Pintar a pintura A arte de Nuno Gueifão Em resposta às tentativas de Georges Bataille e amigos de «recriar um sagrado virulento e devastador» com rituais de iniciação praticados nos bosques da periferia de Paris, Alexandre Kojève – em palavras recordadas por Roger Caillois – deixou-nos esta observação lapidar: «o taumaturgo que quisesse desencadear o sagrado tinha a mesma possibilidade de sucesso de um prestigiador que se quisesse persuadir da existência da magia cedendo ao encanto dos seus próprios truques» (Approches de l’imaginaire, Paris, 1974, p. 74). O trabalho de Nuno Gueifão exige de ser lido à luz deste problema. Consciente do encantamento, ilusão e risco presentes em qualquer processo de sacralização – no seu caso, a produção artística –, Nuno Gueifão parece trabalhar directamente sobre o vínculo que, historicamente, determina uma potência a um fazer. O seu trabalho não forma nem educa, não surpreende nem espanta, não suspende nem reenvia, não salva nem redime, não consagra nem glorifica, não doa ou melhora a sensibilidade e a inteligência. Esse não produz o «novo» nem instala a «excepção». Despido, destas funções, Nuno Gueifão, observa e desenvolve, todavia, uma dimensão que continua a investi-las de forma decisiva: a exposição e a sua potência. O seu trabalho parece reenviar, mesmo se com reservas, a mecanismos que nascem na obra de Marcel Duchamp, por exemplo, os da captura da atenção – e seu dilema – em torno de um urinol (algo que ainda hoje cria embaraço; algo de intransigentemente sério que é, simultaneamente, puro gozo e jogo). Uma mecânica recorrente aqui no titulo da exposição (a picture of my dad in drag). A inteligibilidade da sua proposta transparece com a distância que se constitui entre a exposição do trabalho e a exposição que a sua prática já em si comporta (sendo esta despreocupada, sem propósito, inconclusiva, incoerente, em potência); destitui-se, com tal, todos os processos de se ter de ser alguma coisa, assim como os que tornam as suas propostas dependentes de resultados, objectivos e fins. A atenção tem de cair em pontos de coincidência – que em si criam intensidade e distâncias – entre o Pintor do pintor Nuno Guifão e este pintor ele mesmo. Ou seja, como artista Nuno Gueifão faz como se também o fosse, melhor, como não o fosse de todo, exigindo apenas a exemplaridade do agente: a força de ser algo que seja por si já pintura (que a invista de potência: a torne possível). Nada se expõe que não sejam as distâncias entre pontos de coincidência – a própria singularidade, a intensidade da própria pintura – e daqui a perplexidade que nasce ante o grau de opacidade referencial que elas expõem (qual o seu propósito? a quê que reenviam? qual o seu interesse?). Somos desarmados pela insubstituilidade daquilo que estas pinturas apresentam (C’est ci n’est pas une pipe), seja qual for o aspecto do espectro e fantasma que nessas vibrem. Ou seja, não há reenvio algum senão o dessas para si mesmas, assim como o da revogação da singularidade inerente à própria prática da pintura. Exige-se apenas que a pintura se torne, de cada vez, possível; isente de regras que não sejam as que cada uma delas, por si, institua para si. E longe nos encontramos de questões de representação que obrigavam a arte a dar imagens e palavras a estados, a agentes, a coisas. Cuidar, desenvolver, interromper ou destruir a intensidade presente na distância inteligível da coincidência – uma espécie de peculiar temporalidade que não converge, converte ou reenvia senão ao outro de si mesmo (Je est un autre ou Ich bin du, wenn ich ich bin) –, é a tarefa árdua que este artista exige à sua prática. A problemática da «exposição» ante a qual nos encontramos revela, sem encantamento gratuito, por si, uma estratégia desenvolvida no uso de mecanismos como os da citação de si mesmo, da homenagem a si mesmo ou da mera parodia de si mesmo. E isto nunca na forma de uma auto-referencialidade, porque esta prática é, em primeiro lugar, consciente do facto que o mundo é o nosso outro, mas também que o nosso intimo não é nosso mas sim o outro de nós mesmos, o qual meramente nos podemos recordar (cifrado como um imenso fundo obscuro que transportamos pala além de tudo o que o precário e exíguo consciente pode acolher). Em resposta à minha curiosidade pelo nome, Nuno Gueifão, disse-me que «o titulo foi encontrado numa espécie de documentário sobre Vivian Stanshall (Vivian Stanshall Week), que era o líder de uma banda e músico excêntrico britânico dos anos 60 e 70. A frase “a picture of my dad in drag” é dita pelo Vivian Stanshall nesse documentário quando ele está a descrever as coisas que tem em casa, na sala». Nesta, entre a tralha que a enche (objectos escrupulosamente escolhidas – muitos por si reeditados –, como acontece com os espectros ou fantasmas que Nuno Gueifão pendura na parede do seu estúdio) e o que dessa escolhe mostrar (como as pinturas aqui expostas), ele aponta (como num acto de dar o titulo) para um boneco de porcelana, cinco vezes baleado, com uma fotografia que segura ao peito, e do qual diz (revelando a estratégia, o agente e agência da exposição): «also a mutilated boy, not a real one, has a picture of my dad in drag». Pedro A.H. Paixão (16 de Abril de 2010)