O Formante Bio- e sua Atuação nas Ciências Naturais: Conservação e Mudanças Mariângela de Araújo (USP) I. Introdução Os processos de formação de palavras, ou de termos, atuantes na língua portuguesa, ou em qualquer outra, constituem um arsenal de grande importância para a vitalidade da língua, uma vez que é por meio deles que esta se torna capaz de adaptar-se aos novos referentes do mundo real e da sociedade, fornecendo opções de criação de denominações aos falantes. Assim, com o intenso processo de inovação tecnológica e científica pelo qual a sociedade hodierna vem passando, apenas as línguas que apresentam essa adaptabilidade, por meio de processos produtivos que ofereçam modelos de criação, e cujos falantes demonstrem essa preocupação, conseguem manter sua visibilidade no cenário internacional. O português demonstra tal vitalidade e oferece aos seus falantes uma gama de processos de formação de palavras, além de um farto repertório de radicais portugueses, formantes greco-latinos e afixos, que estão disponíveis ao uso nos diferentes processos de criação lexical. Atestam essa afirmação não só os dicionários e gramáticas da língua portuguesa, mas também trabalhos de caráter científico que analisam e demonstram a neologia no português comum (cf. Alves, 1990 e 2000, por exemplo), no português literário (cf. Caretta, 2000 e Martins, 2004, por exemplo) e no português técnicocientífico (cf. Alves, 2000 e Lino, 1990 e 2001, por exemplo). As descrições da neologia no português têm demonstrado, portanto, a grande vitalidade da língua e sua capacidade de oferecer respostas às demandas por novas denominações. A literatura também tem demonstrado, por sua vez, a grande produtividade de processos como a derivação prefixal, cuja importância levou à elaboração da tese de livre-docência de Alves (2000), e a composição, amplamente estudada por Sandmann (1990 e 1992), por exemplo. No entanto, esses dois processos tão importantes no português trazem inquietações a muitos morfólogos e lexicólogos, pois, apesar de serem distintos, podem apresentar fronteiras muito tênues, e estas ficam muito evidentes no estudo dos formantes greco-latinos, que, por vezes, são descritos como prefixos, por outras, são entendidos como bases presas ou elementos de composição. Tais inquietações também fizeram surgir uma série de pesquisas acadêmicas, cujo objetivo era traçar o estatuto dos formantes greco-latinos na formação de novas palavras, se formadores de palavras derivadas ou de palavras compostas. Esses estudos perpassam as perspectivas lexicológica (como na tese já referida de Alves), morfológica (como o de Duarte, 1998) e até fonológica (como os de Schwindt, 2001 e 2008), dada a sua complexidade. Acrescente-se a isso o fato de que a língua não é imutável, mas dinâmica, podendo seus elementos mudar de função conforme as necessidades discursivas dos falantes que a utilizam. Diante desse quadro, este trabalho tem como objetivo apresentar um estudo realizado sobre o formante bio-, no âmbito das Ciências Naturais. Tal estudo teve origem no número de termos formados contemporaneamente por meio desse formante e também na natureza diferenciada que este tem assumido, em comparação com as palavras já existentes na língua e dicionarizadas. Neste trabalho, são interessantes, sobretudo, as unidades lexicais em que bio- aparece em primeira posição, o que enseja a possibilidade de ser considerado como um prefixo. Os dados estudados foram retirados da Base de Dados Terminológicos das Ciências Naturais – BDTCien, projeto desenvolvido na Universidade de São Paulo e cujo corpus de estudo é constituído pelas edições de 2007, 2008 e 2009 das revistas Pesquisa FAPESP e Superinteressante. Além disso, foram pesquisados dicionários de língua portuguesa para a observação e o estudo das palavras formadas anteriormente na língua. II. O formante bio- em alguns dicionários de língua portuguesa Observando-se as informações encontradas sobre o formante bio- em dicionários de língua portuguesa, verifica-se que este é apresentado por Cunha (1982: 110-111), em seu Dicionário Etimológico, como vindo do grego bíos, com o significado de „vida‟. Ainda segundo Cunha, tal formante vem sendo usado pelas ciências desde o século XIX, e é interessante constatar que, realmente, tal formante não é encontrado em palavras que compõem dicionários antigos da língua portuguesa, como Bluteau (17121728) e Moraes (1813). Entretanto, no Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, elaborado por Laudelino Freire (1939-1944), os termos formados pelo formante bio- já são numerosos. O mesmo se pode dizer em relação ao Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, de Artur Bivar (1948-1958), e da edição de 1964 do Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete. No dicionário de Laudelino Freire, por exemplo, já se apresentam cerca de setenta verbetes em que o elemento bio- está presente na primeira posição. Deve-se destacar, todavia, que, em cerca de cinquenta formações, bio- está associado a outras formas presas, ou seja, atuando como um elemento de composição, em formações eruditas. Nessas formações, em geral, o formante traz o significado de vida – como em biologia –, conforme descrito na maioria dos dicionários, mas já, nas formações observadas, não é raro encontrar a referência a ser(es) vivo(s), no geral, – como em biofagia, “ingestão de substâncias vivas”1, bionose, “doença produzida por sêres vivos”2, e biotomia, “dissecção ou corte num ser vivo”3 – ou a algum tipo de ser vivo – como em biófito, “parasita da planta”4. O Novo Aurélio Século XXI (1999), por sua vez, apresenta o formante bio-, em entrada própria, significando vida ou biológico e oferece aos consulentes mais de cento e cinquenta formações iniciadas por bio-. Isso significa que, levando-se em conta as formações dicionarizadas e comparando-se dicionários de meados do século XX com dicionários do final do século, tem-se, no final do século, mais que o dobro de formações com bio- na posição inicial. Deve-se ressaltar ainda que, dentre essas formações, já são mais numerosas aquelas em que bio- se une a termos independentes da língua, como nos casos de bioindústria, biomolécula, biorredutor, biorritmo, biossegurança e biossocial. III. Algumas reflexões preliminares 1 Freire, 1939-1944, v. II, p. 1039. Idem. Ibidem, p. 1039. 3 Idem. Ibidem, p. 1040. 4 Idem. Ibidem, p. 1039. 2 Como se afirmou na Introdução, além da averiguação do formante em dicionários da língua, estudou-se também os termos constantes da base de dados constituída no âmbito do Projeto BDTCien, considerando-se as formações encontradas nas revistas de divulgação científica já citadas. Tendo em vista essa base de dados, além dos termos já consagrados e dicionarizados, verificam-se, ao menos, dez termos ainda não dicionarizados e formados com bio- na posição inicial da formação. Em todos esses termos não-dicionarizados (por exemplo, biocerveja, bioespuma, bioinformática e biorrefinaria), bio- é acrescido a uma palavra independente da língua¸ o que parece uma tendência nas formações contemporâneas. Além disso, é importante ressaltar as alterações semânticas pelas quais o formante parece estar passando. Conforme demonstrado na seção anterior, apesar de primeiramente bio- ter sido associado apenas ao significado de vida, já era frequente, nas formações de meados do século XX, a referência a ser vivo; o Dicionário Aurélio Século XXI destaca ainda o significado biológico, que se poderia parafrasear em „referente à Biologia‟. Não obstante, analisando-se as formações, pode-se dizer, ainda, do ponto de vista semântico, que se observam algumas formações em que bio- apresenta-se como uma redução do termo Biologia; assim, encontram-se formações como Bioeletrônica, Bioestatística e Bioinformática, em que se tem a Eletrônica, a Estatística e a Informática aplicadas à Biologia. No entanto, bio-, como redução, não se restringe ao termo Biologia, pode também ser uma redução de biomolécula, como na formação bioafinidade, definida como “atração específica entre uma biomolécula e outra molécula, biológica ou não”5. Além disso, não raro encontram-se formações em que bio- remete semanticamente a „processos biológicos‟, como se verifica nos termos bioconversão (“transformação por meio de processo(s) biológico(s) ou bioquímico(s)”6) e bioenergia (em uma de suas acepções, “energia produzida em processos biológicos”7). Essas constatações demonstram a complexidade desse formante e a essa complexidade deve-se acrescentar a conotação positiva que bio- parece estar assumindo contemporaneamente: algumas formações, como biodegradável, biocombustível, biodiesel, bioenergia e bioetanol, carregam uma vinculação com as questões ecológicas, com fontes de energia que não agridem, ou agridem pouco, o meio ambiente. Assim, essa conotação parecer estar sendo associada ao formante, o que também parece favorecer sua escolha no momento de se criar uma nova denominação. Tais constatações acabam por demonstrar que o formante bio- está passando por mudanças funcionais e semânticas na língua portuguesa. Sua associação preferencial, na contemporaneidade, a bases independentes da língua e as mudanças semânticas associadas à conotação positiva que vem assumindo conduzem à necessidade de uma descrição mais detalhada de sua atuação na língua e de uma reanálise de suas funções em dicionários e gramáticas. IV. Referências bibliográficas ALVES, I. M. Neologismo: criação lexical. São Paulo: Ática, 1990. ALVES, I. M. Um estudo sobre a neologia lexical: os microssistemas prefixais do português contemporâneo. Tese de Livre-Docência. São Paulo: USP, 2000. 5 Ferreira, 1999, p. 301. Idem. Ibidem, p. 301. 7 Idem. Ibidem, p. 301. 6 AULETE, C. Diccionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Delta, 1964. BIVAR, A. Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa. Porto: Edições Ouro, 1948-1958. BLUTEAU, R. Vocabulário Portuguez e Latino. CD-ROM com a edição fac-similada de 1712-1727, publicado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2000. CARETTA, E. A. C. As criações lexicais estilísticas na obra poética de Carlos Drummond de Andrade. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2000. CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1982. DUARTE, P. M. T. A identificação do prefixo em diversas abordagens linguísticas. 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