Ano 1 | Edição 1 | Brasília | Outubro 2010 | ISSN 2179-2178 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB RC Revista de Cultura e DH Direitos Humanos da AMB Realização Esse Brasil Africano Apoio BRAA SIL fricano Esse Ano 1 - Edição 1 - Outubro 2010 Raízes Africanas Tradição, alegria e fé: festas populares e tradicionais brasileiras Personalidade: Milton Santos Ações afirmativas no Brasil Brancos e Negros no Ensino Superior Políticas afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Transformando o mundo através da música Falando em Direitos Humanos Photos.com Editorial Igualdade nas diferenças Uma revista de Cultura e Direitos Humanos. Uma edição dedicada à importância dos negros e negras na formação cultural do país. Com esta iniciativa a AMB contribuiu à sociedade brasileira para dar corpo a um dos mais importantes objetivos do II Plano Nacional de Direitos Humanos (objetivo de número 202 do PNDH). Um documento em forma de revista para preservar a memória e ao mesmo tempo contribuir com um olhar à produção cultural de mulheres e homens negros no Brasil. A edição sintetiza a importância desta cultura e a forma determinante com que influenciou a construção de uma identidade nacional. É um depoimento sobre a riqueza, o requinte e a intensidade das várias formas de expressões cultural e intelectual daqueles cuja migração para o território brasileiro foi impostas através das mais brutais violações de Direitos Humanos da história da humanidade. O processo de superação de uma etnia pode ser observado pela forma com que influenciou na academia, na música, na dança e na literatura. A luta permanente pelo espaço social outrora subtraído é justificado no lento, porém visível, processo de inclusão. A reparação da injustiça histórica da escravidão não se opera de forma simples e rápida, é um processo que compõe um dos maiores desafios civilizatórios e encontra alguns obstáculos velados, mas importantes. É a busca de um povo ao ideal da igualdade e os dilemas impostos pelos distintos olhares sobre este princípio tão caro para todos nós. A genialidade de Boaventura de Souza Santos nos move a “lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem e lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize”. É sobre isso que estamos tratando nesta edição. É a luta por igualdade de um povo portador de imenso crédito em dignidade. É sobre a legitimidade desta luta que queremos falar. A AMB também está engajada neste desafio. Boa leitura. João Ricardo dos Santos Costa Vice-presidente da AMB para Direitos Humanos Juiz José Lúcio Munhoz Vice-presidente da AMB para Assuntos Culturais Agradecimentos: A Jorge Adelar Finatto, magistrado aposentado, pela imprescindível contribuição na construção do projeto; À Juliane Alcácio, funcionária da AMB, fundamental para a realização deste trabalho; À Fundação Ford pela parceria; Ao Escritório de Histórias por concretizar esta proposta. 1 Presidente Juiz Airton Mozart Valadares Pires Amepe Secretário-Geral Juiz Nelo Ricardo Presser Ajuris Secretário-Geral Adjunto Desembargador Jorge Massad Amapar Vice-Presidentes Vice-presidente Administrativo Desembargador Ademar Mendes Bezerra ACM Vice-presidente de Esportes Desembargador Alemer Ferraz Moulin Amages Vice-presidente de Comunicação Desembargador Cláudio Luis Braga Dell’Orto Amaerj Diretor-Tesoureiro Juiz Emanuel Bonfim Carneiro Amaral Filho Amepe Vice-presidente Institucional Desembargador Doorgal Gustavo Borges de Andrada Diretor-Tesoureiro Adjunto Amagis Juiz Edvaldo José Palmeira Amepe Vice-presidente de Assuntos Ambientais Desembargador Flávio Humberto Pascarelli Amazon Conselho Fiscal Juíza Maria Isabel da Silva Amagis-DF Juiz Tiago Pinto Amagis Juíza Ângela Maria Ribeiro Prudente Asmeto Assessores da Presidência Juiz Rolemberg Costa Amab Juiz Marcos Salles AMPB Juiz Irno Resener Amatra XII Luiz Alberto de Vargas Amatra IV Vice-presidente de Assuntos da Infância e Juventude Juiz Francisco de Oliveira Neto AMC Vice-presidente de Direitos Humanos Juiz João Ricardo dos Santos Costa Ajuris Vice-presidente de Assuntos Culturais Juiz José Lúcio Munhoz Amatra II Vice-presidente de Assuntos Legislativos Trabalhistas Juíza Patrícia de Matos Lemos Amatra IX Vice-presidente de Interiorização Desembargador Sebastião Luiz Amorim Apamagis Vice-presidente de Assuntos Legislativos Juiz Wilson da Silva Dias Asmego Coordenador da Justiça Estadual Juiz Eugênio Couto Terra Ajuris Coordenador da Justiça do Trabalho Juiz Luis Cláudio dos Santos Branco Amatra XVII Coordenador da Justiça Militar Desembargador James Magalhães de Medeiros Amajme Diretoria de Esportes Diretor Márcio Mendes Amapar Diretor-Adjunto Ronaldo Maciel Amma Futebol Coordenador dos Aposentados Desembargador José Carvalho Amab Diretores Regionais Coordenadora da Justiça Federal Juiz Lucas Rosendo Máximo de Araújo AMB Nordeste - Joaquim Lafayette Neto (Amepe) Diretor de Relações Internacionais Desembargador Floriano Gomes da Silva Asmego Sudeste - Sandro Pitthan Espíndola (Amaerj) Diretor-Presidente da ENM Desembargador Eladio Lecey Tênis Centro-Oeste - Ariovaldo nantes Corrêa (Amamsul) Norte - Raimundo Nonato da Costa Maia (Asmac) Sul - José Antônio Flôres (Ajuris) Diretor de tênis Arnóbio Araújo Jr. Amepe Diretor de Informática Juiz Rafael Menezes Amepe Diretora do Departamento de Pensionistas Eneida Terezinha Barbosa Direto-adjunto de tênis Luiz Alberto Moro Cavalcante Apamagis ISSN 2179-2178 Coordenação João Ricardo dos Santos Costa Vice-presidente da AMB para Direitos Humanos Projeto Editorial, Edição, Redação, Revisão e Direção de Arte Escritório de Histórias Apoio Fundação Ford Secretaria de Reforma do Judiciário - Ministério da Justiça Luiz José Lúcio Munhoz Vice-Presidente de Assuntos Culturais da AMB Projeto gráfico e Diagramação Silpe Design Impressão Coronário Gráfica e Editora A Revista de Cultura e Direitos Humanos é uma publicação da Associação dos Magistrados Brasileiros. Tiragem 50.000 exemplares Contato Centro Empresarial Liberty Mall, SCN Quadra 02, Bloco D, Torre B, Conjunto 1302, Brasília, DF. CEP: 70.712-903. Telefone: (61) 2103-9000. www.amb.com.br Memória Raízes Africanas Entrevista Falando em Direitos Humanos 12 Dr. Edinaldo César Santos Junior 6 Cultura Tradição, alegria e fé festas populares e tradicionais brasileiras 22 Personalidade Milton Santos Geógrafo, advogado, professor, escritor e pensador: o garoto de origem humilde, nascido no interior da Bahia, conquistou o mundo e fez história 32 Especial Políticas afirmativas: por que o Brasil precisa delas? 54 Opinião Ações afirmativas noBrasil Drª. Sarita Amaro 44 64 48 Opinião Brancos e Negros no Ensino Superior Drª. Delcele Mascarenhas Queiroz Entrelinhas Transformando o mundo através da música 6 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Falando em Direitos Humanos Edinaldo César Santos Junior nasceu em 23 de agosto de 1975, em Aracaju/SE. É graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL), Especialista em Direitos Humanos pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP). Atuou como advogado, Defensor Público do Estado da Bahia, entre 2000 e 2004 e, desde 2005, é Juiz de Direito do Estado de Sergipe. Atualmente, encontra-se licenciado, residindo no Estado de São Paulo, onde está cursando o mestrado. Foi o 1º estagiário brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. É integrante da Comissão de Direitos Humanos da AMB. Quando o senhor começou a se interessar pelos Direitos Humanos? Meu encontro com os Direitos Humanos ocorreu logo após o término da faculdade, em 1998. Atuei em um caso emblemático, de muita repercussão, envolvendo uma vitima de injúria racial. No percurso trilhado, tive contato com diversos organismos estatais e não estatais de defesa dos direitos humanos. O primeiro deles, altamente marcante, foi a promotoria de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia, nas pessoas dos promotores de justiça Lidivaldo Brito e Márcia Virgens, que já atuavam na defesa dos direitos humanos. Foi um momento de grande aprendizado. Ao final do processo, obtivemos vitória na ação criminal, logrando a primeira sentença procedente de injúria racial na Bahia. Após, essa primeira ação, atuei em várias outras no mesmo sentido, tendo me especializado em Direitos Humanos. Quando passou a atuar de maneira mais efetiva nesta área? Sem sombra de dúvidas, quando ingressei na Defensoria Pública do Estado da Bahia. Entre 2003 e 2004, fui Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos, pioneiro em Defensorias Públicas no país. O núcleo atuava na defesa dos grupos vulneráveis, é dizer, pessoas que sofriam todo tipo de discriminação, tortura, maus-tratos, eram nossos assistidos. Como ainda não havia uma maior especialização no órgão, atendíamos também a idosos, mulheres vítimas de violência, entre outros grupos vitimizados. Tínhamos de ser juridicamente criativos para alcançarmos êxito nas ações, porque falar em direitos humanos há 10 anos, fundamentando pedidos em convenções internacionais, ainda gerava polêmica e mesmo rejeição. Dr. Edinaldo César Desta época até os dias de hoje, o que identifica como a principal mudança no aspecto jurídico? Em 1998, o Brasil aceitou a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Havia apenas 6 (seis) anos que o pais ratificara a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica (1992). Quando estive como estagiário da Corte entre 2001 e 2002, recordo-me de que o Brasil ainda não havia sido demandado perante o tribunal interamericano. Assim, considero que a ratificação de tratados, com a sua conseqüente inserção no ordenamento jurídico brasileiro, tem sido um importante passo para mudanças significativas, conquanto perceba haver uma deficiência quanto ao diálogo entre nós, os juízes brasileiros, e as Cortes Internacionais de Direitos Humanos. Com relação aos afrodescendentes, na sua opinião, quais foram as principais dificuldades para que os Direitos Humanos pudessem ser efetivados? Até hoje, muitas pessoas ainda vivem na crença da inexistência do racismo no Brasil e de que vivemos numa democracia racial à Gil- Entrevista 7 berto Freire. No mínimo, conseguem admitir a presença remota de um racismo social e econômico, nunca ideológico. Ouso discordar. Uma última pesquisa realizada pela AMB entre os juízes do Brasil constatou que da totalidade de juízes no país, apenas 0,9% é negro. Essa é uma estatística preocupante, a demonstrar, por exemplo, que o acesso à magistratura para o negro é ainda um sonho distante. Faço parte da exceção. Ora, partindo da premissa da ausência de racismo ideológico, muitos poderiam afirmar que um negro juiz não seria alvo de preconceito ou discriminação. Sou a prova do contrário. Não importa como ou onde esteja, a consciência social ainda não crê na possibilidade da ascensão do negro e, por isso, discrimina-o. Se o negro social e economicamente bem situado dirige o carro zero, é o motorista particular, se está de traje formal no shopping, é abordado como segurança, se está de pasta a tiracolo, é o fotógrafo do evento, e mesmo dentro do “gabinete do juiz”, se está acompanhado do assessor não-negro, a ele a palavra sequer é dirigida. Todos esses fatos já ocorreram comigo. Penso que os afrodescendentes no Brasil ainda têm um longo caminho a percorrer. Photos.com Até hoje, muitas pessoas ainda vivem na crença da inexistência do racismo no Brasil e de que vivemos numa democracia racial à Gilberto Freire. Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB E as principais conquistas? O que identifica como grandes avanços? Em junho de 2003, o Brasil, através do decreto presidencial 4783, promulgou a Declaração Facultativa prevista no art. 14 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, reconhecendo a competência do Comitê Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial para receber e analisar denúncias de violação dos direitos humanos cobertos na mencionada Convenção. Este foi um importante avanço, porque entendo que qualquer forma de monitoramento ajuda a prevenir ações violadoras de direitos humanos. Os negros no Brasil têm um arcabouço legislativo importante na luta contra a discriminação racial. Não obstante, mais uma vez, constato o valor da jurisprudência e de sua visão quanto a tão importante tema. O Supremo Tribunal Federal, na análise da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 e do Recurso Extraordinário 597.285/RSA, abriu importante discussão social através da realização de audiência pública. Para mim, a autorização da utilização das cotas como política de ação afirmativa já está inserida no Brasil desde 1969, quando o país ratificou a Convenção Internacional relativa à Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que expressamente diz, no §4º do artigo 1º, não ser considerada discriminação racial a As cotas não são um favor, mas sim uma condição necessária à reparação dos contrastes reinantes do pais pós-1888, fruto de uma “abolição da escravidão” sem políticas de adequação econômica e social dos egressos da condição de objeto para situação de sujeito (de direitos?). realização de medidas especiais com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de grupos raciais, proporcionando igual gozo ou exercício de determinados direitos humanos. Leia-se medidas especiais como cotas, ao menos como espécie do gênero. Essa Convenção foi devidamente recepcionada pela Constituição de 1988. Ademais, quanto às cotas ressalto alguns dados. As cotas não visam à diminuição da discriminação racial, mas sim da desigualdade racial perversa existente e persistente. As cotas não são um favor, mas sim uma condição necessária à reparação dos contrastes reinantes do pais pós-1888, fruto de uma “abolição da escravidão” sem políticas de adequação econômica e social dos egressos da condição de objeto para situação de sujeito (de direitos?). Tudo isso encontra-se vinculado a uma questão da disputa de poder, com a qual se convive até hoje, apenas com a alteração das personagens. As questões Photos.com 8 Dr. Edinaldo César Entrevista Photos.com É necessário mudança de mentalidade. E isso, por óbvio, não ocorre de uma dia para o outro. A educação, que forma, informa e conforma foi, tem sido e continuará sendo a protagonista de grandes conquistas. das políticas de ação afirmativa e de políticas de reconhecimento dos negros e dos demais grupos vulneráveis demandam de nós uma reflexão que nos proporcione releituras, impregnada da empatia, que deve ser a tônica da atuação do magistrado na árdua tarefa ulpiana de dar a cada um o que é seu. O que ainda falta avançar nos Direitos Humanos no Brasil, na sua opinião? É necessário mudança de mentalidade. E isso, por óbvio, não ocorre de uma dia para o outro. A educação, que forma, informa e conforma foi, tem sido e continuará sendo a protagonista de grandes conquistas. Infelizmente, a maioria das faculdades de direito ainda tem pilares na formação clássica, positivista, que surgiria como empecilho à uma perspectiva de transformação para as novas gerações. Não podemos continuar admitindo vivermos como se fosse uma grande conquista ser a “boca da lei”. Talvez tenha sido no século XIX. Nesta senda, defendo uma maior aproximação com a população. Como prestarmos uma boa jurisdição sem conhecermos a realidade dos destinatários de nossas decisões? Se o desafio está em nos aproximarmos com a cautela exigível pela imparcialidade, também compreendo que este fator não pode ser paralisante ou impeditivo de ações que nos identifiquem e nos levem a melhor jurisdizer. Sempre tenho dito que o juiz está adstrito ao princípio da inércia processual, mas extraprocessualmente é livre para levar ao jurisdicionado noções de cidadania e direitos humanos, proporcionando acesso à justiça no sentido mais amplo, tudo em observância aos preceitos constitucionais. A realização de seminários, júris simulados, palestras ou a confecção de cartilhas são bons exemplos de atividades que teriam o condão de levar o Judiciário à comunidade onde atua. 9 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Como percebe o interesse e a participação da sociedade nesse tema? A concepção social de direitos humanos vem mudando nos últimos anos. Aquela velha idéia de direitos humanos como direitos dos bandidos, forjada durante a ditadura militar, resta ainda para os menos avisados ou para aqueles muito mais preocupados na manutenção do status quo. Os direitos humanos, como contramajoritários que são, acabam tendo alguma resistência de determinados setores sociais, que ainda os enxergam como um perigo. Por outro lado, consigo ver a sociedade civil se organizando mais e sua participação política mais qualificada. Vejo, por exemplo, a participação paritária, com a presença da sociedade civil organizada, em conselhos municipais e estaduais, como um avanço. A sociedade percebe a importância de interagir, constatando também que tem a sua parcela de responsabilidade. Muitos instrumentos jurídicos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, ressaltam direitos, mas também Muitos instrumentos jurídicos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, ressaltam direitos, mas também deveres da sociedade e da família, e creio que essa participação, que é legítima, tende a se qualificar. deveres da sociedade e da família, e creio que essa participação, que é legítima, tende a se qualificar. A AMB é exemplo dessa crescente participação social ao criar uma Vice-Presidência de Direitos Humanos e uma Comissão de Direitos Humanos. Isso significa que os juízes do Brasil querem ter voz quando o tema é direitos humanos, entre outras questões do país. Para exemplificar, recordo-me de que ao participar da XI Conferência Nacional de Direitos Humanos em Brasília, pela AMB, eu e vários colegas juízes estávamos numa sala em que se discutia o tema segurança pública. Em dado momento, os demais participantes apenas falavam mal dos juízes e do judiciário, até que nós pedimos a palavra para replicarmos e emitirmos nossa opinião, sob os olhares perplexos e manifestação verbal em seguida, cujo conteúdo era “nós nunca iríamos imaginar que houvesse juízes presentes nesta conferência!!”. Mas nós estávamos lá e podemos também opinar sobre as mudanças que nos afetam e sobre as quais temos que decidir. É a necessária mudança de paradigma. Photos.com 10 Defendo a importância do diálogo entre as Cortes, o que levaria a um maior conhecimento dos magistrados brasileiros da jurisprudência internacional sobre direitos humanos. Quais são os grandes desafios da Justiça hoje, em relação aos Direitos Humanos? Creio que um dos grandes desafios da justiça no Brasil é a aplicação do direito com a observância dos precedentes judiciais das Cortes Internacionais de Direitos Humanos. Já cri, no passado, que o conhecimento pelos operadores do direito das normas de direitos humanos inseridas no ordenamento jurídico brasileiro fosse a solução para uma melhor prestação jurisdicional, mais inclusiva do ponto de vista social. Ocorre que posso desconhecer a norma; posso conhecê-la, mas não aplicá-la; e posso aplicá-la subvertendo sua intenção. Esta última hipótese seria a mais perniciosa. Defendo a importância do diálogo entre as Cortes, o que levaria a um maior conhecimento dos magis- Photos.com Dr. Edinaldo César trados brasileiros da jurisprudência internacional sobre direitos humanos. Uma confirmação desse colóquio entre tribunais é o RE 511.961, sobre a obrigatoriedade do diploma de jornalista, em que o Ministro Gilmar Mendes faz referência tanto à Opinião Consultiva nº 05/85 da Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto ao Informe Anual da Relatoria Especial para Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Assim, creio que o diálogo do juiz brasileiro com as Cortes de Direitos Humanos, conhecendo seus precedentes, aplicando-os como fonte de direito, seja um grande desafio da pós-modernidade. Nós, juízes do Brasil, já passamos do momento de começarmos a utilizar esses instrumentos em nossas decisões a fim de garantir a efetiva inclusão de direitos. Creio que o diálogo do juiz brasileiro com as Cortes de Direitos Humanos, conhecendo seus precedentes, aplicando-os como fonte de direito, seja um grande desafio da pós-modernidade. Entrevista 11 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Stockphoto 12 A capoeira é uma luta dançada em todo o território nacional e possui muitos elementos africanos, como os instrumentos musicais, a ginga, as letras e os passos. Raízes Africanas Pesquisa: Marina Camisasca | Redação: Isabella Verdolin e Marina Camisasca No despontar da Idade Moderna, com as grandes navegações empreendidas a partir de Portugal, sociedades africanas da costa atlântica, até então nunca visitadas por populações de outros continentes, passaram a fazer parte dos circuitos de relações intercontinentais. Algumas dessas sociedades forneceram a maior parte da força de trabalho utilizada na “construção” do Novo Mundo. Assim, do século XVI ao XIX foi em torno do tráfico de escravos, isto é, do comércio de pessoas, que ocorreram as relações entre muitos africanos e europeus. Durante a colonização brasileira, grande parte da mão-de-obra empregada veio da África para realizar os trabalhos mais diversos. No princípio os portugueses tentaram utilizar o trabalho indígena para a extração do pau-brasil, oferecendo em troca toda espécie de objetos, que nem sempre tinham utilidade ou valor para os habitantes locais. No entanto, devido à inadaptação dos índios, a partir de 1550, os colonizadores optaram por empregar o trabalho de negros e negras que, dentre outros fatores, possuía um alto valor de venda no novo continente. O Brasil foi o país que por mais tempo e em maior quantidade recebeu escravos africanos. Aproximadamente 40% dos que rumaram para a América aportaram aqui. A maioria era proveniente da Angola, mas também vieram escravos do Congo, de Moçambique, do Golfo do Benim, dentre outros. Memória Raízes Africanas Escravizar o inimigo e utilizá-lo para o trabalho cotidiano já era uma prática entre muitos desses povos. Mas, ainda assim, ao serem retirados dos seus locais de origem, levados para outro continente e reagrupados nos plantéis, sítios ou casas onde trabalhavam, os negros tiveram que recriar suas formas de inserção no mundo, para encontrar outros termos de convivência e de apreensão da realidade. Isto fez aflorar afinidades e inimizades, formas de relacionamento foram estabelecidas, novos laços tecidos e lideranças escolhidas. Principais rotas do comércio atlântico de escravos para o Brasil do século XVI ao XIX domínio público A multiplicidade de nomes designativos de povos diferentes, de línguas desconhecidas e fonéticas com as quais os europeus não estavam acostumados, fez com que estes identificassem os escravos de acordo com os locais de embarque, dos mercados onde eram comercializados ou dos reinos conhecidos. Escravos receberam, por exemplo, as denominações de cabinda e de cassanje, nomes de mercados africanos. Os registros não nos possibilitam conhecer a totalidade dos povos que rumaram para cá. No entanto, eles são indicativos da variedade de grupos que foram trazidos para serem empregados como força de trabalho em diversas localidades e atividades, tanto urbanas quanto rurais. As sociedades africanas eram plurais, diversificadas e marcadas por alianças e disputas. Danse de la Guerre, de Johann Moritz Rugendas, 1835 Egito Cabo Verde Gana Bambuk Bissau Mali Tombuctu Jené Canem IBornu Buré Daomé PENÍNSULA ARÁBICA Songai Gaô Núbia Senar Darfur Axum Etiópia Oió ÁFRICA Ife Benin Abomé Alada Lagos Axante Ajudá Forte de São Jorge da Mina São Tomé Belém Congo Cabinda(Loango) Luanda Pinda Ambriz Ambuíla Luanda Dongo Cassanje Matamba Recife AMÉRICA DO SUL Zanzibar Quiloa Cassanje Salvador Benguela OCEANO PACÍFICO OCEANO ÍNDICO Tio São Luís Cazembe Lozi Moçambique Angoche Moçambique Quelimane Sofala Monomotapa Rio de Janeiro Inhambane OCEANO ATLÂNTICO Cidades Africanas de origem Principais destinos dos negros no Brasil Cidades Africanas do passado (localização aproximada) Reinos Africanos do passado 13 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Havia também outros laços que ligavam brancos e negros. Prática comum era que escravas amamentassem os bebês recém nascidos, filhos dos senhores, as “amas de leite”. Alguns que trabalhavam nos serviços domésticos da “casa grande” costumavam receber instrução, aprendiam a ler e escrever com as senhoras da casa e estabeleciam amizades entre os brancos. Os escravos no Brasil não foram nem heróis nem coisas, foram pessoas que trabalharam e lutaram pela sobrevivência e, devido ao convívio com os seus senhores, muitas vezes, criaram relações muito próximas com esses últimos, que diferentemente do que se imagina, nem sempre foram homens maus que só pensavam em maltratar os negros e negras. Uma Senhora Brasileira em seu lar, de Jean Babtiste Debret, cerca de 1823. Litografia e aquarela à mão domínio público As sociedades africanas eram plurais, etnicamente e com características físicas bem marcantes, como mostra esta série de gravuras de Johann Moritz Rugendas. Cerca de 1820, in Viagem Pitoresca através do Brasil Além de relações criadas entre os africanos de diferentes origens, os escravos tiveram também que estabelecer uma forma de convivência com os seus senhores. A rede de relações pessoais entre dois grupos aparentemente antagônicos revela que o convívio entre as duas partes era de interdependência: o escravo era quem realizava a maior parte dos serviços e, para os senhores, perdê-lo não era vantajoso, pois além do enorme prejuízo – um escravo custava caro -, não havia, por exemplo, outra mão de obra disponível para realizar as tarefas na lavoura. Com a abolição da escravatura em 1888 e a instauração do regime republicano no ano de 1889, o escravo passou a ser associado a uma situação de atraso, a um Brasil arcaico que precisava ser deixado para trás, até porque sua manutenção exigia um aporte altíssimo de recursos. A abolição por si só não representou a solução para 338 anos de escravidão. Alguns negros continuaram nas lavouras, contratados como homens livres até a chegada dos imigrantes no século seguinte. Na verdade, para quem deixou a vida nas fazendas, houve uma piora imediata. Expulsos das senzalas, sem dinheiro, sem casa, com a roupa do corpo e sem ter um ofício, muitos procuraram os quilombos, domínio público 14 Raízes Africanas Memória 15 domínio público domínio público Recife, capital de Pernambuco, de Johann Moritz Rugendas. Cerca 1820, in Rugendas e o Brasil domínio público outros tantos se dirigiram aos povoados e cidades em busca de trabalho. Os que tinham alguma instrução conseguiam emprego em pequenos comércios. Mas para os que não tinham, a busca se tornava mais difícil. Alguns tornaramse empregados domésticos ou em bares, para fazer os serviços de limpeza, considerado indigno. O destino de quase todos foi a construção civil e a periferia, em moradias improvisadas, sem estrutura nem conforto, que foram se perpetuando ao longo do tempo. Anos mais tarde, com a chegada dos imigrantes, também pobres e sem ter onde morar, muitos se juntaram aos negros nas periferias das grandes cidades. Nos quilombos, pequenas comunidades estabelecidas, umas mais, outras menos organizadas, os negros livres precisavam encontrar maneiras de sobreviver. A criação de animais como galinhas e porcos, a pequena produção de hortaliças e frutas e o comércio nos povoados próximos, além do garimpo e do extrativismo, garantiam alimentação e sustento a todos. Algumas das denominações atribuídas aos povos africanos vindos para o Brasil Angola Benguela Cabinda Cassanje Congo Jêje Mina Nagô Negro da Guiné Negra tatuada vendendo caju, Jean baptiste Debret. 1827, aquarela sobre papel Photos.com Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Havia espaço também para o artesanato e para as manifestações religiosas, que misturavam os costumes africanos e a fé aprendida com os portugueses. Imagem de São Benedito. Festa do Encontro dos Tambores Mineiros, Belo Horizonte-MG Arraiais e cidades foram surgindo à beira dos caminhos mais usados no comércio, com a miscigenação entre brancos, negros e índios, povoando o interior do Brasil. Em 2010, o Brasil completou 510 anos desde seu descobrimento. Os negros chegaram apenas 50 anos após os portugueses, e a partir de então, o que criaram aqui é considerado como brasileiro, contribuindo para a formação de um povo, ainda que sofrendo forte repressão de seus costumes e crenças pelos colonizadores. Os 122 anos decorridos após a abolição talvez seja muito pouco tempo para modificar uma situação de desigualdade, no entanto, é preciso reconhecer que os afrodescendentes possuem um papel fundamental na composição da nação brasileira. Ricardo Avelar 16 Raízes Africanas Photos.com Na tentativa de propiciar um melhor aprendizado sobre a bagagem cultural trazida por eles, foi sancionada pelo Governo Federal a Lei n° 11.645 no ano de 2008, que tornou obrigatório nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados, o ensino de história da África e dos africanos. Isto pode trazer muitos benefícios, uma vez que proporcionará às futuras gerações conhecer melhor um continente formado por múltiplas sociedades, que viveu processos históricos variados e que teve boa parte da sua população escravizada pelos europeus e transportada para as terras do Novo Mundo. Além disso, ela poderá contribuir para que a sociedade brasileira perceba a importância dos africanos e dos afrodescendentes para a sua formação, o que promoverá o reconhecimento e o fortalecimento da cultura nacional de uma maneira mais ampla e real pela população. Os africanos, oriundos de povos distintos, que rumaram para o Brasil, muito influenciaram a língua, a alimentação, as músicas, as crenças, as festas, os jogos, as religiões e as danças que hoje se praticam em todas as regiões do país e que são parte constitutiva da identidade nacional. As religiões afro-brasileiras, por exemplo, foram proibidas no passado, mais tarde toleradas e hoje são cada vez mais reconhecidas como parte das crenças praticadas no Brasil, ainda que os preconceitos contra elas sejam muitos. O candomblé, que talvez seja a mais famosa das religiões com influências oriundas da África, é praticado em diversos estados como Bahia, Rio de Janeiro e Maranhão. Já as umbandas, religiões afro-brasileiras de origem banto, nas quais são cultuados ancestrais e espíritos da natureza, estão presentes nas estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Goiás. Nos terreiros dessas duas religiões estão presentes elementos da cultura africana na arquitetura, nos alimentos, nos ritos, na dança, na música, dentre outros. Memória Desde 2008, a história da África e dos africanos é ministrada nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio do Brasil. 17 Ricardo Avelar 18 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB A música, além de ser central nos cultos religiosos, também é fundamental em muitas outras ocasiões de festas e danças, como as congadas, maracatus, reisados, frevos, boi-bumbá e capoeiras. Esta é uma luta dançada em todo o território nacional e possui muitos elementos africanos, como os instrumentos musicais, tambor e berimbau, a formação em roda, a ginga, os ritmos, as letras e os passos. O samba, reconhecido mundialmente como parte da identidade brasileira, nasceu nas casas de baianas que emigraram para o Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX. Na cidade, a dança praticada pelos escravos incorporou outros gêneros, como a polca, o maxixe, o lundu e o xote, adquirindo seu caráter singular e contagiante. Inicialmente criminalizado e visto com preconceito, conquistou adeptos de todas as classes sociais e espalhou-se pelo país sob a forma de diversos ritmos e danças populares regionais. Na contemporaneidade, a música que surgiu como uma das mais fortes manifestações afro-brasileiras foi o rap. Nele, a força da musicalidade está presente em circuitos que unem os negros dos Estados Unidos e do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo. Tanto os ritmos marcados e repetitivos, como a força da palavra, e especialmente da palavra cantada, remetem a características da sociedade africana. Esse estilo musical apareceu em um momento em que a adoção dos valores do mundo branco não era mais vista como necessária no caminho de ascensão social e em que as raízes negras começaram a ser valorizadas ao invés de negadas. A Congada é uma festa popular brasileira que mistura elementos da cultura africana com a religião católica, muito comemorada em Minas Gerais, Paraná e Goiás. Raízes Africanas Photos.com Para saber mais: sxc.hu Noutra esfera, temos a influência na culinária brasileira, principalmente na Bahia. Aracajé, vatapá, aluá e xinxim de galinha são alguns pratos que têm receitas parecidas com as feitas ainda hoje na África. Além dos pratos, o inhame, o cará, a noz-de-cola e a banana são alguns dos alimentos da nossa dieta que vieram daquele continente. Olhar para nosso passado é fundamental para compreendermos nosso presente e planejarmos o futuro. A situação dos afrodescendentes no Brasil hoje ainda é desigual, uma vez que a formação de nossa nação foi fundamentada na desigualdade. Mas é imprescindível que lutemos para que ela deixe de existir o mais depressa possível. Conhecer nossas raízes e conviver com as diferenças que fazem do Brasil uma nação de riqueza cultural incalculável é o primeiro passo rumo a um país mais justo e que se torne referência em igualdade racial. Memória COSTA E SILVA, Alberto. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49 ed. São Paulo: Global, 2004. MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII estratégias de resistência através dos testamentos. 3ed. São Paulo: Annablume, 2009. A banana é um dos muitos alimentos de origem africana que incorporamos à nossa dieta. SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. SOUZA, Marina de Mello e. África e o Brasil Africano. 2 ed. São Paulo: Ática, 2007. “As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá” Nosso rico vocabulário talvez seja o melhor exemplo da miscigenação entre europeus, indígenas e africanos. Ainda que o português seja a base de nossa língua, incorporamos a ele um sem número de palavras, expressões e significados oriundos do italiano, alemão, espanhol, do tupi, do guarani e de tantas outras línguas e dialetos falados pelos índios e sobretudo, pelos africanos que aqui se estabeleceram. Termos esses que fazem parte de nosso cotidiano, como bagunça, cafuné, cochilo, dengo, farofa, enxerido, moleque, maracutaia, perrengue, quitute, quitanda, neném, sacana, tribufu, samba, dentre tantas outras. O português do Brasil possui um ritmo próprio, um sotaque só seu e que varia, inclusive, de região para região dentro do país, influenciado pelos costumes dos habitantes do lugar. 19 Photos.com 20 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Raízes Africanas Memória Morro Velho Milton Nascimento No sertão da minha terra, fazenda é o camarada que ao chão se deu Fez a obrigação com força, parece até que tudo aquilo ali é seu Só poder sentar no morro e ver tudo verdinho, lindo a crescer Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha, dá pro fundo ver Orgulhoso camarada, conta histórias prá moçada Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentar Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha. 21 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Flávio Florido/Folhapress 22 Milton Santos Geógrafo, advogado, professor, escritor e pensador: o garoto de origem humilde, nascido no interior da Bahia, conquistou o mundo e fez história. Pesquisa e redação: Isabella Verdolin Falecido em 2001, Milton Santos deixou uma lacuna enorme no cenário nacional e internacional. Descrito por aqueles que desfrutaram de sua companhia como sereno, de sorriso fácil e fala pausada, era um intelectual respeitado no Brasil e no mundo. Seu modo de analisar a dinâmica social e de escrever sobre a geografia modificou para sempre o jeito de pensar esta ciência, inserindo o humano como causa e efeito do momento presente. O que mais poderia ser dito sobre este homem? Em busca desta resposta, mergulhei em livros que ele mesmo escreveu, procurei instituições, fundações e museus e encontrei periódicos com publicações de autores os mais diversos falando sobre Milton Santos. Alguns, seus amigos de longa data. Outros, jovens que tiveram a sorte de entrevistá-lo. E foi nesse emaranhado Milton Santos de narrativas que descobri, aos poucos, um homem maduro, centrado, que parecia gostar de conceder entrevistas – pois as que li são longas e envolvem o entrevistador no tema – e que falava apaixonadamente sobre seu modo de compreender o mundo. A melhor forma que encontrei para retratar Milton Santos foi escolher alguns trechos de suas entrevistas para deixar que ele mesmo se revele, partilhando a minha experiência de redescobri-lo. As origens, o exílio e o retorno ao Brasil Adalgisa Umbelina de Almeida Santos, filha de professores primários, decidiu seguir a carreira dos pais. Sua família gozava de prestígio e seu irmão mais velho, Dr. Agenor, era advogado. Em 1921, em Salvador, Adalgisa estava na Escola Normal quando conheceu Francisco Irineu dos Santos, descendente de escravos prestes a se formar professor primário. Ela ingressou na Escola, formando-se em 1924, mesmo ano em que casou-se com Francisco. O casal de professores mudou-se para Brotas de Macaúbas, na Chapada Diamantina, onde Dr. Agenor exercia suas atividades. Advogado respeitado, tinha uma clientela importante, dominava o latim e o grego. Foi ali, em 3 de maio de 1926 que nasceu Milton Santos, o primeiro filho de Francisco e Adalgisa. “Era uma família remediada, humilde mas não pobre e que tentou me dar uma educação para ser um homem que pudesse conversar com todo mundo. (...) Aos oito anos terminei o meu primário em casa, nunca segui uma escola primária. E, como para ir para o ginásio tinha de esperar dois anos, meus pais ficaram me ensinando álgebra, francês e boas maneiras. Aos dez, fui ser aluno interno num colégio na capital da Bahia, (...) frequentado por uma classe média média. Morei neste colégio dez anos, quando terminei, continuei morando lá, ensinando, e fui para a faculdade de Direito, da qual saí formado em 1948”1. Autor de mais de 40 livros, Milton Santos formou-se em Direito, mas a Geografia sempre o atraiu. “Desde menino, a noção de movimento me impressionava, ver as pessoas se movendo, as mercadorias se movendo. A noção de movimento de idéias veio depois. (...) No ginásio, o livro de texto era Geografia Humana, de Josué de Castro. Era uma espécie de história contada através do uso do planeta pelo homem. Aquilo me impressionou. Eu tinha tido um professor muito importante, Oswaldo Imbassay, então a confluência de um professor importante, de um livro importante, as explicações de mundo, de como a sociedade se relacionava com o meio, a teoria do possibilismo, determinismo, tudo isso a gente aprendia no ginásio. Era ao mesmo tempo um debate filosófico sobre o destino do homem, a presença do homem na Terra e o seu destino, a história do mundo se fazendo através da produção do espaço geográfico”2. Terminada a faculdade em Salvador, prestou concurso e foi lecionar Geografia Humana no Ginásio Municipal de Ilhéus. A convite de Simões Filho, Milton Santos passou a escrever para o jornal A Tarde, como correspondente naquela região. Desde esta época, chamava a atenção para os riscos econômicos da monocultura, o que levou à publicação de seu primeiro livro: A Zona do Cacau. Foi em Ilhéus que casou-se com Jandira Rocha, com quem alguns anos depois teve Milton Filho. A família mudou-se para Salvador, onde Milton continuou trabalhando no jornal e lecionando na Universidade Católica. Em 1956, foi ao Rio de Janeiro para participar do Congresso Internacional de Geografia e fez contato com grandes geógrafos, que conhecia por suas obras. Entre eles, estava Jean Tricart, que convidou Milton Santos para fazer o Doutorado no Instituto de Geografia de Strasbourg, na França. De volta ao Brasil, prestou concurso para lecionar na Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia. Devido ao seu posicionamento político, com o Golpe Civil Militar em 1964, foi preso e, mesmo na cadeia, recebeu diversas cartas e convites de universidades francesas para que fosse lecionar naquele país. Com um princípio de derrame, foi levado ao hospital e, despedindo-se de seu filho, amigos e parentes, já divorciado, partiu para a França. Personalidade 1 e 2 Trecho editado da entrevista concedida por Milton Santos à revista Caros Amigos nº17, de agosto de 1998. 23 24 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB 3 Trecho extraído do texto “Biografia do Milton Santos”, de Maria Auxiliadora da Silva, publicado em 09 de abril de 2006. In: http://www. fpabramo.org.br Flávio Florido/Folhapress 4 Trecho editado da entrevista concedida por Milton Santos a José Corrêa Leite e publicada na revista Teoria e Debate nº 40, de fevereiro/março/abril de 1999. In: http://www. fpabramo.org.br Ao retornar do exílio, as mudanças em sua vida e sua obra eram muitas. Havia se casado com Marie Hélène Tiercelin em 1972, que veio ter na Bahia, Rafael, o segundo filho de Milton, em julho de 1977. “Marie Hélène foi um marco em sua vida pessoal e intelectual. Proporcionou-lhe, no ambiente de trabalho, a paz, a tranquilidade e o equilíbrio necessários ao seu mister de grande pensador. E, sendo geógrafa, trocava com ele déias de trabalho, além de ter feito as traduções de vários de seus livros”3. “Pouco a pouco já vinha se dando, na minha obra, uma separação das prisões do empírico e a busca de uma construção mais filosófica. Quando escrevi Por uma geografia nova, vivia fora do país há muito tempo e a partir de certo momento não conhecia mais o Brasil, porque o país mudou muito depois de 64, tanto em termos de materialidade como de relações sociais. Então, a filosofia era o único refúgio para mim, a única forma de continuar vivendo. (...) Passei quinze anos trabalhando na preparação de A natu- O professor de geografia da USP, Milton Santos, em sua casa, São Paulo. 2000 reza do espaço, no qual queria mostrar que a geografia também é uma filosofia. Eu tinha uma inconformidade com a minha disciplina e com o que havia escrito antes sobre ela. Empreendi então a fundamentação da idéia de que a geografia é uma filosofia das técnicas. E como tal, ela somente podia se tornar teórica com a globalização, porque antes não havia técnicas planetárias e a universalidade dos filósofos não havia se tornado empírica. (...) A idéia de universalidade empírica só podia brotar da cabeça de um geógrafo, vendo como os lugares se tornaram parecidos, na sua enorme diferenciação, com a globalização. Mas o que eles têm de parecido não são só os vidros fumês das grandes cidades. Essa psicosfera tem uma base técnica, a produção, as condições de vida das pessoas. Eu tive essa idéia da geografia como filosofia das técnicas há 35 anos. Mas esta elaboração só podia se tornar concreta e sistematizada num livro com a globalização. Aí é visível a inseparabilidade do individual e do universal, através do lugar e do mundo”4. “Pensou o Professor Milton que sairia do país por 6 meses. Acabou ficando 13 anos! Estes tempos não foram de ‘exílio dourado’ na França; ao contrário, foram anos de périplo por diversos países. Sua caminhada começou por Toulouse, passou por Bordeaux, por Paris, onde lecionou na Sorbonne, sendo diretor de pesquisas de planejamento urbano e regional no Iedes, de 1968 a 1971, quando seguiu para o Canadá, para a Universidade de Toronto. Foi para os Estados Unidos (EUA), convidado para ser pesquisador no Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde trabalhou com o linguista e Professor Noam Chomsky. Nesta época já escrevia sua obra O Espaço Dividido. Depois seguiu para a Venezuela, para ser diretor de Milton Santos em 1996 pesquisa de planejamento da urbanização de um programa da Organização das Nações Unidas (ONU). Neste país manteve contato com técnicos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que facilitaram sua contratação pela Faculdade de Engenharia de Lima, onde, também foi contratado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para elaborar um trabalho sobre pobreza urbana na América Latina. Regressou a Paris, mas foi chamado de volta à Venezuela, onde lecionou na Faculdade de Economia da Universidade Central. Seguiu posteriormente para a África (Tanzânia), onde organizou a pós-graduação em Geografia da Universidade de Dar-es-Salaam lá permanecendo por dois anos, em seguida, foi para Columbia Personalidade Moacyr Lopes Junior/Folhapress Milton Santos University de Nova Iorque. Ao regressar dessa universidade, Milton Santos iria para a Nigéria, mas recusou o convite para aceitar um posto como Consultor de Planejamento do estado de São Paulo. Foi então convidado por duas professoras para trabalhar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde permaneceu até 1983. Depois, foi contratado como Professor Titular pelo Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), onde permaneceu, mesmo após sua aposentadoria”. Trecho editado da saudação do Prof. Audo Pavani proferida em 11 de novembro de 1999, quando Milton Santos recebeu o título de Professor Honoris Causa na Universidade de Brasília (UnB). In: http://www.abmes.org.br/miltonsantos/biografia/index.asp 25 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Photos.com 26 Milton Santos A globalização ou o globaritarismo “A globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista. Para entender esse processo, como qualquer momento da história, há dois elementos fundamentais a levar em conta: o estado das técnicas e o estado da política. Na realidade, nunca houve na história humana separação entre as duas coisas. (...) Chegamos ao fim do século XX e o homem, por intermédio dos avanços da ciência, produz um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da informação. Elas passam a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando a presença planetária desse novo sistema técnico. A globalização não é apenas a existência desse novo sistema de técnicas. Ela é também o resultado dos processos políticos que conhecemos. Com frequência ouvimos a pergunta: ‘mas não tem alguma coisa de bom na globalização?’ ou ‘será que é tudo ruim?’. A discussão não é essa. A discussão é: há um conjunto, um sistema de técnicas baseado na ciência, e há uma forma de utilizar esse sistema presidido por essa mula-sem-cabeça chamada mercado global. (...) Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro. E quando digo uso político, digo uso econômico e cultural, porque neste fim de século tudo se tornou político; a economia é feita a partir da política, a cultura é base para a política e resulta da política. Esse é o debate central, o único que nos permite ter a esperança de utilizar o sistema técnico contemporâneo a partir de outro paradigma. Eu chamo a globalização de globalitarismo, porque estamos vivendo uma nova fase de totalitarismo. O sistema político utiliza os sistemas técnicos contemporâneos para produzir a atual globalização, conduzindo-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem dependentes, como se fossem escravos de novo. Escravos de uma lógica sem a qual o sistema econômico não funciona. Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político. Esse globalitarismo também se manifesta nas próprias idéias que estão atrás de tudo. E, o que é mais grave, atrás da própria produção e difusão das idéias, do ensino e da pesquisa. Todos obedecem, de alguma maneira, aos parâmetros estabelecidos. Se estes não são respeitados, os transgressores são marginalizados, considerados residuais, desnecessários ou não-relevantes. É o chamado pensamento único. Algumas vozes críticas podem se manifestar, uma ou duas pessoas têm permissão para falar o que quiserem, para legitimar o discurso da democracia. Só que a estrutura do processo de produção das idéias se opõe e hostiliza essa produção de idéias autônoma e, por conseguinte, de alternativas. É uma forma de totalitarismo muito forte, insidiosa, porque se baseia em idéias que aparecem como centrais à própria idéia da democracia – liberdade de opinião, de imprensa, tolerância – utilizadas exatamente para suprimir a possibilidade de conhecimento do que é o mundo, do que são os países, os lugares. Eu chamo isso de tirania da informação, que, associada à tirania do dinheiro, resulta no globalitarismo. O processo da globalização, tal como se dá hoje, é centrífugo. Ele é produtor de uma fragmentação crescente em todos os níveis: os jovens contra os velhos, os funcionários públicos contra os privados, uma região contra outra etc. Temos uma multiplicação de fragmentações que se acumulam. (...) A primeira reação da população pobre, como qualquer outra, é a do consumo também. Está brigando para ser cidadã, mas primeiro quer consumir. Isto é normal. Depois é que se descobre que não basta consumir, ou que para consumir de forma permanente, progressiva e digna, é necessário ser cidadão. Dizem com desdém: ‘o pobre quer televisão’ – e por que não? Na verdade, um mínimo de consumo é condição indispensável para ser cidadão. Agora, isso deve conduzir a outra organização política do Estado, a outra arquitetura política. (...) A noção de democracia, de cidadania, tudo isto tem que ser revisto. Essa discussão de mudança do Estado, sem discutir como o poder se exerce, é vazia. Personalidade 27 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Nos venderam a idéia de que as empresas são a economia e o Estado é o poder. Não é nada disso, as firmas são o poder.(...) Mas se partirmos do território, é impossível excluir o homem, porque o território não exclui ninguém. Estão o rico, o pobre, o negro, o branco, o culto, o analfabeto, a grande empresa, o am- bulante, todo mundo junto. Este existencialismo territorial pode oferecer análises úteis para que o especialista da coisa política reelabore. Essa é a nova geografia que estamos tentando instalar, que é mais complexa e mais humilde também, porque parte das coisas simples. Mas creio que pode ajudar”5. Os impactos da globalização no Brasil eram caipiras, ou tendiam a ser provincianas. Hoje não, podemos ter todas as visões, mundial, nacional, local, a partir do lugar. São condições que o mundo da globalização oferece para essa reforma política e que não eram possíveis antes. São fenômenos como essa multiplicação de telefones, rádios, imprensa local, as dezenas de revistas que encontram clientela, seguidores”6. “O Brasil é muito grande. (...) Mesmo a globalização com a sua brutalidade não vai levar o país a mudar todo da mesma forma. As mudanças serão mais lentas em certas áreas. A globalização, de uma forma ou de outra, vai exigir certa qualificação para o acesso ao trabalho rentável. (...) Não é a mesma coisa em São Paulo, Flávio Florido/Folhapress 28 Milton Santos em sua casa. São Paulo, 2000 5 Trecho editado da entrevista concedida por Milton Santos a José Corrêa Leite e publicada na revista Teoria e Debate nº 40, de fevereiro/março/abril de 1999. In: http://www. fpabramo.org.br 6 Trecho editado da entrevista concedida por Milton Santos a José Corrêa Leite e publicada na revista Teoria e Debate nº 40, de fevereiro/março/abril de 1999. In: http://www. fpabramo.org.br “Os lugares são feitos sobretudo pelos de baixo, são eles que se comunicam nos lugares, são eles que estão reclamando alimentação correta, saúde, educação para os filhos, lazer, informação e consumo político – que é uma reclamação também não muito clara, mas que vai aparecer daqui a pouco, a partir de uma base local. Uma nova distribuição de atribuições, de recursos, a consideração dos novos direitos que a globalização e suas técnicas levantam, uma nova idéia de democracia, tudo tem que ser retrabalhado a partir de lugares. (...) Antes da globalização, nas fases em que os lugares não se comunicavam, as visões Milton Santos Personalidade Conheça a obra de Milton Santos Livros publicados/organizados ou edições La Naturaleza del Espacio. Técnica y Tiempo. Razón y Emócion. Barcelona: Ariel, 2000. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 2000. Território e Soceidade, entrevista a Odette Seabra, Mônica de Carvalho, José Corrêa Leite. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção (1996). 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e meio técnicocientífico informacional (1994) . 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998. A urbanização brasileira (1993). 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998. O Espaço do Cidadão (1987). 4. ed. São Paulo: Nobel, 1997. La Nature de l’Espace. Technique et Temp. Raison et Émotion. Paris: L’Harmattan, 1997. Metamorfoses do espaço habitado (1988). 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. O Trabalho do Geógrafo no Terceiro Mundo (1978). 4. ed. São Paulo: Hucitec / AGB, 1996. Metamorfosis Del Espacio Habitado. Barcelona: Oikos Tau, 1996. De La Totalidad Al Lugar. Barcelona: Oikos Tau, 1996. Novos Rumos da Geografia Brasileira. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1996. Técnica, Espaço Tempo: Globalização e Meio Técnico-Cientifico Informacional. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1996. Metamorfoses do Espaço Habitado. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1996. Por Uma Geografia Nova (1978) . 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1996. Por uma economia política da Cidade. São Paulo: Hucitec, Ed. PUC-SP, 1994. Espaco e Metodo (1985). 3. ed. São Paulo: Nobel, 1992. Pensando O Espaco do Homem (1982). 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1991. Por una geografia nueva. Madrid: Espasa-Calpe, 1990. Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1990. Espace et méthode. Paris: Publisud, 1990. Manual de geografia urbana (1981). 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1989. O Espaco do Cidadao. São Paulo: Nobel, 1987. Pour Une Geographie Nouvelle (1985). 2. ed. Paris: Editions Publisud, 1986. Ensaios Sobre A Urbanizacao Latino-Americana (1982). 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1986. Espaco e Sociedade (1979). 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982. Croissance démographique et consommation alimentaire dans les pays sousdéveloppés. Paris: Centre de Documentation, 1967. 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Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1948. 29 30 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB 7 Trecho editado da entrevista concedida por Milton Santos à revista Caros Amigos nº17, de agosto de 1998. 8 Trecho da matéria “Milton Santos: geografia e cidadania”, escrita por José Maria Mayrink, publicada no Caderno Homem de Idéias 1998 do Jornal do Brasil, de 26 de dezembro de 1998. no Nordeste ou no Norte, onde a mobilidade dos homens e das coisas é menor. Num território fluido, não adianta entregar ao pobre produção, ele não tem comando sobre o resto, sobre a circulação e a comercialização. (...) Os políticos não fazem política, o aparelho de Estado não faz política, são porta-vozes. O povo faz política, os pobres é que fazem política. Porque conversam e, conversando, defrontam o mundo e buscam interpretar o mundo. E agem, quando podem, em função do mundo. A organização é importante e a desorganização também. As periferias refletem isso. (...) Mas não estamos preparados para entender porque queremos repetir a interpretação do Brasil a partir do que aprendemos na Europa e nos Estados Unidos com a classe média, porque pobres não havia. Na Europa em que essa geração [de políticos e intelectuais] estudou quase não tinha pobre, e a classe média era defensora da democracia e do seu aperfeiçoamento. Tanto que houve a expansão da social-democracia. (...) E os pobres são tratados por nós, que aprendemos epistemologia européia na universidade, como o chantilly no bolo. Fazemos a construção toda baseada na classe média e depois colocamos o pobre em cima, porque resta aquela idéia de que os primeiros queriam defender os princípios fundamentais da humanidade e os pobres, coitados, não têm nenhuma possibilidade se ser visionários, porque estão no dia-a-dia, ‘vivendo da mão para a boca’. O dia-a-dia era considerado pela antropologia e sociologia oficiais como algo que impedia qualquer vocação para o futuro. Quando é exatamente o contrário, porque quando tenho todos os dias que renovar meu estoque de impressões, de conhecimentos, de luta – que é o que o povo faz – sou obrigado a renovar também minha produção filosófica. Todos os dias o povo se renova e, num país como o Brasil, com essa urbanização tão galopante, tão rápida, essa mudança de lugar tem um papel extraordinário na produção desse outro homem”7. Fazendo história Ao longo de sua obra, Milton Santos fez mais do que propor conceitos e explicá-los: ele mudou o jeito de pensar a geografia, acrescentando espírito crítico e influenciando várias gerações de professores e estudantes. Ao privilegiar o estudo do então chamado Terceiro Mundo, inverteu a ordem vigente da filosofia e de outras ciências, que compreendem o mundo à partir do Hemisfério Norte e das nações mais desenvolvidas. O convite do intelectual brasileiro com seus argumentos bem fundamentados é que os países da parte de baixo do globo terrestre têm e terão papel crucial à partir da globalização, não sendo mais possível pensar o mundo sem levar em conta as economias, as políticas, o espaço e as pessoas que ali habitam. O espaço deixou de ser apenas algo estanque e adquiriu dimensões de tempo e técnica, razão e emoção, tonando-se um espaço social, em que sua análise não poderia mais ser feita sem considerar o homem e a maneira como ele se relaciona com o lugar. Milton Santos escreveu mais de 40 livros, publicou mais de 300 artigos em revistas científicas, muitos deles traduzidos para o francês, espanhol e inglês e recebeu dezenas de títulos e homenagens em todo o mundo, incluindo 13 títulos de Doutor Honoris Causa. “De todas as homenagens que recebeu, a mais importante foi o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, que tem na França, para sua área, uma honraria equivalente ao Prêmio Nobel de Geografia, da Suécia”8. Milton Santos Personalidade Ser negro no Brasil Ao terminar os estudos no internato, Milton Santos era um aluno forte em matemática. “Mas havia uma notícia generalizada de que a Escola Politécnica não tinha muito gosto em acolher negros, então fui aconselhado fortemente pela família a estudar direito. (...) Na realidade, alguns negros conseguiram entrar, mas havia a crença na sociedade baiana, na sociedade negra em particular, de que os obstáculos na Politécnica eram maiores. (...) A questão do negro já está tendo maior importância na minha maturidade do que na minha juventude, e terá muito mais, porque os negros não vão para lugar nenhum! E com a globalização nós seremos ainda menos atendidos. (...) No Brasil os negros vão deixar de ter a posição que têm hoje, pois ainda sorriem, e vão começar a ranger os dentes. O que é preciso é que os negros queiram ser a nação brasileira. Não tem de imitar americano, nem querer ser africano. Porque quando quero ser africano – ou africano brasileiro, acabo sendo menos político. (...) Quando olho para trás, para a evolução do movimento negro no Brasil, há um crescendo, tanto na velocidade quanto na intensidade. (...) O fato de que os negros tenham ido para a faculdade é importante – descobrem também que não vão conseguir emprego. Ou os que conseguem são de menor remuneração.(...) Mas está havendo uma tomada de consciência do fato de ser relegado. Porque os negros não fazem parte da nação brasileira. Pessoalmente é minha experiência. (...) Na cabeça dos outros, quando se é negro, é evidente que não se pode ser outra coisa, só excepcionalmente não se será o pobre, não será humilhado. Porque a questão central é a humilhação cotidiana. Ninguém escapa, não importa que fique rico. E daí o medo, que também tenho de circular, de entrar num restaurante e alguém olhar torto porque sou negro”. Photos.com Trecho editado da entrevista concedida por Milton Santos à revista Caros Amigos nº17, de agosto de 1998. Para saber mais sobre a formação e atuação de Milton Santos, acesse seu currículo na Plataforma Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4798868Z6 31 32 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Tradição, alegria e fé festas populares e tradicionais brasileiras Pesquisa: Marina Camisasca Redação: Isabella Verdolin e Marina Camisasca Entrevistas: Rogério Dias Fotografias: Ricardo Avelar Tradição, alegria e fé Cultura 33 34 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Do encontro de europeus, indígenas e africanos nasceu o povo brasileiro, que ao longo dos anos construiu sua cultura costurando costumes e tradições herdados de seus ancestrais. A religiosidade e o gosto pelos festejos são características presentes desde o início da colonização e a miscigenação trouxe múltiplas maneiras de vivenciá-los. Nos dias atuais, as festas populares assumem coloridos diferentes, sons os mais diversos e sabores próprios, mas ao olharmos de perto, guardam entre si uma identidade que remete às origens de nossa gente, daquilo que nos torna brasileiros. Talvez a mais difundida seja a Festa do Divino. De origem cristã, é realizada 50 dias após a Páscoa, comemorando Pentecostes. Seus primeiros registros no Brasil datam do século XVIII e seu objetivo é anunciar a chegada de uma nova era para o mundo dos homens, com igualdade, prosperidade e abundância para todos. Um dos momentos marcantes é o “tempo alegre”, em que crianças ou adultos são coroados como imperadores do Divino, numa inversão simbólica da ordem social. As Cavalhadas, simulando as batalhas entre mouros e cristãos, ainda fazem parte da festa em diversos pontos do país. A pomba branca, símbolo do Divino Espírito Santo, é conduzida em estandartes, bandeiras e ornamenta as roupas, ruas e casas nas cidades em que os festejos ocorrem. Mesclando a cultura negra com a religião católica, o Congado chegou ao Brasil junto com os escravos trazidos do Congo e foi sofrendo adaptações. Inspirado numa manifestação de agradecimento do povo aos governantes daquele país africano, a religiosidade passou a ser a grande motivadora em terras brasílicas. Diz a tradição que uma imagem de Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar e que apesar das missas, novenas e orações, não aceitou ser resgatada pelos brancos, só retornando à terra pelas mãos dos negros, numa mensagem clara de proteção, para por fim ao sofrimento dos escravos. O Congado é uma dança, acompanhada de um cortejo compassado e levantamento de mastros e músicas que louvam a santos. A comunidade incorpora os personagens de reis, rainhas, coroados, portas-bandeiras, juízes, capitães-regentes, alferes, dançantes, acompanhantes, cantadores, caixeiros que, juntos, formam uma guarda. Tradição, alegria e fé Cultura Congado de pai pra filho Neuza de Assis, Guarda de Moçambique do Sagrado Coração de Jesus, na cidade de Belo Horizonte, diz que sempre participou com seu pai e seu avô e que seus filhos foram criados dentro do Congado. “Herdei a tradição com meu bisavô.Toda a minha família foi criada dentro dessa tradição do congado e estamos criando os mais jovens dentro do mesmo sistema, pois achamos que é importante para a formação. Graças a Deus a Festa do Reinado de Nossa Senhora do Rosário tem uma aceitação muito boa. É um orgulho para um pai e para uma mãe ver um filho fardado, saindo de casa para dançar reinado”. Participante de Congado nessa mesma cidade, o Capitão regente do Moçambique do Divino Espírito Santo, Rodrigo Lúcio do Espírito Santo afirma que o congadeiro não se faz, ele nasce. “Não existe congadeiro de livro ou de faculdade. Eu posso dizer que eu já dançava congado desde a gravidez da minha mãe, continuo dançando e o meu filho segue o mesmo caminho”. Em Oliveira (MG), o congadeiro mais antigo da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora das Mercês, Antônio Eustáquio dos Santos se sente orgulhoso de pertencer ao grupo, que completou 60 anos: “Tivemos a alegria de participar do ano do Brasil na França em 2004. Dançamos às margens do Rio Sena e ficamos muito honrados, por sermos de famílias humildes, filhos, netos e bisnetos de *cativeiros (escravos). Hoje temos a oportunidade e a liberdade de louvar Maria em todos os cantos deste nosso mundo, em qualquer rua ou qualquer praça. Estou completando 64 anos de vida e participo desde os cinco anos de idade e me orgulho deste aprendizado.Tenho 4 filhos, mas eles não participam do Congado. Meus sobrinhos e afilhados é que me acompanham na Guarda”. 35 36 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Tradição, alegria e fé Cultura 37 38 domínio público Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Altar da Adoração dos Reis Magos, de Gentile da Fabriano, 1420-23. Têmpera sobre madeira, Uffizi, Florença Os reis são os representantes da tradição, da espiritualidade. O capitão-regente comanda a música e a dança. Em média, cada guarda de Congo possui mais de 40 componentes e cada uma delas se distingue por seu ritmo, coreografias e instrumentos de corda e de percussão, como viola, adufe, caixas, tambores e maracás. Inicialmente restrito à comunidade negra, ao longo do tempo todos aqueles que se sentiam a margem da sociedade uniram-se na devoção a Nossa Senhora do Rosário e aos festejos. O Congado espalhou-se e é mais frequente nos estados de Minas Gerais, Paraná e Goiás, entre outros. A Folia de Reis tem origem portuguesa. No entanto, em Portugal tinha como principal finalidade divertir o povo, enquanto no Brasil passou a ter um caráter mais religioso do que de diversão, e está presente em quase todas as regiões do país. No período de 24 de dezembro a 06 de janeiro, Dia de Reis, grupos de cantadores, instrumentistas, dançarinos, palhaços e outras figuras folclóricas devidamente caracterizadas segundo as lendas e tradições locais, percorrem as cidades entoando versos relativos à visita dos reis magos ao menino Jesus. Todos se organizam sob a liderança do Capitão da Folia e seguem com reverência os passos da Bandeira, estandarte de madeira ornado com motivos religiosos, a qual atribuem espe- Tradição, alegria e fé cial respeito. Com sanfona, reco-reco, caixa, pandeiro, chocalho, violão e outros instrumentos seguem noite adentro em longas caminhadas. As canções são sempre sobre temas religiosos, com exceção daquelas tocadas nas tradicionais paradas para jantares, almoços ou repouso dos foliões, quando ocorrem animadas festas com cantorias e danças típicas regionais, como catira, moda de viola e cateretê. Contudo, ao contrário dos Reis da tradição, o propósito da folia não é o de levar presentes, mas sim de recebê-los. Eles vão de porta em porta em busca de oferendas que podem variar de comidas a bebidas ou até mesmo esmolas. Cultura 39 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB O maracatu, inicialmente praticado apenas em Pernambuco, espalhou-se para outros estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Minas Gerais. Atualmente está presente até em outros países, como Alemanha, Inglaterra, Rússia, Canadá e França. Os mais conhecidos grupos foram criados por afrodescendentes que se utilizaram de heranças e costumes variados. São eles que mantêm a tradição de forma bastante dinâmica, num complexo processo de fazer e refazer, resultado de constantes adaptações e recriações de práticas antigas, não sendo possível determinar onde nem como começaram. Em Recife, capital de Pernambuco, a denominação maracatu servia para denominar um ajuntamento de negros. Assim, os cortejos das nações em homenagem aos Reis do Congo, que aconteciam no carnaval, também ganharam esta deno- minação. Os maracatus já enfrentaram momentos delicados ao longo de sua história, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, quando não havia mais que cinco grupos, em contraste aos quase trinta hoje existentes. O ressurgimento ocorreu nos anos 1980, momento em que os grupos Elefante, Sol Nascente e Estrela Brilhante retornaram ao carnaval de Recife, após alguns anos sem desfilar. Os maracatus se dividem em duas modalidades, o nação e o rural, também conhecido como de baque solto ou de orquestra, que se distinguem principalmente pelos conjuntos musicais. Enquanto o nação é acompanhado por uma orquestra percussiva em que sobressaem as alfaias, o rural é constituído de uma orquestra denominada terno, composta de poica, espécie de cuíca, tambor, gonguê de duas campânulas, caixa e instrumentos de sopro. sxc.hu 40 Tradição, alegria e fé Cultura 41 42 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB A diversidade cultural e dos festejos mostra que ao longo do tempo nosso modo de vivenciar a religiosidade e alegria foi sendo modificado. Seja pela modernidade, pelo crescimento desordenado, pela interiorização do Brasil, pela evolução natural, pela educação, pelas mudanças dos costumes, entre tantos outros fatores, o que se destaca é o dinamismo da nossa cultura. As festas tradicionais brasileiras foram adaptando-se de região para região, assumindo sotaques e jeitos diferentes, mas são todas elas parte daquilo que nos identifica enquanto uma só nação. Festa do Divino. Belo Horizonte, MG Tradição, alegria e fé Cultura Janduari Simões/Folhapress O tambor de crioula: tradição do Maranhão O tambor de crioula é uma dança popular que incorpora alguns elementos católicos e outros da religiosidade afro-brasileira. Frequentemente é realizado como forma de pagamento de promessas a São Benedito, santo negro, e a outros protetores católicos ou entidades cultuadas nos terreiros. Nessas ocasiões as mulheres carregam nos braços ou na cabeça a imagem do santo de devoção. Mas, normamelmente, a dança é puro divertimento. Ela foi trazida pelos escravos vindos de diversas regiões da África como Angola, Congo e Costa da Mina para as terras maranhenses entre os séculos XVIII e XIX. O isolamento geográfico do Grão Pará e Maranhão, desde os tempos coloniais, resultou em características peculiares do tambor de crioula. O ponto forte é a umbigada, momento em que as coreiras, dançarinas, se encontram, fazem saudações aos brincantes e chamam uma substituta para entrar na roda. Os homens têm a função de comandar os toques e puxar os cantos. Não existe um dia determinado no calendário para a dança, que pode ser apresentada, preferencialmente, ao ar livre, em qualquer época do ano. Atualmente, o tambor de crioula é dançado com maior frequência no carnaval e durante as festas juninas. Apresentação de tambor de crioula em Alcântara (MA), em homenagem à São Benedito. 2006 Para saber mais: FIGUEIREDO, Luciano (org.). Festas e batuques no Brasil. Rio de Janeiro: Sabin, 2009. LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004. PRIORI, Mary Del. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994. TINHORÃO, José Ramos. Os sons negros no Brasil. Cantosdanças- folguedos: origens. São Paulo: Art Editora, 1988. SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 43 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Photos.com 44 Ações afirmativas no Brasil um aprendizado social, um desafio jurídico, um convite à reflexão Sarita Amaro é Assistente Social pela Puc-RS, Mestre e Doutora em Serviço Social na mesma Universidade. Atua como Assistente Socialna Secretaria de Educação do Governo do Estado do Rio Grande do Sul e como Conselheira do Governo Federal junto ao CNCD. Atuou como docente universitária na área do Serviço Social, tendo sido coordenadora de curso entre 1999 e 2003, dentre muitas outras atividades ligadas à educação. Possui oito livros publicados, além de inúmeros artigos. Recebeu 20 prêmios e/ou homenagens, com destaque para o Prêmio Educação - Troféu Pena Libertária, do Sinpro-RS, em 2005. Desde 2006 é designada avaliadora de cursos e IES pelo INEP/MEC. Ações Afirmativas no Brasil Ph o to s .co m Se a cidadania é um aprendizado social, o que dizer do processo de revisão cultural e política que as ações afirmativas impõem às relações sociais? Criadas para corrigir e reparar situações que integram um processo histórico de exclusões por racismo contra os afrodescendentes no Brasil, as políticas de ações afirmativas são dispositivos estratégicos de inclusão social, fundados no principio da discriminação positiva. No âmbito nacional já há uma agenda que articula ações afirmativas em resposta às necessidades e prioridades das populações afrodescendentes. Isso, contudo, não significa um ambiente político pacífico. A oposição às cotas na universidade é apenas uma dessas manifestações. De fato, o problema do racismo e das ações afirmativas no Brasil reflete um histórico conflito de Opinião 45 interesses entre sociedade e individuo: de um lado a sociedade banaliza sua importância e, de outro, o sujeito afrodescendente constrange-se diante dos obstáculos em qualificar a denúncia e lutar por seus direitos de igualdade. O judiciário tem um papel fundamental nas mediações dessa cidadania afirmativa. Mas como pode guiar-se para potencializar sua contribuição à sociedade? Considerando as limitações desse espaço, apresentaremos algumas reflexões, a seguir. Reconhecer o racismo em suas velhas e novas manifestações As violências raciais do século passado foram tonalizadas pela exclusão no acesso a estabelecimentos, por ataques físicos de civis brancos contra negros e pela violência policial. No atual século XXI, com as leis vigentes e o Programa Nacional de Ações Afirmativas, recentemente acrescido do Estatuto da Igualdade Racial, a violência racial ganhou contornos mais dissimulados, mas nem por isso menos devastadores e implacáveis1. 1 Debatemos isso no nosso livro “Negros, identidade, exclusão e direitos no Brasil. Porto Alegre: Tche,1988. Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Se de um lado os negros “seguem aparecendo associados a despreparo, pobreza, carência cultural, feiúra, baixos recursos intelectuais, acomodação e inadaptação; também se evidencia um disseminado desconforto com os negros/as que ascendem por invadirem um ter- ritório que o branco/a considera seu.”2 Essas novas configurações requisitam um judiciário mais contundente em sua negativa aos velhos argumentos da democracia racial e mais crítico diante dos simulacros racistas que encobrem estratégias deliberadamente segregacionistas. Photos.com 46 Opinião Ações Afirmativas no Brasil Considerar a tipificação do racismo numa perspectiva multidimensional e multicausal Compor decisões judiciais balizadas pelas ações afirmativas, numa perspectiva de complexidade A tipificação do racismo, no geral, é materializada em testemunhos das vítimas e de outras pessoas que comprovem a “factualidade” dessa violência. Contudo, o racismo, diante de sua complexidade, nem sempre pode ser comprovado em testemunhos e, não raramente, isso acaba desmobilizando muitas vítimas de seguir com a queixa e buscar seus direitos. Temos defendido que tanto os operadores de Direito como o Judiciário devem (re)aprender a buscar a comprovação do racismo em outras formas de registro. Laudos periciais são alguns deles. Os laudos tendem a revelar a correlação fenomenal entre a discriminação racial e várias situações como o rebaixamento salarial ou funcional, o desemprego, a perseguição cultural-religiosa, as adjetivações estigmatizantes imputadas aos negros, assim como o desenvolvimento de patologias acionadas pelo trauma, tais como: fobias, pânico, cardiopatias e disfunções neurológicas. Esses e outros condicionantes precisam ser identificados, interfaceados/confrontados e considerados como prova judicial. Decisões judiciais, numa perspectiva complexa e afirmativa, poderiam conjugar aspectos morais e materiais, por meio da aplicação de retratações morais públicas (em jornais dentro da abrangência espacial em que o prejuízo do racismo foi mais marcante), associadas a reparações materiais por meio do pagamento de numerários, preferencialmente expressivos (para impactar na educação antiracista) ou de restituições de bens/territórios (como os devidos a muitas comunidades quilombolas). A decisão judicial pode ainda sinalizar que as instituições e políticas sociais existentes disponibilizem apoio social4, psicológico ou médico-psiquiátrico para vítimas de violência racial (discriminação racial, injúria ou ofensa de caráter racial), durante um tempo específico, enquanto durar o processo ou após seu arquivamento. Apoiar a identificação étnico-racial por meio da auto-atribuição de pertença O judiciário segue recebendo processos que lançam dúvidas sobre a negritude de certos cidadãos, em geral quando o assunto é cotas, seja nas universidades, seja no acesso a postos de trabalho. Basicamente, as questões gravitam em torno da “cor” do sujeito que se reconhece “afrodescendente”. Mas como em tudo que temos orientado nesse artigo, nesse caso também a complexidade deve ser o nosso guia. A reconhecida miscigenação racial praticada no Brasil (aliás, entre várias etnias) deve estar na lente do judiciário ao se pautar o pertencimento étnico; considerando, por exemplo, a genealogia familiar3; sem ater-se à valorização apenas do aspecto fenotípico. 47 2 Bento, Maria Aparecida. In: Racismos Contemporâneos. Ashoka (org). RJ: Takano Ed, 2003. 105-106, passim. 3 E quando dizemos isso nos referimos não apenas a famílias afrodescententes (biológicas), mas também àquelas derivadas de adoções, mesmo que miscigenadas – sendo as crianças negras adotadas e os pais adotantes (se brancos) os alvos principais. 4 Sobre isso sugerimos ver nosso artigo “A questão racial na assistência social: um debate emergente”. In: Revista Serviço Social e Sociedade, nº 81, Ano XXVI, 2005. P 58-81. Essas são apenas algumas reflexões. Acreditamos que quanto mais avançarmos na publicização, criminalização e reparação do racismo brasileiro, holística e progressivamente, estaremos compondo novos parâmetros de socialidade, efetivamente fundados na equidade racial. E essa conquista não será apenas dos afrodescendentes, mas da sociedade brasileira como um todo. Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Photos.com 48 Brancos e Negros no Ensino Superior Delcele Mascarenhas Queiroz é Professora Adjunta da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), doutora em Educação e pesquisadora associada ao Programa Cor da Bahia/UFBA. *Artigo originalmente publicado no livro Afirmando Direitos: acesso e permanência de jovens negros na universidade, de Nilma L. Gomes e Aracy A. Martins (organizadoras). Ed. Autêntica, 2ª edição, 2006. Ações Afirmativas no Brasil O Brasil vem de uma longa história de negação das desigualdades raciais em que, apesar das profundas distâncias entre brancos e negros, as representações sobre as relações raciais estiveram influenciadas pela ideia de “democracia racial”. Essa auto-imagem tem dificultado a emergência de uma visão crítica sobre a realidade das relações raciais no país. Apenas agora, depois de enorme luta das organizações negras, o Estado brasileiro começa a conhecer a situação diferenciada de negros e brancos e a consequente necessidade de medidas de combate ao racismo e à desigualdade racial. No entanto, a adoção de tais medidas tem encontrado barreiras consideráveis. Ao lado de fortes relações vindas de setores da sociedade, a carência de informações, em certas áreas, constitui-se num poderoso obstáculo. No ensino superior, por exemplo, embora as universidades públicas coletem, anualmente, uma gama considerável de dados sobre a população estudantil que demanda seus cursos, até bem pouco tempo, era completamente desconhecido o perfil racial dessa população. Foi com essa preocupação que, na década passada, indagamos sobre o que se passava com os negros no interior da universidade. Até essa época, havia hipóteses sobre a baixa representatividade do negro no ensino superior, mas não havia sido desenvolvido nenhum estudo que desse conta dessa realidade. A partir de 1997, iniciamos um trabalho de investigação que, num primeiro momento, examinou a participação dos negros na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, posteriormente, procurou verificar a situação em outras universidades do país. Esse estudo foi realizado nas universidades federais do Maranhão, Rio de Janeiro, Paraná e Brasília. O estudo mostrou uma situação bastante parecida entre essas universidades, deixando a ideia de que se pode afirmar, com alguma segurança, que essa é a situação nas demais universidades federais brasileiras. A pesquisa realizada na UFBA, sobre a participação de estudantes dos diversos segmentos raciais, talvez seja o primeiro esforço visando revelar o perfil racial da população universitária brasileira. Essa investigação levantou informações sobre os estudantes que ingressaram na universidade naquele ano. Nesse levantamento, uma proporção de cerca de 50% dos estudantes se declararam brancos, aproximadamente 34% pardos e 8% pretos. Isso significa que, agregando pretos e pardos na categoria negros, estes correspondiam a cerca de 42% dos estudantes que ingressaram na UFBA naquele ano. Esses resultados, revelando uma distância de apenas oito pontos percentuais entre brancos e negros na universidade, poderiam parecer animadores, considerando-se a histórica trajetória de desvantagens dos últimos, não fossem eles cerca de 80% da população baiana, e os brancos apenas 20% desta. Além disso, o estudo mostrava ainda que os negros presentes na universidade frequentavam, em geral, os cursos de menor valorização social, e, em muitos destes, eles eram minoritários. Estavam entre os estudantes negros a maioria dos que tinham frequentado a escola média em condições mais precárias: a maioria dos que haviam estudados em escolas públicas, em turno noturno, que tinham associado estudo e trabalho na sua trajetória escolar; a maioria daqueles cujos pais eram portadores de instrução elementar e estavam em ocupações manuais. A pesquisa indicou, dessa forma, que, em que pese a expressiva presença dos negros no conjunto da população baiana, eles não estavam se beneficiando, na mesma medida que o contingente branco, do acesso à universidade. A constatação desses resultados instigou indagações sobre o que se passava em outras universidades federais brasileiras. Em colaboração com a UFMA, a UnB, a UFRJ e a UFPR, se decidiu, em 2000, promover um estudo que permitisse comparar realidades de diversas universidades federais. Opinião 49 50 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Cor e participação As informações da pesquisa foram coletadas através de um questionário que indagava sobre as condições socioeconômicas do estudante, aspectos de sua escolarização anterior, da escolarização e ocupação dos pais e solicitava que o estudante autodeclarasse sua cor ou raça, segundo duas modalidades de autoclassificação. No primeiro momento, o questionário apresentava uma questão aberta que permitia ao estudante usar o termo que desejasse para definir a própria cor ou raça. No segundo momento, lhe foi apresentada uma pergunta fechada, em que as opções de resposta eram os termos raciais de uso do IBGE, a saber: branca, parda, preta, amarela e indígena. A comparação mostrou uma grande similaridade no modo como se distribuem os segmentos raciais, evidenciando que a universidade brasileira é predominantemente branco. Excetuando-se a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), os brancos representam sempre mais da metade dos estudantes nas universidades investigadas; e, ainda aí, eles são o contingente mais significativo. O maior contingente relativo de estudantes brancos está na Universidade Federal do Paraná (UFPR), o que não surpreende, uma vez que, dos Estados contemplados pela pesquisa, o Paraná é o de maior população branca. Em seguida estão a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade de Brasília (UnB). A Universidade Federal do Maranhão e Universidade Federal da Bahia, Estados de maioria negra, são aquelas que apresentam os menores contingentes relativos de estudantes brancos. Distribuição percentual dos estudantes segundo a cor e a universidade* Cor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB * Foram respondidos 12.278 questionários nas cinco universidades, assim distribuídos: UFRJ 4.056; UFPR 3.499; UFMA 907; UnB 528; UFBA 3.288. Branca 76,8 86,5 47,0 50,8 63,7 Parda 17,1 7,7 32,4 34,6 29,8 Preta 3,2 0,9 10,4 8,0 2,5 Amarela 1,6 4,1 5,9 3,0 2,9 Indígena 1,3 0,8 4,3 3,6 1,1 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 fonte: pesquisa direta A comparação entre a participação dos segmentos negro e branco no conjunto da população e sua participação na universidade, em cada Estado, revelou significativas distâncias, indicando o privilégio dos brancos que estão sobrerepresentados na universidade. Participação dos negros no conjunto da população do Estado e sua presença na universidade Estado População Universidade População Rio de 38,2 UFRJ 20,3 Janeiro Paraná 22,4 UFPR 8,6 Maranhão 75,1 UFMA 42,8 Bahia 77,5 UFBA 42,6 Distrito Federal 53,6 UnB 32,3 fonte: IBGE/pesquisa direta Participação dos brancos no conjunto da população do Estado e sua presença na universidade Estado População Universidade População Rio de 61,7 UFRJ 76,8 Janeiro Paraná 76,2 UFPR 86,5 Maranhão 24,8 UFMA 47,0 Bahia 22,1 UFBA 50,8 Distrito Federal 45,9 UnB 63,7 fonte: IBGE/pesquisa direta A história escolar do estudante Em quase todas as universidades, as maiores concentrações de estudantes provenientes de escolas privadas estão entre os brancos. Essas proporções são especialmente elevadas na UFBA e na UFMA. Entre os pretos estão, em geral, os menores percentuais de estudantes oriundos desse tipo de escola. Com exceção da UFPR, nas universidades investigadas, a proporção de estudantes oriundos de escolas provadas está em torno de dois terços. Essas escolas revelam-se espaços bastante seletivos para pobres e negros. Distribuição dos estudantes oriundos de escola privada de nível médio, segundo a cor Cor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB Branca 73,7 62,3 74,5 78,6 68,2 Parda 57,9 50,8 66,3 56,4 63,3 Preta 44,6 41,9 60,4 47,0 53,8 Amarela 70,3 71,0 68,6 72,4 53,3 Indígena 63,5 42,3 63,2 76,5 40,0 Total 69,9 61,4 69,4 68,4 65,7 fonte: pesquisa direta Na UFPR está a melhor situação dos estudantes vindos de escolas públicas; eles representam quase dois quintos dos que aí ingressaram. Também na UnB eles estão bem representados, mesmo entre os estudantes brancos. Isso talvez se explique por uma melhor qualidade do sistema público de educação nesses Estados. Em quase todas as universidades, está entre os pretos a maior proporção dos que vieram desse tipo de escola. Entre os pardos é também bastante representativo o segmento oriundo da escola pública. Esse dado é bastante eloquente ao apontar para a importância da escola pública para a população negra, mostrando a urgência de políticas voltadas para a melhoria da qualidade do ensino básico público, como forma de atacar as desigualdades raciais existentes no Brasil, sobretudo em universidades do Nordeste, onde se concentram significativas parcelas da população negra. Distribuição dos estudantes oriundos da escola pública de nível médio, segundo a cor Cor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB Branca 24,9 37,7 24,5 17,2 30,9 Parda 39,9 49,2 33,0 36,9 34,0 Preta 53,1 58,1 38,5 44,0 46,2 Amarela 28,1 29,0 29,4 20,4 46,7 Indígena 32,7 57,7 36,8 18,3 40,0 Total 28,5 38,6 29,7 26,4 32,7 fonte: pesquisa direta Photos.com Brancos eAções Negros Afirmativas no Ensino no Superior Brasil Opinião 51 52 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Em elevadas proporções, e em todos os segmentos raciais, os estudantes que frequentam as universidades públicas federais fizeram seu curso médio no turno diurno; a maior proporção está na UnB e a menor na UFPR. Na maioria das universidades, os pretos são o segmento cujos estudantes, em menores proporções, frequentaram escolas nesse turno, o que aponta para a desvantagem desse segmento. Distribuição dos estudantes oriundos de escola de nível médio no turno diurno, segundo a cor Cor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB Branca 87,4 77,4 91,3 89,5 95,5 Parda 79,5 65,6 91,2 79,6 95,4 Preta 73,8 61,3 91,1 76,7 92,3 Amarela 78,1 81,9 85,7 86,7 100,0 Indígena 84,6 76,9 84,2 89,6 66,7 Total 85,4 76,5 90,6 85,0 95,2 Distribuição dos estudantes que trabalharam durante os níveis fundamental e médio, segundo a cor Cor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB Branca 0,9 3,9 0,5 1,3 3,3 Parda 2,0 6,6 3,3 3,2 Preta 3,1 12,9 1,1 6,2 Amarela 3,1 1,5 1,9 1,0 Indígena 3,8 15,4 1,9 2,6 16,7 Total 1,2 4,2 0,7 2,4 3,2 fonte: pesquisa direta Cor e prestígio do curso frequentado Coerentemente com os aspectos anteriormente analisados, na população branca, é pouco expressiva a parcela dos que associaram trabalho e estudo na sua trajetória pela escola básica. Entretanto, entre os pretos estão as mais elevadas proporções dos que assim procederam. Na UFPR encontra-se a maior proporção dos estudantes que trabalharam durantes os estudos de nível médio. Nas demais universidades, esse contingente é pouco significativo. Entre os pretos estão, em geral, as maiores participações; na UFPR e na UFRJ estão as mais elevadas. Uma das medidas do prestígio dos cursos superiores, adotadas nesse estudo, teve como referência a pesquisa sobre o valor das profissões no mercado de trabalho da Região Metropolitana de Salvador (RMS). A pesquisa baseou-se numa coleta de informações realizada em empresas de consultoria em RH, que atuam no mercado de trabalho da RMS, tomando como referência o elenco de cursos oferecido pela UFBA, e que resultou numa escala de prestígio das profissões de cinco posições, a saber: Alto, Médio alto, Médio, Médio baixo e Baixo1. Essa escala de prestígio respaldou a análise das desigualdades entre os segmentos raciais no acesso aos cursos. Na maioria das universidades o segmento branco é aquele que, frequentemente, apresenta a mais elevada concentração de estudantes em cursos de Alto prestígio. No Paraná, esse privilégio cabe aos amarelos e, na UFRJ, são os que se declararam indígenas os mais bem posicionados. Distribuição dos estudantes que trabalharam durante o nível médio, segundo a cor Cor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB Branca 12,3 25,7 11,6 10,8 12,0 Parda 18,7 32,7 17,3 15,8 11,5 Preta 26,4 25,8 26,1 18,1 15,4 Amarela 18,8 16,9 15,4 13,3 13,3 Indígena 13,5 34,6 15,4 10,4 Total 13,9 26,0 15,7 13,2 11,8 Distribuição dos estudantes em cursos de Alto prestígio segundo a cor Cor UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB Branca 35,1 37,9 26,3 44,2 23,0 Parda 24,6 31,9 21,9 29,9 19,5 Preta 19,6 17,9 16,2 20,8 Amarela 30,9 47,1 19,1 26,7 14,3 Indígena 37,2 13,5 25,0 26,7 16,7 Total 32,8 37,5 23,4 36,3 21,1 fonte: pesquisa direta fonte: pesquisa direta fonte: pesquisa direta Photos.com Brancos eAções Negros Afirmativas no Ensino no Superior Brasil Considerações finais Assim, o estudo apontou expressivas desigualdades entre os segmentos raciais no ensino superior, indicando que a universidade brasileira é um espaço de predomínio de brancos. Em quase todas as universidades os brancos representaram proporções superiores à metade dos estudantes. Constatou-se uma sobre-representação dos brancos e uma sub-representação dos negros na universidade, mesmo dos Estados em que estes são a maioria expressiva da população, como a Bahia e o Maranhão. A pesquisa mostrou que, em significativas proporções, os estudantes das universidades federais vieram de escolas privadas, de funcionamento diurno, frequentaram cursos de caráter propedêutico e não trabalharam durante sua trajetória escolar básica. No entanto, os pretos e pardos têm, frequentemente, fraca representação nesse grupo. A pesquisa evidenciou ainda uma forte seletividade racial no acesso a cursos de elevado prestígio social, mostrando que é, também, predominantemente dos brancos esse privilégio. Os resultados do estudo apresentam as universidades federais investigadas como espaços fortemente seletivos, particularmente marcados pela desigualdade racial. Embora tenha ficado evidente a posição de desvantagem em eu se encontram os estudantes negros, é oportuno lembrar que se está diante de um segmento da população negra já bastante selecionado, porque bem sucedido na disputa por uma oportunidade da universidade pública brasileira, mas pouco representativo do conjunto de estudantes negros brasileiros. Essas evidências concorrem para dar visibilidade a uma realidade que tem estado silenciada ao longo da história pós-escravista, contribuindo para manter a população negra nos níveis mais precários da escala social e para dissimular as práticas racistas vigentes da sociedade brasileira. Opinião 53 Photos.com / StockPhotos.com 54 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Políticas afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Pesquisa, entrevistas e redação: Isabella Verdolin Desde que algumas universidades anunciaram que reservariam parte de suas vagas para estudantes negros e indígenas, o Brasil assiste a um acalorado debate entre os que são contra ou a favor das cotas. Mas, ser contra ou a favor é mesmo relevante? Afinal, de onde surgiu esta ideia? E por que o Brasil decidiu colocar em prática as cotas nas universidades? Especial Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas? de, as cotas para ingresso nas universidades causaram uma enorme polêmica e dividiram opiniões. Afinal, porque o assunto desperta tantas “paixões”? Se olharmos para o passado, talvez encontremos algumas pistas. Negros procurando diamantes, Thomas Kelly, 1815. O Brasil foi uma das colônias que mais recebeu mão de obra escrava vinda da África (além de escravizar os índios) e a última a abolir a escravatura. Photos.com Para responder estas e muitas outras questões suscitadas pelo tema, é necessário, primeiramente, a compreensão acerca das ações afirmativas. Ações afirmativas são programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades, com o objetivo de reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas públicas e privadas, durante o processo de formação social do país, em todos os setores (educação, saúde, esporte, trabalho, moradia, entre outros). “No âmbito do Direito, as políticas e ações afirmativas estão fundamentadas no princípio da Isonomia ou Igualdade descrito no Artigo 5º da Constituição Federal de 1988”, explica João Ricardo dos Santos Costa, Presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS. “É também uma forma de aplicar o princípio de discriminação positiva, para que diferenças históricas - culturais, sociais, econômicas - possam ser diminuídas a partir de outra condição de partida social. O transporte coletivo para os portadores de necessidades especiais é uma ação afirmativa, por exemplo, assim como assentos preferenciais para grávidas, idosos, obesos”, completa Sarita Terezinha Alves Amaro, Dra. em Assistência Social e Assistente Social da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul. Neste sentido, as cotas para estudantes negros e indígenas são apenas mais uma iniciativa de reparação histórica às populações que sofreram tratamento desigual no desenvolvimento do Brasil enquanto nação. Mas, ao contrário de ações como os ônibus adaptados, vistos como um grande avanço pela socieda- 55 Revista evista de de Cultura CulturaeeDireitos DireitosHumanos Humanosdada AMB AMB Photos.com 56 Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas? mésticas não remuneradas. Este fato acabou, de certa forma, estigmatizando o lugar da mulher negra no mercado de trabalho”, afirmam Luiz Alberto Oliveira Gonçalves e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, no artigo Movimento negro e educação (Revista Brasileira de Educação Set/ Out/Nov/Dez 2000 Nº 15). Em todo o século XX, mesmo com organizações que defendiam os direitos dos negros e combatiam o racismo, a crença de que a miscigenação brasileira não distinguia brancos, negros e índios ganhou força e passou a permear as políticas públicas de toda ordem. Com a educação, não foi diferente. Se não há racismo no Brasil, não há porque desenvolver políticas educacionais que resguardem grupos étnicos e se comprometam a diminuir desigualdades. De acordo com esse raciocínio – de clara inspiração européia – o acesso à educação, sobretudo a de nível superior, seria apenas uma questão de mérito do aluno. Constituição Cidadã: Direitos e Garantias Fundamentais “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” (Capítulo I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (Capítulo II - Dos Direitos Sociais) Photos.com A partir da Lei Áurea, em 1888, os negros libertos não receberam qualquer apoio do Estado e ainda sofreram restrições para ter acesso ao estudo. “A herança do passado escravista, no início do século XX, marca profundamente as experiências da população negra no que se refere à educação. Naquele momento as crianças negras estavam afastadas dos bancos escolares. Desde a tenra idade eram levadas a atividades remuneradas, para auxiliar na manutenção da família. Sua formação para o trabalho era feita sob a orientação dos patrões, no desempenho das mais variadas tarefas. A escolarização, entre os homens negros nascidos no início do século XX, quando ocorreu, foi, em sua maioria, na idade adulta. Já as mulheres eram encaminhadas a orfanatos, onde recebiam preparo para trabalhar como empregada doméstica ou como costureira. Famílias abastadas as adotavam, quando adolescentes, como filhas de criação, o que de fato significava empregadas do- Especial 57 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Photos.com 58 Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Especial 59 A partir da Constituição de 1988, saúde, educação, moradia e tantos outros itens descritos no Artigo 6º do Capítulo II, tornaram-se uma questão de direito dos cidadãos. “O mérito é uma construção social e acadêmica. O discurso do mérito acadêmico, que tem sido formulado por alguns como algo isento e objetivo, distancia-nos do debate sobre o direito à educação. Será que é justo continuar pensando que todos têm direito à educação, desde que a ela façam mérito?” A questão, levantada por Nilma Lino Rodrigues no I Seminário Nacional Ações Afirmativas na UFMG, é um bom ponto de partida para compreendermos a participação brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata realizada em Durban, na África do Sul, em setembro de 2001. Fazendo um cruzamento entre a pertença racial e os indicadores econômicos de renda, emprego, escolaridade, classe social, idade, situação familiar e religião (usando como base dados do IBGE, IPEA e outras instituições de mesma respeitabilidade), ao longo de mais de 70 anos, desde 1929, Ricardo Henriques* chega à conclusão de que, no Brasil, a condição racial constitui um fator de privilégio para brancos e de exclusão e desvantagem para os não brancos. Algumas cifras assustam: - Do total de universitários brasileiros, 97% são brancos, 2% negros e 1% descendentes de orientais. - Dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são negros. - Dos 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros. * Texto para discussão nº 807. Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90. IPEA, julho de 2001. Photos.com Os dados da exclusão 60 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB No Relatório do Comitê Nacional para Reparação da Participação Brasileira, apresentado em Durban e publicado pelo Ministério da Justiça em 2001, nosso país se comprometeu com propostas em benefício da comunidade negra, a saber: “a adoção de medidas reparatórias às vítimas do racismo, da discriminação racial e de formas conexas de intolerância, por meio de políticas públicas específicas para a superação da desigualdade. Tais medidas reparatórias, fundamentadas nas regras de discriminação positiva prescrita na Constituição de 1988, deverão contemplar medidas legislativas e administrativas destinadas a garantir a regulamentação dos direitos de igualdade racial previstos nessa mesma Constituição, com especial ênfase nas áreas de educação, trabalho, titulação de terras e estabelecimentos de uma política agrícola e de desenvolvimento das comunidades remanescentes de quilombos, adoção de cotas ou outras medidas afirmativas que promovam o acesso de negros às universidades públicas”. Com o Brasil sendo signatário desta Conferência e de outros tratados internacionais de Direitos Humanos, não se trata mais de ser contra ou a favor das cotas. “No âmbito do Direito, as políticas afirmativas, incluindo as cotas, consistem num compromisso assumido pelo Estado brasileiro perante a comunidade internacional. Se não cumpri-las, o Brasil está sujeito a sanções internacionais”, esclarece João Ricardo. A educação é a chave de tudo Partindo do pressuposto de que o desconhecido amedronta, talvez a melhor maneira de desmistificar qualquer assunto seja a educação. No caso das políticas e ações afirmativas, não seria diferente. Tanto é que, desde 1988, a Constituição estabeleceu que o ensino da história do Brasil, a partir de então, deveria abarcar as contribuições das diferentes culturas e etnias que formaram o povo brasileiro. Na conferência de Durban, em 2001, o plano de ação aprovado pelo Brasil reafirmou não só a necessidade desta implementação como o igual acesso à educação para todos na Lei e na prática. Em 2003, a Lei nº 10.639 alterou a Lei nº 9.394/96 – que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional – incluindo no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura AfroBrasileira. Esta ação visa modificar a formação dos alunos, mas ainda há pela frente um trabalho de capacitação dos educadores e professores. “O desafio é enorme”, afirma Sarita, “pois é preciso mudar a maneira de pensar. A sociedade pensa o ‘novo versus velho’ há séculos, buscando o unívoco, a afirmação de si no outro. As pessoas precisam romper com o jeito ‘de sempre’ de pensar e criar espaço para as diferenças. Só assim será possível começar a pensar de modo includente, enxergando e convivendo com a diversidade”. José Roberto Camargo de Souza, o Zezão, membro do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD) da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e do Instituto Casa da Cultura Afro-Brasileira (ICCAB), vai além e afirma que ações afirmativas “vão proporcionar um grande e melhor desenvolvimento, não só à população vulnerável, mas ao país como um todo, pois uma população com nível de escolaridade mais alto, que possa disputar cargos, se aperfeiçoar, ter acesso a tecnologia, vai conceder a todos a possibilidade de crescimento. Não é uma política só para os negros, é uma política para o Brasil”. Correlacionando a questão do acesso ao estudo com a situação no mercado de trabalho nos dias atuais, Zezão chama a atenção para “o crescimento tecnológico que o Brasil vive na atualidade. Alguns setores produtivos já não encontram profissionais qualificados no mercado para atender à demanda. Se não investirmos no aumento do nível educacional da população, muito em breve teremos uma escassez severa de mão de obra. A inclusão da maior parcela populacional na educação superior vai beneficiar a todos os elos da cadeia produtiva e não só aos negros e indígenas, como querem fazer crer algumas pessoas”. Photos.com Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Desafios na escola Zezão usa como exemplo a sua vivência como estudante para explicar o tipo de revolução que o ensino da história e cultura africanas pretende realizar. “Eu tinha vergonha de ir à escola, estudava a história da Europa e da Ásia, com suas grandes invenções, reis e rainhas e o máximo que ouvia falar da África era que fornecia escravos que vinham para cá sofrerem humilhações de todo tipo. Assim como eu, muitas crianças negras sentem vergonha e não se interessam pela escola em função disso. Ensinar as várias histórias da formação do povo brasileiro é fundamental e precisa ser muito bem trabalhado com os professores e educadores. Assim eles formarão cidadãos melhores, que entendam e aprendam a conviver com as diferenças desde a escola. Isso será ensinado a todos os alunos, negros, indígenas e brancos”. Especial 61 62 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Mudança de postura Os compromissos assumidos em Durban conduzem necessariamente à constatação de que o mito da democracia racial brasileira está desfeito. Existe racismo no Brasil e não é mais possível negar esta realidade. Talvez as reações inflamadas contrárias às cotas, ainda que disfarçadas de argumentos racionais, sejam um bom exemplo de como o racismo é praticado no Brasil do século XXI. Muito mais que uma reparação após mais de 300 anos de escravidão e da cobrança de um direito constitucional oferecido pelo estado, como a educação, as cotas que garantem o acesso aos estudantes negros e indígenas nas universidades púbicas cumprem outros papéis. Um deles é o de conferir uma nova dinâmica à instituição universitária, enriquecendo a produção de saberes e levando a uma reflexão sobre a excessiva influência européia na tradição universitária brasileira. Mas a contribuição de maior relevância, segundo José Jorge de Carvalho, é “a intensificação da luta anti-racista no Brasil. Propor cotas é abrir a discussão, até agora silenciada, sobre a sociedade racista em que vivemos; reconhecer que essas práticas racistas estão presentes também no nosso ambiente acadêmico é forçar uma tomada de posição por parte de todos nós para reverter esse quadro e construir as bases para um ambiente universitário livre de práticas racistas e discriminatórias”. Para Sarita Amaro, na atual conjuntura cultural e social do Brasil, as políticas afirmativas, como as cotas, “são necessárias para modificar a situação das populações historicamente excluídas desde já. Isto não pode e não deve mais ser adiado. Espero que consigamos avançar bastante, para num futuro próximo, podermos abrir mão delas, pois teremos uma sociedade mais igualitária no sentido de conviver com as diferenças”. Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas? As cotas não são as únicas políticas afirmativas em prática no Brasil Além da introdução da história e da cultura africanas no ensino Fundamental, Médio e Superior – que prepara as novas gerações para conviver com as diferenças, há em andamento outras ações afirmativas, não só na área educacional, como também na área da saúde. Ainda assim, é a questão das cotas nas universidades que continua despertando maior atenção. No artigo intitulado “Um ponto de vista em defesa das cotas”, Kabengele Munanga analisa cada um dos argumentos contrários a implantação dessa política afirmativa e ressalta a importância de ações coordenadas: “A cota obrigatória se confirma, pela experiência vivida nos países que a praticaram, como uma garantia de acesso e permanência nos espaços e setores da sociedade até hoje majoritariamente reservados à ‘casta’ branca. O uso desse instrumento seria transitório, esperando o processo de amadurecimento da sociedade na construção de sua democracia e plena cidadania. Paralelamente às cotas, outros caminhos a curto, médio e longo prazos, projetados em metas, poderiam ser criados e incrementados”. Para saber mais: Photos.com Afirmando Direitos – Acesso e permanência de jovens negros na universidade. Nilma Lino Gomes e Aracy Alves Martins (org.). 2ª edição. Belo Horizonte, 2006. Ed. Autêntica. África-Brasil-África: matrizes, heranças e diálogos contemporâneos. Iris Maria da Costa Amâncio (org.). Belo Horizonte, 2008. Ed. Puc Minas e Ed. Nandyala. Especial 63 Ricardo Avelar 64 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Transformando o mundo através da música Pesquisa: Marina Camisasca Redação e Entrevistas: Isabella Verdolin, Juliana Braga e Marina Camisasca Fotografias: Arquivo FolhaPress, Arquivo dos entrevistados. “O ser humano precisa de um elemento para se libertar dos seus preconceitos, das suas angústias, das suas decepções e esse elemento pode ser a música, seja ela qual for. Eu entendo a música como um elemento libertador da pessoa”. Com essas palavras o Diretor Cultural do Olodum, Nelson Mendes, procurou retratar a importân- cia da música, que atualmente é utilizada como ferramenta por grupos diversos, em várias partes do país, com o objetivo de promover transformações sociais. Na Cidade de Deus, uma das comunidades mais violentas do Rio de Janeiro, Alex Pereira Barbosa, nacionalmente conhecido como MV Bill, fez da música sua ferramenta de luta contras as diferenças sociais e hoje está à frente da Central Única de Favelas (Cufa). Criada em 1999, a Cufa nasceu a partir de reuniões entre vários jovens ligados ao hip hop. “No início, era apenas uma maneira de juntar os ‘manos’, mas por fim Transformando o mundo através da música foi a alternativa para sair do lugar comum de denúncias e construir novas alternativas, caminhos e futuro”, lembra MV Bill. Através de uma linguagem própria, a Cufa difunde a conscientização das camadas desprivilegiadas da população com oficinas de capacitação profissional, entre outras atividades, que elevam a autoestima das periferias, oferecendo-lhes novas perspectivas. Também no Rio de Janeiro, o Grupo AgroReggae se utiliza de oficinas de percussão, dança, circo e teatro para tentar mudar a realidade de áreas marginais da cidade. Em 1993, a comunidade de Vigário Geral foi cenário do massacre de 21 pessoas inocentes, por um grupo de extermínio que invadiu casas e assassinou moradores. Esse episódio foi o ponto de partida para o início do trabalho de um pequeno grupo, que depois se expandiu para outras quatro comunidades: Parada de Lucas, Morro do Cantalago, Complexo do Alemão e Nova Era, essa última localizada na cidade de Nova Friburgo. De acordo com o coordenador executivo José Júnior, o foco do trabalho é sempre o mesmo, “atuamos aproximando as pessoas da cultura e promovendo desenvolvimento econômico e social”. Em Salvador, foi criado em 1979 por moradores do bairro Pelourinho, o bloco afro Olodum, que tinha por objetivo representar os habitantes do bairro no carnaval e também produzir ações sociais durante todo o ano. Nesse período, o Pelourinho era uma área extremamente degradada, marcada pela miséria e violência. Os casarões do século XVIII estavam em ruínas e eram utilizados como residências, que abrigavam cada uma delas, cerca de dez a quinze famílias. “Havia a necessidade de uma intervenção do ponto de vista humano, porque havia uma população marginal de prostitutas, pessoas que lidavam com drogas, havia tráfico e tudo mais”, explica Nelson Mendes. Foi a partir de aulas de percussão e também da exibição de filmes, palestras e debates, que o Olodum iniciou seu trabalho no Pelourinho, com o intuito de combater qualquer tipo de discriminação, principalmente a racial, e tentar inserir essa população majoritariamente negra no convívio social. Entrelinhas 65 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB cufa.org.br Todos esses projetos vêm a educação como a chave mestra para resgatar a cidadania dessas populações marginalizadas. Para promover essa mudança a Cufa tem investido na formação dos jovens e oferece, em todo o país, cursos e oficinas de DJ, break, graffiti, informática, gastronomia, basquete, skate, capoeira, cinema, literatura, teatro, dentre outras. “Isso tem feito a diferença. É necessário mostrar a eles que podemos construir coisas tão nobres quanto as que conseguimos admirar. O importante é que essas manifestações são construções nossas. Essa é a grande diferença para a diminuição da exclusão”, diz MV Bill. Cufa Criada em 1999, com sede no Rio de Janeiro (RJ) já se expandiu para outros 25 Estados brasileiros, além do Distrito Federal. Tem no rapper MV Bill um dos seus fundadores, que, em 2004, recebeu da UNESCO o prêmio de um dos dez maiores militantes no mundo na última década. Além dele, a Cufa conta com Nega Gizza, uma forte referência feminina no mundo do Rap, conhecida e respeitada por seu empenho e dedicação às causas sociais e muitas outras pessoas envolvidas com a música e com o desenvolvimento social. Participantes do Projeto Pixaim, na Cufa de Mato Grosso Um desses cursos desenvolvido pela Cufa e que ocorre no Distrito Federal, é o Cine Periferia Criativa, que além de propiciar que as pessoas de regiões pobres possam assistir a filmes, também oferece a oportunidade para que elas aprendam a criar, produzir, dirigir, roteirizar, filmar, enfim, de serem autores da própria história e assumirem as câmeras. Com isso, o curso pretende democratizar o acesso à produção audiovisual e incentivar a participação de produções nacionais como estratégia para espalhar a cultura cinematográfica, promovendo diversão e discussão. cufa.org.br 66 Entrelinhas 67 Lula Marques/Folhapress Transformando o mundo através da música O Olodum também aposta na formação e desde 1984, por meio da Escola Olodum, trabalha com o objetivo de explorar o potencial criativo e empreendedor dos jovens, a partir de experiências de vida, ritmo e interesses próprios, com vista à formação de valores sociais e morais, que possibilitem a convivência de todos os segmentos sociais. A escola oferece cursos de percussão, dança afro, canto, empreendedorismo cultural, informática cultural e formação de lideranças para crianças e adolescentes de 07 a 18 anos. Esse último curso é obrigatório para todos os que estão matriculados na escola e tem por objetivo educar os jovens para a cidadania. Lá os professores trabalham com a valorização da autoestima e da identidade étnica dos alunos. Mas a escola não trabalha exclusivamente com alunos negros, apesar de esses comporem a maior parte da população mais pobre de Salvador, “No Olodum o critério para a escolha dos jovens é social e não racial. Nós entendemos que se nós trabalhamos contra o preconceito racial nós não podemos ter uma atitude racista”, conta Nelson. A preocupação é desenvolver, sobretudo, a cidadania dos jovens e incluí-los na sociedade através das artes, basicamente da música e da cultura africana. Músicos do Olodum tocam no Pelourinho, em Salvador (BA), após a classificação da seleção brasileira para a decisão da Copa. 2002 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Olodum Grupo criado em 1979 com sede em Salvador (BA), na rua Gregário Bezerra nº 22, bairro Pelourinho. A experiência do Olodum tem servido de estímulo para o surgimento de iniciativas similares, como o Grupo Unidos dos Quilombos, em Sergipe; Meninos do Morumbi, Régua e Compasso e Arte no Dique, em São Paulo e Sons de Cidadania, em Brasília. O Olodum levou sua música para 35 países e já gravou um DVD, onze CDs no Brasil, 4 no exterior, e tem mais de 5 milhões de cópias vendidas. Danilo Bonfim Rodrigues, 9 anos, toca repique na banda mirim do Olodum em ensaio para o Carnaval de Salvador, Bahia. 2001 Xando Pereira/Folhapress 68 Transformando o mundo através da música triculados em escolas públicas de qualquer região de Salvador. No entanto, “a procura é tão grande que é preciso selecionar os alunos, já que a escola só consegue atender a 300 jovens”, afirma o secretário escolar Antonio de Jesus. O AfroReggae também trabalha por meio do viés educacional e já ajudou a mudar a vida de diversas pessoas. A história do carioca Vitor Onofre ilustra o poder de transformação do grupo: “Comecei na oficina de percussão. Fui componente de Trupe de Saúde, projeto para conscientizar a população sobre o risco das DSTs e Aids. Depois me tornei assessor desse projeto e hoje sou coordenador do AfroReggae aqui em Vigário Geral”, conta. Apesar de histórias como as de Onofre serem comuns, o coordenador executivo José Júnior é comedido ao falar sobre o impacto que as atividades do grupo tiveram na população. “Não sei se ajudou as pessoas a superarem o trauma da chacina, mas foi um diferencial para mostrar que Vigário Geral não era só tráfico, violência e crime”. Para Júnior, além de poder oferecer um caminho diferente a tantas pessoas que antes só vivenciavam a violência, o AfroReggae pode se orgulhar de ter, 69 Moacyr Lopes Júnior/Folhapress “Originalmente a Escola Olodum foi criada para atender aos filhos dos percussionistas que viam os pais tocando e também queriam tocar”, lembra Nelson. Mas com o passar dos anos ela foi se expandindo e hoje atende aos jovens de baixa renda, regularmente ma- Entrelinhas Integrantes do bloco Olodum Mirim desfilam no Campo Grande, em Salvador, onde Caetano Veloso e Margareth Menezes fizeram um show para comemorar os 450 anos da capital baiana. 1999 70 Rony Maltz/Folhapress Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB Multidão na festa de inauguração do Centro Cultural Waly Salomão, na favela de Vigário Geral, na zona norte do Rio de Janeiro (RJ). Evento atraiu multidão de moradores para shows gratuítos de Gilberto Gil, Caetano Veloso e AfroReggae. A obra custou mais de R$ 6 milhões e será sede de uma ONG. 2010 como se diz nas favelas, construído uma ponte entre morro e asfalto. “Tocamos em temas que eram verdadeiros paradigmas, como a proibição de moradores de uma determinada favela, dominada por uma facção do narcotráfico, entrarem em uma comunidade ‘rival’. Nós nunca seguimos esses ‘códigos’. Também tivemos um papel importante na construção de pontes de vias de mão dupla juntando pessoas de pensamentos e classes sociais diferentes”. A mais recente realização desse encontro foi a fundação do Centro Cultural Waly Salomão, complexo cultural de última geração inaugurado em maio deste ano. Seu nome homenageia o poeta carioca que foi também um dos incentivadores do AfroReggae. Com design do artista plástico Luís Stein, o prédio abriga em seus quatro andares uma área para teleconferências, videoteca, espaço para ensaios de teatro e dança, uma sala com 17 computadores em rede wi-fi e outro estúdio, profissional, para gravação, mi- xagem e masterização. Para construí-lo, o grupo contou com um investimento de R$ 6 milhões, fruto de uma parceria entre BNDES, Petrobras, governo do estado do Rio e os institutos Unibanco e Rukha. Além de trabalharem para promover a educação e a cidadania nas comunidades onde atuam, esses grupos também trocam experiências e tornam-se exemplos para a ação de muitos outros grupos sociais em todo o Brasil. Em Santos, por exemplo, o grupo Régua e Compasso, criado por antigos membros do Olodum, desenvolve trabalhos sociais a partir do samba reggae e utiliza metodologia semelhante a do grupo baiano em que se inspirou. O Olodum também é frequentemente requisitado para ensinar as suas metodologias, como foi o caso do Grupo Unidos dos Quilombos, localizado em Sergipe. A transferência dessa tecnologia social se concretiza por meio de capacitações, acompanhamento e monitoramento das atividades realizadas nesses projetos. Transformando o mundo através da música Antônio Gaudério/Folhapress A Cufa também trabalha com diversas outras organizações e iniciativas. “A Cufa tenta se comunicar com todos os movimentos sejam eles radicais ou não. Mas o diálogo não é uma vontade de todos os movimentos. Tentamos conviver com todos, com o Movimento Hip Hop, o Movimento Negro, o de luta pela terra, o da juventude. Enfim, são muitos”, diz MV Bill. Segundo o líder do AfroReggae, José Junior, são tantos os grupos que os procuram que ele não saberia quantificar, mas cita alguns que são apoiados, como é o caso do Maje Mole, que promove aulas de dança em Pernambuco, e o Grupo Cultura Bagunçaço, que promove oficinas de percussão na Bahia. O Olodum e o AfroReggae possuem um diálogo muito frutífero, e de acordo com Nelson Mendes, quando o AfroReggae estava começando, o diretor Júnior os procurou para saber um pouco da experiência do Olodum. Além de transmitir seu conhecimento para grupos brasileiros, o Olodum também procura levar a sua tecnologia social para outros países, como ocorreu no Benin. O país possui uma população descendente de antigos escravos do Brasil que retornaram à África e de comerciantes baianos lá estabelecidos nos séculos XVIII e XIX, que são conhecidos como agudás. Esse povo possui forte ligação com a cultura brasileira, por isso a importância de divulgar as nossas tradições do outro lado do oceano. Assim, ao levar a sua metodologia, o Olodum contribui para manter viva em comunidades do Benin a história dos africanos no Brasil, utilizando a música como estratégia de mobilização e preservação cultural. Os feitos desses grupos que utilizam a música como ferramenta de inclusão social são muitos e todos são unânimes em afirmar que já conseguiram fazer bastante, mas que ainda não é o suficiente. Mesmo com tantas conquistas, AfroReggae Criado em 1993, com sede no Rio de Janeiro (RJ), no início atuava somente na comunidade de Vigário Geral, depois se expandiu para Parada de Lucas, Morro do Cantagalo, Complexo do Alemão e Nova Era (em Nova Friburgo). Além do Rio de Janeiro, o AfroReggae tem 65 projetos em todo o Brasil e também no exterior. O vocalista LG durante ensaio da banda AfroReggae, composta por moradores da favela carioca de Vigário Geral, Rio de Janeiro. 2000 Entrelinhas 71 72 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB o líder do AfroReggae reconhece que, “a voz da periferia ainda não é ouvida como deveria, mas começa a ser mais disseminada pela arte e pela internet. Nosso maior desafio é continuar com a entidade viva. É preciso ampliar as pontes e envolver mais pessoas que queiram de fato mudar o mundo”. De acordo com MV Bill, mesmo funcionando de maneira efervescente e crescendo cada vez mais no Brasil, a Cufa ainda enfrenta os mesmos obstáculos desde seu início: a dificuldade de organizar o discurso das massas. “Queremos que os jovens das favelas tenham um senso crítico apurado e, a partir daí, conquistem sua própria inserção social”. Ele reconhece que o crescimento brasileiro tem provocado uma mudança positiva. “O Brasil está mudando e isso acaba beneficiando em alguma medida os jovens das periferias e favelas. Mas estamos muito longe do ideal”. Se no começo a Cufa enfrentou a indiferença e a falta de informação, hoje o movimento está cada vez maior e mais conhecido. Um sinal dessa notoriedade é o fato de MV Bill integrar o elenco da nova temporada da novela adolescente “Malhação”, da TV Globo. Nada mais justo para alguém que é a mais viva prova de que a música pode abrir um caminho para a inclusão social. Para o futuro, ele quer para a Cufa um caminho tão espontâneo quanto o rap. “A Cufa não tem metas claras, e confesso que não vejo nisso um problema. Mas eu arriscaria dizer que sua meta é atender anualmente 3 milhões de jovens a partir de 2015”. Cantor se apresenta no 1º Funk Festival - Canta Cidade Tiradentes, em São Paulo. 2008 Entrelinhas 73 Fernando Donasci/Folhapress Transformando o mundo através da música 74 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB tos humanos, porém ainda detectamos focos de preconceito racial e isso faz com que nós permaneçamos na luta para mostrar que as pessoas têm valor e que têm que ser respeitadas, independente da cor da sua pele.” Nelson também considera que não é o Olodum que é capaz de mudar a vida das pessoas, mas sim a música. “Nós somos um veículo, a arte musical que é transformadora, nós apenas oferecemos uma mini estrutura para que as pessoas a usem e possam melhorar as suas próprias vidas, e isso nós estamos conseguindo!” Marcelo Justo/Folhapress Show do rapper MV Bill em comemoração ao Dia da Consciência Negra, na Praça da Sé, no centro de São Paulo. 2007 O trabalho do Olodum também conseguiu mudar a vida de muitos baianos. De acordo com Nelson, “há centenas de músicos profissionalizados que já passaram pelo Olodum e hoje tocam com artistas nacionais e internacionais, gente vivendo na Europa, mas que aprendeu a tocar percussão aqui no Olodum. Eles estão tocando lá fora com vida digna como músicos”. No entanto, o diretor afirma que um dos principais desafios a ser enfrentado ainda é a luta contra o preconceito racial: “hoje há um avanço na discussão da questão racial no Brasil e consequentemente dos direi- “Queremos que os jovens das favelas tenham um senso crítico apurado e, a partir daí, conquistem sua própria inserção social. (...) O Brasil está mudando e isso acaba beneficiando em alguma medida os jovens das periferias e favelas. Mas estamos muito longe do ideal”. MV Bill Transformando o mundo através da música Entrelinhas Felipe Varanda/Folhapress Um novo movimento musical: o trabalho do funk No Rio de Janeiro, os bailes funk haviam sido proibidos, pois eram realizados nas favelas e estavam associados à questão do tráfico de drogas e também da sexualização precoce. No entanto, havia uma demanda do movimento funkeiro, que não se associava ao tráfico e nem a apologia ao sexo, que desejava que os bailes pudessem ser realizados em áreas permitidas pelo poder público e não em locais controlados pelos traficantes. Esse grupo procurou o deputado estadual do Rio de Janeiro Marcelo Freixo, então presidente da comissão dos direitos humanos da ALERJ (Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), para que ele os ajudasse a modificar a situação. O deputado trabalhou para a aprovação de lei que permitisse a realização dos bailes funks. A lei nº 5543 de 22/09/2009 foi aprovada na ALERJ e considerou o funk um movimento cultural e musical de caráter popular. Além disso, determinou que o poder público fosse responsável por assegurar ao movimento a realização de suas manifestações próprias, como festas, bailes e reuniões, sem quaisquer regras discriminatórias ou diferentes das que regem outras manifestações da mesma natureza. Após a aprovação dessa lei, a massa funkeira começou a ser organizar e criou a Apafunk (Associação de Profissionais e Amigos do Funk). Hoje essa associação realiza oficinas de funk e direitos humanos nas escolas públicas do Rio de Janeiro. Além desse trabalho, a Apafunk promove ainda as rodas de funk que têm por objetivo discutir determinados temas nas escolas, parques e praças públicas, como, por exemplo, a construção de muros no entorno das favelas da cidade. Essa associação iniciou, assim, um trabalho importante para construção da cidadania nas favelas através de um estilo musical discriminado e marcado por vários estereótipos. Público no baile do Via Show, em São João de Meriti, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. 2004 75 Photos.com Photos.com Ano 1 | Edição 1 | Brasília | Outubro 2010 | ISSN 2179-2178 Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB RC Revista de Cultura e DH Direitos Humanos da AMB Realização Esse Brasil Africano Apoio BRAA SIL fricano Esse Ano 1 - Edição 1 - Outubro 2010 Raízes Africanas Tradição, alegria e fé: festas populares e tradicionais brasileiras Personalidade: Milton Santos Ações afirmativas no Brasil Brancos e Negros no Ensino Superior Políticas afirmativas: por que o Brasil precisa delas? Transformando o mundo através da música Falando em Direitos Humanos