SPINOZA~ Textos seleccionados pelo Dr. André Campos para a aula de Filosofia Social e Política de 11 de Outubro de 2007 Tratado Teológico-Político «Por direito e instituição da natureza entendo unicamente as regras da natureza de cada indivíduo, regras segundo as quais nós concebemos cada um como determinado naturalmente a existir e a agir de uma certa maneira. […] É, com efeito, certo que a natureza, considerada em absoluto, tem supremo direito a tudo o que pode, isto é, o direito da natureza estende-se até onde se estende a sua potência, pois a potência da natureza é a própria potência de Deus, o qual tem direito supremo a tudo. Visto, porém, que a potência universal de toda a natureza não é mais do que a potência de todos os indivíduos em conjunto, segue-se que cada indivíduo tem o supremo direito a tudo o que está em seu poder, ou seja, o direito de cada um estende-se até onde se estende a sua potência determinada.» TTP, XVI, p. 325. (tradução portuguesa de Diogo Pires Aurélio, INCM) «[…] cada um deve transferir para a sociedade toda a potência que possui, de forma a que só ela detenha, sobre todas as coisas, o supremo direito de natureza, isto é, o poder supremo, ao qual cada um é obrigado a obedecer, livremente ou por receio da pena capital. O direito de uma sociedade assim chama-se democracia, a qual, por isso mesmo, se define como a união de um conjunto de homens que detêm colegialmente o supremo direito a tudo o que estiver em seu poder.» TTP, XVI, p. 330. «Portanto, se ninguém pode renunciar à sua liberdade de julgar e pensar o que quiser, e se cada um é senhor dos seus próprios pensamentos por superior direito da natureza, seguese que jamais será possível, numa república, tentar sem resultados funestos que os homens, apesar de terem opiniões diferentes e até opostas, não digam nada que não esteja de acordo com aquilo que prescreve o soberano. Nem os mais avisados conseguem guardar silêncio, quanto mais a plebe! Os homens têm, habitualmente, o vício de confiarem aos outros as suas opiniões, ainda quando seria preferível ficarem calados. O mais violento dos Estados é, pois, aquele que nega aos indivíduos a liberdade de dizer e de ensinar o que pensam; pelo contrário, aquele onde essa liberdade é concedida a cada um é um Estado moderado.» TTP, XX, p. 384 (DPA) «Dos fundamentos da república acima expostos resulta com toda a evidência que o seu fim último não é dominar nem conter os homens pelo medo e submetê-los a um direito alheio; é, pelo contrário, libertar o indivíduo do medo a fim de que ele viva, tanto quanto possível, em segurança, isto é, a fim de que ele preserve o melhor possível, sem prejuízo para si ou para os outros, o seu direito natural a existir e a agir. O fim da república, repito, não é fazer os homens passar de seres racionais a bestas ou autómatos, é, pelo contrário, fazer com que a sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que eles usem livremente da razão e que não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem sejam intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim da república é, de facto, a liberdade.» TTP, XX, p. 385. «Com isto, ficou demonstrado o seguinte: 1- É impossível tirar aos homens a liberdade de dizerem o que pensam. 2- Esta liberdade pode ser concedida a cada um sem prejuízo do direito e da autoridade do soberano, podendo cada um conservá-la sem prejuízo desse mesmo direito, desde que daí não retire a permissão de introduzir como direito algo de novo na república ou de fazer algo que vá contra as leis estabelecidas. 3- Cada um pode ter esta mesma liberdade sem prejuízo para a paz e sem que daí venha algum inconveniente que não possa facilmente neutralizar-se. 4- Cada um pode tê-la sem prejuízo da piedade. 5- As leis estabelecidas em matérias de ordem especulativa são de todo inúteis. 6- Finalmente, mostrámos que esta liberdade, não só pode ser concedida sem risco para a paz da república, a piedade e o direito do soberano, como inclusivamente o deve ser, se se quiser preservar tudo isso.» TTP, XX, p. 391. Ética «Cada um existe, em virtude do direito supremo da Natureza e, consequentemente, é em virtude do supremo direito da Natureza que cada um faz o que se segue da necessidade da sua natureza; e, por conseguinte, é em virtude do supremo direito da Natureza que cada um julga o que lhe é bom e o que lhe é mau e atende à sua utilidade, como lhe convém, e se vinga, e se esforça por conservar o que ama e destruir aquilo a que tem ódio. Se os homens vivessem sob a direcção da razão, cada usufruiria deste direito sem dano algum para outrem. Mas, como eles estão sujeitos aos afectos, que ultrapassam de longe a potência, ou seja, a virtude humana, por isso, são muitas vezes arrastados em sentidos contrários e são contrários uns aos outros, quando têm necessidade de auxílio mútuo. Portanto, para que os homens possam viver de acordo e ajudar-se uns aos outros é necessário que renunciem ao seu direito natural e assegurem uns aos outros que nada farão que possa redundar em dano de outrem. De que maneira possa isto suceder, quer dizer, que os homens, que estão necessariamente sujeitos aos afectos e são inconstantes e imutáveis, possam dar uns aos outros esta segurança mútua e ter confiança mútua, vê-se […] pelo facto de nenhum afecto poder ser entravado a não ser por um afecto mais forte e contrário ao afecto a entravar, e pelo facto de cada um se abster de causar dano pelo temor de um dano maior. Portanto, é sobre esta lei que a sociedade poderá fundar-se, com a condição de ela reivindicar para si o direito que cada um tem de se vingar e de julgar do bem e do mal. Consequentemente ela deverá ter o poder de prescrever uma regra comum de vida, de fazer leis e de as apoiar não na razão, que não pode entravar os afectos, mas em ameaças. Tal sociedade, firmada em leis e no poder de se conservar a si mesma, chama-se Cidade [Civitas], e os que são defendidos pelo direito dela, Cidadãos [cives]. Pelo que precede facilmente compreendemos que não existe nada no estado natural que seja bom ou mau por consenso de todos; é que, qualquer que se encontre no estado natural atende só à sua utilidade e distingue como lhe convém, e só enquanto tem em conta a sua utilidade, o que é bem e o que é mal e não está obrigado por nenhuma lei a obedecer a ninguém, senão a si. Por conseguinte, no estado natural não se pode conceber o pecado; mas sim, no estado civil, em que se distingue pelo consenso comum o que é bom e o que é mau e cada um é obrigado a obedecer à Cidade.» Ética, IV, P 37, Escólio 2, pp. 394-5. (tradução portuguesa por António Simões, Relógio d’Água) Tratado Político «Diz-se civil a situação de qualquer estado; mas ao corpo inteiro do estado chama-se cidade e aos assuntos comuns do estado, que dependem da direcção de quem o detém, chama-se república. Depois, chamamos cidadãos aos homens, na medida em que, pelo direito civil, gozam de todas as comodidades da cidade, e súbditos, na medida em que estão obrigados a obedecer às determinações ou leis da cidade. Finalmente, dão-se três géneros de estado civil, a saber, o democrático, o aristocrático e o monárquico […].» TP, III, 1. (tradução portuguesa por Diogo Pires Aurélio – no prelo: proibida a divulgação pública.) «[…] o direito do estado, ou dos poderes soberanos, não é senão o próprio direito de natureza, o qual se determina pela potência, não já de cada um, mas da multidão, que é conduzida como que por uma só mente; ou seja, da mesma forma que cada um no estado natural, o corpo e a mente de todo o estado têm tanto direito quanto vale a sua potência. E assim, cada um, cidadão ou súbdito, tem tanto menos direito quanto a própria cidade é mais potente que ele […], e consequentemente cada cidadão não faz ou possui por direito nada a não ser aquilo que pode defender por decreto comum da Cidade.» TP, III, 2. «Qual seja, porém, a melhor situação para cada estado, conhece-se facilmente a partir da finalidade do estado civil, que não é nenhuma outra senão a paz e a segurança de vida, pelo que o melhor estado é aquele onde os homens passam a vida em concórdia e onde os direitos se conservam inviolados. É, com efeito, certo que as revoltas, as guerras e o desprezo ou violação das leis não são de imputar tanto à malícia dos súbditos quanto à má situação do estado. Porque os homens não nascem civis, fazem-se. Além disso, os afectos naturais humanos são em toda a parte os mesmos. Assim, se numa cidade reina mais a malícia e se cometem mais pecados do que noutra, é seguro que isso nasce de essa cidade não providenciar o bastante pela concórdia nem instituir os direitos com suficiente prudência e, consequentemente, não manter o direito de cidade absoluto. Porque um estado civil que não elimine as causas das revoltas, onde há continuamente que recear a guerra e onde, finalmente, as leis são com frequência violadas, não difere muito do próprio estado natural, onde cada um vive consoante o seu engenho, com grande perigo de vida.» TP, V, 2. «Da cidade cujos súbditos, transidos de medo, não pegam em armas, deve antes dizer-se que está sem guerra do que dizer-se que tem paz. Porque a paz não é ausência de guerra, mas virtude que nasce da fortaleza de ânimo: a obediência, com efeito (pelo art. 19, cap. II), é a vontade constante de executar aquilo que, pelo decreto comum da cidade, deve ser feito. Além disso, aquela cidade cuja paz depende da inércia dos súbditos, os quais são conduzidos como ovelhas, para que aprendam só a servir, mais correctamente se pode dizer uma solidão do que uma cidade.» TP, V, 4. « Passo, enfim, ao terceiro e totalmente absoluto estado, a que chamamos democrático. Dissemos que a sua diferença em relação ao aristocrático consiste antes de mais em que, neste último, depende só da vontade e livre escolha do conselho supremo o ser nomeado este ou aquele para patrício, de tal maneira que ninguém tenha direito hereditário nem de voto, nem de acesso aos cargos do estado, e ninguém possa por direito reclamar para si tal direito, como acontece neste estado de que falamos agora. Com efeito, todos aqueles cujos pais são cidadãos, ou que nasceram no solo pátrio, ou que são beneméritos da república, ou a quem a lei, por outros motivos, manda atribuir o direito de cidade, todos esses, digo, reclamarão para si o direito de voto no conselho supremo e de aceder por direito a cargos do estado, o qual não é lícito recusar-lhes a não ser devido a crime ou infâmia.» TP, XI, 1. Textos seleccionados pelo Dr. André Campos para a aula de Filosofia Social e Política de 11 de Outubro de 2007