completas do Jornal do Brasil (BONINI, 2005), parece existir no jornal certa indefinição de fronteiras entre as unidades textuais, o que acaba se revelando uma de suas marcas. A questão é que a produção do jornal e de seus gêneros ocorre conjuntamente de modo que: textos produzidos por autores diferentes podem ser agrupados em um bloco temático único; e um texto escrito por um único autor pode ser separado em blocos menores, perfazendo outros textos. Distinguir o que é título e intertítulo na página do jornal nem sempre é uma tarefa muito fácil, devido a essa mescla, a essa escrita conjunta entre jornalista, editor e demais envolvidos. Com base nesta relação entre o jornal e seus gêneros, pensada a princípio através da distinção entre gêneros presos e livres, é que propus o conceito de hipergênero (BONINI, 2001, 2003b, 2005, mimeo). Afirmei, no primeiro texto em que tratei do assunto, que: “Embora na literatura sobre gêneros textuais o jornal seja caracterizado basicamente como um veículo, [há] motivos para considerá-lo um gênero que abriga outros (ou seja, um hipergênero), porque preenche quesitos como propósitos comunicativos próprios, organização textual característica [...] e produtores e receptores definidos” (BONINI, 2001). Pode-se acrescentar ainda, de acordo com Bonini (mimeo), que o jornal corresponde aos três quesitos apontados por Bakhtin (1953, p. 281) para caracterizar o enunciado (quadro 5). Como já havia feito em Bonini (2004), opto aqui também pelo conceito de enunciado como base da noção de gênero. Embora eu tenha trabalhado em muitos textos com a literatura proveniente da sócio-retórica, o conceito de ação de linguagem de Miller (1984) não me parece tão pertinente como unidade básica da linguagem quanto o conceito de enunciado de Bakhtin (1953), uma vez que esse último alcança uma caracterização mais plausível como unidade no fluxo da linguagem e como aspecto do comportamento comunicativo e interacional humano. Em 2005, afirmei que o hipergênero (por exemplo, o jornal) poderia equivaler ao suporte de textos, mas que nem todo suporte seria um hipergênero (por exemplo, um álbum de fotografias). Neste texto mais recente (BONINI, mimeo), opto pelo termo mídia, por já ser corrente, na literatura acadêmica e na sociedade, desconsiderando o termo suporte. Mantenho, contudo, a mesma hipótese para a relação entre o gênero e seu meio de circulação. Desse modo, o jornal se organiza como um hipergênero, mas também como uma mídia. Não é o caso, no entanto, da 35 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... televisão, que é uma mídia composta de diversos hipergêneros (telejornal, programa de auditório, talkshow) e gêneros (anúncio, vinheta, chamada). Características do enunciado, segundo Bakhtin (1953, p. 281) “exauribilidade do objeto e do sentido” “projeto de discurso ou vontade de discurso do falante” “formas típicas composicionais e de gênero do acabamento” Aplicação dessas características ao jornal A equipe que produz o jornal expressa todo o conteúdo que quer o pode expressar na edição. Esse conteúdo, por sua vez, funciona como uma unidade de conteúdo que pode ser alvo de replica, de modo que alguém pode afirmar, por exemplo: “Gostei da edição de ontem do jornal X”. Embora compartilhado entre muitos sujeitos e não passível de especificação, há um intuito na produção do jornal. Do mesmo modo como ocorre com outros enunciados coletivos, a exemplo de um filme, de um espetáculo, há, no caso do jornal, uma hierarquia de enunciadores. Sendo assim, alguns têm mais poder e espaço na construção do todo do que outros. No caso de um filme, é geralmente o diretor; no do jornal, os editores. O jornal apresenta uma organização genérica, composta principalmente de cabeçalho, chamadas, expediente, editorial, carta do leitor e cadernos. Essa organização, por sua vez, cria um espaço circulação para outros gêneros. Quadro 5 – Características do enunciado aplicadas ao jornal. 3.2. Os gêneros e o jornal Em termos dos gêneros que compõem o jornal, foram estudados, até o momento, a notícia, a reportagem, a nota, a entrevista, o comentário, a crítica de cinema, a chamada de capa, a carta-consulta e a tira. Kindermann (2003) levantou, em análise de 32 reportagens publicadas em quatro cadernos do Jornal do Brasil (Brasil, Internacional, Política e Cidade), quatro tipos de reportagem: noticiosa, de entrevista, retrospectiva, e de pesquisa. Posteriormente, esse trabalho foi retomado por Bonini (no prelo), em um estudo que envolveu todos os exemplares dos gêneros notícia e reportagem publicados em três edições do Jornal do Brasil. Em uma primeira etapa, foram analisados 337 textos, nos quais 36 Adair Bonini foram verificadas nove possibilidades de ocorrências textuais, perfazendo um contínuo que vai da notícia à reportagem (quadro 6). Em uma segunda etapa, foram selecionados de modo aleatório aproximadamente 10 exemplares de cada tipo, totalizando 84 exemplares, para uma análise da organização textual de acordo com a ótica de movimentos retóricos de Swales (1990). Essa análise evidenciou a hipótese do contínuo levantada na primeira etapa da pesquisa. GRUPO Factual GÊNERO Notícia Reportagem retrospectiva Rep. de opinião PROPÓSITO Relatar um fato/acontecimento Explicar a origem de fato Abordar um fato ou assunto mediante opinião(ões) coletada(s) Reportagem de perfil Descrever personagem ou instituição relacionada a fato, a assunto em evidência ou que tenha prestígio social ou fama Reportagem de Relatar o dia-a-dia de instituição, festividade cobertura ou fato duradouro Temático Reportagem de produto Descrever novo produto Reportagem de pesquisa Aportar dados de interpretação de problema em evidência ou de tendência de comportamento social Reportagem didática Explicar um assunto, situação problema ou serviço Reportagem de roteiro Apontar possibilidades de passeio turístico Quadro 6 – Propósitos da notícia e dos gêneros da reportagem (BONINI, no prelo). Figueiredo (2003) analisou 132 exemplares de nota jornalística publicados no Jornal do Brasil. Sua pesquisa indicou a ocorrência de três tipos de notas: a nota noticiosa, a nota comentário e a nota comentário relatado. Segundo esse estudo, a nota em sua estrutura básica, em todas as três formas de ocorrências, compõe-se de um título (geralmente não mais do que uma palavra ou expressão curta), e dois blocos textuais (uma introdução e uma especificação). No caso do tipo mais comum, a nota noticiosa, o primeiro desses blocos corresponde a um lide e o segundo a uma extensão de algum aspecto desse lide (o quê, quem, quando, onde, como, por quê). 37 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... Borba (2007), em um estudo sobre a entrevista, examina 32 exemplares do gênero publicados no jornal Zero Hora. A análise aponta para dois padrões de ocorrência: a entrevista noticiosa (centrada em um fato) e a de perfil (centrada em aspectos de um ator social específico). A primeira ocorre geralmente como complemento de outro(s) texto(s) publicado(s) no jornal, enquanto a segunda ocorre mais comumente como texto isolado. A entrevista, segundo esse estudo, organiza-se em três movimentos retóricos, a saber: a) situar o leitor (mediante cabeçalho, título, créditos e foto-legenda), estabelecer o tema (media lide, noticioso ou de perfil) e expor trecho relevante da interação realizada anteriormente (mediante pingue-pongue, inter-título, janela e box). Monteiro (2008) estudou um corpus de 42 exemplares do comentário, sendo 18 extraídos do jornal Diário Catarinense e 24 da Folha de S. Paulo. Ela levantou uma organização do gênero composta de sete movimentos retóricos, quais sejam: a) identificar o texto; b) apresentar o fio condutor do texto; c) desenvolver um balanço dos fatos; d) apresentar uma interpretação dos fatos; e) perspectivar o futuro; f) dirigir-se a participante do evento com interpelação ou elogio; g) apresentar dados de contato; h) apresentar credenciais; apresentar informações extras. De modo geral, segundo esse estudo, o comentarista apresenta o fato a ser comentado, faz um balanço e/ou interpretação de aspectos desse fato e procura fazer previsões ou fornecer diretrizes quanto aos seus desdobramentos. Cassarotti (2006) realizou um estudo de 20 exemplares do gênero crítica de cinema coletados do Jornal Folha de São Paulo. Seu estudo indica uma organização do gênero em seis movimentos retóricos, a saber: a) fornecer pistas para que o leitor identifique uma crítica específica (mediante título do texto, crédito de autoria e fotografia do filme); b) apresentar o filme (informando, por exemplo, sobre fatos relacionados ao filme, sobre a direção, sobre a atuação, etc.); c) descrever/analisar partes do filme (apresentando a história do filme, o processo criativo, cenas marcantes, etc.); d) opinar sobre o filme (fornecendo avaliação geral e/ou de partes); e) orientar o espectador (recomendando ou desqualificando e cotando o filme); f) fornecer dados da ficha técnica (título, nomes dos envolvidos, etc.). Embora o corpus apresentasse apenas um exemplar de crítica voltada a documentário, é interessante notar como a variação do gênero comentado modifica a organização da crítica. Esse fato mostra que o gênero não se realiza mediante regras, independentemente da tarefa que lhe dá base, mas que ele acontece como uma prática social situada. 38 Adair Bonini Caldeira (2007) analisou um corpus constituído por 31 chamadas de capa e 38 textos chamados. Os exemplares foram selecionados a partir de três jornais: um de circulação nacional (Folha de S. Paulo); um de circulação no estado de Santa Catarina (Diário Catarinense) e um que circula na região de Criciúma (A Tribuna). Sua análise mostrou uma organização do gênero em três movimentos retóricos: a) caracterizar o texto (mediante título); b) apontar um tema; c) especificar o tema; e d) direcionar a páginas internas do jornal. Ele levantou que as chamadas geralmente tinham como tema uma notícia (17 delas) ou uma reportagem (14 delas). Cinco dessas chamadas se atinham a mais de um texto. Apenas uma delas trazia um resumo do texto como um todo, três delas traziam um resumo de um único trecho e a maioria, 22 delas, consistiam em resumos de trechos esparsos, provenientes de vários pontos do texto chamado. É interessante notar, em termos da relação entre a chamada e o texto chamado, que a cópia é uma estratégia rara. Apenas uma delas utilizou esse recurso. A maior parte delas consistia em uma paráfrase do texto chamado (22 delas), havendo, contudo, ocorrências de chamadas construídas com estratégia mista (paráfrase e cópia). É importante salientar também que, em relação ao conteúdo das chamadas, 86,8% provém do título e do lide do texto chamado. Simoni (2004) analisou 68 exemplares do gênero carta-consulta coletados em edições dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo. A organização do gênero revelada pela pesquisa consiste de três movimentos retóricos: a) identificar o texto (geralmente mediante uma palavra ou expressão curta); b) formular uma questão; e c) fornecer uma resposta. É interessante notar aqui que entram em cena, na produção do gênero, três enunciadores: o jornalista (responsável por organizar o material), o leitor (produtor inicial da carta) e a pessoa ou entidade que responde a carta. Ela levantou dois modos de ocorrência do gênero: uma em que a resposta é produzida diretamente por um especialista e outra em que a resposta, embora tendo uma fonte externa, é relatada pelo jornalista que serve de mediador. Innocente (2005) estudou um corpus de 46 tiras publicadas no Jornal do Brasil e no Diário Catarinense. Ela concluiu que esse gênero se organiza retoricamente em quatro movimentos: a) apresentar o título; b) preparar o cenário; c) apresentar o clímax; e d) quebrar a expectativa. Os textos compõem-se de uma a quatro vinhetas (ou quadrinhos), sendo mais comuns os construídos com três vinhetas. O humor na tira emerge dessa quebra de uma expectativa construída inicialmente e da utilização de 39 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... diversos recursos: ambigüidade semântica, criação de uma exigência de inferência (mediante informação implícita), evocação de conhecimento prévio do leitor, e efeito gráfico específico introduzido na tira. Das três pesquisas que estão em andamento, um delas já está bastante avançada, de modo que se podem apontar os resultados mais visíveis. Corrêa iniciou um estudo sobre a carta do leitor em 2007, no qual ela analisa 49 cartas publicadas e as compara com os originais enviados pelos leitores. Ao observar o endereçamento e o propósito das cartas, Corrêa identificou cinco tipos de cartas do leitor: a) carta para o jornal ou um de seus envolvidos com elogio ou crítica; b) carta para envolvido(s) em um fato com comentário positivo ou negativo; c) carta para os leitores do jornal com esclarecimento sobre texto publicado anteriormente; d) carta para outro leitor com questionamento ou apoio; e) carta para a sociedade com crítica de comportamento. Na comparação entre a carta publicada e a original, Corrêa levantou quatro grupos de ações de textualização realizadas pelo editor da seção de cartas: as ações de eliminação, acréscimo, substituição e correção ortográfica. As outras três pesquisas (FRANCISCHINI, 2008; FOGOLARI, 2008; LIMA, 2008) encontram-se ainda em fase inicial. Francischini está analisando a crônica a partir de exemplares coletados do jornal Zero Hora. Trata-se de um gênero já bastante estudado, mas com raros trabalhos dentro de uma ótica de gênero. Além disso, a crônica é um gênero de difícil definição (o que se evidencia na literatura consultada) e com fronteiras muito tênues com outros gêneros do jornalismo (como o comentário). As outras duas pesquisas têm por objeto gêneros imagéticos do jornal: o cineminha (FOGOLARI, 2008) e o storyboard (LIMA, 2008). 11, 12 Trata-se de gêneros de ocorrência rara, o que traz certa dificuldade operacional para a montagem do corpus de pesquisa. Em uma varredura nas edições da Folha de S. Paulo pelo período de um ano, foram encontrados pelos pesquisadores apenas cinco exemplares do storyboard e seis do cineminha. Uma das maiores dificuldades enfrentadas nessas pesquisas é a da seleção do corpus. Alguns gêneros, com a tira e a carta do leitor, são facilmente identificáveis no jornal. Outros, porém, como a reportagem e o comentário, não são evidentes, pois se confundem com outros gêneros, o 11 Cineminha é uma “seqüência de fotos que ilustra uma matéria jornalística apresentando detalhes do desenvolvimento do fato noticiado” (RABAÇA; BARBOSA, 1978, p. 135). 12 Storyboard é uma “seqüência de desenhos que, ilustrando uma matéria jornalística, apresentam detalhes e momentos sucessivos do fato noticiado ou de uma versão do acontecimento” (RABAÇA; BARBOSA, 1978, p. 694). 40 Adair Bonini que exige todo um esforço de seleção, com a proposição de critérios e a análise de um corpus bem maior até se chegar aos textos efetivos da pesquisa. Outra dificuldade enfrentada é a de material bibliográfico. Os gêneros menos evidentes apresentam pouca ou nenhuma discussão prévia. Desse modo, no estudo de gêneros como o cineminha, a galeria e o storyboard, por exemplo, pode-se contar, no máximo, com definições de dicionários de comunicação e de manuais de estilo dos jornais. Os gêneros estudados até o momento mostram papéis distintos na constituição do jornal. Alguns deles, como a notícia, a reportagem e a nota, ocorrem em praticamente todos os cadernos, enquanto outros, como a carta do leitor, a tira, a crítica de cinema, se restringem a um espaço específico dentro do jornal. 4. Considerações finais As pesquisas no PROJOR têm em vista resultados que favoreçam o ensino dos gêneros do jornal na educação básica e superior. Outra meta dessas pesquisas é levantar questões e problemas que possam servir de base para a discussão e futuras pesquisas sobre esses gêneros. Os estudos realizados até o momento já permitem visualizar aspectos que contemplam essas duas metas. As problematizações desencadeadas por tais estudos, a exemplo da relação entre o jornal e seus gêneros, mediante o conceito de hipergênero, colocam questões para o ensino desses textos, à medida que a sua produção em ambiente escolar, por exemplo, passa por uma reflexão sobre essas fronteiras e sobre as práticas que as constituem. Essas mesmas questões também se revelam temas para estudos e para a reflexão teórica sobre o gênero como objeto de pesquisa. Em uma etapa posterior do PROJOR, vai se somar a esse projeto, um outro que terá como objetivo a elaboração didática desses conteúdos. Os resultados do PROJOR, portanto, devem naturalmente desembocar em um projeto sobre a produção e o ensino-aprendizagem do jornal escolar. 41 As relações constitutivas entre o jornal e seus gêneros... Referências BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [1953]. BAZERMAN, C. 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Introdução A análise do discurso surgiu, nos anos 70, a partir das contribuições de várias outras disciplinas, como a antropologia, a lingüística, a sociologia e a psicologia. Segundo Caldas-Coulthard, “os primeiros estudos assim chamados discursivos preocupavam-se com a descrição de formas da interação oral e escrita” (2008, p. 27). Desde então a área vem se desenvolvendo dos dois lados do Atlântico, em países como a Inglaterra, a França, os EUA e, mais recentemente, o Brasil, utilizando uma variedade de abordagens teóricas e métodos descritivos, como a análise da conversa e a análise textual. Neste mesmo período cresceu também, no campo dos estudos aplicados da linguagem, a preocupação com a relação entre linguagem e sociedade, especialmente a partir do trabalho de Michael Halliday (1970, 1978, 2004) sobre a lingüística sistêmico-funcional, autor que “iniciou a interpretação crítica dos discursos quando propôs que a linguagem é uma semiótica social” (CALDAS-COULTHARD, 2008, p. 27). Com a adoção da abordagem sistêmico-funcional como base lingüística para muitos trabalhos em análise do discurso, podemos dividir as pesquisas nessa área em dois grandes grupos, de acordo sua orientação social: aquelas de abordagem não-crítica e as de abordagem crítica. O primeiro grupo inclui pesquisas de natureza basicamente descritiva sobre os usos da linguagem, enquanto que o segundo inclui trabalhos que buscam, além de descrever as práticas discursivas utilizadas em diferentes contextos sociais, investigar e interpretar os modos como “o discurso é condicionado por ideologias e relações de poder” (CALDAS-COULTHARD, 2008, p. 28). Este segundo grupo de pesquisas inclui a Lingüística Crítica iniciada no final dos anos 70 por Fowler et alii (1979), a Semiótica Social (HODGE; KRESS, 1988), os estudos sobre a multimodalidade (KRESS; Discurso e sociedade... VAN LEEUWEN, 1996, 2001), a abordagem proposta por Pêcheux (1992), os trabalhos em Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 1989, 1992, 1995, 2003, 2006), e os trabalhos sobre Linguagem e Gênero (CAMERON, 1992, 1995, 2002; SUNDERLAND, 1994; HEBERLE, 2000; ECKERT; MCCONNELL-GINET, 2003; HEBERLE; FIGUEIREDO; OSTERMAN, 2006). Dentro dessa linha de trabalhos de orientação discursiva crítica, este artigo tem dois objetivos básicos: 1) apresentar uma visão panorâmica da Análise Crítica do Discurso, uma abordagem teórico-metodológica voltada para a investigação do papel do discurso, ou da semiose, na constituição de visões de mundo, de relações sociais e de identidades sociais; e 2) descrever os projetos e trabalhos de pesquisa desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL), da Unisul, que se filiam à ACD e que, como grande parte dos trabalhos nessa área, adotam a Lingüística Sistêmico-Funcional como base teórica e analítica para a investigação de textos em situações concretas de uso e suas ligações com as práticas e as estruturas sociais mais amplas. Para tanto, o artigo está organizado nas seguintes seções: 2) Fundamentação teórica e metodológica da análise do discurso de linha crítica; 3) Estudos discursivos críticos no Brasil; 3.1) ACD e LSF no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) da Unisul; e 4) Contribuições dos trabalhos realizados no PPGCL para os campos da ACD e da LSF. 2. Fundamentação teórica 2.1 Análise Crítica do Discurso: abordagem transdisciplinar para estudos críticos da linguagem Segundo Ramalho, a ACD constitui “uma abordagem científica transdisciplinar para estudos críticos da linguagem como prática social” (2008, p. 44). Essa abordagem está inserida na tradição das “ciências sociais críticas”, que desenvolvem pesquisas que possam oferecer suporte científico a questões sociais relacionadas ao poder, à descriminação, à exclusão social, à justiça, à cidadania, etc. Como abordagem transdisciplinar, a ACD rompe fronteiras epistemológicas com diversas áreas das ciências sociais, valendo-se de teorias delas provindas para apoiar sua abordagem sociodiscursiva, ao mesmo tempo em que oferece as/aos 48 Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz cientistas sociais a possibilidade de acrescentar um viés discursivo a suas investigações. Como ciência crítica, o foco da ACD são os efeitos ideológicos que os eventos discursivos (ou textos, num sentido amplo) exercem sobre nossas formas de nos relacionarmos e agirmos socialmente, nossas formas de ser (ou nossas identidades), e nossos sistemas de valores, crenças e atitudes. Na perspectiva crítica de Thompson (2002), a ACD investiga como o discurso, e os sentidos textuais, atuam “a serviço de projetos particulares de dominação e exploração, que sustentam a distribuição desigual de poder [na sociedade]” (RAMALHO, 2008, p. 45). Uma das premissas básicas da ACD é que texto e discurso não podem ser dissociados das práticas sociais. Chouliaraki e Fairclough (1999) argumentam que nem toda interação social tem um caráter discursivo, mas a maior parte das interações depende substancialmente do discurso, justificando focalizá-lo como forma de interpretar as interações sociais. Toda prática social é tanto produtiva quanto reflexiva, isto é, toda prática inclui pessoas envolvidas em relações sociais aplicando tecnologias a materiais, mas também inclui representações dessa prática como parte integrante da própria prática. O discurso participa das práticas sociais de duas formas: as práticas são parcialmente discursivas (na medida em que falar, escrever, ler e ouvir são formas de ação), mas também são discursivamente representadas. Se essas representações auxiliarem a manutenção de relações de dominação dentro das práticas, elas podem ser chamadas de ideológicas. A versão atual da ACD (FAIRCLOUGH 2003a, 2006) se baseia em uma perspectiva da semiose entendida como parte inseparável dos processos sociais materiais. A vida social é vista como uma série de redes interligadas de práticas sociais de diferentes tipos (econômicas, políticas, culturais, etc.), e cada uma dessas práticas tem um elemento semiótico. Uma prática social é, por um lado, uma forma relativamente permanente de atuar no social, definida, por um lado, como parte de uma rede estruturada de práticas e, por outro, como um domínio/campo de ação e interação social que, além de reproduzir as estruturas, possui também o poder de transformá-las. Todas as práticas são práticas de produção, uma vez que constituem os cenários nos quais se reproduz a vida social, sejam elas de caráter econômico, político, cultural ou cotidiano. A prática social, na perspectiva da ACD, é formada pelos seguintes elementos, distintos, porém não completamente discretos ou separados (FAIRCLOUGH, 2003b): 49 Discurso e sociedade... • • • • • • • Atividade produtiva Meios de produção Relações sociais Identidades sociais Valores culturais Consciência Semiose O foco atual da ACD é a análise das relações dialéticas entre a semiose (incluindo a linguagem) e outros elementos das práticas sociais. Mais especificamente, os trabalhos dentro dessa abordagem se centram nas mudanças radicais que têm ocorrido na vida social contemporânea, no papel da semiose em processos de mudança, e nas mudanças na relação existente entre a semiose e outros elementos não-semióticos das redes de práticas sociais. Segundo Fairclough (2003b), o papel da semiose nas práticas sociais não pode ser tomado como dado, mas precisa ser estabelecido através da análise. De modo geral, a semiose participa de três formas nas práticas sociais. Primeiro, como parte da atividade social, a semiose constitui os gêneros textuais, ou formas semióticas relativamente estáveis de ação e interação social. A semiose, na representação e auto-representação das práticas sociais, constitui os discursos, ou maneiras relativamente estáveis de representar o mundo a partir de pontos de vista particulares (e.g. discurso racista, discurso ecológico, discurso neoliberal). A semiose, na representação das posições sociais, constitui os estilos, formas relativamente estáveis através das quais os sujeitos sociais identificam a si mesmos e aos demais. Segundo Ramalho, “essas maneiras de (inter-)agir, representar e identificar(se) em práticas sociais internalizam traços de outros momentos não-discursivos, assim como ajudam a constituir esses momentos” (2008, p. 52). As práticas sociais construídas de um modo concreto, em forma de redes, constituem uma ordem social – por exemplo, a atual ordem neoliberal e global do capitalismo tardio. O aspecto semiótico de uma ordem social é o que podemos chamar de uma ordem de discurso. Uma ordem de discurso é a forma como diferentes gêneros, discursos e estilos são combinados numa rede. Trata-se de uma estruturação social das relações entre as diferentes formas de gerar significado, isto é, de produzir 50 Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz discursos, estilos e gêneros diferentes (FAIRCLOUGH, 2003b). Algumas das formas de gerar significados são dominantes ou majoritárias numa determinada ordem de discurso (e.g. representações do design corporal considerado belo na contemporaneidade no discurso da mídia de massas, da medicina e da saúde); outras são marginais, ou de oposição, ou “alternativas” (e.g. representações corporais encontradas em contradiscursos do corpo, como dos modificadores de corpos, dos grupos que defendem o sobrepeso, da ‘perversão’). Os conceitos de ideologia e de hegemonia são bastante úteis para a análise das ordens de discurso. Segundo Fairclough, “as ideologias são representações de aspectos do mundo que contribuem para estabelecer e manter relações de poder, dominação e exploração” (2003a, p. 218), enquanto que a hegemonia é “uma forma particular (associada com Gramsci) de conceitualizar o poder e as lutas pelo poder nas sociedades capitalistas, que enfatiza a dependência do poder do consentimento e da aquiescência, mais do que da força, e a importância da ideologia” (2003a, p. 218). Vale lembrar que o poder hegemônico nunca é estático ou absoluto, sendo alvo permanentemente de lutas. Da mesma forma, uma ordem de discurso não é um sistema fechado e rígido, mas sim um sistema aberto que está exposto a riscos como conseqüência do que ocorre nas interações reais. Como afirma Fairclough, “o discurso, incluindo a dominação e a naturalização de representações particulares [...], é um aspecto significante da hegemonia, e as lutas pelo discurso são lutas hegemônicas” (2003a, 218). Fairclough propõe o seguinte modelo analítico como forma de investigar as relações existentes entre os eventos sociais, as práticas sociais e as estruturas sociais (2003b, p.184): a) Focalizar um problema social que tenha um aspecto semiótico. b) Identificar seus obstáculos para poder abordá-los, através da análise: c) Da rede de práticas nas quais estão localizados d) Da relação semiótica que eles mantêm com outros elementos da prática(s) social(ais) onde se inserem e) Do discurso (isto é, da própria semiose), o que inclui a análise lingüística. f) Considerar se a ordem social (a rede de práticas) depende deste problema para existir. 51 Discurso e sociedade... g) Identificar as possíveis formas de superar os obstáculos. h) Refletir criticamente sobre a análise (i-iv). 2.2 A ACD e o realismo crítico A ontologia que embasa a atual abordagem da ACD (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999; FAIRCLOUGH, 2003a) provém de um diálogo transdisciplinar com o Realismo Crítico proposto pelo filósofo Roy Bhaskar (1978, 1989, 1993, 1998). Bhaskar considera o mundo um sistema aberto, em constante mudança, composto pelos domínios do real, do actual e do empírico, e por diferentes estratos – o físico, o biológico, o social, o semiótico, etc. –, que possuem estruturas e mecanismos gerativos distintos situados no domínio do real. 13 O domínio do real corresponde a tudo que existe, natural ou social, empírico ou não. Trata-se do domínio dos objetos, com suas estruturas, mecanismos e poderes causais. No domínio do real, mecanismos gerativos de diversos estratos (físico, biológico, semiótico, etc.) operam simultaneamente com seus poderes causais, provocando efeitos sobre os outros domínios (RAMALHO, 2008). Essa interdependência causal significa que qualquer operação de um mecanismo gerativo de um dos estratos é sempre mediada pela operação simultânea dos demais. Enquanto o domínio do real corresponde às estruturas, mecanismos e poderes causais dos objetos, o actual refere-se àquilo que os poderes causais fazem e ao que ocorre quando eles são postos em ação. O sistema semiótico, ou a potencialidade para significar, pode ser associado ao domínio do real, enquanto que os sentidos do texto podem ser relacionados com o domínio do actual (o significado em si). Dessa forma, o actual é o domínio dos eventos, que podem ou não ser experienciados por nós, localizado entre o domínio mais abstrato (estruturas e poderes) e o mais concreto (eventos vivenciados). O empírico, por fim, é o domínio das experiências efetivas, a parte do real e do actual que atores sociais específicos vivenciam. Em outras palavras, o empírico é o que sabemos do real e do actual, mas não esgota as possibilidades do que tenha ocorrido ou poderia ter ocorrido (RAMALHO, 2008). Essa concepção do social implica que não temos acesso direto ao domínio do real, que só pode ser alcançado através de nosso conhecimento 13 Seguimos aqui a opção de manter este termo em inglês, como fez Ramalho (2008) e outros autores em traduções brasileiras. 52 Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz (crenças, valores, ideologias), ou seja, a partir do actual e do empírico. Segundo Bhaskar, estudar o mundo ‘real’ de forma ‘objetiva’ é uma “falácia epistêmica”, uma vez que só podemos investigar o real através do filtro de nossas experiências, assim como é reducionista e falacioso considerar que o mundo é constituído apenas pelo que vivenciamos, ou seja, pelo domínio do empírico. Esse é um ponto fundamental de ligação entre a ontologia crítica de Bhaskar e a abordagem da ACD: ambas apontam a impossibilidade de pesquisas “objetivas” em análise do discurso, que teriam acesso à “realidade”. Entretanto, apesar de admitir a impossibilidade de análises objetivas do ‘real’, o trabalho de análise textual, como parte da análise discursiva crítica, “é científico porque conjuga compreensão, descrições e interpretações de propriedades do texto, e explanação, processo situado entre conceitos e material empírico, em que propriedades de textos particulares são ‘redescritas’ com base em um arcabouço teórico particular” (RAMALHO, 2008, p. 48). A partir dessa perspectiva, chega-se à premissa de que o discurso tem efeitos na vida social, mas esses efeitos não podem ser investigados somente com base no aspecto discursivo das práticas sociais. A lógica da ACD é relacional/dialética, ou seja, “orientada para acessar como o momento discursivo funciona dentro da prática social, do ponto de vista de seus efeitos sobre lutas pelo poder e relações de dominação” (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 67). Assim, o foco da abordagem proposta pela ACD não está na estrutura social, fixa e abstrata, nem nas ações individuais, flexíveis e concretas, mas sim na entidade intermediária entre esses dois níveis: as práticas sociais. Nessa concepção de construção do social, “sociedades” e “indivíduos”, ou estruturas (“conjuntos de regras e recursos implicados, de modo recursivo, na vida social”) e agência humana (“capacidade das pessoas para realizar as coisas”), não são redutíveis uns aos outros, mas são causalmente interdependentes (GIDDENS, 2003, p. 10). Isso é o que Giddens chama de “dualidade da estrutura” – a propriedade da estrutura social ser tanto meio para a agência humana quanto resultado da ação que ela recursivamente organiza (RAMALHO, 2008, p. 49). Em resumo, a relação entre estrutura e agência é dual: a estrutura é tanto condição, ou causa material, para a ação humana, quanto é resultado da atividade humana que, por sua vez, produz e reproduz as estruturas sociais. Assim, podemos afirmar que os seres humanos não criam estruturas, mas as reproduzem à medida que as utilizam em suas atividades (BHASKAR, 1998; RAMALHO, 2008). Nas palavras de Ramalho, 53 Discurso e sociedade... [...] ação e estrutura constituem-se transformacional e reciprocamente, de maneira que uma não pode ser separada da outra, ou mesmo reduzida à outra. Em práticas sociais, agentes individuais se valem da estrutura social, (re)articulando mecanismos e poderes causais, e a (re)produzem, gerando no mundo efeitos imprevisíveis. (2008, p. 50). 2.3 A lingüística sistêmico-funcional A lingüística sistêmico-funcional (LSF), desenvolvida por Halliday, é tanto uma teoria da linguagem quanto um método de análise de textos e seus contextos de uso. Devido a essa natureza dual, a LSF objetiva explicar como os indivíduos usam a linguagem e como a linguagem é estruturada em seus diferentes usos (EGGINS, 2004). Adotando uma visão multifuncional da linguagem, ou seja, de que a linguagem é como é para realizar as funções sociais a que serve, a LSF divide os significados realizados pelos textos em três tipos: ideacionais, interpessoais e textuais. De acordo com essa perspectiva, a linguagem é considerada sistêmica porque consiste de um conjunto de sistemas de escolhas, em que cada sistema oferece ao falante/escritor uma variedade de maneiras para expressar o significado proposto, e é funcional porque serve a propósitos funcionais. Os aspectos funcionais da linguagem são expressos, simultaneamente, nos três tipos de significados citados anteriormente. Os significados experienciais relacionam-se com o modo com que a linguagem é usada para representar nossas experiências e o modo como vemos o mundo. Esses significados são realizados através do sistema da transitividade que, por sua vez, é representado como uma configuração de um processo (realizado por um grupo verbal), os participantes envolvidos (manifestos por grupos nominais) e suas circunstâncias (geralmente expressas por grupos adverbiais). A transitividade é realizada por três tipos principais de processos (MARTIN; MATHIESSEN; PAINTER, 1997, p. 102), cada qual associado a certos papéis dos participantes. Os processos materiais são processos de fazer, agir. O participante obrigatório que “faz” a ação é chamado de Ator. O outro participante, opcional, é chamado de “meta”, aquele que recebe a ação. Os processos verbais são processos de dizer, nos quais o participante principal é chamado de dizente. Os processos relacionados com o pensar ou sentir são chamados de processos mentais. O experienciador é o participante que sente, pensa e percebe, enquanto que o fenômeno é o participante sentido ou percebido. O quarto tipo de processo é o relacional. 54 Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz As orações relacionais, de acordo com Martin, Mathiessen e Painter (1997), “constroem seres” (p. 106). Esse tipo de processo relaciona o principal participante a uma identidade (identificador) ou a um atributo (portador). Os significados interpessoais são realizados pelos sistemas de modo e de modalidade. O modo relaciona-se com a troca de informações e de bens e serviços. Quando trocamos informação, a oração toma a forma de uma proposição, enquanto que quando trocamos bens e serviços a oração é chamada de proposta. A partir da perspectiva interpessoal, a oração contém um elemento do modo que consiste de duas partes: o sujeito (grupo nominal) e o finito (operador verbal). Uma parte essencial do finito (finite) é a polaridade: as orações podem ser positivas ou negativas. Entretanto, entre esses dois pólos há posições intermediárias chamadas de modalidade, pela qual podemos expressar a probabilidade ou habitualidade das proposições através da modalização, e o grau de obrigação ou inclinação das propostas através da modulação (HALLIDAY, 2004). O significado textual relaciona-se a maneira na qual o texto é organizado em relação ao seu contexto e à sua mensagem. As orações vistas como mensagens projetam os significados textuais através do sistema de Tema/Rema, que diz respeito ao ponto de partida da mensagem (Tema) e sua continuidade (Rema) na organização sintática. A análise textual de natureza sistêmico-funcional aponta evidências micro-textuais de certas práticas sociais, permitindo à/o analista do discurso, entre outras coisas, revelar os interesses ocultos da/os escritores/as/falantes e dos textos que eles/as produzem. 2.4 ACD e LSF A análise discursiva proposta pela ACD envolve, inicialmente, a descrição e interpretação do texto dentro do contexto situacional mais imediato do evento discursivo no qual ele foi produzido, procurando então explicá-lo dentro do contexto institucional (a rede de práticas sociais) e social mais remoto no qual esse evento discursivo e essas práticas sociais estão inseridos. A ACD está baseada na noção de que o uso da linguagem, ou discurso, é um modo de ação social e historicamente situado, numa relação dialética com outros aspectos do social – ou seja, ele é formado socialmente, mas também forma o social. Para a teria social do discurso, o uso da linguagem simultaneamente constitui (i) identidades sociais, (ii) relações sociais, e (iii) sistemas de conhecimento e crença (FAIRCLOUGH, 1992). 55 Discurso e sociedade... Esses três aspectos constitutivos do discurso estão ligados à Lingüística Sistêmica Funcional (LSF), a teoria lingüística de base para a ACD. Segundo Fairclough, a LSF é bastante adequada para a ACD por estar “profundamente interessada na relação entre linguagem e outros elementos e aspectos da vida social, e [por] sua abordagem à análise lingüística de textos [ser] sempre orientada para o caráter social dos textos” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 5). Assim como Halliday vê a linguagem como multifuncional, Fairclough também vê os textos como multifuncionais, embora de forma distinta – i.e., segundo esse último autor, os textos refletem e constroem formas de representar, formas de agir e formas de ser, estando ligados ao evento social no qual são gerados, aos participantes desse evento, e ao mundo físico e social mais amplo. Nessa perspectiva, Fairclough (2003) prefere falar não em funções exercidas pelos textos, mas em diferentes significados que eles criam, reproduzem ou alteram. Segundo o autor, os três grandes grupos de significados textuais são: a) representacionais: correspondem à metafunção ideacional de Halliday. b) acionais: correspondem à metafunção interpessoal de Halliday. Ao investigarmos os significados acionais de um texto nosso foco está na forma como esse texto atua como meio de interação em eventos sociais, englobando as relações entre os participantes (i.e. os textos desempenham relações sociais). c) identitários: também correspondem à função interpessoal de Halliday, embora Halliday não distinga entre as funções relacionais e identitárias da linguagem. Para Fairclough, por outro lado, o que Halliday chama de função interpessoal é dividida em dois grupos de significados: os acionais, relativos às relações sociais estabelecidas via texto, e os identitários, relativos às formas de ser, às identidades sociais construídas pelos textos. 14 Esses três grupos de significados estão presentes simultaneamente em qualquer texto. A divisão apresentada acima tem apenas fins 14 Quanto à terceira metafunção hallidayana, a textual, Fairclough não distingue um grupo de significados textuais separadamente, mas os inclui nos significados acionais (2003). 56 Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz organizacionais. Segundo Fairclough, “focalizar a análise textual na interação entre significados representacionais, acionais e identitários nos permite acrescentar uma perspectiva social aos pequenos detalhes do texto” (2003, p. 27-8). Cruzando a visão do discurso como constitutivo da sociedade com os três grupos de significados textuais identificados por Fairclough e com as metafunções textuais propostas por Halliday, teríamos o seguinte: Aspectos do social constituídos (em parte) pelo discurso Sistemas de conhecimento e crença Relações sociais Identidades sociais Significados textuais (FAIRCLOUGH, 2003a) Representacionais Metafunções hallidayanas (HALLIDAY, 2004) Metafunção ideacional Acionais Identitários Metafunção interpessoal Metafunção interpessoal Quadro 1: Cruzamento da visão social da linguagem segundo a ACD e a LSF 3. Estudos discursivos críticos no Brasil A ACD chegou ao Brasil no início dos anos 1990, com os trabalhos pioneiros das pesquisadoras Carmen Rosa Caldas-Coulthard, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Izabel Magalhães, na Universidade de Brasília (UnB). Outro marco da inserção de pesquisadores brasileiros nessa área foi a publicação, em 1996, do livro Texts and practices: readings in critical discourse analysis, editado por Carmen Rosa Caldas-Coulthard e Malcolm Coulthard. Atualmente, pesquisas ancoradas na abordagem da ACD e da LSF vêm sendo desenvolvidas em programas de pós-graduação na área das ciências da linguagem em diversas universidades brasileiras, como a UFSC, a UnB, a UFMG, a PUC-SP, a UERJ, a UFSM, e a UNISUL. Em termos de eventos específicos na área, desde 2005 vem sendo realizado bienalmente no Brasil o Simpósio Internacional de Análise Crítica do Discurso, e em outubro de 2008 foi realizado, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o 4º. Congresso da Associação de Lingüística Sistêmico-Funcional da América Latina, ligado à ISFLA (International Systemic Functional Linguistics Association). 57 Discurso e sociedade... 3.1 ACD e LSF no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) da Unisul Desde 2002, a ACD e a LSF têm servido como teorias lingüísticodiscursivas de base para projetos de pesquisa realizados no PPGCL. Dois projetos já foram concluídos, conduzidos por Débora de Carvalho Figueiredo. O primeiro consistiu em um projeto guarda-chuva dividido em duas etapas. A primeira etapa, intitulada “Análise crítica do Discurso I – Questões de gênero e poder no discurso educacional, corporativo e da mídia” (2002-2005), investigou questões de poder e gênero social construídas, mediadas e modificadas pelas práticas discursivas em ambientes institucionais diversos, como a escola de ensino fundamental, a universidade privada, o sistema jurídico, a empresa e a mídia. Mais especificamente, foram investigados os seguintes temas: a interlocução entre professores de LM, as novas teorias sobre o professor reflexivo, os PCNs e as propostas curriculares municipais; as estratégias discursivas utilizadas por uma empresa petrolífera para construir um discurso pósmoderno de responsabilidade social; o impacto dos cursos de formação continuada sobre as representações dos professores de inglês da rede pública; as implicações da entrada do discurso comodificado em uma universidade privada, em termos de identidades e relações entre alunos, professores e gestores; as possibilidades de aplicação do modelo teóricometodológico da ACD para a análise de textos midiáticos, inclusive na sala de aula de línguas; e as representações de gênero social em acórdãos de casos de estupro. Nessa primeira etapa foram produzidas quatro dissertações de mestrado (TORIZANI, 2005; SANTOS, 2006; BUENO DE OLIVEIRA, 2006; OLIVEIRA, 2006), um número especial de periódico (CALDAS-COULTHARD; FIGUEIREDO, 2004), três artigos científicos (FIGUEIREDO, 2004a, 2004b, 2005b) e participações em eventos. Na segunda etapa do projeto, intitulada “Análise crítica do Discurso II – Questões de gênero e poder nos discursos da publicidade e da polícia” (2005 – 2006), pautada ainda pelas linhas teóricas e metodológicas da Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH 1992, 2001, 2002, 2003), da Lingüística Sistêmica Funcional (HALLIDAY, 2004), dos Estudos de Gênero (CAMERON, 2002; SUNDERLAND, 1994; HEBERLE, 2000; HEBERLE; FIGUEIREDO; OSTERMAN 2006), e dos Estudos Culturais (HALL, 1997; GIDDENS, 1991; GIDDENS, BECK; LASH 1995; MATTELART; NEVEU, 2003), os trabalhos realizados envolveram a análise de relações de poder e de gênero no discurso da Polícia Civil sobre 58 Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz as Delegacias da Mulher, no discurso publicitário e no discurso sobre o trabalho. Os objetivos do projeto foram os seguintes: 1. descrever algumas das práticas discursivas que ocorrem em organizações e discursos sociais diversos; 2. interpretar e explicar como essas práticas discursivas estão ligadas a processos sociais mais amplos. Nessa segunda etapa foram produzidas duas dissertações de mestrado (CARVALHO, 2006; SCARDUELI, 2006), um livro (HEBERLE; OSTERMANN; FIGUEIREDO, 2006), três artigos científicos (FIGUEIREDO, 2005c, 2005d, 2006) e participações em eventos. Atualmente, há dois projetos em andamento, cujas bases teóricometodológicas são a ACD e a LSF. O primeiro deles, sob o comando de Débora de Carvalho Figueiredo, intitula-se “A representação das transformações corporais e identitárias pós-modernas nos discursos midiáticos”. Com as mudanças tecnológicas e sociais dos tempos pósmodernos, o sentido de identidade individual e social se fragmenta diariamente. Mulheres são especialmente afetadas, já que suas maneiras de ser e de se apresentar ao mundo são ameaçadas por discursos persuasivos que impõem e valorizam certos ‘estilos de vida’ enquanto desvalorizam ou excluem outros. Seus corpos se tornam um ‘lócus’ de comodificação nos discursos, da propaganda, do tratamento do corpo, nas práticas de emagrecimento, nas academias de ginástica e na cirurgia plástica. Na cultura de consumo, a mulher é constantemente ‘informada’ que deve ser eternamente jovem, magra e bonita. Ao manipular (e muita vezes mutilar) seu corpo, a mulher pós-moderna se transforma e, desta forma, medeia a relação entre a sua identidade própria e uma identidade social imposta pela sociedade de consumo. A manutenção de um (im) possível corpo perfeito é construída através de muito sofrimento. Assim como, ao longo da história, as mulheres aprenderam a disciplinar seus corpos com espartilhos, cintas, sapatos que deformavam os pés, roupas íntimas modeladoras (e.g. wonder bra, calcinhas com enchimentos), na tentativa de alcançar o modelo hegemônico corrente de corpo belo feminino, na modernidade tardia elas podem recorrer à ciência e à tecnologia para operar essa modelagem e controle de forma mais definitiva, porém mais dolorosa, através do bisturi, dos implantes, da lipoaspiração, das injeções de botox ou de colágeno. Dentro desse quadro de mudanças corporais constantes e, muitas vezes, radicais, esse projeto investiga, com base nos construtos teóricos e metodológicos da Análise Crítica do Discurso, da Lingüística Sistêmica Funcional, dos Estudos de Gênero, e dos Estudos Culturais, como a mídia representa as transformações que o corpo feminino tem sofrido a partir do 59 Discurso e sociedade... final do século XX, e como as identidades femininas tem sido impactadas por essas representações. Os objetivos específicos desse projeto são: a) coletar um corpus de textos midiáticos, provenientes de diferentes suportes (revistas femininas, jornais, páginas da web, panfletos, e-mails, etc.) e em diferentes gêneros textuais (artigos, propagandas, entrevistas, notas, narrativas, correspondência eletrônica, etc.), que tratem das transformações corporais e identitárias abertas para as mulheres na pós-modernidade; b) investigar como esses textos representam as transformações corporais da pós-modernidade, os novos modelos de corpos e os novos estilos de vida, especialmente sob o impacto de técnicas disciplinares como o vestuário, as dietas alimentares, os exercícios físicos e as cirurgias plásticas cosméticas; c) interpretar e explicar como os novos modelos de corporeidade apresentados na mídia de massa no terceiro milênio, as técnicas de controle utilizadas para construir esses modelos corporais, e conseqüentemente as novas possibilidades de construção identitária abertas para os indivíduos, estão ligados ao discurso promocional, ao fenômeno da comodificação do discurso, e à cultura de consumo. Dentro desse projeto foram produzidas três dissertações de mestrado (SILVA, 2007; MELLO, 2008; DAUFEMBACK, 2008), havendo duas outras em andamento. Também foram produzidos cinco artigos científicos (FIGUEIREDO, no prelo 1 e 2, 2008a, 2008b, 2005a), e participações em eventos. O segundo projeto, “Gêneros acadêmicos”, sob o comando de Maria Ester W. Moritz, propõe a investigação de diferentes gêneros acadêmicos – em língua portuguesa e em língua inglesa – de modo a entender como esses gêneros são produzidos e consumidos e a facilitar a participação ativa de membros (ou futuro membros) (SWALES, 1990) nessa comunidade. Dessa forma, o projeto analisa a organização macro e micro estrutural dos gêneros mais comumente usados pela comunidade acadêmica universitária (e.g. artigo, resenha, ensaio). Para a análise macroestrutural, verifica-se a organização retórica dos textos com base nos 60 Débora de Carvalho Figueiredo; Maria Ester W. Moritz princípios de estudos de gêneros propostos por Swales (1990). Para a análise micro-estrutural, utiliza-se a gramática sistêmico-funcional hallidayana (1994), com foco na modalidade, dimensão que corresponde à função interpessoal da linguagem. São objetivos do projeto: a) identificar os gêneros produzidos e consumidos pela comunidade universitária acadêmica; b) identificar o padrão de organização retórica desses gêneros; c) investigar os significados interpessoais que permeiam as práticas discursivas dos autores dos textos; d) identificar possíveis semelhanças e/ou diferenças, tanto no nível micro quanto no nível macro estrutural, entre textos escritos em português como língua nativa e em inglês como língua nativa e como língua estrangeira. 4. Um diálogo entre os trabalhos realizados no PPGCL e os campos da ACD e da LSF A ACD, ao conceber o discurso como parte inseparável dos processos sociais materiais e, ao centrar seu foco na análise das relações dialéticas entre a semiose (incluindo a linguagem verbal) e outros elementos das práticas sociais, oferece construtos teóricos e metodológicos que permitiram, no PPGCL, a produção de diversos trabalhos (dissertações, artigos, etc.) que investigaram as mudanças radicais que têm ocorrido na vida social contemporânea em distintos contextos sociais, como a escola, a universidade, a mídia de massa e a indústria cultural, e o papel da semiose nesses processos de mudança. Por outro lado, as pesquisas realizadas dentro dos projetos descritos anteriormente (seção 3.1) contribuíram para expansão da ACD e da LSF como novas áreas de pesquisa discursiva crítica no Brasil, apresentando evidências de como os textos refletem, constroem, reforçam ou alteram relações de poder, de exclusão e de dominação social, tanto no contexto mais restrito dos eventos discursivos no qual são produzidos, consumidos e distribuídos, quanto no nível das práticas sociais (ordens de discurso) da qual fazem parte, quanto no nível mais amplo e abstrato das estruturas sociais. 61 Discurso e sociedade... Além de contribuir para o campo das pesquisas discursivas de orientação crítica, em especial para as abordagens da ACD e da LSF, os trabalhos realizados nessa linha no PPGCL também tiveram e têm dimensões políticas e sociais. Como quase todos os integrantes dos projetos de pesquisa acima citados são professores de língua (L1 ou L2), atuando em diferentes níveis de ensino (fundamental, médio e superior) e em diferentes tipos de instituições educativas (privadas, públicas, fundacionais, escolas livres de idiomas, etc.), esses novos pesquisadores e educadores passaram a compartilhar com seus alunos, através da análise da linguagem como prática social, uma teoria crítica do discurso capaz de auxiliá-los em processos de conscientização, emancipação e empoderamento. Referências BHASKAR, R. A realist theory of science. Brighton: Harvester, 1978. _____. The possibility of Naturalism: a philosophical critique of the contemporary Human Sciences. Hemel Hempstead: Harverster Wheatsheaf, 1989. _____. Dialectic: the pulse of freedom. London: Verso, 1993. _____. Philosophy and scientific realism. In: ARCHER, M.; BHASKAR, R.; COLLIER, A; LAWSON, T.; NORRIE, A. (Eds.) Critical realism: essential readings. 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Introdução As pesquisas em teoria da relevância, desenvolvidas no Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Unisul, originaram-se do meu contato com o livro: Pragmática e cognição: a textualidade pela relevância de Jane Rita Caetano da Silveira e Heloísa Pedroso de Moraes Feltes (1999). Fruto do trabalho pioneiro do grupo de pesquisa capitaneado por Jorge Campos da Costa (PUC/RS), a obra inspirou meus primeiros trabalhos e os de meus primeiros orientandos, e constitui leitura essencial para primeiras incursões nesse campo. Não sem motivo, Silveira e eu organizamos, em 2005, um número especial do quinto volume de Linguagem em (Dis)curso sobre teoria da relevância. Foi nessa época que estabeleci contato com as pesquisas de Fábio Alves (UFMG) e José Luiz Vila Real Gonçalves (UFOP) na interface com os estudos da tradução. Além de dois textos próprios, dos textos de Alves e Gonçalves, participaram também dessa edição os trabalhos de Luciano Klöckner, Marcos Souza, Jorge Campos da Costa e Ana Ibaños. Nesse número, nós tivemos a oportunidade histórica de traduzir dois textos de Sperber e Wilson: o Posfácio da edição de 1995 de “Relevância: comunicação & cognição”, até então inédito em língua portuguesa; e o texto Teoria da relevância, que sintetiza o desenvolvimento da teoria no decênio 1995-2004. Resultado dessa interação e motivado pelo texto de Jorge Campos da Costa publicado nesse número especial, participei de estágio de pósdoutorado na PUC/RS, discutindo aspectos do princípio cognitivo de relevância, dos quais surgem as noções das variáveis de moderação apresentadas na seção 3.1 deste capítulo. Este ano, Jorge Campos da Costa e eu estamos organizando um livro bilíngüe, português/inglês, intitulado: Tópicos sobre teoria da relevância. Nessa obra, estamos apresentando o estado da arte na pesquisa nesse campo. Teoria da relevância e ciências da linguagem... Participam desse projeto: Fábio Alves (UFMG), José Luiz Vila Real Gonçalves (UFOP), Fábio Rauen (Unisul), Heloísa Pedroso de Moraes Feltes (UCS) Jorge Campos da Costa, Ana Ibaños, Jane Rita Caetano da Silveira e Cristina Perna (PUC/RS). Na Unisul, estudos de relevância de ordem textual-discursiva vêm sendo abrigados no grupo de pesquisa Práticas sociais e tecnologias discursivas e na linha de pesquisa Textualidade e práticas discursivas. Atualmente, desenvolvo dois projetos. O primeiro, intitulado Pragmática, cognição e interação, analisa aspectos cognitivos e interacionais da comunicação humana. O segundo, intitulado Teoria da relevância II: práticas de leitura e produção textual em contexto escolar, aplica a teoria em contextos de leitura e produção textual em ambiente escolar. Para dar conta do estado de arte e apresentar perspectivas de evolução e tendências da pesquisa em relevância na Unisul, dividi este capítulo em quatro seções. Na primeira, apresento conceitos centrais da teoria; nas duas seções seguintes, apresento pesquisas desenvolvidas e em andamento; e, na quarta seção, teço considerações finais. 2. Conceitos centrais Conforme a teoria da relevância, ostensão e inferência são duas propriedades conjugadas e indissociáveis na comunicação humana. Um falante/escritor comunica ostensivamente quando produz um estímulo que torna uma intenção informativa mutuamente manifesta, para o falante/escritor e para o ouvinte/leitor. Um enunciado é uma evidência direta ou ostensiva da intenção informativa do falante/escritor. Cabe ao ouvinte/leitor construir suposições inferenciais com base nessas evidências. Sperber e Wilson (1986, 1995) e Carston (1988) defendem que a compreensão de enunciados pode ser descrita e explicada em três níveis representacionais: o nível da forma lógica, dependente da decodificação lingüística; o nível da explicatura, dependente do desenvolvimento da forma lógica por processos inferenciais de natureza pragmática; e o nível da implicatura, que é uma inferência pragmática que decorre da explicatura. Nesse contexto, a decodificação dos inputs lingüísticos constitui um dos processos modulares subsidiários aos mecanismos centrais do pensamento, conforme Fodor (1983), pois eles possuem traços reflexos e automáticos caracterizadores dos sistemas perceptuais. Uma das funções desses sistemas é converter representações sensoriais em representações 68 Fábio José Rauen conceituais, dentre as quais interessam as propriedades lógicas à cognição. Sperber e Wilson (1995, p. 72) definem a forma lógica de um enunciado como um “conjunto estruturado de constituintes que subjazem operações lógicas formais determinadas por sua estrutura”. Para ilustrar, observe-se a resposta de uma fonoaudióloga à professora de um estudante disléxico chamado Lucas. 15 (1a) Professora: Lucas conseguiu superar seu déficit fonológico? (1b) Fonoaudióloga: Ele fez uma terapia e lê textos simples. O enunciado (1b) conforma-se na forma lógica (1c): (1c) (fazer x, y) ∧ (ler x, y). As formas lógicas podem ser proposicionais ou não. As primeiras são sintaticamente bem formadas e semanticamente completas; as segundas são sintaticamente bem formadas, mas semanticamente incompletas. No processo de compreensão, os seres humanos são capazes de enriquecer formas lógicas incompletas por operações pragmáticas, tais como, as de atribuição de referência, desambiguação, resolução de indeterminações, interpretação de linguagem metafórica, enriquecimento de elipses. O produto dessas operações é a explicatura ou forma lógica proposicional. Conforme a forma lógica (1c), é preciso preencher certas lacunas em aberto para tornar o enunciado (1b) proposicional. A primeira proposição do enunciado é a de que alguém (x) fez algo (y). Na função sintática do sujeito, é preciso atribuir referente ao pronome ‘ele’. No caso, é mutuamente manifesto na interação que o diálogo se refere a LUCAS. Além disso, é preciso explicitar a que tipo de terapia a fonoaudióloga se refere. Por hipótese, trata-se de uma TERAPIA FONOAUDIOLÓGICA. Na segunda proposição, a de que alguém (x) lê algo (y), é preciso preencher a elipse do sujeito sintático do verbo ‘ler’, que é formalizada em (1d), a seguir, por ‘Ø’: outra vez LUCAS. Além disso, é preciso atribuir conexão temporal à conjunção ‘e’, formalizada em (1c) pelo símbolo lógico “∧“ e em (1d), a seguir, por “e [ENTÃO]”. Supostamente, a intenção da 15 Nesta seção, valho-me de uma adaptação da revisão teórica em Rauen e Rabello (2008a). 69 Teoria da relevância e ciências da linguagem... fonoaudióloga é a de comunicar que o desempenho satisfatório na leitura de textos simples decorre da participação de Lucas na terapia. 16 A formulação (1d) pretende capturar a forma lógica proposicional ou explicatura do enunciado (1b). 17 Veja-se: (1d) Ele [LUCAS] x fez uma terapia [FONOAUDIOLÓGICA] [ENTÃO] Ø [LUCAS] x lê textos simples y. y e A resposta (1b), explicada em (1d), não responde diretamente a pergunta (1a) da professora sobre a superação dos déficits fonológicos de Lucas. Para lidar com isso, é preciso recorrer ao conceito de implicatura. Segundo rediscute a teoria da relevância, uma implicatura é uma inferência que surge das expectativas de relevância ótima do ouvinte como uma conclusão implicada de um cálculo dedutivo. No exemplo, a explicatura (1d) ingressa no módulo dedutivo pressuposto pelo modelo teórico (SPERBER; WILSON, 1995, p. 93-102), como uma premissa implicada de uma regra dedutiva de eliminação. Sperber e Wilson propõem duas regras de eliminação: a regra de eliminação-e e a regra de modus ponens. No exemplo, o mecanismo poderia, em primeiro lugar, eliminar analiticamente a conjunção das duas proposições que compõe o enunciado (1d). A regra de eliminação-e captura a inferência de que, havendo duas proposições tratadas como verdadeiras num argumento conjuntivo, ambas as proposições dessa conjunção são verdadeiras isoladamente (formalmente: P ∧ Q; P, ou: P ∧ Q; Q). No caso, preservando a segunda proposição, se o ouvinte toma como verdadeiro que LUCAS FEZ UMA TERAPIA FONOAUDIOLÓGICA (P) e que LUCAS LÊ TEXTOS SIMPLES (Q), então é verdadeiro que LUCAS LÊ TEXTOS SIMPLES (Q). S1 – P ∧ Q; S2 – Q. 16 Isso sugere que os processos inferenciais não se restringem à formação de implicaturas, como defende Grice (1982), mas são requisitados para completar ou complementar a própria forma lógica da sentença enunciada. 17 Expressões lingüísticas serão apresentadas entre aspas simples ‘Lucas’, conceitos em versalete LUCAS e referências no mundo não receberão qualquer indicação. 70 Fábio José Rauen S1 – LUCAS FEZ UMA TERAPIA FONOAUDIOLÓGICA ∧ LUCAS LÊ TEXTOS SIMPLES (premissa implicada do input lingüístico da fonoaudióloga). S2 – LUCAS LÊ eliminação-e). TEXTOS SIMPLES (conclusão implicada por Em segundo lugar, o mecanismo poderia gerar uma implicatura ao combinar o resultado da eliminação da conjunção com certa suposição da memória enciclopédica, por meio da regra de modus ponens. Nessa regra, em uma cadeia onde uma proposição condicional (antecedente) implica uma conclusão (conseqüente), afirmar essa proposição condicional implica aceitar a conclusão como verdadeira (formalmente: P; P Q; Q, ou ainda: P; Se P então Q; Q). No exemplo, admitindo-se como antecedente que LUCAS LÊ TEXTOS SIMPLES, pode-se inferir que LUCAS, POSSIVELMENTE, CONSEGUIU AMENIZAR SEU DÉFICIT FONOLÓGICO. Veja-se: S1 – P; S2 – Se P, então Q; S3 – Q. S1 – LUCAS LÊ TEXTOS SIMPLES (premissa implicada que decorre da regra de eliminação-e em (1d)); S2 – Se LUCAS LÊ TEXTOS SIMPLES, então LUCAS, CONSEGUIU AMENIZAR SEU DÉFICIT POSSIVELMENTE, FONOLÓGICO (por regra de modus ponens); S3 – (1e) LUCAS, POSSIVELMENTE, CONSEGUIU AMENIZAR SEU DÉFICIT FONOLÓGICO (conclusão implicada por afirmação do antecedente S1). Aplicada a regra de modus ponens, obtém-se (1e), a seguir: (1e) LUCAS, POSSIVELMENTE, CONSEGUIU AMENIZAR SEU DÉFICIT FONOLÓGICO. Por hipótese, a interpretação pretendida pela fonoaudióloga é a de que Lucas amenizou seu déficit. Ela escolhe a resposta indireta, pois aposta que, devido ao investimento adicional para gerar a implicatura (1e), a professora também saberá, entre outras questões: que Lucas está fazendo terapia fonoaudiológica, lê textos simples, amenizou seu déficit porque faz terapia fonoaudiológica, etc.. 71 Teoria da relevância e ciências da linguagem... A relevância de um input ocorre por implicação, como na aplicação da regra de modus ponens; por fortalecimento, quando uma nova informação fornece mais evidência para uma suposição já conhecida; ou por eliminação, quando uma nova informação contradiz uma suposição já conhecida. Quanto maiores forem esses efeitos cognitivos obtidos, maior será a relevância. Por outro lado, visto que a geração de efeitos requer esforço de processamento, um input será mais relevante, na medida em que, para alcançar esses efeitos, sejam menores os dispêndios energéticos. Nesse cotejo, para ser obtido o que os autores denominaram de relevância ótima, é preciso que o contexto inicial seja o mais produtivo possível, derivando o maior número de efeitos com dispêndio de energia minimamente justificável. Destaque-se que nenhuma suposição é relevante em si mesma, e cotejos de relevância diferem entre indivíduos e situações. Desse modo, Sperber e Wilson (1995, p. 140) defendem que a relevância deva ser caracterizada de forma psicologicamente mais apropriada como relevância para um indivíduo. Para eles, um estímulo é um fenômeno destinado a realizar efeitos contextuais. Portanto, para produzir um efeito cognitivo específico é necessário produzir um estímulo que atinja o efeito pretendido, quando processado otimamente. Em enunciados, o estímulo deve atrair a atenção da audiência e focalizar as intenções do comunicador. Disso emana o Princípio Comunicativo de Relevância de que “todo ato de comunicação ostensiva comunica a presunção de sua relevância ótima” (SPERBER; WILSON, 1995, p. 158). Um ato de comunicação ostensiva é um requisito à atenção, que automaticamente comunica uma presunção (inferência) de sua relevância. Essa presunção é determinada por dois fatores: a) esforço cognitivo nunca maior que o requerido para processá-la otimamente; e b) efeitos alcançados por esse processamento ótimo nunca menores que o necessário para tornar o estímulo válido de ser processado. Numa presunção de relevância ótima, o estímulo ostensivo é relevante o suficiente para merecer processamento, e é o mais relevante compatível com as habilidades e preferência do comunicador (SPERBER; WILSON, 1995, p. 270). Diante de um estímulo otimamente relevante, é função do ouvinte a seleção da primeira interpretação acessível e consistente com o princípio de relevância. Assim, seguindo um caminho de menor esforço, ele chega a uma interpretação que satisfaz suas expectativas de relevância e que, na 72 Fábio José Rauen ausência de evidências contrárias, é a hipótese mais plausível sobre o significado do falante. Como a compreensão é um processo de inferência não-demonstrativo, essa hipótese pode revelar-se falsa; mas é a melhor que um ouvinte racional pode fazer (WILSON; SPERBER, 2005). Conhecidos os conceitos centrais da teoria, apresento, nas duas seções seguintes, os resultados dos estudos vinculados aos dois projetos de pesquisa que venho desenvolvendo. 3. Relevância, cognição e interação No projeto Pragmática, cognição e interação, analiso aspectos cognitivos e interacionais da comunicação humana, investigando peças comunicativas do ponto de vista ostensivo-inferencial e relendo criticamente conceitos centrais da teoria da relevância (como intenção, relevância, representação, subjetividade, ostensão e inferência). Nesta seção, destaco dois trabalhos próprios, bem como pesquisas orientadas dentro do escopo desse projeto. 3.1 Variáveis de exaustão e de saturação Em meu pós-doutorado, motivado pelo trabalho de Costa (2005), investiguei o paradoxo da otimização da relevância versus a adesão a rotinas estereotipadas. 18 No ensaio Sobre relevância e irrelevâncias (RAUEN, 2008a, b), repensei a aplicação reiterada ou recursiva do princípio cognitivo de relevância, argumentando que isso implicaria um estado permanentemente estressante de captura de informações. Tome-se um mundo possível, onde mecanismos cognitivos são guiados pelo princípio de relevância, de tal sorte que sempre será relevante o estímulo ostensivo em que o ganho cognitivo for maior do que o esforço de processamento. Imagine-se uma dinâmica “x” reiteradamente relevante nesse mundo possível, de tal forma que essa dinâmica gera, ad infinitum, um efeito cognitivo a mais do que o esforço para obter esse efeito cognitivo. Como esse mecanismo sairia desse loop ou efeito de hamster? 18 Costa (2005, p. 161-169) apresenta sete espécies de eventos comunicativos que desafiam o princípio de relevância: os clichês amorosos, a conversa light, a cultura de massa, a propensão de falar sobre si mesmo, o desperdício de tempo ao telefone, os cumprimentos e contatos, e a navegação redundante na internet. 73 Teoria da relevância e ciências da linguagem... Dado que seres humanos saudáveis alternam estados tensos e distensos, onde a cognição opera guiada ora pelos efeitos, ora pelos custos, essa reiteração é intuitivamente incorreta. Seria então o princípio cognitivo de relevância incorreto, justamente quando se percebe sua adequação em incontáveis investigações? Para responder a essa questão, propus a consideração de duas variáveis moderadoras na relação custo/benefício: a exaustão de recursos cognitivos e a saturação de estímulos salientes. No que se refere à exaustão, meu argumento é o de que a escassez de recursos cognitivos inibe o investimento energético. Assim, a atuação reiteradamente tensa do mecanismo é proibitiva, devido ao desgaste precoce da capacidade de o organismo prover recursos energéticos para novas demandas cognitivas. Logo, mesmo guiado pela otimização de efeitos cognitivos, essa otimização é constringida pelo gasto energético dispensado para a obtenção desses efeitos. Defendo que os organismos monitoram dispêndios energéticos, minimizando ou bloqueando desgastes excessivos. Isso é perceptível quando, cansados, damos atenção a estímulos irrelevantes ou desistimos de uma demanda cognitiva. Se insistirmos, nossos organismos respondem com efeitos cada vez mais pobres, até que sobrevenha o limite de exaustão. Desse modo, minha tese é a de que o organismo obtém efeitos cognitivos que compensam o dispêndio energético crescente até um ótimo de Pareto. 19 Para além desse limiar, efeitos não compensam esforços. Assim, defendo a exaustão como moderadora da relação custo/benefício, de modo que: [...] em igualdade de condições, quanto mais exausto estiver o organismo, maior será o dispêndio de energia para compensar o efeito cognitivo, minimizando a eficiência cognitiva ou relevância de um fenômeno até um ótimo de Pareto (RAUEN, 2008a, b). 19 Vilfredo Pareto cunhou a noção de ótimo ou eficiência de Pareto para questões econômicas. Segundo Pareto, uma situação econômica é ótima se não for possível melhorar a situação ou utilidade de um agente econômico sem degradar a situação ou utilidade de outro agente econômico. Analogamente, no domínio de uma variável de exaustão, não é possível aumentar a obtenção de efeitos cognitivos sem degradar a reserva energética do sistema cognitivo. Ou seja, o investimento cognitivo é constringido por um limiar para além do qual: a) os efeitos cognitivos não compensam o investimento energético; e b) o investimento energético degrada as reservas de energia do sistema. 74 Fábio José Rauen Considerar uma variável de exaustão gera duas conseqüências nãotriviais. Primeiro, embora um organismo possa aumentar o custo de processamento para obter maiores efeitos cognitivos, isso deve ser compensado pela minimização de custos, mesmo que a eficiência também seja minimizada em termos de efeitos cognitivos. Segundo, há uma relação inversamente proporcional entre a otimização de efeitos cognitivos em relação ao custo de processamento, por um lado, e o tempo de investimento de energia para a obtenção desses efeitos cognitivos, por outro. O aumento de custo implica aumento de eficiência apenas em curto prazo e abaixo de um ótimo de Pareto. Se capacidades energéticas moderam o princípio de relevância, estratégias distensas devem compensar estratégias tensas, poupando energia entre ciclos de reposição. No que se refere à variável de saturação, refiro-me à capacidade de insaturação de um estímulo, quando sucessivamente repetido. Ou seja, à capacidade de um estímulo sensibilizar o organismo quando repetido reiteradamente, de tal sorte que sua consideração gere certo efeito cognitivo que compense o esforço cognitivo dispensado. Quando fatigados, nossa atenção pode ser desviada a estímulos triviais. Isso funciona, porque o conjunto de suposições conhecidas é praticamente pleno em contextos triviais, a não ser por algum aspecto pouco relevante, cujo dispêndio energético para obtê-lo é quase nulo. Um conjunto de suposições conhecidas ou factuais é tratado pelo indivíduo como certo ou quase certo. Trata-se de um conhecimento fortemente assegurado pelo indivíduo e fortemente enraizado em sua cognição. Nesse contexto, argumento que nenhuma suposição pode ser considerada como maximamente ou plenamente certa, mesmo quando gerada por um input perceptual; mas é a reiteração sucessiva de uma suposição que a torna mais forte ou mais factual. Essa repetição é necessária até um limiar teórico de saturação, para além do qual, uma nova repetição da mesma suposição deixa de ser saliente e é filtrada pelo organismo como irrelevante. Assim, há também um ótimo de Pareto para a variável saturação, de modo que, ultrapassado esse limiar, um estímulo novamente apresentado deixa de sensibilizar os mecanismos, pois os efeitos cognitivos não mais compensam os esforços para a obtenção desses efeitos cognitivos de fortalecimento mediante reiteração. Adotar uma variável de saturação e um limiar de saturação é importante, pois sugere uma explicação para a adesão dos seres humanos a rotinas habituais. Para um organismo que é guiado para a relevância e poupa recursos energéticos, é importante que o contexto seja composto do 75 Teoria da relevância e ciências da linguagem... maior número de suposições factuais ou estáveis. O modo como os seres humanos garantem a estabilidade do mundo é percebendo as regularidades mediante reiterações sucessivas. A percepção de regularidades os torna capazes de tomar consciência de irregularidades relevantes. Duas conseqüências não-triviais podem ser apresentadas. A primeira é a de que, sendo o reforço de uma suposição uma das formas mais econômicas de se obter um efeito cognitivo, essa estratégia deve ser perseguida por todos aqueles que lidam com a promoção ou revisão de hábitos. A segunda é a de que a utilização de estímulos saturados pode produzir efeitos de relevância. Basta produzir um enunciado de baixa relevância ou mesmo irrelevante para desviar a atenção da audiência para outros elementos da comunicação: suposições saturadas funcionam como background para suposições novas relevantes. 3.2 Relevância e gênero O princípio de relevância e a variável de saturação podem ser produtivos numa interface com estudos de gêneros textuais. Se relevância é definida pelo cotejo de efeitos e esforços cognitivos, pode-se avaliar o papel da produção e da recepção de gêneros específicos nessa relação. É nessa perspectiva que analisei um exemplar de uma cartaconsulta de Simoni (2004) no ensaio Relevance and genre: theoretical and conceptual interfaces (RAUEN, 2008c). Nessa carta, um mutuário não sabe como registrar um imóvel comprado num contrato de gaveta, cujo titular ele não tinha contato há anos. Veja-se o texto, cujos passos retóricos atribuídos por Simoni (2004) estão entre colchetes. (1) Gaveta [Citar tópico do texto]. (2) Tenho um contrato de gaveta registrado em cartório em 1985. (3) Em meio de 1996, quitei o imóvel com o FGTS [Delinear o cenário]. (4) A Caixa me informou agora que a proprietária do imóvel tem que assinar o contrato de quitação. (5) Mas há anos não tenho mais contato com ela [Apresentar o problema]. (6) O que devo fazer [Solicitar uma solução]? (7) Luiz Silva (8) Rio de Janeiro [Fornecer dados de identificação]. 76 Fábio José Rauen No ensaio, argumento que a carta-consulta foi construída a partir da complementação de um dos constituintes lógicos da questão relevante no enunciado (6). É sobre esse constituinte lógico que gravitam movimentos e passos retóricos do texto, sugerindo que estruturas genéricas estão a serviço de algo mais essencial: as relações de relevância. O enunciado (6), agora (6a), contém a forma lógica (6b): (6a) O que devo fazer? (6b) dever fazer, alguém, algo (dever fazer, x, y). O enunciado (6) é uma pergunta-QU. Perguntas com um pronome interrogativo, segundo Sperber e Wilson (1995, p. 252) não constituem uma forma proposicional total, porque o constituinte lógico explicitado pelo pronome ‘que’ está incompleto, e o falante não tem como completá-lo. A relevância gravita em torno do objeto de ‘dever saber’: Luiz Silva, sujeito de ‘dever fazer’ não sabe como registrar o imóvel. Para Simoni (2004), o movimento retórico “formular uma questão” enseja quatro passos retóricos: “delinear o cenário”, “apresentar o problema”, “solicitar uma resposta” e “fornecer dados de identificação”. Defendo que o passo “solicitar uma solução” é supra-ordenado, pois mobiliza o movimento “fornecer uma resposta”, guiado pela relevância. A explicatura do enunciado (6) pode ser desenvolvida como (6c) e, incluindo uma descrição de alto nível que dê conta do ato de fala em jogo, algo bem próximo do passo retórico de “solicitar uma resposta”, pode ser descrita como em (6d-e). (6b) dever fazer, alguém, algo. (6c) dever fazer, Luiz Silva, QU. (6d) O consulente está perguntando algo (dever fazer, alguém, algo). (6e) Luiz Silva está perguntando (dever fazer, Luiz Silva, QU). Embora (6e) aproxime-se do que está em jogo no passo retórico, ainda não capta a dúvida de ‘Luiz Silva’. Isso só é possível se o leitor contar com um contexto suficientemente rico de suposições que devem incluir conhecimentos sobre o sistema financeiro da habitação no Brasil. Esse conhecimento emparelhado com o enunciado (5), que explicita o 77 Teoria da relevância e ciências da linguagem... problema de Luiz Silva e permite inferir o motivo de sua consulta, torna possível estabelecer uma proposição possivelmente completa para o enunciado (6). Essa proposição, provavelmente, é suficientemente relevante para merecer processamento de todos os leitores do texto. (6f) O enunciador 2 está perguntando algo (dever fazer, alguém, algo, para algum propósito). (6g) Luiz Silva está perguntando (dever fazer, Luiz Silva, QU, para formalizar o contrato de gaveta de Luiz Silva com a proprietária do imóvel). Perguntar é a forma mais econômica de obter respostas. Luiz Silva fez isso em um jornal, porque entram em jogo suas suposições sobre o funcionamento do gênero. Assim, se a obtenção de uma resposta é a dimensão que catalisa o texto, haver práticas sociais de fornecimento de respostas a dúvidas nos jornais viabiliza a interação. O jornalista medeia a interlocução formatado pelas configurações do gênero. Várias suposições são mobilizadas pelos interlocutores para processar a carta-consulta, por exemplo, que atos para formalização do contrato de gaveta incluem obtenção da escritura, quitação do financiamento e registro do imóvel. Para Blass (1990), os textos são apenas pistas para o processo de compreensão, fornecendo parte dos dados lógicoconceituais para a fase inferencial da interpretação. Assim, a textualidade não se explica necessária e suficientemente pela articulação das estruturas lingüístico-textuais, mas é um fenômeno de processamento operado na mente. Para interpretar o enunciado (6), além da decodificação, mobilizaram-se conhecimentos enciclopédicos sobre como se registram ou se financiam imóveis, além do conhecimento, mesmo que intuitivo, do funcionamento do gênero em questão. A resposta de Luiz Wanis, advogado consultado pelo jornalista, foi a de que: se o vendedor do imóvel tivesse outorgado uma procuração para o comprador representá-lo nos atos relativos à efetivação do negócio, isso resolveria o problema; sem uma procuração, Luiz Silva deveria ajuizar uma ação de adjudicação compulsória e, de posse da sentença judicial que lhe outorga a escritura definitiva, obter a quitação da Caixa. 78 Fábio José Rauen 3.3 Relevância e produtos midiáticos No que tange à análise de produtos midiáticos, três trabalhos podem ser destacados: Silva (2003), Coral (2003) e Caldeira (2007). Em 2003, Célia Maria da Silva defendeu a dissertação: Processos ostensivo-inferenciais do filme “Neve sobre os cedros”, de Scott Hicks. O filme relata o julgamento de Kazuo Miyamoto, cidadão japonês de uma comunidade americana, réu do suposto homicídio de Carl Heine. O julgamento é um pretexto para despertar memórias do amor que o jornalista Ishmael Chambers sente por Hatsue Miyamoto, esposa do réu. A narrativa é uma amálgama de flashbacks dentro de outros flashbacks, que vão sendo sincronicamente entrelaçados em torno do julgamento e do amor não-concretizado. Segundo Silva (2003, p. 8), “o filme vai se desenrolando, até a catarse do protagonista Ishmael, que se alia à resolução do crime”. No início, Ishmael Chambers e espectador implicam a condenação do réu, e depoimentos fortalecem essa suposição. Cenas em flashback, porém, contrapõem esse veredicto revelando aspectos da integridade moral da educação japonesa e injustiças com a comunidade japonesa na Segunda Guerra. Essas cenas visam equiparar o ambiente cognitivo do espectador ao de Ishmael, para quem se deflagra o conflito entre o profissional íntegro e o amante frustrado. Suspeitando da inocência de Kazuo, Ishmael vai à guarda-costeira, e os registros confirmam a provável injustiça no julgamento. Revelar a inocência torna-se o dilema da personagem. Na seqüência, Silva descreve e explica com acuidade os desdobramentos da trama. Lances dramáticos do julgamento levam Ishmael a revelar sua descoberta depois de muita hesitação e, por conta disso, o réu é absolvido. A vingança passional perde espaço para a defesa da verdade. Conforme Silva: “No final, há uma saída para o mocinho” (2003, p. 113). O trabalho demonstrou a adequação da teoria para revelar as crenças de Ishmael Chambers em relação à comunidade japonesa, o comportamento potencial do júri no julgamento e as crenças do espectador sobre esses fatos. Com ênfase nos comportamentos ostensivo-inferenciais de Ishmael, especialmente no capítulo dezesseis, o das argumentações, analisou-se desde a possível condenação do réu, passando pelos dilemas da busca por evidências da inocência, até sua obtenção e revelação. Ainda em 2003, Ruth de Farias Coral, em sua dissertação intitulada: Progressão temática em entrevista de Anthony Garotinho a Boris Casoy: análise com base na teoria da relevância, pôs em cena o tema 79 Teoria da relevância e ciências da linguagem... dos debates políticos, com base em uma das entrevistas da Série Presidenciáveis da Rede Record de Televisão em 2002. A partir das noções de forma lógica, explicatura e implicatura, da explicitação do tema subseqüente e da função temática ou remática dos elementos retomados, Coral estabeleceu doze categorias de análise. Os dados apontaram para: uma prevalência de progressão com tema explícito; um equilíbrio entre progressões com base na estrutura lingüística de um lado e de explicaturas e implicaturas, de outro; e um equilíbrio entre a derivação a partir do tema ou do rema da cláusula-fonte. Além disso, a noção de explicatura permitiu descrever boa parte da progressão implícita, e a noção de implicatura foi capaz de descrever e aprofundar a categoria de salto temático, proposta por Koch (1997). Em 2007, Fátima Hassan Caldeira defendeu a dissertação: Ambiente cognitivo mútuo e suposições factuais mutuamente manifestas como delimitadores da fronteira familiar: o caso Mariene Stier em Troca de Família. O trabalho investigou a propriedade dos conceitos de ambiente cognitivo mútuo e de suposições factuais mutuamente manifestas para a descrição e a explicação das delimitações de fronteiras familiares. Caldeira observou as interações comunicativas decorrentes da inserção de Mariene Stier no contexto da família Tomaz, em dois episódios do programa Troca de Família da Rede Record de Televisão. Segundo Caldeira (2007), a troca de mães exige que mãe substituta e família alarguem ambientes cognitivos: um investimento cognitivo nem sempre compensado por ganhos cognitivos mútuos. Como o aumento de custos se justifica somente pelo aumento de benefícios cognitivos, essas trocas serão relevantes apenas quando um ambiente de cooperação se instala. Não foi esse o caso das situações tensas que ocorreram no Troca de família. Nessas situações, emergiram conflitos em decorrência de falhas ou de discordâncias explícitas no mapeamento das suposições factuais. Para Caldeira, dentre as crenças e valores dos Stier, a organização e o papel matriarcal tradicional se impõem em aspectos como limpeza, rigidez de horários e refeições como espaço sagrado de convívio. Mariene travou diversas discussões com os Tomaz por não aceitar o desleixo com a limpeza e a organização da casa e, particularmente estressante para ela, o fato de os Tomaz fazerem as refeições individualmente. Esses achados sugerem que os conceitos de suposições factuais mutuamente manifestas e de ambiente cognitivo mútuo são capazes de delimitar as fronteiras familiares, contribuindo para o estudo da cultura e da sociedade. 80 Fábio José Rauen 4. Relevância e ensino O projeto Teoria da relevância: práticas de leitura e produção textual em contexto escolar, ao mesmo tempo em que avalia a capacidade descritiva e explanatória da teoria, considera sua aplicação prática na análise de contextos de leitura e produção textual em ambiente escolar. Os trabalhos vinculados a esse projeto defendem a hipótese operacional de que a aplicação dos níveis representacionais: forma lógica, explicatura e implicatura, permitem uma descrição empírica e uma explicação adequada dos processos ostensivo-inferenciais em processos de interação comunicativa em contextos de ensino-aprendizagem. 4.1 Relevância, leitura e produção textual A dissertação de Jaqueline Marcos Garcia de Godói (2004) foi o primeiro trabalho nessa perspectiva. Nesse estudo, intitulado Influência de implicaturas na elaboração de resumo sem consulta ao texto de base: estudo de caso com base na teoria da relevância, Godói verificou a influência de implicaturas na elaboração de um resumo informativo sem consulta ao texto de base, elaborado por um acadêmico do curso de Administração. A autora comparou as suposições derivadas da estrutura lingüística do texto de resumo com as suposições derivadas da estrutura lingüística e das implicaturas do texto de base. Os dados evidenciaram que, dentre as 34 suposições do texto de resumo, 13 foram retomadas de suposições derivadas de explicaturas do input lingüístico, e 21 derivaram de implicaturas. Ou seja, o resumo foi prevalentemente construído a partir da combinação de suposições derivadas do input lingüístico com o conhecimento enciclopédico de seu autor. A coleta de dados de Godói (2004) incluía a produção de resumos com e sem consulta ao texto de base. Com base nesse corpus, elaborei um artigo intitulado Inferências em resumo com consulta ao texto de base: estudo de caso com base na teoria da relevância (RAUEN, 2005), comparando a primeira sentença dos dois resumos elaborados por um dos estudantes de administração com as três primeiras sentenças do texto de base. Os resultados permitiram detectar no segundo resumo evidências de elementos do primeiro resumo, do texto de base e de inferências não contempladas no primeiro resumo. 81 Teoria da relevância e ciências da linguagem... Para chegar a essa conclusão, elaborei uma metodologia de análise de produtos textuais com base em textos prévios. Para a teoria da relevância, o contexto para a compreensão de um estímulo ostensivo não é uma variável fixa, mas construída no processo de compreensão. Em cada etapa do processamento, o indivíduo dispõe de um conjunto de contextos acessíveis que lhes são parcialmente ordenados. Cada contexto, exceto o inicial, contém um ou mais contextos menores e cada contexto (exceto os contextos máximos) está contido em um ou mais contextos maiores. [...] essa relação formal tem uma contraparte psicológica: a ordem de inclusão corresponde à ordem de acessibilidade. (SPERBER; WILSON, 1995, p. 142). No trabalho de Godói, o contexto cognitivo do estudante amplia-se e torna-se mais complexo, quando as tarefas se sucedem. Godói apresentou o texto de base (T) O que é... humildade, de Mr. Max (Max Gehringer), a estudantes de Administração. Destinado um período para a leitura (L), eles elaboraram um resumo sem consulta ao texto (R1) e, depois, um resumo com consulta (R2). Formalizei as tarefas respectivamente como t1, t2 e t3 e o contexto cognitivo do estudante em cada tarefa como C. Na leitura (L), primeira tarefa (t1), os enunciados do texto de base (T) constituíram-se como estímulos ostensivos do autor (inputs) para os processos de compreensão. Eles acionaram suposições no ambiente cognitivo (C) do estudante: L = f (Tt1 Ct1), ou seja, a compreensão na leitura foi uma função (f) da combinação do enunciados do texto de base com o ambiente cognitivo do estudante na tarefa 1. Na segunda tarefa (t2), resumo sem consulta ao texto de base (R1), os enunciados foram organizados exclusivamente em função do contexto cognitivo (C) do estudante. Esse contexto cognitivo ampliado incluiu um conjunto de suposições que emergiram somente no decorrer da elaboração do resumo sem consulta (Ct2) e um conjunto de suposições que decorreu da combinação do texto de base e das suposições do contexto cognitivo durante a leitura (Tt1 Ct1). 82 Fábio José Rauen Veja-se: R1 = f C[Ct2 (Tt1 Ct1)], ou seja, os enunciados do resumo sem consulta (R1) foram uma função (f) do contexto cognitivo do estudante que incluiu o contexto cognitivo emergente na tarefa 2 (t2) em combinação com o contexto cognitivo da tarefa 1 (t1). Na terceira tarefa (t3), o resumo com consulta (R2) caracterizou-se pela combinação dos enunciados do texto de base (T) com o ambiente cognitivo do estudante (C) em (t3). Esse ambiente cognitivo constituiu-se do conjunto de suposições em (t3) em combinação com o conjunto de suposições em (t2), ou seja, com o conjunto de suposições fortalecidas, enfraquecidas, contraditas ou inferidas quando da elaboração do primeiro resumo sem consulta. Como já foi dito, o conjunto de suposições em (t2) já fora função da memorização da intersecção do conjunto de suposições dos enunciados do texto de base (T) em (t1) com as suposições estocadas na memória (C) em (t1). Veja-se: R2 = f Tt3 C{Ct3 C[Ct2 (Tt1 Ct1)]}, ou seja, os enunciados do resumo com consulta foram uma função (f) do contexto cognitivo do estudante que incluiu o contexto cognitivo emergente na tarefa 3 (t3) em combinação com os contextos cognitivos da tarefa 2 (t2) e da tarefa 1 (t1). Assim, o resumo com consulta (R2) constituiu-se como função palimpséstica das tarefas anteriores e, por conseqüência, deve ser possível detectar três fontes de evidências nos enunciados desse resumo, a saber: 83 Teoria da relevância e ciências da linguagem... a) evidências de Tt3 – suposições que não foram contempladas no resumo sem consulta e que emergiram em função da releitura do texto de base (suposições do texto de base); b) evidências de Ct3 – suposições que não foram contempladas no resumo sem consulta e que emergiram de inferências da combinação dos enunciados do texto de base com o ambiente cognitivo do estudante em (t3) (inferências em R2); e c) evidências de Ct2 (Tt1 Ct1) – suposições do contexto cognitivo do estudante em (t2), resumo sem consulta, que já fora ampliado pela contextualização dos enunciados do texto de base com o contexto cognitivo do estudante em (t1), leitura (inferências em R1). Ainda em 2005, a dissertação de Maria de Fátima Pavei, intitulada Influência do título na interpretação de charge: estudo de caso com base na teoria da relevância, analisou a influência do título na interpretação da charge “Fome Zero” por dez alunos da 8ª série do ensino fundamental da Escola Básica Municipal Quintino Rizzieri do Município de Içara, SC, divididos em grupo experimental (presença do título) e de controle. Figura 1 – Charge “Fome Zero” Os resultados apontaram que o título exerceu influência categórica na interpretação. Nenhuma interpretação do grupo de controle referiu-se ao programa Fome Zero enquanto todas as interpretações referiram-se ao programa quando o título estava presente. Colateralmente, o estudo de Pavei (2005) destacou a dificuldade dos estudantes em explicitar lingüisticamente o conteúdo proposicional dos enunciados. Em função desse cenário, a questão da explicitação lingüística recebeu atenção especial no grupo de estudo. Nesse sentido, duas pesquisas 84 Fábio José Rauen investigaram formas de intervenção docente na produção textual de aprendizes: Souza (2006), intitulada Graus de explicitação em reescrita de produção textual: análise, com base na teoria da relevância, dos efeitos da intervenção oral docente; e Bolzan (2008), intitulada Influência da intervenção escrita do docente em textos dissertativo-argumentativos reescritos: análise com base na teoria da relevância. Jamille Militão de Souza (2006) analisou a influência de uma intervenção oral e individual do docente nos graus de explicitação em reescrita de produção textual. Com base na metodologia de Rauen (2005), a pesquisa revelou que os enunciados da reescrita foram mais explícitos do que os do primeiro texto, e que houve marcas da influência da intervenção nesse segundo texto, além de marcas dos ambientes cognitivos ativados nas fases anteriores e informações inéditas. Rosane Maria Bolzan (2008), ao observar que a pesquisa de Souza pressupôs a possibilidade de o docente fazer uma intervenção oral com cada aluno em turno diferente daquele das aulas, argumentou que isso não seria viável nas condições materiais do trabalho docente. Desse modo, sugeriu que estratégias de intervenção coletiva, como as que corrigem uma produção no quadro-negro, ou individuais, como as que deixam pistas escritas que permitam aos estudantes aprimorarem a redação, poderiam ser mais viáveis. Seu trabalho optou por uma intervenção do segundo tipo. Bolzan analisou a influência do registro escrito de questões de segunda ordem (perguntas-QU) pelo docente na explicitação lingüística dos elementos da forma lógico-proposicional dos enunciados da reescrita de produções textuais dissertativo-argumentativas de estudantes da 1ª fase do ensino médio do Centro Federal de Educação Tecnológica de Santa Catarina, em São José. O exemplo a seguir, ilustra o trabalho de Bolzan: Primeira produção textual (1) Nossa língua é bem variada, uma região fala de um jeito diferente uma da outra, mas qual será o jeito certo de falar? Perguntas-QU? (2a) De que língua você fala? (2b) De que regiões você fala? Segunda produção textual (3a) Nossa língua, Língua Portuguesa, é bem variada. (3b) Uma região fala de um jeito diferente uma da outra, por exemplo o RS tem seu sotaque e suas particularidades diferentes do PR que também possue as suas, e assim sucessivamente com todos os estados. 85 Teoria da relevância e ciências da linguagem... O enunciado (1) da primeira produção não explicita a que língua e a quais regiões o autor se refere. Bolzan, então, insere duas perguntas-QU (2a-b), sugerindo a explicitação dessas informações. O resultado, em itálico, consiste na inserção de um aposto após o item lexical ‘língua’, bem como toda uma explicitação das diferenças de fala. Veja-se que o estudante apresenta a informação em dois enunciados (3a-b) e deixa de questionar qual seria o ‘jeito certo de falar’. Os resultados de Bolzan foram similares aos de Souza, no que se refere à maior explicitação e à detecção de marcas de todas as etapas nos enunciados. O estudo identificou que os enunciados da reescrita formaram escalas focais completas influenciadas pelas perguntas-QU do docente. No esteio de processos de leitura e de reescrita, estão em andamento, vários trabalhos de iniciação científica e uma dissertação de mestrado. 20 Nesse sentido, Eloíse Machado de Souza Alano qualificou o projeto de dissertação: Reescrita de texto por alunos da disciplina de leitura e produção textual nas modalidades presencial e virtual: estudo comparativo com base na teoria da relevância. Nessa investigação, Alano (2008) pretende comparar efeitos da intervenção do docente na reescrita de acadêmicos de direito nas duas modalidades. Em ambos os casos, a pesquisadora acrescentará perguntas-QU por escrito na primeira versão. Na modalidade presencial, a pesquisadora estará disponível para sanar oralmente as dúvidas dos alunos no momento da reescrita; e na modalidade virtual, a pesquisadora estará disponível on-line. A pesquisa pretende verificar como e em que medida essas condições de produção interferem na qualidade da reescrita. Por fim, vale mencionar um trabalho relacionado à dislexia. Em 2007, Berenice de Azevedo Rabello defendeu a dissertação: Estratégias de compreensão textual na dislexia: análise com base na teoria da relevância. 21 Nessa pesquisa, Rabello comparou o desempenho de disléxicos fonológicos moderados na interpretação de um de um conto infanto-juvenil de Mabel Condemarim com o desempenho de leitores de mesma idade cronológica e de leitura, grupos de controle. 20 Em nível de iniciação científica, destacam-se os trabalhos de Silva (PIBIC/CNPq) e Fernandes (PUIC/Unisul), sobre reescrita coletiva de produções textuais com alunos da 1ª e da 2ª série do ensino fundamental; e trabalhos sobre processos interacionais entre alunos, tutores e monitores nas disciplinas Sociologia e Didática I, Oliveira (PUIC/Unisul) e Corrêa (Artigo 170/Unisul). 21 Ver também Rauen e Rabello (2008a, b). 86 Fábio José Rauen Os resultados demonstraram que os sujeitos dos grupos de controle fundamentaram preferencialmente suas inferências a partir dos inputs lingüísticos do texto de base e que os sujeitos disléxicos, em função do déficit de componente fonológico, fundamentaram suas inferências a partir do contexto e das suposições de sua memória enciclopédica, corroborando a literatura na área. 4.2 Relevância e avaliação escolar No que diz respeito aos processos de interação escolar, um dos pontos que mais se destaca é o da avaliação de trabalhos escolares, entre os quais os de avaliação de interpretação textual. Diante da polissemia constitutiva da língua, avaliar textos interpretativos é uma questão incômoda. Duas condutas emergem diante desse desafio: fixar-se em uma interpretação fornecida por um gabarito ou julgada como correta e medir as interpretações dos alunos em função da aproximação ou distanciamento dessa interpretação; ou aceitar toda e qualquer interpretação. Em 2005, orientei um Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado Avaliação de interpretação textual por cinco docentes de Língua Portuguesa: análise com base na Teoria de Relevância. Nessa pesquisa, Luana Rabelo da Silveira verificou se a semelhança entre a interpretação e a estrutura lingüística do texto de base influenciava a atribuição de nota, lançando a hipótese de que: quanto mais as respostas dos intérpretes se conformassem com as entradas lexicais do texto, maior seria a nota. Em primeiro lugar, Silveira (2005) aplicou os conceitos de forma lógica, explicatura e implicatura em um texto de Cecília Meireles, extraído do livro Seleta em prosa e verso. A seguir, ela obteve um conjunto de respostas autênticas de estudantes da terceira série do ensino médio para cinco questões caracterizadas pela possibilidade de serem respondidas inferencialmente. Mais a frente, Silveira selecionou as respostas que mais se aproximavam da estrutura lingüística do texto e as respostas inferenciais mais significativas, para então simular seis alunos verossímeis, três rapazes e três moças, diferenciados por uma gradação consistente de respostas lingüísticas e inferenciais. Por fim, as interpretações foram lidas, corrigidas e avaliadas por cinco professores de Língua Portuguesa. Os achados sugerem não haver tendência para diminuição das notas em função do distanciamento do texto. Apesar disso, os docentes consideraram as respostas textuais corretas e dois docentes atribuíram nota 87 Teoria da relevância e ciências da linguagem... máxima ao estudante que transcreveu todas as respostas do texto. Embora os docentes concordem que a interpretação deva ser inferencial e que cópias de fragmentos do texto são indícios de transcrição e não de interpretação, diante de respostas inferenciais, houve dificuldades na correção e recorrência ao texto como referência. Além disso, houve comprometimento da nota, diante de respostas inusitadas ou diferentes daquelas autorizadas pelos docentes, sugerindo que somente inferências autorizadas pelos docentes são consideradas corretas. Na dissertação: Interpretações do poema ‘O barro’, de Paulo Leminski, por docentes do ensino fundamental: análise com base na teoria da relevância, Ana Sueli Ribeiro Vandresen (2005) estudou os processos de compreensão desse poema por estudantes do curso de capacitação e aperfeiçoamento para professores de primeira a quarta séries, oferecido pelas Faculdades São Judas Tadeu de Pinhais, PR, em Fartura, SP. 22 Veja-se o poema: O barro Toma a forma Que você quiser Você nem sabe Estar fazendo O que o barro quer Vandresen (2005) aplicou a escala focal (cf. Sperber e Wilson, 1995, seção 2.6.6), gerando quatro critérios objetivos para a avaliação das interpretações: atribuição adequada ou potencialmente adequada de referente ao item lexical ‘barro’; atribuição adequada ou potencialmente adequada de referente ao item lexical ‘você’; recuperação da relação de oposição entre as duas estrofes do poema; e, recuperação da relação paradoxal das duas estrofes do poema. Com base nesses critérios, ela reconstruiu a dinâmica dos processos inferenciais realizados para demonstrar o cálculo dedutivo utilizado pelos alunos do curso. Os resultados revelaram haver diversificação de referentes ao item lexical ‘barro’, sobressaindo-se a interpretação de que barro remete a alunos e a concepção de educando como tabula rasa. Dentre as vinte interpretações que recuperaram a relação adversativa, apenas onze interpretações recuperaram o paradoxo implícito do poema. 22 Veja-se também Rauen e Vandresen (2006, 2007). 88 Fábio José Rauen Segundo a teoria da relevância, já no nível da explicatura é necessária certa dose de raciocínio inferencial. O trabalho de Vandresen corroborou tendência já verificada em testes de letramento: a interpretação que envolve inferências é sofrível entre escolares (aqui, mais preocupante por tratar-se de docentes do ensino fundamental). Com base nos trabalhos de Silveira (2005) e Vandresen (2005), está em curso a dissertação de Eva Lourdes Pires, intitulada Justificativas de avaliação de interpretações do poema O barro, de Paulo Leminski, por docentes de língua portuguesa: análise com base na teoria da relevância. O objetivo dessa pesquisa consiste em descrever e explicar os processos ostensivo-inferenciais das justificativas das notas atribuídas por cinco docentes de Língua Portuguesa às interpretações do poema O barro, Paulo Leminski, a partir dos textos obtidos por Vandresen (2005), tomados como elaborados por dez discentes do terceiro ano ensino médio. O trabalho de Pires replica a metodologia de Silveira (2005) e toma por empréstimo doze interpretações selecionadas do trabalho de Vandresen (2005). No veio da avaliação, mas com enfoque diferente, orientei a dissertação: Compreensão de texto de avaliação descritiva: estudo de caso exploratório com base na teoria da relevância, de Alesandra da Cruz. A partir dos Parâmetros Curriculares Municipais, a rede municipal de São Ludgero, SC, passou a exigir uma avaliação descritiva da aprendizagem. Cruz (2008) verificou a influência dessa avaliação no que uma mãe relata ter sido relevante sobre a aprendizagem do filho. A análise percorreu: o texto do parecer descritivo; a interação oral entre professora e pesquisadora; a interação da professora e mãe; e a interação oral final entre mãe e pesquisadora. Segundo Cruz, os dados sugerem prevalência decisiva de suposições derivadas da versão oral da avaliação sobre as suposições registradas por escrito, acrescidas de suposições inferidas pela mãe a partir da interação ou evocadas por ela a partir de sua memória. Isso sugere que a versão escrita exerce pouca influência para fundamentar a interação. Por exemplo, na avaliação descritiva e na interação com a mãe, a professora se esforça para solicitar ajuda à família para que a aluna não reprove na primeira série. Em dado momento, há o seguinte diálogo: P – Só que, assim, a senhora já percebeu não está conseguindo acompanhar a turma assim, né. Tô dando umas atividades diferentes pra ela, né. 89 Teoria da relevância e ciências da linguagem... M – Porque eu acho assim. Na minha opinião, se ela não tem condições de passar, então, por mim, se ela ficar, repetir mais um ano até vai ser melhor. Aqui, a mãe infere a reprovação e racionaliza que essa reprovação fará bem para sua filha. Mais adiante, a mãe dirá à pesquisadora: PQ – O que a professora colocou? M – Que seria assim, que no caso dela seria necessário repetir o ano, né. Porque ela não acompanha a turma ainda, mas ela já desenvolveu um monte, já. No caso, a conclusão implicada de que a filha deverá ser reprovada não provém da fala da professora, muito menos foi parte de sua avaliação descritiva, mas é uma inferência de responsabilidade da própria mãe. 4.3 Relevância, ensino infantil e fundamental As pesquisas em relevância têm atraído a atenção de docentes do ensino infantil e das séries iniciais. Clésia da Silva Mendes Zapelini (2005) comparou a produção de texto oral e escrito elaborado com base na interpretação de história em quadrinhos. O estudo de caso de Zapelini analisou processos de explicitação em interpretação oral e escrita da história em quadrinhos “Pega os pratos!”, de Maurício de Souza. Para isso, Zapelini estudou oito alunos de 1ª série do ensino fundamental do Centro Educacional Alpha Ideal de Braço do Norte, SC. O estudo detectou que as crianças fizeram inferências diferentes nas duas atividades. Dado que a ausência do código numa história em quadrinhos torna-a mais vaga, uma mesma história pode de ser compreendida de modos diferentes, mesmo em tarefas sucessivas. Na história em quadrinhos em questão, depois de muito malabarismo para pegar os pratos que estavam por cair em função de um tropeço do garçom, Magali derruba-os tão logo percebe que sua comida estava sendo servida na sua mesa. Esse comportamento é coerente com a fama glutona da personagem. Porém, a percepção dos pratos quebrados não foi vista por várias crianças, e outras inferências foram relevantes com base nesses inputs, reforçando a tese da individualidade do conceito de relevância. 90 Fábio José Rauen Segundo Zapelini, a relevância de um olhar baseado no conceito de relevância ilumina a capacidade inferencial que as crianças possuem quando interpretam histórias. Nem sempre o resultado da interpretação equivale ao do adulto. Não equivaler, contudo, não implica inferioridade, equívoco ou erro, mas simplesmente diferença compatível com o estágio de desenvolvimento da criança (ZAPELINI, 2005, p. 111). A pesquisa de Zapelini ocorreu com alunos alfabetizandos, e a tarefa demandou que os alunos elaborassem uma interpretação oral e, posteriormente, uma interpretação por escrito da história em quadrinhos. Evidente, seu foco estava centrado na tradução da história em quadrinhos em questão do registro oral para o escrito. No que se refere aos resultados, o estudo destacou a dificuldade de a criança explicitar o conteúdo proposicional de seu pensamento em ambos os registros. A obtenção de coerência de muitas das interpretações só se admitiu em função do preenchimento de premissas implícitas. Entretanto, isso foi especialmente marcado quando a criança está interpretando oralmente a história. Ou seja, nesse estudo, mesmo em fase de alfabetização, foram encontradas menos lacunas na interpretação escrita, sugerindo que as crianças já estão desenvolvendo competências específicas conforme o registro. Qual seria o comportamento de alunos do ensino infantil em tarefa similar? Esta é a questão que a dissertação de Alba da Rosa Vieira pretende responder. Obviamente, não se trata de comparar registros, a criança não está alfabetizada, mas verificar que competências e habilidades crianças de três a quatro anos têm quando interpretam uma história em quadrinhos. Diante dessa dúvida, Vieira (2008) está desenvolvendo um estudo de caso, onde o docente fornece um conjunto de quadrinhos sem balões de fala para que as crianças ordenem e produzam uma narrativa. Em 2004, José Antonio Matiola defendeu a dissertação: Aulas de Filosofia com alunos de sétima série do ensino fundamental: análise de processos interacionais com base na teoria da relevância. Matiola investigou processos ostensivo-inferenciais em interações de professor e alunos em aula de Filosofia sobre questões éticas relativas ao aborto. O trabalho envolveu 30 alunos de sétima série do ensino fundamental do Colégio Dehon, de Tubarão, SC, para os quais se apresentou o texto Gravidez e aborto de Nunes e Silva (2001) para posteriores discussões em pequenos grupos e em grande grupo. Matiola (2004) observou que as rememorações de suposições do texto de base foram dependentes da intervenção do professor e nunca ocorreram espontaneamente. Houve decisiva influência do docente nas 91 Teoria da relevância e ciências da linguagem... suposições acessadas e nas inferências realizadas pelos alunos. Além disso, as suposições que emergiram das vivências dos alunos e estavam ausentes no texto e nas intervenções do professor foram invariavelmente provocadas pela intervenção do professor. O trabalho demonstrou o papel fundamental do docente como desencadeador do processo inferencial, quando incentiva o aluno a expor, analisar e ouvir a opinião dos colegas. Em 2005, Scheyla Damian Preve dos Santos defendeu a dissertação: Interação jogos instrucionais, docente e estudantes em aulas de matemática sobre números inteiros: análise com base na teoria da relevância. Santos investigou processos interacionais entre docente e estudantes, tendo por base jogos educativos sobre números inteiros em aulas de matemática. A pesquisa trabalhou com quinze alunos da sexta série do ensino fundamental do Colégio Dehon de Tubarão, SC. Os achados demonstraram que os jogos viabilizaram utilização constante do raciocínio lógico. Segundo Santos (2005), os alunos negociaram inferencialmente soluções para os problemas, mesmo em casos de dificuldades específicas com as regras de sinais. As interações, além de privilegiar a aprendizagem da matemática, foram capazes de promover aspectos éticos e, nesse sentido, o comportamento docente não se limitou a aspectos técnicos. O estudo evidenciou, sobretudo, o papel central da interação na aprendizagem humana. 5. Considerações finais Nesse capítulo, procurei demonstrar o que venho desenvolvendo em pesquisas relacionadas à cognição, à interação e ao ensino com base na teoria da relevância. Nesses trabalhos, os conceitos teóricos e os procedimentos analíticos da teoria da relevância têm sido consistentemente corroborados em mais de trinta trabalhos acadêmicos publicados. De ordem mais específica, três desenvolvimentos teórico-analíticos merecem ser destacados nessa trajetória. Em processos de reescrita e avaliação de textos, vale destacar o desenvolvimento de uma metodologia explícita de formalização de processos ostensivo-inferenciais em palimpsestos (RAUEN, 2005). Essa metodologia, que vem sendo sistematicamente testada nas pesquisas do Programa, visa descrever, com base no aparato teórico guiado por relações de relevância, como cada etapa do processo de leitura produção textual deixa marcas nos produtos textuais analisados. 92 Fábio José Rauen De ordem teórica, vale também destacar o desenvolvimento de duas variáveis moderadoras da correlação custo benefício pressuposta no princípio cognitivo de relevância (RAUEN, 2008a, b). No que se refere à variável de exaustão, defendi a tese de que em igualdade de condições, estando mais exaurido o organismo, o dispêndio de energia para compensar o efeito cognitivo deverá ser maior, minimizando a eficiência cognitiva ou relevância de um fenômeno até um ótimo de Pareto, para além do qual o estímulo deixa de ser relevante. No que tange à variável de saturação, argumentei que a reiteração de estímulos é relevante ao indivíduo até um ótimo de Pareto, para além do qual esse estímulo torna-se saturado e falha em sensibilizar o organismo: os efeitos cognitivos não compensam os esforços de fortalecimento mediante reiteração. Por fim, minhas primeiras incursões na interface com os estudos de gêneros textuais sugerem destacar que a teoria da relevância pode ser produtivamente utilizada no domínio da análise de gêneros. Seguindo Blass (1990), defendo a tese de que os textos são pistas para o processo de compreensão. Eles fornecem parte dos dados lógico-conceituais para a fase inferencial da interpretação, que é guiada essencialmente por relações de relevância. Noutras palavras, as estruturas genéricas decorrem de algo mais essencial: as relações de relevância. Investigar essa hipótese é um desafio a ser perseguido nos anos vindouros. Em síntese, se as pesquisas produzidas e em andamento na Unisul têm corroborado sistematicamente a pertinência da teoria para o tratamento da interação comunicacional, por um lado; por outro, seguramente, há muito ainda o que fazer nesse campo de investigação, deixando entrever que a relevância da pesquisa em relevância está muito longe de se esgotar. Referências ALANO, E. M. de S. Reescrita de texto por alunos da disciplina de leitura e produção textual nas modalidades presencial e virtual: estudo comparativo com base na teoria da relevância. 53 f. Projeto de Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem)–Curso de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, UNISUL, 2008. BLASS, R. Relevance relations in discourse: a study with special reference to Sissala. Cambridge: Cambridge U. P., 1990. BOLZAN, R. M. Influência da intervenção escrita do docente em textos dissertativo-argumentativos reescritos: análise com base na teoria da relevância, 2008. 136 f. 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Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem)–Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, UNISUL, 2005. 97 ENSINO DE LÍNGUA: ALFABETIZAÇÃO COM E PARA O LETRAMENTO Mariléia Reis 1. Introdução Neste capítulo, propõe-se uma síntese reflexiva das propostas de pesquisa que se desenvolvem no projeto Letramento, ensino e sociedade, do PPGCL da UNISUL, firmadas no estudo e ensino de língua (incluindo a aprendizagem inicial da leitura), a partir de seus aspectos funcionais, cognitivos e sociais. Aborda-se a necessidade da elaboração de material didático voltado para a alfabetização com e para o letramento, com base em pesquisas e descobertas das neurociências contemporâneas. Trata-se de pesquisas realizadas no contexto do Grupo de análise do discurso: pesquisa e ensino – GADIPE, grupo de estudo articulado por duas linhas de pesquisa: Análise discursiva de processos semânticos e Textualidade e práticas discursivas, sendo esta última a que subsidia teórico e metodologicamente o referido projeto. 23 Descrevem-se, nesse trabalho, as articulações teoricamente relevantes e operacionalmente propícias à formação docente para a alfabetização com e para o letramento, com base nos princípios do sistema alfabético do Português do Brasil – PB, conforme Leonor Scliar-Cabral, e também com base nos pressupostos teórico-metodológicos dos trabalhos de Paulo Freire e Magda Soares. Acredita-se que a formação do alfabetizador deve contemplar: a) a aprendizagem da leitura estendida a todos os anos/séries inicias (e não somente ao primeiro ano); b) a aprendizagem e compreensão dos princípios do sistema alfabético do PB, e c) o conhecimento dos avanços das pesquisas das neurociências no que diz respeito ao mapeamento da ativação dos circuitos cerebrais, no momento da leitura. Tais fatores, quando compreendidos e bem trabalhados pelos alfabetizadores, poderão determinar o sucesso na aprendizagem inicial da leitura e escrita de seus alunos, prevenindo, especificamente, o analfabetismo funcional no Brasil. 23 Sobre histórico, objetivos e propostas do GADIPE, veja-se o capítulo de Maria Marta Furlanetto e Sandro Braga na presente coletânea. Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento 2. Aprendizagem da leitura: o avanço das neurociências Considerando o desenvolvimento da espécie humana, tem-se a escrita como muito recente: cerca de cinco mil anos, apenas. E a aprendizagem da leitura? Mais recente ainda: só no final do século XIX, por exemplo, é estendida a alfabetização a grandes grupos, num só período e em ambiente coletivo de aprendizagem, inclusive à grande massa da população oriunda das classes menos favorecidas. Então, só há bem pouco tempo, passado um pouco mais de cem anos, a aprendizagem da leitura em instituições escolares passou a contemplar as crianças (e adultos interessados) de ambos os sexos, classe social e etnias diversificadas. E, mais recente ainda, é que se passou a ter uma contribuição mais efetiva das neurociências na orientação para a formação do alfabetizador, especificamente em relação à descrição das descobertas sobre a trajetória dos circuitos dos neurônios da leitura, obtidas por meio de neuroimagens, no início do século XXI: na sua maioria, de imagens de ressonância magnética, eletroencefalografia e magnetoencefalografia. Tais avanços muito têm esclarecido no que devem consistir as novas metodologias de alfabetização, nas quais entraria a importância de se trabalhar a consciência fonológica na fase inicial e durante a aprendizagem da leitura. 24 Aborda-se o trabalho da consciência fonológica a partir da decodificação de palavras inseridas em contexto lingüístico maior, ou seja, inseridas em textos da prática social de leitura e escrita do aprendiz, o que justificaria a aprendizagem da alfabetização com e para o letramento. Nos estudos de Dehaene (2007), do centro Neurospin, de Paris, foi descoberto que o cérebro junta as regiões da linguagem e da visão para proporcionar a leitura. Em seus experimentos, a partir de estímulos visuais (textos verbais e não-verbais), foram submetidos dois grupos de pessoas examinadas pela máquina de ressonância magnética: um grupo de alfabetizados, e o outro, de não-alfabetizados, e que levaram Dehaene a não hesitar em informar que é o lado esquerdo do cérebro que ativamos quando lemos, precisamente atrás da orelha, na região occipito-temporal-ventral- 24 Consciência fonológica: concebe-se como a capacidade do indivíduo em articular (desmanchar) a palavra em unidades menores, consciente de que, na troca de um fonema (materializado na fala por um som) haverá distinção de significado, ou seja: consciência fonológica compreende a capacidade de se reconhecerem os fonemas constituintes de cada pedadinho (sílaba) de uma dada palavra. 100 Mariléia Reis esquerda. 25 Seria, então, essa a região que muda no momento da leitura: as pessoas alfabetizadas, ao lerem, ativam esse circuito; as não-alfabetizadas, ao serem expostas a letras, não ativam esse circuito. 26 Se hoje, com o avanço das neurociências, concebe-se a leitura como atividade decorrente da existência de uma rede complexa e crescente de interconexões entre vias visuais que reconhecem as letras, de vias auditivas e motoras da palavra oral, e de vias que processam o sentido, concebe-se também que tais traços da topologia neuronial podem nos instruir (e muito) sobre a forma de como a criança vai aprender (decodificar e codificar) o sistema escrito: uma das grandes contribuições destas descobertas é, por exemplo, a de que, na alfabetização, deve-se partir, então, do nível fonológico para o grafêmico, ou seja, da decodificação (leitura) para a codificação (escrita), uma vez que a recepção da linguagem é anterior à sua produção. Em outras palavras: o processo de leitura se dá mediante as interconexões das vias visuais, auditivas e motoras da palavra oral (recepção). Logo, uma criança que não sabe ler não aprende, portanto, a escrever, e nem a desenvolver sua competência discursiva decorrente das práticas sociais da leitura e escrita. 27 Segundo Scliar-Cabral (2008), a escrita até pode ser trabalhada durante a leitura, desde que àquela não seja atribuída importância maior: mas jamais a aprendizagem da escrita deve ser abordada anteriormente à aprendizagem da leitura. Vale lembrar que, ao ser enfatizada a importância de se buscarem os avanços das neurociências para a melhoria da qualidade de ensino e aprendizagem inicial da leitura, relevam-se também as razões de se ensinar e aprender a língua por meio de textos, decorrentes da própria conceituação de linguagem, de língua e de texto: este último, a realização da linguagem e da língua, responsável pela interação, tal como orientam os Parâmetros Curriculares Nacionais. Então, o processo de aprendizagem inicial da leitura pode decorrer da análise e reconhecimento de unidades menores no texto, como letras/fonemas, sílabas e palavras, desde que estas estejam inseridas num contexto lingüístico maior, para que não se constituam estratos descontextualizados e vazios de significados. 25 Conforme Anexo: Modelo neurológico da leitura x visão moderna das redes corticais da leitura (DEHAENE, 2007). 26 Outra importante descoberta decorrente dos experimentos de Dehaene (2007) trata-se do diagnóstico da dislexia e no tratamento de pessoas que sofreram traumatismo craniano. 27 Atenção: a criança até poderá aprender a copiar, diferentemente do que se entende por escrever. 101 Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento Só para citar um desdobramento negativo de má condução da aprendizagem inicial da leitura, dentre tantos outros: hoje, ainda é muito comum na escola pública brasileira defrontarmo-nos com um número excessivamente grande de crianças que chegam, por exemplo, à fase final dos anos/séries iniciais sem, no entanto, conseguirem efetivamente ler textos, independentemente do gênero textual/discursivo em que estejam inseridos. Daí a questão: como estas crianças de 4º ano, por exemplo, que ainda não sabem ler, poderão desenvolver sua competência discursiva, sua capacidade de compreender e produzir textos, em particular, os de ampla circulação na sociedade, tal como propõem os Parâmetros Curriculares Nacionais? Veja-se abaixo: A importância e o valor dos usos da linguagem são determinados historicamente segundo as demandas sociais de cada momento. Atualmente, exigem-se níveis de leitura e de escola e de escrita diferentes dos que satisfizeram as demandas sociais até há bem pouco tempo – e tudo indica que essa exigência tende a ser crescente. A necessidade de atender a essa demanda obriga à revisão substantiva dos métodos de ensino e à constituição de práticas que possibilitem ao aluno ampliar sua competência discursiva na interlocução. (BRASIL, 1998, p. 23). E, decorrente de todo o processo deformado na aprendizagem inicial da leitura, realçam-se os problemas que se vinculam ao mau desempenho de nossos alunos no que se refere a questões de leitura, compreensão e, conseqüentemente, de produção textual nas nossas escolas, nos mais diversos gêneros textuais/discursivos. Fato é que, mesmo depois de decorridos cerca de dez anos em que os Parâmetros Curriculares Nacionais formalizaram a orientação pedagógica de ensino de língua no contexto escolar a partir da multimodalidade, ou seja, a partir da inserção da pluralidade de gêneros textuais/discursivos da prática social de leitura e escrita de nossos alunos, ainda assim, estes apresentam dificuldade em ler, compreender e produzir textos, o que implica no aumento do índice de analfabetismo funcional no Brasil. 28 Na visão do nosso grupo de estudo, com certeza, estes maus resultados têm relação direta com a má alfabetização dos estudantes, somada a centenas de muitos outros fatores. E 28 Vale lembrar a citação de outros documentos nesta direção, como os da Proposta Curricular de Santa Catarina (1998; 2005), documentos que subsidias teórico e metodologicamente os trabalhos do projeto ‘Letramento, ensino e sociedade’. 102 Mariléia Reis questiona-se: como chegar à construção de inferências de textos verbais escritos, sem, no entanto, dispor de conhecimento preciso dos princípios do sistema de escrita de uma dada língua? No Brasil, por exemplo, sem o conhecimento dos princípios do sistema alfabético do PB? O que se pretende abordar nos nossos estudos não é a sobreposição da importância de uma estratégia de ensino de língua a outra (estratégia), ou de um conteúdo a outro, ao se abordar a aprendizagem da leitura como importante arma contra o analfabetismo funcional, mas de somar um conhecimento lingüístico a outro, visto que, para a leitura e compreensão plena de textos (na modalidade escrita), em seus diferentes gêneros, inicialmente o indivíduo precisa saber ler o referido texto, só depois é que ele vai somar a esta habilidade inicial a interação de uma série de elementos que envolvem a compreensão leitora, como conhecimento de mundo e enciclopédico, ideologia, formação discursiva, dentre outros elementos discursivos e pragmáticos que envolvem esta interação. Se é fato que o indivíduo, quando não for bem alfabetizado, vai ter dificuldade de ler e compreender textos, em seus diferentes gêneros, conseqüentemente, também terá dificuldade de, a partir do texto, fazer inferências. Por isso, a necessidade de trabalhos que se voltem para a formação de professores de ensino de língua materna, incluindo, especificamente, a formação dos alfabetizadores, sempre com o propósito de combater (e prevenir) o analfabetismo funcional. Mas o que se entende por analfabetismo funcional? Concebe-se como analfabeto funcional o indivíduo que, embora alfabetizado, não compreende os textos que lê, dificultando, assim, o seu exercício de cidadania, no que se refere às suas práticas sociais da leitura e da escrita. Nos trabalhos de nosso grupo de estudo, o foco temático recai sobre a premente necessidade de uma base teórica atualizada, que fundamente a ação pedagógica sobre os processos de emergência e aprendizagem inicial da leitura e da escrita que implicam a aprendizagem neuronial (DEHAENE, 2007), com vistas a práticas sociais efetivas e significativas. Comprometido com a prevenção e o combate ao analfabetismo funcional no Brasil, historicamente instalado em nosso sistema educacional, situa-se o projeto interinstitucional, Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional. 103 Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento 3. Projeto Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional Minha participação mais efetiva no projeto ‘Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional’, vinculada ao projeto ‘Letramento, ensino e sociedade, firma-se no debate e na elaboração de livros-guia do professor e guia do aluno, e de material didático para as séries iniciais do ensino fundamental que atendem às metas do referido Projeto: a fundamentação sobre a teoria subjacente à metodologia da alfabetização para o letramento, sobre a finalidade e organização dos exercícios e sobre como aplicá-los. 29, 30 Adaptado à realidade do Brasil e de acordo com os princípios do sistema alfabético do PB (Scliar-Cabral, 2003), elabora-se o material com base nos recentes achados da psicologia cognitiva (DEHAENE, 2007) e na melhor experiência mundial de combate ao analfabetismo funcional (Early Intervention Initiative, Escócia). Num contexto lúdico, busca-se fazer com que a criança domine e automatize o reconhecimento dos traços invariantes que distinguem as letras e os valores dos grafemas, levando-a à identificação da palavra e a uma leitura fluente. Ajudar o aprendiz a analisar a cadeia da fala, vinculando cada unidade a um grafema, eis o grande desafio no início da alfabetização para o letramento, para o qual os professores devem estar muito bem preparados, tendo ao seu dispor material pedagógico de ponta. 31 4. Alfabetização com e para o letramento no projeto ‘Letramento, ensino e sociedade’ A alfabetização com e para o letramento constitui uma das metas do projeto ‘Letramento, ensino e sociedade’, por mim coordenado, no PPG em Ciências da Linguagem da UNISUL: neste, à semelhança do ‘Ler & Ser’, o foco recai sobre a formação do professor, no sentido de melhor habilitá-lo para o exercício de sua prática pedagógica, especificamente no 29 O projeto ‘Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional’ constitui-se um projeto interinstitucional: na UFSC, é coordenado pela professora Emeritus Leonor Scliar-Cabral, fundadora e coordenadora-geral do projeto. Na Unisul, está sob minha coordenação. Maiores informações, sugerimos a visita ao blog: http://lereser.wordpress.com. 30 Nome do livro-guia originado do projeto ‘Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional’, que está sendo lançado pela Unisul: ‘Alfabetização: aprendizagem neuronial para as práticas de leitura e escrita’. 31 Mais informações sobre o projeto ‘Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional’, ver em anexo. 104 Mariléia Reis que se refere ao avanço das descobertas das neurociências sobre o modo como se dá o processamento das habilidades de leitura e escrita no cérebro humano, bem como o conhecimento dos princípios do sistema alfabético do PB, atualizados segundo o novo Acordo Ortográfico, assinado pelo presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, em outubro de 2008. 32 No projeto, desenvolvem-se trabalhos que concebem o letramento como práticas e eventos relacionados ao uso, função e impacto social da escrita na e da sociedade. Nesta perspectiva, a concepção de letramento vincula-se aos eventos e práticas comunicativas mediados pelo texto verbal. Entende-se que, para alfabetizar letrando, atribuem-se múltiplas funções e significados ao termo letramento, manifestos a partir de diferentes agências: agência de letramento escolar, religiosa, política, familiar, etc.. Nesses termos, trabalha-se a alfabetização com e para o letramento, ou seja, prepara-se o professor para que ele alfabetize o estudante, com o propósito de prepará-lo para o exercício pleno de cidadania. No aspecto cognitivo, o ‘Letramento, ensino e sociedade’ aborda a aprendizagem de leitura e escrita com base nos avanços das neurociências, no que se refere à descoberta da região do cérebro que processa a leitura, conforme Dehaene (2007), e com base nos princípios do sistema alfabético do PB, conforme Scliar-Cabral (2003a; b). Os artigos e dissertações oriundos do referido projeto têm-se como objetivos: a) operacionalizar ações consistentes e continuadas para reduzir o analfabetismo funcional, com cursos de formação inicial e continuada a docentes sobre a aprendizagem da leitura e da escrita voltada para as práticas sociais; b) elaborar material didático de apoio tanto para professores do ensino fundamental quanto para alunos, visando à operacionalização dos pressupostos teórico-metodológicos da Proposta Curricular de Santa Catarina (1998; 2005) e dos princípios do sistema alfabético do PB; c) aprofundar reflexões interdisciplinares sobre a formação do professor de língua (incluindo o professor alfabetizador) na sociedade multicultural, visando à inclusão do alfabetizando nas práticas multimodais de fala e escrita, habilitando-o para o uso da língua nos seus múltiplos registros e variedades sociolingüísticas. Tais objetivos constituem uma proposta de aprendizagem da leitura com e para o letramento, na medida em que criam condições para que o aluno, desde os anos iniciais, possa firmar, de forma progressiva e integrada, suas potencialidades de interação com o mundo da escrita e da 32 Sítio: www.unisul.br/linguagem. 105 Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento leitura: uma vez que se tenha material pedagógico bem fundamentado teórico e metodologicamente para a aprendizagem da leitura como uma das mais importantes práticas sociais, e elaborado de maneira sistematizada, cuja complexidade cognitiva do processo da alfabetização seja disposta numa escalaridade ascendente, firma-se a tentativa de se romper com a fragmentação encontrada na maioria do material pedagógico, que atualmente circula no mercado, destinado às séries iniciais de escolarização. Aborda-se, então, o estudo das interações orais e escritas como componentes de práticas socialmente situadas: uma vez que os textos são entendidos como realizações da linguagem em práticas discursivas e sociais, a alfabetização com e para o letramento, no projeto ‘Letramento, ensino e sociedade’, também se volta às pesquisas que procuram dar conta dos âmbitos social (gênero textual, discurso, identidades, relações sociais) e cognitivo (produção, recepção e representação) das interações. 33 5. Considerações finais Através das descobertas das pesquisas das neurociências (na sua maioria, decorrentes de imagens de ressonância magnética, eletroencefalografia e magnetoencefalografia), Dehaene (2007) levou-nos a compreender melhor o processamento da leitura no cérebro e o modo como aprendemos a ler: como o sistema de escrita do português é alfabético, estes estudos evidenciam que as novas metodologias de alfabetização devem contemplar estratégias de trabalho que relevem a importância da consciência fonológica no processo de aprendizagem de leitura. E, uma vez que se concebe o fonema como um feixe de traços cuja função é a de distinguir significado, ao relevarmos a importância da consciência fonológica na alfabetização, ainda que tal estratégia muito se aproxime ao que tradicionalmente se conhece como método estritamente fônico, não se poderá jamais confundi-la à dessemanticização por que passaram tais métodos mecânicos de repetição de sons e sílabas sem sentido, por exemplo, em décadas passadas. Como vimos na introdução desse trabalho, a topologia neuronial do processamento da leitura é traçada por uma rede complexa e crescente de 33 As dissertações vinculadas ao projeto ‘Letramento, ensino e sociedade’ estão arroladas nos anexos. 106 Mariléia Reis interconexões entre vias visuais (que reconhecem as letras), vias auditivas e motoras da palavra oral e vias que processam o sentido (e que podem nos instruir sobre a forma como a criança vai aprender a ler o sistema escrito): tal descoberta representa, de fato, um grande avanço para os professores alfabetizadores e para o ensino-aprendizagem da leitura em todos os níveis de escolarização. Entretanto, ela poderá representar um grande avanço, mas, diríamos, pouco produtivo, se não se converter em material didáticopedagógico que atenda às necessidades e ansiedades com que nos deparamos na nossa prática docente. Por isso as pesquisas dos projetos ‘Ler & Ser: combatendo o analfabetismo funcional’ e ‘Letramento, ensino e sociedade’ contemplam efetivamente a publicação de instrumentos de trabalho para o professor e para o aluno, e estes instrumentos firmam-se, de fato, como uma de suas principais metas e desafio. A preocupação na elaboração de material didático dá-se pelo fato de se ter conhecimento da precariedade de trabalhos disponibilizados na área: por isso ele dirige-se a todos quantos estejam empenhados no processo de alfabetizar com e para o letramento. Em primeiro lugar, porque, apesar dos esforços dos educadores, o índice de analfabetismo funcional no Brasil ainda é muito alto, e pretendemos combatê-lo, porém, antes, preveni-lo, desde a fase inicial da aprendizagem da leitura. E sabe-se que os professores estão conscientes disso e mais ansiosos do que ninguém para que seus alunos aprendam a ler os textos escritos que circulam à sua volta, com compreensão, desde os não-escolares, como os jornais, anúncios, avisos, instruções ou informações no computador, por exemplo, até os tradicionalmente encontrados no contexto escolar, como os textos do livro didático, textos ficcionais (romance, poemas), dentre tantos outros; e também para que os estudantes aprendam a redigir de modo eficiente, no sentido de fazerem-se entender quando precisarem fazer uso da palavra escrita, seja no simples envio de uma correspondência, ou no exame escrito para conseguirem um emprego, ou para entrarem, por exemplo, na universidade. Tais materiais pedagógicos têm por alvo fazer com que os professores: a) obtenham melhores resultados com seus alunos e sintam-se mais confiantes nas suas práticas, despertando nestes o gosto e a apreciação pela leitura e escrita; b) entendam melhor as dificuldades de seus alunos e saibam como contorná-las; c) tenham à sua disposição um material de qualidade, sabendo para que serve, por exemplo, cada exercício nele concebido, e como deve ser utilizado em suas aulas. 107 Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento 6. Anexos Anexo 1: Síntese da proposta do projeto ‘Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional’ “O projeto Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional busca responder a um grande desafio no mundo contemporâneo: como fazer com que nossas crianças e jovens se insiram em um novo mundo do trabalho, que exige proatividade e competências para uma educação continuada. O que se entende como analfabetismo funcional? Significa que o sujeito, embora seja capaz de identificar as letras, não consegue compreender aquilo que leu. Não consegue, a partir de um texto básico, agir proativamente, elaborar novos conceitos ou associar a informação recém-obtida com aquela derivada de outras fontes. Além disso, como o pensamento lógico-matemático também depende do entendimento de conceitos que são textuais, o desempenho em matemática, ciências e outras disciplinas fica comprometido. Isto representa, em um mundo com rápidas e constantes mudanças tecnológicas, que o analfabeto funcional não consegue manter uma educação continuada, imprescindível no mundo do trabalho. Além disso, ele também vê comprometida sua atuação como cidadão de direito: é um estrangeiro em seu próprio país. Segundo Scliar-Cabral (2007), a situação no Brasil é agravante: na faixa etária dos brasileiros de 15 a 64 anos temos: 7% de analfabetos absolutos; no nível rudimentar, temos 25%; no nível básico, temos 40%. Apenas 28% conseguem o nível pleno de letramento (INAF, 2007). 32% dos brasileiros não têm as condições mínimas para o exercício da cidadania, nem para refazer a leitura de mundo, a partir da leitura da palavra (FREIRE, 2002, p. 54). A situação não é diferente nos estados do Sul, que possuem um desenvolvimento econômico maior. Santa Catarina e Paraná, os dois estados contemplados com este projeto, apresentam índices de analfabetismo funcional na sua população com mais de 15 anos que ultrapassa os 15% e, muitas vezes, atinge os patamares de 30%. Como todos os problemas de difícil solução, também aqui o cenário é complexo, mas é possível, e muito, alcançar bons resultados no combate ao analfabetismo. O projeto Ler & Ser pretende dar respostas a esta questão. O objetivo é realizar uma ação consistente e continuada para reduzir o analfabetismo funcional nos municípios participantes, com vistas à educação para qualificação profissional e para a garantia dos direitos da 108 Mariléia Reis criança e do adolescente: na base de ambos encontra-se a competência para a leitura. O fundamento metodológico do projeto parte de duas experiências bem sucedidas: a dos Círculos de Cultura em Angicos, de Paulo Freire e a do programa Iniciativa de Intervenção Precoce (Early Intervention Initiative) de Dunbartonshire, na Escócia. Este último programa conseguiu reduzir o analfabetismo funcional de 28% para 6%. O projeto divide-se em quatro fases bem delimitadas: a) b) c) d) elaboração dos materiais de apoio; capacitação dos multiplicadores; capacitação dos professores; atendimento direto. Cada uma destas fases segue um cronograma próprio, que inclui seleção dos participantes, acompanhamento dos resultados, adequação de processos, etc. Atualmente, já estamos trabalhando na elaboração dos materiais de apoio, captando e recursos e fechando parcerias. Além do benefício direto esperado – redução do analfabetismo funcional – o projeto agrega outros: estímulo à participação das famílias e comunidades; articulação com o poder público para implementação de estratégias eficientes em alfabetização e inclusão do respeito à diversidade sociolingüística na agenda da educação. O objetivo do Projeto Ler & Ser: prevenindo o analfabetismo funcional, é um passo para garantir o direito que toda criança, adolescente e jovem adulto têm ao letramento pleno, com isso ampliando o acesso à cidadania e à empregabilidade. Serão formados 500 multiplicadores e 2.586 professores, que atenderão uma população de 131.458 crianças e jovens. Um projeto que poderá ser replicado em outros municípios de todo o Brasil. Além disso, o uso das mídias sociais permitirá a troca de experiências, a melhoria continua do projeto e ampliação dos resultados”. (SCLIAR-CABRAL, 2007) 109 Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento Anexo 2: Figuras Figura 1: Modelo neurológico da leitura x visão moderna das redes corticais da leitura, conforme Dehaene (2007) Figura 2: Hemisfério esquerdo – a palavra escrita, conforme Dehaene (2007) 110 Mariléia Reis Anexo 3 - Dissertações do projeto ‘Letramento, ensino e sociedade’ Até o momento, foram defendidas as seguintes dissertações: 34 SILVA, Raquel da. A conversão do fonema /S/ em contextos competitivos: um estudo exploratório com professores do ensino fundamental. GONÇALVES, Suzete da Rosa. A Língua Portuguesa no Ensino Fundamental a partir da avaliação discente: perspectiva de letramento num estudo de caso. CARDOSO, Maria Angélica. Leitura de diferentes linguagens em suporte de texto não-escolar: o gênero embalagem de produtos alimentícios na atividade pedagógica. DIAS, Almerinda Tereza Bianca Bez Batti. Apagamento do fonema /r/ pósvocálico em textos orais de informantes em fase final de aquisição da linguagem estudo de caso. POSSAMAI, Darlei. Filosofia no Ensino Médio: o gênero em História em Quadrinhos numa perspectiva de letramento. PEREIRA, Gerusa. Monotongação dos ditongos orais [ay], [ey] e [ow] no português falado em Tubarão (SC): estudo de casos. TRENTO, Lisandra. A posteriorização [õw] na alternância fônica do ditongo nasal [ãw] na fala de informantes bilíngües de terceira idade do município de Treze de Maio (SC) evocação da tradição ítalo-brasileira. LUZ, Silvana Edinezia Campos da. Gestão democrática escolar e capacitação continuada de gestores:(res)significação da linguagem no contexto escolar. Referências BRASIL, Secretaria de educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental/Brasília: MEC/SEF, 1998. DEHAENE, S. Les neurones de la lecture. Paris: Odile Jacob, 2007. PELANDRÉ, N. L. Ensinar e aprender com Paulo Freire. São Paulo: Cortez, 2002. SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação, Ciência e Tecnologia. Proposta Curricular de Santa Catarina: estudos temáticos. Florianópolis: IOESC, 2005. 34 Todas as dissertações do PPGCL estão disponibilizadas (na íntegra) no site do PPGCL: www.unisul.br/linguagem. As demais dissertações, por mim orientadas, mas que fazem parte do então projeto PROCOTEXTOS, também estão disponibilizadas no referido site. 111 Ensino de língua: alfabetização com e para o letramento _____. Secretaria de Estado da Educação e do Desporto. Proposta Curricular de Santa Catarina: educação infantil, ensino fundamental e médio (disciplinas curriculares). Florianópolis: COGEN, 1998. SCLIAR-CABRAL, L. Guia prático da alfabetização. São Paulo: Contexto, 2003. _____. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2003. _____. Projeto Ler&Ser, combatendo o analfabetismo funcional. Dezembro de 2007. SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação. Jan/Fev/Mar/Abr 2004, No. 5. 112 PARTE II ANÁLISE DISCURSIVA DE PROCESSOS SEMÂNTICOS LINGUAGENS, CIÊNCIAS E TECNOLOGIAS NA FORMULAÇÃO DO CONHECIMENTO Marci Fileti Martins Rosângela Morello Solange Leda Gallo 1. Introdução A Análise do Discurso tem diferentes abordagens em diferentes países e línguas. Como exemplo disso, poderíamos citar a Análise do Discurso proposta por Zelig Harris, nos EUA, nos anos 50, ou a Análise do Discurso proposta por Michel Foucault, na França, nos anos 60-70, duas concepções originais, com motivações bastante diferentes. No primeiro caso, trata-se de uma proposta situada no campo lingüístico e que se propõe a alargar o alcance semântico, até então reduzido à frase, para um contexto enunciativo por meio de procedimentos distribucionais. Como diz Brandão (1994, p. 15), embora a obra de Harris possa ser considerada o marco inicial da análise do discurso, ela se coloca ainda como simples extensão da lingüística imanente na medida em que transfere e aplica procedimentos de análise de unidades da língua aos enunciados e situa-se fora de qualquer reflexão sobre a significação e as considerações sócio-históricas de produção que vão distinguir e marcar posteriormente a análise do discurso. Em relação à Análise do Discurso proposta por Foucault, as condições de formulação são outras, muito diferentes. Já em Arqueologia do Saber (obra de 1969), ele se expressa a respeito de seu trabalho de análise da seguinte maneira (1997, p. 226-227): Se falei de um discurso, não foi para mostrar que os mecanismos ou os processos da língua aí se mantinham integralmente; mas, antes, para fazer aparecer, na densidade das performances verbais, a diversidade dos níveis possíveis de análise; para mostrar que, ao lado dos métodos de estruturação lingüística (ou dos de interpretação), podia-se Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento estabelecer uma descrição específica dos enunciados, de sua formação e das regularidades próprias do discurso. Se suspendi as referências ao sujeito falante, não foi para descobrir leis de construção ou formas que seriam aplicadas da mesma maneira por todos os sujeitos falantes, nem para fazer falar o grande discurso universal que seria comum a todos os homens de uma época. Tratava-se, pelo contrário, de mostrar em que consistiam as diferenças, como era possível que homens, no interior de uma mesma prática discursiva, falassem de objetos diferentes, tivessem opiniões opostas, fizessem escolhas contraditórias; tratava-se também de mostrar em que as diferentes práticas discursivas se distinguiam umas das outras; em suma, não quis excluir o problema do sujeito; quis definir as posições e as funções que o sujeito podia ocupar na diversidade dos discursos. Assim, quando Michel Pêcheux propõe a Análise do Discurso, enquanto um método analítico e uma teoria, alguns parâmetros já existiam. No entanto, Pêcheux procurou estabelecer uma interrelação de áreas ainda mais ousada, colocando em conexão a lingüística, a psicanálise e o marxismo. Para Henry (1990, p. 34), no momento em que escreve A Análise Automática do Discurso (1969)... Pêcheux segue mais Althusser que Lacan, Derrida ou Foucault... Os sujeitos de Lacan, Foucault e Derrida são ligados à linguagem ou ao signo. A referência à ideologia não tem as mesmas implicações que a referência à linguagem. Althusser (por sua vez) não estava particularmente interessado na linguagem, e é aí que chegamos ao âmago daquilo que tem a ver com Pêcheux: as relações entre a linguagem e a ideologia. Para fazer isso, ele só tinha a sua disposição a indicação formulada por Althusser sobre o paralelo entre a evidência da transparência da linguagem e o “efeito ideológico elementar”, a evidência segundo a qual somos sujeitos. Althusser estabeleceu o paralelo sem estabelecer uma ligação. E foi para expressar essa ligação que Pêcheux introduziu aquilo que ele chama discurso, tentando desenvolver uma teoria do discurso e um dispositivo operacional de análise do discurso. O discurso de Pêcheux (portanto) não é o de Foucault. Pode-se dizer que a análise discursiva de Pêcheux teve sua fundamentação mais forte em 1971, na obra Semântica e discurso (Les vérités de la palice, no original francês), conforme considera Maldidier (2003, p. 32): 116 Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo O materialismo histórico é a posição explícita de onde se realiza a intervenção epistemológica contra uma dupla ameaça, a do empirismo, “a problemática subjetivista centrada no indivíduo” e a do formalismo que confunde “a língua como objeto com o campo da linguagem”. É a partir do materialismo histórico que se faz a indicação de novos objetos, no caso o discurso, explicitamente posto em relação à ideologia. Mas Michel Pêcheux decididamente nos surpreenderá sempre. Em algumas linhas apertadas em que cada palavra é um conceito, ele lança, como um navio incendiário, a primeira formulação da teoria do discurso. As formações ideológicas [...] comportam necessariamente como um de seus componentes uma ou mais formações discursivas interrelacionadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc) a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada. Tudo, ou quase tudo já estava em seu lugar. Curiosamente, Althusser não foi nomeado. Pêcheux publica uma crítica a sua própria obra referida acima. Nessa crítica ele aproxima-se ainda mais da psicanálise, sem, entretanto, abrir mão do caráter ideológico da produção de sentido (1988, p. 300): Continua, pois, bastante verdadeiro o fato de que o “sentido” é produzido no ‘non-sense’ pelo deslizamento sem origem do significante, de onde a instauração do primado da metáfora sobre o sentido, mas é indispensável acrescentar imediatamente que esse deslizamento não desaparece sem deixar traços no sujeito ego da “forma-sujeito” ideológica, identificada com a evidência de um sentido. Apreender até o seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual, supõe reconhecer que não há ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas, “uma palavra por outra” é a definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça no lapso. Assim proposta, a Análise de Discurso na perspectiva de Pêcheux tem natureza multidisciplinar. A unidade semântica é a formação ideológica, que resulta em uma formação discursiva que não é linear nem tem limites precisos, apenas dominância. Nosso interesse está no fato de que, por essa perspectiva discursiva, se pode trabalhar com o sentido produzido em qualquer forma, seja ela verbal, imagética, sonora, ou muitas formas conjugadas. 117 Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento No Brasil, os estudos de Análise de Discurso se desenvolvem em muitas direções e são realizados hoje por muitos grupos que estão situados em diferentes regiões e universidades do país, embora tenham sido iniciados na Unicamp, Campinas, SP, nos anos 80, por Eni Orlandi, autora de muitas obras da área. Em um de seus livros, intitulado Análise do discurso – princípios e procedimentos, Orlandi se refere à Análise de Discurso da seguinte forma (1999, p. 15): A análise do discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando. Na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história. Dentro desse contexto teórico e metodológico, inscrevemo-nos na linha de pesquisa Análise discursiva de processos semânticos do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Unisul. Essa linha de pesquisa reúne trabalhos envolvendo, por um lado, a análise de materiais produzidos pela mídia e, por outro, uma investigação sobre o papel da ciência na sociedade contemporânea. Nas pesquisas sobre a mídia, entendemos como materiais midiáticos tanto textos verbais como nãoverbais, e o objetivo do projeto é o de investigar a materialidade histórica e/ou os processos semânticos desses textos: cinema, imprensa, TV, rádio, WEB, já que a mídia enquanto discurso produz deslocamentos e efeitos de sentido próprios, ou seja, sentidos relacionados a um maior ou menor grau de espetacularização. Nessas pesquisas sobre a mídia, destacamos que nos interessa discutir questões envolvendo a linguagem do audiovisual na contemporaneidade. Teixeira (2008, p. 283), tratando do documentário, afirma que, nas ultimas décadas, “o campo do documentário passou por mudanças estrondosas, introduzidas pela cultura cibernético-informacional [...]. E, em meio a esse turbilhão de transformações, [...] abriram-se as comportas do documentário para processos de hibridização que mobilizam vastos materiais”. Além disso, observam-se nesses audiovisuais, características de uma linguagem de documentário diferenciada, se 118 Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo levarmos em consideração o modo como se dá o tratamento da imagem: a câmera se apresenta com mais dinamicidade, ou seja, não está estática, estabilizada e o áudio já não é limpo, pois capta-se o “ruído” do ambiente que passa a integrar a narrativa. Os planos, enquadramentos, closes também fogem do padrão clássico. Segundo Nunes e Martins (2007, p. 9), esses materiais parecem se aproximar de alguns audiovisuais que vemos surgir na Internet, materiais estes que escapam também da linguagem audiovisual clássica. No caso dos vídeos da Internet, isso se deve, provavelmente, ao acesso cada vez mais fácil à tecnologia de gravação de vídeo possibilitando que um grande número de pessoas leigas nas técnicas de produção de audiovisuais possa produzir materiais e divulgá-los por meio da Internet. O resultado, em muitos casos, são vídeos em que a câmera não está estática, que captam os ruídos do ambiente e apresentam uma montagem que foge aos padrões convencionais. A investigação sobre ciência, por sua vez, parte dos trabalhos do grupo de pesquisa registrado no CNPq, sob o título Produção e divulgação de conhecimento científico. Os objetivos do grupo envolvem uma discussão sobre a produção do conhecimento científico na contemporaneidade, ressaltando os modos como esse conhecimento circula e é divulgado. De tal modo, temos interesse em analisar corpora de textos que se inscrevem no discurso da ciência e da divulgação/circulação científica. Nossa abordagem tem incidido, atualmente, em quatro eixos de reflexão: questões de autoria; ciência: processos e produtos; discurso científico na contemporaneidade: heterogeneidade e descontinuidade; e línguas, ciências e tecnologias. 2. Questões de autoria Um dos focos principais de nosso trabalho é refletir sobre principalmente nas questões de autoria. Ou seja, nos interessa, por exemplo, pesquisar o modo como o sujeito do discurso da divulgação se relaciona com o seu interlocutor cientista e ao mesmo tempo com seu interlocutor, o leitor leigo e, entre os dois, como ele formula seu texto, constituindo nessa (incômoda) posição sua autoria. Também nos interessa saber de que lugar ideológico fala esse autor, por exemplo, se de uma redação de jornal, se de uma emissora de rádio ou TV, se de uma 119 Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento universidade, ou de uma agência de fomento, ou de um centro de pesquisa, enfim. De acordo com a perspectiva discursiva, cada uma dessas formas de inscrição discursiva resulta em um tipo específico de autoria e um modo específico de produção de sentido. Nossa reflexão tem se pautado não somente por produções coletadas, mas principalmente pelas nossas próprias produções, ou seja, as produções do nosso laboratório de produção e divulgação de conhecimento científico, mais especificamente por meio de nossa revista on-line Ciência em curso. Para essa revista, produzimos materiais multimodais (foto, vídeo, texto, áudio, software), em interação com os pesquisadores do núcleo ou grupo que está sendo divulgado. Nessa interface, Ciência em curso procura representar, pela sua apresentação em espiral, o movimento contínuo que caracteriza a produção científica. Pelo jogo das formas de linguagem (verbal e não-verbal), procura produzir um espaço para discutir a ciência, sua forma de se constituir e se mostrar para a sociedade. É, portanto, uma proposta que investe na relação do sujeito com a linguagem (e o sentido) para tratar da produção de conhecimento, mas o faz pautada na premissa de que tal relação é determinada por condições históricas, pelo que já está dito, visto, significado. Como já foi mencionado, a análise do discurso é uma disciplina de interpretação de textos, mas não se trata de um tipo de interpretação que parte da questão o que o texto significa? Mas sim, como o texto significa? Ou melhor, não se trata do que o autor do texto quis dizer, mas de outra questão: quais os saberes necessários para que se compreenda o texto? Esses saberes são de âmbito social, histórico e ideológico. O desenvolvimento dessa proposta se organiza por meio de noções que procuram dar consistência a uma abordagem dos processos discursivos que estão na base da produção do sentido e do sujeito (PÊCHEUX, 1990), portanto, da produção de conhecimento. De fato, a proposta metodológica da análise do discurso nos leva a identificar os processos de formulação como discursos que se constituem em relação a condições de produção específicas e históricas. Dessas condições faz parte todo o aparato institucional e social que regula a produção do conhecimento, assim como as posições que os investem, com as quais o sujeito se identifica e a partir das quais enuncia – sempre marcado por relações de contradição, por conta das relações de força e divisões em jogo. Queremos com isso dizer que o sujeito do discurso não é somente um sujeito que enuncia, mas um sujeito que está determinado pelo contexto social, pela história e pela ideologia no momento dessa enunciação. 120 Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo Assim como a dimensão social, na sua amplitude máxima não é acessível ao sujeito da enunciação, tampouco a dimensão histórica o é. Os sentidos dos enunciados estão se constituindo desde muito antes da existência de cada sujeito falante em particular e vão para muito além de sua enunciação. Esse contínuo do sentido, na sua totalidade, é inacessível ao sujeito. Por essa razão, o sujeito não tem controle sobre os efeitos de sentido daquilo que ele enuncia. O sujeito do Discurso, portanto, diferente do sujeito da enunciação, é um sujeito que tem uma dimensão inconsciente, ou seja, uma esfera do impensado, do esquecido, do não presente na consciência. São sentidos não enunciados, não ditos, que acompanham todo dizer e que significam à revelia do desejo de controle do sujeito, porque a posição que cada um de nós ocupa em um discurso produz sentidos que estão sempre-já-lá e que nós atualizamos. Na Análise do Discurso esse é considerado o espaço do interdiscurso. Todo espaço discursivo, portanto, tem uma forma de sujeito já cunhada historicamente, pronta para receber a inscrição dos indivíduos que aí se identificam (mais ou menos) e assumem uma posição em relação a essa forma-sujeito. Essa inscrição não dá sem confrontos, pois esse espaço discursivo é sempre heterogêneo e múltiplo. No caso da Revista Laboratório Ciência em Curso, por exemplo, estão em confronto a posição-sujeito cientista, a posição-sujeito jornalista, a posição-sujeito técnico (informática), sem falar naquelas que são relativas ao discurso acadêmico (professor, aluno etc.). Essas posições são historicamente constituídas e são lugares de identificação e de identidade. Na consideração dessas posições, importa enfatizar que elas se realizam como projeções imaginárias que constituem a formulação, de modo que esta se materializa como um espaço de significação clivado pela relação com o já-dito e o dizer, pela injunção entre fazer vínculo com o formulado e dizer-se em um novo sentido. Acolhemos, desse modo, a heterogeneidade das formulações, propondo séries de instalações discursivas no âmbito das atividades que promovemos. De acordo com Orlandi (2001), a formulação, juntamente com a constituição e a circulação, apresenta-se como um dos momentos relevantes dos processos de produção dos discursos. Para a autora (1999, p. 9), é na formulação que [...] a linguagem ganha vida, que a memória se atualiza, que os sentidos se decidem, que o sujeito se mostra (e se 121 Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento esconde). Momento de sua definição: corpo e emoções da/na linguagem. Sulcos no solo do dizer. Trilhas. Materialização da voz em sentidos, do gesto em escrita, em traço, em signo. Do olhar, do trejeito, da tomada do corpo pela significação. E o inverso: os sentidos tomando corpo. 3. A ciência: processos e produtos A divulgação feita pela Revista Laboratório Ciência em Curso pretende, como dissemos, ser diferenciada, já que todo o trabalho de pesquisa divulgado é apresentado de maneira contextualizada, ou seja, são importantes para a divulgação as informações sobre o contato dos grupos com outros grupos que desenvolvem pesquisas similares, a situação dos grupos de pesquisa no cenário científico nacional e internacional que lhes é pertinente, as condições materiais de implantação e de manutenção dos grupos de pesquisa, e as formas de incentivo das instituições de ensino superior e dos órgãos de fomento. Além disso, a divulgação feita pela Revista, que se utiliza de diferentes mídias: áudio, vídeo, texto (hipertexto), e parte-se de um tema de pesquisa que se apresenta inicialmente como argumento para um debate maior que se desenvolverá no decorrer do tempo. O internauta, por sua vez, vai interagir, podendo escolher os caminhos para entendimento deste tema, sem compromisso com a linearidade (www.cienciaemcurso.unisul.br). Contudo, mesmo tendo como objetivo “captar a ciência no seu movimento/percurso, na busca de um aprofundamento constante, e não como produto acabado e inequívoco”, o que temos observado neste exercício efetivo de levar a ciência para o grande público, ou melhor, para certo tipo de leitor que não é um cientista, é a complexidade do processo: o texto de divulgação não pode ser hermético, mostrando-se como outra versão de um artigo científico, nem tampouco pode transformar o tema ciência em notícia, como faz o jornalismo. De fato, o que se vê, hoje, nos textos de divulgação de ciência, sobretudo, os de jornalismo científico, é uma tendência a fazer prevalecer conhecimentos da mídia sobre ciência, isto é, o que é determinante aí é uma memória da ciência tratada como notícia: um acontecimento científico é atualizado, transformando o “fato” pela objetividade jornalística. Objetividade esta, intensamente desdobrada, através da manipulação da língua que, enquanto código “sem falhas”, é o instrumento capaz de referencializar a realidade dos fatos, o que constrói, segundo Mariane 122 Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo (1998, p. 72), “o mito da informação jornalística com base noutro mito: o da comunicação lingüística”. Este imaginário permite ao sujeito que enuncia (o jornalista) ser “neutro e imparcial”, capaz de relatar os acontecimentos, a realidade, para um leitor (o grande público) que, por ser considerado uma tabula rasa, precisa receber a informação de forma “clara e objetiva”. De tal modo, produz-se uma memória da ciência, que se constitui pela mídia e não pela própria ciência. O resultado disso é um simulacro de ciência exposto à população leiga, simulacro este que surge como efeito da não-explicitação das condições de produção da pesquisa científica. Para o público leigo, a ciência se produz de forma descontextualizada e descontínua. Esse efeito se produz, segundo Gallo (2004, p. 3), justamente porque a continuidade, quando existe, é resultante de outros textos sobre o mesmo tema publicados anteriormente pela própria mídia, e não pelo conhecimento da história da ciência e da pesquisa em questão: Estamos considerando simulacro o que resulta de um processo de transferência de um sentido construído em um determinado discurso (que lhe sustenta historicamente, socialmente e ideologicamente) para outro discurso que tem outra sustentação histórica, social e ideológica e que, portanto, vai interpretar esse “sentido transferido” de uma maneira própria, certamente diferente. Dessa mesma maneira, nos parece funcionar o que se diz “ciência” no Discurso de Divulgação, ou seja, trata-se de uma forma de ciência, aquela que a memória do discurso que a divulga, produz. Nesse lugar discursivo, a ciência nos parece ser simulacro. Por outro lado, sabe-se que o discurso científico também tem uma memória que determina seu lugar na sociedade como outro “discurso de verdade”, ou seja, sob o prisma de seu objetivo e de seu método, que pode ser considerado pela via da razão (ciência cartesiana) ou pela via da demonstração (ciência positivista), a ciência está sempre pautada em buscar a “verdade e, àqueles que a manipulam ou mesmo dela se beneficiam, assiste o dever de interpretá-la como tal” (LAVILLE; DIONNE, 1999). Da perspectiva teórica na qual nos situamos, a Análise do Discurso, que leva em consideração as determinações históricas e ideológicas para a constituição da linguagem e, por conseguinte, dos sentidos, pensar o discurso científico ou o discurso jornalístico, implica em fazer “uma crítica à afirmação do obvio” (PÊCHEUX, 1988), implica desestabilizar esta 123 Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento memória que garantiu às práticas discursivas tanto da imprensa quanto da ciência, tornarem-se tão “naturalizadas” que os seus sentidos são considerados “evidentes, legítimos e necessários”. Para isto, é preciso que se revelem as suas reais condições de produção, o papel do processo histórico-ideológico de sua constituição. Portanto, o tipo de divulgação a que se propõe a Revista Ciência em Curso incide nessa forma de constituição dos textos de divulgação, de modo a torná-los mais conseqüentes do ponto de vista histórico, político e social. Podemos adiantar que, como ponto de partida da investigação, seguimos uma dupla forma pela qual os modos de formulação se apresentam historicamente: em uma, a forma ancorada nos espaços de representação estabelecidos, como aqueles dos projetos, diretórios de pesquisas, periódicos, instituições. Um mapeamento desses espaços constitui, portanto, uma atividade importante para compreendermos os modos de formulação. Na outra forma, temos as formulações em processo, que se perfazem como tais num continuum, passíveis apenas de pontuações provisórias, de instantes de estabilização. Localizar ou desenvolver instrumentos de formulação que acolham esse continuum constitui um desafio específico da pesquisa. Essa dupla forma de existência dos modos de formulação afeta os sentidos de produção, e nos coloca sob uma tensão específica entre o que se dá como produto e sua contraface, o processo. Assim, a concepção que trazemos de produção contempla, por princípio, essa marca de transitividade entre processo-produto-processo, fato que nos obriga a assumir, desde já, uma posição reflexiva e crítica sobre os sentidos do conhecimento que tomamos na rede de memória. E que desenvolveremos ao longo da pesquisa. Em relação a isso, importa comentar que a divulgação científica produzida em uma universidade se difere daquela produzida por um veículo de comunicação de massa. Esse fato traz conseqüências relativas ao discurso aí transverso, ao seja, ao pré-construído (memória) do discurso acadêmico. Esses todos são aspectos com os quais estamos todos envolvidos, hoje, enquanto pesquisadores, como os espaços cibernéticos e suas conseqüências, as redes cada vez mais complexas, as novas formas de autoria, as formas instantâneas de produção e absorção de conhecimento. Os resultados de nossas pesquisas são ressignificados por esses atravessamentos que não são somente tecnológicos, mas principalmente discursivos e que deslocam permanentemente nossas posições. 124 Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo 4. O discurso científico na contemporaneidade: heterogeneidade e descontinuidade Esse eixo de pesquisa pretende levantar questões envolvendo a produção do conhecimento científico, discutindo, especificamente, possíveis paradoxos e rupturas que parecem estar constituindo o discurso científico na atualidade. A sociedade contemporânea, denominada por alguns de pós-moderna, caracteriza-se por uma conjuntura instável, em que estão em jogo transformações de ordem social, política e econômica. Bauman (2001), tratando dessa questão, denomina de “modernidade líquida” esse movimento de transformação e rupturas da atual sociedade com certos valores tradicionais e estabilizados (“modernidade sólida”), que se constituíram a partir do advento de valores clássicos. Para o autor, na “modernidade líquida” tudo é volátil e as relações sociais não são mais tão tangíveis, pois o trabalho, a política, a vida em conjunto, a familiar, de casais, de grupos de amigos, perdem consistência e estabilidade. Dessa perspectiva, Bauman (idem) acredita que a sociedade contemporânea se constitui por uma conjuntura heterogênea, em que se inter-relacionam esses dois momentos histórico-sociais conflitantes. Já Lyotard (2002, p.3), discutindo o que ele denomina “condição pós-moderna”, destaca que as transformações de ordem cultural pelas quais passa a sociedade contemporânea envolvem o fim das metanarrativas. Conseqüentemente, segundo ele, os grandes esquemas explicativos teriam caído em descrédito e não haveria mais “garantias”, posto que mesmo a “ciência” já não poderia ser considerada como a fonte da verdade. A partir do entendimento dessas condições de produção, estamos interessados em compreender o lugar da ciência na atualidade, que parece, em certa medida, refletir essa conjuntura, ao se distanciar tanto de um racionalismo/positivismo exclusivista, que ortodoxamente constituíram o discurso da ciência, quanto do lugar de poder ocupado pela ciência na nossa sociedade. Essa reflexão parte da análise de materiais, como artigos científicos, monografias entre outros, mas também se dá de forma indireta, pois a pesquisa também se desenvolve através da análise do discurso científico ressignificado pelo discurso divulgação de ciência. A Revista Laboratório Ciência em Curso é um dos espaços de divulgação utilizados para analisarmos as transformações e rupturas que podem estar afetando a ciência na contemporaneidade. Partimos da proposta de Martins (2007) que, na sua análise de alguns materiais de divulgação científica, destaca certos enunciados, como “incerteza”, “incompletude”, “imperfeição”, “provisório”, “não pode ser 125 Linguagens, ciências e tecnologias na formulação do conhecimento comprovado jamais”, “nada existe a não ser que observemos” e “nós precisamos da incerteza, é o único modo de continuar”. Estes enunciados estariam materializando, segundo a autora, certos sentidos sobre ciência aparentemente conflitantes com o funcionamento de um discurso da ciência concebido tanto “como uma atividade de triagem entre enunciados verdadeiros e enunciados falsos”, quanto como a produção de um sujeito da ciência que está “presente pela sua ausência” (PÊCHEUX, 1988, p. 197198). A relevância dessa discussão para a área científica/educacional é evidente, já que são as instituições acadêmicas, juntamente com os seus centros tecnológicos, os lugares institucionalizados da produção e circulação do conhecimento científico na sociedade. E, ao se verificar que o mundo moderno deu à ciência, de certa forma, a incumbência de encontrar soluções para os problemas da sociedade e que na contemporaneidade essa incumbência pode estar sendo minimizada, é especialmente importante compreender como se dão esses deslocamentos e essas transformações. 5. Línguas, ciências e tecnologias Esse eixo está sendo estruturado, nesse momento, com o objetivo de mapear as iniciativas em tecnologias da informação e comunicação implementadas por e em diferentes línguas brasileiras, discutindo os alcances sociais e políticos de tais iniciativas na produção e gestão de conhecimentos. A diversidade das línguas tem sido objeto de atenção de recentes políticas públicas dos Estados Nacionais. Colocando em foco a necessidade de fomentar a diversidade, essas políticas refletem uma relação de tensão e contradição com processos globalizadores das relações de comunicação e informação engendrados pelas redes de tecnologias digitais. A compreensão desse quadro no contexto brasileiro constitui o objeto de nossa pesquisa. Especificamente indagamos sobre o quadro atual das línguas brasileiras que participam das redes digitais de comunicação e informação (incluindo a internet), procurando construir uma compreensão qualificada sobre as formas dessa participação para a implementação de políticas lingüísticas. No processo de construção desse quadro interpretativo, refletiremos sobre a documentação lingüística e o funcionamento das tecnologias de comunicação e informação. Discutiremos a idéia de que, se as tecnologias são espaços de circulação massiva de conhecimento, são também, e sobretudo, espaços de produção de conhecimentos e vínculos que ressoam na gestão das línguas e dos sujeitos que as falam 126 Marci Fileti Martins; Rosangela Morello; Solange Leda Gallo Conclusivamente, elaborar essa discussão no entremeio dos trabalhos de divulgação e dos modos de formulação do conhecimento significa atuar nas contradições que permeiam as práticas de especialistas em diferentes áreas – informática, multimídia, lingüística. Essa interlocução potencializa um espaço para formulação de instrumentos voltados aos estudos da linguagem, como a Revista Laboratório Ciência em Curso, fato que justifica e ao mesmo tempo desafia nosso programa de trabalho interinstitucional. Desse modo, o trajeto que propomos se inicia e retorna sobre a discussão a respeito da cultura científica e da figuração de redes de memória. Referências BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. 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O nascimento (ou Introdução) Comecemos por uma tentativa de problematizar o que se entende pelos termos Análise do Discurso, discurso e pesquisa. Em seguida, diríamos que responder o que é Análise do Discurso não é uma tarefa fácil. Definir o que é o discurso, por sua vez, é algo bastante difícil. Falar sobre pesquisa, sobretudo aquela destinada a localizar os sentidos do fazer sentido, fazendo uso de uma teoria de Análise do Discurso, é desafiador. O parágrafo acima, antes que um desestímulo ao leitor, tem a intenção de encorajá-lo. Pretende pontuar que a Análise do Discurso é uma teoria que mais se pauta pelo questionar, problematizar e interrogar, que responder, afirmar e constatar. Desse modo, podemos dizer que, melhor que conceituar a Análise de Discurso, seria dizer do que trata essa corrente teórica. A Análise de Discurso de corrente francesa trata especificamente do sentido, mais do que isso, dos efeitos do sentido. Ora, quando dizemos “efeitos do sentido”, já sinalizamos que, para essa teoria, não existe um único sentido para um discurso produzido. E é justamente por se tratar de certa pluralidade/multiplicidade que o terreno da análise do discurso é tão arenoso, difícil de ser percorrido, inclusive, teoricamente. Mesmo assim, vamos tentar localizar nosso leitor que pretende aventurar-se nesse campo. A Análise do Discurso francesa foi inaugurada pelo francês Michel Pêcheux no ano de 1969, com o lançamento do livro Análise automática do discurso. [...] em que a grande questão [do estruturalismo] é a relação da estrutura com a história, do indivíduo com o sujeito, da língua com a fala, assim como se interroga a interpretação. [...] Para isto a análise de discurso reúne, deslocando, línguasujeito-história, construindo um objeto próprio, o discurso, e um campo teórico específico. (ORLANDI, 2008, p. 6). Análise do discurso: o campo Cabe dizer que, nesse contexto, o estruturalismo vive seu auge na Europa, sobretudo na França, e se prepõe como paradigma de formatação do mundo, das idéias e das coisas para toda uma geração de intelectuais. Como empecilho para essa formatação estava o “sujeito”, elemento perturbador, uma vez que de difícil (ou impossível) esquadrinhamento nãofísico, o que se tornava um problema para o objeto científico. Assim, o sujeito fica excluído da proposta estruturante. As ciências humanas, de certa forma, tocadas pelo descartar da subjetividade, propõem um movimento problematizando esse paradigma que impera e traz o sujeito novamente para o centro do panorama teórico. É dessa forma que a Análise do Discurso nasce. Com um viés político de intervenção, no que diz respeito aos estudos da linguagem, visa a combater o contundente formalismo lingüístico da época. Sintetizamos com Orlandi (2005, p. 15): A primeira coisa a se observar na Análise do Discurso é que ela não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua do mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. 2. Primeiros passos Na tentativa de localizar o sujeito, a Análise do Discurso vai propor encontrá-lo na psicanálise e no materialismo histórico. Assim, temse como está formulado este conceito-chave e até hoje fundamental. Da psicanálise, a AD vai retirar – a partir de Freud e Lacan – a compreensão de um sujeito desejante, inconsciente e descentrado. No tangente ao materialismo histórico – a partir de Althusser – compreende o sujeito assujeitado, constituído pela materialidade da língua e interpelado pela ideologia. A Análise do Discurso nasceu em uma zona já povoada e tumultuada – de um lado, numa esquina, ocupando quase todo o quarteirão – a lingüística; na outra ponta espaçoso, o materialismo histórico, e no meio dividindo o espaço lado a lado com a psicanálise, a teoria do discurso. Portanto, essa contigüidade, esse convívio fronteiriço entre análise do discurso e psicanálise vem de longe, vem desde o início. Tais 130 Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto vizinhas, contudo, ainda que bastante próximas guardam distância e não confundem seus espaços comuns – são íntimas, mas nem tanto, donde há “estranha intimidade”. (FERREIRA, 2005, p. 213). Sem medo de redundância, dizemos que o objeto da Análise do Discurso é o discurso, mais precisamente a constituição do sujeito no limiar do discurso. Nas palavras de Paul Henry, “o sujeito é sempre e, ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e sujeito do desejo inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação” (HENRY, 1992, p. 188). Se o sujeito se constitui pela linguagem através do discurso que assume ou é assujeitado por ele, cabe agora tentarmos alinhavar o que é o discurso. Para isso, precisamos pensar primeiramente no processo de comunicação em que a língua serve APENAS para transmitir a informação, como muitas vezes visto na teoria da informação (cf. Jakobson) em que entra em cena um emissor, um receptor e, a partir de um canal, consegue-se propagar uma mensagem. Contrariamente, a noção discurso (cf. Pêcheux) se opõe a essa formulação, pois com ela se entende que a língua não é transparente; não há uma relação direta entre a palavra e seu significado. Desse modo, o discurso é compreendido como o efeito de sentido produzido no momento em que se dá a interlocução. “O discurso não é fechado em si mesmo e nem é domínio exclusivo do locutor: aquilo que se diz significa em relação ao que não se diz, ao lugar social do qual se diz, para quem se diz, em relação a outros discursos” (ORLANDI, 2006, p. 83). É no discurso e no cruzamento de suas vias que se interligam os pontos que unem essa rede discursiva e as sustentam. Desse modo, não se pode falar em discurso sem acionar outros sentidos e pensar em outros conceitos que lhe constituem, tais como o de língua, sujeito e história. E por isso que se entende o discurso não como aquilo que está escondido – como muitas vezes se pensa em senso comum – ou como sinônimo de falsidade ou não verdade; ou ainda de que a Análise do Discurso vai desvendar o que está por trás do discurso; não. A AD busca justamente localizar o discurso, ou os discursos constitutivos das relações sociais e do sujeito inserido nesse campo e tomado pelo inconsciente e pela ideologia. Assim, o discurso pode ser compreendido como um lugar ideal para observação das relações entre língua e ideologia e também um lugar de mediação, de imbricação no campo do dispositivo teórico-analítico, permitindo que se possam observar em seu funcionamento os processos de produção de sentido dessa materialidade simbólica. 131 Análise do discurso: o campo Lembro-me de uma aula de Filosofia da Linguagem em que discutia com os alunos, a partir da leitura do texto Pensamento de Linguagem, de Sylvain Auroux, a diferença entre a linguagem humana tida como natural e a artificial. Vários foram os argumentos, tais como a capacidade (da primeira) de raciocinar diferentemente de estar programada para operacionalizar uma ação, capacidade de tomar decisões, capacidade de sentir emoções. Até surgir uma fala que propunha como uma condição (da linguagem artificial) ainda não possível ao computador, mas... Para não me estender, trago um ponto proposto pelo próprio Auroux: “Em todo caso, o que falta ao computador para falar como um homem [...] não é dispor de uma alma ou de entidades intensionais como as idéias, é ter um corpo e poder estar imerso em uma sociedade” (1998, p. 231). O que o autor nos mostra dentro de outro paradigma teórico é que a linguagem humana jamais será possível de ser produzida artificialmente, pois não basta um léxico e um conjunto de regras morfossintáticas para manusear o código lingüístico. A língua não é transparente; não é apenas um sistema como primeiramente propôs Saussure. A língua se constitui de discursos e nós somos constituídos por eles. Assim, também não basta dar corpo à máquina (como acontece com os robôs) e inseri-la socialmente para que se reproduza a linguagem humana, pois o corpo também não é nada mais que discurso. Não somos apenas tecido ósseo e células, a carne humana é cerzida pela língua, de modo que esse corpo está sob constante construção. O uso da metáfora “cerzir” é interessante, pois do latim sarcire significa coser um tecido de forma que não se notem as costuras. Podemos dizer que nem percebemos como a trama discursiva materializada pela língua reveste o corpo, assim como a pele e os ossos. Sintetizando, o sujeito é a pedra angular da análise do discurso, e o discurso, objeto da prática analítica. É a partir do sujeito que surgem os discursos, embora ele não seja o centro de seu discurso e não tenha poder de decidir, escolher ou propor estratégias de produção de seu próprio discurso, ao invés disso, ele é constituído pelo discurso. O sujeito tem a ilusão de ser o dono de seu dizer, mas pelo viés da AD, é o inconsciente e a ideologia que determinam o discurso assumido, fazendo com que esse dizer atua no plano do que é possível dizer dentro da posição em que esse sujeito se encontra. 132 Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto 3. Alguns nomes importantes para a AD Apresentaremos nomes de alguns intelectuais que, de dentro de suas perspectivas teóricas, trouxeram contribuições importantes para a Análise do Discurso de corrente francesa. Comecemos por Marx e Althusser, tendo em vista a importância do conceito de ideologia proposto pelo primeiro e reelaborado pelo segundo, do qual Pêcheux se apropria para pensar a formulação do primeiro quadro teórico da AD. Seguimos com Freud e Lacan, com a proposição de que sujeito interessa ou fala a AD. Foucault, por sua vez, é um nome importante visto que seu método “arqueológico” de investigação das relações de poder é já uma possibilidade de investigação dessas formações discursivas. Essa apresentação finaliza-se com Orlandi, figura central e promotora da corrente francesa no Brasil, pois ela desenvolveu um extenso trabalho de pesquisa e subsidiou novas formulações teóricas que têm servido de referência aos pesquisadores da área do discurso. Karl Marx Karl Marx, pensador alemão que desenvolveu uma teoria acerca da ideologia, considerando-a como um instrumento de dominação que age através do convencimento, eliminando a consciência humana e camuflando a realidade. Autor, juntamente com Friedrich Engels, de A ideologia alemã (1965), Marx parte de uma crítica aos filósofos alemães pela maneira de ver abstrata e ideológica destes, que não estabelecem ligação entre a filosofia alemã e a realidade alemã, ou seja, não constroem um laço entre a crítica proposta e seu próprio material, acabando perdidos em suas fraseologias. Marx e Engels identificam ideologia com a separação que se faz entre a produção das idéias e as condições sociais e históricas em que são produzidas. Por isso é que eles tomam como base para suas formulações apenas dados possíveis de uma verificação puramente empírica. (BRANDÃO, s. d, p. 19). Para Marx, os dados da realidade são os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, aquelas que já encontraram a sua espera e aquelas que surgem com sua própria ação. Disso resulta a ideologia como sistema ordenado de idéias ou representações e o conjunto 133 Análise do discurso: o campo de regras normatizantes como algo separado e independente das condições materiais, uma vez que os teóricos (intelectuais) não estão diretamente ligados à produção material das condições de existência. Brandão (ibid.) aponta que essa separação entre trabalho intelectual e trabalho material dá uma aparente autonomia ao primeiro, o que significa dizer que para as idéias, automatizadas e prevalecendo sobre o segundo, passam a ser a expressão das idéias da classe dominante. A partir dessa elaboração, Marx vê a ideologia como instrumento de dominação de classe, porque a classe dominante faz com que suas idéias passem a ser idéias de todos. Nas palavras dos autores: As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual. [...] Na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda sua extensão [...] dominem também como pensadores, como produtores de idéias; que regulem a produção e distribuição de idéias de seu tempo e que suas idéias sejam, por isso mesmo, as idéias dominantes da época. (MARX; ENGELS, 1965, p. 15) Louis Althusser Louis Althusser recupera a ótica marxista de ideologia, mas entende sua materialização pelas práticas das instituições. Publica Ideologia e aparelhos ideológicos do estado (1970). Ao mesmo tempo em que toma o conceito proposto por Marx, relaciona-o com a psicanálise. Para Althusser, a ideologia deriva dos conceitos de inconsciente (Freud) e da fase do espelho (Lacan). Ele descreve as estruturas e sistemas que permitem criar um conceito do eu. Para ele, é impossível escapar dessas estruturas que atuam como agentes de repressão. A ideologia, em Althusser, é a relação imaginária, transformada em práticas, reproduzindo as relações de produção vigentes. Ele propõe quatro categorias fundamentais na realização ideológica: a interpretação, o reconhecimento, a sujeição e os Aparelhos Ideológicos de Estado. No tangente ao papel do estado, através de seus Aparelhos Repressores (o Governo, a administração, o Exército, a política, os tribunais, as prisões...) e Aparelhos Ideológicos (a religião, a escola, a família, a política, a cultura, a informação...) atuam ou pela repressão ou pela ideologia, tentando forçar a classe dominante a submeter-se às relações e condições de explorações. 134 Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto Althusser diferencia ainda a ideologia geral das ideologias particulares. Enquanto estas exprimem sempre, seja qual for a forma, posições de classe, aquelas seriam a abstração dos elementos comuns de qualquer ideologia concreta, a fixação teórica de qualquer mecanismo geral de qualquer ideologia. Para isto, propõem: a ideologia representa a relação imaginária de indivíduos com suas reais condições de existência; a ideologia tem uma existência sempre num aparelho e na sua prática ou suas práticas; e a ideologia interpela indivíduos como sujeitos. Sigmund Freud e Jacques Lacan A psicanálise é um dos tripés da Analise do Discurso, juntamente com a história e a lingüística. Freud elaborou conceitos fundamentais para essa teoria, chegando ao conceito de “inconsciente” e tentou desvendar seu funcionamento. Como já dito, à AD interessa esse sujeito inconsciente, descentrado, desejante e afetado pela figura narcísica (fase do espelho). Lacan já havia proposto o uso do termo discurso, diferenciando-o de língua e de fala. Ele referia-se a algo que escapa do campo do simbólico, das leis, dos códigos, dos direitos e dos deveres que regulam o mundo, como a sobra dos discursos que regulam as formas de vínculo social. Além de formulação do sujeito na psicanálise, tem-se a formulação do Outro (com letra maiúscula) que não trata de um outro indivíduo, mas de um lugar de formulação de linguagem, para além de qualquer pessoa e onde o que é interior ao sujeito e que, no entanto, o determina como sujeito. Michel Foucault Michel Foucault propõe a idéia de discurso, em A arqueologia do saber (1969), a partir de suas observações de como são produzidos os enunciados. [...] todo o discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que este já dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um “jamaisdito”, um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro. (FOUCAULT, 2004, p. 28). 135 Análise do discurso: o campo Assim, Foucault concebe o discurso como uma dispersão, formado por elementos que não possuem nenhuma unidade de ligação. Interessa-se pelo que chama de regras de formação dos discursos, a fim de encontrar os elementos que o compõem, tais como os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, os temas e as teorias. São também essas regras que determinam que uma formação discursiva se apresente como sistema de relações entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias. Dessa forma, caracterizam a formação discursiva em sua singularidade e possibilitam passar da dispersão para a regularidade. Para Foucault, o discurso é um conjunto de enunciados com princípios regulares envoltos em uma mesma formação discursiva, e a análise dessa formação consiste em descrever os enunciados que a compõem. Já em Foucault, percebe-se a preocupação de contrapor o enunciado como produto da língua em atividade social e histórica, diferentemente da noção de frase como uma possibilidade de arranjo lingüístico em uma determinada língua. Desse modo, o autor entende a formação discursiva como unidade elementar para, como o próprio nome aponta, formar o discurso. “A formação discursiva aparece, ao mesmo tempo, como princípio de escansão no emaranhado dos discursos e princípio de vacuidade no campo da linguagem” (FOUCAULT, 2004, p. 135). Ainda quanto ao enunciado e à função enunciativa, Foucault destaca quatro características constitutivas: 1) Um enunciado não tem diante de si um correlato. Está antes ligado a um referencial que não é constituído de coisas, de fatos, de realidade ou de seres, mas de leis de possibilidade, de regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas. O referencial do enunciado forma o lugar, a condição, o campo de emergência e a instância de diferenciação dos indivíduos e/ou dos objetos; define o que dá à frase sentido (FOUCAULT, 2004, p. 103). 2) A relação do enunciado com seu sujeito. Foucault se opõe a uma concepção idealista de sujeito. E propõe o sujeito como uma função vazia, um espaço a ser preenchido por diferentes indivíduos que o ocuparão ao formularem o enunciado. Rejeita qualquer concepção unificante de sujeito, pois o discurso não é atravessado pela unidade do sujeito, mas por sua dispersão. A história não vista mais como um discurso de continuidade, mas por uma série de rupturas no tempo. O sujeito do enunciado 136 Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto não é, na verdade, a causa, origem ou ponto de partida do fenômeno da articulação escrita ou oral de uma frase; não é, tampouco, a intenção significante que, invadindo silenciosamente o terreno das palavras, as ordena como o corpo visível de sua intuição [...] É um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes, mas esse lugar, em vez de ser definido de uma vez por todas e se manter uniforme [...] é variável o bastante para poder continuar idêntico a si mesmo. (FOUCAULT, 2004, p. 107). A concepção de discurso, para Foucault, como um campo de regularidades, em que diversas posições de sujeito podem atuar, redimensiona o papel desse sujeito no processo de organização da linguagem, eliminando-a como fonte geradora de significações. Nos termos do autor: Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito. (FOUCAULT, 2004, p. 107). 3) A função enunciativa não pode se exercer sem a existência de um domínio associado, também compreendido como campo adjacente ou espaço colateral. O enunciado é formulado associado a outros anunciados, não existe enunciado isoladamente; somente é possível isolar a frase como estrutura gramatical. A essa associação entre enunciados, Pêcheux vai chamar de interdiscurso. 4) A existência material. Trata-se sempre de uma forma de registro do signo, mesmo que dissimulada. Para marcar essa materialidade, Foucault distingue enunciado de enunciação. Enquanto o primeiro pode ser repetido, a enunciação é o próprio ato de uso da linguagem, assim não se repete e é marcada pela singularidade, “há enunciação cada vez que um conjunto de signos for emitido. Cada uma dessas articulações tem sua individualidade espaço-temporal” (FOUCAULT, 2004, p. 114). Tal formulação de enunciação serve para se compreender o que a AD vai chamar de acontecimento (na linguagem) e singularidade (no sujeito). 137 Análise do discurso: o campo Eni Orlandi e a “escola brasileira de Análise do Discurso” Reserva-se este espaço destinado a Orlandi para se falar de como se institui a teoria da AD e essa prática analítica no Brasil, ao mesmo tempo em que se tenta mostrar a(s) dicotomia(s) presente(s) quando se fala em Análise de Discurso. Orlandi, mesmo sendo quem propõe o pensamento de intelectuais franceses aqui no Brasil, tendo convivido, inclusive, com muitos deles na França, pontua uma diferença fundadora para AD que instala no país. “A ciência da língua que assim se considera não está apartada do território em que se produz. Tampouco a análise de discurso” (ORLANDI, s. d, p. 2). A primeira grande divisão estaria presente no que se entende por Análise do Discurso de escola francesa e a americana ou, ainda, anglosaxônica. Pode-se dizer que, num primeiro momento, a proposta francesa pretende essa prática analítica voltada ao texto escrito, enquanto a anglosaxã se fixa ao oral produzido na conversação cotidiana. Esta, na conversação ordinária, concentra-se nos propósitos da comunicação e prende-se ao seu caráter descritivo e imanente da linguagem – seu método é interacionista – com base na psicologia e sociologia. A francesa – estruturalista – apóia-se na lingüística, história e psicanálise. Do lado da americana (e essa não é uma divisão meramente geográfica) está a tendência de uma declinação lingüísticopragmática (empiricista) da análise de discurso com um sujeito intencional, e do lado europeu a tendência (materialista) que desterritorializa a noção de língua e de sujeito (afetado pelo inconsciente e constituído pela ideologia) na sua relação com discurso em cuja análise não se procede pelo isomorfismo. (ORLANDI, s. d., p. 6). Para Orlandi, o mais importante é poder reconhecer nos estudos e nas pesquisas sobre o discurso uma filiação específica que teve Pêcheux como um dos fundadores e que se desenvolveu mantendo consistência com alguns princípios em relação à língua, ao sujeito e à história; ou ainda, a relação língua e ideologia, em que o discurso se põe como lugar de observação dessas relações. Para ela, somente dessa forma pode-se falar de como os estudos e pesquisas da AD – desta filiação – se constituem com suas especificidades no Brasil, na França, no México ou em qualquer outro lugar: o Brasil é um forte lugar de representação. E essa autora propõe chamar a essa prática no Brasil de Análise do Discurso brasileira. 138 Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto Ainda em relação à divisão entre uma Análise do Discurso voltada à escrita e outra à oralidade, Orlandi (s. d., p. 7) diz: Em termos de história da ciência, a Análise de Discurso praticada no Brasil não deixa tampouco intocada a relação já fixada e dominante que tem, de um lado, a tradição européia e, de outro, a norte-americana (ou anglo-saxã). Ela vai colocar questões para essa forma de dicotomizar a história do pensamento sobre a linguagem. Porque se nessa declinação coube à Europa (apesar de M. Pêcheux) fixar-se preferentemente na escrita, e aos americanos, no oral (conversacional, pragmática etc), no Brasil a análise de discurso não foi afetada por esta divisão imaginária entre escrita e oral. Eni Orlandi esteve/está presente desde os primeiros ensaios de instauração da AD (com filiação francesa) no Brasil. É a autora brasileira mais referenciada em pesquisas na área, no país, e seus livros alcançam destaque no cenário internacional: As formas do silêncio ganhou o prêmio Jabuti e foi traduzido para o francês. Sua contribuição consiste não apenas em reproduzir as propostas teóricas francesas, mas, e sobretudo, em formular novas perspectivas ao campo. Assim, em sua proposta para o desenvolvimento da teoria e da análise de discurso, no estabelecimento da noção de discurso, interroga o que é interpretação (ORLANDI, 1996), redefinindo o que é ideologia, e propõe (ORLANDI, 1988) uma distinção básica entre sujeito e autor (e escritor) e entre discurso e texto que afeta sobremaneira a relação entre o que tem proposto como dispositivo teórico (específico à teoria da análise de discurso) e dispositivo analítico da interpretação “que se abre para as diferentes teorias ligadas ao campo de questões assumido pelo analista, seja ele lingüista, historiador, cientista social, fonoaudiólogo etc.” (ORLANDI, s. d., p. 16). 4. E o futuro (?) As correntes que olham a linguagem sob a perspectiva do discurso aplicam o que se pode chamar de conhecimento crítico à própria linguagem. Dito de outro modo, a partir de uma materialidade lingüística, busca-se evidenciar os elementos que fazem com que esses processos de formulação de discursos são assim constituídos e não de outro modo, a fim de que um sentido possa se estabelecer e não outro. Ora, isso significa dizer que a linguagem não é neutra, assim como o discurso, que a tem como geradora. 139 Análise do discurso: o campo Dizemos isso para mostrar que, mesmo quando se opta por um caminho analítico a ser percorrido, em nosso caso, a Análise do Discurso de filiação francesa, devemos ter em mente que não é esse o único modo – ou ainda, o melhor modo – de se pensar criticamente a linguagem. Mesmo quando localizamos um determinado ponto histórico que fez com que essa corrente de pensamento e de pensadores se estabelecesse, essa mesma história (talvez fosse melhor dizer essa mesma outra história) possibilitou também outras formas de análise do(s) funcionamento(s) da linguagem. No entanto, no que tange à Análise do Discurso de corrente francesa e às diversas vertentes que podemos fazer uso para embasar nossas práticas analíticas, é preciso ter cautela com as dissidências e dissensões das próprias teorias nas quais nos alçamos. Perceber a diferença entre dissidência e dissensão muitas vezes não é fácil, sobretudo, como não incorrer nessas armadilhas. Como dissidentes, temos correntes que partem de uma mesma teoria, mas acabam criando uma metodologia própria distanciando-se da primeira. Quanto à dissensão, podemos entender as contribuições de outros autores que passam a incorporar as teorias com alguma ressignificação. Um exemplo são as contribuições de Michel Foucault e Mikhail Bakhtin. Desse modo, Michel Pêcheux (propositor da AD) toma a noção de formação discursiva e a associa à ideologia, o que não era feito por Foucault. Depois, a própria AD vai ressignificar a noção de ideologia em que a questão de classe passa a ser apenas uma possibilidade, mas não a única. O mesmo pode ser percebido com os conceitos bakhtinianos: a noção de polifonia – da qual se faz bastante uso – é ressignificada na AD como heterogeneidade que, por conseguinte, é proposta para auxiliar na percepção de que as formações discursivas são atravessadas e delimitadas sempre por outras formações discursivas. Além de despertar a atenção para outro conceito caro para AD, que são as posições-sujeito como lugar de dispersão. Levando em conta o pouco do dito aqui, como mera exemplificação de que o terreno da AD não é tão firme como às vezes o tomamos, alguns autores/pesquisadores estão propondo trabalhos sob a perspectiva de uma análise bakhtiniana do discurso, ou seja, propõem uma análise com base nos termos bakhtinianos, tais como o próprio autor apresenta. E outros chegam a propor análise foucaultiana do discurso, atentando, sobretudo, para o próprio conceito de discurso formulado por Foucault. No que diz respeito a Bakhtin, o que aproxima a Análise do Discurso (francesa) de seu pensamento é o mesmo ponto que a distancia: o sujeito e o discurso. Enquanto para a AD o discurso é toda manifestação de 140 Sandro Braga; Maria Marta Furlanetto linguagem produzida no entremeio da língua/história/psicanálise, ou seja, o sujeito se constitui alçado pelo discurso que assume como seu, o sujeito, para Bakhtin, é produto social – pelo viés sociológico. Bakhtin não está preocupado com a relação subjetividade/inconsciente. O discurso de que trata é para construir uma proposta teórica acerca dos gêneros do discurso, em que o discurso é tomado pelas esferas de comunicação humana. Assim, para ele, cada uma dessas esferas se caracteriza pelo modo como o social faz uso da língua no processo de interlocução. Esses discursos, por sua vez, são organizados pelo que o autor chama de dialogismo. Finalizando essa querela, acredito ser possível tanto fazer análise do discurso incorporando as contribuições das mais diversas correntes, porém, faz-se necessário saber interpretar os conceitos in natura e suas ressignificações quando adaptados por outras teorias. 5. Referências q AUROUX, S. (1998) A filosofia da linguagem. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. BAKHTIN, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 10. ed. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do Discurso. 7. ed. Campinas: Editora da Unicamp, s/d. FERREIRA, M. C. L. A língua da análise de discurso: esse extranho objeto de desejo. In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. L. (Orgs.). Michel Pêcheux e a análise do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2005. HENRY, P. A Ferramenta Imperfeita. Língua, Sujeito e Discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 6. ed. São Paulo: Pontes; Campinas: Unicamp, 2005. _____. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4a ed. Campinas: Pontes, 2006. _____. A análise de discurso em suas diferentes tradições intelectuais: o Brasil. Disponível em: http://www.discurso.ufrgs.br/evento/conf_04/eniorlandi.pdf. Acesso em: 5 jun. 2008 141 ANÁLISE DO DISCURSO E ENSINO Maria Marta Furlanetto Sandro Braga 1. Introdução O capítulo Análise do discurso: o campo, nesta coletânea, fornece um quadro teórico que orienta basicamente as pesquisas realizadas. Mas é preciso dizer que o professor Ingo Voese, falecido em julho de 2007, embora fizesse análise do discurso, não partilhava esses pressupostos, ainda que houvesse semelhança em alguns pontos. Sua abordagem teórica congregava substancialmente Bakhtin, Heller e Lukács. 2. Pesquisas realizadas no contexto do GADIPE (Grupo de Análise do discurso: pesquisa e ensino) 2.1. Os projetos Os trabalhos que desenvolvemos no GADIPE são articulados pelas linhas de pesquisa: Análise discursiva de processos semânticos e Textualidade e práticas discursivas. Aqui vamos nos ater à primeira linha, que visa ao estudo dos processos de produção de sentido, desde sua dimensão subjetiva até sua dimensão social, histórica e ideológica. Concebe-se que os processos semântico-discursivos sempre se dão em eventos sociais específicos e únicos que acionam, além da língua, determinações materiais. O GADIPE, desde o início de seu funcionamento em 2001, organiza-se a partir dos seguintes objetivos gerais (que enquadram igualmente as pesquisas da segunda linha do grupo): a) explorar fenômenos da linguagem oral e da escrita, nas suas diferentes formas de manifestação e representação no contexto sócio-histórico brasileiro; b) examinar as relações entre enunciação, discurso e fatores sóciohistóricos; Análise do discurso e ensino c) explorar o dinamismo da linguagem e a multiplicidade de seus registros, em si mesmos ou em referência ao chamado padrão; d) viabilizar orientações teórico-metodológicas que permitam o desenvolvimento de estratégias de ensino e aprendizagem nos vários níveis de ensino. Nossos projetos são encampados, hoje, por um projeto guardachuva, que denominamos “Revisão e atualização teórica da Proposta Curricular de Santa Catarina (1998) – prática de língua portuguesa na escola fundamental e formação de professores”, desenvolvido, cada pesquisador em seu campo específico, por Maria Marta Furlanetto, Sandro Braga, Mariléia Silva dos Reis e Jussara Bittencourt de Sá. Até meados de 2007, também faziam parte do grupo os professores Ingo Voese e Wilson Schuelter, este trabalhando na linha de Textualidades e práticas discursivas, voltando-se para estudos do hipertexto. 1) O projeto Tendências no uso escrito culto do português brasileiro. Implicações normativas e pedagogia da língua (Fase II), desenvolvido por Maria Marta Furlanetto, teve uma primeira fase que se mostrou muito produtiva, e tem prosseguimento em sua segunda fase, de 2007 até hoje. Na atual fase, dada a extensão de dados já coletados e a perspectiva de ampliação dos fenômenos estudados, e considerando ainda a importância da aplicabilidade de seus resultados, pretende-se completar a análise de vários tópicos e centrar a reflexão nas questões relacionadas ao ensino, prevendo a composição de um banco de dados (formação de professores e material didático). Enquadra-se aqui também, então, a discussão do conceito de ‘norma’ e ‘norma objetiva’, ao lado do que possa significar ‘purismo’ e ‘correção’. O tema da inovação em linguagem e da mudança lingüística tem chamado a atenção de vários setores, que o vêem de forma diversificada conforme o lugar de onde o fenômeno é percebido, provocando até mesmo polêmica, ao lado de certas atitudes mais práticas, tais como o incremento de programas específicos para a “conservação” da pureza do idioma (programas televisivos, consultórios gramaticais, manuais e outras obras mais alentadas, quando não decretos governamentais...). 144 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga Certas tendências lingüísticas (“desvios”, do ponto de vista normativo) em pessoas de grupos de prestígio são um sintoma (ou indício) de mudança. Isso permite observar formas alternativas, as já estabilizadas e as inovadoras, que podem entrar em conflito. Admite-se que entre o que é normatizado e o que se apresenta como novo há um espectro amplo. Propõe-se uma reflexão sobre os fatores intervenientes na contínua mudança de formas/significações tomando como ponto de partida a escrita mais ou menos formal (considerando aqui desde a linguagem encontrada nos meios de comunicação até aquela que se espera de um acadêmico em seu trabalho científico). O objetivo geral delineado é estudar, a partir de dados coletados em documentos escritos que supostamente utilizam o português padrão, as tendências à “deriva” em vários níveis (lexicológico, morfossintático, semântico, discursivo), buscando determinar fatores dessa deriva e nível de aceitação com base em freqüência de uso (ocorrências registradas), bem como encarar perspectivas para a área pedagógica. Os objetivos específicos assim se apresentam: a) sistematizar dados relativos ao uso da língua portuguesa escrita de nível culto, através de recortes que situem fenômenos que possam ser considerados de “deriva”; b) Estabelecer o que poderia ser encarado “bom uso da linguagem” (língua culta) considerando (não com base em) normas gerais de gramáticas descritivo-normativas contemporâneas e, a partir daí, as tendências de deriva (“desvio”, “inadequação”, “incorreção”, “hipercorreção”); c) Buscar critérios para estabelecer níveis de deriva e níveis de aceitação das tendências detectadas (originalidade, inadequação, incorreção?); d) Refletir sobre as questões que se abrem para pensar o ensino e a aprendizagem da língua portuguesa dita culta. Considerando a questão de como a “gramática” da língua portuguesa estaria sendo violada, em termos de normas sociais, Auroux (1997) afirma que qualquer gramática, em determinado momento, se mostrará inadequada para explicar fenômenos produzidos pelos sujeitos, de modo que será preciso produzir outra gramática, e assim por diante, periodicamente. Quer se trate de uma gramática formal como a gerativa 145 Análise do discurso e ensino (com algoritmos), quer de uma com regras de prescrição, a partir de um modelo de bem falar e bem escrever, a mudança e a novidade em uma língua, apesar das fortes restrições sociais, são uma constante. Uma concepção de linguagem humana mais de acordo com esse fenômeno deve supor “a eficácia dos atos ou acontecimentos lingüísticos no sistema da língua”. “Desde o momento em que introduzimos os atos e os acontecimentos lingüísticos em nossa concepção da linguagem, introduzimos, além da temporalidade, a possibilidade de descontinuidades entre o que se passa antes e o que se passa depois. Em outras palavras, encaramos a irreversibilidade de certos processos” (1997, p. 127; tradução da pesquisadora). Para Auroux, a criatividade diz respeito a procedimentos e estratégias interativas que englobam mundo, sujeito e outros sujeitos, empiricamente considerados. E é isso que compõe o que ele chama hiperlíngua. Auroux descarta regras homogêneas, que estariam presentes em todos os sujeitos de mesma comunidade lingüística, em proveito de modelos interativos pondo em presença sujeitos diferentes com competências diferentes, cuja confrontação no tempo produzirá novas competências e o aparecimento de novas regras e novas estruturas lingüísticas. Isso significa reconhecer que a gramática “não exprime nem a totalidade das causas produtoras da linguagem, nem mesmo os limites exatos da ação dessas causas produtoras” (1997, p. 138). Daí ele hipotetizar que as atividades lingüísticas são subdeterminadas pela gramática, ou seja, não são sempre o produto de regras gramaticais: a invenção tem aí o seu lugar. Considera-se, na AD dita de orientação/linha francesa, que a língua (sistema significante) é instável, heterogênea, não-fechada, com lacunas no espectro formal. É aí que acontecem as falhas, os deslocamentos, rupturas de sentido – local de “deriva”. Assim, qualquer enunciado lingüístico, como forma material de discursos, está exposto ao “equívoco”. Esse seria o espaço privilegiado da análise discursiva, buscando-se a historicidade do sentido a partir de mecanismos de produção. No entanto, falar em deriva supõe um centro (em cada momento de análise), e no caso da língua será preciso refletir sobre a língua como estrutura e como acontecimento, porque de certo ponto de vista a materialidade da língua (já que não se quer o abstrato, o formal) envolve, de alguma forma, o acontecimento. 146 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga Uma questão crucial assim se representa pela divisão discursiva em dois universos, segundo Pêcheux (1997): o das significações estabilizadas (seriedade de sentido, legitimação); o das transformações (instabilidade). Vamos, pois, interpretar a deriva, associada aqui com a resistência da língua. 2) O projeto Revisão e atualização teórica da Proposta Curricular de Santa Catarina (1998) – Língua Portuguesa, também desenvolvido por Maria Marta Furlanetto, iniciou em 2007 e objetiva revisar a formulação da Proposta Curricular de Santa Catarina (1998), na área de Língua Portuguesa, pela abordagem crítica dos conteúdos sugeridos e questões teóricas e metodológicas, com vistas à construção de atividades correspondentes, voltadas para práticas sociais específicas. Conta hoje com dois bolsistas de Iniciação Científica. 35 Em sua segunda versão, a Proposta Curricular de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 1998) é uma importante etapa histórica de abordagem dos currículos, mas após alguns anos de aplicação e avaliação, necessita de continuidade sistemática do trabalho teórico e metodológico, com uma etapa de caráter mais pragmático, envolvendo subsídios consistentes para o trabalho em sala de aula. Após a implementação da Proposta através de cursos de capacitação no Estado, vários trabalhos já avaliaram seus fundamentos e sua formulação, bem como houve observação e intervenção realizadas no ambiente da escola. Do ponto de vista das teorias e práticas relativas aos gêneros, de 1998 para cá, cabe enfatizar que o aprofundamento dos estudos tem trazido aportes notáveis e características práticas dos gêneros que serão considerados para que se possa promover gradualmente a adequação dos materiais de estudo para o professor (o mediador privilegiado) e para os alunos. O objetivo deste projeto é efetuar uma revisão dos conteúdos sugeridos para Língua Portuguesa, abordando-se questões teóricas e metodológicas que incidem sobre as práticas de linguagem – pensando-se na construção de atividades que correspondam à proposta, em direção a práticas sociais específicas. Um dos focos principais é a abordagem dos gêneros de discurso e sua formulação em textos orais e escritos, que devem ser abordados como resultado de práticas sociais específicas, e portanto 35 De modo menos sistemático, o projeto já vinha se desenvolvendo bem antes, no contexto de uma proposta mais ampla. 147 Análise do discurso e ensino como efeito das interações observadas nas várias esferas da sociedade – ou das várias mídias. Como pano de fundo, incorporam-se os princípios filosóficos e sócio-históricos da Proposta Curricular, enfatizando a formação dos estudantes com vistas ao exercício pleno da cidadania (sobre o conceito, veja-se FURLANETTO, 2003; RICCI, 1999). São estes os objetivos específicos propostos: a) avaliar os fundamentos e a formulação da Proposta Curricular de Santa Catarina, com base em trabalhos desenvolvidos a partir de sua implementação; b) estabelecer os aportes teóricos e características dos gêneros consentâneos com os fundamentos filosóficos e teóricos da PCSC; c) avaliar a articulação da PC-SC com o documento mais recente de desdobramento da PC-SC; 36 d) focalizar questões de identidade e os processos de inclusão e exclusão; e) promover a adequada formulação dos materiais de estudo para o professor e para o aluno; f) estabelecer critérios preliminares para a formulação de um curso de capacitação de professores. Em trabalhos anteriores apresentados em eventos científicos, foram tratadas preliminarmente questões relacionadas à compreensão do documento da Proposta Curricular em sua relação com a prática pedagógica correspondente, bem como se tem acompanhado trabalhos que envolvem análise e reflexão do material exposto. Foi estudado, por exemplo, um tema abordado por Dela Justina (2004), que aponta, em seu artigo Nível de letramento do professor: implicações para o trabalho com o gênero textual na sala de aula, problemas relativos ao nível de letramento do professor, a partir de uma avaliação que faz, em pesquisa específica, sobre “estratégias de leitura/escrita dos gêneros do discurso” (2004, p. 349) com referência à PC-SC. 36 Trata-se do documento Proposta Curricular de Santa Catarina: estudos temáticos (SANTA CATARINA, 2005). 148 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga 3) Efeitos de leitura no processo de ensino/aprendizagem é projeto recente, de 2008, elaborado por Sandro Braga, que pretende contribuir para os estudos voltados à compreensão das condições materiais e ideológicas que envolvem professor e aluno na formulação e aquisição de conhecimento a partir de práticas de leitura. Mais especificamente, visa diagnosticar as resultantes desses processos de tal modo que se possam formular comparações das competências de leitura e de escrita dos estudantes, dentro no âmbito do ensino de Língua Portuguesa. Especificamente em relação à escrita de textos escolares, tem-se deflagrado um grau maior de dificuldade no manejo da língua, uma questão inquietante, uma vez que o estudante, como membro efetivo de uma comunidade lingüística, já possui domínio do código dessa língua. Surgem então outras questões: de quantas línguas se está falando? Ou, qual a relação entre as variantes lingüísticas e suas implicações? O que se sabe é que o uso formal da língua padrão, regido por certas regras normativas, não é o mesmo da língua coloquial, em que as regras são mais flexíveis. A proposta de se voltar a essas variações reside na observância da autonomia que as línguas vivas possuem e que, antagonicamente, agem sobre suas próprias regras constitutivas. É nesse sentido que o lugar da língua não é, ao menos não é apenas, o dos manuais normativos. No entanto, essas constatações de uma língua que se modifica resultam, muitas vezes, em um contraste: alunos que não apresentam dificuldade no uso da língua em sua modalidade oral encontram dificuldades na formulação e até mesmo na compreensão (interpretação) de enunciados escritos. De acordo com esse pressuposto, cabe à questão uma série de investigações no campo das ciências da linguagem. Assim, num segundo momento, tendo como ponto de partida os entraves na consolidação de um hábito de leitura consistente, a proposta prevê a elaboração de alternativas de estímulo à leitura e à interpretação. Nessa fase outra, a idéia é de já despertar o texto do outro (daquele de quem se está lendo, do autor) como motivação para se pensar na construção do próprio texto (o estudante como autor). O projeto tem como objetivo geral diagnosticar as resultantes do processo de conhecimento a partir de práticas de leitura de tal modo que se possam formular comparações entre as competências de leitura e de escrita dos estudantes, dentro no âmbito do ensino de Língua Portuguesa. 149 Análise do discurso e ensino Os objetivos específicos são: a) verificar as condições materiais para se propor uma prática de leitura; b) analisar os elementos que compõem o exercício da leitura; c) ampliar, no contexto escolar, os modos de leitura; d) investigar como se ensina a leitura na escola; e) propor formas de verificação de conhecimentos a partir da leitura; f) identificar na comunidade escolar a preocupação com o que fazer com a leitura; g) relacionar a leitura à prática da escrita. 4) O discurso da amorosidade foi um projeto desenvolvido por Ingo Voese, colega falecido em julho de 2007. Refletindo sobre o momento histórico da retomada da discussão que enfatiza a importância da educação como processo-meio para atuar sobre a crescente violência social, sua grande meta era repensar as relações sociais como condição para propor novos direcionamentos. Seu problema de pesquisa assim foi delineado: Por que a educação, assim como é praticada, não consegue intervir no problema do aumento da desigualdade e da violência social? Ele acreditava ser provável que a descrição do discurso como reflexo e refração da realidade social poderia fornecer pistas do que impede que as interações sociais se tornem produtivas para organizar de forma saudável as relações humanas. Eram seus objetivos: a) descrever o discurso como mediação das interações sociais; b) pesquisar as determinações sociais que são, enquanto discurso, obstáculos a uma educação para a amorosidade; c) descrever e interpretar à luz de uma visão ontológica exemplos e rumos de uma educação para a paz e a amorosidade. Como fundamentação teórica, Voese tratou três conceitos centrais: o Discurso – na linha teórica de Bakhtin; as Determinações sociais – com apoio prioritário nas obras de Lukács e Heller; e a Amorosidade – na linha de pensamento de Freire e Larossa. 150 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga Ingo Voese desenvolveu, anteriormente, um projeto intitulado Análise do Discurso e ensino, assim descrito: Na disciplina que se denomina Análise do Discurso (AD), há uma dificuldade muito grande para se passar da fase de conceituação do objeto – o discurso – para a análise propriamente dita. Além disso, constata-se que o ensino fundamental e o ensino médio pouco ou nada se beneficiaram do que foi produzido até aqui na academia: os livros didáticos continuam apresentando lacunas importantes nesse sentido. Cabe questionar essa distância que se verifica entre o que se produz na academia e a sua aplicação na sala de aula. Objetiva-se, ao apresentar não apenas uma teoria do discurso, mas também um roteiro de análise, tentar superar essa distância entre o que se realiza de estudo e pesquisa no ensino superior e a sua aplicação nas aulas de Língua Portuguesa. O trabalho destina-se, em princípio, a professores do Fundamental e Ensino Médio, pessoas que, em geral, têm poucos contatos com a disciplina da AD e, em especial, com a diversidade das abordagens que se pratica. Outro projeto, desenvolvido em parceria com a professora Jussara Bittencourt de Sá, foi Uma abordagem discursiva do texto nas séries iniciais. Este tinha como objetivo estabelecer conteúdos e metodologia na estruturação de um livro didático para ser utilizado experimentalmente nas primeiras séries do Ensino Fundamental. O material referente a esse trabalho não teve ainda divulgação. 2.2. Trabalhos produzidos 2.2.1. Projeto: Tendências no uso escrito culto do português brasileiro. Implicações normativas e pedagogia da língua (Maria Marta Furlanetto) Neste trabalho o foco será o conjunto da produção bibliográfica resultante do desenvolvimento desse projeto. 37 Foram publicados em periódicos, na forma de artigos: 1. Estiramento de palavras: efeitos discursivos. São descritas, do ponto de vista discursivo, ocorrências lingüísticas do que se chamou “estiramento de palavras”, tendência encontrada na escrita formal em estender e criar palavras, ora a partir de formas básicas, ora de formas já 37 Se for de interesse conhecer as referências dos trabalhos, basta buscar no site do CNPq os currículos dos pesquisadores. 151 Análise do discurso e ensino derivadas, através de afixação bem como formação analógica, manifestando aparentemente algum excesso. 2. Os caminhos de onde no português do Brasil: instrumentos lingüísticos e deriva. Nesse texto, a análise do corpus com foco no funcionamento de onde mostra um distanciamento gradual relativamente ao que preconizam os instrumentos lingüísticos, apontando um uso em que há dispersão e deslizamento semântico, mostrando-se que, para além da referência de onde a tempo, ocorrem casos de referência a processo, a meio ou ponto de partida, e ainda a explicação que tem como escopo uma seqüência significativa. 3. Pluralização de nomes abstratos – um caso de concordância semântica? Este trabalho mostra a deriva em um caso tratado como de “concordância semântica”: a pluralização de nomes abstratos. Outro texto do projeto aparece como capítulo do livro “Análise do Discurso: perspectivas”, publicado em Uberlândia (MG) pela EDUFU, em 2007. 4. “O fato de...” – construindo o real. Trata-se aqui de discutir o uso da expressão o fato de, que introduz, aparentemente, uma seqüência enunciativa que remeteria a um “fato”. Verifica-se, por um lado, o espectro semântico de uso comparado ao que se encontra estabilizado nos arquivos de memória das comunidades de discurso (gramatização); por outro lado, analisa-se esse uso em determinados contextos, observando-se aí a eventual compatibilidade semântica e os efeitos discursivos. Como resultado da análise, tem-se de admitir que há diferenças marcantes de discriminação e avaliação, e que o espectro de uso vai muito além daquilo que se registra como gramatizado. Para o fato de, prenunciando uma porção de texto a jusante, cujo enunciado se quer ver reconhecido, o uso indica que ocorre esmaecimento das ressonâncias possíveis de fato, ressaltando a função de suporte da construção sintática, que acaba por mostrá-la predominantemente em seu papel argumentativo (dando corpo ao enunciado). Apresentar algo como fato, nessas condições, é ir em busca de adesão. Outros resultados desse projeto estão divulgados em anais de eventos: 5. Do discurso estenográfico – uma análise da “falsa inerência” Este trabalho mostra um processo comum na língua portuguesa: a “falsa inerência”, que diz respeito a uma relação específica do adjetivo com o nome (função argumental), marcada pela redução de uma expressão 152 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga complexa. Examinam-se as várias nuanças desse fenômeno e os efeitos de sentido que podem produzir no discurso. 6. O uso de ‘inclusive’ em textos escritos formais. A reflexão que apresento neste texto refere-se ao tratamento do uso da expressão “inclusive”. O espectro semântico de inclusive aproxima-se do movimento semântico de mesmo, até mesmo – o que permite aventar a hipótese de expansão do espectro, a partir do que se registra como gramatizado, ou seja, do que se encontra na descrição de uso padrão. As possibilidades de significância dos elementos lingüísticos são contínua e ativamente negociadas: a língua não resiste – se assim se pode dizer –, ela sofre modelagem, uma vez que constitutivamente aberta ao jogo, e os sentidos historicamente estabelecidos não são meramente reproduzidos. A par dos resultados de pesquisa publicados, alguns textos já se encontram praticamente prontos para publicação: 7. As “redundâncias” são mesmo redundâncias? Uma comunicação foi apresentada no CELLIP 2007, em Ponta Grossa (PR). Esse trabalho está centrado no estudo das chamadas “redundâncias”. São discutidas algumas hipóteses a respeito do funcionamento discursivo das redundâncias: ocorre esvaziamento semântico de palavras, o que justifica a “repetição”; a parafrasagem na formulação discursiva é uma das faces da redundância; as redundâncias previnem a possibilidade de deformação ao ser feita a interpretação. Investiga-se, assim, a plurivocidade inscrita nos enunciados e o jogo entre identidade e alteridade que aí se observa. 8. Formações neológicas e discurso. Uma comunicação foi apresentada no I SIMELP (2008, São Paulo) e um texto sintético foi proposto para publicação nos anais desse evento. O material completo será submetido a um periódico. Nas formações neológicas tratadas nesse trabalho o foco é o reconhecimento da emergência de certas palavras e expressões cuja identidade temporária pode ser apontada com base em possibilidades histórico-discursivas, produzindo certos efeitos. Assim, levando em conta as condições sociais de produção e interpretação do discurso, apresenta-se um modo de compreensão do surgimento de uma variedade de neologismos em relação às práticas e suas representações sociais. Além desses trabalhos publicados ou por publicar, outros estão sendo desenvolvidos paulatinamente e simultaneamente, dependendo das circunstâncias, envolvendo os tópicos ainda por tratar quanto à deriva: questões de concordância, uso do gerúndio, abreviações, correção/adequação no tratamento gramatical e outros mais. 153 Análise do discurso e ensino 2.2.2. Projeto: Revisão e atualização teórica da Proposta Curricular de Santa Catarina (1998) – Língua Portuguesa (Maria Marta Furlanetto) Quanto a esse projeto, cujas linhas e objetivos foram apresentados no início, ele tem permitido um sem-número de textos, alguns dos quais tangenciais ao seu núcleo, mas igualmente relevantes, considerando seu direcionamento para o ensino-aprendizagem. Seguem artigos publicados em periódicos. 1. O sujeito, o dizer, a interpretação: identidade em crise. Nesse ensaio apresenta-se uma reflexão sobre o funcionamento da linguagem em nossa sociedade, a partir do Dicionário do brasileiro de bolso, de Teixeira Coelho (1991), que examina expressões da língua portuguesa em uso no contexto social brasileiro dos anos 1964-1990. A partir daí, exploram-se aspectos do processo de construção de sentido e de compreensão, articulando esses elementos com a formação da nacionalidade e da cidadania, focalizando alguns aspectos do contraste entre unidade lingüística e diversidade na língua portuguesa do Brasil. Mostra-se ainda a pertinência das diretrizes da Proposta Curricular de Santa Catarina para a formação de professores e da cidadania através da compreensão e do uso crítico da língua portuguesa. 2. Argumentação e subjetividade no gênero: o papel dos topoi. Quando se propõe uma “dissertação” na escola, espera-se do estudante que apresente um problema e pontos de vista, argumentando para dar uma resposta satisfatória ao problema. Exige-se dele, contudo, impessoalidade. Tenta-se demonstrar, do ponto de vista discursivo, que sempre há na produção textual uma escolha para dirigir a interpretação do interlocutor, sendo relevante, para isso, o uso de certos operadores. Focaliza-se aqui o conflito entre ser impessoal e defender um ponto de vista (opinião) – pondo em contraste o modelo da dissertação escolar e a caracterização dialógica do conceito de gênero em Bakhtin, e os efeitos resultantes em um caso e no outro, com vistas a uma alternativa de ensino. 3. Proposta Curricular de Santa Catarina (1998): revisão e perspectivas para a formação docente. Nesse artigo o objetivo é rever, avaliar e projetar formas alternativas e complementares de compreender e praticar os parâmetros apresentados na Proposta Curricular de Santa Catarina (PC-SC), área de Língua Portuguesa, considerando especialmente a relação da Proposta com seus leitores privilegiados, os professores. 4. Sujeito epistêmico e materialidade do discurso: o efeito de singularidade. A proposta é refletir sobre a subjetividade tal como 154 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga desenvolvida no quadro da Análise do Discurso (AD), e responder às seguintes perguntas: o pesquisador pode dizer-se “Eu” no relato considerando a formação discursiva associada à disciplina científica? Quem o “Eu” do relato representa, no momento da enunciação? Para isso, examino o conceito de ciência, exploro a AD como saber científico e proponho a análise de um texto, focalizando o modo de inserção do pesquisador em seu relato. 5. Gêneros do discurso e leitura (em co-autoria com Maria Helena Vincenzi). Neste trabalho, focalizam-se o ensino e o aprendizado da língua portuguesa com base nos gêneros do discurso; mais especificamente, aborda-se a leitura considerando os fundamentos e conteúdos sugeridos na Proposta Curricular de Santa Catarina (1998). A reflexão centra-se na produção de leitura a partir dos gêneros e pontua a análise e avaliação de problemas de interpretação detectados em estudantes brasileiros no Relatório PISA 2000. Apresenta-se, por último, uma amostra de como a leitura pode ser mediada na escola. 6. Produzindo textos: gêneros ou tipos? Esse estudo constitui reflexão sobre um tópico de trabalho anterior focando recursos expressivos de estudantes de Letras (“Gênero discursivo, tipo textual e expressividade”). Na perspectiva sociointeracionista, foi apontado como primeiro critério de análise do corpus o tópico 'gênero e tipo – estilos de projeção', mostrando conflitos entre a conceituação oferecida pela obra didática utilizada e os textos produzidos. Retoma-se a discussão teórica centralizando-a na relação gênero/tipo, salientando a distinção proposta entre gênero discursivo e tipo textual, privilegiando a metodologia do ensino/aprendizagem de língua portuguesa. Inserem-se nessa proposta reflexões posteriores com base em Bakhtin e outros autores. 7. Inovações e conflitos na Proposta Curricular de SC: perspectivas na formação de professores (artigo no prelo). Este trabalho trata de algumas questões associadas à linguagem no contexto social e outras relacionadas ao ensino e à aprendizagem de língua portuguesa como língua materna. Reflete-se sobre certas questões vinculadas à tradição de conceber a “unidade lingüística” nacional no contexto das normas sociais e aos meios correntemente utilizados para ensinar língua. Põe-se o foco sobre os aportes da Proposta Curricular de Santa Catarina (PC-SC), levando em conta as políticas de educação lingüística. Apresentam-se também alguns desafios e perspectivas para a validade e continuidade das diretrizes postas nesse documento, especialmente com vistas à formação docente, a partir de 155 Análise do discurso e ensino avaliações já efetuadas e de investigações educacionais em contextos mais abrangentes. Outros trabalhos estão publicados como capítulos em coletâneas: 8. Práticas discursivas: desafio no ensino de língua portuguesa. Aqui são apresentadas algumas considerações sobre desafios da Lingüística Aplicada relativamente à pedagogia de línguas, abordando-se a noção de prática discursiva no contexto da Análise do Discurso. Dessa disciplina, são expostas algumas noções relevantes para o contexto de ensino: o texto como unidade de análise, materializando discursos através de gêneros específicos, abarcando o horizonte social e integrando outras formas de linguagem, em sua relação com a produção e a interpretação. Discute-se ainda a noção de fragmentação subjetiva e a repercussão disso no ambiente de ensino, e abordam-se algumas questões vinculadas à relação teoria/prática. 9. Função-autor e interpretação: uma polêmica revisitada. Neste ensaio revisita-se a noção de função-autor tal como proposta por Foucault, tomando-a como o resultado do processo dialético entre a autoria como função de um sujeito racional, consciente, e o apagamento do autor através da filosofia da desconstrução; paralelamente, examina-se como essa função é tratada na Análise do Discurso, bem como, à guisa de exemplo, analisamse casos específicos para mostrar nuanças na função subjetiva de autoria e apontar novas questões. 10. Gênero do discurso como componente do arquivo em Dominique Maingueneau. Nesse capítulo explora-se a contribuição de Dominique Maingueneau para o estudo dos gêneros, na perspectiva da Análise do Discurso (AD) de tradição francesa. Apresenta-se, primeiramente, o que se considera teoricamente relevante em seu trabalho; em seguida, procura-se mostrar uma compreensão pessoal do tema explorando um texto segundo as categorias propostas e discutidas pelo autor; finalmente, propõe-se uma análise crítica de questões que sua abordagem levanta, associando esse ponto crucial da análise de discurso a conceitos que dizem respeito a sua compreensão, bem como tenta-se apontar as perspectivas de desenvolvimento dessa abordagem discursiva. 11. Escrita e cidadania: desafio político-pedagógico. Mostra-se nesse texto que o entendimento de “cidadão” variou de modo sensível no decurso da história do País. Para chegar ao que “se deseja” que “cidadão” e “cidadania” representem hoje (o que talvez não seja de consenso), para relacionar tal ao processo da escrita, percorrem-se algumas etapas da história brasileira, através de vozes que se ocuparam do tema. Isso mostrará 156 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga que houve uma constituição da cidadania, e que não se trata de uma concepção idêntica em momentos históricos diferentes – nem de uma evolução para o melhor dos mundos. 12. Curricular Proposal of Santa Catarina State: assessing the course, opening paths. Esse texto, que se encontra no prelo, é uma versão aprimorada e mais extensa do artigo publicado nos anais do 4º SIGET, evento realizado na Unisul em 2007. Com base na abordagem teórica e filosófica de Bakhtin, esse estudo propõe a reflexão e a avaliação de um conjunto de trabalhos anteriores com foco sobre questões discursivas relativas aos gêneros do discurso. O contexto institucional de estudo é o da Proposta Curricular de Santa Catarina (1998), documento oficial que é objeto de pesquisa de diferentes perspectivas. Utiliza-se também a abordagem histórico-cultural de Vygotsky, buscando retomar articulações teoricamente relevantes e operacionalmente frutíferas concernentes à abordagem das práticas de linguagem envolvendo gêneros no ambiente escolar, vinculando-os ao mundo social. Traduzido para o inglês pelo professor Fernando Vugman, o texto será publicado na obra Genre in a changing world – advances in genre theory analysis and teaching pela WAC Clearing House, Parlor Press. Seus organizadores são Charles Bazerman, Adair Bonini e Débora de Carvalho Figueiredo. Além desses artigos e ensaios, foram organizadas duas obras que estão associadas pelos temas ao projeto em questão: 13. Foucault e a autoria, de 2006 (Maria Marta Furlanetto e Osmar de Souza). 14. Gêneros textuais e ensino-aprendizagem, também de 2006, coletânea do periódico Linguagem em (Dis)curso (Maria Marta Furlanetto, Adair Bonini). Em anais de eventos encontram-se divulgados outros trabalhos: 15. Proposta Curricular de Santa Catarina: avaliando o percurso, abrindo caminhos (4º SIGET, 2007). O resumo corresponde ao exposto no item 12, acima. 16. Proposta Curricular de Santa Catarina (1998): revisão e perspectivas para o estudo de gêneros (III SIGET, 2005) Nesse trabalho são focados os conteúdos sugeridos na PC-SC e sua concretização através de textos com sua identidade genérica, abordando-se questões teóricas e metodológicas que incidem sobre as práticas de 157 Análise do discurso e ensino linguagem, e questionando a relação entre o trabalho acadêmico e a prática magisterial. 17. Função-autor e interpretação: uma polêmica revisitada (Seminário Internacional Michel Foucault: perspectivas, 2004). O texto é uma versão curta do capítulo de mesmo nome apresentado no item 9. 18. O professor e os gêneros do discurso: o problema do letramento (6º Encontro do Celsul, 2004). Nesse trabalho, tendo como contexto a Proposta Curricular de Santa Catarina, propõe-se uma reflexão focando a problematização feita por Dela Justina (2004) sobre o nível de letramento do professor e suas implicações para o trabalho com gêneros na sala de aula. 19. Conteúdos de língua e gêneros: revisitando a Proposta Curricular de Santa Catarina (1998) (VI CBLA, 2001). Realiza-se uma reflexão sobre os conteúdos sugeridos na PC-SC e sua concretização em textos que manifestam gêneros, abordando-se questões teóricas e metodológicas que incidem sobre as práticas de linguagem, especialmente sobre o espaço que vai de uma proposta às práticas correspondentes. Por fim, listam-se as dissertações defendidas por estudantes do mestrado: a) Ana Regene Varela Sangaletti (2003). O papel da língua portuguesa na evasão escolar: a perspectiva dos alunos que abandonaram o ensino fundamental; b) Cátia Amara Horst (2006). Discurso pedagógico e discurso acadêmico: a construção de uma identidade em relatórios de prática de ensino; c) Celestina Inez Magnanti (2003). Vozes docentes: avaliando a Proposta Curricular de Santa Catarina; d) Lisiane Vandresen (2007). As representações indígenas na sala de aula do ensino fundamental: produção e circulação de sentidos; e) Miriam Gomes D'Alascio (2008). Efeitos de sentido da Proposta Curricular de Santa Catarina no discurso de professores e alunos de 5ª e de 6ª série de uma escola estadual de Santa Catarina; f) Rosandra Schlickmann Sachetti Hübbe (2004). O discurso utilizado nos anúncios publicitários dirigidos ao público infantil; 158 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga g) Vânia Terezinha Silva da Luz (2005). Aula de língua portuguesa: do planejamento à prática. Trabalho com gêneros do discurso em uma 5ª série; 2.2.3. Projetos: O discurso da amorosidade e Análise do discurso e ensino (Ingo Voese) No primiero projeto, o professor chegou a participar, como palestrante, de alguns eventos realizados na Unisu. Seminário do curso de Medicina. Unisul. “Os sentidos de vida e o discurso médico”. 2006. Semana Integrada das Licenciaturas da Unisul. “O discurso como sintoma”. 2006. Também orientou uma estudante, no contexto desse projeto: Diabetes Mellitus: como passar do discurso da amargura para o da doçura, de Elonir Gomes (2006). No segundo projeto, comecemos pelos artigos em periódicos. 1. Vozes sociais citadas e sobrepostas: a polifonia e a dialogia. O trabalho aborda a relação de discurso e contexto, focando especialmente as dimensões e a importância do que se entende, em geral, por determinações sociais do discurso. Tendo como referência teórica principal a voz de Bakhtin, a reflexão operacionaliza a noção de contexto como vozes sociais que, na relação com o discurso de um dado enunciante, efetivam um encontro dialógico e polifônico com o social. A dimensão dialógica e polifônica do discurso, por sua vez, coloca em cena o que se entende por citação, cuja operacionalização se faz, no texto, tomando como exemplo, a ironia. 2. Ah... se todos fossem iguais (ou não) a uma onda do mar... O texto desenvolve uma reflexão sobre a noção de subjetividade, apoiada especialmente em Bakhtin, Lukács e Heller, diferentemente da linha teórica do materialismo estruturalista da Análise do Discurso da escola francesa. 3. Considerações sobre o ensino de Língua Portuguesa à luz de uma teoria do discurso. Trata-se de uma reflexão sobre os efeitos que podem produzir as referências de uma teoria do Discurso e seus desdobramentos metodológicos sobre o ensino de Língua Portuguesa. Abandona-se a orientação da escola francesa e busca-se apoio especialmente em Bakhtin e Heller para construir a noção de mediação, o que deve ampliar o horizonte da compreensão do fenômeno lingüístico e da prática pedagógica. 4. Desafios para uma análise do discurso (e para o ensino?). Neste trabalho discutem-se alguns problemas da Análise do Discurso. É realizada 159 Análise do discurso e ensino uma análise de texto com o propósito de expor uma metodologia de AD e de abrir espaço para futuras reflexões sobre a possibilidade de tal tipo de atividade trazer benefícios ao ensino nos níveis fundamental e médio. No contexto de seu projeto, Ingo Voese publicou os livros: 5. Análise do Discurso e o Ensino de Língua Portuguesa (2004). O autor propõe, nesta obra, um roteiro de análise de discursos, sem a pretensão de que isso se constitua em procedimento para encontrar os verdadeiros sentidos dos textos; e mostra as possibilidades que os procedimentos de leitura e análise elaborados abrem para o trabalho de ensino e aprendizagem de língua portuguesa. Voese confere ao texto o estatuto de vozes dos outros, de instância dialógica, que pode tecer a relação de solidariedade e de amorosidade necessária para que professores e alunos construírem-se como sujeitos. 6. Organização de número especial de Linguagem em (Dis)curso: Subjetividade (2003). Este número da revista reúne, numa edição especial, textos inéditos que abordam a temática da subjetividade. A idéia é manter aberto o debate que estimula o rigor da diferenciação e coteja saudavelmente posições teóricas diversificadas e focos de análise variados, compondo um amplo panorama do tema. Assim, pesquisadores que analisam o discurso em suas facetas percorrem o campo e conversam. João Wanderley Geraldi põe a lente sobre textos de crianças, captando neles indícios sobre outros textos, que resultam de práticas discursivas escolares, através dos quais mostra, nos primeiros, uma compreensão específica (um tom apreciativo) das palavras que circulam no ambiente escolar e das atitudes aí manifestadas. Sírio Possenti sintetiza teses básicas em análise do discurso, mostrando o desdobramento da questão do sujeito em outros domínios das ciências humanas, estabelecendo o não fechamento da discussão. Pedro de Souza retoma o tema do assujeitamento na análise do discurso e o aponta como lugar em que também emerge a resistência do sujeito, num movimento que participa de sua construção em outra ordem. Bethania Mariani põe foco no “imaginário lingüístico” – conforme a expressão de Michel Pêcheux –, tentando uma correspondência, que ela julga fundamental, com o conceito psicanalítico de inconsciente. Nessa abordagem, trata-se inequivocamente de um sujeito dividido; a autora compreende a discursividade como um campo atravessado por uma teoria do sujeito de base psicanalítica. 160 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga Belmira Magalhães conjuga Lukács, Bakhtin e Pêcheux para explicar a constituição contraditória do sujeito na sociedade, através da qual procura compreender a posição de sujeito e da autoria no discurso. Maria Marta Furlanetto propõe uma análise do modo de inserção do próprio analista do discurso em um discurso de caráter científico, examinando essa posição e a possibilidade de o sujeito pronunciar-se como “eu”. Fábio Rauen adota uma abordagem da biologia do conhecer, com base especialmente em Humberto Maturana. É assim que ele aborda a emergência do eu do ser humano – como um corpo cujo organismo se realiza num modo de vida que é de semiose, havendo câmbio modulado pelo próprio viver em linguagem, que implica a alteridade. Finalmente, Ingo Voese congrega as vozes de Bakhtin, Lukács e Heller para desenvolver uma noção de subjetividade, opondo-se, conforme expressa, à linha da análise de discurso francesa. Ele focaliza a atividade mental subjetiva e a formação da consciência em seus diversos graus, concluindo que, a par do controle social e dos rituais, o ser humano pode apropriar-se deles e torná-los singulares em sua consciência; pode retornar sobre eles e atuar sobre essa modelação. Em sua linha de trabalho, Ingo Voese orientou as seguintes dissertações: a) Antonio Pedro Gonçalves (2007). Os ascensos revolucionários de fevereiro e outubro de 1917 na Rússia nos livros didáticos de história; b) Elisângela de Castro Reynaldo Rodrigues (2003). Canções sertanejas: um diálogo entre raízes e ideologias; c) João Batista da Cruz Dias (2005). O discurso da avaliação como exercício de poder: um estudo de caso em escolas da região metropolitana de Curitiba-PR; d) Josemeri Peruchi Mezari (2007). Um Discurso Fragmentado: a Universidade e suas ações sobre a Realidade Social; e) Luana Medeiros Bonetti (2003). Proposta Curricular de Santa Catarina: Língua Portuguesa; f) Marilane Mendes Cascaes da Rosa (2005). Silenciamento de sentidos: o trabalho em (dis)curso; 161 Análise do discurso e ensino 3. Análise dos resultados Ao olharmos em conjunto os trabalhos desenvolvidos e aqueles em realização no contexto do mestrado em Ciências da Linguagem e da Unisul, percebemos que tem havido uma apreciável soma de resultados, que repercutem no nosso meio social. Há que levar em conta os inúmeros problemas que enfrentamos, considerando a demanda, os prazos e os imprevistos, além da carga horária dedicada às aulas, à orientação de estudantes de mestrado, de iniciação científica e eventualmente de especialização. Atentando para os objetivos mais gerais que estabelecemos no grupo de trabalho e para nossa grande meta, que é a viabilização de orientações teórico-metodológicas para o desenvolvimento de estratégias de ensino e aprendizagem nos vários níveis de ensino, sentimos que todos os meios e objetos explorados em nossas pesquisas adquirem sentido em nosso contexto sócio-histórico. Ao procuramos analisar e entender esse contexto, damo-nos conta de que esses objetos e meios podem ser relevantemente aproveitados nas várias esferas sociais em que circulamos: levamos e trazemos informações, propostas, todas eivadas de valores, desejos, esperanças. É nesse circuito de instituições que conseguimos escutar e dar respostas, ou seja, realizar as trocas mais substanciais, ao mesmo tempo estimulando o estudo discursivo da linguagem e das línguas. O mais importante do trabalho que realizamos está exatamente configurado na quantidade com qualidade das interações efetivadas, do relacionamento acadêmico para a discussão teórica e dos serviços que possamos prestar às comunidades. O mais imediato, que é o trabalho de aperfeiçoamento de nossos orientandos em pesquisa acadêmica, tem produzido também, a par dos temas escolhidos, resultados importantes do ponto de vista da formação magisterial, o que implica que damos à sociedade sujeitos capazes de, por sua vez, atuar como bons educadores e formadores. Estas são algumas das atividades em que nos temos empenhado para divulgar resultados de pesquisa, realizar trocas acadêmicas, fazer propostas, aperfeiçoar a formação e prestar serviços: a) participação em bancas examinadoras. Elas permitem, por vezes, penetrar em campos desafiadores e nos instigar a 162 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga b) c) d) e) f) percorrer novas paisagens: em religião, filosofia, estética, jornalismo, moda, projetos educacionais...; participação em eventos. Eventos são ricos de possibilidades para divulgação de pesquisa e de instituições, para planejamento de trabalhos conjuntos, para contato com pesquisadores da mesma área e de áreas afins, para lançamento de livros. E, por que não dizer, para comemorações e um pouco de turismo geográfico e cultural; participação em cursos de capacitação. A Unisul oferece, periodicamente, cursos de capacitação para seus docentes, tais como o do SEER/IBICT – Editoração Eletrônica, organizado pela Coordenação de Pós-graduação e Programa de Bibliotecas e realizado em agosto de 2007; e o de tutoria para ensino a distância, que se repete há vários anos, sob a orientação de professores e técnicos da Unisul Virtual; consultoria e cursos para secretarias de educação (Estado e municípios). Essa forma de atividade nos aproxima dos problemas mais prementes da educação brasileira e nos fornece a oportunidade de avaliá-los com os responsáveis da área, bem como ajudar com propostas, acompanhar o trabalho docente e ministrar cursos; coordenação de grupo de trabalho de associação nacional. É o caso da ANPOLL, que congrega pesquisadores de múltiplas universidades. De julho de 2006 até o presente ano o subGT de Teorias de gênero em práticas sociais do GT de Lingüística Aplicada é coordenado por Maria Marta Furlanetto, que conduz os trabalhos relativos aos projetos desenvolvidos no subgrupo. Também preparou e manteve atualizada a página web com os dados do subGT, incluindo a produção dos pesquisadores. Essa representação reforça a integração das pesquisas do Programa com a comunidade científica da área. Envolve pesquisadores das universidades: UNISUL, UERJ, UFSC, UFMT, UNICAMP, UFRN, PUC-SP, UCS, PUC-RIO, UFC, UFJF, UECE, UNISINOS, UFSM, UEL (ver URL: http://www2.intercorp.com.br/mmarta/); organização de coletâneas e editoria. As publicações do mestrado viabilizam o intercâmbio constante com pesquisadores na área. Em 2003, Ingo Voese foi o organizador do primeiro número especial da revista Linguagem em 163 Análise do discurso e ensino (Dis)curso, com o tema “Subjetividade”, reunindo trabalhos inéditos sobre o tema. Em 2006 foi publicado número especial sobre gêneros textuais e ensino-aprendizagem, concretização de uma das metas traçadas para o biênio 2004-2006 pelo subGT de Teorias de gênero em práticas sociais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL). A edição foi organizada por Adair Bonini e Maria Marta Furlanetto. Nossa Coleção Linguagens investe na publicação de artigos científicos, ensaios, monografias que difundem os resultados dos projetos de pesquisa relacionados com as linhas de pesquisa do mestrado. O primeiro livro da coleção é O contexto refletido – vozes sobrepostas de um diálogo, de Ingo Voese, lançado em 2007; o segundo, O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea, de Fábio de Carvalho Messa; o terceiro, em preparação, será Texto (e autoria). Como apre(e)nder essa matéria? Análise discursiva do texto (e do autor), de Solange Leda Gallo. 4. Perspectivas do grupo É verdade que nem todos os projetos (pequenos, médios ou grandes), por vezes ambiciosos, por vezes inexeqüíveis, por vezes mal esboçados, vingam em nosso meio acadêmico – ou crescem e se destacam com o mesmo ímpeto. Há aqueles que se pensa forjar mal despertada uma idéia luminosa, e na semana seguinte perdem o viço e acabam esquecidos, sem qualquer formulação específica. Outros despertam a partir de uma discussão ardente, esfriam, acabam sendo retomados, mas as circunstâncias fazem com que adormeçam por bom tempo sob as cinzas, aguardando novo ressurgimento. Eles sempre aparecem, sendo propícias as circunstâncias, mas às vezes falta tempo para desenvolvê-los, sobretudo quando envolvem pessoas extremamente ocupadas – é o caso dos docentes que atuam em cursos de graduação da Unisul. Mas alguns precisam ser formulados, e mesmo tendo maus momentos, produzem bons frutos. Os dois atuais pesquisadores do grupo da linha Análise discursiva de processos semânticos, Sandro Braga e Maria Marta Furlanetto, têm como seus colaboradores estudantes do mestrado, seus orientandos, e estudantes bolsistas de iniciação científica, futuros candidatos ao mestrado. 164 Maria Marta Furlanetto; Sandro Braga Uma das possibilidades que surgiu e começou a ser discutida já em 2007, e que não se deseja que morra, é a de um projeto que envolveria a colaboração (necessária) de alguns docentes da graduação interessados em integrar o GADIPE. Propôs-se, a par de sua inserção no grupo, a elaboração de um projeto de seminário com graduandos, mestrandos e professores da rede pública, para dar um tratamento específico a questões cruciais ligadas ao ensino em todos os níveis, começando por uma discussão que tematizaria “gramática”, a tratar sob diversas óticas. Com esse propósito, conseguiu-se congregar numa primeira reunião, além das professoras convidadas do mestrado pela professora Andréia Daltoé dos Anjos (Maria Marta Furlanetto e Mariléia Silva dos Reis), as professoras Perpétua Guimarães Prudêncio, Marilane Cascaes, Luana Medeiros Bonetti e Maria Felomena Espíndola). Conta-se com a participação de Sandro Braga, se o projeto vier a tomar pé (é, supõe-se, de interesse da instituição), considerando que seu foco de pesquisa é a leitura. Referências AUROUX, S. Les limites de la grammaire. Organon, Porto Alegre, v. 11, n. 25, p. 123-141, 1997. DELA JUSTINA, E. W. N. Nível de letramento do professor: implicações para o trabalho com o gênero textual na sala de aula. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n. 2, p. 349-370, jan./jun. 2004. FURLANETTO, M. M. Escrita e cidadania: desafio político-pedagógico. In: BOHN, Hilário I.; SOUZA, Osmar de (Orgs.). Escrita e cidadania. Florianópolis: Insular, 2003. p. 17-36. PÊCHEUX, M. Estrutura ou acontecimento [?]. 2. ed. Tradução de Eni Orlandi. Campinas: Pontes, 1997. RICCI, R. O perfil do educador para o século XXI: de boi de coice a boi de cambão. Educação & Sociedade, ano XX, n. 66, p. 143-178, abril 1999. SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação e do Desporto. Proposta Curricular de Santa Catarina: Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio: disciplinas curriculares. Florianópolis: COGEN, 1998. _____. Secretaria de Estado da Educação, Ciência e Tecnologia. Proposta Curricular de Santa Catarina: estudos temáticos. Florianópolis: IOESC, 2005. 165 PARTE III LINGUAGEM E PROCESSOS CULTURAIS MITOLOGIA E AUTO-SUSTENTABILIDADE DE COMUNIDADES GUARANI DO ESTADO DE SANTA CATARINA Aldo Litaiff 1. Introdução Os Guarani vêm sofrendo ao longo do tempo violento e acelerado processo de descaracterização e destruição, sendo que grupos inteiros foram dizimados. Atualmente, através de pesquisas acadêmicas e com a adoção de políticas públicas, observa-se uma maior visibilidade e aumento das populações indígenas do estado de Santa Catarina. A partir deste quadro, a Unisul vem investindo em iniciativas que buscam desenvolver e aprofundar o conhecimento da realidade destas sociedades. Nesta direção, desde 2001, desenvolvemos os projetos Sem tekoa não há teko: Sem terra não há cultura, visando à auto-sustentabilidade de comunidades guarani da região, Registro audio-visual da execução do projeto “Sem tekoa não há teko e Mitologia guarani, que tem por objetivo principal redigir um livro sobre a linguagem mítica dos Guarani. Pertencentes à família Tupi-Guarani do tronco lingüístico Tupi, os Guarani constituem uma das sociedades indígenas brasileiras mais numerosas. 38 Atualmente existem quatro grupos Guarani localizados na América do Sul: Chiriguanos na Bolívia (60.000 indivíduos), Kayowa (40.000), Chiripa ou Nhandeva (30.000) e Mbya (30.000), distribuídos no centro-oeste, sul e sudeste do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai. 39 Os Guarani, que historicamente eram denominados Carijo, habitavam a costa atlântica, desde a Barra da Cananéia até o Rio Grande do Sul (onde era o grupo mais numeroso), a partir daí até os rios Paraná e Paraguai (MÉTRAUX, 1979, p. 70). No litoral sul e sudeste brasileiro, encontra-se atualmente uma grande concentração de Mbya e de Chiripa, habitando o 38 A designação “Guarani” foi dada pelos Jesuítas no século XVII a certos grupos indígenas da região platina. 39 Como ocorre na maioria dos povos indígenas, “Mbya” ou “Mbüa”, significa “gente”. Segundo Schaden (1969, p. 83), existe grande confusão quanto aos nomes dos vários grupos em que se dividem os Guarani, por este motivo adotamos esta nomenclatura em obediência ao que estabelece a convenção sobre a grafia de nomes tribais firmada por ocasião da Primeira Reunião Brasileira de Antropologia, 1953, Rio de Janeiro”. Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina território onde viveram seus ancestrais Carijo, até seu desaparecimento no século XVII. Estes lugares são importantes pontos de referência histórica e mitológica, uma vez que eles ainda conservam seus “nomes Guarani”, topônimos que se referem à cosmologia e à descrição geográfica destes locais. Estes índios continuam então fiéis ao seu território de origem, procurando se estabelecer nos mesmos amba, ou seja, lugares ou espaços criados e deixados por Deus para serem ocupados por eles. Ressaltamos que estes amba estão localizados nos mesmos limites geográficos observados pelos cronistas durante a conquista (LADEIRA, 1992, p. 58). Os Guarani atuais intensificaram seus deslocamentos populacionais em direção ao litoral do Brasil no início do século XX, provenientes do interior da América do Sul (Paraguai, Argentina e do estado brasileiro do Mato Grosso do Sul), forçados pela invasão de suas terras por colonizadores, pelos conflitos com outros autóctones, e, principalmente, em busca de Yvy mara ey, a “Terra sem Mal”. Os Mbya, que outrora habitavam exclusivamente as florestas do sul da América do Sul, atualmente circulam também sobre as rodovias, visitando parentes, procurando terras, vendendo o artesanato que produzem e/ou buscando trabalho sazonal. Tanto no litoral como no interior dos estados do sul e do sudeste do Brasil, os Mbya e os Chiripa têm sido vizinhos, por vezes coabitando uma mesma área, em razão de suas semelhanças culturais (LITAIFF, 1996). O Guarani, e em particular o Mbya, é um desterrado, um estrangeiro em seu próprio território. Um dos principais fatores de reforço aos estereótipos oriundos do etnocentrismo dos Ocidentais é a má-fé e/ou o desconhecimento da história e das características atuais destas populações. O Guarani é considerado “o índio clássico”, símbolo nacional, imagem do indígena brasileiro, tema de óperas e de poesias. Paradoxalmente, este, assim como outros índios, é visto pelo Branco como “vagabundo, preguiçoso, bêbado, feio, sujo e ladrão”, à margem da população brasileira. Para alguns, estes índios “não são nem mesmo brasileiros” (LITAIFF, 1996), não tendo, portanto, nenhum direito a qualquer reivindicação. Outros grupos que formam a etnia Guarani, assim como outros índios que entraram em contato com os Mbya, consideram estes últimos “seres inferiores atrasados no tempo... falando uma língua estranha e vivendo como animais”, os últimos na hierarquia da sociedade nacional. Isto se deve principalmente ao fato dos Mbya recusarem-se a ser “civilizados”, preferindo habitar distante de outros índios e dos Brancos. Por outro lado, contrariamente aos índios da região do Xingu, o Guarani carrega consigo a imagem do índio integrado, que usa vestimentas ocidentais e fala português. Isto se deve ao fato de que para 170 Aldo Litaiff sobreviver, o Mbya se viu obrigado a incorporar itens das sociedades ocidentais a sua cultura milenar, adaptando-se, em parte, mas preservando aspectos importantes de sua religião, organização social, língua e mitologia, sendo esta uma das suas características mais importantes. Atualmente, a população Guarani no Brasil é de cerca de 50.000 indivíduos, destes, menos da metade vivendo junto aos postos indígenas, pois, até recentemente, não possuíam quase nenhum aldeamento definitivo, sendo comum encontrá-los ainda hoje em pequenos grupos circulando pelas rodovias do país. Mesmo assim, eles procuram se isolar, buscando o mínimo de contato com a sociedade nacional. O antropólogo catarinense Egon Schaden declara que, apesar das pesquisas existentes, é fundamental fomentar estudos de campo que abordem contextos específicos, pois, “é necessário destruir a imagem de que a sociedade Guarani já é bastante conhecida e insistir sobre a urgência de se retomar os estudos desta cultura com referência às suas variantes regionais” (1963, p. 83). 2. Projeto Sem Tekoa não há teko: Sem terra não há cultura No dia 5 de janeiro de 1994, oito famílias mbya chegam em Massiambu, município de Palhoça (onde se encontra o Campus Pedra Branca da Unisul), em área seqüestrada judicialmente. O local é um antigo ponto de referência para os Guarani, que habitaram esta região até serem expulsos pelo avanço da população branca. 40 No ano seguinte, outro grupo mbya chega ao Morro dos Cavalos, também em Palhoça, após os moradores anteriores (uma família chiripa já mestiçada) abandonarem o local. Em 19 de outubro de 1999, os Mbya chegam em Imaruí, a mais recente aldeia guarani de Santa Catarina. Os grupos familiares que chegaram às aldeias de Massiambu, Imaruí e Morro dos Cavalos, vieram de diversas comunidades localizadas no interior de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, sendo que alguns indivíduos vieram de aldeias de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Após a chegada do primeiro grupo liderado por Augusto da Silva, conhecido entre os Mbya por Karai Tataendy, apareceram outras famílias que foram se agregando à comunidade, enquanto outras partiam, o que caracteriza a dinâmica social deste povo. Atualmente, as três aldeias contam com uma população de cerca de 600 indivíduos. 40 Um documento datado de 1576 registra a presença dos Guarani na região de Massiambu, na época denominado “Viaça” (Revista de propaganda do Estado e dos Municípios, Edição do Departamento de Administração Municipal, ano 1, n.1, 1939). 171 Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina Localizada a 13 km do município de Palhoça, 35 km da capital do estado, a área de Massiambu possui menos de 5,5 ha (conforme documentação de registro do imóvel), doze habitações, onde moram cerca de cinqüenta e dois indivíduos, divididos em várias famílias nucleares, que se organizam em algumas famílias extensas. No Morro dos Cavalos, com 121,8 ha, distante cerca de 3 km da primeira aldeia, com cerca de 220 indivíduos, incluindo visitantes (número este que pode mudar em função das constantes movimentações, como vimos acima), os índios acomodaram-se em vinte casas. Com 80 ha e localizada no município do mesmo nome, a 50 km das outras aldeias, 80 km de Florianópolis, a Aldeia de Imaruí possui 30 casas e cerca de 230 habitantes. As três aldeias estão próximas do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. Trata-se de uma grande área de 90.000 ha de Mata Atlântica, declarada de preservação permanente, através do Decreto estadual M/SETMA, n. 1.260, de 01.11.1975 (sendo que, posteriormente, o Decreto n.17.720/82 retificou seus limites em 87.405 ha). É importante salientar que, a partir de nossos dados (LITAIFF, 1999) e apoiado pela bibliografia especializada (MELIÁ, 1987), verificamos que os Guarani são profundos conhecedores da Mata Atlântica, praticando há séculos o manejo florestal (ver também NOELLI, 1993). No início de nossa pesquisa entre os Guarani, constatamos que a falta de terras e de recursos naturais (provocados pela colonização branca e pelo acelerado processo de destruição das florestas brasileiras), geravam grandes períodos de fome, que continua matando a escassa população que restou dos Guarani do passado. Tanto os Mbya, quanto a maioria dos Guarani de Santa Catarina, encontravam-se numa situação de miséria, sendo comum encontrarmos Guarani esmolando nas ruas de Florianópolis, principalmente mulheres e crianças. As doenças, a subnutrição, que afetam, principalmente, a população infantil, e o alcoolismo (problema de quase todos os grupos “indígenas” brasileiros), dizimam de forma dramática seu contingente populacional. O problema da saúde está estreitamente relacionado à questão da falta de terras, pois, “com uma boa terra pode plantar, pegar remédio no mato, ninguém fica doente”, declara o Cacique 41 Mbya. As áreas de Massiambu e Morro dos Cavalos são insuficientes e inadequadas para atender às necessidades básicas dos Mbya, que reclamam de sua pequena extensão, infertilidade e da escassez da mata: “são muito pequenas, não têm florestas e mal dá para plantar. Guarani é do mato, vive 41 Sempre quando utilizamos somente o termo “cacique” sem o nome da pessoa, estamos nos referindo a Augusto da Silva Karai Tataendy. 172 Aldo Litaiff no mato, com terra grande, muita árvore, palmito, terra boa para plantar, se a terra não for boa, o Guarani lá não vive”, declara um de nossos colaboradores. Acrescentamos que os próprios Mbya se definem como sendo “índios da floresta”. Tekoa, então, é um espaço com terra fértil, florestas, lugar de agricultura e coleta. Por este motivo, dentre os grupos guarani, os Mbya são os que mais dependem das florestas para sua subsistência. A comercialização do artesanato e a agricultura são atualmente as principais fontes de subsistência dos Mbya. A agricultura é atividade de importância fundamental na vida dos Mbya. Os Guarani de Santa Catarina relatam, porém, que o fomento ao artesanato comercial surgiu como solução para a falta de terras e a conseqüente impossibilidade de exercer a agricultura. Os Mbya vendem seus artesanatos aos turistas, ao longo da rodovia BR-101, ou nas ruas e praças de Florianópolis. Os objetos comercializados com maior freqüência são: colares, arcos e flechas, chocalhos (mbaraka), abanadores e cestarias (adjaka) de diversos tipos e tamanhos. No litoral sul de Santa Catarina, toda matéria-prima utilizada por estes Guarani é proveniente das florestas adjacentes, no caso das três aldeias Mbya, principalmente da Serra do Tabuleiro. Por este motivo, dentre os povos Guarani, os Mbya são os que mais dependem das florestas para sua subsistência: “sem a mata o Mbya não é nada”, assinala um velho Mbya. Entre os Mbya, o milho (awaty) e a mandioca (mandió) são os principais alimentos. Observamos também o cultivo da batata-doce (jety), feijão (comandá), banana (pakoá), mandu’i e cana (taquare’ey). Foram registrados quatro tipos diferentes de milho: awaty jú, amarelo de espiga pequena, awaty sí, espiga branca e macia, awaty para í, espiga com grãos “coloridos”, e awaty jú guaçú, espigas grandes e amarelas. Além de uma grande área de lavoura coletiva (cana, abacaxi, mandioca e milho), existem outras menores, próximas a pequenas concentrações de casas (normalmente de três a cinco residências), para consumo diário (banana, mandioca, batata-doce e milho). Os Mbya criam patos, marrecos e galinhas, que ficam soltos pela aldeia. O milho e a mandioca, certamente, são os alimentos mais consumidos entre esses índios. O Cacique relata que a primeira mandioca teria nascido sobre a sepultura de um Guarani morto e descreve como se processava a lavoura Mbya: “Nosso alimento antigamente era milho, feijão vagem, sem sal e sem tempero, antes não tinha o sal, nem açúcar. O índio vivia de caça, tateto, raposa (como denominam ‘gambá’), tatu, Jaku, pegava mel, peixe do rio, plantava milho, mandioca, banana, batata. Dois 173 Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina tipos de amendoim: o amarelo e o vermelho. Antes a mulher plantava, o homem só caçava, pescava e pegava mel. Homem só queimava e limpava o mato para mulher plantar, num mesmo buraco, milho e feijão, depois tapava o buraco com o pé. Os dois crescem e o feijão se enrosca no pé de milho. Agora tudo mudou, não tem jeito. Em agosto plantava amendoim, maio é a colheita, as mulheres se juntavam para colher, depois fazia comida de milho com amendoim torrado ou cozido. Crianças treinavam colher e fazer comida nos pequenos balaios. O homem vai caçar no mato, agora é triste, não tem mais. Naquele tempo sempre alegre, não tinha tristeza. Era tudo unido, amigo, hoje tudo mudou. O mundo não muda, o povo é que muda”. Podemos ver aqui a estreita relação entre subsistência e organização social, sendo a “economia de reciprocidade”, um dos dispositivos principais da dinâmica social Guarani, e uma das mais importantes características destes índios. A compra do alimento industrializado também tem gerado graves problemas de saúde entre os Guarani. Conforme nos relatou uma enfermeira da FUNAI que visitou as aldeias catarinenses: “além de mais caro é menos nutritivo, causando a subnutrição, responsável pela maior parte das doenças e pela mortalidade infantil. Aqui, nestas aldeias, já tivemos várias crianças com desidratação, causada por forte diarréia, tuberculose, anemia, pneumonia (principalmente entre crianças com menos de dois anos) e outras doenças. Isto tudo porque o índio ainda não conhece o alimento do branco, ele não sabe como funciona no seu organismo, em termos nutritivos”. Sensível às necessidades desta população, desde 1992, a equipe formada por alunos (graduação e pós-graduação), pesquisadores e professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) da Unisul tem se dedicado a buscar meios para solucionar estes problemas, como por exemplo, o isolamento de cinco tipos de awaty, o milho Guarani, da contaminação pelo milho híbrido. Desta forma, os Guarani voltaram a cultivar o awaty de acordo com suas antigas técnicas, que é comprovadamente, a espécie de milho mais adaptado e resistente à condições adversas (geada, seca etc.), sendo que suas sementes foram levadas por estes índios a várias outras comunidades dentro e fora do estado. Executado entre março de 2001 e dezembro de 2004, o projeto Sem Tekoa não há teko teve, como objetivo geral, incentivar formas econômicas apropriadas ao etnodesenvolvimento e à auto-sustentabilidade das terras indígenas Guarani do litoral do Estado de Santa Catarina, medidas 174 Aldo Litaiff compatíveis com teko, ou seja, modo de ser, cultura Guarani. 42 Buscou-se também contribuir no processo de regeneração da Mata Atlântica e do solo (para fomento da agricultura familiar, coletiva e outros tipos de manejo florestal, características destes índios), de 3 das 18 áreas Guarani do litoral catarinense, a maioria recentemente ocupada por estes índios, que, nesta região, contam cerca de 1050 indivíduos. Conscientes da grave situação em que atualmente se encontram os Guarani, e considerando que as poucas terras em que vivem não apresentam as condições básicas previstas na Constituição Federal Brasileira de 1988, partimos do pressuposto de que este projeto deveria respeitar as condições mínimas para a manutenção do modo de ser Guarani. Sabemos que a sobrevivência de uma população só é possível quando as terras a ela destinadas permitam perpetuar seus costumes. Todavia, atualmente, o maior problema para os Guarani é a improdutividade das poucas terras em que se encontram. Nossa intenção tem sido a de modificar tal situação, através da implementação do desenvolvimento sustentável de antigas e novas áreas recentemente adquiridas, de acordo com as necessidades de subsistência e a situação demográfica. A partir de experiências anteriores e do estudo do contexto atual, obtivemos uma correta avaliação da presente situação, assim como do impacto que estas populações vêm sofrendo ao longo deste violento processo de contato com a civilização ocidental. Com o intuito de eleger prioridades para a elaboração dos projetos, tomamos como principal critério consultar não só as lideranças como também outros integrantes, mulheres e anciães, das comunidades indígenas em questão. Cientes das dificuldades e do estreito relacionamento entre as aldeias, optamos pelo método comparativo, procurando entender as semelhanças e diferenças entre elas. Esta nos pareceu ser a melhor metodologia para se chegar a alguns pontos consensuais que nos permitiram eleger as prioridades. Portanto, a presença das lideranças, como o Cacique Augusto da Silva Karai Tataendy, e outros representantes durante o processo de eleição das prioridades, foram fundamentais na confecção dos objetivos dos projetos, que, desta forma, foram definidos e executados em conjunto com os membros das comunidades. Tomando o caminho inverso das soluções assistencialistas e/ou paternalistas, que geram maior dependência com relação à sociedade 42 Observamos que no ano de 2008 o projeto deve ser aplicado em outras quatro comunidades Guarani localizadas no litoral norte do Estado de Santa Catarina. 175 Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina nacional envolvente, executamos algumas medidas simples, visando ao controle dos meios que conduzem a uma maior autonomia e autosubsistência, tendo como conseqüência a sobrevivência dos indivíduos, de sua sociedade e de sua cultura. Visando à realização desta meta, foram alcançados os seguintes objetivos, previstos inicialmente no projeto Sem tekoa não há teko: a) análise e correção do solo para melhor produtividade, respeitando, porém, os princípios da cultura Guarani, que prevê a utilização preferencial da agricultura orgânica (adubo e irrigação); b) plantio de milhares de mudas árvores frutíferas (1.500 unidades: laranja lima, goiaba, banana etc.); c) aquisição de pequenos animais, como: galinhas, patos e marrecos, fontes alternativas de proteína; d) construção de açudes para criação de peixes (outra importante fonte protéica – principalmente carpa e tilápia, de fácil manejo); e) reflorestamento da mata no interior da área, através do cultivo de milhares de mudas de árvores típicas da região (5.000 unidades: palmeira, canela, cedro, etc.), quase totalmente desaparecidas nestes locais. Observou-se que estas árvores são de grande importância religiosa para os Mbya, que, quando manejam as florestas, não visam somente à utilização de seus recursos, mas, sobretudo sua recuperação e a eliminação de espécies exóticas invasoras (como pinos e eucalipto); f) identificação, a partir da concepção de manejo agroflorestal guarani, não só das espécies retiradas, como também do local e da técnica de coleta (que posteriormente teve classificação biológica, traçando paralelos com a taxionomia guarani), e da roça tradicional (coivara), que é a base alimentar, rica em amido (milho, mandioca, batata-doce, amendoim, feijão); g) geração de conhecimento teórico-prático que hoje orienta projetos nas áreas de Etnologia Indígena, Mitologia, Estudos de Linguagem, Ecologia e políticas públicas de educação e saúde. Inicialmente, foram elencadas as necessidades mais urgentes das comunidades, visando à elaboração dos objetivos deste projeto. Para sua execução, foram necessárias a alocação de equipamentos e a designação de alunos/estagiários (graduação e pós-graduação) para orientação e aprendizado durante as seguintes atividades: a) coleta de amostra, análise e correção do solo; b) avaliação da área para introdução das árvores frutíferas, em qualidade, quantidade, distribuição e local apropriados (de acordo com especialistas acadêmicos e os próprios Índios); c) plantio de árvores nativas da região, especificamente araucária, cedro, canela e palmeira, com o acompanhamento constante por parte de monitores Guarani (tendo, como conseqüência, uma perda mínima – menos de 12%); d) reuniões entre alunos/estagiários e os membros da comunidade, visando ao “monitoramento acadêmico” e à avaliação constante da execução do 176 Aldo Litaiff projeto. Com isto, conseguimos alcançar o máximo de aproveitamento e produtividade dos recursos do projeto, bem como dos recursos ambientais das áreas em questão. Sublinhamos que partimos de experiências anteriores igualmente bem-sucedidas, aplicadas em outras comunidades Guarani, como o caso da Terra Indígena de Bracuí (localizada no litoral do Estado do Rio de Janeiro), onde foram implantadas, pela primeira vez, estas mesmas medidas com sucesso: organizamos grupos de trabalho constituídos pelos índios, como foi visto acima, que participaram ativamente no processo de correção do solo, plantio de árvores, acompanhamento do crescimento e recuperação da floresta, sendo esta uma fonte temporária de subsistência para estes Guarani, que foram remunerados, conforme foi previsto no projeto. Através deste projeto, acreditamos ter conseguido minimizar alguns efeitos nefastos, frutos do contato com a sociedade ocidental, procurando, principalmente, evitar interferências paternalistas e assistencialistas. Buscamos, neste sentido, a regeneração do solo e da Mata Atlântica adjacente, a diminuição de doenças entre a população infantil, a queda da mortalidade infantil, a diminuição do alcoolismo e de DST/AIDS (com a auto-sustentabilidade os índios não mais necessitam se ausentar de suas comunidades em busca de emprego sazonal, venda de artesanato etc.) e a diminuição do número de conflitos internos (brigas entre jovens, desavenças conjugais etc.), frutos de problemas relacionados à subsistência. Acreditamos ser esta a forma correta de contribuir para a preservação da cultura e identidade Guarani, de acordo com os dispositivos estabelecidos pelo artigo 231 da Constituição de 1988. Entendemos que este projeto contribuirá na promoção de medidas preventivas ligadas às condições gerais de saúde em seu sentido mais amplo, apoiadas necessariamente em ações intersetoriais, que contemplem a produção de alimentação básica e, principalmente, a posse de “tekoa”, ou seja, a posse de terras adequadas, com solo fértil, água limpa e florestas preservadas. Entendemos que, com este projeto, conseguimos atender a uma reivindicação legítima dos Guarani: condições mínimas de subsistência. Estamos seguros de que, com estas ações, encontramo-nos cada vez mais próximos da solução dos problemas das populações indígenas do Estado de Santa Catarina, sendo este o maior mérito deste projeto, pois sem tekoa não há teko (MELIA, 1990), ou seja, sem terra não existe cultura nem sociedade. 177 Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina 3. Projeto Registro audiovisual da execução do projeto Sem tekoa não há teko Nosso objetivo principal neste projeto foi o de criar um registro audiovisual da execução do projeto Sem tekoa não há teko (também denominado “projeto-base”). Partindo de uma experiência de mais de vinte anos junto às populações guarani do Brasil, solicitamos a presença das lideranças e outros representantes durante o processo de eleição das prioridades do projeto, sendo fundamental na confecção de seus objetivos, passando assim pelas estratégias adotadas para a obtenção do máximo de envolvimento da comunidade, até na redação do relatório final. Os fatos observados em campo foram acompanhados por registro audiovisual, que permitiu uma melhor contextualização do universo sóciocultural em questão. Assim, o material foi gravado e fotografado, conforme os objetivos do projeto e as demandas de campo. Atualmente, o produto deste trabalho é utilizado em cursos e palestras sobre a realidade Guarani, especificamente sobre o manejo dos recursos naturais, dirigidos não só à Unisul, como a outras instituições de ensino. Sublinhamos que através do processo de “monitoramento acadêmico” (atividade que compreende a observação participante e coleta de dados em campo, executada pelos próprios índios, pelo coordenador e alunos), asseguramos o amplo acesso a este conhecimento pelos diferentes setores da instituição proponente, assim como seu efeito multiplicador. Nosso público-alvo foi a comunidade indígena Guarani, outras comunidades indígenas e comunidade regional, pesquisadores, docentes e discentes de diversas áreas do conhecimento. Hoje se reconhece a importância dos recursos audiovisuais utilizados nas Ciências Sociais e da Comunicação, não somente enquanto meios necessários, mas imprescindíveis em disciplinas, como, por exemplo, a antropologia e a sociologia. Nosso interesse aqui foi o de motivar a interdisciplinaridade entre antropologia e meios audiovisuais de comunicação, através da participação dos alunos do curso de Cinema e Vídeo e do PPGCL da Unisul, que poderão criar roteiros, operar câmaras, dirigir e executar todo o processo de documentação visual deste projeto. Acreditamos que a informação visual tem toda a potencialidade heurística, científica e mesmo ontológica de ser considerada documentação de status científico, podendo ser vista como um prolongamento das capacidades sensíveis do investigador, em seu esforço de registrar e estudar eventos do mundo social. 178 Aldo Litaiff Apesar de todo o importante material audiovisual, que vem sendo produzido, constatamos certa resistência dos intelectuais do mundo acadêmico em aceitar nossa metodologia de trabalho mais positivamente, reconhecendo-lhe o caráter científico, pois esta disciplina também se propõe a observar, investigar, descrever e compreender visualmente os fatos humanos. Numa das primeiras e mais interessantes publicações sobre Antropologia Visual, E. Samain e H. Sôlha (in MENESES, C. Cadernos de Antropologia Visual, FUNAI, RJ, 1987) questionam: “[...] tal problemática toma contornos mais claros quando se pergunta sobre as razões de tão parcimoniosa utilização, até hoje, dos filmes etnográficos na formação do futuro antropólogo. O que pensar ainda desta discrição para não dizer desta timidez, com que os mais sensíveis antropólogos ilustram ou complementam visualmente as centenas de páginas monográficas que escrevem?” Os pesquisadores citam como exemplo o trabalho pioneiro que Gregory Bateson e Margaret Mead realizaram na década de 40 (MEAD, M. Principles of Visual Anthropology, Paris: Mouton, 1975), entre os balinenses, utilizando os recursos fotográficos, com o objetivo de pesquisar a cultura desta sociedade. A partir deste e de outros importantes trabalhos, podemos constatar que, tanto o cinema, o vídeo, quanto a fotografia, podem e, até mesmo, devem ser associados à pesquisa antropológica e sociológica. Desta forma, segundo Meneses (idem), estes recursos tornam-se “instrumento de importância capital tanto na educação popular, quanto para a recuperação do passado histórico das populações indígenas”. A autora explica que o cinema, o vídeo e a fotografia podem servir de ponto de partida para as etnias indígenas, por exemplo, no processo político interno, reforçando alianças, estimulando a circulação de informações e possibilitando não só à retomada, mas a “reinvenção da tradição”. Sobre as questões metodológicas, Samain e Sôlha (idem) afirmam, ainda, que há de se reconhecer que a Antropologia Visual tem se ressentido até hoje da falta de discussões mais aprofundadas, relevando os seguintes pontos: a) repensar o conjunto metodológico que a Antropologia nos ofereceu até o momento, face às especificidades que a Antropologia Visual pode também nos proporcionar; b) procurar criar um espaço no trabalho antropológico que permita a experimentação de um “novo fazer”, gerando subsídios necessários à elaboração de metodologias específicas do uso dos multimeios nesse campo; c) tal elaboração não poderá ser desvinculada, pensamos, de uma profundas reflexão sobre a lógica do visual, a qual não pode ser equilibrada de antemão à lógica da escrita e da oralidade. 179 Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina Na busca destas e de outras respostas às questões acima abordadas, propomos, através deste projeto, fomentar a produção acadêmica de audiovisuais de caráter sociológico e antropológico. Acentuamos que o material audiovisual produzido durante este projeto pelos estudantes de graduação do curso de Cinema e Vídeo tem servido aos alunos do PPGCL da Unisul, como ponto de reflexão para suas dissertações e também como referência para futuras pesquisas teóricas sobre o uso científico de audiovisual, com vistas a uma continuidade entre os dois cursos. Além disto, constata-se um significativo efeito multiplicador, fomentado através da divulgação de vídeos e de outros materiais de caráter audiovisual, resultantes do projeto (confecção de catálogo de fotos e exposição das mesmas), em escolas, em outras universidades e em outras aldeias indígenas. Com estas atividades, esperamos sensibilizar o maior número possível de indivíduos quanto à validade e importância do projeto-base. Partindo dos objetivos específicos, foram produzidos: a) roteiros, vídeos e/ou material fotográfico, a título de trabalho de conclusão de disciplina (Antropologia Cultural e da Imagem) ou mesmo como trabalho final de curso (neste caso, Cinema e Vídeo); b) registro audiovisual que servirá de memória da execução das fases do projeto-base Sem tekoa não há teko; c) a partir deste material, comparamos a situação de subsistência das comunidades guarani em questão, anterior e posterior à execução do projeto, o que servirá de ponto de referência para futuros projetos nesta área; d) foi produzido um vídeo de divulgação e propaganda, para brancos e índios, sobre os resultados do projeto e as vantagens de se trabalhar com, por exemplo, agricultura orgânica e reflorestamento, que determinam uma situação econômica, social e política, caracterizadas pela autosustentabilidade. A execução deste projeto obedeceu às seguintes etapas: a) organização da equipe de alunos e técnicos; b) registro visual (vídeo e/ou foto) das atividades de campo (coleta de dados preliminares); c) levantamento do equipamento e material necessários; d) registro visual da implantação dos açudes para a criação de peixes; e) registro visual do processo de correção do solo e irrigação; f) registro visual da compra de mudas de árvores; g) registro visual do processo de plantio de árvores frutíferas; h) registro visual do reflorestamento e manejo da mata nativa; i) organização, análise do material fotográfico produzido, edição e montagem do vídeo; j) confecção de um relatório final e avaliação dos resultados. Sublinhamos, enfim, que o documentário Mbya Guarani, os gerreiros da liberdade, dirigido por Charles Cesconetto, professor do Curso de 180 Aldo Litaiff Comunicação Social da Unisul, cujo roteiro partiu de nossas pesquisas, foi vencedor do primeiro DOC TV, concurso nacional promovido pela TV Cultura, com exibição nacional. 4. Projeto Mitologia Guarani O objetivo principal deste projeto é escrever um livro sobre a relação entre mitologia e práticas dos índios Guarani do litoral de Santa Catarina. O campo mitológico constitui uma importante via para o conhecimento etnográfico. Propomos neste livro uma abordagem sincrônica e diacrônica dos mitos que atualmente circulam entre as comunidades guarani do litoral brasileiro. Utilizaremos os textos de André Thevet (Cosmographie universelle, 1575), que viveu entre os Tupinambás durante o século XVI; os artigos de Leon Cadogan (1949, 1953, 1955 e 1960) que, no inicio do século XX, registrou mitos e costumes dos Guarani-mbya do Paraguai; os trabalhos de Curt Nimuendaju Unkel (1914/1985), que trata das versões chiripa desses mesmos mitos registrados no inico do século XX; e as versões mbya e chiripa que registramos entre os Guarani do litoral. Nosso objetivo é apontar as semelhanças e as diferenças mais significativas entre as versões das principais narrativas míticas dos povos Tupi e Guarani, que apresentam grande semelhança em seus mitos. Os temas abordados no discurso mítico são: a criação da primeira terra e dos primeiros homens; o “Mito do dilúvio”; a criação da segunda terra, incluída no “Mito dos irmãos” ou “Ciclo dos gêmeos”; e o “Mito do fogo”. A partir da classificação proposta por Leon Cadogan (1946 e 1954), os mitos guarani podem ser divididos em dois gêneros: a) os “mitos esotéricos” ou sagrados – sendo que apenas seus fragmentos são cantados na casa de reza durante o ritual de poraei. Essa categoria inclui o Maino’i reko ypy kue e o Ayvu Rapyta, mitos cosmogânicos onde Deus cria seu próprio corpo, o universo, os astros, a terra e os primeiros homens; b) os “mitos exotéricos” ou não-sagrados – os textos não-cantados, dividos em duas categorias: o Mito do dilúvio, o Mito dos irmãos e a conquista do fogo; e as narrativas etno-históricas, histórias antigas e recentes, que tratam, por exemplo, da conquista da América do Sul pelos portugueses e espanhóis, os conflitos armados pelos conquistadores; os deslocamentos de populações mbya e chiripa no litoral brasileiro. Juntam-se a esses as narrativas da situação contemporânea dos Guarani e suas histórias de vida . (abordamos as narrativas etno-históricas num outro trabalho (LITAIFF, 1996)). Ressaltamos que os Mbya diferenciam claramente esses dois tipos de narrativas, ou seja, as míticas e as históricas; entretanto, os nossos 181 Mitologia e auto-sustentabilidade de comunidades Guarani do estado de Santa Catarina informantes guarani utilizam quase sempre as narrativas míticas para confirmar ou explicar os eventos históricos, como por exemplo, “nós estamos aqui no litoral porque a Terra sem mal começa depois do mar, é lá que Kuaray foi morar”, dizem os Mbya. Percebemos então que a distinção entre mitos e narrativas históricas fica mais clara quando perguntamos aos guarani as semelhanças entre os dois tipos de narrativa, “os brancos não dão valor às histórias que não são escritas. É por isso que eles não respeitam o nhande rekoram idjypy [mito], a história da origem de nhande reko, que é como chamamos o nosso sistema. Agora nós não podemos mais misturar estas histórias muito antigas com a história de nossa luta no mundo de hoje”, respondem nossos interlocutores. A diferença entre o mundo mítico e o mundo histórico aparece no discurso mbya, não somente em função da diacronia, mas também pelo valor intrínseco dos fatos narrados. Salientamos que o produto final deste projeto, ou seja, o livro, encontra-se em fase de conclusão, devendo ser publicado durante o primeiro semestre do ano de 2009. Finalmente, entendemos que estes projetos contribuem para um maior conhecimento da sociedade Guarani, assim como na promoção de medidas ligadas às condições gerais, saúde, em seu sentido mais amplo, apoiadas necessariamente em ações intersetoriais, que contemplem, principalmente, a posse de terras adequadas e a conseqüente preservação de sua cultura, garantindo, desta forma, a sobrevivência deste povo. Referências BEGOSSI, A. Ecologia humana: um enfoque das relações homem-ambiente. 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São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1989. 183 A IMAGEM COMO MATRIZ HISTÓRICA DA NAÇÃO MODERNA Antonio Carlos Santos Religião da salvação pela imagem, o cristianismo se viu desprovido no século XIX de sua capacidade de dar um conteúdo espiritual à história. Restou a arte que se tornou a matriz da história: a imagem não projetava mais um futuro homólogo ao passado que ela testemunhava, ela se tornava capaz de produzir um futuro sem precedentes. Nosso século é herdeiro dos românticos que fizeram do artista um profeta e deram à imagem o poder de dar forma à história sob o risco de que esse novo poder esteja a serviço dos totalitarismos. Éric Michaud Imagem e nação são as duas noções que embasam essa pesquisa que procura trabalhar com as imagens da nação construídas no século XIX pela pintura, pela fotografia e pela literatura. Para pensar essas duas noções seria necessário retomar uma discussão que começa no próprio século XIX, sobre a nação, com a conferência que Ernest Renan fez na Sorbonne, no dia 11 de março de 1882, “O que é uma nação?”, até a edição de Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson, cem anos depois, que nos permite fazer uma ligação entre nação e imagem. Da idéia de Renan de que uma nação “é uma alma, um princípio espiritual”, até o conceito de Anderson de “uma comunidade política imaginada” como limitada e soberana, vimos caírem por terra todos os critérios que pareciam naturais para definir esse fenômeno que ganha corpo no século XIX: língua, território, povo, etc. Se uma nação é então uma comunidade imaginada, não é difícil concordar com pesquisadores que concluem que a nação é efeito de ficções narrativas, basta lembrar o livro de Doris Sommer, Ficções fundacionais (2004), que liga a construção das modernas comunidades nacionais na América Latina a romances sentimentais, sobretudo os do século XIX, como Facundo e Amalia (Argentina), Sab (Cuba), Martín Rivas (Chile), El Zarco (México), O Guarani e Iracema (Brasil). Desta maneira, as duas noções, a de imagem A imagem como matriz histórica da nação moderna e a de nação, estão muito próximas e nos permitem ler nas imagens construídas por escritores, pintores e fotógrafos as muitas caras desse país que, para um modernista, como Mário de Andrade, ainda não tinha uma identidade no início do século XX. Gostaria de partir, então, para pensar a idéia de imagem, de uma frase do senso comum: “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Temos aqui um juízo sobre a imagem e as palavras que, por um lado, descreve bem o nosso presente e, por outro, esconde uma relação íntima que existe entre os dois termos, ou seja, entre o visível e o dizível. Descreve nosso presente porque todos parecem apontar nossa contemporaneidade como sendo regida por imagens, a ponto de se dizer que não há mais realidade, mas apenas imagens. A frase indica, ainda, uma comparação valorativa, ou seja, atribui à imagem mais valor do que às palavras; elas seriam mais fiéis na medida em que reproduziriam o mundo lá fora tal como ele é. Vamos tentar logo definir o que seria uma imagem. Hegel, no curso de estética que desenvolveu em Berlim de 1823 a 1829, diz o seguinte: “Obtém-se uma imagem quando se reúnem dois fenômenos ou estados independentes, um dos quais corresponde a uma significação e o outro para tornar mais perceptível tal significação” (HEGEL, 1996 p. 453). Há, portanto, para o filósofo alemão, uma relação entre uma significação e alguma outra coisa que tenta realçar essa significação: seria o caso de pensarmos aqui em imagem de uma maneira mais ampla do que aquela contida na frase do senso comum, pois o que importa para Hegel é uma relação hierárquica entre os dois fenômenos, o segundo ajudando a explicar o primeiro. Poderíamos pensar nas imagens literárias, ou seja, nas imagens dizíveis e não somente visíveis. E o exemplo que Hegel dá é o poema de Goethe “O canto de Maomé”. Seguindo ainda mais um pouco o autor da “Fenomenologia do Espírito”, podemos ver como a imagem [...] pode ter por significação toda uma gama de estados, atividades, produções, modos de existência, e, sem lhes fazer a menor alusão, pode tornar esta significação perceptível pela própria imagem, invocando a analogia que existe entre a esfera a que pertence a imagem e uma outra esfera”. (HEGEL, 1996 p. 454). Temos aqui, portanto, uma definição mais geral de imagem que aponta para a analogia entre dois fenômenos, sendo função do segundo explicar o primeiro e que se distancia de nossa frase do senso comum por aproximar os dois termos (imagens e palavras) separados pelo juízo de 186 Antonio Carlos Santos valor. Vale buscar em outro filósofo uma definição diferente de imagem, uma que tenta dar conta, ou dar fim, a esse caráter binário presente no pensamento hegeliano. Bergson, em Matéria e memória, um livro do final do século XIX, nos convida a esquecer o binarismo tradicional da filosofia, corpo e mente, realidade e idealidade, res cogitans e res extensa, e pensar o mundo como imagens: “Eis-me portanto em presença de imagens, no sentido mais vago em que se possa tomar essa palavra, imagens percebidas quando abro meus sentidos, despercebidas quando os fecho”. (BERGSON, 1990, p. 9). Na leitura que faz das teses de Bergson, Deleuze mostra que elas estabelecem uma igualdade entre imagem, movimento e matéria. O que há são imagens, que agem e reagem sobre outras imagens. E por que essa palavra imagem? Porque, nos diz Deleuze, imagem é aquilo que aparece, ou seja, o que a filosofia chama de fenômeno. Pois bem, essas imagens não são um suporte de ações e reações, mas são, elas mesmas, em todas as suas partes e sob todas as suas faces, ação e reação, ou seja, ação e reação são imagens. Em outras palavras, a imagem é uma vibração e, portanto, movimento. E, como as coisas são imagens e as imagens iguais ao movimento, fica estabelecida a tríplice identidade entre imagem, movimento e matéria. Como podemos ver, a tese de Bergson faz da imagem uma espécie de absoluto na medida em que destrói o dualismo e nos permite pensar o mundo e nós mesmos como imagens. Sabemos que daí Deleuze deduz uma reflexão sobre o cinema, lembrando que Bergson desenvolve suas teses exatamente no momento em que o cinema está sendo criado. Mas deixemos de lado Bergson e Deleuze para introduzir uma outra reflexão sobre a imagem que parte, desta vez, da fotografia. Vilém Flusser, um judeu de Praga de língua alemã, como Franz Kafka, que morou no Brasil de 1939 a 1973, constrói em seu ensaio de 1983, Filosofia da Caixa Preta, um movimento ternário, imagem, escrita e imagem técnica, para pensar a contemporaneidade. Digamos que no princípio era a imagem e a imagem, uma tentativa de representar algo do “mundo lá fora”. Assim, os povos pré-históricos pintavam nas cavernas cenas de suas caçadas, reproduziam os animais com que lutavam em busca de sobrevivência, transformavam o mundo de quatro dimensões em um outro mundo, o da imagem, de apenas duas dimensões. Diríamos, portanto, que a operação que esses homens pré-históricos realizavam era regida por um procedimento de redução: de quatro para as duas dimensões do plano. Chamamos de imaginação exatamente essa capacidade de redimensionar o mundo das quatro dimensões espaço-temporais em duas dimensões planas. 187 A imagem como matriz histórica da nação moderna Para decifrar essas imagens, nosso olhar vagueia sobre a superfície de forma circular: é o tempo do eterno retorno, tempo da magia, diferente do tempo linear com suas causas e efeitos. Essas imagens são, portanto, uma maneira de codificar, de traduzir eventos, acontecimentos do “mundo lá fora”, em cenas, são mediações entre o homem e o mundo, têm o propósito de representar o mundo para um homem incapaz de ter acesso direto a esse mesmo mundo. Em um determinado momento, essas imagens deixam de significar o mundo para tornarem-se, elas mesmas, o mundo, ou seja, deixam de servir como uma mediação entre o homem e o mundo para se tornarem uma barreira: é uma época de crise da imagem, de idolatria. É nessa época, cerca de dois mil anos antes de Cristo, que surgiram pessoas empenhadas em restituir a função original das imagens. Passaram então a “rasgá-las” com o objetivo de abrir ao homem, novamente, a mediação entre elas e o mundo. Mas o método que utilizaram consistia em desfiar as superfícies das imagens em linhas e alinhar os elementos da imagem, transformando o tempo circular em linear, as cenas novamente em processos. Foi assim que apareceu a consciência histórica, consciência dirigida contra as imagens, fato que pode ser observado entre os filósofos pré-socráticos e, sobretudo, entre os profetas judeus. Uma das maneiras de definir a história é dizer que ela é o resultado da luta da escrita linear contra a imagem. Pois bem, a escrita seria, então, essa possibilidade de codificar planos em retas e abstrair todas as dimensões, com exceção de uma: a da conceituação, que permite codificar textos e decifrá-los. É importante lembrar que com esse passo, com essa entrada na era histórica, da escrita linear, o homem se afastou ainda mais do mundo, pois os textos não significam o mundo diretamente, mas o fazem através de imagens rasgadas. Os conceitos não significam diretamente os fenômenos, significam idéias e decifrar textos é descobrir as imagens significadas pelos conceitos. A função dos textos, portanto, é explicar imagens, a dos conceitos é analisar cenas. Ou seja, a escrita é meta-código da imagem. Essa era da escrita linear, da consciência histórica, da tentativa de desmagicizar o pensamento pré-histórico, encontra também seu momento de crise: os textos, que pretendiam fazer uma mediação entre o homem e a imagem, acabam por se tornar opacos, tapando as imagens que representavam: o homem não é mais capaz de decifrar textos, o que o torna também incapaz de reconstituir as imagens abstraídas. O nome dessa crise é textolatria. A crise dos textos implica o naufrágio da história, que é, como dissemos antes, processo de recodificação de imagens em conceitos. História é explicação progressiva de imagens, desmagicização, 188 Antonio Carlos Santos conceituação. Se os textos não mais significam imagens, nada resta a explicar, é o fim da história. Em tal mundo, explicações passam a ser supérfluas: mundo absurdo, mundo da atualidade. Pois é precisamente nesse mundo de crise textual que são inventadas as imagens técnicas. Brevemente, para não levar mais longe esse panorama ternário de Flusser, ironicamente hegeliano, imagens técnicas são imagens produzidas por aparelhos, ou seja, produzidas por algo que é produto da técnica, de texto científico aplicado. Daí sua definição como produtos indiretos de textos – o que dá a essas imagens técnicas uma posição histórica e ontológica diferente das imagens tradicionais. Historicamente, as imagens tradicionais vêm antes dos textos e as imagens técnicas depois de textos altamente evoluídos. Ontologicamente, a imagem tradicional é abstração de primeiro grau: abstrai duas dimensões do fenômeno; a imagem técnica é abstração de terceiro grau: abstrai uma das dimensões da imagem tradicional para resultar em textos (abstração de segundo grau); depois, reconstituem a dimensão abstraída, a fim de resultar novamente em imagem. As imagens tradicionais são pré-históricas; as imagens técnicas, pós-históricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo. Essa posição das imagens técnicas é decisiva para o seu deciframento. Portanto, para Flusser, a relação entre as imagens e as palavras é mais complexa do que a relação de valor estabelecida pela frase do senso comum, pois as imagens técnicas acumulam camadas de sentido dos textos e das imagens tradicionais, estando por isso afastadas da realidade na medida em que é preciso retornar à imagem tradicional para se chegar à mediação entre o homem e o “mundo lá fora”. Se voltarmos agora nossa atenção para as teses de Eric Michaud (2001, p. 41), veremos que essa relação da imagem com o “mundo lá fora” ganha uma outra dimensão. Segundo ele, todas as formas de representação por imagens constroem sua própria realidade por transfiguração. Sua intenção é “reorientar o olhar sobre as imagens de modo que do estatuto de testemunha, elas passem ao de agentes da história”. Fazer das imagens fontes históricas, testemunhas oculares ou espelhos direcionados para aquilo que se passou, e não se reproduzirá jamais, é esquecer a “parte produtiva” da imagem, esquecer que a imagem constrói relações, laços, com os acontecimentos e os corpos que ela re-apresenta, assim como com o homem que virá, ou seja, com o futuro: “É claro que nem para seus financiadores, nem para seus produtores, as imagens se reduzem a simples 189 A imagem como matriz histórica da nação moderna testemunhas do passado: elas serão sempre concebidas como agentes da história”. (idem, p.42). Dessa maneira, as imagens, mesmo as da fotografia, são menos um “processo de figuração do real” do que um “processo de seleção e de interpretação daquilo que ela memoriza”, ou seja, nas palavras de Hanna Arendt, toda seleção de material é uma intervenção na história. Se as imagens, mais do que testemunhas de um passado, produzem um futuro, como lidar com essas imagens tão desvalorizadas pelos modernistas como, por exemplo, as da pintura do século XIX? A condenação da produção do século XIX como “acadêmica” pelos modernistas põe no limbo trabalhos como “Arrufos”, de Belmiro de Almeida, de 1887, ou “Descanso do Modelo”, de Almeida Júnior, 1882, ou ainda “Estudo de Mulher”, de Rodolfo Amoedo, de 1884, pintores que demonstram grande conhecimento dos movimentos de secessão em Paris, onde todos estiveram, passando tanto pela Academia quanto pelos ateliês de professores independentes, assim como despreza a ruptura em relação à pintura dos grandes temas nacionais de Victor Meireles e Pedro Américo, a pintura herdada dos franceses neoclássicos que haviam se tornado hegemônicos durante a época napoleônica, mas que, com a virada política e a restauração na França, tiveram de buscar trabalho em um império distante e sequioso por imagens. É portanto nesse momento exatamente anterior ao modernismo dos anos 10 e 20 de São Paulo, ou seja, na última metade do século XIX e na virada para o XX, que se cruzam as realizações, por exemplo, da literatura naturalista, não apenas Aluísio Azevedo, mas também Adolfo Caminha, Inglês de Sousa, Domingos Olímpio, Manoel de Oliveira Paiva, da pintura realista que destrói as regras do regime representativo ao romper com a hierarquia dos temas e da fotografia que com Revert Henrique Klumb, Christiano Júnior, Augusto Stahl, Juan Gutierrez e Marc Ferrez constrói um arquivo de imagens e de pontos de vista sobre a gente e a cidade do Mundo Novo. Quadros, por exemplo, como “Leitura” (1892), “Moça com livro” e “Repouso”, de Almeida Júnior, em que se destacam a literatura e a mulher como a leitora do romance – vale ressaltar as três formas de feitiço da leitura aí apresentadas: no primeiro, a mulher sentada confortavelmente em uma varanda está imersa no livro, alheia totalmente à natureza e ao ambiente que a cerca; na segunda, a moça deitada na relva tem a mão esquerda nas páginas do livro, enquanto a direita segura o queixo, mantendo a cabeça e os olhos fixos, ou melhor, perdidos, em algo distante; no terceiro, ela aparece totalmente entregue ao olhar do espectador, recostada em um sofá sob a janela, o braço esquerdo levantado apoiando a cabeça e o direito caído, ainda com o livro à mão, recém-adormecida, provavelmente embalada pela história lida – se 190 Antonio Carlos Santos vistos em contraste com as grandes batalhas e os feitos heróicos ou mesmo com as cenas indianistas bem a gosto dos românticos apontam certamente para uma nova direção e constroem imagens distintas da nação. As cenas de leitura, assim como as de interior burguês como em “Depois da Festa” (1886), “Cena de família de Adolfo Augusto Pinto” (1891), ou dos lugares da arte, como em “Ateliê de Paris” (1880), “Descanso do modelo” (1882), “O modelo” (1897), “O importuno” (1898), ou ainda do campo, como em “Caipira picando fumo” (1893), “O violeiro” (1899) ou “O derrubador brasileiro” (1879), todos quadros de Almeida Júnior, dão conta de uma nova situação da arte – e, claro, de uma nova situação social –, com a exploração de novos temas, um outro uso das cores e do desenho, e com a invasão das telas por personagens comuns, as mulheres burguesas pensativas, o trabalhador em ação, o interior da casa burguesa como lugar de descanso íntimo, de construção do eu, o campo do caipira como contraposição à cidade grande e os lugares de trabalho, entre eles esse lugar da arte, o ateliê do artista. Aqui acontece aquilo que Jacques Rancière (2005) teoriza como a passagem do regime representativo ou poético para o regime estético, ou seja, este momento em que as regras estabelecidas pelas poéticas, baseadas no par mímesis/poiésis, dão lugar a uma outra lógica que, no realismo literário, fica clara com o rompimento, por exemplo, do privilégio das ações sobre os caracteres, ou da narração sobre a descrição. Ao recusar a noção de modernidade por ser ela “o conceito que se empenha em ocultar a especificidade desse regime das artes” (idem p. 34), referindo-se ao regime estético, Rancière afirma que a ruptura entre o “antigo” e o “moderno” não está na passagem da figuração à não-figuração, ou do representativo ao anti-representativo, mas sim no realismo que, segundo ele, “não significa de modo algum a valorização da semelhança, mas a destruição dos limites dentro dos quais ela funcionava”. (idem p. 35). A idéia é mostrar como a discussão sobre as artes no mundo contemporâneo está viciada por um parti pris, já que a noção de modernidade estética “recobre, sem lhe atribuir um conceito, a singularidade de um regime particular das artes, isto é, um tipo específico de ligação entre modos de produção das obras ou das práticas, formas de visibilidade dessas práticas e modos de conceituação destas ou daquelas”. (idem p. 27). É para contestar essa noção, assim como a de vanguarda, que o teórico francês propõe três grandes regimes de identificação para as artes: o regime ético das imagens, momento em que a arte se encontra subsumida na questão geral das imagens, e a referência é Platão; o regime poético ou representativo, cuja referência é Aristóteles, e que está delimitado pelo par mímesis/poiésis, sendo a mímesis não um princípio normativo que regula 191 A imagem como matriz histórica da nação moderna um domínio de semelhança entre cópias e modelos e sim “um princípio pragmático que isola, no domínio geral das artes (das maneiras de fazer), certas artes particulares que executam coisas específicas, a saber, imitações”; e, finalmente, um regime estético, ou seja, aquele em que a arte se torna singular, desobrigada de qualquer regra específica, da hierarquia de temas, gêneros e artes. Para encurtar a exposição, Rancière afirma então que aquilo que se costuma chamar de pós-modernismo é apenas a consciência do fim de um determinado paradigma, qual seja, “a tentativa desesperada de fundar um ‘próprio da arte’ atando-o a uma teleologia simples da evolução e da ruptura históricas”. (idem p. 41). O próximo passo de Rancière é mostrar que se o regime estético se define exatamente como a “ruína do sistema da representação”, ou seja, dos valores e normas que regiam as artes desde Aristóteles até o início do século XIX, é nele que a literatura torna possível, por exemplo, a fotografia, contestando assim as teses dos teóricos que viam na singularidade da máquina (fotográfica ou cinematográfica) a mágica dessas novas artes técnicas. O realismo literário prefigura a fotografia na medida em que rompe com a hierarquia dos temas e dos gêneros e passa a focalizar o homem comum, permitindo assim que o detalhe possa revelar o todo: Que uma época e uma sociedade possam ser lidas nos traços, vestimentas ou gestos de um indivíduo qualquer (Balzac), que o esgoto seja revelador de uma civilização (Hugo), que a filha do fazendeiro e a mulher do banqueiro sejam capturadas pela mesma potência do estilo como ‘maneira absoluta de ver as coisas’ (Flaubert), todas essas formas de anulação ou de subversão da oposição do alto e do baixo não apenas precedem os poderes da reprodução mecânica. Eles tornam possível que esta seja mais do que a reprodução mecânica. (RANCIÈRE, 2005, p. 47). A mesma idéia podemos encontrar nas reflexões de Susan Sontag sobre a fotografia, mais especificamente no ensaio Photography Unlimited, publicado em junho de 1977, no New York Review of Books, e, posteriormente, incluído em livro. Neste ensaio, a crítica norte-americana, depois de comentar o “pavor vago” que Balzac tinha em relação à fotografia, afirma que “o processo da fotografia é, por assim dizer, uma materialização do que havia de mais original em seu método de romancista”. (SONTAG, 2004, p. 175). E como era o método de Balzac? Ele consistia na focalização e ampliação de detalhes de maneira que todo um universo poderia ser revelado através de um pequeno ponto. Em nota, 192 Antonio Carlos Santos Sontag remete essa idéia a Erich Auerbach e sua leitura de Père Goriot em Mímesis. Ao descrever a dona da pensão, Madame Vauquer, na abertura da narrativa, Balzac, segundo Auerbach, tem como procedimento a analogia entre ela e o meio, o espaço. Por isso, a leitura do saiote de Madame Vauquer é um resumo de todo o ambiente da pensão: “Este saiote torna-se, por um instante, o símbolo do meio, e depois o conjunto todo é resumido na frase: Quand elle est là, ce spectacle est complet; não é necessário esperar o café da manhã e os hóspedes; tudo isso já está incluído na sua pessoa”. (AUERBACH, 2004, p. 421). Se, como postula Jacques Rancière, o realismo não é de maneira nenhuma a valorização da semelhança, “mas a destruição dos limites dentro dos quais ela funcionava”, “a subversão das hierarquias da representação” e “a adoção de um modo de focalização fragmentada, ou próxima, que impõe a presença bruta em detrimento dos encadeamentos racionais” (2005, p. 5), é com os quadros de Almeida Júnior, Belmiro de Almeida ou Rodolfo Amoedo, para citar apenas alguns, ou com romances como O missionário (1891), de Inglês de Sousa, A carne (1888), de Júlio Ribeiro, ou LuziaHomem (1903), de Domingos Olímpio, que se percebe uma lógica, “um sistema de formas a priori determinando o que se dá a sentir”, aquilo que Rancière chama de regime estético das artes, “aquele que identifica a arte no singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica” (2005, p.33). A arte realista, recusada pelo ponto de vista das vanguardas históricas e acusada de mimética, ganha assim potência de modo, por exemplo, a aparecer como prefiguração ou como aquela que instaura as condições de possibilidade da fotografia e do cinema, ao fazer do detalhe um acesso ao todo, como Balzac em Père Goriot, e ao abrir espaço à exploração do homem comum, esse mesmo que já começara a surgir aceleradamente, por exemplo, mas ainda fantasmaticamente devido aos limites técnicos, na fotografia de Revert Henrique Klumb, um alemão que chega ao Brasil em 1852 e produz mais de duzentas vistas estereoscópicas da cidade do Rio entre 1855 e 1862, e do escravo, objeto das lentes do também alemão Augusto Stahl, que passa pelo Recife antes de chegar à corte, e do açoriano Christiano Júnior, que trabalha em Maceió, onde chega em 1855, no Rio, em Florianópolis, no Uruguai e na Argentina (de 1867 aos anos 80) e morre quase cego em Assunção do Paraguai, em 1902. O escravo, ou ex-escravo, aliás, é personagem raro nas pinturas da época realista apesar de todo o debate em torno da abolição, ao contrário do que se vê no trabalho dos desenhistas e pintores estrangeiros (Debret, por exemplo, ou Rugendas ou ainda Taunay) que “documentam” algumas décadas antes os costumes, a paisagem e a gente desse mundo recém-aberto 193 A imagem como matriz histórica da nação moderna aos olhares europeus. Interessante observar uma certa distribuição de temas entre essas artes visuais, o desenho, a pintura e a fotografia, por exemplo, que seguem determinadas regras ou convenções de acordo com sua função em uma expedição naturalista ou em uma academia de belas artes (pintura histórica, de paisagem, retratos), estrutura que será também desorganizada ao longo da segunda metade do século XIX pelos movimentos de secessão dos artistas independentes com a autonomização da arte no regime estético, regime que dá conta da situação da arte em uma sociedade capitalista burguesa. Questão crucial no debate das artes, a questão do realismo aparece como problema nos trabalhos de muitos pesquisadores. Em seu ensaio “Narrar ou descrever”, de 1936 (1965, p. 43), ao comparar um trecho de Ana Karenina, de Tolstoi, a corrida de cavalos, a outro de Naná, de Zola, também uma corrida de cavalos, Lukács reprova este último por ser uma “digressão dentro do conjunto do romance”, acontecimentos que poderiam “facilmente ser suprimidos” e estabelece a partir daí uma série de oposições hierárquicas: arte épica X descrição por imagens, necessidade X casualidade, viver, ou participar, X observar; de um lado estão Tolstoi, Walter Scott, Balzac; de outro, Zola, Flaubert, os Goncourt. Em sua análise, Lukács formula a questão: “o que nos importa é saber como e por que a descrição – que originalmente era um entre os muitos meios empregados na criação artística (e, por certo, um meio subalterno) – chegou a se tornar o princípio fundamental da composição”. O que ele não pode ver é que esse “meio subalterno” é exatamente aquilo que rompe com as regras das poéticas que determinam a supremacia das ações sobre a descrição, instaurando um outro momento, um outro regime. De certa forma, aliás, ele vê, mas como decadência, como resultado da divisão capitalista do trabalho que profissionaliza o escritor e faz do livro mercadoria. “A narração distingue e ordena. A descrição nivela todas as coisas”, afirma, apontando para o fim das hierarquias de temas e gêneros e para a entrada das massas e do homem comum, pois distinguir e ordenar é estabelecer as diferenças de valores da biblioteca, contra a homogeneidade horizontal do arquivo. O que Lukács censura em Zola, este censura em Gautier, ou seja, a descrição pela descrição. Para o autor de Naná, não se trata de descrever o mundo em um belo estilo, mas sim de promover um “estudo exato do meio, na constatação dos estados do mundo exterior que correspondem aos estados interiores das personagens” (ZOLA, 1995, p. 44), ou seja, trabalhar no mesmo sentido em que trabalhava Balzac, segundo a análise de Auerbach. A cegueira de Zola está em se situar no “ponto de vista científico”, enquanto, para ele, Gautier permanece um “pintor”. De alguma forma, Zola deseja se afastar dos 194 Antonio Carlos Santos modelos anteriores, fundar um novo estilo que rejeita as “belas letras” e as “belas-artes” conformadas pelas poéticas, e por isso se aferra à ciência, uma espécie de “doença” do final do século, basta lembrar que é neste final de século que a ciência constrói as teorias racistas que sustentam e “explicam” a superioridade do homem branco europeu que, assim, poderia escravizar sem culpa cristã as outras etnias do planeta. São esses “meios subalternos” a que se refere o teórico húngaro que chamam a atenção de Roland Barthes, em seu famoso ensaio de 1968 “O efeito de real” (1988, p.158), aqueles “pormenores ‘supérfluos’” que a análise estrutural desprezava. Barthes percebe que a singularidade da descrição, que “não se justifica por nenhuma finalidade de ação ou de comunicação” (1968, p. 160), “designa uma questão da maior importância para a análise estrutural da narrativa” (idem) e o que ele busca é a “significação dessa insignificância”. E essa significação é o aceno que esses significantes fazem como a dizer “nós somos o real”. Barthes, no entanto, não deixa de apontar a diferença entre “esse novo verossímil” e o antigo: “esse novo verossímil é muito diferente do antigo, pois não é nem o respeito das ‘leis do gênero’, nem sequer a sua máscara, mas procede da intenção de alterar a natureza tripartida do signo para fazer da notação o simples encontro de um objeto e de sua expressão”. (1968, p. 165) A tentativa de compreender esse aspecto colado ao referente do signo “realista” reaparece na leitura que Barthes faz da fotografia em A câmara clara (1984), na medida em que afirma seu caráter indicial, materializado na expressão ça a été que dá conta de um corpo que efetivamente esteve lá diante câmera. Ironicamente, Rancière afirma ser pouco provável que o autor das Mitologias acreditasse que a fotografia fosse uma emanação direta do corpo exposto: É mais verossímil que este mito lhe tenha servido para expiar o pecado do mitólogo de antes: o de ter querido destituir do mundo visível seus artifícios, de ter transformado seus espetáculos e seu prazeres em um grande tecido de sintomas e em um comércio suspeito de signos. O semiólogo se arrepende de ter passado uma boa parte de sua vida a dizer: Atenção! Isso que vocês tomam por uma evidência visível é de fato uma mensagem secreta pela qual uma sociedade ou um poder se legitima ao se naturalizar, ao se fundar na evidência sem frase do visível. Ele torce o sinal para o outro sentido valorizando, a título de punctum, a evidência sem frase da fotografia para rejeitar na platitude do studium a maneira de decifrar as mensagens. (RANCIÈRE, 2003, p. 18). 195 A imagem como matriz histórica da nação moderna Já em La fable cinématographique (2001), Rancière contesta a idéia de que as imagens técnicas, no caso o cinema, tenham seu valor na especificidade desse aparelho que faz de conta que não faz mediação entre a imagem e o “mundo lá fora”. A fábula dessa relação direta com a vida, a crença de que o aparelho registra as coisas do mundo tal como as vê o olho humano, é apenas um dado que inscreve o cinema em um determinado regime das artes, o regime estético. Pensar a questão da nação e da imagem passa, portanto, por rever os conceitos de realismo e a produção do século XIX de modo a perceber como se passa de uma “fábrica de imagens” controlada pelo Estado, a Academia Imperial fundada pelos franceses contratados por D. Pedro II, ou dos romances românticos que alegorizam a nação através do casamento de brancos com nativos, para uma arte que tematiza a burguesia, sua vida nos interiores da cidade grande, as mulheres leitoras, os retratos dos novos empreendedores, etc. Se, como afirma Éric Michaud, as imagens produzem a realidade e não apenas são o testemhunho delas, que realidade é essa que as imagens do século XIX constroem da nação? Que futuro é esse que a arte produz para o Brasil? Referências ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. AUERBACH, E. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. 5. Ed. 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O poeta Manuel de Barros, em seu livro Exercícios de ser criança (1999), desenha a cena poética de um menino a carregar água na peneira, que faz peraltagens e despropósitos com as palavras e recebe, sob o olhar terno da mãe, o vaticínio: “– Meu filho você vai ser poeta, você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos”. Pareceme ser esta uma das descrições metafóricas mais sensíveis sobre o exercício da escrita, o exercício da escrita de ficção, o exercício de ser ficcionista: carregar água na peneira!!! Outra imagem retomada pelo mesmo poeta, e que compartilho neste texto, é a de “escovar palavras”. Isto mesmo: “escovar palavras”! Em Memórias inventadas: a infância (2003), ele descreve a profissão dos arqueólogos e o seu ofício de escovar ossos, imagem que o levou, muito cedo, a crer que gostaria de escovar palavras, para delas escutar os primeiros sons. Gostaria de segurar entre as mãos, como se uma fotografia fossem, estas duas imagens: um menino a carregar água na peneira e a escovar palavras para iniciar este diálogo, esta partilha sobre a literatura para infância e juventude, não só no que diz respeito a sua escrita, mas também a sua leitura: exercícios de carregar água na peneira e escovar palavras. Ao refletir sobre a literatura destinada às crianças e aos jovens, é necessário destacar, de imediato, a relação triádica que a compõe (AZEVEDO, 2006), pois o diálogo entre esses leitores e o texto ocorre de forma indireta/assimétrica, entrevendo um terceiro personagem, sendo ele, muitas vezes, o leitor primeiro do texto literário: o adulto. A ambivalência da literatura de recepção infantil reside, como destaca a pesquisadora israelita Zohar Shavit (2003), na simultaneidade de dois distintos tipos de leitores-modelos: um leitor-modelo criança e um A literatura de recepção infantil e juvenil... leitor-modelo adulto, sendo que, se sobre o primeiro recai a idéia de inexperiência acerca dos dispositivos de construção do texto literário, sobre o segundo recai a imagem de experiência e, por isso, a sua função de mediador. Outro dado que se entrelaça o segundo ao primeiro é o da produção escrita, já que é também o adulto que escreve o texto que a criança lerá, ressalvadas poucas exceções. Produto cultural historicamente marcado pelo próprio conceito de infância, a literatura infantil ganha vida concreta no século XVIII, quando a família burguesa caminha para uma consolidação daquilo que se cunhou de sentimento de infância (ARIÈS, 1981). A criança torna-se um ser diferente do adulto, com características próprias, necessitando de orientações para se (a)firmar nesse novo jogo de forças em que o tom monológico e monocárdio do adulto prevalece e sobrepõe-se à voz do outro – a criança. Assim, entende-se que a literatura destinada à infância, em seu nascedouro, está vinculada à pedagogia, pois esta foi solicitada a ser seu instrumento, transmitindo valores e normas sociais, sendo negado o reconhecimento do seu valor estético. Sobre esse aspecto, Regina Zilberman (2003, p. 46) aponta a duplicidade da natureza da Literatura Infantil: [...] de um lado, percebida da óptica do adulto, desvela-se sua participação no processo de dominação do jovem, assumindo um caráter pedagógico, por transmitir normas e envolver-se com sua formação moral; de outro, quando se compromete com o interesse da criança, transforma-se num meio de acesso ao real, na medida em que facilita a ordenação de experiências existenciais, pelo conhecimento de histórias, e a expansão de seu domínio lingüístico. Nesse sentido, sobre a literatura infantil pesa certa indefinição conceitual. As críticas convergem, sobretudo, para duas questões: de uma parte, a questão recai sobre a especificidade de seu leitor – a criança; de outra, a sua vinculação umbilical com a instituição escolar, denunciada como uma produção didática e doutrinadora, sem preocupação estética. Os dois fatores estão interligados e colaboram para a conceituação pejorativa e o marginalato desse gênero. Vejamos o que alguns estudiosos apontam sobre essa construção discursiva. 200 Eliane Santana Dias Debus Regina Zilberman (1987, p. 85) destaca que a relação desse gênero com seu destinatário é mais aguda, na medida em que “a sedução de dominação própria à linguagem narrativa pode se converter em inclinação adultocêntrica e deixar transparecer a índole educativa”. Na maioria das vezes, a supremacia do adulto prevalece, ao construir seu discurso literário “para” ou “sobre” a criança e não “com” a criança. Para Marisa Lajolo (1994), o questionamento sobre o fazer literário está no significado mais amplo do texto, sendo que, para tanto, não se deve centrar a análise em cima “do que o texto diz”, mas sim na forma “como o texto diz o que diz”. Adentra-se, então, no campo da variabilidade histórica, visto que a produção literária é uma comunicação histórica, localizada no tempo e no espaço. No caso da literatura infantil, estará vinculada à visão histórica da infância. Acredita-se que, até a década de 1970, ressalvas feitas a Monteiro Lobato, a literatura destinada ao público infantil e juvenil, no Brasil, era constituída de textos que falavam “para” o leitor, com orientações e posturas formalizadas “sobre” a criança. O tratamento dado à linguagem, o respeito à criança e a tentativa de diálogo “com” a criança é que fazem surgir um novo discurso. Edmir Perrotti faz uma distinção desses dois discursos: um de caráter utilitário, vinculado aos padrões moralizantes e pedagógicos; e outro de caráter estético, capaz de despertar o leitor para o prazer do texto. Esse autor, no entanto, aponta o perigo de um utilitarismo às avessas, surgido nos anos de 1970 que, pretendendo romper com a tradição do gênero, acaba colocando, de forma implícita, os padrões discursivos tradicionais. “O recurso utilizado é, então, a manipulação dos registros (narrativa/discurso), criando no leitor a ilusão de que não se trata de um ensinamento, até o final, quando este já está dado e o jogo pode explicitarse”. (PERROTTI, 1986, p.125). Na apresentação do livro Literatura infantil: autoritarismo e emancipação (1987), Regina Zilberman e Ligia Cadermatori Magalhães apontam a relação que se pode estabelecer entre livro e destinatário, desde a reprodução de um modelo autoritário da sociedade, impondo normas e submetendo o leitor ao seu cumprimento, até a um modelo emancipatório, que rompe com a submissão, convertendo o leitor à criticidade da sociedade em que está inserido. Nelly Novaes Coelho (2003) distingue dois tipos de discursos: o tradicional e o contemporâneo, levantando, por meio da temática e das peculiaridades, os valores tradicionais e os valores novos que fazem diferir 201 A literatura de recepção infantil e juvenil... a produção para crianças e jovens de ontem e de hoje. Em outro momento, ela aponta as características estilísticas e estruturais que diferenciam esses dois tipos discursivos. Ana Mariza Filipouski (1988), analisando textos publicados a partir da década de 1970, avalia a “incorporação de técnicas e modelos literariamente inovadores” e delineia uma tipologia das narrativas, sob a ótica da apresentação do narrador, seguindo os estudos de M. Bakhtin, diferenciando as narrativas – monológica, quase monológica e dialógica -, e estabelecendo uma tipologia da leitura: pragmática, quase pragmática e ficcional. Analisando o exposto, não creio que possamos vislumbrar uma linha de demarcação na qual o discurso tradicional do gênero tenha sido suplantado pelo discurso contemporâneo; esses discursos se interpenetram e convivem lado a lado. A visão de dois discursos existe, mas não afiança a morte do velho para o nascimento do novo. Um dos fatos relevantes para essa convivência quase pacífica dá-se, provavelmente, pela forma como é distribuído e difundido o gênero, via mercado editorial, que explora o filão com unhas e dentes. 2. Por onde caminham, no Brasil, as pesquisas sobre a literatura de recepção infantil e juvenil Se a produção literária destinada à criança e aos jovens, no Brasil é recente, já que os primeiros títulos datam do final do século XIX, os estudos sistematizados sobre essa produção o são mais ainda. Basta lembrar que essa sistematização só se dá no final da década de 1960, com as primeiras inserções da literatura infantil como disciplina optativa no currículo de formação dos professores nos cursos de graduação. Maria Antonieta Cunha (1997) destaca que, quando realizou sua primeira experiência, na Universidade de Mina Gerais (UFMG, 1969), enfrentou várias dificuldades, em especial o pré-conceito. A história da literatura infantil brasileira recebeu maior atenção a partir de 1980. Embora alguns trabalhos, como o de Bárbara Vasconcelos de Carvalho (1961) e de Leonardo Arroyo (1968), tenham se antecipado a esse período, somente em 1984 surge um livro que aborda a história desse gênero, de forma mais sistemática, pelas mãos de Regina Zilberman e Marisa Lajolo: Literatura infantil brasileira: história & histórias. 202 Eliane Santana Dias Debus Esse livro cumpre a sua função iniciática de reconstituir a história da literatura infantil no Brasil, desde as primeiras obras adaptadas, que datam das últimas décadas do século XIX, até 1983, com os contos de Marina Colasanti. Zilberman e Lajolo constroem seu discurso no contexto mais amplo da literatura brasileira (panorama histórico, político, social e cultural), sem deixar de apontar as especificidades da literatura para crianças, proporcionando uma nova credibilidade aos estudos sobre esse gênero. Outra produção de fôlego, embora não se denomine, nem se queira constituir como uma história do gênero, mas que se torna referência ao trazer da forma mais abrangente possível a produção literária para crianças, publicada no Brasil, é o Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil, de Nelly Novaes Coelho (1995). Trata-se de uma pesquisa que alarga a visão sobre os livros para crianças produzidos entre os anos de 1808 e 1990 e seus respectivos autores, tendo Monteiro Lobato como marco divisório da obra, que está estruturada em duas partes: “I. Os Precursores – Período Prélobatiano (1808-1920) e II. A Literatura Infantil/Juvenil Moderna e Pósmoderna – período lobatiano e pós-lobatiano (1920-1990)”. O dicionário é composto de 784 verbetes que enumeram os escritores; na primeira parte a autora elenca 50 escritores e na segunda parte 734. O crescente interesse de pesquisadores pela literatura infantil e juvenil contribuiu para uma extensa publicação na área, quer seja em forma de livro, quer seja em outros meios de publicação impressa (dissertações, teses, revistas, boletins etc.). Os avanços tecnológicos também contribuíram para a disseminação das pesquisas realizadas em diferentes países. Por meio da Internet, torna-se possível o acesso rápido a revistas eletrônicas, sites de núcleos e grupos de pesquisas, bem como blogs de diferentes instituições. Em documento produzido no início da década de 1990, a pesquisadora Nadia Glotlib (apud HOLLANDA, 1994) avaliava os principais grupos emergentes nos estudos teóricos, na área de Letras: a literatura feita por mulheres; a literatura africana; a literatura popular (oral e de cordel); e a literatura infanto-juvenil. A partir desses dados, Heloísa Buarque de Hollanda (1994) aponta os traços comuns dessas narrativas e sua emergência, como resultado de novos paradigmas: São aquelas que até pouco tempo foram identificadas como áreas marginais, não consideradas, ou quase não consideradas, legítimas pela historiografia canônica e cujos 203 A literatura de recepção infantil e juvenil... produtos foram tradicionalmente definidos como gêneros ‘menores’ na medida em que se apoiavam em literaturas orais, correspondência, narrativas populares, cuja ‘qualidade’ era sistematicamente posta em questão pela crítica literária. (HOLLANDA, 1994, p. 453). Quase que regras implícitas nos trabalhos de caráter teórico sobre a literatura de recepção infantil eram/são a justificativa do estudo e os méritos do gênero, como se fosse necessário marcar terreno e deixar claro que este era/é um discurso válido para os estudos literários. Literatura infantil não é um gênero menor! O questionamento sobre a validade de um discurso afirmativo também foi debatido em plenária em três eventos recentes: Congresso Internacional de Leitura e Literatura Infantil e Juvenil (PUCRS – 11 a 13 de junho de 2008); no V Encontro de Literatura Infantil e Juvenil (UFRJ – 8 a 10 de julho de 2008); e no Simpósio A narrativa ficcional para crianças e jovens e as representações literárias de prática de leitura (XI ABRALIC, USP – 13 a 17 de julho de 2008). As mudanças gradativas nos estudos literários são resultantes de novos paradigmas construídos socialmente. Refletir sobre um produto cultural destinado à infância é exigir qualidade no que é produzido, é validar o papel estético da palavra e a sua contribuição para uma sensibilidade leitora. Estudar a literatura infantil implica lidar com uma produção cultural marcada historicamente pelo conceito de infância. Assim, esse produto literário traz de modo mais contundente a imagem que o emissorescritor (adulto) tem de seu leitor-receptor (criança). No entanto, não seria possível exercitar nosso olhar para o outro lado dessa comunicação e vermos como o leitor se vê nessa construção fictícia? Ou melhor, seria “realizável” refletir sobre a literatura infantil construída/lida pelo olhar do seu leitor? Embora saibamos que, contemporaneamente, a prática de registro das leituras está, na maioria das vezes, vinculada a tarefas escolares (fichas de leitura – perguntas avaliativas e sem significado subjetivo, já que nãomensurável), acreditamos que o depoimento do leitor é um dos caminhos viáveis para entendermos um pouco da especificidade e da história dessa literatura. Assim, uma das possibilidades de análise seria a correspondência entre escritor e leitor, uma prática que vem se consolidando e que traz, nem sempre, é claro, as marcas da espontaneidade, deixando antever práticas leitoras. 204 Eliane Santana Dias Debus Em 1996, na dissertação de mestrado (Entre vozes e leituras: a recepção da literatura infantil e juvenil – UFSC), o testemunho dos leitores por meio de cartas à escritora catarinense Maria de Lourdes Krieger possibilitou verificar como se efetiva a comunicação entre autor, texto e leitor. As cartas (1979-1994) traziam os depoimentos sobre o ato da leitura e suas implicações, respondendo, de certa forma, a algumas inquietações relativas ao processo de recepção. Em janeiro de 2001, trazíamos novamente a público, em forma de tese de doutorado, uma pesquisa que focalizava a voz do leitor, agora pela recepção da literatura infantil de Monteiro Lobato nas décadas de 20, 30 e 40 do século XX, através da sua relação sui generis com o leitor: as cartas (DEBUS, 2004). O diálogo concreto entre o escritor Monteiro Lobato (1882-1948) e seus leitores evidencia o papel da sua literatura na formação literária dessa geração de leitores e o efeito de tal relação nas narrativas do escritor. Percebe-se que as narrativas de Monteiro Lobato acabaram se distanciando e se destacando da literatura infantil que circulava no país, nas décadas de 20, 30 e 40 do século XX, pela sua compreensão do leitorcriança, que deixava de ter um papel passivo e assumia-se como interlocutor ativo no ato da leitura. E a figura imaginária do leitor, tecida nas entrelinhas do texto, acabava por dialogar com o leitor concreto pelo registro epistolográfico. É importante destacar que a literatura infantil e juvenil obedece a critérios esteticamente literários. Como afirma Antonio Candido, “o subsolo da arte é um só” ou, ainda, nas palavras de Cecília Meireles, “tudo é uma arte só”. Assim sendo, as reflexões sobre essa produção, contemporaneamente, tem ganhado fôlego e são muitos os vieses de pesquisas que tentam abarcar a sua produção, circulação e consumo. 3. Onde se apresentam as perspectivas de pesquisa docente Atualmente, como membro integrante do Grupo de Pesquisa Estudo da estética das linguagens verbais e não-verbais, inserido na linha de pesquisa Linguagens e processos culturais, do Programa de PósGraduação em Ciências da Linguagem, tenho como Projeto integrador “A Literatura de recepção infantil e juvenil: reflexões sobre os caminhos de sua produção, circulação e consumo”, que tem como fim contemplar a literatura de recepção infantil e juvenil, a partir da investigação do sistema de sua produção, circulação e consumo. Esses três eixos levam em conta: 1) 205 A literatura de recepção infantil e juvenil... os escritores, seu processo de construção escrita e as características dessa, os aspectos físicos constitutivos do objeto livro (tipo de papel, suporte, cores etc), bem como os da fabricação (ilustração, edição, revisão etc); 2) as instâncias mediadoras do livro e da leitura, entre elas, escola, livrarias, feiras, bibliotecas; e 3) a criança e o jovem como público-leitor: suas preferências, desejos leitores, modalidades de leitura. Acredito que, a partir desse enfoque, possam ser trilhados alargados caminhos norteados pelos seguintes objetivos: a) analisar a produção literária para crianças e jovens nos diferentes gêneros e suportes; b) investigar os espaços formais e não-formais de educação, em que a literatura infantil e juvenil circula; c) verificar a recepção do público-leitor diante de determinada obra. Esse leque amplo possibilita desenvolver vários olhares sobre a produção literária para crianças, em especial apreço pelos títulos voltados às crianças de 0 a 10 anos, e como essa literatura circula nos espaços sociais. Atuando como docente no curso de Pedagogia, percebo que o (des)conhecimento provoca resultados duradouros na formação leitora das crianças que conviverão com esses futuros professores. Entrelaçando as atividades de ensino, pesquisa e extensão, pretende-se criar uma trama que subsidie a formação acadêmica e contribua para a formação continuada dos professores em serviço. Do conjunto de atividades a serem realizadas, pode-se destacar a construção de um site de literatura infantil e juvenil, para divulgação dos trabalhos dos alunos de graduação, concretizados na disciplina de Literatura Infantil; dos alunos de iniciação científica, e dos Trabalhos de Conclusão de Curso de graduação, bem como os de PósGraduação. O aporte teórico que dá subsídio a essas pesquisas centra-se nos da teoria literária: na estética da recepção para a compreensão das expectativas e horizontes de leitura, na sociologia da leitura e nos estudos culturais. Para além dos projetos de pesquisa a serem desenvolvidos junto ao programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL), efetivamente, tenho realizado, nos últimos três anos, pesquisas que levam em conta a tematização da cultura africana e afro-brasileira na literatura de recepção infantil e juvenil: “A representação do negro na literatura brasileira para crianças e jovens: negação ou construção de uma 206 Eliane Santana Dias Debus identidade?” (PUIP-2006) e “As histórias de lá para leitores daqui: os (re) contos africanos para crianças pelas mãos de escritores brasileiros” (PUIP, 2007). Na primeira pesquisa, mapeamos a produção literária a partir de sete catálogos de casas editoriais (Ática, Companhia das Letrinhas, DCL, FTD, Paulinas, Salamandra e Scipione/2005), verificando-se que a representação de personagens negras na literatura infantil, embora tenha ganhado, nos últimos anos, mais espaço nas editoras, ainda ocupa um lugar muito pequeno, em relação ao total de títulos. Do total de 1.785 títulos levantados, 79 títulos trazem personagens negras e, das editoras levantadas, as que mais têm se dedicado sobre a temática é a DCL e a Paulinas. Os escritores Rogério Andrade Barbosa, Joel Rufino dos Santos, Júlio Emílio Brás e as escritoras Georgina Martins e Heloisa Prieto são os que têm mais títulos dedicados ao tema. A segunda pesquisa teve como foco de análise os títulos de literatura infantil de Rogério Andrade Barbosa, Joel Rufino dos Santos e Júlio Emílio Braz, autores que (re)contam narrativas da literatura oral africana e das literaturas afro-brasileiras. Nela avaliou-se a importância dessas narrativas para a construção de uma identidade étnica, apresentandose estratégias de intervenção a partir de propostas didático-pedagógicas a serem utilizadas no espaço escolar. A emergência dessas pesquisas resulta da necessidade de visitar o mercado editorial, para entender de que modo ele tem se comprometido com a publicação de títulos que tematizam a cultura africana e afrobrasileira, observando as exigências legais da Lei nº 10.639/03-MEC, alterada em 10 de março de 2008, pela Lei nº 11.645, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura AfroBrasileira e Indígena”. As instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores, como é o caso da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (em nível de graduação, pós-graduação e extensão), são conclamadas pelo parecer CNE/CP 3/2004 a introduzir, “nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescententes” (BRASIL, 2004b, p. 30). A continuidade deste projeto de pesquisa se produz na socialização dos dados, de forma articulada com os sistemas de ensino (Rede Municipal de Educação de Florianópolis), estabelecimentos de ensino superiores 207 A literatura de recepção infantil e juvenil... (UNISUL/UFSC) e Núcleos de Estudo Negro (NEN, de Florianópolis), que venham ao encontro das exigências das “Ações educativas de combate ao racismo e à discriminação” (BRASIL, 2004b, p.23), que determinam que as instituições de ensino superior providenciem esta articulação. Pesquisas e artigos significativos vêm sendo produzidos por pesquisadores de diversos campos do conhecimento, em especial de Letras e Educação, na tentativa de (res)significar o olhar para as narrativas que tematizam a questão étnico-racial. Entre esses trabalhos, pode-se destacar o artigo de cunho historiográfico de Maria Cristina Gouvêa (2000), que analisa as representações sociais sobre o negro, produzidas na literatura de recepção infantil no Brasil, nas três primeiras décadas do século XX. Travestida em uma suposta integração racial, essa produção é marcada por uma visão etnocêntrica, onde as personagens são identificadas pelo desejo de embranquecimento. Por conseqüência, o leitor resultante desses textos [...] era marcado pela identificação com a cultura e estética brancas, ao mesmo tempo que desqualificador da cultura e estética negra. Negro ou branco, os textos acabavam por embranquecer o leitor, ao reiteradamente, representar a raça branca como superior. (GOUVÊA, 2000). Destacam-se, igualmente, os estudos de Andréia Sousa (2003; 2005), contribuindo para a análise da produção literária destinada às crianças e das relações étnico-raciais representadas através dela. A sua análise é desenvolvida sobre a literatura infantil e juvenil contemporânea, principalmente aquela produzida a partir da metade da década de 1980, já com marcas afirmativas de uma identidade negra. A busca de livros que retratem uma realidade não-discriminatória, a reflexão sobre características presentes nos livros de literatura, que reforçam, ou não, o preconceito, auxiliam no rompimento de uma visão construída sobre uma base de desigualdade étnica e proporciona espaços educativos comprometidos com a diversidade étnica e cultural do nosso país. Como já destacado em texto anterior (DEBUS; SILVA; AZEVEDO, 2007), no qual foram analisadas narrativas de caráter intercultural, constatou-se que elas permitem ao leitor uma reflexão sobre a diversidade e multiplicidade cultural que o rodeia, contribuindo para uma formação em que a pluralidade cultural é edificada pela singularidade de cada indivíduo. 208 Eliane Santana Dias Debus 4. Carregando água na peneira... impossibilidades da conclusão No aeroporto o menino perguntou: - E se o avião tropicar num passarinho? O pai ficou torto e não respondeu. O menino perguntou de novo: E se o avião tropicar num passarinho triste? A mãe teve ternuras e pensou: Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia? Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso? Ao sair do sufoco, o pai refletiu: com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças. E ficou sendo. Manoel de Barros, 1999. Este ensaio teve como única pretensão trazer à tona um olhar sobre a literatura de recepção infantil e juvenil, mapeando os caminhos dos projetos de pesquisa desenvolvidos por mim até aqui e delineando expectativas de trabalhos futuros. Pensar a literatura é como lidar ludicamente com a linguagem, recriando-a, reinventando-a, tornando-a uma linguagem cheia de meninices. Assim é que eu vejo, sinto a linguagem literária, independente do seu destinatário. O escritor de literatura, ao escovar as palavras, desarranja-as, tirando-as do lugar comum e as reveste de outras poeiras: onde está a realidade? Onde está a ficção? Parece-me uma lengalenga de escondeesconde: “cadê o pedaço de toicinho que estava aqui? O gato comeu? “... ou letra de uma música: “O gato comeu, o gato comeu e ninguém viu?”. O texto ficcional coloca o leitor em suspenso... de espreita, à escuta.... No caso específico da literatura de recepção infantil, é o adulto o “guardião da infância” (PERROTI, 1986), aquele a quem se reserva o direito de oferecer ou não um produto cultural adequado à criança. E, para o adulto, o que seria uma literatura adequada à infância? Em seu princípio, a literatura infantil surge atrelada a um utilitarismo que perde força muito mansamente, pois ainda encontramos 209 A literatura de recepção infantil e juvenil... adultos buscando no livro para criança “conteúdos” específicos: desde normas de comportamento, lições de moral a lições de conteúdo curricular: geografia, história etc. Recebo com certa constância consultas sobre títulos, autores... que poderiam ir ao encontro de projetos institucionais: é a escolarização inadequada da literatura infantil que me desagrada e desagrega o valor do literário. Tenho certa afinidade com o texto de Magda Soares “A escolarização da literatura infantil e juvenil” (1999) quando ela traduz aquilo que me parece “claro como água de pote”: a escola é o local de escolarizar, fatalmente o que está na escola será escolarizado, no entanto, a pesquisadora mineira nos descreve esta escolarização, não pelo viés da negatividade, mas pelo da construção, isto é, fazendo-nos refletir sobre as possibilidades de se lidar de forma adequada com este objeto cultural no ambiente escolar. O que se tem constatado é que, na escola, a literatura, embora seja resguardada por um saber legitimado que aponta sua validade, está sempre em segundo plano nos anos iniciais do ensino fundamental. 5. Referências ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Trad. Dora Flaksman. Rio de Janeiro Guanabara, 1981. AZEVEDO, F. Literatura infantil recepção leitora e competência literária. In _____ (Coord). Língua materna e literatura infantil: elementos nucleares. Lisboa: Lidel, 2006. _____; DEBUS, E. S. D.; SILVA, S. R. O diálogo intercultural na literatura infantil de Luís Sepúlveda e Jorge Amado. Leitura: teoria e prática, ALB, Ano 25, nov. 2007. BARROS, M. Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999. _____. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, jul. 2004a. _____. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP3/2004. Brasília, 2004b. CANDIDO, A. Sílvia Pelica na Liberdade. In: LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira. São Paulo: Global, 1988. 210 Eliane Santana Dias Debus COELHO, N. N. Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira: séculos XIX e XX. 4.ed. rev. e ampl. São Paulo: Edusp, 1995. _____. Literatura Infantil. 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Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994. LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: história & histórias. 6. ed. São Paulo: Ática, 1990. LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1994. MEIRELES, C.. Problemas da Literatura Infantil. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. PERROTTI, E. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986. SHAVIT, Z. Poética da literatura para crianças. Lisboa: Caminho, 2003. SOARES, M. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, A. A. M.; BRANDÃO, H. M. B. (org.). A escolarização da leitura literária: O jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p.17 a 48. ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2003. _____. A Literatura Infantil e o leitor. In:_____; MAGALHÃES, L. C. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 3. ed. São Paulo: Ática, 1987. 211 ENTRE O FICTO E O FACTO: O GOZO ESTÉTICO DO CRIME Fábio Messa Quando lancei O Gozo Estético do Crime – Dicção Homicida na Ficção Contemporânea, em março de 2008, já vinha estendendo a discussão em sala de aula para o estudo das narrativas factuais jornalísticas, também procurando evidenciar: o crime – enquanto objeto do discurso, ou seja, quando se fala de um determinado criminoso e traça-se o seu perfil; relevando seus atos; e o crime – enquanto discurso próprio ou a intitulada Dicção Homicida, ou seja, o discurso do assassino, disposto em entrevistas ou matérias que traçam o seu perfil. No livro, eu estudo personagens e narradores ficcionais. Subdivido as descrições analíticas: para as questões temáticas, quando se fala e descreve o crime, dispondo de sua mise-en-scène, mostrando os seus aspectos estéticos; e para as questões da dicção propriamente: algumas peculiaridades da construção do discurso-arma, palavra-projétil, próprio do assassino, a descrição de seu ódio, as intenções de matar e, especialmente, os seus argumentos pós-execução, seu sentimento de culpa ou sua indiferença. Voltando o olhar para os atos criminosos e/ou para os perfis criminológicos apresentados nas narrativas midiáticas, posso seguir a mesma linha de raciocínio. Se a idéia sempre foi a de se especular sobre a construção do crime e dos criminosos na ficção, só troco o dispositivo, já que tanto texto literário quanto texto jornalístico dispõe-se em estruturas narrativas. Esta reflexão, portanto, pode ser feita a partir da contemplação de alguns elementos fundamentais para explorar e interpretar o crime na narrativa jornalística, levando em conta os mesmos componentes da narrativa ficcional: a temática, o foco narrativo, o espaço, o tempo, a atitude narrativa, formas de intertextualidade e alguns aspectos psicológicos de personagens e/ou narradores. Abro espaço, então, para discutir a produção de sentido em torno do fenômeno crime (o homicídio, em particular) no texto jornalístico, desde a sua primeira versão narrativa (primeira notícia, as primeiras abordagens) até os posteriores desdobramentos em forma de suítes ou séries seqüenciais de reportagens, que vão incorporando gradativamente uma diversidade de elementos próprios do universo ficcional. Isso constitui o que se poderia também denominar de sensacionalismo. Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime O Projeto Mitos e Mídia, concebido por mim, no Programa de Pósgraduação em Ciências da Linguagem, já tem agregado dissertações de orientandos e produzido artigos científicos, cujos objetos de pesquisa são produtos culturais literários e/ou midiáticos. É mais do que conveniente manter um olhar crítico sobre os rumos das narrativas jornalísticas, impressas e televisivas, que tematizam e investigam crimes. Percebe-se, nestes casos, uma forte influência persuasiva sobre a audiência, que tem não só tomado partido dos casos, mas mimetizado e sofrido efeitos catárticos surpreendentes. Convém vislumbrarmos alguns casos de abusos da imprensa, fazendo um recorte do caso Escola Base (1994) ao caso Isabella (2008), ou, quem sabe, agora o caso Eloá. Há uma série de narrativas jornalísticas que, em vez de apurar e transmitir informação, produzir conhecimento, aguçar consciências, têm se apresentado como nítidas campanhas ideológicas, dotadas de elementos ficcionais, numa lógica de mercado e propaganda. O tema do projeto é pertinente para o esclarecimento na formação desta nova geração de professores de línguas, comunicadores e cientistas da linguagem, que pretendem atuar como agentes de transformação social e pode propiciar uma visão severamente crítica aos acadêmicos sobre os conglomerados midiáticos – produção e recepção de mensagens, relações de poder e política dos meios. Pretende-se, com isso, gerar discussões acerca da produção de mitos do crime pela mídia, a partir das manifestações no discurso jornalístico, impresso e/ou eletrônico, chamando a atenção para os futuros profissionais das ciências da linguagem sobre as tendências mercadológicas e persuasivas. Assim, posso identificar os elementos ficcionais e dramáticos que compõem as narrativas jornalísticas e que as tornam sensacionalistas. Analisa-se o conteúdo das matérias, impressas e televisivas, à luz de algumas teorias narrativas e da linguagem. Destacam-se desse processo aspectos estruturais, como a montagem narrativa e ideológica, para ajudar a sustentar o argumento de que a cobertura jornalística sobre crime soa, muitas vezes, como campanha propagandística para outros fins, que não somente os de veicular informação e esclarecer a população. É preciso, portanto, revisar fortuna crítica sobre jornalismo, sensacionalismo, propaganda ideológica e teorias da linguagem que possam subsidiar esse viés analítico. Convém selecionar alguns casos jornalísticos passíveis de análise, agrupando-os e categorizando-os. Podem-se descrever as narrativas, decompondo-as em seus aspectos temáticos e estruturais, organizá-las cronologicamente, evidenciando suas relações intertextuais e 214 Fábio Messa discursivas. Tais temas e tópicos de pesquisa costumam ser socializados com os cursos de graduação da instituição, apresentando painéis ilustrativos – em pôsteres e edição de vídeos, para comunicações orais, conferências ou workshops – que elucidem os pressupostos deste projeto, a fim de expô-los em congressos, simpósios e eventos de temas afins, dentro e fora da universidade. Tenta-se chegar a algumas conclusões provisórias sobre as novas tendências do discurso jornalístico, cada vez mais atrelado às lógicas da propaganda e do entretenimento, que gera efeitos perturbadores e seqüelas traumáticas na audiência. Para entender melhor o sensacionalismo, precisamos ressaltar que o termo deriva do adjetivo sensacional, oriundo do substantivo sensação, o sensacional seria a sensação intensa. O sensacionalismo seria, então, o termo destinado a caracterizar um determinado tipo de divulgação ou exploração de uma matéria, que seja capaz de emocionar ou escandalizar a audiência. Assim, o sensacionalismo ocorre no jornalismo quando a notícia transmitida gera forte impacto sobre o público (ANGRIMANI, 1995). Mott (apud ANGRIMANI, 1995, p. 14) afirma que o sensacionalismo é utilizado para matérias que buscam respostas emocionais da audiência, geralmente enfatizando temas relacionados ao sexo, à violência, a desastres e a escândalos. A partir do momento em que a informação é captada e codificada até o momento em que é transmitida, a notícia sofre transformações, para ficar com a forma que a produção deseja e assim permanecer mais tempo em veiculação, o que nos faz pensar até que ponto é efetiva ou se é apenas ocorrência sensacionalista para prender a atenção das pessoas (KARAM, 2004). Um personagem ou narrador de história pode não falar a verdade, mas sua encenação nos soa tão real, que as pessoas passam a acreditar no que estão escutando, já que pensam que o relato é feito por uma pessoa mais experiente e vivida do que elas, o mesmo acontece quando o jornalismo transmite a informação de maneira manipuladora. O público já está numa relação de dependência com os meios de comunicação, que passa a não criar para si representações do real, passando a acreditar na realidade transmitida pelos meios. A violência é tema corriqueiro no jornalismo, um signo estimulante que dá prioridade aos casos mais impressionantes, para que o impacto e absorção sejam eficientes. Assim o jornalismo consegue atingir as pessoas no que mais lhes impressionam. 215 Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime Os jornais populares recorrem para a linguagem coloquial, já que “a linguagem sensacionalista não pode ser sofisticada, nem o estilo elegante [...], mas a coloquial exagerada, com emprego excessivo de gíria e palavrões”, linguagem essa que “obriga o leitor a se envolver emocionalmente” (ANGRIMANI, 1995, p. 16). Para Dias (1996), o estudo dessa variante jornalística serviu também para colocar em evidência a violência urbana e o seu aparecimento na imprensa escrita e televisiva popular. O extinto jornal Notícias Populares, de São Paulo, que se intitulava ‘o jornal do trabalhador’, tratava de economia, polícia, cultura, esporte, com colunas diversas sobre assuntos referentes a sexo, saúde, horóscopo dentre outros. Amaral (2006) já registrou que o popular é assim usado, porque o jornal se propõe a moldar o modo comunicativo para se aproximar cada vez mais eficientemente do público-alvo. Esta modalidade discursiva jornalística acaba obedecendo a determinadas regras para definir sua prática. Convém listá-las: Intensificação, exagero e heterogeneidade gráfica; ambivalência lingüístico-semântica, que produz o efeito de informar através da não identificação imediata da mensagem; valorização da emoção em detrimento da informação; exploração do extraordinário e do vulgar, de forma espetacular e desproporcional; adequação discursiva ao status semiótico das classes subalternas; destaque de elementos insignificantes, ambíguos, supérfluos ou sugestivos: subtração de elementos importantes e acréscimo ou invenção de palavras ou fatos; valorização de conteúdos ou temáticas isoladas, com pouca possibilidade de desdobramento nas edições subseqüentes e sem contextualização político-econômico-social-cultural; discursividade repetitiva, fechada ou centrada em si mesma, ambígua, motivada, autoritária, despolitizadora, fragmentária, unidirecional, vertical, ambivalente, dissimulada, indefinida, substitutiva, deslizante, avaliativa; exposição do oculto, mas próximo; produção discursiva sempre trágica, erótica, violenta, ridícula, insólida, grotesca ou fantástica; especificidade discursiva de jornal empresarial-capitalista, pertencente ao segmento popular da grande empresa industrial-urbana, em busca de consolidação econômica ao mercado jornalístico; escamoteamento da questão do popular, apesar do pretenso engajamento com o universo social marginal; gramática discursiva fundamentada no desnivelamento sócio-econômico e sociocultural entre as classes hegemônicas e subalternas. (PEDROSO, 1994 apud ANGRIMANI, 1995, p. 15). 216 Fábio Messa Toda essa enumeração só confirma a caracterização que Marcondes Filho (1986) dá ao sensacionalismo, quando o define como o estágio mais radical da comercialização da informação, que ainda deve ser mais impactante na chamada. O sensacionalismo é a produção de um noticiário ficcional que vai além do real e superestima o fato. Angrimani (1995) compara o meio de comunicação sensacionalista com uma pessoa neurótica que deseja externar seus desejos mais insanos, em que o primeiro é a forma camuflada para a realização inconsciente do último, já que a narrativa sensacionalista [...] transporta o leitor; é como se ele estivesse lá, junto ao estuprador, ao assassino, ao macumbeiro, ao seqüestrador, sentindo as mesmas emoções. Essa narrativa delega sensações por procuração, porque a interiorização, a participação e o reconhecimento desses papeis, tornam o mundo da contravenção subjetivamente real para o leitor. A humanização do relato faz com que o leitor reviva o acontecimento, como se fosse ele o próprio autor do que está sendo narrado. (PEDROSO, 1994 apud ANGRIMANI, 1995. p. 17). Sabe-se que essa narrativa sensacionalista em jornais populares não é recente, vem desde os primórdios. Já no século XIX, existiam os jornais populares de uma só página que traziam apenas notícia em chamadas como: ‘Um crime abominável!!! Um homem de 60 anos cortado em pedaços’ e subtítulo ‘Enfiado em uma lata e jogado como ração aos porcos’. Além disso, existiam também os chamados fait divers, publicações de imagens com notícias do mundo de gêneros diversos. Estes, relatados anteriormente na idade média, por meio de canções (ANGRIMANI, 1995). Edgar Morin (apud ANGRIMANI, 1995) já disse que os fait divers eram responsáveis pelo aumento dos rendimentos dos editores e mascates, que passaram a negociar com artistas que registravam as práticas dos bandidos famosos da França. Assim como nos dias de hoje, na antigüidade já se produzia notícias para levar o receptor ao consumo com notícias sensacionalistas que não permitissem o raciocínio lógico da proposta de determinado assunto, mas comunicavam apenas informações com conclusões já fundadas, sem direitos de defesa (MARQUES, 2006). A linguagem moldada de forma linear pelos agentes da publicidade pôde fazer com que a articulação “entre aparência e realidade, fato e fator, 217 Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime substância e atributo, desaparecesse. Os elementos de autonomia, descoberta, demonstração e crítica recuam diante da designação, asserção e imitação” (MARCUSE, 1983 apud MARQUES, 2006, p. 45). Para Marques (2006), o discurso jornalístico está mais distante da realidade e mais próximo do aspecto ideológico, quando passa a abordar as questões sociais, buscando novas organizações, como a sensacionalista, que corresponde à maneira do espetáculo da produção da notícia. E isso se dá por meio da comercialização dos fatos. O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, medida por imagens. [...] Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. Ele é a confirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre desta escolha. Forma e conteúdo do espetáculo são, de modo idêntico, a justificativa total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo também é a presença permanente dessa justificativa, como ocupação da maior parte do tempo vivido fora da produção moderna. (DEBORD, 1997 apud MARQUES, 2006, p. 55). A imprensa, como parte da sociedade do espetáculo, transformou a notícia e a atividade jornalística em produto mercadológico, em que o fato já deve ser transmitido com um aspecto já determinado, bem como a fantasia de liberdade de imprensa, quando defendem ideais democráticos que transmitem a falsa sensação de poder crítico à sociedade (MARQUES, 2006). É conveniente acrescentar o que disse Bucci (2003, p. 09) sobre [...] a idéia de que as notícias de jornal ‘retratam a realidade’ não faz sentido. Não que os jornais mintam, distorçam, manipulem. Não é isso. Admitamos que os veículos da imprensa se esforce na direção da objetividade e da verdade factual. Admitamos, mais ainda, que eles sejam bem sucedidos nesse esforço. Mesmo assim, a idéia de que eles ‘retratam a realidade’ não faz sentido. Faria mais sentido dizer que eles consolidam a realidade, ou aquilo que 218 Fábio Messa chamamos, muito precariamente, de realidade. [...] Os fatos acontecem, no instante em que acontece, já como relatos. Ou, se quisermos, como elementos discursivos. Um fato ambiciona a condição de relato – pois só o relato dará a ele, mero fato, um sentido narrativo. Não há, portanto, fato jornalístico sem o relato jornalístico. O que pretendo dizer, enfim, é que o relato jornalístico ordena e por definição, constitui a realidade que ele mesmo representa como sendo a realidade feita de fatos. A citação acima reforça a idéia de que há manipulação na informação passada, mesmo que sem intenção, ao receptor, que passa a acreditar piamente no relato recebido de forma tão impactante. Assim, a realidade passa a ser realidade, pois foi transmitida pela mídia no geral (discurso publicitário e jornalístico) (BUCCI, 2003). O objetivo dos telejornais não é o de apenas transmitir, mas tornar a informação uma espécie de telenovela, em que cada capítulo é importante para entender o próximo. Isso ocorre devido à necessidade de audiência, mesmo que a notícia se torne excessiva, isso irá prender a atenção do espectador que deseja saber o desfecho. Dessa forma, percebe-se que a estratégia usada pelos jornais é somente para o consumo e não para esclarecer e ser instrumento de reflexão do conteúdo. Isso o torna um meio de alienação que tem pouco tempo para transmitir a informação e é conduzida sem oportunidade de argumentação, há apenas uma aceitação dela (PENA, 2002). Outra questão relevante diz respeito à edição de imagens, que deve causar sensações, porém não deve ser totalmente revelada, para que a pessoa se aproxime o máximo possível do fato, e o mesmo possa apresentar um referencial melhor da situação (PENA, 2002). O jornalismo não pára por aí, pois com tantos meios evoluídos, nessa verdadeira refinaria midiática, há uma grande disputa para sua escolha. Trivinho (2000) é modesto quando informa que a sociedade vive no caos, na poluição, na marginalidade, convivendo com desemprego, doenças e dramas sociais. Isso faz com que as pessoas passem por processos psíquicos, envolvendo-se mais emocionalmente com os factóides. Todas as “tragédias” só se assumem enquanto tais, depois da nomeação que os próprios meios o fazem, transformando-as em espetáculo pelos jornais sensacionalistas, o que faz o fato migrar de eventual, para constante, tornando-o objeto de desejo de milhões de pessoas que, mesmo 219 Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime se mostrando horrorizadas com o fato, precisam ver e saber de tudo minuciosamente, ou seja, não bastará saber que ocorreu uma explosão, precisa-se saber onde, como, quando, se houve mortos e feridos, quantos, a idade dos mesmos e, se for possível, que tenha foto ou imagens ao vivo do ocorrido (TRIVINHO, 2000). Trivinho (2000) afirma que os responsáveis pela comunicação não criam o medo, eles apenas estruturam algo já existente que se interioriza em cada indivíduo de forma diferente, o que pode despertar o medo de algo já vivido pela pessoa, ou medo de que aconteça consigo mesma. Essa é uma forma de autodefesa da violência física que nunca se sofreu, porém sem se dar conta de que é gerada, o que assegura que as condutas delineadas pelo medo são condutas patológicas, com várias significações. O medo gerado pela violência transmitida pelos meios de comunicação é o medo do mal, que também pode ser desejado, inconscientemente, pelo espectador da notícia (KEHL, 2004). Uma questão importante que Kehl (2004) levanta é sobre o comportamento dos indivíduos quando estão sobre a mira da mídia. Será que os desfechos das histórias seriam aqueles que tiveram se a mídia não estivesse presente? Ou será que a negociação seria melhor com sua ausência? Talvez sim, afinal: “a publicidade de uma fantasia equivale a um incentivo para a sua realização: vá lá e faça, é a sua obrigação, é o mínimo que você pode fazer”. (KEHL, 2004, p. 94). Provoco um exemplo que tem recheado as coberturas jornalísticas neste ínterim: o Caso Eloá, em Santo André-SP. Será que haveria vítimas, caso não houvesse tanta pressão da refinaria midiática circunscrita à tocaia policial? Seria preciso toda aquela parafernália que construiu um plantão forçado aos nossos olhos, de mais de 100 horas. Esta designação 100 horas só teve seu estatuto de existência a partir de sua enunciação. O jornal sensacionalista aborda a morte como espetáculo, um dos melhores produtos de venda, como se fosse um culto ou até mesmo uma fantasia. Este espetáculo é atraente a todas as classes, porém com linguagem diferente, por este motivo é que existem os jornais sensacionalistas que têm um público de formação cultural precária, o que os deixa mais próximos das manifestações dos instintos, do que nas pessoas mais cultas, que normalmente estão mais sob controle (ANGRIMANI, 1995). A morte proporciona sensações diferentes em quem a está presenciando. A primeira é o choque, no qual me leva a pensar que o próximo será eu mesmo. A segunda é a sensação de alívio por não ter sido 220 Fábio Messa eu essa vítima. Estas sensações podem acordar as projeções sádicas, punitivas, vingativas, recalcadas e até mesmo propiciar a criação de histórias semelhantes por meio de fantasias. O meio de comunicação mata alguém que eu desejaria ter matado; porém, como há o respeito às regras de comportamento social, não posso realizar esse desejo. Assim como a morte, todo o tipo de violência que é abordada em um jornal sensacionalista, como estupro, assassinato, suicídio, brigas, agressões, pode ser entendido como o melhor meio para a descarga de todas essas tensões e o alívio das pulsões do indivíduo que as consome, mesmo que no seu mais profundo inconsciente (ANGRIMANI, 1995). Toda essa violência tem sido estudada e questionada através das culturas vigentes nos povos, já que é de acordo com a cultura que se define o que é violento ou não, porém, para Michaud (1986 apud ANGRIMANI, 1995), existem dois tipos de violência – a humana (cultural) e a animal (natural), esta última não provedora de excessos, apenas necessária à sobrevivência. Outros temas abordados por jornais sensacionalistas são os assuntos considerados tabus, como, por exemplo, a confissão de prazer no sexo: por mais comum que esse tema possa parecer, ainda há quem o recrimine, ou tenha vergonha em enunciar, pois quem quebra um tabu é condenado moralmente, uma vez que foi quebrada uma regra que pode ameaçar toda uma sociedade. No fundo, o tabu é algo que todos desejam quebrar, mesmo que no mais profundo inconsciente, no entanto, temem fazê-lo (ANGRIMANI, 1995). O tabu pode explicar melhor o porquê que se tem de proibir determinadas atitudes, como o homicídio, pois: [...] sempre que exista uma proibição, ela deve ter sido movida por um desejo [...] A tendência criminosa existe realmente no inconsciente e este tabu, como mandamento moral, longe de ser supérfluo, se explica e se justifica por uma atitude ambivalente com respeito ao impulso ao homicídio. (ANGRIMANI, 1995, p. 95). A perversão tem como objeto o prazer sexual, e a mesma ligada ao ato sexual dito como normal (pessoas de sexo oposto) não tem destaque na imprensa sensacionalista, já as classificadas como fetichismo, voyeurismo, sadomasoquismo, homossexualismo, pedofilia são extremamente abordadas pelos jornais sensacionalistas, pois são notícias que quebram os tabus da sociedade e criam revolta na população que deseja punição. Desta forma, ao abordar estes assuntos, a imprensa se torna radical, usa 221 Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime ferramentas, como imagens para impressionar ainda mais quem as vê (ANGRIMANI, 1995). Estes podem ser mitos, ou seja, um signo que agrega e se transforma em mera forma ou significado de outro signo, já que a sociedade capitalista é a que mais produz mitos que passam a ser algo natural e também um facilitador do entendimento do assunto (SAISI, 2006). Entende-se por criminalidade o conjunto dos crimes socialmente relevantes e das ações e omissões que, embora não previstas como crimes, merecem a reprovação máxima. A criminalidade é constante tanto no plano da realidade quanto no universo ficcional, reveste-se de uma complexidade bastante subjetiva. O homicídio é uma forma freqüente de criminalidade convencional que também se instaura no cosmos da ficção contemporânea. É para o homicídio que direciono as análises. A morte dos homens praticadas por eles mesmos traz em si um caráter de antinaturalidade, que consiste no fato de tanto vítima quanto agente pertencerem à mesma espécie animal. A partir de uma designação criada por Michel Petersen, denominarei de Atitude Narrativa o “conjunto dos julgamentos e tendências que levam o narrador a tomar, tanto no nível da narração que o narra, quanto em relação ao discurso que ele propõe, posicionamentos narrativos” (PETERSEN, 1995, p. 116). Isto quer dizer que, feito um locutor/falante, o narrador seleciona certa unidade discreta em detrimento de/ ou preferencialmente a uma outra, operando, assim, discriminações dentre os fatos empíricos e textuais que lhe são apresentados. O que não pretendo aqui efetivamente é divagar sobre as ambigüidades teóricas que comportam a concepção de narrador (ver BENJAMIN (1975, p. 63-81)). O que quero mesmo é reforçar a afirmação de que “esta atitude narrativa é dirigida através do contexto semiótico, ou seja, as motivações de uma atitude narrativa não se compreendem senão em função das estratégias gerais da produção de sentido em determinado autor” (PETERSEN, 1995, p. 116). Isso equivale a dizer que toda atitude narrativa responde a uma atitude interpretativa ou a uma atitude de leitura. Nós, leitores/intérpretes, sempre escolhemos, dentre as possibilidades oferecidas pelo texto, mais uma leitura do que outra, dependendo do nosso repertório intelectual e de nossa predisposição emocional, já que fazemos leitura racional e também passional do texto literário. Assim, a atitude interpretativa consiste numa soma de julgamentos de valores desse determinado leitor acerca de uma determinada obra, e nunca será uma descrição neutra dos fatos textuais. 222 Fábio Messa De início, qualquer descrição é uma soma de enunciados avaliativos. Estes apenas adquirem sua objetividade se a descrição, ao se integrar em uma cadeia de valores que pertence a um sistema de valores, se modular em função do contexto histórico e da cultura em que é executada – visto esse processo não deixar de implicar uma certa dose de violência interpretativa. A atitude narrativa, enquanto participa da produção de sentido, está ligada ao que Ross Chambers chamou de violência narrativa, que acusa o caráter arbitrário do ato da narração porque ela é exercida pelo narrador e, portanto, diz respeito à maneira pela qual se impõe uma narração. Seria possível distinguir três tipos de atos narrativos violentos: a violência de substituição, a violência de exclusão e a violência de focalização. Para Chambers, cada narrador escolheria a forma que melhor respondesse as suas necessidades e que, com maior eficácia, atendesse aos seus interesses semióticos (PETERSEN, 1995, p. 120). Por isso, todas as narrativas ocultariam ou exporiam todas as formas de violência, pois necessitariam, senão de um narrador, pelo menos de uma instância que regulasse a multiplicidade das vozes e dos discursos. A violência narrativa se distingue da atitude narrativa devido ao fato de a primeira desvelar o caráter arbitrário da narração, enquanto a segunda remete a um contexto semiótico que impõe limites axiológicos ao narrador. A violência narrativa refere-se exclusivamente ao ato narrativo, já a atitude narrativa causa efeitos no conjunto do sistema de valores do complexo autor-texto-leitor. Daí a necessidade de se reposicionarem os conceitos avaliativos em seu respectivo contexto, isto é, considerá-los como lugar de interdiscursividade. Desta maneira, o leitor terá condições de interpretar, comparando sua cadeia de valores com as do autor e da sociedade. Por fim, resta determinar quais seriam os componentes ficcionais do discurso telejornalístico: os flashs, as simulações, as estratégias de teledramaturgia, a apresentação de cenas dos capítulos anteriores, enredo, personagens, uma estética da redundância importada das estratégias de folhetim, os planos e seqüências assumem o papel vital de contar a história, apresentar a realidade sem mediações, o sistema de edição de imagens é um código específico de construção da mensagem. “Embora a construção romanesca seja determinante para o sucesso da estratégia narrativa da notícia, ela não pode ser explicitada para o telespectador, pois o único pacto que pode ficar visível é o referencial, aquele a que aproxima o consumidor de sua demanda pelo facto” (PENA, 2002, p. 53). 223 Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime Torno a enfatizar que, desde 2005, o Projeto Mitos e Mídia vem se desenvolvendo, contribuindo na produção docente e discente e na confecção de cursos de capacitação, oficinas, painéis e debates em torno dos temas relacionados ao discurso jornalístico e ao discurso da ficção. Desde então, tem consistido em agregar trabalhos de orientandos de mestrado e de graduação, cujos objetos de pesquisa são produtos culturais midiatizados – jornalísticos, literários, cinematográficos. Sabe-se que muitas narrativas, difundidas pelos meios de comunicação de massa, se encarregam de constituir novos ou desconstruir antigos mitos, os quais são considerados mecanismos de fabricação de sentidos. Mantendo o pressuposto de que o mito pode ser encarado como fonte básica a partir da qual textos/tramas/imagens da cultura são tecidos, este projeto costuma abarcar textos provenientes de um imaginário cultural, que se apresentam ao leitor/espectador/consumidor como o território de encontro de conteúdos universais, de arquétipos da cultura que se reatualizam constantemente. Tem sido um dos objetivos do projeto: estender a discussão acerca da produção e/ou desconstrução de mitos em produtos culturais midiatizados, a partir de suas manifestações nos discursos literário, cinematográfico e das histórias infantis e em quadrinhos. Com base em teorias semânticas e semiológicas, são desenvolvidos artigos científicos e dissertações de mestrado que evidenciam textos culturais vistos como instrumentos comunicativos. Temos constatado que, dentre eles, o mito possui um lugar de destaque pelo seu estatuto de permanência. Com isso, tem-se descrito analiticamente alguns mitos que constantemente se reapresentam dentro da cotidianidade transitória e veloz dos temas da mídia. Da reunião inicial de textos midiatizados que apresentam em comum a proposta de aniquilação, desconstrução, manutenção ou produção de mitos, tem sido feita uma categorização, a partir das suas diferentes formas de abordagem e de atributos. Em 2006, Maciel defendeu a dissertação Maníaco da bicicleta: da construção de um mito ao discurso sensacionalista que, com base em teorias semântico-pragmáticas, verificava evidências de construção de realidades pela imprensa no caso policial “Maníaco da Bicicleta”, do Jornal A Notícia, da região de Joinville. O trabalho mostrava como a imprensa utiliza a função referencial da linguagem para fins de convencimento em suas campanhas. Amparando-se no mito da isenção, constatou que o jornalismo apostava na credibilidade da opinião pública para transformar-se em núcleo de poder na sociedade pós-moderna. Postulou também sobre a credibilidade através da aparente isenção, em que o jornalismo recorre a 224 Fábio Messa uma falsa polifonia, quando oferece aos consumidores opiniões de pessoas diferentes, porém com o mesmo ponto de vista. Por fim, determinou que os discursos das autoridades competentes serviam apenas para ratificar visões estereotipadas repetidas continuamente. Através desta pesquisa, foi possível desconstruir os mitos e as realidades inventadas nas narrativas jornalísticas locais. Em 2007, Felipe defendeu a dissertação O Lobo mau que é bom: a re-versão do mito nas histórias infantis, mostrando que as histórias infantis contemporâneas apresentavam uma nova estrutura narrativa, que propunha uma peculiar reversão de mitos, em processos de intertextualidade e deslizamento de sentidos. Este trabalho constatou e descreveu o processo de reversão do mito do Lobo Mau em Lobo Bom, identificando as possíveis causas que influenciaram esse outro formato. Esta pesquisa revelou a quebra do paradigma da maldade e a tentativa de transmudá-lo em bondade. Desse modo, procurou-se refletir sobre essa linhagem de narrativas que parafraseiam e/ou parodiam as antigas versões, revertendo o mito, ressignificando-o e provocando novas relações de sentido. Estes dois trabalhos estavam amparados pela linha teórica do projeto por tangenciar as questões relativas ao mito do crime e da maldade, como em O Gozo Estético do Crime, mas por compartilharem das mesmas teorias que norteiam o projeto Mitos e Mídia, ou seja, da semiologia barthesiana e das teorias semântico-pragmáticas para a análise da linguagem jornalística e da retórica da ficção. Em 2008 está em fase de redação, pós-qualificação, a dissertação de Vivian de Souza, Mito do menor infrator na ficção contemporânea, que retorna às linguagens da violência, reiniciando o percurso de categorização de perfis de personagens e narradores menores infratores, desta vez recortando textos de autores como Jorge Amado, Paulo Lins e Patrícia Melo. Espero, portanto, estar contribuindo para a formação ética e críticohumanística dos futuros profissionais de ciências da linguagem e de comunicação sobre os rumos do discursivo jornalístico na contemporaneidade. Quero despertar, no âmbito acadêmico – das áreas de ciências sociais e aplicadas, letras e artes –, uma visão problematizadora sobre as repercussões das coberturas jornalísticas geradas na audiência, para que se perceba o tipo de fruição estética que o leitor/espectador/consumidor comum pode realizar sobre os conteúdos veiculados. 225 Entre o ficto e o facto: o gozo estético do crime Referências AMARAL, M. F. Jornalismo popular. São Paulo: Contexto, 2006. ANGRIMANI, D. Espreme que sai sangue. São Paulo: Summus, 1995. BERGER, C. Jornalismo na comunicação. In: Tensões e objetos: da pesquisa em comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2002. CARVALHO, N. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 2001. de CASTRO, V. J. A publicidade e a primazia da mercadoria na cultura do espetáculo. In: COELHO, C. N. P.; de CASTRO, V. J. (Orgs.). Comunicação e sociedade do espetáculo. São Paulo; Paulus, 2006. COELHO, C. N. P.; de CASTRO, V . J. (Orgs.). Comunicação e sociedade do espetáculo. 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Santos, SP: Editora Universitária Leopoldianum, 2000. 227 ESTUDOS CULTURAIS E CINEMA E MITO Fernando Simão Vugman 1. Introdução Os estudos culturais constituem o campo das pesquisas por mim desenvolvidas. Segundo Stuart Hall – reconhecido como um de seus primeiros e principais protagonistas – os estudos culturais nasceram em meados da década de 1950, no momento de uma “ruptura significativa” (2003, p. 131), quando “velhas correntes de pensamento são rompidas, velhas constelações deslocadas e elementos novos e velhos são reagrupados ao redor de uma nova gama de premissas e temas” (idem). Os textos que inauguram o deslocamento teórico que dará origem aos estudos culturais são As utilizações da cultura, de Richard Hoggart e Cultura e sociedade, de Raymond Williams; o primeiro, aponta Hall, “teve como referência o ‘debate cultural’ há muito sustentado nas discussões acerca da ‘sociedade de massa’, bem como na tradição do trabalho intelectual identificado com Leavis e a revista Scrutiny” (2003, p.132). Já o livro de Williams, ainda segundo Hall, vem reconstruir aquilo que pode ser resumido como “uma longa tradição [...] [que] consiste no ‘registro de um número de importantes e contínuas reações a... mudanças em nossa vida social, econômica e política’” (idem), que acaba por construir um mapa para a exploração e investigação dessas mesmas mudanças. Nesses trabalhos, e especialmente o livro de Hoggart, o que se vê é uma atenção para a cultura da classe trabalhadora, investigando seus padrões e estruturas para descobrir-lhes os valores e significados. A partir daí, a “produção cultural” da classe trabalhadora passa a ser examinada como um conjunto de “textos”. A conseqüência que se apresenta como verdadeira quebra de paradigma, quando uma cultura em pleno desenvolvimento é focalizada, é a impossibilidade de se avançar o debate com base na oposição entre alta e baixa cultura. O livro seguinte de Raymond Williams, The long revolution (1961), indica a necessidade de se partir de outro lugar teórico para se analisar a noção de “cultura-esociedade” antecipada em seu livro anterior, onde ele já apresenta a “unidade” dos Estudos Culturais “não em termos de preocupações comuns, mas de preocupações características e formas de expressão de suas Estudos culturais, cinema e mito indagações” (HALL, 2003, p. 132). Outro livro que apresenta as mesmas características de ruptura é A formação da classe operária inglesa, de E. P. Thompson, lançado em 1963. Embora este livro ainda se desenvolva dentro das tradições da historiografia marxista inglesa e da história econômica, ao “destacar questões de cultura, consciência e experiência, e enfatizar o agenciamento, também rompeu decisivamente com uma certa forma de evolucionismo tecnológico, com o economicismo reducionista e com o determinismo organizacional” (HALL, 2003, p. 133). Na sua institucionalização a partir dos anos 1960 – considerando-se a criação, pela Universidade de Birmingham, do Centre for Contemporary Cultural Studies, em 1963/64, então dirigido por Richard Hoggart e Stuart Hall, o ponto de convergência dos estudos culturais é a “cultura”, muito embora o exame dos textos fundadores aqui mencionados não permita encontrar uma definição única e não problemática para esse termo tão central. De fato, a complexidade deste conceito, que funciona mais como um ponto de convergência de interesses, do que uma referência clara e bem definida, mantém uma tensão permanente no campo. Assim, vale mencionar, dentre as diferentes conceituações de cultura, aquela que Stuart Hall considera a mais central, posto ser esta definição fundamental para os estudos desenvolvidos em nossos projetos de pesquisa. Segundo ele, e partindo das formulações oferecidas por The long revolution, de Williams, a primeira conceituação “relaciona cultura à soma das descrições disponíveis pelas quais as sociedades dão sentido e refletem as suas experiências comuns” (2003, p. 135). Trata-se de uma concepção que, sem deixar de recorrer “à ênfase primitiva sobre as ‘idéias’” (HALL, 2003, p. 135), abre espaço para uma socialização e democratização do termo. É uma concepção que abandona a caracterização da cultura como aquilo que de melhor foi produzido; a arte, inclusive, passa agora a ser entendida “como apenas uma forma especial de processo social geral: o dar e tomar significados e o lento desenvolvimento dos significados comuns; isto é, uma cultura comum” (idem). 2. Cinema e Cultura É, portanto, a partir dos paradigmas dos estudos culturais que o cinema é promovido a objeto merecedor de estudos acadêmicos; desfeitas as noções que permitiam reservar um lugar nobre à alta cultura e à Arte, o cinema já não precisa mais se provar uma “arte autônoma”, como defenderam seus primeiros teóricos, nem se desvencilhar da adjetivação de 230 Fernando Simão Vugman “popular”. Na verdade, o cinema parece ocupar um papel destacado nos próprios desenvolvimentos econômicos e sociais que criaram as condições de possibilidade para os estudos culturais. Afinal, a cultura que atrai o olhar de pensadores como Hoggart, Williams, Thompson e Hall é justamente aquela gerada nas sociedades de massas. Quando, em seu ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, primeiro publicado em 1936, Walter Benjamin alia o desmonte dos conceitos da estética clássica às tecnologias de reprodução mecânica, é o cinema que ele aponta como o principal veículo dessa transformação: Poder-se-ia dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução destacam o objeto reproduzido do domínio da tradição. Multiplicando-lhe os exemplares, elas substituem por um fenômeno de massa um evento que não se produziu senão uma vez. Permitindo ao objeto reproduzido oferecer-se à visão ou à audição em qualquer circunstância, elas lhe conferem uma atualidade. Esses dois processos conduzem a um considerável abalo da realidade transmitida: ao abalo da tradição, o que é a contraface da crise que atravessa atualmente a humanidade e de sua atual renovação. Eles se mostram em estreita correlação com os movimentos de massa que hoje se produzem. Seu mais eficaz agente é o filme. (grifo nosso) (BENJAMIN, 2000, p. 226). Assim, não se trata apenas de coincidência temporal, a partir dos anos 1950 e 1960, a emergência e institucionalização dos estudos culturais e dos estudos de cinema, este último recebendo um forte impulso da Nouvelle vague e dos Cahiers du cinema. E é dessa junção entre a noção da produção cultural como “descrições disponíveis” para que as sociedades atribuam sentido às suas experiências coletivas com o enorme poder de encantamento e difusão do cinema, que o filme passa, também, a ser passível de ser lido como um texto. Para o interesse de nossos projetos de pesquisa, tratamos o filme não apenas como um texto que se apresenta para ser lido e interpretado, mas também como uma narrativa mitológica. 231 Estudos culturais, cinema e mito 3. Literatura moderna, cinema pós-moderno O atual estágio de nossas pesquisas, a ser apresentado ao final deste capítulo, remonta ao meu interesse inicial pelo estudo comparativo entre literatura e cinema e, de modo mais específico, dentro do debate (que já correu mais acalorado) sobre modernidade e pós-modernidade, modernismo e pós-modernismo. Os primeiros estudos por mim desenvolvidos buscaram comparar uma estética moderna à estética pós-moderna. Exemplo do primeiro foi o livro 1984, de George Orwell, publicado em 1949, o qual analisei em contraste com o filme Brazil (1985), dirigido por Terry Gilliam, que considerei uma adaptação pós-moderna do primeiro. A premissa da investigação era que o livro de Orwell se desenvolvia dentro de uma cultura em que a palavra, o texto, funcionava como referência central, particularmente através da autoridade daquilo que Lyotard chama de “grandes narrativas”, como o projeto Iluminista, mas também outras grandes narrativas, como o “texto” marxista, ou a narrativa bíblica. Embora, em última instância, a narrativa dentro da história de Orwell se revele amargamente ilusória, toda a busca do protagonista se dá em torno de um suposto livro, que organizaria uma suposta resistência ao regime, bem como orienta a própria trama. Brazil, por outro lado, apresenta de forma caracteristicamente pós-moderna uma simultânea dissolução do discurso – o livro dentro da trama de 1984 desaparece no filme de Gilliam, substituído por um vendaval, literalmente, de papéis e documentos burocráticos. De fato, Gilliam apresenta diálogos e discursos vazios de significado, um tagarelar interminável que parece servir apenas para negar a terrível realidade ao redor. Além disto, o filme exibe uma mise-en-scéne em que as imagens, por vezes claramente em estilo publicitário, concorrem com um discurso paralelo e vazio. Naquele estudo, também chamo a atenção para a construção do protagonista, ou herói da história. Enquanto Orwell nos apresenta um herói que busca desesperadamente reconstituir um mundo compreensível, esforçando-se para encontrar um caminho “real” em meio a uma infinidade de discursos e textos que não param de falsificá-lo, Gilliam não só divide o herói em dois personagens “complementares”, como os apresenta perdidos em um mundo em que a ausência de sentido se encontra definitivamente instalada. Assim, enquanto 1984 parece um último e desesperado alerta para os perigos que se abrem quando a palavra e o discurso perdem valor de referência, Brazil se realiza em um universo onde as narrativas já se 232 Fernando Simão Vugman mostram vazias e inúteis, perdidas, junto com os personagens, numa infinidade imagens “intensas, superficiais e vazias de afeto” (JAMESON, 2000, passim). Uma segunda linha de investigação voltou-se para o cinema hollywoodiano. O ponto de partida foi o interesse em mim despertado pela figura do gangster no cinema estadunidense. Curioso sobre o valor simbólico do gangster ficcional, vi meus estudos seguirem o caminho das representações mitológicas nas sociedades modernas. De fato, lançando o olhar para a origem das narrativas mitológicas estadunidenses, pode-se perceber uma continuidade estrutural narrativa que avança pela literatura durante os séculos XVII, XVIII e XIX até chegar ao século XX, quando é incorporada pelo cinema hollywoodiano. O historiador estadunidense Richard Slotkin desenvolve um trabalho bastante útil para se compreender não apenas a estrutura original da narrativa mitológica dos Estados Unidos, como também certas contradições ideológicas originárias das condições encontradas pelos primeiros colonizadores, que persistem na cultura daquele país até os dias de hoje. Segundo Slotkin, a mitologia da sociedade norte-americana tem sua origem nas Narrativas do Cativeiro, que surgem em meados do século XVII. Nestas narrativas, ele explica, “uma pessoa, geralmente uma mulher, suporta passivamente as tentações do mal [os índios], esperando ser resgatada pela graça de Deus [isto é, por um homem branco]” (1996, p. 94). De modo bastante simplificado, nestas histórias a mulher branca, levada pelos índios, representava os valores da civilização cristã: castidade, casamento heterossexual monogâmico, o direito de propriedade. São estes valores que precisam ser resgatados das forças do mal, contidas na floresta e na aldeia indígena. O resgate, por sua vez, estará a cargo de um homem branco. Para levar a cabo sua missão, o homem branco terá que dominar as técnicas de guerra e de sobrevivência dos índios, e agir com violência e sem piedade. A justificativa para seus atos violentos e sua descida ao inferno reside na salvação da mulher branca, assim tornada um símbolo da civilização. Na definição de Slotkin, em termos míticos, esta figura feminina se tornará a “mulher redentora” (1998, p. 206): casta, dócil, compreensiva, confiável e bastião da civilização. O que está representado nessa narrativa de mito é o sentimento contraditório dos primeiros colonizadores dos Estados Unidos na busca por uma identidade própria. Na tentativa de criar uma nova identidade, estes colonizadores precisavam, por um lado, diferenciar-se dos ingleses e do 233 Estudos culturais, cinema e mito Velho Mundo. Para isto, percebiam a necessidade de incorporarem muito do conhecimento e dos costumes dos povos nativos, desde sempre acostumados a sobreviver numa terra selvagem. Mas, por outro lado, para não se confundirem com os selvagens, precisavam, também, reafirmar os valores trazidos da Europa, especialmente aqueles valores fundamentados no Puritanismo e na organização social européia. Se considerarmos a afirmação do antropólogo Lévi-Strauss de que “[...] o objetivo do mito é fornecer um modelo lógico para resolver uma contradição (tarefa irrealizável quando a contradição é real)” (1996, p. 254), veremos que é disto que tratam as narrativas de cativeiro: ao resgatar o símbolo dos valores fundamentais da civilização branca, toda a violência e artimanhas indígenas empregadas pelo homem branco estarão justificadas. Em outras palavras, a violência individual, especialmente aquela praticada pelo homem branco, se justifica à medida que serve à causa da civilização, entendida, principalmente, como a base de valores puritanos. É este processo que Slotkin denomina “regeneração através da violência”. De fato, o historiador situa nesta contradição histórica e na sua expressão mítica a origem da valorização cultural da prática individual da violência na sociedade norte-americana. Já o século XX traz consigo a sensação de que as possibilidades de expansão dentro das fronteiras nacionais estão se esgotando, ao mesmo tempo em que os Estados Unidos deixam de ser um país eminentemente rural e se transformam numa nação urbana e industrializada. É junto com essa urbanização e industrialização que nasce a indústria cinematográfica americana. O crítico estruturalista Will Wright observa que a despeito da popularidade das novelas de faroeste, foi através do cinema que o “mito tornou-se parte da linguagem cultural pela qual a América entende a si mesma” (1977, p. 12). E explica esta situação privilegiada dos filmes pela capacidade da “imagem cinemática [...] expressar verdadeiramente [...] a importância central da terra” (idem). Embora seja inegável o sucesso do Western na criação de um espaço mítico na tela, podemos apontar outras razões para que a produção hollywoodiana tenha se tornado o meio privilegiado para expressar a mitologia americana contemporânea. Realmente, devemos considerar que Hollywood vem ocupar um lugar bastante especial na transformação dos Estados Unidos em uma nação industrial e urbana: junto com sua capacidade de criar narrativas de mito, a indústria cinematográfica americana constitui, ela própria, um conjunto de mitos. Expressa, por exemplo, um dos mitos mais caros ao capitalismo: o 234 Fernando Simão Vugman mito do incessante desenvolvimento tecnológico, particularmente intenso nas primeiras décadas do século passado, quando novas tecnologias não apenas maravilhavam os cidadãos americanos, mas de fato transformavam e recriavam o modo de viver daquela organização social nascente (a persistência deste mito pode ser verificada na ênfase cada vez maior nos efeitos especiais e no uso do computador na produção cinematográfica hollywoodiana). Outro mito caro aos americanos, a “América” como terra das oportunidades, também encontra sua expressão em Hollywood, quando esta absorve imigrantes judeus, italianos e irlandeses, entre outros, na sua linha de produção. Neste contexto, o gangster surgiu como personagem mitológico singular em sua significação. Sua figura aparece em um momento especial da história norte-americana: ele aparece nas telas nas primeiras décadas do século XX, momento em que a imagem de um país vasto e eminentemente rural e ainda selvagem é substituída pela imagem de uma nação industrial e urbana. Até então, os personagens mitológicos elaborados eram suficientes para expressar e reforçar os valores éticos e morais dominantes, bem como suas contradições e paradoxos. Dentre tais personagens, minha pesquisa se voltou para a figura do herói americano. Este surge como o homem branco que, conhecedor das artes de guerra próprias dos indígenas para lutar e sobreviver na floresta, age com violência e selvageria para libertar do cativeiro a mulher branca por eles feita prisioneira. É neste arcabouço mítico construído nessas narrativas que está justificada a violência individual, o desrespeito às regras sociais e o espírito competitivo do homem branco americano, já que todo seu comportamento visa, em última instância, a salvação da mulher branca, símbolo da pureza e superioridade da civilização colonizadora e veículo da redenção do próprio herói. Porém, a urbanização e industrialização do país no início do século XX vêm limitar exatamente um dos elementos-chave nesta estrutura narrativa mitológica: é o fim da fronteira interminável, sempre pronta para ser expandida, explorada e conquistada. É o fim da fronteira que separa a civilização puritana, patriarcal, branca e superior, do inimigo indígena e sua Natureza, ambos selvagens, inferiores e degradados. É assim que nasce o gangster, figura mítica que reproduz as já citadas qualidades do herói americano – competitivo, violento, líder e cheio de iniciativa – mas, agora, ao contrário do homem da fronteira, ou do cowboy, sem um horizonte infinito para onde escapar. As qualidades fundamentais na construção dos Estados Unidos como nação, que 235 Estudos culturais, cinema e mito permitiram o massacre continuado dos povos nativos originais e a destruição da Natureza, passam a constituir também um problema no ambiente urbano. E é a contradição cultural resultante que o gangster vem representar: ele possui todas as qualidades do herói mitológico tradicional, mas sua liderança natural, seu espírito competitivo, seu machismo, seu apego à violência como ferramenta válida para escalar socialmente e, por que não, seu exacerbado consumismo, são também fonte de desestruturação social. Para explicar o gangster, apliquei a metáfora do monstro isto é, aquela figura criada em todas as culturas humanas para incorporar todo o Mal, tudo o que é monstruoso, e cuja eventual destruição ou expulsão representa a derrota do Mal. O aspecto paradoxal do monstro, porém, é que a sua destruição ou expulsão jamais pode ser final, e sua inevitável ressurreição ou retorno tem o efeito de borrar a linha divisória entre o bem e o mal, já que, embora representante do mal, o monstro não deixa de ser filho da mesma sociedade que o repele. 4. Rumos e questões A partir do estudo desses objetos, minhas pesquisas passaram a interrogar uma gama de temas e assuntos relacionados: o mito nas sociedades modernas e, em particular, no cinema hollywoodiano, mas também o cinema brasileiro, para onde passei a lançar também minhas lentes. Para tratar do gangster, fez-se necessário participar do debate sobre gêneros artísticos em geral, e cinematográficos em particular, especialmente para que se pudesse apresentar alguma definição de filme de gangster, mesmo que apenas uma definição provisória e instrumental (neste caso, defini o filme de gangster como aquele em que o gangster é simultaneamente herói e protagonista). Outra figura de interesse, sob o ponto de vista mitológico e simbólico, é a do “herói americano” e a evolução de sua representação desde sua origem aos dias de hoje. A figura do herói também tem sido investigada por mim fora do contexto cultural estadunidense, sendo investigado também nas produções brasileiras. Ainda tendo como objeto a filmografia brasileira, os estudos e projetos desenvolvidos têm se voltado para explorar a representação do malandro, conforme Antonio Candido, do “marginal”, conforme João Cezar de Castro Rocha, e do “monstro”, conforme Fernando Vugman, em filmes como Cidade de Deus, Amarelo manga, Rio 40 graus, O pagador de promessas, entre outros. Sobre estes temas e questões, tenho produzido artigos, capítulos de livros e dissertações de mestrado por mim orientadas. 236 Fernando Simão Vugman Referências BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, 2003. BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: LIMA, L. C. (Org). Teoria da cultura de massa. Trad. de Júlia Elizabeth Levy. São Paulo: Paz e Terra, 2000. CAMPBELL, J. Hero with a thousand faces. Princeton: Princeton University, 1990. CANDIDO, A. O discurso e a cidade: dialética da malandragem. São Paulo: Duas Cidades, 1993. DAMATTA, R. 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New York: University of Oklahoma Press, 1998. WRIGHT, W. Sixgun and society – a structural study of the Western. Berkley: University of California, 1977. 237 DOCUMENTOS DO PRESENTE Jorge Hoffmann Wolff 1. Introdução Recortar, questionar, combinar, sobrepor, deslocar, bricolar, criticar, atravessar a literatura e o cinema brasileiros são os móveis básicos da presente pesquisa, iniciada na graduação em Comunicação Social da Universidade do Sul de Santa Catarina (campus Pedra Branca, Grande Florianópolis). Os “documentos do presente” em questão devem ser vistos de modo paradoxal e ambivalente, uma vez que os termos se revestem de conotações particulares nesta abordagem, a saber: documentos são sempre e incontornavelmente fato e ficção; documentos vistos sob a ótica positivista agem com a intenção de preencher o vazio da história; documentos vistos sob a ótica antinaturalista esvaziam afirmativamente as noções de arte e estética, cultura e natureza; e os não-lugares da memória, situada sempre no presente, embaralham lembrança, esquecimento e invenção. O empírico e o imaginário, ou seja, os pólos daquilo que designamos como “o ficcional” e “o documental”, são tomados portanto em sua intersecção, no lugar entre que ocupam enquanto linguagem e modo de pensar as produções de sentido representadas pela literatura e o cinema brasileiros. No corpo da pesquisa, tais campos do conhecimento são investigados na sua relação com o que podemos chamar de “naturalismo” ou “documentalismo” (e suas vertentes neo) no Brasil – vertentes realistas estas que seriam estilos antes que escolas, conforme sugere Werneck Sodré (1992, p. 53). Trata-se, como não poderia deixar de ser, de uma relação tensa que se manifesta por vezes de forma hipercrítica, como no caso dos escritores Sérgio Sant’anna, João Gilberto Noll e Bernardo Carvalho, e por vezes de forma mais integrada à órbita dominante, neonaturalista ou documentalista, como seria o caso dos escritores Marçal Aquino ou Paulo Lins. Como o consenso ou o dissenso se manifestam em suas opções estéticas e realizações artísticas, isso é uma das perguntas norteadoras da presente investigação – que inclui experiências interculturais como no caso de Cidade de Deus (o livro de Lins; o filme de Meirelles e Lund) ou de O invasor (o filme de Beto Brant; o livro de Aquino, cuja parceria remonta a Documentos do presente Os Matadores e Ação entre amigos). As narrativas ficcionais em questão ganham nova perspectiva crítica, por outro lado, ao serem vistas em contraponto com a vertente de cinema-documentário das últimas décadas no país, tendo como figuras protagônicas os dois Eduardos, Coutinho e Escorel, e os dois Moreira Salles, Walter e João (o documentário na ficção; a ficção no documentário). 2. Bases teóricas A investigação busca analisar as chamadas narrativas realistas e documentais do fim do século XX (décadas de 1980 e 1990), além de ler estas narrativas literárias em sua articulação com os debates a respeito da história, da ficção e da imagem. Assim, tomamos a semioclastia barthesiana como a contraface nostálgica das recentes releituras de Jacques Rancière, que faz uma revisão crítica da trajetória do semiólogo francês enquanto teórico da imagem e, mais do que isto, das próprias noções de modernidade e de vanguarda às quais Roland Barthes está umbilicalmente, isto é, visceral e problematicamente conectado (cf. análise de A câmara clara e Le destin des images no item 2.4). Além de Rancière, e freqüentemente em tensão com ele, outros teóricos da imagem, como Walter Benjamin, André Bazin, Vilém Flusser, Gilles Deleuze, Jean-Louis Comolli e Georges DidiHuberman, são reivindicados para a investigação do significado atual destas “operações” que são as imagens, sejam elas verbais ou não-verbais, no âmbito de uma pesquisa dedicada, como dito acima, às ficções documentais do último fim-de-século. 2.1 Documento/Monumento Nesta etapa inicial, buscamos definir os conceitos de documento, presente, memória, realidade e ficção, com base nestes e noutros pensadores da cultura. O que é então um documento e que variações semânticas a história desta noção conheceu? Perguntas semelhantes são endereçadas às demais noções. Quanto às expressões neonaturalismo e neodocumentalismo, elas têm sido empregadas sistematicamente por Flora Süssekind, desde pelo menos 1980, em sua reflexão sobre a aclimatação do naturalismo, ou melhor, dos naturalismos no Brasil, desde o primeiro surto, no fim do século XIX, tendo como protagonista a figura de Aluísio de 240 Jorge Hoffmann Wolff Azevedo, até o último, em pleno século XXI, representado por figuras, como Aquino ou Lins (cf. Tal Brasil, qual romance). A noção de documento é, como se sabe, histórica e etimologicamente simétrica à noção de monumento, apesar das metamorfoses semânticas verificadas em ambas as palavras no decorrer dos séculos. Lembremos algumas dessas metamorfoses com a ajuda de Jacques Le Goff (1997, p. 95), para quem “estes materiais da memória apresentamse sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador”. A palavra latina monumentum significa um sinal do passado, deriva de memini, memória, ao mesmo tempo em que remete ao épico e à morte. Até o século XVIII, os monumentos representavam o poder de perpetuação das sociedades históricas e o acesso “a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos” (LE GOFF, 1997, p. 95). No século XIX, o termo é ainda usado em referência às grandes coleções de documentos, embora a convivência das duas noções não vá perdurar, sendo engolidos os monumentos pela voragem positivista. O paradoxo em relação a este esmagamento dos velhos monumentos no século XIX é que o Ocidente, embebido no espírito positivista, irá recriá-los conforme a medida de suas necessidades daí em diante, através de novos avatares do historicismo. O último deles, segundo Beatriz Sarlo, em Tiempo pasado. Cultura de la memoria y giro subjetivo, seria a irresistível tendência à monumentalização característica do momento atual, ao qual chama de “império do instante”, iniciado no final do século XX, quando as sociedades ocidentais passam a mirar a si próprias como nunca antes, através dos meios digitais (SARLO, 2005, p. 11), que haviam encetado, por sua vez, a sua própria revolução documental a partir da década de 60, com o advento da informática. Dito de forma breve, a “sociedade de controle”, nos termos de William Burroughs ou Gilles Deleuze, adere decididamente à monumentalização do indivíduo e à sua “auto-arqueologização” (o passado como espetáculo), sem levar em conta que “qualquer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro – incluindo, e talvez sobretudo, os falsos – e falso, porque um monumento é, em primeiro lugar, uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos” (LE GOFF, 1997, p. 103-4). Esta é a tarefa do historiador, segundo LeGoff, assim como “a 241 Documentos do presente tarefa do tradutor”, segundo Walter Benjamin no célebre ensaio de 1923, é simultaneamente fazer e desfazer. 2.2 Documentário/Ficção O cinema-documentário apresenta diversas possibilidades de abordagem, desde as mais tradicionais, institucionais e educativas, até as mais inovadoras, independentes e experimentais, que o levam a assumir e mesmo a enfatizar a sua face ficcional. É nessa direção que se deve entender a afirmação de Andrés Di Tella, segundo a qual o documentário é “o melhor que o cinema tem para oferecer hoje” (DI TELLA, 2005, p. 81). O gênero, localizado entre o documental e o ficcional, é uma forma de experiência audiovisual, sobretudo oposta aos gêneros televisivos e jornalísticos (COMOLLI, 2001, p. 4), já que sua característica básica reside num imperativo de ordem ética, ligado à noção de reflexividade e alheio às injunções do mercado publicitário (LINS, 2004, p.17). Os melhores documentários, brasileiros ou não, têm revelado insistentemente aquilo que as representações dominantes da mídia evitam veicular e aquilo que o conservadorismo no âmbito sócio-político evita ao mesmo tempo enxergar e dar a ver (LEBLANC, 1999, p. 5). Este é um dos motivos pelos quais o documentário é um gênero marginal, como costuma se referir a ele um de seus grandes realizadores em atividade, Eduardo Coutinho, tributário de uma tradição iniciada nas décadas de 1950 e 1960, com o “Cinema Novo” brasileiro, o “Cinema Direto” norte-americano e, sobretudo, o “Cinema Verdade” francês. Uma reflexão crítica sobre três filmes de temática comum – o curta-metragem Ilha das flores (1989), de Jorge Furtado, o média-metragem Boca de lixo (1992) e o longa-metragem Estamira (2004), de Marcos Prado –, vistos enquanto documentos reveladores daquilo que não se quer ver (BERNARDET, 2003, p. 17), foi realizada com a finalidade de analisar suas formas de dar voz ao “outro” e de representar o “real”, e também de contrastar e de situar uns em relação aos outros, percebendo o cinema como “arte cada vez mais impura, aberta ao mundo, à diferença, ao imponderável e ao presente”. (LINS, 2004, p. 11). Para Amir Labaki, reafirmando a sugestão feita acima por Di Tella em nível nacional, “o documentário é a locomotiva estética que tem desbravado caminhos” no mundo do cinema brasileiro (LABAKI, 2006, p. 9) – algo que corroboram amplamente os três filmes. 242 Jorge Hoffmann Wolff 2.3 Mito/Realidade Em busca de ferramentas teóricas para falar dos documentos do presente da cultura, retornamos a Roland Barthes (1915-1980). Há dois conceitos recorrentes na militância ensaístico-literária de Barthes – os conceitos de “mito” e de “realidade” –, pensados nesta pesquisa em relação à teoria e à prática do filme-documentário como fala politizada. A questão poderia ser enunciada assim: como escrever o imaginário contemporâneo em plena “era do depoimento” e sobreviver ao “peso do presente”, tomando de empréstimo os termos de Beatriz Sarlo, uma das grandes leitoras latinoamericanas de Barthes. Jacques Derrida conecta o primeiro e o último Barthes, o de O grau zero da escritura (1953) e o de A câmara clara (1978), enfatizando as relações entre a escritura e a morte, a fotografia e a morte, nos fragmentos de As duas mortes de Roland Barthes. De Derrida emprestamos a idéia da deriva entre esses dois pólos, ao colocarmos igualmente em contato o primeiro e o último momento dessa trajetória marcada pelo recomeço, através sobretudo das Mitologias (de 1957 – o terceiro volume de sua bibliografia) e da Aula inaugural (de 1978 – o antepenúltimo a ser publicado). Em cena, portanto, a escritura e os mitos, o texto e o fulgor do real, com recurso também aos ensaios intermediários que passam de algum modo pela relação entre as mitologias e a realidade ou o realismo, a fim de acompanhar seus conhecidos deslocamentos teóricos e de investigar esses extremos que se tocam. Esses deslocamentos têm início, portanto, com as Mitologias de meio século atrás, mitologias marcadamente marxistas e sartreanas, que vão dar lugar, a partir do fim dos anos 60, à filosofia derridiana e à psicanálise lacaniana e, em conseqüência, a todo um novo saber crítico: o real como o impossível e como disseminação, a fim de buscar alternativas à reconhecida capacidade de regeneração demonstrada pelos mitos contemporâneos. No caso do universo audiovisual, e do gênero documentário, o chamado “cinema do real”, em particular, existem dois ângulos para tentar enquadrar o seu imaginário, se quisermos acompanhar as premissas do último Barthes: enquanto um novo saber crítico, ou enquanto mero espetáculo de realidade; como novos leitores de sempre novas narrativas, ou como desprezíveis espectadores do disparatado show da vida. O reality é, sem dúvida, um dos gêneros mais bem-sucedidos de hoje, na linha depoimentista de “a história sou eu”. Ana Amado, por exemplo, lê o documentário como novo saber crítico em um ensaio sobre a obra do primeiro documentarista blockbuster da história, o norte-americano Michael Moore, apontando, ou melhor, questionando o seu modo de 243 Documentos do presente intervenção enquanto voz autorizada, a fim de legitimar as suas próprias teses sobre a realidade numa série de documentários-denúncia. Moore é, como diz Amado, o autor da versão documental da narrativa do Mal – em suas abordagens dos Estados Unidos da América em Fahrenheit 9/11 ou Tiros em Columbine. Sugerimos então, como hipótese de trabalho, que o cineasta brasileiro Jorge Furtado seria, primeiro, o documentarista da banalidade do mal em Ilha das flores e depois o ficcionista da banalidade do bem em, digamos, O homem que copiava: dois modos de “legitimar uma ‘ficção’ da realidade” (AMADO, 2004, p. 225). O último grande tema de Roland Barthes, como lembra Sarlo, foi o trabalho do escritor, assim como a obsessão inicial fora o trabalho do mitólogo. Mas o trabalho do escritor não significa, como se sabe, escrever de modo correto, sensato ou coerente, ao contrário, significa estar na encruzilhada de todos os discursos em busca da verdade do desejo, a fim de “mudar a língua, mudar o mundo”: Marx com Mallarmé (BARTHES, 1978, p. 26). Se sua proposta vai contra “a língua de toda a gente”, ou aquilo que chamou de Doxa, assumido inimigo número um, há razões de sobra para esta tomada de distância crítica, a começar pela idéia de que o melhor é ter várias línguas dentro de um mesmo idioma, o que também sugere na Aula inaugural de 1977. Trata-se da própria “Babel feliz” mencionada no início de O prazer do texto (1973), livro em que surge o scriptor Barthes em toda sua radicalidade, em pleno uso do que chamou de função utópica, isto é, o desejo do impossível em toda sua perversidade, que aqui é sinônimo de felicidade e ao mesmo tempo função reveladora da “inadequação fundamental da linguagem ao real”: “Que uma língua, qualquer que seja, não reprima outra: que o sujeito futuro conheça, sem remorso, sem recalque, o gozo de ter a sua disposição duas instâncias de linguagem, que ele fale isto ou aquilo segundo as perversões, não segundo a Lei” (BARTHES, 1978, p. 25). Quais as implicações sociais e políticas desse elogio do gozo que se afirma na ressaca de maio de 68 e prossegue enigmático e desafiador? Na idade do som e da imagem digitais, vemos e ouvimos cada vez mais e simultaneamente menos; os sentidos e os caminhos da leitura modificam-se com velocidade, seja para ler a linguagem dos mitos ou da realidade. “A linguagem é uma legislação, a língua é seu código”, ensina o último Barthes, mas “não vemos o poder que reside na língua porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. Jakobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que 244 Jorge Hoffmann Wolff por aquilo que ele obriga a dizer”. E arremata o raciocínio com outro postulado recorrente em seu pensamento: “Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (BARTHES, 1978, p. 4). Assim, a questão da inadequação da linguagem ao real é, sem dúvida, a pedra-de-toque do discurso barthesiano, o qual não deixa de reconhecer o fato inevitável de que “a utopia da língua é recuperada como língua da Utopia”, ou seja, ela nunca fica preservada do poder. No entanto, o que devemos lembrar nesse momento é que, já nos anos 50, Barthes estava ciente de que, ao se desconstruírem os mitos, corria-se o risco de reconstruí-los com vigor renovado, de lhes dar vida nova, com características até então desconhecidas. Mas se não há como fugir da eterna recuperação pelos discursos de poder, “essa água que escorre por toda parte” (BARTHES, 1978, p. 34), é possível trapacear com ele, jogar com a palavra gregária e estabilizadora, tomar o signo como ficção. E é isto o que caracteriza a sua famosa e controvertida noção de Texto, que marca a transição para a sua etapa final e que se propunha a ser “o próprio índice do despoder” (BARTHES, 1978, p. 35). Diríamos então que a narrativa audiovisual de Ilha das flores é um Texto, enquanto O homem que copiava é uma Obra, conforme a famosa oposição estabelecida por Barthes rumo ao prazer do texto, isto é, rumo à década de 70. Tendo em vista de modo permanente a noção de despoder, Barthes, em sua atividade crítica, semiológica e literária, como crítico, professor e escritor, persegue sem descanso (e de forma redudante, segundo Rancière – cf. item 2.4) a meta da desnaturalização de todo estereótipo. Nas Mitologias, escritas no pós-guerra, a visada sociológica, mais precisamente sartreana e marxista, dava as cartas teóricas de sua atividade de mitólogo, a qual ele pretendia transformar em ciência, “ciência mitológica”, assim como nos anos 60 a “ciência semiológica” – ilusões que mais tarde abandona e com as quais acerta as contas, particularmente na Aula inaugural. Nesse primeiro momento, tratava-se, segundo Sarlo (1981, p.15), de um intelectual muito mais sartreano do que marxista – “no olhar sobre a cultura pequeno-burguesa em algumas Mitologias, ou como moral da forma, quando Sartre representava a vanguarda, com a nova língua do ensaio que inventou”. Mas foi em Marx que vislumbrou as “vibrações ideológicas” de termos como “valor” e “trabalho” da forma, embora tenha sido sempre um antidogmático convicto, como, aliás, insiste Derrida em As mortes de Roland Barthes. 245 Documentos do presente Ainda segundo Sarlo, agora a propósito da influência de Brecht e do teatro antiburguês, “Barthes encontra em Brecht um marxista que refletiu sobre os efeitos do signo, resolvendo a tensão de seu momento sartreano e marxista: o compromisso da forma” (SARLO, 1981, p. 17). Em “As tarefas da crítica brechtiana”, artigo de 1956, publicado na revista Arguments, fez o elogio do formalismo do diretor do Berliner Ensemble num tom de manifesto com “todas as marcas de uma época”, como diz Derrida, a propósito de O grau zero da escritura. Barthes postulava então que “a arte deve ser uma anti-Physis. O formalismo de Brecht é um protesto radical contra a armadilha da falsa Natureza burguesa e pequenoburguesa: numa sociedade ainda alienada, a arte deve ser crítica, deve romper qualquer ilusão, inclusive a da ‘Natureza’; o signo deve ser parcialmente arbitrário, sem o que voltamos a cair numa arte da expressão, numa arte da ilusão essencialista” (SARLO, 1981, p. 18). Se o seu último grande tema foi o trabalho do escritor, a idéia permanente no sistema crítico e no gosto de Barthes (como Sarlo enfatiza) foi a de que “não há política revolucionária sem forma revolucionária”, conforme postulara o próprio Marx. No entanto, a partir dos anos 50, a revolução, em termos literários, passa a ser representada pelo nouveau roman, o (mal) chamado objetivismo de Michel Butor, Marguerite Duras, Claude Simon, Nathalie Sarraute e Alain Robbe-Grillet, de modo que a reivindicação de Brecht era contemporânea à dos novos romancistas, conforme manifesta em dois artigos publicados na revista Critique, em 1954, “Literatura objetiva” e “Literatura literal”. A manutenção sem concessões da idéia de forma revolucionária vida afora, de deslocamento em deslocamento, de decepção em decepção (pois diz na Aula que a idéia pode se tornar “decepcionante” diante de certo tipo de leitura), implicou na adesão a uma estética da transgressão (SARLO, 1981, p. 18). O que o leva, a partir dos anos 60, a figurar como o crítico mais proeminente da neovanguarda francesa, revigorada por, entre outros, Severo Sarduy e Philippe Sollers, e seguir adiante, da batalha mitológica antiburguesa à desconstrução do signo sob as formas porosas e perversas do Texto e da escritura, cuja ilegibilidade transformou-se ela própria em mito a ser desconstruído. De qualquer modo, contra a plenitude referencial característica do verossímil realista dominante a partir do século XIX, tratase de “esvaziar o signo” e de colocar em questão a estética secular da “representação”, conforme a conclusão de “O efeito de real” (artigo de 1968). 246 Jorge Hoffmann Wolff Quando a nova narrativa e a nova crítica dos anos 60 passam a ser as duas vertentes de uma só linha de pensamento – que poderíamos chamar de telqueliano – e as vanguardas abolem a distinção entre os próprios gêneros, Barthes propõe uma outra visão em relação a si mesmo, não destituída de humor, ao se situar “na retaguarda da vanguarda”, ou seja, no não-lugar em que se coloca desde o início da Aula, que é aquele de um sujeito incerto, de um sujeito impuro. Precisamente, o sujeito entendido dessa forma vai ocupar o lugar indireto que a literatura fornece aos saberes, “e esse indireto é precioso”, segundo ele, porque “não fixa, não fetichiza nenhum deles” (BARTHES, 1978, p. 18); ou, para dizê-lo com as marcas da época de 1950, não os mitifica. Vale notar, paralelamente, que essas marcas correspondem com exatidão à idéia de peso do presente, que nos permite abordar os documentários de Jorge Furtado como frutos de sua história: Ilha das flores (1989) visto como um filme político ímpar do período da redemocratização, uma narrativa que em letras garrafais cheias de ironia afirma que “este não é um filme de ficção”, ao promover o desmanche determinista e megalomaníaco da história do Ocidente em doze minutos de vertigem audiovisual; O sanduíche (2000), como uma narrativa voltada às políticas do corpo do leitor, ou seja, do espectador, e como teatro do texto em abismo, escancarando igualmente seu procedimento; e O homem que copiava (2003), como típica narrativa da retomada do cinema brasileiro para as massas, em que os artifícios de vanguarda (marginais como o gênero documentário) dão lugar a um discurso acessível “para toda a gente”. De modo que, se o mito é uma fala despolitizada (BARTHES, 1981, p. 162), o documentário visto como fala politizada e artificiosa precisa livrar-se dos mitos que parasitam e tranqüilizam o gênero (lembrese que o mito, para Barthes, é um tranqüilizante e o poder um parasita da linguagem), gênero ou, antes, estilo – segundo Raúl Beceyro (2005, p. 14) – hoje onipresente no bazar mundial das imagens. Aqui se impõe a relação entre o documentarismo minimalista de Eduardo Coutinho e a semiologia literária de Roland Barthes, ambos escritores de livros-filmes sem projeto, bem como a pergunta sobre a crença na representação dos espectadores que transitam com facilidade extrema entre o real e o ficcional, conforme Amado: “Há um combate de exigências opostas com as quais se tem de negociar. O limite dessa negociação é aquela que articula o sentido da produção documental e seu consumo por espectadores, que se deve pactuar, como faz Michael Moore, em termos de uma crença. Não só na dimensão de uma utopia ideológica, mas também no da crença que os espectadores hoje edificam em torno da representação, enquanto somente ela, a 247 Documentos do presente representação, permite olhar a barbárie do mundo como algo da ordem do real” (AMADO, 2005, p. 223). Ou seja, é o (eterno) retorno do mito da velha estética da representação, de modo similar ao que Süssekind o lê nas narrativas ficcionais brasileiras. 2.4 Fotografia/Imagem A câmara clara, o famoso derradeiro texto de Barthes, dedicado à fotografia, é também uma teoria da representação e da “imagem de si mesmo”, através da análise da foto esmaecida, única, aurática de sua mãe quando menina. Este ensaio emblemático mereceu uma revisão crítica recente em Le destin des images (2003), por Jacques Rancière, como parte de uma reflexão maior sobre a necessidade de redefinição dos conceitos de imagem e de estética, a qual inclui a recusa das idéias consagradas de modernidade e de vanguarda, vistas como pouco esclarecedoras “para se pensar as novas formas de arte desde o século passado, [ou] as relações do estético com o político”. (RANCIÈRE, 2003, p. 27). Em A câmara clara, Barthes procura descobrir o “traço inimitável – o “noema” – da fotografia enquanto “arte da Pessoa”. No caso do retrato, que marca as primeiras décadas de sua existência, alguém terá visto, presenciado o referente em carne-e-osso, viu-o em pessoa. Ça a été et quelqu’un y a été – “isso foi” e “alguém esteve aí”, o que seria antes o atestado de que “o que vejo de fato existiu”, e não uma lembrança nostálgica com a finalidade de restituir qualquer coisa, mesmo porque A câmara clara fala da foto em termos de Morte e mesmo de Ressurreição, sem temor de tomá-la como “presença imediata” de ordem metafísica (BARTHES, 1984, p. 125). Morte porque se trata do “espectro da Fotoretrato”, ou do tempo obstruído por “essa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida” (BARTHES, 1984, p. 138). E Ressurreição porque a fotografia o faz mergulhar “na substância religiosa de que sou forjado”, levando-o a perguntar: “não se pode dizer dela o que diziam os bizantinos da imagem do Cristo impregnada no Sudário de Turim, isto é, que ela não era feita por mão de homem, acheiropoietos?” (BARTHES, 1984, p. 12324). O que permite ao semiólogo de formação sartreano-marxista falar nestes termos (ou fazer o “elogio do gozo”, conforme mencionado acima) na última década de sua existência, os anos 1970? Em boa parte aquilo que ele próprio chamaria de semioclastia, a destruição/desconstrução do signo 248 Jorge Hoffmann Wolff ao invés de sua decifração obsessiva (como na época das Mitologias e da Análise estrutural do relato, anos 50 e 60, respectivamente). A nova e derradeira etapa manifesta-se a partir do ensaio S/Z (1969), sua leitura contracanônica – e contra si próprio – de um relato de Balzac, o que também pode ser reconhecido tanto em O prazer do texto quanto na Aula inaugural, assim como em A câmara clara, livro em que lemos um mea culpa revelador de “uma espécie de desconforto que sempre me fora conhecido”: [...] o de ser um sujeito jogado entre duas linguagens, uma expressiva, outra crítica; e dentro desta última, entre vários discursos, os da sociologia, da semiologia e da psicanálise – mas que, pela insatisfação em que por fim me encontrava em relação tanto a uns quanto a outros, eu dava testemunho da única coisa segura que existia em mim (por mais ingênua que fosse): a resistência apaixonada a qualquer sistema redutor. Pois toda vez que, tendo recorrido um pouco a algum, sentia uma linguagem adquirir consistência, e assim resvalar para a redução e a reprimenda, eu a abandonava tranqüilamente e procurava em outra parte: punha-me a falar de outro modo. (BARTHES, 1984, p. 18-19). Mas os conhecidos deslocamentos de rota em sua longa experiência de pensador-escritor reduzem-se a dois momentos (que se tocam), segundo a abordagem crítica de Rancière: o antes e o depois do estruturalismo cientificista e militante, cujo marco se encontra no programa de abordagem radical do universo simbólico, a semioclastia, último grande avatar da deriva teórica de Roland Barthes, abandonado assim, enquanto intelectual situado no entrelugar da crítica e da criação, ao prazer do texto e ao trabalho do escritor. Pouco antes de escrever A câmara clara, compunha e ministrava os cursos de A preparação do romance, em que aproxima a fotografia, que diz “isso foi”, do haicai, que diz “é isso”. Para ele, “o haicai se aproxima muito do noema da fotografia” (BARTHES, 1984, p. 119). A sessão do dia 17 de fevereiro de 1979 contém muitas cifras para o que viria a ser o breviário de Barthes sobre a fotografia, e especialmente sobre sua posição teórica e sua visão da idéia de representação através do fotográfico. A guinada fenomenológica é explicitada no terceiro item de sua lista de “Paradoxos em torno da Fotografia”: Tanto para a fotografia como para o cinema, parece que ainda não pudemos definir a especificidade da imagem 249 Documentos do presente fotográfica, o efeito próprio que ela possui (contra outras artes). Não podemos formular seu “noema”: o modo específico de aparecer, de ser atingido pela visada noemática, de intencionalidade; esse vocabulário fenomenológico pode ser justificado pelo fato que, para a Fenomenologia, a visão é a instância decisiva de conhecimento. (BARTHES, 1984, p. 145). Em seguida, Barthes avançaria a sua hipótese, a qual afirma existir há tempos, embora “nunca explorada a fundo” (o que logo faria): “o noema da foto deve ser buscado no ‘isso foi’. Para ele, no entanto, o cinematógrafo permaneceria carente de noema, mesmo porque aquilo que desperta seu interesse no que diz respeito à imagem é a fotografia, e um certo tipo de fotografia em especial: a foto envelhecida de sua mãe, a única entre as que analisa que ao leitor não é dado ver. Diz Barthes: “A fotografia era muito antiga. Cartonada, os cantos machucados, de um sépia empalidecido, mal deixava ver duas crianças em pé, formando grupo, na extremidade de uma pequena ponte de madeira em um Jardim de Inverno com teto de vidro” (BARTHES, 1984, p. 101-2). De fato, para ele, o mundo deveria ser dividido em um antes e um depois da fotografia, à diferença de Pierre Legendre (crítico dos Cahiers du Cinéma, citado pelo próprio autor), que o separara em ante e depois do cinema. E à diferença também – poderíamos acrescentar – de Jacques Rancière, que veria um antes e um depois da narrativa realista que torna possível a fotografia, durante a fundação daquilo que chamamos frouxamente de modernidade e que marca, a seu ver, o advento do “regime estético das artes”. Segundo Rancière, o que se costuma definir como “antigo” e “moderno” representa, na verdade, uma vasta simplificação dos regimes das artes predominantes no Ocidente, que divide em três: o regime ético (cuja referência era Platão), o regime poético ou representativo (cuja referência era Aristóteles) e, finalmente, o regime estético, que provoca uma profunda mudança nas relações entre o visível e o legível. Inaugurado pela mirada do realismo pictórico e literário no início do séc. XIX, o regime estético enfim liberaria a arte de qualquer hierarquia em relação a temas ou gêneros, significando a “ruína do sistema de representação” e abrindo caminho para o modo de ver disseminado pela descoberta da fotografia. Paradoxalmente, é a literatura deste mesmo período que Barthes inscreveria em seu cânone pessoal (Balzac, Chateaubriand, Flaubert), embora represente e celebre o neovanguardismo estético, desconstruído à sua maneira por Rancière. 250 Jorge Hoffmann Wolff Em suas invectivas contra as abordagens que atribuem aos aparatos técnicos a inauguração de novos modos de perceber o mundo – tendo em A câmara clara o seu paradigma –, ele lança mão de um conceito de imagem que ultrapassa a visão indicial representada, entre outros, por Walter Benjamin, André Bazin ou Vilém Flusser. Embora sejam autores de estudos fundamentais sobre o assunto, estes tendem a ver na foto “uma emanação [literal] do referente” (BARTHES, 1984, p. 124), sendo uma emanação engendrada, portanto, magicamente por um meio de reprodução mecânica da realidade. Para Rancière (2003, p. 14-15), o conceito de imagem designa duas coisas diferentes: de um lado, “a relação simples que produz a semelhança com um original”, e de outro “o jogo de operações que produz o que nós chamamos de arte: precisamente uma alteração da semelhança”. Figurativas ou não, posto que não são exclusividade do visível (“existe o visível que não faz imagem e há imagens que são todas em palavras”), as imagens para o autor de Le destin des images são “operações que produzem uma separação, uma dessemelhança”. Sendo assim, as imagens definem-se melhor e menos esotericamente, segundo ele, enquanto operações, isto é, enquanto “relações entre um todo e as partes, entre uma visibilidade e um poder de significação e de afeto que lhe é associada, entre expectativas e o que as vêm preencher” (RANCIÈRE, 2003, p. 11). Operações estas que não podem ser reduzidas, a seu ver, ao “isso foi” e ao mero captar do instante inscrito na relação presente em todo ato fotográfico, que Barthes (1984, p. 21-22) definia como a “experiência do sujeito olhado e do sujeito que olha”. Cabe lembrar, porém, que a Fotografia, conforme se lê logo nas primeiras páginas de A câmara clara, é “sempre invisível: não é ela que vemos” (BARTHES, 1984, p. 16), o que pode ser considerado como uma forma de separação ou dessemelhanças em relação ao “isso foi”. Aliás, Barthes (1984, p. 25) reconhece que “foi antes da Fotografia que os homens mais falaram da visão do duplo”. Esse antes aparece grifado no original e corresponde precisamente ao tempo em que Rancière identifica o nascimento de um “novo regime das artes”. 3. Perspectivas O campo infinito da literatura contém em si as chaves do que Rancière denomina, como se viu, “regime estético das artes”, quando, no início do séc. XIX, antes do advento da fotografia, o olhar realista na pintura e na literatura se disseminaram. Mas somente a partir do emprego da técnica fotográfica seria possível a invenção do cinema, que criou por 251 Documentos do presente sua vez novos modos de ver e de lidar com a realidade. São estes, portanto, os vetores da pesquisa: a literatura como narrativa silenciosa e supostamente decadente na atualidade, sendo inegável que o público tenha migrado há já algumas décadas para outros meios, em que, aliás, a literatura segue circulando e se transformando através de novos suportes e formatos; e o cinema como seqüência e sintoma do substrato literário e cultural anterior, o qual igualmente vive seu processo de superação ou autosuperação por causa das redes digitais de circulação de som e imagem. O projeto em curso busca pôr em conexão os dois universos através da análise de seus textos, escritos ou fílmicos, tendo na teoria das imagens como força o seu ponto de partida analítico e crítico. Referências ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. AMADO, A. Michael Moore e uma narrativa do mal. In: MOURÃO, M. D.; RAMOS, F. O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. BARTHES, R. Mitologias. 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Reflexões iniciais Neste texto, procuramos delinear alguns aspectos da trajetória de nossos estudos como professora e pesquisadora do Programa de PósGraduação em Ciências da Linguagem, na “Linha de Pesquisa: Linguagem e Processos Culturais”. Destacamos, inicialmente, que nossos estudos visam a reflexões sobre a estética da linguagem da arte e sobre os meios de comunicação que a veiculam. Nesse sentido, as pesquisas são direcionadas para as diferentes manifestações artísticas e o contexto, observando também: o lugar que a arte ocupa nas sociedades, os mitos que a arte traz à cena, as mídias que a veiculam e, também, a práxis pedagógica que a didatiza. A arte representa a vida verossímil ou inverossímil. Ela possui um duplo poder: expressivo e sugestivo. Pelo primeiro, ela exprime o inteligível no sensível. É capaz de encarnar uma idéia ou um sentimento, na matéria, seja esta a tinta, o mármore, as palavras, ou o som. Em nossa percepção, a obra de arte anuncia-se como ponto de encontro entre o particular e o universal da experiência humana. Sendo assim, as obras de arte e, por conseguinte, suas linguagens refletem-se como produtos culturais de uma época e criação da imaginação ou de uma ideologia. Conforme afirma Canclini (1984, p. 8): Supõe-se que as obras de arte, transcendem as transformações históricas e as diferenças culturais e, por isso, estão sempre disponíveis para serem desfrutadas – como uma linguagem sem fronteiras – por homens de qualquer época, nação ou classe social para receber sua “revelação”. A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações Sobre as linguagens artísticas salientamos que estas emergem das dimensões mais sinuosas e incomensuráveis da subjetividade humana ao revelar, em suas formas expressivas através da dança, da música, do teatro, da poesia, das artes plásticas e tantas outras, os meandros mais inefáveis dos sentimentos, das paixões, dos sonhos, do imponderável, da percepção intuitiva conjuntamente com a consciência meditativa. Para Langer (1962, p.97), A arte desnuda os recônditos mais originários da vida. Interpela as camadas mais profundas, sutis e enigmáticas do humano. Com seu espírito de transgressividade as linguagens de arte subvertem os modelos ortodoxos e cristalizados que recalcam e interditam as expressões mais originárias, dionisíacas e afirmadoras da vida em sua abundância e exuberância primordiais. De acordo com o autor, a emergência de novos paradigmas ocorrida nas últimas décadas aponta para novas visões e posturas diante da vida e do mundo. É a partir dessas reflexões que, na linha de pesquisa “Linguagem e processos culturais”, procuramos desenvolver nossos estudos, evidenciando ainda as diferentes estéticas das linguagens artísticas verbais e não-verbais. É oportuno salientar ainda que, durante a nossa trajetória no Mestrado em Ciências da Linguagem, orientamos pesquisas sobre as linguagens artísticas de âmbitos local e global, em diferentes tempos. Também coordenamos o Grupo de Pesquisa A estética das linguagens verbais e não-verbais, e os projetos de Pesquisa Os Artistas e Seus Lugares e Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual, escrita e midiática. O olhar para a estética e a identidade das linguagens artísticas sinaliza nossa percepção para o hibridismo que por elas perpassa. Sobre o hibridismo, sublinhamos que o apreendemos a partir das concepções de Homi Bhabha, na medida em que este “valoriza o hibridismo como elemento constituinte da linguagem e, portanto da representação” (p. 114). Assim, qualquer tentativa de representação é híbrida por conter traços dos dois discursos, num de jogo de diferenças. Observamos ainda sobre o espaço entre o ver e o interpretar, chamando-o terceiro espaço – o interstício entre significante e significado do qual, considerando o contexto sócio-histórico e ideológico do usuário da linguagem (o locus da enunciação), se pode ter visibilidade do hibridismo. 256 Jussara Bittencourt de Sá Enfatizamos a construção do significado pela interpretação (ou ressignificação, conseqüente da subjetividade atribuída à existência de espaços intersticiais), negando a falsa idéia de transparência, homogeneidade e considerando a necessidade de historicizar e contextualizar o momento da enunciação. Procuramos, então, ao focalizarmos as estéticas das linguagens artísticas, observar o cruzamento de fronteiras, identificação étnica e visão do hibridismo dessas linguagens, como pressupostos relevantes para também refletirmos sobre nossa identidade. Nessa perspectiva, a linguagem artística tem sido cada vez mais compreendida como uma forma de conhecimento fundamental nos processos de renovação e de transformação dos valores, da cultura. A presença da arte se diversifica de acordo com as singularidades de cada momento, com os valores que predominam em cada contexto sóciocultural. Logo, estudar as diferentes linguagens artísticas, como representações das vidas vividas ou pensadas, tem se mostrado extremamente instigante. 2. Sobre as disssertações O contexto é um dos elementos dos quais os artistas extraem estratégias para entrar em relação com os participantes de seus trabalhos, elaborando o que também se pode denominar de máquinas relacionais, a partir de sua experiência estética de sua linguagem. Neste sentido, acentuamos a relevância das pesquisas que direcionam seu foco para as manifestações artísticas, na medida em que estas desvelam, muitas vezes, a capacidade interterritorial das estéticas e das identidades, promovendo cruzamentos, passagens, trocas, contaminações advindas de diferentes lugares. Assim sendo, procuramos instigar o desenvolvimento de dissertações sobre as diferentes manifestações artísticas e sua veiculação, observando as estéticas dessas linguagens que sinalizam o representar do imaginário humano, bem como o pensar sobre a arte e sua prática docente. Na seqüência, apresentamos algumas considerações acerca das dissertações que orientamos ou que estão em fase de elaboração. 257 A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações 1) O mito nosso de cada dia: a linguagem utilizada na revista Capricho na mitificação do jogador Kaká (2005). O objetivo do estudo desenvolvido por Cláudia Nandi Formentin foi o de apresentar uma análise estética de matérias que anunciam a ocorrência da formação de mitos, observando de que forma esta é construída através dos veículos de comunicação de massa em nossa sociedade. Enfatizamos, no recorte teórico, a importância das informações que são veiculadas, analisando a possibilidade de uma conexão com mitos da antigüidade clássica, em especial o mito de Apolo. Dentre os veículos de comunicação de massa, em especial, os voltados para os adolescentes, elegemos como objeto de investigação a revista Capricho. Observamos esta como meio de veiculação para o estudo dos mitos. Evidenciamos as matérias sobre o jogador Kaká, (Ricardo Izecson dos Santos Leite), por ter sua imagem amplamente divulgada pela referida revista, como ícone possível para que se estabeleça uma articulação com o mito grego Apolo. As teorias apresentadas tornamse suportes para a análise das matérias veiculadas pela Revista Capricho, na qual se procura examinar de que maneira aconteceria a reinscritura dos mitos da antigüidade em nos nossos dias. 2) Matizes e (pré) conceitos da mulata nas obras: “A escrava Isaura” e “O Cortiço” (2006). O estudo empreendido por Felisberto Augusto da Fonseca propôs uma leitura das obras literárias A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, e O Cortiço, de Aluísio Azevedo, tendo como eixo para reflexão uma investigação dos matizes e do preconceito da mulata nas referidas obras. Partiu-se, inicialmente, de reflexões sobre a estética da arte literária, localizando-a e contextualizando-a no período da edição das obras. A análise estética da linguagem da arte literária destacou os diferentes matizes e também o preconceito da mulata que aparece representada pelas personagens Isaura e Rita Baiana, nas respectivas obras. Procurou-se destacar e avaliar as diferentes abordagens dadas pelos autores do século XIX. Ao centrar-se nas personagens Isaura e Rita Baiana, esse estudo tentou trazer à discussão como a linguagem utilizada pelos autores em seus enredos e diálogos coloca em cena reflexões e desvelamentos do preconceito racial na sociedade brasileira da segunda metade do século XIX. Entendemos que tais elementos contribuem para referendar a arte literária como importante enunciado para a leitura dos tempos e das sociedades, dentre outros. 3) O Boi-de-mamão vivo (e) na escola: uma leitura do Grupo Folclórico Beco do Beijo da cidade de Tubarão (2006). A dissertação elaborada por Miriam Terezinha Lopes Lúcio apresentou uma pesquisa 258 Jussara Bittencourt de Sá sobre a linguagem da arte do folclore, em especial, o boi-de-mamão a partir da leitura da performance do Grupo Folclórico Beco do Beijo da cidade de Tubarão. Procurou-se promover uma análise da estética da linguagem desse espetáculo, enfatizando as vozes sociais presentes na encenação da vida, morte e ressurreição do Boi. A estética da linguagem do espetáculo revelou-se pela inclusão de elementos novos. Evidenciou-se como as personagens humanas vivem em constante rotação e transformação bem como os bichos, embora esses últimos permaneçam intactos na sua essência, ou seja, não se apagam da memória coletiva. O Grupo traz à cena o mito original, o ritual da morte e ressurreição do Boi. Destacou-se assim como o Grupo estudado mantém uma forma peculiar, ao promover o hibridismo estético na montagem e representação o Boi-de-mamão, recriando ou reinventando a lenda do Bumba-meu-boi em estilo açoriano, usando uma linguagem própria e, com isso, anunciando outras vozes sociais. Refletiu-se, ainda, sobre os caminhos que conduzem leitores /educadores à importância do cultivo, vivência e uso do mito e folclore no contexto educativo. 4) C’est la vie: La vie en close entre sons, formas e conteúdos (2007). A proposta de estudo Gutemberg Alves Geraldes Júnior foi a de analisar as diferentes estéticas da linguagem poética leminskiana presentes em seu livro La vie en close. Enfatizou-se, no recorte teórico, a importância de se lançar um olhar sobre as diversas formas de percepção causadas pela poesia do autor curitibano, como, suas potencialidades sonoras (melopaicas), imagéticas (fanopaicas) e de conteúdo (logopaicas). O estudo, em síntese, destacou as estéticas da linguagem verbal e não-verbal na referida obra. Em sua estrutura, a dissertação apresentou teorias sobre pós-modernidade, sobre estética destacando o lugar das artes, com foco especial para o lugar da poesia. Focalizou-se, ainda, o papel da poesia como processo evolutivo da linguagem. 5) Um estudo sobre o ensino da arte: Proposta Curricular e a prática docente (2007). A dissertação elaborada por Silésia de Aguiar Mendes Maciel apresentou um estudo sobre os pressupostos teóricos no ensino da arte e a práxis docente do ensino fundamental e algumas sugestões para esta prática. Como aporte teórico recorremos às reflexões sobre a arte, à historicização do processo de inserção de seu estudo no sistema educacional brasileiro e aos pressupostos teóricos para seu ensino, bem como aos aportes da Proposta Curricular de Santa Catarina, de 1998. A teoria apresentada serviu como eixo articulador/condutor para a análise dos dados colhidos na pesquisa de campo. Foram selecionados dez 259 A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações professores da rede estadual de ensino do município de Criciúma, de escolas no centro e cinco escolas nos bairros. Procurou-se investigar como estava acontecendo a prática docente dos professores de artes da rede estadual de ensino, nas séries do ensino fundamental. Destacou-se também a relevância da Proposta Curricular de Santa Catarina 1998 para o despertar dos professores de arte para a importância de seu papel na formação do cidadão. Observou-se, ainda, a partir das obras do artista Sérgio Honorato, pesquisado durante os estudos do Projeto de Pesquisa “Os Artistas e Seus Lugares”, de Criciúma, como se poderia trabalhar com a arte de um artista do lugar. Salientou-se que o desenvolvimento através do exercício da imaginação, da auto-expressão, da descoberta e da criação recupera uma das funções deste ensino, ou seja, a de possibilitar um espaço para novas experiências perceptivas, propiciadas por uma diversidade de valores, sentidos e intenções. 6) O artista e o seu lugar: as imagens e as narrativas da mulher araranguaense nas esculturas de Marta Rocha (2008). A pesquisa efetuada Sandra Regina de Barros de Souza teve como objetivo verificar quais vozes sociais do feminino e que aspectos da cultura local são despertados pela estética da linguagem em obras da artista araranguaense Marta Rocha, através das narrativas de membros componentes do CIART. A opção por elaborar esse estudo deu-se durante pesquisas realizadas pelo Projeto “Os artistas e Seus Lugares”, que possibilitou à aluna a interação com a artista e suas obras. Procuramos examinar a constituição dessas narrativas sob a ótica das teorias de gênero, da arte, da história da arte, aspectos teoria da linguagem de Mikhail Bakhtin e do existencialismo moderno de Jean Paul Sartre. Demarcou-se, assim, a construção da consciência acerca do feminino na cultura araranguaense a partir dos elementos do imaginário que se construiu na percepção de dois grupos mulheres araranguaenses que fazem parte do CIART. Os dados levantados foram analisados utilizando-se procedimentos da técnica de grupo e de análise da historia oral. Esta apontou como as narrativas produzidas pelas componentes do grupo, instigadas a partir da observação sobre a arte de Marta Rocha, podem traduzir as histórias das mulheres, seus perfis sociais, trazendo consigo as vozes sociais do feminino: avó, mãe, filha, neta, sobrinha, tia, amiga, esposa, namorada, como também o papel profissional e a condição de tempo e do lugar. 7) Leitura da música popular brasileira: uma proposta para atividade teórico/prática no ensino de Arte (2008). O estudo empreendido por Kátia Regina de Souza Pereira Rufino procurou apresentar uma 260 Jussara Bittencourt de Sá proposta de atividades para a leitura da arte da música, destacando a música popular brasileira e seus gêneros, no ensino fundamental. O foco teórico da pesquisa centrou-se na perspectiva da linguagem e da leitura, empreendendo uma perspectiva da música popular brasileira, observando-a como articulação da linguagem verbal e não-verbal. A base empírica da pesquisa-ação desenvolveu-se em uma sala de aula na disciplina de Arte, em uma 7ª série do ensino fundamental da rede municipal de ensino de Santa Catarina. A metodologia contou com um período de observação e um de intervenção, considerado, mais precisamente, um período de participação ativa. O período de observação possibilitou verificar e comprovar como ocorre o ensino-aprendizagem de leitura da música na disciplina de Arte. O período de participação ativa foi contemplado com a leitura de algumas músicas de diferentes gêneros da música popular brasileira, seguida de discussões que ofereceram real possibilidade de construção de sentido durante a leitura-interação do aluno com os textos e gêneros desse campo da música. Como fechamento da proposta de leitura, os alunos produziram músicas do gênero rap, um dos gêneros explorados em sala de aula. A partir da análise, observou-se que a música popular brasileira, como importante elemento no processo de ensino-aprendizagem de leitura, mesmo num curto período de tempo, permitiu que os alunos manifestassem leitura compreensiva dos textos (músicas) propostos, ou seja, eles demonstraram resposta ativa e, assim, foram além do processo de decodificação e repetição, no processo de leitura. 8) Dissertações em curso. As dissertação que estão em fase de escrita são: Um estudo sobre a presença da Estética da linguagem PósModerna na composição do Programa Bom Dia Litoral, de Leonir Alves; A estética de Lilith em composições de Rita Lee, de Liomar Vanderlan Fernandes; e A nona arte: análise dos aspectos estéticos das histórias em quadrinhos, de Fábio Ballmann. 3. O Grupo de Pesquisa e os Projetos de Pesquisa Este grupo está diretamente relacionado à linha de pesquisa Linguagem e processos culturais e procura empreender de forma abrangente estudos sobre as diferentes estéticas das linguagens verbais e não-verbais, suscitadas nas manifestações artísticas e nas mídias. São propostas pesquisas sobre os processos artísticos e midiáticos de âmbitos local e global, em diferentes tempos, evidenciando seu papel sóciohistórico. Visa-se ao estudo das interações orais, escritas e visuais como 261 A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações elementos constitutivos de práticas culturais. Nessa perspectiva, os objetos de pesquisa são observados como promovedores das relações/interações criativas, identitárias e educativas. Do grupo de pesquisa, depreenderam-se dois projetos de pesquisa que coordenei e coordeno: Os Artistas e Seus Lugares e Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual, escrita e midiática. 3.1 Os artistas e seus lugares (2004-2007) O ponto nodal dos estudos do Projeto de Pesquisa “Os Artistas e Seus Lugares” deu-se através da leitura analítica da representação dos lugares na produção artística/artesanal, focalizando, em especial, estéticas das linguagens nas obras. Neste sentido, esse projeto desenvolveu-se a partir da articulação, da discussão e da reflexão entre o referencial teórico, obtido pela pesquisa bibliográfica, e pelo material encontrado na pesquisa de campo. Esta se realizou através do encontro com os artistas/artesãos. Partimos da concepção de que a arte é uma linguagem de que o homem necessita para construir um conjunto de atos que transformam a matéria oferecida pela natureza e pela cultura. Toda a arte é assim resultado da produção humana. De acordo com Alfredo Bosi (1989, p.13), a arte é conhecimento. Logo, para tal acontecimento, ocorreram sensações e imagens, afetos e idéias, numa palavra, movimentos internos que se forma em correlação estreita com o mundo sentido, figurado. Mediante essas reflexões, depreenderam-se muitas atividades de pesquisa e observação in loco, dentre elas, a visita de estudos à V Bienal do Mercosul – Porto Alegre – RS, ao Santander Cultural e ao MARGS, ao Centro Integrado de Cultura – Florianópolis, e de exposições no SESC. O objetivo da participação dos pesquisadores no evento e nos espaços culturais fora o de promover momentos nos quais as discussões sobre as estéticas das linguagens artísticas acontecessem juntamente com a observação das obras e dos próprios espaços de sua exposição. O grupo também elaborou o mapeamento de grupos folclóricos, dos artistas e dos espaços culturais de municípios da microrregião da Amurel. Estas ações tiveram como objetivo apresentar um panorama da arte nesses municípios. O grupo de pesquisa participou do encontro dos artistas plásticos da região, com os acadêmicos da Academia Tubaronense de Letras. Neste caso, visou-se à apresentação de palestras pelo grupo, bem como interação e integração com os artistas e associações. 262 Jussara Bittencourt de Sá Merecem ser destacadas, dentre as ações durante as atividades de pesquisa, as visitas aos artistas Willy Zumblick, Sérgio Honorato, Marta Rocha, Richard Calil Bulos (o Chachá), Flávio Cooker, João Rodrigues e Vera Sabino. O contato e a interação com os artistas e obras resultaram em duas dissertações de mestrado, duas de graduação, a autorização das imagens de suas obras para a capa da Revista Linguagem em (Dis)curso, além de pôsteres e ensaios que foram apresentados em seminários e congressos. Ao longo da trajetória deste projeto de pesquisa, constatamos que os resultados obtidos anunciavam um significativo efeito multiplicador e disseminador dos objetivos propostos no projeto. Faz-se relevante registrar que foi o contato com artistas e suas obras que suscitou, em muitos pesquisados, o desejo de um maior conhecimento histórico/teórico sobre a arte. A atuação dos pesquisadores promoveu o fomento em pesquisas sobre a arte. Também ocorreram intervenção e interação junto à comunidade, contribuindo para o aprimoramento, tanto dos conhecimentos como das interações entre pesquisadores e pesquisados. 3.2 Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual, escrita e midiática (2007 – 2012) Centrado na linha de pesquisa “Linguagem e processos culturais”, o projeto de pesquisa foi elaborado quando ainda estávamos desenvolvendo o projeto de pesquisa Os Artistas e Seus Lugares. Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual, escrita e midiática visa empreender estudos sobre as estéticas das linguagens das manifestações artístico-culturais, tanto visuais e escritas, como orais e midiáticas, produzidas na contemporaneidade ou em tempos passados. Cabe ressaltar que a estética observada na leitura de obras de artes contribui para a percepção e o entendimento da dinâmica das linguagens artísticas. De acordo com Canclini (1984, p. 11): Em determinada perspectiva pareceria que a linha demarcatória entre os objetos instrumentais e os artísticos depende da intervenção do sujeito que percebe; mas, em outro sentido é evidente que alguns objetos possuem maior 263 A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações ducticulidade para suscitar experiências estéticas. A rigor, ocorre que ambos – o observador e os objetos – estão determinados por um sistema de convenções que na distribuição de funções sociais, adjudica, em cada cultura e em cada período, os atributos de instrumentalidade e os estéticos, os traços diferenciais e suas combinações possíveis. “O gosto clássico”. Percebemos, assim, que os artistas, com suas diferentes idades e maturidade pessoal, ao criarem suas obras, procuram imaginar e inventar “formas novas”, com sensibilidade, e que são representações e expressões do mundo natural e cultural por eles conhecido. A leitura dessas linguagens deve enunciar como a arte pode suscitar as nossas mais sutis formas de percepção e contribui para o desenvolvimento de algumas de nossas mais complexas habilidades cognitivas. Um outro aspecto seria a percepção das migrações e das identidades que perpassam nessas manifestações. Leva-se em consideração o fato de que o Brasil se reflete, por sua colonização, como um arquipélago cultural, possuindo produção artística que desvela a contaminação das diferentes etnias que formam sua população. Focalizam-se, assim, as estéticas dessas linguagens, observando cruzamento de fronteiras, identificação étnica e visão do hibridismo cultural. Conforme Bhabha, a diversidade que perpassa a cultura pode ser considerada a categoria da estética comparativa: a diferença cultural é um processo de significação, através do qual enunciados sobre ou em uma cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade” (BHABHA, 1994, p. 34). Outra peculiaridade que refletiria o hibridismo seria o atravessamento de fronteiras nacionais. Para Stuart Hall, “a globalização se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço – tempo, tornando o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado” (2000, p. 75). Nesse sentido, vale pontuar que, em contraponto à homogeneização global, percebemos também prevalecer o que, conforme Hall, seria a diferença das especificidades da etnia e da alteridade e, ao invés de se pensar no global como “substituindo” o local, seria mais acertado pensar numa nova articulação entre “o global” e “o local” (HALL, 2005, p. 77). 264 Jussara Bittencourt de Sá Além do hibridismo proveniente das diferentes etnias, dos deslocamentos das fronteiras, levamos em consideração também as peculiaridades do hibridismo como enunciação da estética das produções artísticas desse nosso tempo. Nossas reflexões consideram as diferentes conceituações desse tempo. Alguns autores o entendem como pós-modernidade e outros, como hipermodernidade ou modernidade tardia: uma época onde espaço e tempo fundem-se numa categórica pluralidade de mundos possíveis, de ressignificações de conceitos e transformações de paradigmas. O fato é que este tempo, em sua essência, tem buscado os deslocamentos e as mudanças irrevogáveis na representação dos objetos e, principalmente, do modo como eles mudam. Sendo assim, estudar estéticas das linguagens das manifestações artístico-culturais, tanto visuais e escritas, como orais e midiáticas, presentes ou pretéritas, dentre outras, contribuem e promovem o entrelaçamento dos registros que sinalizam a história das culturas, seus legados, em que a ocupação e as mudanças dos espaços geográficos fazem-se importantes à reflexão, tanto do tempo passado, para o presente, como também ao futuro do presente. 3.1.1 Subprojetos e atividades desenvolvidas O grupo que participa do projeto de pesquisa Identidades e Migrações participou do II Encontro de Estudos sobre a imigração alemã: os Vales dos Rios Braço do Norte e Capivari, apresentando a palestra intitulada Identidades e Migrações: a mitologia na nostalgia germânica, de minha autoria e de Fábio Ballmann; e com pôster Germanicidade brasileira: aspectos da colonização alemã em São Martinho, de minha autoria e dos mestrandos Cíntia Rosa da Silva, Jeanine da Costa, Fábio Ballmann, Leonir Alves e Liomar V. Fernandes. a) Identidades e Migrações: a mitologia na nostalgia germânica. A palestra proferida por mim e por Fábio Ballmann procurou enfatizar algumas considerações obtidas a partir do desenvolvimento do projeto de pesquisa Migrações e identidades: a estética das linguagens oral, visual, escrita e midiática. Evidenciaram-se as estéticas dessas linguagens, observando cruzamento de fronteiras, identificação étnica e visão do hibridismo cultural como pressupostos relevantes para se pensar a nossa identidade. A pesquisa focalizou os estudos realizados no município de São Martinho. Ao trazer à cena o município de São Martinho (a 40 quilômetros de Tubarão), os palestrantes destacaram que é possível descansar nas 265 A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações pousadas, usufruir das cachoeiras e principalmente apreciar as obras do artesão Ademar Feuser. Observaram que num rápido olhar seria possível perceber a sensibilidade e toda a nostalgia histórica em torno de seu trabalho. Ele se dedica à madeira há quase 50 anos e, em meio a uma comunidade mergulhada na cultura germânica e no artesanato, a dica é prestar atenção às cadeiras criadas em madeira. As criações de Ademar são carregadas de nostalgia de uma Alemanha deixada para trás, em decorrência da guerra, e das dificuldades que muitas famílias enfrentaram, inclusive a dele. E tal qual o legado recebido de seus ascendes, nas cadeiras de Ademar Feuser, é possível compreender o entrelaçamento do passado com o futuro, no momento em que essa arte/artifício recebe continuidade na criatividade/sensibilidade que toma forma pelas mãos de seu filho Harick Rodolfo Feuser, ainda adolescente. E, para falar do trabalho deste artesão, um pouco de mitologia permite dar o colorido que a obra merece. Assim, a região sul, em especial, São Martinho pode se tornar um momento de cultura e um resgate nostálgico também da germanicidade brasileira b) O pôster intitulado Germanicidade brasileira: aspectos da colonização alemã em São Martinho, de nossa autoria e dos mestrandos Cíntia Rosa da Silva, Jeanine da Costa, Fábio Ballmann, Leonir Alves e Liomar V. Fernandes, também é resultado de pesquisas do projeto do PPGCL Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, visual, escrita e midiática. Com ênfase aos temas: Preservar é eternizar!, Criar é preciso! e Recordar é reviver!, os pesquisadores destacaram a arte com características germânicas de nossa região, em especial, a relevância do papel de instituições, como Casa da Cultura e o Museu Memorial, localizadas no município de São Martinho para a promoção da nossa cultura. 3.2.2 Análise da influência das etnias colonizadoras nos topônimos de municípios da microrregião da AMUREL Este estudo faz parte do projeto Identidades e Migrações: a estética das linguagens oral, escrita, visual e midiática, do Curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Unisul. Tem como aluna pesquisadora e bolsita Helena Scmidt, do Curso de Letras, sob minha orientação, e pertence ao grupo de Pesquisas do CNPq/Unisul. Serão analisados aspectos de colonização nos municípios que compõem a bacia hidrográfica do rio Tubarão. 266 Jussara Bittencourt de Sá A microrregião da Amurel apresenta-se, por sua colonização, um arquipélago cultural, pelas diferentes etnias que formam sua população. Logo, estudar a toponímia como instrumento fundamental de preservação da cultura e da identidade local contribui para a valorização histórica dos costumes, pessoas, eventos e lugares. Através da investigação da influência das etnias que colonizaram determinadas regiões podem-se observar traços histórico-culturais que levaram a tais designações de lugares pela população local. Portanto, considera-se o estudo dos topônimos uma temática importante para o investigador que pretende conhecer e compreender a origem das identidades de cada região e suas mudanças ao logo do tempo. Entende-se que o registro desta pesquisa tornar-se-á um relevante documento que a Unisul legará aos municípios investigados e, por conseguinte, aos estudos sobre a história das etnias, das culturas, seus legados, as mudanças dos espaços geográficos. Estudar o nome dos lugares faz-se importante à reflexão tanto do tempo passado, para o presente, como também ao futuro do presente. O presente trabalho tem como metodologia norteadora os pressupostos contidos nas pesquisas: bibliográfica, de campo e exploratória. Entende-se, conforme Rauen (2006), que a pesquisa bibliográfica ou de referência consiste na busca informações no acervo bibliográfico ou referencial da humanidade e, segundo ainda o autor, as pesquisas de campo e exploratórias adentrarão o objeto de estudo, explorando-o em todos os perfis delimitados. A pesquisa bibliográfica foi utilizada para a construção do corpus teórico que dá suporte às análises dos dados colhidos na pesquisa de campo e exploratória. No momento em que o pesquisador se lança na investigação de um caso, buscando os detalhamentos e um aprofundamento dos conteúdos que este caso tem a elucidar embasados pelos processos da ciência, está efetivamente realizando os preceitos da pesquisa científica. Neste sentido, este projeto visa detectar as etnias que colonizaram municípios da microrregião da Amurel; analisar aspectos culturais das referidas etnias; investigar a existência de topônimos que revele elementos culturais das etnias colonizadoras; relatar e documentar o estudo desenvolvido; apresentar aos municípios envolvidos na pesquisa e à comunidade acadêmica os resultados da pesquisa. 267 A estética da linguagem artística e midiática: reflexões e ações 4. Algumas outras reflexões O homem aprendeu a importância de se comunicar e, mesmo antes da escrita, já havia criado um sistema de comunicação através das imagens. Com o advento da escrita, a linguagem oral passou a ser registrada. A arte, através de sua linguagem verbal ou não-verbal, vem mudando conceitos, quebrando paradigmas, estabelecendo novas regras para novas formas de se observar o mundo. No fenômeno artístico, percebemos a verdadeira natureza da realidade: a arte é a condição de um princípio ontológico do ser; é a chave de acesso à essência do mundo, ou seja, a arte pode ser o caminho mais original e autêntico para a compreensão da realidade. Sendo assim, estudar a forma, a estética das linguagens artísticas, nos diversos tempos e lugares, possibilita-nos adentrar no fascinante da representação humana sobre a vida real ou imaginada. No decurso da história da cultura humana, a arte foi e vai tomando traços específicos, significando, assim, um agir e um fazer mais cuidadoso, mais primoroso, encharcado de sentimentos. Se o fazer artístico evoca a relação encantatória do ser humano consigo mesmo e com o cosmos, estudar este fazer, as linguagens pelas quais se anuncia, pode ensejar pesquisas singulares, originais, e que estampam os tons dos objetos que se investigam. É através desse olhar que procuramos nesses estudos apreender vestígios da essência das linguagens que investigamos. Nossos estudos não pretendem “passar por postas abertas, mas sim abrir portas”. Entendemos que a linguagem artística pode ser um dos fundamentos principais das sociedades. São elas que nos instigam realizar leituras e/ou releituras do mundo e, até mesmo, antever novas formas de ler o mundo. 5. Referências ADORNO, T. W. Teoria estética. Tradução de Artur Maurão, São Paulo: Martins Fontes, l970. ALENCASTRO, L. F..(Org.). História da Vida privada no Brasil – Império: a Corte e a modernidade nacional. Vol. 2. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. ARANTES, A. A. O que é cultura popular. São Paulo: Martins Fontes, 1988. ARNHEIM, R. 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É co-organizador do livro Gêneros: teorias, métodos, debates (Parábola, 2005) e do número especial sobre Gêneros textuais e ensino-aprendizagem da revista Linguagem em (Dis)curso: (2006). É autor de Gêneros textuais e cognição: um estudo sobre a organização cognitiva da identidade dos textos (Insular, 2002). Aldo Litaiff Possui graduação em Filosofia (1986) e mestrado em Antropologia Social (1991) pela Universidade Federal de Santa Catarina, doutorado em Antropologia cultural pela Universidade de Montreal (1999) e pósdoutorado em Antropologia pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, França (2005). É professor do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul e pesquisador do Museu da Universidade Federal de Santa Catarina. É especialista em: mitologia e ecologia guarani-mbya, pragmatismo, mitologia e linguagem e comunicação. É autor do livro As divinas palavras: identidade étnica dos Guarani-mbya (UFSC, 1996). Antonio Carlos Goncalves dos Santos Tem graduação em Comunicação pelo Centro Unificado Profissional, Rio de Janeiro (1978), mestrado (1996) e doutorado (2001) em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professor do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul, editor da revista Crítica Cultural e tradutor. Atua nos seguintes temas: teoria literária, literatura, poesia, sociologia e modernidade. Débora de Carvalho Figueiredo Possui graduação em Direito (1990), mestrado (1995) e doutorado (2000) em Letras (Inglês e Literatura Correspondente) pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul, onde é editora da Revista Linguagem em (Dis)curso. Tem experiência na área de lingüística aplicada e ensino de língua estrangeira, atuando principalmente na área da análise crítica do discurso. Seus interesses de pesquisa se voltam para questões de gênero, poder e identidade nos discursos profissionais, midiáticos e jurídicos. É coorganizadora do livro Linguagem e gênero no trabalho, na mídia e em outros Contextos (UFSC, 2006) e do número especial de Linguagem em (Dis)curso dedicado à Análise crítica do discurso. Eliane Santana Dias Debus Tem graduação em Letras Português/Inglês pela Fundação Educacional de Criciúma (1991), mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (1996) e doutorado em Lingüística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001). É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul. Especialista em literatura infantil e juvenil e em ensino e formação de professores, organizou o livro A literatura infantil e juvenil de língua portuguesa: leituras do Brasil e d’além-mar (Nova Letra, 2008). Publicou os livros O medo e seus segredos (Franco, 2008), Festaria de brincança: a leitura literária na educação infantil (Paulus, 2006) e Monteiro Lobato e o leitor, esse conhecido (Univali; UFSC, 2004). Fabio de Carvalho Messa Possui graduação em Jornalismo pela PUC do Rio Grande do Sul (1991), em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1993), e em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005). Tem mestrado (1997) e doutorado (2002) em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professor do Curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul, onde é especialista em comunicação e produção audiovisual, com ênfase em roteiro e adaptação da literatura para vídeo, semiologia do cinema, edição e redação jornalística, semântica geral e argumentativa, teoria da comunicação e retórica da ficção. É autor do livro O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea (Unisul, 2008). 272 Fabio Jose Rauen Possui graduação em Letras pela Fundação Educacional do Norte Catarinense (1986), mestrado (1990) e doutorado (1996) em Lingüística pela Universidade Federal de Santa Catarina, e pós-doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006). É professor e coordenador do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul. Atua principalmente nos seguintes temas: pragmática, cognição, teoria da relevância, metodologia da pesquisa e metodologia científica. É autor dos livros Roteiros de Pesquisa (Nova Era, 2006), Roteiros de investigação científica (Unisul, 2002) e Elementos de iniciação à pesquisa (Nova Era, 1999) e co-organizador do número especial de Linguagem em (Dis)curso dedicado à Teoria da relevância. Fernando Simao Vugman Possui graduação em Ciências Biológicas modalidade médica pela Universidade de São Paulo (1982), mestrado (1995) e doutorado (2001) em Letras (Inglês e Literatura Correspondente) pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professor do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul, onde é editor da revista Crítica Cultural. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em literatura e cinema, atuando principalmente nos seguintes temas: o cinema hollywoodiano, mitos modernos, o cinema brasileiro, além de sua produção como tradutor na área de ciências humanas e médicas. Jorge Hoffmann Wolff Possui graduação em Filosofia (1993), e mestrado (1997) e doutorado (2002) em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professor do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul, onde também atua como editor da revista Crítica Cultural. Tem experiência nas áreas de Letras e Comunicação, com ênfase em teoria literária e teoria da comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: crítica cultural e crítica literária, teoria da modernidade e teoria da comunicação. É autor do livro A viagem como metáfora produtiva (Letras Contemporâneas, 1998). 273 Jussara Bittencourt de Sá Possui graduação em Letras, pela Universidade do Sul de Santa Catarina (1985), Especialização em Literatura (1990), mestrado (2000) e doutorado (2005) em Letras/Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul, além de atuar na Secretaria Municipal da Educação, Cultura e Esportes, de Tubarão, em projetos educacionais e culturais. Orienta pesquisas nas áreas literatura, artes visuais e mídias. Membro da Academia Tubaronense de Letras. É autora do livro Cazuza no vídeo O tempo não pára (Unisul, 2006) e organizadora dos livros Jardim das Letras (Humaitá, 2007), Palavras Contadas: memórias da cultura oral do povo de Tubarão (Copiart, 2004), Momento literário: poesia e prosa (Copiart, 2002), Museu Willy Zumblick: a cultura desperta sentimentos (Copiart, 2000). Marci Fileti Martins Possui graduação em Letras (1992) e mestrado em Lingüística (1996) pela Universidade Federal de Santa Catarina, e doutorado em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (2003). É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul. Tem experiência na área de Lingüística, atuando principalmente com os seguintes temas: linguagem e discurso com ênfase no discurso de divulgação científica e discurso midiático, assim como com questões relacionadas às línguas indígenas, especificamente, o Guarani Mbyá. Maria Ester Wollstein Moritz Tem graduação em Letras Português/Inglês (1994), mestrado (1999) e doutorado (2006) em Letras (Inglês e Literatura Correspondente) pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em lingüística aplicada, atuando principalmente nos seguintes temas: gêneros textuais, retórica contrastiva, inglês e gramática sistêmico-funcional. 274 Maria Marta Furlanetto Possui graduação em Letras neolatinas pela Universidade Federal de Santa Catarina (1967), mestrado em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (1975) e doutorado em Lingüística aplicada pela Universidade de Paris VIII (1976). É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul, onde atua como editora da revista Linguagem em (Dis)curso. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em lingüística aplicada, atuando principalmente nos seguintes campos: discurso, educação, língua portuguesa e semântica. É coorganizadora do livro Foucault e a autoria (Insular, 2006) e do número especial de Linguagem em (Dis)curso sobre Gêneros textuais e ensinoaprendizagem (2006). Mariléia Silva dos Reis Tem graduação em Letras (1982) pela Unisul, mestrado (1997) e doutorado (2003) em Lingüística pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul. Tem experiência na área de lingüística aplicada ao ensino de português, nos seus aspectos funcionais, cognitivos e sociais. Atualmente, trabalha a alfabetização com e para o letramento, a partir da aprendizagem neuronial para as práticas sociais de leitura e escrita. Rosangela Morello Possui graduação em Letras: língua e literatura pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Colatina (1985), mestrado (1995) e doutorado (2001) em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas, e doutorado pela Université Paris VII (1998). É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul. Coordena o projeto de pesquisa e documentário Fronteira das Relações: entre línguas e culturas (CNPq) e atua em outros projetos, entre os quais o Programa escolas bilíngües de fronteira (MEC Brasil/Argentina). Atua nas áreas da educação e da cultura, com enfoque nas questões políticas, em especial, políticas lingüísticas. É organizadora do livro Giros na cidade (Unicamp, 2004). 275 Sandro Braga Possui graduação em Jornalismo (1998), mestrado (2001) e doutorado (2007) em Lingüística pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professor do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul, atuando em pesquisas que envolvem práticas discursivas em processos de leitura, bem como questões relacionadas à identidade e à modernidade. Solange Maria Leda Gallo Possui graduação em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1978), mestrado (1989) e doutorado (1994) em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas e pelo Collège International de Philosophie de Paris (1992). É professora do curso de mestrado em Ciências da Linguagem da Unisul e colaboradora de projetos da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em Análise do Discurso, atuando principalmente em temas como: discurso, autoria, escrita, discurso pedagógico e divulgação de ciência. É autora do livro Discurso da escrita e ensino (Unicamp, 1995). 276 COLEÇÃO LINGUAGENS A coleção Linguagens destina-se a estudos da linguagem específicos do campo do texto e do discurso que, por sua relevância, mereçam ser divulgados na forma de livros ou coletâneas (com temas selecionados) que podem ser organizadas alternadamente por pesquisadores diversos. A comissão editorial, tentando refletir as necessidades e conveniências do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, e considerando a política de pesquisa e divulgação da Unisul, pretende dar cobertura, em sua etapa inicial, a trabalhos de pesquisa de seus professores, com volume suficiente para compor obra individual ou em co-autoria. Também propõe a publicar, atendidos critérios de qualificação, trabalhos de conclusão de curso recomendados em banca; material acadêmico (comunicações, palestras, conferências) produzido e aceito para seminários de caráter especial, encontros, jornadas, etc. de interesse da Instituição. Livros publicados: O contexto refletido: vozes sobrepostas de um diálogo (2007), de Ingo Voese; O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea (2008), de Fábio de Carvalho Messa. A literatura infantil e juvenil de língua portuguesa: leituras do Brasil e d’além-mar (2008), organizada por Eliane Santana Dias Debus. Rua Governador Jorge Lacerda, 1809 – fundos Bairro da Velha – Blumenau – SC Fone 47 3325-5789 – www.novaletra.com.br