UM ESTUDO SOBRE DESENVOLVIMENTO LOCAL SOLIDÁRIO: CONCEITOS E ESTRATÉGIAS Capitalismo Contemporâneo, Socialismo e Economia Solidária Felipe Pateo e Vanessa Sígolo – ITCP-USP1 [email protected] Resumo: texto apresentado a seguir é fruto dos estudos e discussões do Núcleo Rede da ITCP-USP, e apresenta e discute três conceitos de desenvolvimento, e a proposta de desenvolvimento local solidário e estratégias locais envolvidas na Rede Solidária da Zona Sul, que buscam novas perspectivas de desenvolvimento local pautadas na Economia Solidária. Palavras-chave: Desenvolvimento, Economia Solidária, estratégias locais. 1. Introdução O Núcleo Rede da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo (ITCP-USP) foi criado em 2005 com o objetivo de apoiar o trabalho desenvolvido em campo, por meio da pesquisa sobre o tema de redes solidárias e estratégias para o desenvolvimento local. Com este objetivo, o Núcleo envolve formadores, colaboradores e professores no estudo e articulação do trabalho em campo com a produção de pesquisa. Desde sua criação, a equipe responsável estuda uma metodologia de desenvolvimento de estratégias locais, contrapondo-se ao modelo de desenvolvimento vigente, buscando perspectivas para o desenvolvimento local pautado nos princípios da Economia Solidária. Tendo como importante base de reflexão o trabalho da ITCP-USP, ao longo desses 9 anos, principalmente na zona sul de São Paulo, o Núcleo exerce atividades de pesquisa teórica, leitura de textos, estudos de casos, intercâmbio de experiências com outras instituições e reuniões e debates. O texto apresentado a seguir é fruto desses estudos e discussões, e foi escrito a múltiplas mãos, representando um esforço de diálogo e construção 1 Texto de autoria coletiva de: Felipe Pateo, Marcel Nicolau, Ricardo Buzzo, Werner Regenthal, Vanessa Sígolo, Lúcia Araújo, Virgínia Luz, Bruno Villela e Gabriela Iglesias. Colaboradores: Felipe Bueno, Ana Terra e Danilo Guirro. Todos os nomes citados compõem o Núcleo Rede da ITCP-USP coletiva. Nele, buscamos apresentar um estudo sobre o conceito de desenvolvimento, a proposta de desenvolvimento local solidário e as estratégias locais envolvidas na Rede Solidária da Zona Sul, que buscam novas perspectivas de desenvolvimento local pautadas na Economia Solidária. 2. O conceito de desenvolvimento O debate apresentado abaixo se baseia no estudo de José Eli da Veiga (2005) e em discussões do Núcleo Rede. Pretendemos aqui fazer uma análise da evolução histórica do conceito de desenvolvimento e apresentar alguns debates atuais referentes ao tema. Para tanto, apresentamos a seguir três vertentes do conceito de desenvolvimento. 2.1. Desenvolvimento como crescimento econômico Até 1960, as nações desenvolvidas eram aquelas que tinham apresentado grande crescimento econômico e se tornado mais ricas, o que levava a imensa maioria dos economistas a igualar crescimento a desenvolvimento econômico. Esta identidade entre os conceitos passou a ser questionada a partir da década de 60, quando o rápido crescimento de alguns países periféricos, como o Brasil, não se traduziu em maior acesso das populações pobres a bens materiais e culturais. A partir da década de 90, essa visão tornou-se quase insustentável, dada a publicação pela ONU do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que engloba outras variáveis, como a taxa de mortalidade infantil, a expectativa de vida e o analfabetismo, além da renda per capita. Ainda assim, os manuais de economia mantêm uma postura de usar os termos como sinônimos ou simplesmente banir o conceito de desenvolvimento de seu conteúdo. Da mesma forma, dentro do curso de economia, as matérias sobre desenvolvimento são deixadas em segundo plano, favorecendo aquelas sobre macro e microeconomia, um reflexo da posição da academia sobre a não importância do estudo sobre o tema. Na esquerda, a identidade entre os conceitos refletiu-se no pensamento desenvolvimentista cepalino, incluindo autores como Prebisch e nos primeiros escritos de Furtado. Esse pensamento enfatizava a substituição de importações como motor para industrialização e crescimento econômico, que teria como objetivo final alcançar o nível de modernização dos países considerados desenvolvidos. 2.2. Desenvolvimento como mito No pensamento da esquerda, relatado anteriormente, a antiga interpretação é substituída pela visão de que o desenvolvimento seria algo inalcançável, uma quimera, um mito construído para iludir com falsas esperanças os povos do terceiro mundo. Um dos autores a incorporar essa idéia foi o próprio Furtado, em suas palavras: “Como negar que essa idéia (o desenvolvimento) tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes sacrifícios, para legitimar a destruição de formas de cultura arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo” (FURTADO, 1974). Mesmo assim, Furtado prosseguiu estudando o desenvolvimento. Sua análise era que esse mito tinha uma função para o cientista social, equivalente a de um farol, fazendo com que este enxergasse certos problemas, e ignorasse outros. O principal autor a popularizar esse conceito de desenvolvimento como mito foi Giovanni Arrighi, marxista italiano, que enfatizava a presença de uma rígida hierarquia na economia capitalista mundial. Hierarquia esta marcada: pela presença de um núcleo orgânico, formado pelos países desenvolvidos; por uma semiperiferia, formada pelos países chamados emergentes: e por uma periferia, formada pelos países subdesenvolvidos. Arrighi, no entanto, ainda estava preso à vertente anterior, visto que separava os países em esferas de acordo com o seu PIB per capita, não fazendo, portanto, uma diferenciação entre desenvolvimento e crescimento. Pode-se constatar desta forma que realmente as economias periféricas nunca serão desenvolvidas – se considerarmos como desenvolvimento tornar-se similar às economias que formam o centro do sistema capitalista. Outra visão do desenvolvimento como mito é a do peruano Oswaldo de Rivero, que faz uma análise histórica da inviabilidade dos países do terceiro mundo, a começar pelo seu processo de surgimento como estado-nação, que, ao contrário do que ocorreu nos países considerados desenvolvidos, não se deu a partir do surgimento de uma burguesia e um mercado de dimensão nacional. Associado a esse processo histórico, Rivero aponta a miséria científico-tecnológica e a explosão demográfica desses países, o que geraria uma incapacidade de transferência de recursos do mercado mundial para suas populações urbanas. Neste sentido, a miséria dos países do terceiro mundo estaria associada a disfunções qualitativas, estruturais, culturais, sociais e ecológicas, não somente econômicas. A solução para Rivero, portanto, é que dada à inviabilidade destes países, eles se unam em uma espécie de pacto pela sobrevivência das nações, que substituiria a agenda de busca por riqueza e desenvolvimento. 2.3. Desenvolvimento como expansão das liberdades e criatividades Pela predominância de uma visão que negava a possibilidade de desenvolvimento dos países do chamado terceiro mundo à semelhança dos países desenvolvidos, se passaram algumas décadas até que se propusesse uma agenda positiva em busca de um tipo de desenvolvimento possível e desejável. Envolvido nessa nova corrente, Furtado, já no ano 2000, redefiniu como um tema central do estudo do desenvolvimento a questão da criatividade cultural e da morfogênese social. A questão que ele se propõe é: porque uma sociedade apresenta em certo período da sua história uma grande capacidade criadora? Furtado explica essa capacidade criadora em torno de dois eixos: eficácia na ação (técnica) e busca de propósito para vida (valores), e aponta um questionamento sobre o fato de que nos últimos duzentos anos a humanidade tenha se focado essencialmente ao aprimoramento apenas de técnicas (FURTADO, 2000). Principalmente a partir dos anos 90, percebeu-se a importância de se refletir sobre a natureza do desenvolvimento que se almeja e, com isso, o crescimento econômico passou a ser entendido como elemento de um processo maior. O principal nome propagador dessa nova concepção de desenvolvimento é o economista indiano, ganhador do Nobel, Amartya Sen, que publicou, em 1997, o livro Desenvolvimento como Liberdade. Nele, Sen define desenvolvimento como a expansão das liberdades humanas e procura demonstrar o papel das diferentes formas de liberdade no combate às privações, que podem ser encontradas tanto em países pobres quanto ricos. Sen propõe que a liberdade individual seja um compromisso social, e a expansão das liberdades o principal meio e o principal fim do desenvolvimento. Por exemplo, uma política de orçamento participativo funciona como fim, visto que expande a liberdade de participação política da população, e também como meio, pois proporciona que as necessidades básicas da população sejam mais bem atendidas, libertando-a de privações físicas. O autor aponta ainda que não se alcança uma liberdade em detrimento de outra, ou seja, privando uma liberdade para que outra seja alcançada. O maior exemplo disso é a negação da proposição muito comum de que um regime de ditadura seria mais propício para o crescimento econômico e, portanto, para o desenvolvimento. Ora, não se pode chamar de desenvolvimento uma expansão das liberdades econômicas às custas de uma retração nas liberdades políticas. Dessa forma, o crescimento econômico pode ser uma forma de expandir as liberdades, mas para que isso efetivamente aconteça outros fatores devem ser levados em conta como educação, saúde e direitos civis. A expansão da liberdade poderia ser dividida em 5 elementos constituintes: liberdade política, facilidades econômicas, oportunidades sociais, empoderamento e segurança protetora (em oposição à visão tradicional de segurança pública). Dados esses elementos, Sen aponta 3 principais fatores para a negação de liberdades: a pobreza econômica, causando fome, desnutrição, impossibilidade de moradia adequada, vestimenta etc; a carência de serviços públicos e assistência social, como saúde pública, educação e manutenção da segurança pública; e a privação das liberdades civis, políticas ou restrições impostas à liberdade de participar da vida social, política e econômica da comunidade, causada por governos repressivos ou autoritários. Esse novo conceito de desenvolvimento, proposto por Sen, torna o assunto novamente relevante até para os países muito ricos, como os E.U.A. Nesse país constata-se a presença de minorias, como a população negra, que apesar de ainda apresentar uma renda per capita bem maior que a dos países pobres, apresenta expectativa de vida muito menor que a China, Sri Lanka ou Índia, por exemplo. Um aspecto apontado como determinante para o desenvolvimento, nessa vertente, é a presença de coesão social no país. Essa correlação é apontada por um estudo que mostra o aumento das taxas de longevidade em países industrializados, como a Inglaterra, durante o período das duas guerras mundiais. Explica-se que tal fato ocorreu devido a um maior compartilhamento dos meios de sobrevivência e um aumento dos custeios públicos nos serviços sociais. Com isso, apesar da disponibilidade per capita de alimentos ter diminuído significativamente, os casos de subnutrição declinaram abruptamente durante o período da segunda guerra mundial. Verifica-se nesse caso uma mudança comportamental causada pela guerra, geradora de coesão social, que possibilitou a adoção de medidas públicas radicais para a distribuição de alimentos e serviços de saúde (SEN, 1999). Sen conclui seu livro apontando dois caminhos para a promoção do desenvolvimento: o primeiro deles, a tradicional mediação pelo crescimento, e o outro, a condução pelo custeio público. O primeiro caminho depende, para deixar de ser apenas um discurso ideológico, de que o crescimento tenha forte orientação para o emprego e que a maior prosperidade econômica seja utilizada na expansão de serviços sociais. O segundo caminho depende fundamentalmente da condução de um programa de custeio público para serviços sociais, que permaneça mesmo em caso de baixo crescimento econômico. Como exemplo, são apontados o Sri Lanka e o estado indiano do Kerala. O que se deve levar em conta na aplicação dessa segunda estratégia é que o crescimento econômico é também importante e que o desenvolvimento social sem ele é incompleto, por não necessariamente expandir as liberdades econômicas. Outra questão importante refere-se à relação entre crescimento e distribuição de renda, foco de um debate acirrado que se inicia nos anos 50, a partir de um estudo elaborado por Simon Kusnetz, defendendo a idéia de que haveria uma tendência inicial de concentração de renda nos países em crescimento, que depois se reverteria para um processo de maior distribuição. Com base nesta teoria, Delfim Neto propôs o famoso “crescer o bolo para depois dividir”. Tal teoria foi amplamente desmentida pela prática de crescimento concentrador, como visto nas décadas de 60, 70 e 80 nos países latinoamericano, sem posterior distribuição de renda. Há diversas vertentes, no debate atual a respeito desta relação entre crescimento e distribuição de renda. Sen, por exemplo, aponta que a distribuição de renda por si só não representa desenvolvimento, por relacionar-se apenas ao aspecto econômico e não representa diretamente desenvolvimento social. Uma contribuição interessante para o debate sobre desenvolvimento é o estudo de Jane Jacobs, que, apesar de utilizar comparações questionáveis com o processo biológico, traz a idéia de enxergar o desenvolvimento como um processo de produção de coisas e não a coleção de coisas. Desta forma, a presença de fábricas, barragens e tratores não pode ser entendida como indicador de desenvolvimento, se forem apenas resultantes de um processo que ocorre em outro lugar. Sendo o desenvolvimento um processo, é necessário para que ele ocorra haver, efetivamente, como dizia Furtado, seres criativos, como o são naturalmente os seres humanos. O grande problema é que atualmente uma grande parte da população está impedida de exercer a criatividade econômica, segundo Jane Jacobs, prioritariamente por discriminação em relação a gênero, cor, religião e à presença de formas servis de trabalho e sistemas de castas. Procurando uma abordagem mais ampla, podemos estender essa crítica a todas as formas de trabalho alienado, em que o trabalhador não se realiza no trabalho e portanto não tem incentivos ou mesmo meios para expressar sua criatividade nele, de forma que se torna impossível o desenvolvimento (JACOBS, 2001). Yunus, em seu livro O banqueiro dos pobres, apresenta uma perspectiva semelhante a de Jacobs neste ponto, quando afirma que a causa do grande sucesso do seu mundialmente famoso esquema de microcrédito, o Grameen Bank, é possibilitar às pessoas exercerem sua criatividade através de empréstimos para que estabeleçam negócios sem relações de tutoria ou capacitação. Essa questão da criatividade e da não tutoria ou dirigismo, apontada por Yunus, leva à questão de como é possível o fomento ao desenvolvimento que ocorra de maneira endógena, ou seja respondendo às ansiedades da população, com objetivos por ela propostos, e qual o papel das agências de fomento neste contexto. 3. Estudando uma proposta de desenvolvimento local solidário A partir do estudo desses conceitos, buscamos, em nossas reuniões, iniciar a elaboração de posições próprias. Nesse sentido, a seguir apresentaremos o atual estágio das discussões sobre uma proposta de desenvolvimento local solidário, suas concepções e estratégias. 3.1. Uma proposta de diálogo O primeiro ponto no qual nos deparamos, no debate sobre desenvolvimento, foi a problemática da elaboração de critérios universais para medir o desenvolvimento. A partir de nosso estudo anterior e dos debates que fizemos chegamos a proposta de que não há como elaborar um critério universal para medir o desenvolvimento de um país, de um sistema, de uma comunidade ou aldeia, uma vez que desenvolvimento pode ser algo a ser engordado por critérios particulares. Com isso, enxergamos que os critérios e parâmetros de desenvolvimento podem surgir, no mínimo, de três formas distintas: das próprias pessoas que vivem dentro da região avaliada; por olhares e propostas externas; ou por uma mescla das duas perspectivas. Tal como numa certa localidade as pessoas podem levantar critérios variados, baseados em um leque heterogêneo de idéias e desejos, os olhares e propostas externas também. Nós, da ITCP-USP, achamos que para a construção de uma proposta de desenvolvimento é imprescindível a consideração dos princípios da Economia Solidária, que buscaremos apresentar ao longo deste capítulo. Constata-se, no diálogo da proposta política da Economia Solidária com o cotidiano de trabalho, que no dia-a-dia há uma diferença entre os critérios de um desenvolvimento que chamaríamos solidário, e aqueles comumente usados ou levantados pelas pessoas da própria localidade. É equivocado não levar em consideração as necessidades e demandas apresentadas, e é necessário saber se a proposta do desenvolvimento solidário que apresentamos corresponde ao projeto das pessoas daquela localidade. Apesar da sistematização de critérios gerais ser muito orientadora para uma análise de desenvolvimento (como taxa de mortalidade infantil, expectativa de vida, analfabetismo, renda per capita etc.), para cada região deve-se levar em consideração critérios regionais e locais, e para isso ser realizado é necessário que as pessoas do local contribuam na sua elaboração. A partir do diálogo com a localidade consegue-se listar as demandas mais explícitas que orientam as ações para o desenvolvimento daquela região, envolvendo-a na proposta de desenvolvimento local solidário, buscando estratégias e caminhos que correspondam aos princípios democráticos e igualitários que propõe a Economia Solidária. Todavia, essa proposta de diálogo no contexto das relações sociais capitalistas alienantes enfrenta inúmeras dificuldades de se realizar, uma vez que estas relações pautam-se na separação das pessoas e do mundo na qual elas vivem, ou seja, ignorando, por exemplo, as conseqüências dos seus modo de consumir e produzir, como buscamos apresentar a seguir. Nesse sentido, o diálogo é prejudicado pela predominância de um olhar fragmentado da sociedade. 3.2. Uma proposta de transformação social A palavra desenvolvimento, mesmo quando se expande para fora do campo estritamente econômico, se liga muito fortemente, mesmo hoje em dia, às idéias de “crescimento, progresso, adiantamento”, ou seja, ao aumento quantitativo de determinadas características ou elementos. Ao se falar em “desenvolvimento local” ou “desenvolvimento humano”, logo nos vem à cabeça a idéia de “melhora de vida”. “Se desenvolver” é “melhorar de vida”. Mas o que é isto? Supostamente, a melhora das condições de vida é um avanço quantitativo: determinadas coisas e fatores fazem da vida “melhor”; quanto mais dessas coisas e fatores estejam presentes na vida de uma pessoa ou comunidade, “melhor” é essa vida. Essa perspectiva é correta sob uma apreensão individualista da realidade, segundo a qual o mundo é do jeito que é. Os indivíduos têm que melhorar dentro daquele mundo, que se organiza de maneira muito bem determinada, e tem como base de sustentação a alienação, ou seja, a separação entre as pessoas, cada uma com seu apartamento, sua televisão, sua vida... Cada um tem a sua coisa, ou o seu pedaço, e se não tem, não tem. Outra separação fundamental para a organização do mundo contemporâneo é aquela entre o trabalhador e o seu trabalho, de maneira que não seja possível ao trabalhador decidir o que ou como produzir, e muito menos que possa se reconhecer naquilo que produz e se sentir bem com seu trabalho, exercendo sua criatividade e realizando-se naquilo que faz. Outra perspectiva de entender a palavra desenvolvimento é justamente a de olhar para a sociedade (ou para a localidade) como um todo. Em primeiro lugar, nessa perspectiva, falar em desenvolvimento não pode se restringir ao de uma única pessoa. O entorno deve fazer parte da vida de um indivíduo, e seu bem-estar deve estar ligado ao daqueles que estão à sua volta: a baixa qualidade de vida de alguém com quem se é solidário deve logicamente causar desconforto. Em segundo lugar, olhar para as relações sociais de uma comunidade nos leva a pensar “desenvolvimento” como tendo um duplo aspecto, quantitativo e qualitativo. Desenvolvimento seria o acesso a bens materiais e culturais de cada uma das pessoas da localidade que se desenvolve, e seria também a alteração qualitativa das relações sociais, o que pode inclusive alterar o modo como se tem acesso àqueles bens, ou mesmo quais desses bens se deseja. Mas o que queremos dizer com “alteração qualitativa das relações sociais”, e por que isso deve ocorrer ao mesmo tempo em que se tem acesso a mais bens? Partimos do princípio que a forma atual das relações sociais, e não só de produção, deva se pautar em novos valores e princípios, democráticos e igualitários, por isso não competitivos, e voltadas para a coletividade. A separação entre os que trabalham e os proprietários dos meios necessários para produzir obriga as pessoas a vender sua força de trabalho. Os trabalhadores são assim separados de seu trabalho e das decisões que lhes diz respeito, bem como de seu produto. Para além disso, hoje em dia, esse processo de alienação se infiltrou em todos os campos da vida social, e agora as pessoas são apartadas do seu próprio auto-conhecimento, submetidas à publicidade que atingiu os momentos mais cotidianos. Nessa sociedade, a grande parte das pessoas é também afastada das decisões sobre a estrutura que as cerca, relegadas a especialistas (técnicos de estado e governantes eleitos), de maneira que cada um fica no seu lugar, e cada um fazendo a sua parte reproduz o mundo tal qual ele é. Reconhecendo que a alienação é fundamental para que o capitalismo exista, o simples acesso a bens de qualquer tipo não muda essa característica básica da sociedade, e marca profundamente a relação entre as pessoas. Além disso, o acesso isolado a bens é uma alteração profundamente efêmera e descolada dos outros componentes da sociedade, uma vez que não altera as bases do sistema social e especificamente o sistema produtivo. Portanto, para que haja desenvolvimento, é preciso romper com a lógica das relações sociais, políticas e econômicas dominantes, para que seja possível superar a estratificação e desigualdade social de maneira a possibilitar o desenvolvimento da sociedade como um todo, sem o quê o desenvolvimento solidário perde seu sentido. Desenvolvimento, para nós, é então a instauração de uma cultura solidária, desde a forma de produção dos bens materiais necessários ou desejáveis até os espaços de moradia, lazer, educação etc. O acesso a bens materiais e culturais faz sentido dentro de uma experiência comunitária, operada por uma organização solidária das pessoas, de maneira que elas possam se relacionar diretamente entre si, sem a intermediação do dinheiro ou de mercadorias, e possam se reconhecer naquilo que fazem, exercer sua criatividade e, em última instância, sua própria humanidade. Se a experiência local não percebe sua inserção no mundo, e não se coloca como um projeto para além do local, solidário com o todo da sociedade, ela não conseguirá mudar amplamente as relações sociais de maneira que sua própria experiência supere de forma solidária a alienação que hoje governa todas as relações sociais. A partir disso, acreditamos, apostamos (no sentido de otimismo), que a participação em ambientes autogestionários e a posse coletiva dos meios de produção fomentam o exercício de valores humanistas pouco incentivados (ou mesmo execrados) nas relações hierárquicas, capitalistas vividas no trabalho subordinado. Esses valores – pautados na democracia, na igualdade, na liberdade, na diversidade e na coletividade – buscam romper com as relações sociais alienantes e possibilitar o efetivo diálogo entre as pessoas, porque permitem o autoconhecimento, o uso da criatividade e ampliam a consciência da sociedade como um todo. Assim, como a soma de diversos vetores produz um vetor resultante, o desenvolvimento solidário, como vetor resultante, para acontecer necessita da somatória de diversas ações práticas; necessita da elaboração de estratégias e ferramentas (intercooperação, moedas sociais, clubes de compras, entre outros) e da participação de pessoas dispostas a tornar a Economia Solidária uma alternativa possível a todos. Acrescenta-se também que a proposta de desenvolvimento solidário, suas ações e estratégias, deve ser constantemente avaliada em sua efetividade, o que envolve essencialmente a opinião das pessoas envolvidas no processo e que vivem em seus cotidianos os resultados – vitórias e fracassos – obtidos no exercício da Economia Solidária. 3.3. Estratégias Locais para o desenvolvimento solidário A seguir, apresentaremos um estudo sobre algumas estratégias locais, desenvolvidas pela ITCP-USP e suas potencialidades e limites para gerar desenvolvimento local solidário. 3.3.1 - A incubação de empreendimentos autogestinários A prática de incubação caracteriza-se pelo acompanhamento de grupos populares para fomentar sua emancipação política e a geração de renda de forma autogestionária. O trabalho do formador consiste na orientação do grupo no que se refere à gestão, comercialização, produção e formação de práticas que permeiam a Economia Solidária, tais como autonomia individual e coletiva, desalienação das formas de produção capitalista, emancipação social, política e econômica. Quando pensamos no desenvolvimento local de dada comunidade, a incubação pode ser vista como um instrumento eficaz no decorrer de seu processo. Para tanto, é necessário que haja um trabalho com vários grupos, pois temos que pensar na comunidade como um todo e não de forma isolada, isto é, a incubação de poucos grupos de forma isolada, desarticulada e sem integração produtiva ou política não teria o mesmo efeito do que pensar na incubação de vários grupos interligados entre si por meio de redes de compra, venda, trocas e unidos politicamente com objetivos em comum. Nesta segunda perspectiva, podemos visualizar o contexto econômico e político do local se alterar, na medida em que os indivíduos envolvidos com o processo de incubação se desenvolvem e conseqüentemente modificam o local em que vivem. Os impactos econômicos podem ser sentidos tanto na movimentação de trocas da produção quanto nas redes estabelecidas, uma vez que o empreendimento, ou melhor, os vários empreendimentos da comunidade alcancem uma efetiva produção e uma conseqüente geração de renda. Sendo assim, aumenta-se também o poder de acesso aos bens materiais e culturais, tanto do grupo quanto da comunidade na qual ele está inserido. Já no âmbito político, visualizamos uma comunidade que interaja mais a partir de lutas por melhorias em comum, ocasionado na medida em que os sujeitos envolvidos se voltem para reflexões pertinentes a suas reais necessidades dentro de uma cultura solidária. Portanto, no desenvolvimento de empreendimentos autogestionários, a integração da comunidade se completa em níveis econômicos e culturais, pois reconhecida e estabelecida uma rede de compras e trocas entre os empreendimentos, a comunidade local cria uma cumplicidade que parte do aspecto econômico e abrange o político, o cultural, pois reconhecem objetivos, necessidades e reivindicações em comum. 3.3.2 - Clubes de trocas e bancos comunitários Os clubes de trocas são empreendimentos de economia solidária no qual pessoas e grupos produtivos se reúnem para trocar produtos, serviços ou saberes entre si, através da moeda social, uma moeda gerida democraticamente pelo grupo. Esta idéia surge em diferentes locais e com diferentes ênfases. No Canadá, nos anos 80, o clube de trocas surge como proposta de uma troca mais justa, onde o preço dos produtos e serviços é dado pelo trabalho incorporado a eles. Neste sentido ele é uma proposta claramente política de reversão de valores capitalistas e de proposição de um comércio justo, cuja moeda não assume caráter especulativo, mas puramente de meio de troca, sem a existência de juros ou de um valor intrínseco para a sua acumulação. Na Argentina, com a crise da conversibilidade do peso, o clube de trocas surgiu como resposta a enorme escassez de moeda presente na economia. Neste caso, ele apresenta uma contribuição claramente econômica, de permitir a circulação de mercadorias que estavam barradas pela escassez de meios de troca. Cabe ressaltar sua contribuição neste sentido para o desenvolvimento de qualquer localidade, dado que a escassez de recursos cria situações de oferta e demanda reprimidas, existentes em potencial, mas que podem se realizar mesmo na falta de moeda oficial. Um empreendimento dentro do clube pode trocar com outros empreendimentos produtos necessários até mesmo a sua própria produção, de modo a criar um movimento de sustentabilidade. Tomamos, por exemplo, um grupo de saboeiras que necessita de uma bolsa para carregar seus sabões, que pode ser produzida por um grupo de costureiras. Este grupo de costureiras, que trabalha longe de casa, necessita de pães para lanchar, que podem ser produzidos por um grupo de alimentação, que por sua vez, necessita de sabão para lavar a louça utilizada na produção, que podem ser produzidos pelo grupo inicial. Esta movimentação independe da moeda “Real” para dar origem ao processo de trocas, representando um grande ganho econômico e de potencial criativo humano. Dessa maneira, em um plano ideal, pode-se considerar o clube de trocas como um meio de expandir a liberdade de trocar, a qual é reprimida sobretudo pela imposição de políticas autonomizantes do Banco Central, órgão emissor de moeda. No plano da economia local, a moeda social pode contribuir para a articulação dos empreendedores da região possibilitando a atuação de forma integrada, além de favorecer o consumo interno, dada a facilidade de aceitação da moeda. No plano de liberdades civis e políticas, o clube de trocas como espaço de tomada de decisões democráticas e de autogestão apresenta um caráter pedagógico de habituar as pessoas a participarem de assembléias e coletivos, participando da tomada de decisões que influirão em sua vida. No plano comunitário, o clube de trocas é um espaço de integração, lazer e construção de amizades, reforçando a identidade do bairro para todos os envolvidos. No caso brasileiro e especificamente do clube de trocas acompanhado pela ITCP-USP, no subdistrito do Jardim Ângela, constatou-se um maior sucesso no plano de liberdade civil, política e comunitário, mas certa deficiência na questão econômica, sobretudo pela falta de matéria-prima com a qual os participantes do clube de trocas podiam trazer produtos de qualidade produzidos por eles mesmos. A partir deste diagnóstico, foi proposta a criação de um banco de trocas solidárias, que ainda está em fase de estruturação, mas tem conseguido ampliar a utilização do potencial dos participantes do clube de trocas, através de um empréstimo em matéria-prima, cujo pagamento é feito em moeda social conseguida no clube. Outras localidades encontraram outras saídas para a questão da busca de resultados efetivos em termos econômicos através da moeda social. O caso mais notório é o do banco Palmas, atuante em um bairro da periferia de Fortaleza, que garante empréstimos em Reais a pequenos comerciantes, postos de gasolina entre outros, que podem ser pagos em moeda social. Com esta estratégia garante-se grande aceitação da moeda social, financiando produtores considerados capitalistas, contudo há uma grande chance que a maior aceitação da moeda acabará por beneficiar mais ainda os pequenos produtores solidários da região, cuja renda em moeda social poderá satisfazer mais necessidades. Mesmo vislumbrado a perspectiva de um maior desenvolvimento local em termos econômicos, resta ainda a pergunta sobre o caráter político-emancipatório nesta alternativa, totalmente dependente do entendimento da população sobre o processo vigente e a possibilidade desta participar da tomada de decisão no que concerne à gestão deste banco. Portanto, o uso da moeda social em suas diferentes formas pode apresentar várias contribuições para o desenvolvimento local de uma comunidade. A experiência particular da ITCP-USP encontrou, até o momento, dificuldades tanto de geração de renda como de mudança nas relações de compra e venda, mas obteve sucesso na construção de um espaço democrático e de integração comunitária. 3.3.3 - Formação de agentes locais Pensar a formação de agentes locais como um dos instrumentos eficazes para a promoção do desenvolvimento local de uma determinada região requer pontuar basicamente dois estágios: 1 - qual seria o papel demarcado desse agente na região; e 2 - o caráter da sua formação (como ela se daria). Mas como não entraremos a fundo na discussão, e sim nos propomos a realizar pequenos apontamentos e levantar algumas questões, cabe levantarmos inicialmente que sua formação e seu papel não são instrumentais e sim reflexivos e críticos. O agente local como estratégia antes de tudo só é eficaz se pensarmos que ela está atrelada a outras e depende da estratégia de formação dos agentes, e, mais ainda, está relacionada à construção do “local” que sustenta e atualiza essas estruturas de desenvolvimento. Assim, a grosso modo, essa estratégia seria como a de um instrumentista que age, interfere e constrói a sinfonia junto com os outros. O agente local atua na região como um articulador e um aglutinador da comunidade; para isso é necessário que ele seja obviamente do local ou que conheça ou tenha um contato efetivo com a região, além de trabalhar nela. O papel do agente local para a promoção e complementação de estratégias para uma política pública de desenvolvimento local é o de justamente levar adiante essa política na comunidade. Se determinado projeto, além de incubação de grupos ou de criações de Centros de Referências, por exemplo, envolve a formação de agentes locais não é só para o trabalho imediato e sim para seguir com esse trabalho adiante, depois que a incubadora ou outra agência de fomento “de fora” deixar o local. A partir daí inclusive poderia ser formada uma nova instituição na região, composta por seus moradores. É imprescindível entender essa questão da localidade e do pertencimento ao grupo para que fique mais claro como seria o caráter da formação de um agente local. O agente local formado atua como o formador “de fora” atuava, só que com a linguagem própria da sua comunidade, e já que pertence ao grupo, teria maior facilidade em articular as demandas da região para o desenvolvimento e em estruturar definitivamente o coletivo. Este formador pode estabelecer um diálogo mais efetivo, abrangente, crítico e ao mesmo tempo objetivo por trazer, filtrar e adaptar a formação que teve. Para isso, a formação de um agente local deve ser pautada na educação popular. Não entraremos logicamente nas questões conceituais de educação popular e outras práticas afins, mas o que podemos citar de fundamento é que o educador não pode atuar transformando o educando isoladamente para uma participação e reflexão do local, mas sim transformar com ele e participar com ele na construção do seu espaço dentro da comunidade. Relembrando o caráter do papel do agente local, como aglutinador e articulador da comunidade, levando o projeto adiante, a sua formação é inteiramente dependente disso. Cabe assim uma proposta que envolva as seguintes ações: 1) identificar lideranças locais (pessoas que já tem uma participação decisiva na comunidade); 2) construir conjuntamente um diagnóstico dos grupos (no caso de possíveis empreendimentos solidários) e um plano de trabalho; 3) organizar oficinas conjuntas sobre temas que enfoquem questões relacionadas à organização coletiva autogestionária, à educação popular e à economia solidária; e 4) construir intercâmbios de espaços, nos quais os agentes locais freqüentam reuniões de formação da incubadora, e outros formadores da incubadora participem de reuniões de trabalho dos agentes locais. Pensando que a formação do agente local ultrapassa a constituição de grupos para uma determinada política pública de geração de renda, contendo a dimensão de formação de educadores populares locais, vemos assim uma estratégia mais efetiva e necessária para o desenvolvimento local. 3.3.4 – Centro de Referência Local de Economia Solidária Durante muito tempo a ITCP-USP buscou um espaço físico que pudesse sediar um Centro de Referência em Economia Solidária na Zona Sul de São Paulo. Isso se devia ao fato de que a partir do início das atividades da Incubadora na Zona Sul de São Paulo, em 2000, em parceira com o Programa Oportunidade Solidária (política pública da gestão municipal da época), sentimos a necessidade de uma maior aproximação com a comunidade e de um marco local, abrangendo principalmente a região de Capão Redondo, Jardim Ângela, Campo Limpo, e parte do Jardim São Luis. O Centro de Referência (CR) é uma das estratégias que visam auxiliar o Desenvolvimento Local, mantendo as portas abertas e chamando a população para discutir as práticas e os valores da Economia Solidária. Diante disso, a ITCP-USP apresentou um projeto para a construção desse Centro, que só se consolidou posteriormente, no final de 2005, através de uma parceria com a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo. O Centro de Referência é um espaço de formação em temas da Economia Solidária, tanto para as lideranças locais, quanto para a população em geral, um local para uma maior convivência entre os empreendimentos, envolvidos na Rede Solidária (que se reúne quinzenalmente), para discutir temas como comercialização e capacitação, problemas comuns a todos os grupos. O local pode abrigar também, por tempo limitado, alguns grupos enquanto estes não têm outro espaço adequado para a produção. Através do Centro de Referência também se busca firmar parcerias com as entidades locais, através da apresentação dos projetos fomentadores e dos grupos produtivos envolvidos, visando a inserção de parceiros na Rede Solidária. Uma outra estratégia de desenvolvimento local ligada ao Centro de Referência é o Clube de Compras do Campo Limpo, que tem potencialidades para contribuir para uma maior visibilidade na atuação e concretização da proposta da Economia Solidária. O Centro de Referência busca se constituir como um espaço de divulgação da proposta de uma nova cultura solidária e de fortalecimento das demais estratégias, em busca de melhores possibilidades de crescimento, bem como de desenvolvimento social e econômico, preservando o direito de cidadania. 3.3.5 - Organização coletiva para o consumo: A organização coletiva para o consumo é também uma ferramenta para o desenvolvimento local solidário. Ela pode ser usada para proporcionar benefícios em alguns aspectos destacados a seguir: 1 - Redução dos preços dos insumos - pela possibilidade de compra em atacado, da zona cerealista ou mesmo a compra direta do produtor, ou pela concentração monetária, que permite maior poder de barganha. Ou mesmo pela redução do gasto com os insumos já consumidos, a partir do qual as pessoas têm a possibilidade de ampliar seu acesso a maior quantidade e também qualidade dos alimentos. 2 - Geração de trabalho e produção - uma vez que parte do dinheiro pode ser direcionada ao pagamento de algumas pessoas que trabalhem pela execução do processo; e pela compra que pode ser orientada para produtos dos produtores locais, ou solidários. 3 - Mudanças das relações sociais - uma vez que a organização coletiva necessita da participação, do empenho de uma maioria, da divisão de responsabilidades, podendo assim trazer novas relações entre as pessoas. Acrescenta-se também a aproximação dos consumidores com os produtores e ao processo de produção dos insumos consumidos. 4 - Novos hábitos alimentares e outra lógica da produção - através de acordos entre consumidores e produtores que podem proporcionar a possibilidade da produção realizar-se de forma diversificada, de modo que os produtores possam superar a lógica da maximização da produção de mesmo bem. Também, frente a alguma dificuldade pontual por parte dos produtores, os consumidores podem adequar suas exigências (pedido dos produtos). Outro aspecto se refere à garantia da compra por parte dos consumidores, que pode tranqüilizar os produtores para a produção de produtos orgânicos, por outros tipos de produção com preocupações ecológicas, entre outras. 5 - Criação de fundos e outros benefícios - uma vez que a organização das compras permite o aglutinamento de capital. Parte deste pode ser poupada na forma de algum fundo, e a organização coletiva pode fazer uso deste dinheiro para o investimento de outros benefícios aos associados que não os já listados, tais como: auxilio odontológico, médico, mutuário, etc. Uma das garantias do êxito desta estratégia é alcançar uma escala, ou seja, um número de associados suficientes para a execução de todo o processo da compra e distribuição. Das dificuldades enfrentadas, a concorrência imposta pelos hipermercados é a maior delas, tanto pelo poder que possuem em submeter os produtores a suas regras e lógicas de pagamento, como as facilidades e comodismos oferecidos aos consumidores. Frente as mais diversas dificuldades enfrentadas, a organização coletiva para o consumo, como outras estratégias do desenvolvimento solidário, necessita ser constantemente avaliada para saber se está ou não tendo eficácia e assim dando respostas às necessidades das pessoas envolvidas. 3.3.6 – Rede Solidária Local A palavra Rede remete a relações entre partes, portanto trabalhar em Rede significa deslocar o olhar das coisas para a relação entre elas. A proposta de constituir uma Rede na Zona Sul surge justamente a partir da percepção e avaliação da ITCP-USP de que o trabalho de incubação, quando realizado de forma isolada, não alcança os objetivos de forma satisfatória. É preciso ir além do foco na formação do empreendimento e olhar para o todo, onde este grupo está inserido, principalmente para as relações que mantém este todo. Existe uma necessidade maior do que a incubação propriamente dita, a de se pensar não só a relação dos empreendimentos solidários entre eles, mas deles com o mundo no qual estão inseridos e mais ainda no mundo que estão construindo. Ora, o mundo, a natureza, a sociedade, o capitalismo etc. só funcionam porque há uma série de relações fundamentais para sua manutenção e o Homem não está isento da participação neste processo. Com isso, nada faz mais sentido para quem pretende mudar a relação do Homem com o seu trabalho, e ampliar essa mudança para como ele se relaciona com o mundo, do que pensar em estratégias que foquem a transformação das relações e não o fenômeno em si. Ou seja, para viabilizar uma mudança no modo como o trabalho está organizado atualmente não basta mudar o trabalho em si, é preciso propor mudanças que vão além disso e estão diretamente relacionadas à Economia, ao Mercado, à comunidade na qual o trabalho está inserido, entre outros. A proposta da Rede Solidária vem ao encontro de todas essas mudanças. É uma estratégia primordial, pois ao mesmo tempo em que é ponto de partida de propostas e encaminhamentos das estratégias colocadas anteriormente, é também o ponto de convergência destas e outras possíveis estratégias. A Rede pode ainda ser considerada a melhor imagem da Economia Solidária, justamente porque ela não tem um centro, ao contrário, qualquer ponto de convergência (ou nó, se visualizarmos uma rede concreta) é um centro em potencial. Essa descentralização, ou “centralização móvel” se assim preferirem, deve ser à base de qualquer Rede Solidária porque a autogestão é intrínseca à idéia dos centros potenciais, das lideranças momentâneas. Como afirma Manuel Castells: “A morfologia da rede (...) é uma fonte de drástica reorganização das relações de poder”. Além disso, é interessante que a Rede tenha capilaridade para que possa dar conta de promover as estratégias e se enraizar no local onde está inserida. Para isso os parceiros envolvidos devem ser flexíveis e ter certa autonomia de representação e ação. Finalmente, a Rede Solidária da Zona Sul ainda está em processo de construção, entretanto ela se mostra uma importante ferramenta de desenvolvimento local já que aponta para uma horizontalidade no processo de empoderamento da comunidade em relação à construção e consolidação da Economia Solidária na região. Além de provocar as pessoas para pensarem transformações em âmbitos da vida que não apenas o trabalho, como o consumo, a saúde, a educação, a cultura. 4. Considerações Finais Este estudo introdutório apresentou algumas estratégias para o desenvolvimento local solidário, entre diversas outras que podem ser criadas e experimentadas. Articuladas em uma rede de intercooperação, estas estratégias têm a potencialidade de mobilizar recursos, pessoas, idéias e ações de uma localidade para um projeto de desenvolvimento pautado em novos princípios. Na Rede Solidária da Zona Sul, projeto em desenvolvimento pela ITCP-USP em São Paulo, vivenciamos cotidianamente dificuldades e conquistas, buscando construir um espaço coletivo, com a participação da comunidade envolvida, de reflexão, construção e avaliação destas estratégias. BIBLIOGRAFIA CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000. FURTADO, Celso. Introdução ao desenvolvimento, enfoque histórico-estrutural. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. _______, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Paz e Terra, 1974. JACOBS, Jane. A natureza econômica. São Paulo: Beco, 2001. KUSNETS, Simon Amith. “Economic growth and income inequality”, American Economic Review, vol. 45, março de 1955. MANCE, Euclides. Como organizar redes solidárias. Rio de Janeiro: IFiL, Fase, DP&A, 2003. NOVELLI, Bruno. “Organizando Coletivamente o Consumo” in Anais do III Encontro Internacional de Economia Solidária. São Paulo: NESOL-USP, 2005. CDRoom. SEN, Amartya. 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