Ano 1 | Edição 1 | Brasília | Outubro 2010 | ISSN 2179-2178
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
RC Revista de Cultura e
DH Direitos Humanos da AMB
Realização
Esse Brasil Africano
Apoio
BRAA
SIL
fricano
Esse
Ano 1 - Edição 1 - Outubro 2010
Raízes Africanas
Tradição, alegria e fé: festas populares e tradicionais brasileiras
Personalidade: Milton Santos
Ações afirmativas no Brasil
Brancos e Negros no Ensino Superior
Políticas afirmativas: por que o Brasil precisa delas?
Transformando o mundo através da música
Falando em Direitos Humanos
Photos.com
Editorial
Igualdade nas diferenças
Uma revista de Cultura e Direitos Humanos. Uma edição dedicada à
importância dos negros e negras na formação cultural do país. Com
esta iniciativa a AMB contribuiu à sociedade brasileira para dar corpo
a um dos mais importantes objetivos do II Plano Nacional de Direitos
Humanos (objetivo de número 202 do PNDH). Um documento em
forma de revista para preservar a memória e ao mesmo tempo contribuir com um olhar à produção cultural de mulheres e homens negros
no Brasil. A edição sintetiza a importância desta cultura e a forma
determinante com que influenciou a construção de uma identidade
nacional. É um depoimento sobre a riqueza, o requinte e a intensidade
das várias formas de expressões cultural e intelectual daqueles cuja migração para o território brasileiro foi impostas através das mais brutais
violações de Direitos Humanos da história da humanidade.
O processo de superação de uma etnia pode ser observado pela forma
com que influenciou na academia, na música, na dança e na literatura.
A luta permanente pelo espaço social outrora subtraído é justificado
no lento, porém visível, processo de inclusão. A reparação da injustiça
histórica da escravidão não se opera de forma simples e rápida, é um
processo que compõe um dos maiores desafios civilizatórios e encontra
alguns obstáculos velados, mas importantes. É a busca de um povo ao
ideal da igualdade e os dilemas impostos pelos distintos olhares sobre
este princípio tão caro para todos nós. A genialidade de Boaventura de
Souza Santos nos move a “lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem e lutar pelas diferenças sempre que a igualdade
nos descaracterize”. É sobre isso que estamos tratando nesta edição. É
a luta por igualdade de um povo portador de imenso crédito em dignidade. É sobre a legitimidade desta luta que queremos falar.
A AMB também está engajada neste desafio. Boa leitura.
João Ricardo dos Santos Costa
Vice-presidente da AMB para Direitos Humanos
Juiz José Lúcio Munhoz
Vice-presidente da AMB para Assuntos Culturais
Agradecimentos:
A Jorge Adelar Finatto, magistrado aposentado, pela imprescindível
contribuição na construção do projeto;
À Juliane Alcácio, funcionária da AMB, fundamental para a realização
deste trabalho;
À Fundação Ford pela parceria;
Ao Escritório de Histórias por concretizar esta proposta.
1
Presidente
Juiz Airton Mozart Valadares Pires
Amepe
Secretário-Geral
Juiz Nelo Ricardo Presser
Ajuris
Secretário-Geral Adjunto
Desembargador Jorge Massad
Amapar
Vice-Presidentes
Vice-presidente Administrativo
Desembargador Ademar Mendes Bezerra
ACM
Vice-presidente de Esportes
Desembargador Alemer Ferraz Moulin
Amages
Vice-presidente de Comunicação
Desembargador Cláudio Luis Braga Dell’Orto
Amaerj
Diretor-Tesoureiro
Juiz Emanuel Bonfim Carneiro Amaral Filho
Amepe
Vice-presidente Institucional
Desembargador Doorgal Gustavo Borges de Andrada
Diretor-Tesoureiro Adjunto
Amagis
Juiz Edvaldo José Palmeira
Amepe
Vice-presidente de Assuntos Ambientais
Desembargador Flávio Humberto Pascarelli
Amazon
Conselho Fiscal
Juíza Maria Isabel da Silva
Amagis-DF
Juiz Tiago Pinto
Amagis
Juíza Ângela Maria Ribeiro Prudente
Asmeto
Assessores da Presidência
Juiz Rolemberg Costa
Amab
Juiz Marcos Salles
AMPB
Juiz Irno Resener
Amatra XII
Luiz Alberto de Vargas
Amatra IV
Vice-presidente de Assuntos da Infância e Juventude
Juiz Francisco de Oliveira Neto
AMC
Vice-presidente de Direitos Humanos
Juiz João Ricardo dos Santos Costa
Ajuris
Vice-presidente de Assuntos Culturais
Juiz José Lúcio Munhoz
Amatra II
Vice-presidente de Assuntos Legislativos Trabalhistas
Juíza Patrícia de Matos Lemos
Amatra IX
Vice-presidente de Interiorização
Desembargador Sebastião Luiz Amorim
Apamagis
Vice-presidente de Assuntos Legislativos
Juiz Wilson da Silva Dias
Asmego
Coordenador da Justiça Estadual
Juiz Eugênio Couto Terra
Ajuris
Coordenador da Justiça do Trabalho
Juiz Luis Cláudio dos Santos Branco
Amatra XVII
Coordenador da Justiça Militar
Desembargador James Magalhães de Medeiros
Amajme
Diretoria de Esportes
Diretor
Márcio Mendes
Amapar
Diretor-Adjunto
Ronaldo Maciel
Amma
Futebol
Coordenador dos Aposentados
Desembargador José Carvalho
Amab
Diretores Regionais
Coordenadora da Justiça Federal
Juiz Lucas Rosendo Máximo de Araújo
AMB
Nordeste - Joaquim Lafayette Neto (Amepe)
Diretor de Relações Internacionais
Desembargador Floriano Gomes da Silva
Asmego
Sudeste - Sandro Pitthan Espíndola (Amaerj)
Diretor-Presidente da ENM
Desembargador Eladio Lecey
Tênis
Centro-Oeste - Ariovaldo nantes Corrêa (Amamsul)
Norte - Raimundo Nonato da Costa Maia (Asmac)
Sul - José Antônio Flôres (Ajuris)
Diretor de tênis
Arnóbio Araújo Jr.
Amepe
Diretor de Informática
Juiz Rafael Menezes
Amepe
Diretora do Departamento de Pensionistas
Eneida Terezinha Barbosa
Direto-adjunto de tênis
Luiz Alberto Moro Cavalcante
Apamagis
ISSN 2179-2178
Coordenação
João Ricardo dos Santos Costa
Vice-presidente da AMB para Direitos Humanos
Projeto Editorial, Edição, Redação,
Revisão e Direção de Arte
Escritório de Histórias
Apoio
Fundação Ford
Secretaria de Reforma do Judiciário - Ministério da Justiça
Luiz José Lúcio Munhoz
Vice-Presidente de Assuntos Culturais da AMB
Projeto gráfico e Diagramação
Silpe Design
Impressão
Coronário Gráfica e Editora
A Revista de Cultura e Direitos Humanos é uma publicação da Associação dos Magistrados Brasileiros.
Tiragem
50.000 exemplares
Contato
Centro Empresarial Liberty Mall, SCN Quadra
02, Bloco D, Torre B, Conjunto 1302, Brasília, DF.
CEP: 70.712-903. Telefone: (61) 2103-9000.
www.amb.com.br
Memória
Raízes Africanas
Entrevista
Falando em Direitos Humanos
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Dr. Edinaldo César Santos Junior
6
Cultura
Tradição,
alegria e fé
festas populares e
tradicionais brasileiras
22
Personalidade
Milton Santos
Geógrafo, advogado, professor, escritor e pensador:
o garoto de origem humilde, nascido no interior da
Bahia, conquistou o mundo e fez história
32
Especial
Políticas afirmativas: por que o
Brasil precisa delas?
54
Opinião
Ações afirmativas noBrasil
Drª. Sarita Amaro
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64
48
Opinião
Brancos e Negros no
Ensino Superior
Drª. Delcele Mascarenhas Queiroz
Entrelinhas
Transformando
o mundo através
da música
6
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Falando em
Direitos Humanos
Edinaldo César Santos Junior nasceu em 23 de agosto de 1975, em Aracaju/SE. É graduado em
Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL), Especialista em Direitos Humanos pela
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Direitos Humanos pela Universidade
de São Paulo (USP). Atuou como advogado, Defensor Público do Estado da Bahia,
entre 2000 e 2004 e, desde 2005, é Juiz de Direito do Estado de Sergipe.
Atualmente, encontra-se licenciado, residindo no Estado de São Paulo, onde
está cursando o mestrado. Foi o 1º estagiário brasileiro perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. É integrante da Comissão de
Direitos Humanos da AMB.
Quando o senhor começou a se interessar pelos Direitos Humanos?
Meu encontro com os Direitos Humanos ocorreu logo após o término
da faculdade, em 1998. Atuei em um caso emblemático, de muita repercussão, envolvendo uma vitima de injúria racial. No percurso trilhado,
tive contato com diversos organismos estatais e não estatais de defesa
dos direitos humanos. O primeiro deles, altamente marcante, foi a promotoria de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia, nas
pessoas dos promotores de justiça Lidivaldo Brito e Márcia Virgens, que
já atuavam na defesa dos direitos humanos. Foi um momento de grande
aprendizado. Ao final do processo, obtivemos vitória na ação criminal,
logrando a primeira sentença procedente de injúria racial na Bahia. Após,
essa primeira ação, atuei em várias outras no mesmo sentido, tendo me
especializado em Direitos Humanos.
Quando passou a atuar de maneira mais efetiva nesta área?
Sem sombra de dúvidas, quando ingressei na Defensoria Pública do Estado da Bahia. Entre 2003 e 2004, fui Coordenador do Núcleo de Direitos
Humanos, pioneiro em Defensorias Públicas no país. O núcleo atuava na
defesa dos grupos vulneráveis, é dizer, pessoas que sofriam todo tipo de discriminação, tortura, maus-tratos, eram nossos assistidos. Como ainda não
havia uma maior especialização no órgão, atendíamos também a idosos,
mulheres vítimas de violência, entre outros grupos vitimizados. Tínhamos
de ser juridicamente criativos para alcançarmos êxito nas ações, porque
falar em direitos humanos há 10 anos, fundamentando pedidos em convenções internacionais, ainda gerava polêmica e mesmo rejeição.
Dr. Edinaldo César
Desta época até os dias de hoje, o que identifica
como a principal mudança no aspecto jurídico?
Em 1998, o Brasil aceitou a jurisdição da
Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Havia apenas 6 (seis) anos que o pais ratificara
a Convenção Americana de Direitos Humanos,
conhecida como Pacto de San José da Costa Rica
(1992). Quando estive como estagiário da Corte
entre 2001 e 2002, recordo-me de que o Brasil
ainda não havia sido demandado perante o tribunal interamericano. Assim, considero que a ratificação de tratados, com a sua conseqüente inserção no ordenamento jurídico brasileiro, tem sido
um importante passo para mudanças significativas, conquanto perceba haver uma deficiência
quanto ao diálogo entre nós, os juízes brasileiros,
e as Cortes Internacionais de Direitos Humanos.
Com relação aos afrodescendentes, na sua opinião, quais foram as principais dificuldades
para que os Direitos Humanos pudessem ser
efetivados?
Até hoje, muitas pessoas ainda vivem na
crença da inexistência do racismo no Brasil e
de que vivemos numa democracia racial à Gil-
Entrevista
7
berto Freire. No mínimo, conseguem admitir
a presença remota de um racismo social e econômico, nunca ideológico. Ouso discordar.
Uma última pesquisa realizada pela AMB entre os juízes do Brasil constatou que da totalidade de juízes no país, apenas 0,9% é negro.
Essa é uma estatística preocupante, a demonstrar, por exemplo, que o acesso à magistratura
para o negro é ainda um sonho distante. Faço
parte da exceção. Ora, partindo da premissa
da ausência de racismo ideológico, muitos poderiam afirmar que um negro juiz não seria
alvo de preconceito ou discriminação. Sou a
prova do contrário. Não importa como ou
onde esteja, a consciência social ainda não crê
na possibilidade da ascensão do negro e, por
isso, discrimina-o. Se o negro social e economicamente bem situado dirige o carro zero, é
o motorista particular, se está de traje formal
no shopping, é abordado como segurança, se
está de pasta a tiracolo, é o fotógrafo do evento, e mesmo dentro do “gabinete do juiz”, se
está acompanhado do assessor não-negro, a
ele a palavra sequer é dirigida. Todos esses fatos já ocorreram comigo. Penso que os afrodescendentes no Brasil ainda têm um longo
caminho a percorrer.
Photos.com
Até hoje, muitas pessoas ainda vivem na crença da inexistência
do racismo no Brasil e de que vivemos numa democracia racial
à Gilberto Freire.
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
E as principais conquistas? O que identifica
como grandes avanços?
Em junho de 2003, o Brasil, através do
decreto presidencial 4783, promulgou a Declaração Facultativa prevista no art. 14 da
Convenção Internacional sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial,
reconhecendo a competência do Comitê Internacional para a Eliminação da Discriminação
Racial para receber e analisar denúncias de
violação dos direitos humanos cobertos na
mencionada Convenção. Este foi um importante avanço, porque entendo que qualquer
forma de monitoramento ajuda a prevenir
ações violadoras de direitos humanos.
Os negros no Brasil têm um arcabouço legislativo importante na luta contra a discriminação
racial. Não obstante, mais uma vez, constato o
valor da jurisprudência e de sua visão quanto a tão
importante tema. O Supremo Tribunal Federal,
na análise da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 e do Recurso Extraordinário 597.285/RSA, abriu importante discussão
social através da realização de audiência pública. Para mim, a autorização da utilização das
cotas como política de ação afirmativa já está
inserida no Brasil desde 1969, quando o país ratificou a Convenção Internacional relativa à Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial, que expressamente diz, no §4º do artigo
1º, não ser considerada discriminação racial a
As cotas não são um favor, mas sim uma
condição necessária à reparação dos
contrastes reinantes do pais pós-1888,
fruto de uma “abolição da escravidão” sem
políticas de adequação econômica e social
dos egressos da condição de objeto para
situação de sujeito (de direitos?).
realização de medidas especiais com o único
objetivo de assegurar o progresso adequado de
grupos raciais, proporcionando igual gozo ou
exercício de determinados direitos humanos.
Leia-se medidas especiais como cotas, ao menos como espécie do gênero. Essa Convenção
foi devidamente recepcionada pela Constituição
de 1988. Ademais, quanto às cotas ressalto alguns dados. As cotas não visam à diminuição
da discriminação racial, mas sim da desigualdade racial perversa existente e persistente. As
cotas não são um favor, mas sim uma condição
necessária à reparação dos contrastes reinantes
do pais pós-1888, fruto de uma “abolição da
escravidão” sem políticas de adequação econômica e social dos egressos da condição de objeto
para situação de sujeito (de direitos?). Tudo isso
encontra-se vinculado a uma questão da disputa
de poder, com a qual se convive até hoje, apenas
com a alteração das personagens. As questões
Photos.com
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Dr. Edinaldo César
Entrevista
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É necessário mudança de mentalidade.
E isso, por óbvio, não ocorre de uma dia
para o outro. A educação, que forma,
informa e conforma foi, tem sido e
continuará sendo a protagonista
de grandes conquistas.
das políticas de ação afirmativa e de políticas de
reconhecimento dos negros e dos demais grupos
vulneráveis demandam de nós uma reflexão que
nos proporcione releituras, impregnada da empatia, que deve ser a tônica da atuação do magistrado na árdua tarefa ulpiana de dar a cada
um o que é seu.
O que ainda falta avançar nos Direitos Humanos no Brasil, na sua opinião?
É necessário mudança de mentalidade. E
isso, por óbvio, não ocorre de uma dia para o
outro. A educação, que forma, informa e conforma foi, tem sido e continuará sendo a protagonista de grandes conquistas. Infelizmente,
a maioria das faculdades de direito ainda tem
pilares na formação clássica, positivista, que
surgiria como empecilho à uma perspectiva de
transformação para as novas gerações. Não
podemos continuar admitindo vivermos como
se fosse uma grande conquista ser a “boca da
lei”. Talvez tenha sido no século XIX. Nesta
senda, defendo uma maior aproximação com a
população. Como prestarmos uma boa jurisdição sem conhecermos a realidade dos destinatários de nossas decisões? Se o desafio está em
nos aproximarmos com a cautela exigível pela
imparcialidade, também compreendo que este
fator não pode ser paralisante ou impeditivo de
ações que nos identifiquem e nos levem a melhor jurisdizer. Sempre tenho dito que o juiz está
adstrito ao princípio da inércia processual, mas
extraprocessualmente é livre para levar ao jurisdicionado noções de cidadania e direitos humanos, proporcionando acesso à justiça no sentido
mais amplo, tudo em observância aos preceitos
constitucionais. A realização de seminários, júris simulados, palestras ou a confecção de cartilhas são bons exemplos de atividades que teriam
o condão de levar o Judiciário à comunidade
onde atua.
9
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Como percebe o interesse e a participação da
sociedade nesse tema?
A concepção social de direitos humanos vem
mudando nos últimos anos. Aquela velha idéia
de direitos humanos como direitos dos bandidos,
forjada durante a ditadura militar, resta ainda
para os menos avisados ou para aqueles muito mais preocupados na manutenção do status
quo. Os direitos humanos, como contramajoritários que são, acabam tendo alguma resistência de determinados setores sociais, que ainda
os enxergam como um perigo. Por outro lado,
consigo ver a sociedade civil se organizando
mais e sua participação política mais qualificada. Vejo, por exemplo, a participação paritária,
com a presença da sociedade civil organizada,
em conselhos municipais e estaduais, como um
avanço. A sociedade percebe a importância de
interagir, constatando também que tem a sua
parcela de responsabilidade. Muitos instrumentos jurídicos, como o Estatuto da Criança e do
Adolescente, ressaltam direitos, mas também
Muitos instrumentos
jurídicos, como o
Estatuto da Criança
e do Adolescente,
ressaltam direitos,
mas também deveres da sociedade e
da família, e creio
que essa participação, que é legítima,
tende a se qualificar.
deveres da sociedade e da família, e creio que
essa participação, que é legítima, tende a se qualificar. A AMB é exemplo dessa crescente participação social ao criar uma Vice-Presidência de
Direitos Humanos e uma Comissão de Direitos
Humanos. Isso significa que os juízes do Brasil
querem ter voz quando o tema é direitos humanos, entre outras questões do país. Para exemplificar, recordo-me de que ao participar da XI
Conferência Nacional de Direitos Humanos em
Brasília, pela AMB, eu e vários colegas juízes estávamos numa sala em que se discutia o tema segurança pública. Em dado momento, os demais
participantes apenas falavam mal dos juízes e do
judiciário, até que nós pedimos a palavra para
replicarmos e emitirmos nossa opinião, sob os
olhares perplexos e manifestação verbal em seguida, cujo conteúdo era “nós nunca iríamos
imaginar que houvesse juízes presentes nesta
conferência!!”. Mas nós estávamos lá e podemos também opinar sobre as mudanças que nos
afetam e sobre as quais temos que decidir. É a
necessária mudança de paradigma.
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Defendo a importância do diálogo entre as
Cortes, o que levaria a um maior conhecimento
dos magistrados brasileiros da jurisprudência
internacional sobre direitos humanos.
Quais são os grandes desafios da Justiça hoje,
em relação aos Direitos Humanos?
Creio que um dos grandes desafios da justiça no Brasil é a aplicação do direito com a observância dos precedentes judiciais das Cortes
Internacionais de Direitos Humanos. Já cri, no
passado, que o conhecimento pelos operadores do direito das normas de direitos humanos
inseridas no ordenamento jurídico brasileiro
fosse a solução para uma melhor prestação
jurisdicional, mais inclusiva do ponto de vista
social. Ocorre que posso desconhecer a norma;
posso conhecê-la, mas não aplicá-la; e posso
aplicá-la subvertendo sua intenção. Esta última hipótese seria a mais perniciosa. Defendo a
importância do diálogo entre as Cortes, o que
levaria a um maior conhecimento dos magis-
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Dr. Edinaldo César
trados brasileiros da jurisprudência internacional sobre direitos humanos. Uma confirmação
desse colóquio entre tribunais é o RE 511.961,
sobre a obrigatoriedade do diploma de jornalista, em que o Ministro Gilmar Mendes faz
referência tanto à Opinião Consultiva nº 05/85
da Corte Interamericana de Direitos Humanos
quanto ao Informe Anual da Relatoria Especial para Liberdade de Expressão da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. Assim,
creio que o diálogo do juiz brasileiro com as
Cortes de Direitos Humanos, conhecendo seus
precedentes, aplicando-os como fonte de direito, seja um grande desafio da pós-modernidade.
Nós, juízes do Brasil, já passamos do momento
de começarmos a utilizar esses instrumentos
em nossas decisões a fim de garantir a efetiva
inclusão de direitos.
Creio que o diálogo do juiz brasileiro com as Cortes
de Direitos Humanos, conhecendo seus precedentes,
aplicando-os como fonte de direito, seja um grande
desafio da pós-modernidade.
Entrevista
11
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Stockphoto
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A capoeira é uma
luta dançada em
todo o território
nacional e possui
muitos elementos
africanos, como
os instrumentos
musicais, a ginga, as
letras e os passos.
Raízes Africanas
Pesquisa: Marina Camisasca | Redação: Isabella Verdolin e Marina Camisasca
No despontar da Idade Moderna, com as
grandes navegações empreendidas a partir de
Portugal, sociedades africanas da costa atlântica, até então nunca visitadas por populações de outros continentes, passaram a fazer
parte dos circuitos de relações intercontinentais. Algumas dessas sociedades forneceram
a maior parte da força de trabalho utilizada
na “construção” do Novo Mundo. Assim, do
século XVI ao XIX foi em torno do tráfico de
escravos, isto é, do comércio de pessoas, que
ocorreram as relações entre muitos africanos
e europeus.
Durante a colonização brasileira, grande parte da mão-de-obra empregada veio da África para
realizar os trabalhos mais diversos. No princípio
os portugueses tentaram utilizar o trabalho indígena para a extração do pau-brasil, oferecendo
em troca toda espécie de objetos, que nem sempre tinham utilidade ou valor para os habitantes
locais. No entanto, devido à inadaptação dos índios, a partir de 1550, os colonizadores optaram
por empregar o trabalho de negros e negras que,
dentre outros fatores, possuía um alto valor de
venda no novo continente.
O Brasil foi o país que por mais tempo e em
maior quantidade recebeu escravos africanos.
Aproximadamente 40% dos que rumaram para
a América aportaram aqui. A maioria era proveniente da Angola, mas também vieram escravos do Congo, de Moçambique, do Golfo do
Benim, dentre outros.
Memória
Raízes Africanas
Escravizar o inimigo e
utilizá-lo para o trabalho cotidiano já era
uma prática entre muitos desses povos. Mas,
ainda assim, ao serem
retirados dos seus locais
de origem, levados para
outro continente e reagrupados nos plantéis, sítios ou casas onde trabalhavam, os negros tiveram que recriar suas
formas de inserção no mundo, para encontrar
outros termos de convivência e de apreensão
da realidade. Isto fez aflorar afinidades e inimizades, formas de relacionamento foram estabelecidas, novos laços tecidos e lideranças
escolhidas.
Principais rotas do comércio atlântico de escravos
para o Brasil do século XVI ao XIX
domínio público
A multiplicidade de nomes designativos de
povos diferentes, de línguas desconhecidas e fonéticas com as quais os europeus não estavam
acostumados, fez com que estes identificassem
os escravos de acordo com os locais de embarque, dos mercados onde eram comercializados
ou dos reinos conhecidos. Escravos receberam,
por exemplo, as denominações de cabinda e de
cassanje, nomes de mercados africanos. Os registros não nos possibilitam conhecer a totalidade dos povos que rumaram para cá. No entanto,
eles são indicativos da variedade de grupos que
foram trazidos para serem empregados como
força de trabalho em diversas localidades e atividades, tanto urbanas quanto rurais.
As sociedades africanas eram plurais, diversificadas e marcadas por alianças e disputas.
Danse de la Guerre,
de Johann Moritz
Rugendas, 1835
Egito
Cabo
Verde
Gana
Bambuk
Bissau
Mali
Tombuctu
Jené
Canem
IBornu
Buré
Daomé
PENÍNSULA
ARÁBICA
Songai
Gaô
Núbia
Senar
Darfur
Axum
Etiópia
Oió
ÁFRICA
Ife
Benin
Abomé
Alada Lagos
Axante Ajudá
Forte de São
Jorge da Mina
São Tomé
Belém
Congo
Cabinda(Loango)
Luanda
Pinda
Ambriz
Ambuíla
Luanda Dongo Cassanje
Matamba
Recife
AMÉRICA DO SUL
Zanzibar
Quiloa
Cassanje
Salvador
Benguela
OCEANO
PACÍFICO
OCEANO
ÍNDICO
Tio
São Luís
Cazembe
Lozi
Moçambique
Angoche
Moçambique
Quelimane
Sofala
Monomotapa
Rio de Janeiro
Inhambane
OCEANO ATLÂNTICO
Cidades Africanas de origem
Principais destinos dos negros no Brasil
Cidades Africanas do passado (localização aproximada)
Reinos Africanos do passado
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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Havia também outros laços que ligavam brancos
e negros. Prática comum era que escravas amamentassem os bebês recém nascidos, filhos dos
senhores, as “amas de leite”. Alguns que trabalhavam nos serviços domésticos da “casa grande”
costumavam receber instrução, aprendiam a ler
e escrever com as senhoras da casa e estabeleciam amizades entre os brancos. Os escravos no
Brasil não foram nem heróis nem coisas, foram
pessoas que trabalharam e lutaram pela sobrevivência e, devido ao convívio com os seus senhores,
muitas vezes, criaram relações muito próximas
com esses últimos, que diferentemente do que se
imagina, nem sempre foram homens maus que só
pensavam em maltratar os negros e negras.
Uma Senhora Brasileira em seu lar, de Jean Babtiste
Debret, cerca de 1823. Litografia e aquarela à mão
domínio público
As sociedades
africanas eram
plurais, etnicamente
e com características
físicas bem
marcantes, como
mostra esta série de
gravuras de Johann
Moritz Rugendas.
Cerca de 1820, in
Viagem Pitoresca
através do Brasil
Além de relações criadas entre os africanos de diferentes origens, os escravos
tiveram também que estabelecer uma forma de convivência com os seus senhores. A
rede de relações pessoais entre dois grupos
aparentemente antagônicos revela que o
convívio entre as duas partes era de interdependência: o escravo era quem realizava
a maior parte dos serviços e, para os senhores, perdê-lo não era vantajoso, pois além
do enorme prejuízo – um escravo custava
caro -, não havia, por exemplo, outra mão
de obra disponível para realizar as tarefas
na lavoura.
Com a abolição da escravatura em 1888
e a instauração do regime republicano no
ano de 1889, o escravo passou a ser associado a uma situação de atraso, a um Brasil
arcaico que precisava ser deixado para trás,
até porque sua manutenção exigia um aporte altíssimo de recursos. A abolição por si
só não representou a solução para 338 anos
de escravidão. Alguns negros continuaram
nas lavouras, contratados como homens livres até a chegada dos imigrantes no século
seguinte. Na verdade, para quem deixou a
vida nas fazendas, houve uma piora imediata. Expulsos das senzalas, sem dinheiro, sem
casa, com a roupa do corpo e sem ter um
ofício, muitos procuraram os quilombos,
domínio público
14
Raízes Africanas
Memória
15
domínio público
domínio público
Recife, capital de
Pernambuco, de
Johann Moritz
Rugendas. Cerca 1820,
in Rugendas e o Brasil
domínio público
outros tantos se dirigiram aos povoados e cidades em busca de trabalho. Os que tinham alguma instrução conseguiam emprego em pequenos comércios. Mas para os que não tinham, a
busca se tornava mais difícil. Alguns tornaramse empregados domésticos ou em bares, para
fazer os serviços de limpeza, considerado indigno. O destino de quase todos foi a construção
civil e a periferia, em moradias improvisadas,
sem estrutura nem conforto, que foram se perpetuando ao longo do tempo. Anos mais tarde,
com a chegada dos imigrantes, também pobres
e sem ter onde morar, muitos se juntaram aos
negros nas periferias das grandes cidades.
Nos quilombos, pequenas comunidades estabelecidas, umas mais, outras menos organizadas, os negros livres precisavam encontrar
maneiras de sobreviver. A criação de animais
como galinhas e porcos, a pequena produção
de hortaliças e frutas e o comércio nos povoados próximos, além do garimpo e do extrativismo, garantiam alimentação e sustento a todos.
Algumas das
denominações
atribuídas aos
povos africanos
vindos para o
Brasil
Angola
Benguela
Cabinda
Cassanje
Congo
Jêje
Mina
Nagô
Negro da Guiné
Negra tatuada
vendendo caju, Jean
baptiste Debret. 1827,
aquarela sobre papel
Photos.com
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Havia espaço também para o artesanato
e para as manifestações religiosas, que
misturavam os costumes africanos e a fé
aprendida com os portugueses.
Imagem de São
Benedito. Festa
do Encontro dos
Tambores Mineiros,
Belo Horizonte-MG
Arraiais e cidades foram surgindo à beira dos
caminhos mais usados no comércio, com a miscigenação entre brancos, negros e índios, povoando o interior do Brasil.
Em 2010, o Brasil completou 510
anos desde seu descobrimento. Os
negros chegaram apenas 50 anos
após os portugueses, e a partir
de então, o que criaram aqui é
considerado como brasileiro,
contribuindo para a formação de um povo, ainda que
sofrendo forte repressão
de seus costumes e crenças pelos colonizadores.
Os 122 anos decorridos
após a abolição talvez seja
muito pouco tempo para
modificar uma situação de
desigualdade, no entanto,
é preciso reconhecer que os
afrodescendentes possuem um
papel fundamental na composição da nação brasileira.
Ricardo Avelar
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Raízes Africanas
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Na tentativa de propiciar um melhor aprendizado sobre a bagagem cultural trazida por
eles, foi sancionada pelo Governo Federal a Lei
n° 11.645 no ano de 2008, que tornou obrigatório nos estabelecimentos de ensino fundamental
e médio, públicos e privados, o ensino de história da África e dos africanos. Isto pode trazer
muitos benefícios, uma vez que proporcionará
às futuras gerações conhecer melhor um continente formado por múltiplas sociedades, que
viveu processos históricos variados e que teve
boa parte da sua população escravizada pelos
europeus e transportada para as terras do Novo
Mundo. Além disso, ela poderá contribuir para
que a sociedade brasileira perceba a importância dos africanos e dos afrodescendentes para
a sua formação, o que promoverá o reconhecimento e o fortalecimento da cultura nacional de
uma maneira mais ampla e real pela população.
Os africanos, oriundos de povos distintos,
que rumaram para o Brasil, muito influenciaram
a língua, a alimentação, as músicas, as crenças, as
festas, os jogos, as religiões e as danças que hoje
se praticam em todas as regiões do país e que são
parte constitutiva da identidade nacional.
As religiões afro-brasileiras, por exemplo,
foram proibidas no passado, mais tarde toleradas e hoje são cada vez mais reconhecidas
como parte das crenças praticadas no Brasil,
ainda que os preconceitos contra elas sejam
muitos. O candomblé, que talvez seja a mais
famosa das religiões com influências oriundas da África, é praticado em diversos estados
como Bahia, Rio de Janeiro e Maranhão. Já as
umbandas, religiões afro-brasileiras de origem
banto, nas quais são cultuados ancestrais e espíritos da natureza, estão presentes nas estados
do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e
Goiás. Nos terreiros dessas duas religiões estão
presentes elementos da cultura africana na arquitetura, nos alimentos, nos ritos, na dança,
na música, dentre outros.
Memória
Desde 2008, a
história da África
e dos africanos
é ministrada nos
estabelecimentos
de ensino
fundamental e
médio do Brasil.
17
Ricardo Avelar
18
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
A música, além de ser central nos cultos religiosos, também é fundamental em muitas outras ocasiões de festas e danças, como as congadas, maracatus, reisados, frevos, boi-bumbá e capoeiras.
Esta é uma luta dançada em todo o território nacional e possui muitos elementos africanos, como
os instrumentos musicais, tambor e berimbau, a formação em roda, a ginga, os ritmos, as letras e
os passos. O samba, reconhecido mundialmente como parte da identidade brasileira, nasceu
nas casas de baianas que emigraram para o Rio de Janeiro a partir da segunda metade
do século XIX. Na cidade, a dança praticada pelos escravos incorporou outros
gêneros, como a polca, o maxixe, o lundu e o xote, adquirindo seu caráter
singular e contagiante. Inicialmente criminalizado e visto com preconceito,
conquistou adeptos de todas as classes sociais e espalhou-se pelo país sob
a forma de diversos ritmos e danças populares regionais.
Na contemporaneidade, a música que surgiu como uma das mais
fortes manifestações afro-brasileiras foi o rap. Nele, a força da musicalidade está presente em circuitos que unem os negros dos Estados
Unidos e do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro e de São
Paulo. Tanto os ritmos marcados e repetitivos, como a força
da palavra, e especialmente da palavra cantada, remetem a
características da sociedade africana. Esse estilo musical
apareceu em um momento em que a adoção dos valores
do mundo branco não era mais vista como necessária no caminho de ascensão social e em que as
raízes negras começaram a ser valorizadas
ao invés de negadas.
A Congada é
uma festa popular brasileira que mistura
elementos da cultura africana
com a religião católica, muito comemorada em Minas Gerais, Paraná e Goiás.
Raízes Africanas
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Para saber mais:
sxc.hu
Noutra esfera, temos a influência
na culinária brasileira, principalmente na Bahia. Aracajé, vatapá,
aluá e xinxim de galinha são alguns
pratos que têm receitas parecidas
com as feitas ainda hoje na África.
Além dos pratos, o inhame, o cará,
a noz-de-cola e a banana são alguns
dos alimentos da nossa dieta que
vieram daquele continente.
Olhar para nosso passado é
fundamental para compreendermos
nosso presente e planejarmos o futuro. A situação dos afrodescendentes
no Brasil hoje ainda é desigual, uma
vez que a formação de nossa nação
foi fundamentada na desigualdade.
Mas é imprescindível que lutemos
para que ela deixe de existir o mais
depressa possível. Conhecer nossas
raízes e conviver com as diferenças
que fazem do Brasil uma nação de
riqueza cultural incalculável é o primeiro passo rumo a um país mais
justo e que se torne referência em
igualdade racial.
Memória
COSTA E SILVA, Alberto. Um
rio chamado Atlântico: a África no
Brasil e o Brasil na África. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande
e Senzala: formação da família
brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 49 ed. São
Paulo: Global, 2004.
MENDONÇA, Renato. A
influência africana no português
do Brasil. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1935.
PAIVA, Eduardo França. Escravos
e libertos nas Minas Gerais
do século XVIII estratégias
de resistência através dos
testamentos. 3ed. São Paulo:
Annablume, 2009.
A banana é um dos
muitos alimentos
de origem africana
que incorporamos à
nossa dieta.
SILVA, Eduardo; REIS, João José.
Negociação e conflito: a resistência
negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
SOUZA, Marina de Mello e.
África e o Brasil Africano. 2 ed.
São Paulo: Ática, 2007.
“As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”
Nosso rico vocabulário talvez seja o melhor exemplo da
miscigenação entre europeus, indígenas e africanos. Ainda
que o português seja a base de nossa língua, incorporamos
a ele um sem número de palavras, expressões e significados oriundos do italiano, alemão, espanhol, do tupi, do
guarani e de tantas outras línguas e dialetos falados pelos
índios e sobretudo, pelos africanos que aqui se estabeleceram. Termos esses que fazem parte de nosso cotidiano,
como bagunça, cafuné, cochilo, dengo, farofa, enxerido,
moleque, maracutaia, perrengue, quitute, quitanda, neném,
sacana, tribufu, samba, dentre tantas outras. O português
do Brasil possui um ritmo próprio, um sotaque só seu e
que varia, inclusive, de região para região dentro do país,
influenciado pelos costumes dos habitantes do lugar.
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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Raízes Africanas
Memória
Morro Velho
Milton Nascimento
No sertão da minha terra, fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força, parece até que tudo aquilo ali é seu
Só poder sentar no morro e ver tudo verdinho, lindo a crescer
Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada
Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho
Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos
Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha, dá pro fundo ver
Orgulhoso camarada, conta histórias prá moçada
Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará
Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentar
Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha.
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Flávio Florido/Folhapress
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Milton Santos
Geógrafo, advogado, professor, escritor e
pensador: o garoto de origem humilde,
nascido no interior da Bahia, conquistou
o mundo e fez história.
Pesquisa e redação: Isabella Verdolin
Falecido em 2001, Milton Santos deixou uma
lacuna enorme no cenário nacional e internacional. Descrito por aqueles que desfrutaram
de sua companhia como sereno, de sorriso fácil e fala pausada, era um intelectual respeitado
no Brasil e no mundo. Seu modo de analisar a
dinâmica social e de escrever sobre a geografia
modificou para sempre o jeito de pensar esta ciência, inserindo o humano como causa e efeito
do momento presente. O que mais poderia ser
dito sobre este homem?
Em busca desta resposta, mergulhei em livros que ele mesmo escreveu, procurei instituições, fundações e museus e encontrei periódicos
com publicações de autores os mais diversos
falando sobre Milton Santos. Alguns, seus amigos de longa data. Outros, jovens que tiveram a
sorte de entrevistá-lo. E foi nesse emaranhado
Milton Santos
de narrativas que descobri, aos poucos, um homem maduro, centrado, que parecia gostar de
conceder entrevistas – pois as que li são longas e
envolvem o entrevistador no tema – e que falava
apaixonadamente sobre seu modo de compreender o mundo. A melhor forma que encontrei
para retratar Milton Santos foi escolher alguns
trechos de suas entrevistas para deixar que ele
mesmo se revele, partilhando a minha experiência de redescobri-lo.
As origens, o exílio e o retorno ao Brasil
Adalgisa Umbelina de Almeida Santos, filha de
professores primários, decidiu seguir a carreira
dos pais. Sua família gozava de prestígio e seu
irmão mais velho, Dr. Agenor, era advogado.
Em 1921, em Salvador, Adalgisa estava na Escola Normal quando conheceu Francisco Irineu
dos Santos, descendente de escravos prestes a
se formar professor primário. Ela ingressou na
Escola, formando-se em 1924, mesmo ano em
que casou-se com Francisco. O casal de professores mudou-se para Brotas de Macaúbas, na
Chapada Diamantina, onde Dr. Agenor exercia
suas atividades. Advogado respeitado, tinha
uma clientela importante, dominava o latim e o
grego. Foi ali, em 3 de maio de 1926 que nasceu
Milton Santos, o primeiro filho de Francisco e
Adalgisa. “Era uma família remediada, humilde
mas não pobre e que tentou me dar uma educação para ser um homem que pudesse conversar
com todo mundo. (...) Aos oito anos terminei o
meu primário em casa, nunca segui uma escola
primária. E, como para ir para o ginásio tinha
de esperar dois anos, meus pais ficaram me ensinando álgebra, francês e boas maneiras. Aos
dez, fui ser aluno interno num colégio na capital
da Bahia, (...) frequentado por uma classe média
média. Morei neste colégio dez anos, quando
terminei, continuei morando lá, ensinando, e fui
para a faculdade de Direito, da qual saí formado em 1948”1.
Autor de mais de 40 livros, Milton Santos
formou-se em Direito, mas a Geografia sempre
o atraiu. “Desde menino, a noção de movimento
me impressionava, ver as pessoas se movendo,
as mercadorias se movendo. A noção de movimento de idéias veio depois. (...) No ginásio, o
livro de texto era Geografia Humana, de Josué
de Castro. Era uma espécie de história contada
através do uso do planeta pelo homem. Aquilo
me impressionou. Eu tinha tido um professor
muito importante, Oswaldo Imbassay, então a
confluência de um professor importante, de um
livro importante, as explicações de mundo, de
como a sociedade se relacionava com o meio, a
teoria do possibilismo, determinismo, tudo isso a
gente aprendia no ginásio. Era ao mesmo tempo
um debate filosófico sobre o destino do homem,
a presença do homem na Terra e o seu destino, a
história do mundo se fazendo através da produção do espaço geográfico”2. Terminada a faculdade em Salvador, prestou concurso e foi lecionar Geografia Humana no Ginásio Municipal de
Ilhéus. A convite de Simões Filho, Milton Santos
passou a escrever para o jornal A Tarde, como
correspondente naquela região. Desde esta época, chamava a atenção para os riscos econômicos
da monocultura, o que levou à publicação de seu
primeiro livro: A Zona do Cacau. Foi em Ilhéus
que casou-se com Jandira Rocha, com quem alguns anos depois teve Milton Filho.
A família mudou-se para Salvador, onde
Milton continuou trabalhando no jornal e lecionando na Universidade Católica. Em 1956, foi
ao Rio de Janeiro para participar do Congresso
Internacional de Geografia e fez contato com
grandes geógrafos, que conhecia por suas obras.
Entre eles, estava Jean Tricart, que convidou
Milton Santos para fazer o Doutorado no Instituto de Geografia de Strasbourg, na França. De
volta ao Brasil, prestou concurso para lecionar
na Faculdade de Filosofia da Universidade da
Bahia. Devido ao seu posicionamento político,
com o Golpe Civil Militar em 1964, foi preso e,
mesmo na cadeia, recebeu diversas cartas e convites de universidades francesas para que fosse
lecionar naquele país. Com um princípio de derrame, foi levado ao hospital e, despedindo-se de
seu filho, amigos e parentes, já divorciado, partiu para a França.
Personalidade
1 e 2 Trecho editado da
entrevista concedida por
Milton Santos à revista
Caros Amigos nº17, de
agosto de 1998.
23
24
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
3 Trecho extraído do
texto “Biografia do
Milton Santos”, de Maria
Auxiliadora da Silva,
publicado em 09 de abril
de 2006. In: http://www.
fpabramo.org.br
Flávio Florido/Folhapress
4 Trecho editado da
entrevista concedida por
Milton Santos a José
Corrêa Leite e publicada na
revista Teoria e Debate nº
40, de fevereiro/março/abril
de 1999. In: http://www.
fpabramo.org.br
Ao retornar do exílio, as mudanças em sua
vida e sua obra eram muitas. Havia se casado com Marie Hélène Tiercelin em 1972, que
veio ter na Bahia, Rafael, o segundo filho de
Milton, em julho de 1977. “Marie Hélène foi
um marco em sua vida pessoal e intelectual.
Proporcionou-lhe, no ambiente de trabalho, a
paz, a tranquilidade e o equilíbrio necessários
ao seu mister de grande pensador. E, sendo
geógrafa, trocava com ele déias de trabalho,
além de ter feito as traduções de vários de seus
livros”3. “Pouco a pouco já vinha se dando,
na minha obra, uma separação das prisões do
empírico e a busca de uma construção mais
filosófica. Quando escrevi Por uma geografia
nova, vivia fora do país há muito tempo e a
partir de certo momento não conhecia mais
o Brasil, porque o país mudou muito depois
de 64, tanto em termos de materialidade
como de relações sociais. Então, a filosofia
era o único refúgio para mim, a única forma de continuar vivendo. (...) Passei quinze
anos trabalhando na preparação de A natu-
O professor de
geografia da USP,
Milton Santos, em sua
casa, São Paulo. 2000
reza do espaço, no qual queria mostrar que
a geografia também é uma filosofia. Eu tinha
uma inconformidade com a minha disciplina e com o que havia escrito antes sobre ela.
Empreendi então a fundamentação da idéia de
que a geografia é uma filosofia das técnicas. E
como tal, ela somente podia se tornar teórica
com a globalização, porque antes não havia
técnicas planetárias e a universalidade dos filósofos não havia se tornado empírica. (...) A
idéia de universalidade empírica só podia brotar da cabeça de um geógrafo, vendo como os
lugares se tornaram parecidos, na sua enorme
diferenciação, com a globalização. Mas o que
eles têm de parecido não são só os vidros fumês das grandes cidades. Essa psicosfera tem
uma base técnica, a produção, as condições de
vida das pessoas. Eu tive essa idéia da geografia como filosofia das técnicas há 35 anos. Mas
esta elaboração só podia se tornar concreta e
sistematizada num livro com a globalização.
Aí é visível a inseparabilidade do individual e
do universal, através do lugar e do mundo”4.
“Pensou o Professor Milton que sairia do país
por 6 meses. Acabou ficando 13 anos! Estes
tempos não foram de ‘exílio dourado’ na
França; ao contrário, foram anos de périplo
por diversos países. Sua caminhada começou
por Toulouse, passou por Bordeaux, por Paris,
onde lecionou na Sorbonne, sendo diretor
de pesquisas de planejamento urbano e
regional no Iedes, de 1968 a 1971, quando
seguiu para o Canadá, para a Universidade
de Toronto. Foi para os Estados Unidos
(EUA), convidado para ser pesquisador no
Massachusetts Institute of Technology (MIT),
onde trabalhou com o linguista e Professor
Noam Chomsky. Nesta época já escrevia
sua obra O Espaço Dividido. Depois
seguiu para a Venezuela, para ser diretor de
Milton Santos em 1996
pesquisa de planejamento da urbanização de
um programa da Organização das Nações
Unidas (ONU). Neste país manteve contato
com técnicos da Organização dos Estados
Americanos (OEA), que facilitaram sua
contratação pela Faculdade de Engenharia
de Lima, onde, também foi contratado pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT)
para elaborar um trabalho sobre pobreza
urbana na América Latina. Regressou a
Paris, mas foi chamado de volta à Venezuela,
onde lecionou na Faculdade de Economia da
Universidade Central. Seguiu posteriormente
para a África (Tanzânia), onde organizou a
pós-graduação em Geografia da Universidade
de Dar-es-Salaam lá permanecendo por
dois anos, em seguida, foi para Columbia
Personalidade
Moacyr Lopes Junior/Folhapress
Milton Santos
University de Nova Iorque. Ao regressar
dessa universidade, Milton Santos iria para a
Nigéria, mas recusou o convite para aceitar
um posto como Consultor de Planejamento
do estado de São Paulo. Foi então convidado
por duas professoras para trabalhar na
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), onde permaneceu até 1983. Depois,
foi contratado como Professor Titular pelo
Departamento de Geografia da Universidade
de São Paulo (USP), onde permaneceu,
mesmo após sua aposentadoria”.
Trecho editado da saudação do Prof. Audo Pavani proferida
em 11 de novembro de 1999, quando Milton Santos recebeu o título de Professor Honoris Causa na Universidade
de Brasília (UnB). In: http://www.abmes.org.br/miltonsantos/biografia/index.asp
25
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Milton Santos
A globalização ou o globaritarismo
“A globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista. Para entender esse processo, como qualquer
momento da história, há dois elementos fundamentais a levar em conta: o estado das técnicas e o
estado da política. Na realidade, nunca houve na
história humana separação entre as duas coisas.
(...) Chegamos ao fim do século XX e o homem,
por intermédio dos avanços da ciência, produz um
sistema de técnicas presidido pelas técnicas da informação. Elas passam a exercer um papel de elo
entre as demais, unindo-as e assegurando a presença planetária desse novo sistema técnico.
A globalização não é apenas a existência
desse novo sistema de técnicas. Ela é também
o resultado dos processos políticos que conhecemos. Com frequência ouvimos a pergunta:
‘mas não tem alguma coisa de bom na globalização?’ ou ‘será que é tudo ruim?’. A discussão não é essa. A discussão é: há um conjunto,
um sistema de técnicas baseado na ciência, e
há uma forma de utilizar esse sistema presidido
por essa mula-sem-cabeça chamada mercado
global. (...) Isso poderia ser diferente se seu uso
político fosse outro. E quando digo uso político, digo uso econômico e cultural, porque
neste fim de século tudo se tornou político; a
economia é feita a partir da política, a cultura é
base para a política e resulta da política. Esse é
o debate central, o único que nos permite ter a
esperança de utilizar o sistema técnico contemporâneo a partir de outro paradigma.
Eu chamo a globalização de globalitarismo,
porque estamos vivendo uma nova fase de totalitarismo. O sistema político utiliza os sistemas
técnicos contemporâneos para produzir a atual
globalização, conduzindo-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam
discussão, que exigem obediência imediata, sem
a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem dependentes, como se fossem escravos de
novo. Escravos de uma lógica sem a qual o sistema econômico não funciona. Que outra vez, por
isso mesmo, acaba sendo um sistema político.
Esse globalitarismo também se manifesta nas
próprias idéias que estão atrás de tudo. E, o que
é mais grave, atrás da própria produção e difusão das idéias, do ensino e da pesquisa. Todos
obedecem, de alguma maneira, aos parâmetros
estabelecidos. Se estes não são respeitados, os
transgressores são marginalizados, considerados residuais, desnecessários ou não-relevantes.
É o chamado pensamento único. Algumas vozes críticas podem se manifestar, uma ou duas
pessoas têm permissão para falar o que quiserem, para legitimar o discurso da democracia.
Só que a estrutura do processo de produção das
idéias se opõe e hostiliza essa produção de idéias
autônoma e, por conseguinte, de alternativas.
É uma forma de totalitarismo muito forte, insidiosa, porque se baseia em idéias que aparecem
como centrais à própria idéia da democracia –
liberdade de opinião, de imprensa, tolerância –
utilizadas exatamente para suprimir a possibilidade de conhecimento do que é o mundo, do
que são os países, os lugares. Eu chamo isso de
tirania da informação, que, associada à tirania
do dinheiro, resulta no globalitarismo.
O processo da globalização, tal como se dá
hoje, é centrífugo. Ele é produtor de uma fragmentação crescente em todos os níveis: os jovens contra os velhos, os funcionários públicos
contra os privados, uma região contra outra
etc. Temos uma multiplicação de fragmentações
que se acumulam. (...) A primeira reação da
população pobre, como qualquer outra, é a do
consumo também. Está brigando para ser cidadã, mas primeiro quer consumir. Isto é normal.
Depois é que se descobre que não basta consumir, ou que para consumir de forma permanente, progressiva e digna, é necessário ser cidadão.
Dizem com desdém: ‘o pobre quer televisão’
– e por que não? Na verdade, um mínimo de
consumo é condição indispensável para ser
cidadão. Agora, isso deve conduzir a outra
organização política do Estado, a outra arquitetura política. (...) A noção de democracia, de cidadania, tudo isto tem que ser revisto. Essa discussão de mudança do Estado,
sem discutir como o poder se exerce, é vazia.
Personalidade
27
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Nos venderam a idéia de que as empresas são
a economia e o Estado é o poder. Não é nada
disso, as firmas são o poder.(...) Mas se partirmos do território, é impossível excluir o homem, porque o território não exclui ninguém.
Estão o rico, o pobre, o negro, o branco, o
culto, o analfabeto, a grande empresa, o am-
bulante, todo mundo junto. Este existencialismo territorial pode oferecer análises úteis
para que o especialista da coisa política reelabore. Essa é a nova geografia que estamos
tentando instalar, que é mais complexa e mais
humilde também, porque parte das coisas
simples. Mas creio que pode ajudar”5.
Os impactos da globalização no Brasil
eram caipiras, ou tendiam a ser provincianas.
Hoje não, podemos ter todas as visões, mundial,
nacional, local, a partir do lugar. São condições
que o mundo da globalização oferece para essa
reforma política e que não eram possíveis antes.
São fenômenos como essa multiplicação de telefones, rádios, imprensa local, as dezenas de revistas que encontram clientela, seguidores”6.
“O Brasil é muito grande. (...) Mesmo a
globalização com a sua brutalidade não vai levar o país a mudar todo da mesma forma. As
mudanças serão mais lentas em certas áreas.
A globalização, de uma forma ou de outra, vai
exigir certa qualificação para o acesso ao trabalho
rentável. (...) Não é a mesma coisa em São Paulo,
Flávio Florido/Folhapress
28
Milton Santos em sua
casa. São Paulo, 2000
5 Trecho editado da
entrevista concedida por
Milton Santos a José
Corrêa Leite e publicada na
revista Teoria e Debate nº
40, de fevereiro/março/abril
de 1999. In: http://www.
fpabramo.org.br
6 Trecho editado da
entrevista concedida por
Milton Santos a José
Corrêa Leite e publicada na
revista Teoria e Debate nº
40, de fevereiro/março/abril
de 1999. In: http://www.
fpabramo.org.br
“Os lugares são feitos sobretudo pelos de baixo,
são eles que se comunicam nos lugares, são eles
que estão reclamando alimentação correta, saúde, educação para os filhos, lazer, informação e
consumo político – que é uma reclamação também não muito clara, mas que vai aparecer daqui
a pouco, a partir de uma base local. Uma nova
distribuição de atribuições, de recursos, a consideração dos novos direitos que a globalização
e suas técnicas levantam, uma nova idéia de democracia, tudo tem que ser retrabalhado a partir
de lugares. (...) Antes da globalização, nas fases
em que os lugares não se comunicavam, as visões
Milton Santos
Personalidade
Conheça a obra de Milton Santos
Livros publicados/organizados ou edições
La Naturaleza del Espacio.
Técnica y Tiempo. Razón y
Emócion. Barcelona: Ariel,
2000.
Por uma outra globalização.
Do pensamento único à
consciência universal. Rio de
Janeiro - São Paulo: Record,
2000.
Território e Soceidade,
entrevista a Odette Seabra,
Mônica de Carvalho, José
Corrêa Leite. São Paulo:
Editora Fundação Perseu
Abramo, 2000.
A Natureza do Espaço.
Técnica e Tempo. Razão e
Emoção (1996). 3. ed. São
Paulo: Hucitec, 1999.
Técnica, Espaço, Tempo:
Globalização e meio técnicocientífico informacional
(1994) . 4. ed. São Paulo:
Hucitec, 1998.
A urbanização brasileira
(1993). 4. ed. São Paulo:
Hucitec, 1998.
O Espaço do Cidadão
(1987). 4. ed. São Paulo:
Nobel, 1997.
La Nature de l’Espace.
Technique et Temp. Raison et
Émotion. Paris: L’Harmattan,
1997.
Metamorfoses do espaço
habitado (1988). 5. ed. São
Paulo: Hucitec, 1997.
O Trabalho do Geógrafo no
Terceiro Mundo (1978). 4.
ed. São Paulo: Hucitec / AGB,
1996.
Metamorfosis Del Espacio
Habitado. Barcelona:
Oikos Tau, 1996.
De La Totalidad Al Lugar.
Barcelona: Oikos Tau, 1996.
Novos Rumos da Geografia
Brasileira. 4. ed. São Paulo:
Hucitec, 1996.
Técnica, Espaço Tempo:
Globalização e Meio
Técnico-Cientifico
Informacional. 3. ed. São
Paulo: Hucitec, 1996.
Metamorfoses do Espaço
Habitado. 4. ed. São Paulo:
Hucitec, 1996.
Por Uma Geografia Nova
(1978) . 5. ed. São Paulo:
Hucitec, 1996.
Por uma economia política
da Cidade. São Paulo:
Hucitec, Ed. PUC-SP, 1994.
Espaco e Metodo (1985). 3.
ed. São Paulo: Nobel, 1992.
Pensando O Espaco do
Homem (1982). 3. ed. São
Paulo: Hucitec, 1991.
Por una geografia nueva.
Madrid: Espasa-Calpe, 1990.
Metrópole corporativa
fragmentada: o caso de São
Paulo. São Paulo: Nobel,
1990.
Espace et méthode. Paris:
Publisud, 1990.
Manual de geografia urbana
(1981). 2. ed. São Paulo:
Hucitec, 1989.
O Espaco do Cidadao. São
Paulo: Nobel, 1987.
Pour Une Geographie
Nouvelle (1985). 2. ed. Paris:
Editions Publisud, 1986.
Ensaios Sobre A Urbanizacao
Latino-Americana (1982). 2.
ed. São Paulo: Hucitec, 1986.
Espaco e Sociedade (1979).
2. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.
Croissance démographique
et consommation alimentaire
dans les pays sousdéveloppés. Paris: Centre de
Documentation, 1967.
A urbanização desigual
(1980). 2. ed. Petrópolis:
Editora Vozes, 1982.
A Cidade Nos Paises Subdesenvolvidos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965.
The shared space: the two
circuits of the urban economy
and its spatial repercussions.
Londres: Methuen, 1979.
Marianne em Preto e
Branco. Salvador: Livraria
Progresso, 1960.
Espacio y Metodo. Barcelona:
Universidad de Barcelona,
1986.
A pobreza urbana (1978). 2.
ed. São Paulo: Hucitec-UFPE,
1979.
A cidade como centro de
região. Salvador: Imprensa
Oficial, 1959.
Economia Espacial: Criticas
e Alternativas.São Paulo:
Hucitec, 1978.
A rede urbana do recôncavo.
Salvador: Imprensa Oficial,
1959.
O espaço dividido. Rio de
Janeiro: Lvraria Ed. Francisco
Alves, 1978.
O centro da cidade de
Salvador. Salvador: Editora
Progresso, 1959.
L’espace partagé. Paris:
Editions Librairies Techniques,
M. Th. Génin, 1975.
TRICART, J. . Estudos de
Geografia da Bahia. Salvador:
Livraria Progresso, Ed., 1958.
Geografia Y Economia
Urbanas En Los Paises
Subdesarollados. Barcelona:
Oikos-Tau, 1973.
JACOBINA, D. . Localização
industrial - Estudos e
Problemas da Bahia.
Salvador: E. mimeografada da
CPE nº 3, 1958.
Undervelopment and
poverty: a geographer’s view.
Toronto: The latin american
in residence lectures, 1972.
Le métier du géographe en
pays sous-développés. Paris:
E. Oprhys, 1971.
Les villes du Tiers Monde.
Paris: E. Génin, 1971. v. 10.
Dix essais sur les villes des
pays sous-développés. Paris:
Ed. Ophrys, 1970.
Aspects de la géographie et
de l’économie urbaine des
pays sous-développés. Paris:
Centre de Documentation
Universitaire, 1969.
Zona do cacau. Introdução
ao estudo geográfico (1955).
2. ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1957.
Estudos sobre geografia.
Salvador: Tipografia Manú,
1953.
Os estudos regionais e o
futuro da geografia. Salvador:
Imprensa Oficial da Bahia,
1953.
O povoamento da Bahia:
suas causas econômicas.
Salvador: Imprensa Oficial da
Bahia, 1948.
29
30
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
7 Trecho editado da
entrevista concedida por
Milton Santos à revista
Caros Amigos nº17, de
agosto de 1998.
8 Trecho da matéria
“Milton Santos: geografia e
cidadania”, escrita por José
Maria Mayrink, publicada
no Caderno Homem de
Idéias 1998 do Jornal do
Brasil, de 26 de dezembro
de 1998.
no Nordeste ou no Norte, onde a mobilidade dos homens e das coisas é menor.
Num território fluido, não adianta entregar ao
pobre produção, ele não tem comando sobre
o resto, sobre a circulação e a comercialização.
(...) Os políticos não fazem política, o aparelho
de Estado não faz política, são porta-vozes. O
povo faz política, os pobres é que fazem política. Porque conversam e, conversando, defrontam o mundo e buscam interpretar o mundo.
E agem, quando podem, em função do mundo.
A organização é importante e a desorganização
também. As periferias refletem isso. (...) Mas
não estamos preparados para entender porque
queremos repetir a interpretação do Brasil a
partir do que aprendemos na Europa e nos Estados Unidos com a classe média, porque pobres
não havia. Na Europa em que essa geração [de
políticos e intelectuais] estudou quase não tinha
pobre, e a classe média era defensora da democracia e do seu aperfeiçoamento. Tanto que
houve a expansão da social-democracia. (...) E
os pobres são tratados por nós, que aprendemos
epistemologia européia na universidade, como
o chantilly no bolo. Fazemos a construção toda
baseada na classe média e depois colocamos o
pobre em cima, porque resta aquela idéia de
que os primeiros queriam defender os princípios fundamentais da humanidade e os pobres,
coitados, não têm nenhuma possibilidade se ser
visionários, porque estão no dia-a-dia, ‘vivendo
da mão para a boca’. O dia-a-dia era considerado pela antropologia e sociologia oficiais como
algo que impedia qualquer vocação para o futuro. Quando é exatamente o contrário, porque
quando tenho todos os dias que renovar meu
estoque de impressões, de conhecimentos, de
luta – que é o que o povo faz – sou obrigado a
renovar também minha produção filosófica. Todos os dias o povo se renova e, num país como o
Brasil, com essa urbanização tão galopante, tão
rápida, essa mudança de lugar tem um papel extraordinário na produção desse outro homem”7.
Fazendo história
Ao longo de sua obra, Milton Santos fez mais do
que propor conceitos e explicá-los: ele mudou o
jeito de pensar a geografia, acrescentando espírito crítico e influenciando várias gerações de
professores e estudantes. Ao privilegiar o estudo do então chamado Terceiro Mundo, inverteu
a ordem vigente da filosofia e de outras ciências,
que compreendem o mundo à partir do Hemisfério Norte e das nações mais desenvolvidas. O
convite do intelectual brasileiro com seus argumentos bem fundamentados é que os países da
parte de baixo do globo terrestre têm e terão
papel crucial à partir da globalização, não sendo mais possível pensar o mundo sem levar em
conta as economias, as políticas, o espaço e as
pessoas que ali habitam. O espaço deixou de
ser apenas algo estanque e adquiriu dimensões
de tempo e técnica, razão e emoção, tonando-se
um espaço social, em que sua análise não poderia mais ser feita sem considerar o homem e a
maneira como ele se relaciona com o lugar.
Milton Santos escreveu mais de 40 livros, publicou mais de 300 artigos em revistas científicas,
muitos deles traduzidos para o francês, espanhol e
inglês e recebeu dezenas de títulos e homenagens
em todo o mundo, incluindo 13 títulos de Doutor
Honoris Causa. “De todas as homenagens que recebeu, a mais importante foi o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud, que tem na França,
para sua área, uma honraria equivalente ao Prêmio Nobel de Geografia, da Suécia”8.
Milton Santos
Personalidade
Ser negro no Brasil
Ao terminar os estudos no internato, Milton Santos era um aluno forte em matemática. “Mas
havia uma notícia generalizada de que a Escola Politécnica não tinha muito gosto em acolher
negros, então fui aconselhado fortemente pela família a estudar direito. (...) Na realidade, alguns negros conseguiram entrar, mas havia a crença na sociedade baiana, na sociedade negra
em particular, de que os obstáculos na Politécnica eram maiores. (...) A questão do negro já
está tendo maior importância na minha maturidade do que na minha juventude, e terá muito
mais, porque os negros não vão para lugar nenhum! E com a globalização nós seremos ainda
menos atendidos. (...) No Brasil os negros vão deixar de ter a posição que têm hoje, pois
ainda sorriem, e vão começar a ranger os dentes. O que é preciso é que os negros queiram
ser a nação brasileira. Não tem de imitar americano, nem querer ser africano. Porque quando
quero ser africano – ou africano brasileiro, acabo sendo menos político. (...) Quando olho para
trás, para a evolução do movimento negro no Brasil, há um crescendo, tanto na velocidade
quanto na intensidade. (...) O fato de que os negros tenham ido para a faculdade é importante – descobrem também que não vão conseguir emprego. Ou os que conseguem são de menor remuneração.(...) Mas está havendo uma tomada de consciência do fato de ser relegado.
Porque os negros não fazem parte da nação brasileira. Pessoalmente é minha experiência.
(...) Na cabeça dos outros, quando se é negro, é evidente que não se pode ser outra coisa, só
excepcionalmente não se será o pobre, não será humilhado. Porque a questão central é a humilhação cotidiana. Ninguém escapa, não importa que fique rico. E daí o medo, que também
tenho de circular, de entrar num restaurante e alguém olhar torto porque sou negro”.
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Trecho editado da entrevista concedida por Milton Santos à revista Caros Amigos nº17, de agosto de 1998.
Para saber mais sobre a formação e atuação de
Milton Santos, acesse seu currículo na Plataforma Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4798868Z6
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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Tradição, alegria e fé
festas populares e tradicionais brasileiras
Pesquisa: Marina Camisasca
Redação: Isabella Verdolin e Marina Camisasca
Entrevistas: Rogério Dias
Fotografias: Ricardo Avelar
Tradição, alegria e fé
Cultura
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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Do encontro de europeus, indígenas e africanos nasceu o povo brasileiro, que ao longo
dos anos construiu sua cultura costurando
costumes e tradições herdados de seus ancestrais. A religiosidade e o gosto pelos festejos
são características presentes desde o início da
colonização e a miscigenação trouxe múltiplas maneiras de vivenciá-los. Nos dias atuais, as festas populares assumem coloridos
diferentes, sons os mais diversos e sabores
próprios, mas ao olharmos de perto, guardam
entre si uma identidade que remete às origens
de nossa gente, daquilo que nos torna brasileiros. Talvez a mais difundida seja a Festa do
Divino. De origem cristã, é realizada 50 dias
após a Páscoa, comemorando Pentecostes. Seus
primeiros registros no Brasil datam do século
XVIII e seu objetivo é anunciar a chegada de
uma nova era para o mundo dos homens, com
igualdade, prosperidade e abundância para todos. Um dos momentos marcantes é o “tempo
alegre”, em que crianças ou adultos são coroados como imperadores do Divino, numa inversão simbólica da ordem social. As Cavalhadas,
simulando as batalhas entre mouros e cristãos,
ainda fazem parte da festa em diversos pontos
do país. A pomba branca, símbolo do Divino
Espírito Santo, é conduzida em estandartes,
bandeiras e ornamenta as roupas, ruas e casas
nas cidades em que os festejos ocorrem.
Mesclando a cultura negra com a religião católica, o Congado chegou ao Brasil junto com os
escravos trazidos do Congo e foi sofrendo adaptações. Inspirado numa manifestação de agradecimento do povo aos governantes daquele país
africano, a religiosidade passou a ser a grande
motivadora em terras brasílicas. Diz a tradição
que uma imagem de Nossa Senhora do Rosário
apareceu no mar e que apesar das missas, novenas e orações, não aceitou ser resgatada pelos
brancos, só retornando à terra pelas mãos dos
negros, numa mensagem clara de proteção, para
por fim ao sofrimento dos escravos. O Congado é uma dança, acompanhada de um cortejo
compassado e levantamento de mastros e músicas que louvam a santos. A comunidade incorpora os personagens de reis, rainhas, coroados, portas-bandeiras, juízes, capitães-regentes,
alferes, dançantes, acompanhantes, cantadores,
caixeiros que, juntos, formam uma guarda.
Tradição, alegria e fé
Cultura
Congado de pai pra filho
Neuza de Assis, Guarda de Moçambique do Sagrado
Coração de Jesus, na cidade de Belo Horizonte, diz que
sempre participou com seu pai e seu avô e que seus
filhos foram criados dentro do Congado. “Herdei a tradição com meu bisavô.Toda a minha família foi criada
dentro dessa tradição do congado e estamos criando os
mais jovens dentro do mesmo sistema, pois achamos
que é importante para a formação. Graças a Deus a
Festa do Reinado de Nossa Senhora do Rosário tem
uma aceitação muito boa. É um orgulho para um pai
e para uma mãe ver um filho fardado, saindo de casa
para dançar reinado”.
Participante de Congado nessa mesma cidade, o Capitão regente do Moçambique do Divino Espírito Santo,
Rodrigo Lúcio do Espírito Santo afirma que o congadeiro não se faz, ele nasce. “Não existe congadeiro de
livro ou de faculdade. Eu posso dizer que eu já dançava congado desde a gravidez da minha mãe, continuo
dançando e o meu filho segue o mesmo caminho”.
Em Oliveira (MG), o congadeiro mais antigo da
Guarda de Moçambique de Nossa Senhora das
Mercês, Antônio Eustáquio dos Santos se sente
orgulhoso de pertencer ao grupo, que completou
60 anos: “Tivemos a alegria de participar do
ano do Brasil na França em 2004. Dançamos às
margens do Rio Sena e ficamos muito honrados,
por sermos de famílias humildes, filhos, netos e
bisnetos de *cativeiros (escravos). Hoje temos a
oportunidade e a liberdade de louvar Maria em
todos os cantos deste nosso mundo, em qualquer
rua ou qualquer praça. Estou completando 64
anos de vida e participo desde os cinco anos de
idade e me orgulho deste aprendizado.Tenho
4 filhos, mas eles não participam do Congado.
Meus sobrinhos e afilhados é que me acompanham na Guarda”.
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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Tradição, alegria e fé
Cultura
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domínio público
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Altar da Adoração dos Reis Magos, de
Gentile da Fabriano, 1420-23. Têmpera
sobre madeira, Uffizi, Florença
Os reis são os representantes da tradição, da espiritualidade. O capitão-regente comanda a música e a dança. Em média, cada guarda de
Congo possui mais de 40 componentes e cada uma delas se distingue
por seu ritmo, coreografias e instrumentos de corda e de percussão,
como viola, adufe, caixas, tambores e maracás. Inicialmente restrito à
comunidade negra, ao longo do tempo todos aqueles que se sentiam
a margem da sociedade uniram-se na devoção a Nossa Senhora do
Rosário e aos festejos. O Congado espalhou-se e é mais frequente nos
estados de Minas Gerais, Paraná e Goiás, entre outros.
A Folia de Reis tem origem portuguesa. No entanto, em Portugal tinha
como principal finalidade divertir o povo, enquanto no Brasil passou a
ter um caráter mais religioso do que de diversão, e está presente em quase
todas as regiões do país. No período de 24 de dezembro a 06 de janeiro,
Dia de Reis, grupos de cantadores, instrumentistas, dançarinos, palhaços
e outras figuras folclóricas devidamente caracterizadas segundo as lendas
e tradições locais, percorrem as cidades entoando versos relativos à visita
dos reis magos ao menino Jesus. Todos se organizam sob a liderança do
Capitão da Folia e seguem com reverência os passos da Bandeira, estandarte de madeira ornado com motivos religiosos, a qual atribuem espe-
Tradição, alegria e fé
cial respeito. Com sanfona, reco-reco,
caixa, pandeiro, chocalho, violão e outros instrumentos seguem noite adentro
em longas caminhadas. As canções são
sempre sobre temas religiosos, com exceção daquelas tocadas nas tradicionais
paradas para jantares, almoços ou
repouso dos foliões, quando ocorrem animadas festas com cantorias e danças típicas regionais,
como catira, moda de viola e
cateretê. Contudo, ao contrário dos Reis da tradição, o
propósito da folia não é o de
levar presentes, mas sim de
recebê-los. Eles vão de porta
em porta em busca de oferendas que podem variar de
comidas a bebidas ou até
mesmo esmolas.
Cultura
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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
O maracatu, inicialmente praticado apenas
em Pernambuco, espalhou-se para outros estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e
Minas Gerais. Atualmente está presente até em
outros países, como Alemanha, Inglaterra, Rússia, Canadá e França. Os mais conhecidos grupos foram criados por afrodescendentes que se
utilizaram de heranças e costumes variados. São
eles que mantêm a tradição de forma bastante
dinâmica, num complexo processo de fazer e
refazer, resultado de constantes adaptações e recriações de práticas antigas, não sendo possível
determinar onde nem como começaram.
Em Recife, capital de Pernambuco, a denominação maracatu servia para denominar um ajuntamento de negros. Assim, os cortejos das nações
em homenagem aos Reis do Congo, que aconteciam no carnaval, também ganharam esta deno-
minação. Os maracatus já enfrentaram momentos
delicados ao longo de sua história, sobretudo nas
décadas de 1960 e 1970, quando não havia mais
que cinco grupos, em contraste aos quase trinta
hoje existentes. O ressurgimento ocorreu nos anos
1980, momento em que os grupos Elefante, Sol
Nascente e Estrela Brilhante retornaram ao carnaval de Recife, após alguns anos sem desfilar.
Os maracatus se dividem em duas modalidades, o nação e o rural, também conhecido
como de baque solto ou de orquestra, que se
distinguem principalmente pelos conjuntos musicais. Enquanto o nação é acompanhado por
uma orquestra percussiva em que sobressaem as
alfaias, o rural é constituído de uma orquestra
denominada terno, composta de poica, espécie
de cuíca, tambor, gonguê de duas campânulas,
caixa e instrumentos de sopro.
sxc.hu
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Tradição, alegria e fé
Cultura
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Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
A diversidade cultural e dos festejos mostra que ao longo do tempo
nosso modo de vivenciar a religiosidade e alegria foi sendo modificado. Seja pela modernidade, pelo
crescimento desordenado, pela
interiorização do Brasil, pela evolução natural, pela educação, pelas
mudanças dos costumes, entre tantos outros fatores, o que se destaca
é o dinamismo da nossa cultura. As
festas tradicionais brasileiras foram adaptando-se de região para
região, assumindo sotaques e jeitos diferentes, mas são todas elas
parte daquilo que nos identifica
enquanto uma só nação.
Festa do Divino. Belo Horizonte, MG
Tradição, alegria e fé
Cultura
Janduari Simões/Folhapress
O tambor de crioula: tradição do Maranhão
O tambor de crioula é uma dança popular que incorpora alguns elementos católicos e outros da religiosidade
afro-brasileira. Frequentemente é realizado como forma de pagamento de promessas a São Benedito, santo negro, e a outros protetores católicos ou entidades
cultuadas nos terreiros. Nessas ocasiões as mulheres
carregam nos braços ou na cabeça a imagem do santo de devoção. Mas, normamelmente, a dança é puro
divertimento. Ela foi trazida pelos escravos vindos de
diversas regiões da África como Angola, Congo e Costa
da Mina para as terras maranhenses entre os séculos
XVIII e XIX. O isolamento geográfico do Grão Pará e
Maranhão, desde os tempos coloniais, resultou em características peculiares do tambor de crioula. O ponto
forte é a umbigada, momento em que as coreiras, dançarinas, se encontram, fazem saudações aos brincantes e chamam uma substituta para entrar na roda. Os
homens têm a função de comandar os toques e puxar
os cantos. Não existe um dia determinado no calendário para a dança, que pode ser apresentada, preferencialmente, ao ar livre, em qualquer época do ano.
Atualmente, o tambor de crioula é dançado com maior
frequência no carnaval e durante as festas juninas.
Apresentação de
tambor de crioula em
Alcântara (MA), em
homenagem à São
Benedito. 2006
Para saber mais:
FIGUEIREDO, Luciano
(org.). Festas e batuques no Brasil. Rio de
Janeiro: Sabin, 2009.
LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da
Diáspora Africana.
São Paulo: Selo Negro
Edições, 2004.
PRIORI, Mary Del.
Festas e utopias no
Brasil colonial. São
Paulo: Brasiliense,
1994.
TINHORÃO, José
Ramos. Os sons negros
no Brasil. Cantosdanças- folguedos:
origens. São Paulo: Art
Editora, 1988.
SOUZA, Marina de Mello
e. Reis negros no Brasil
escravista: história da festa
de coroação de Rei Congo.
Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.
43
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
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44
Ações afirmativas
no Brasil
um aprendizado social, um desafio jurídico, um convite à reflexão
Sarita Amaro é Assistente Social pela Puc-RS, Mestre e Doutora em Serviço Social na mesma
Universidade. Atua como Assistente Socialna Secretaria de Educação do Governo do Estado do
Rio Grande do Sul e como Conselheira do Governo Federal junto ao CNCD. Atuou como docente
universitária na área do Serviço Social, tendo sido coordenadora de curso entre 1999 e 2003,
dentre muitas outras atividades ligadas à educação. Possui oito livros publicados, além de
inúmeros artigos. Recebeu 20 prêmios e/ou homenagens, com destaque para o Prêmio
Educação - Troféu Pena Libertária, do Sinpro-RS, em 2005. Desde 2006 é designada
avaliadora de cursos e IES pelo INEP/MEC.
Ações Afirmativas no Brasil
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Se a cidadania é um aprendizado social, o
que dizer do processo de revisão cultural e
política que as ações afirmativas impõem às
relações sociais? Criadas para corrigir e reparar situações que integram um processo
histórico de exclusões por racismo contra os
afrodescendentes no Brasil, as políticas de
ações afirmativas são dispositivos estratégicos de inclusão social, fundados no principio
da discriminação positiva. No âmbito nacional já há uma agenda que articula ações afirmativas em resposta às necessidades e prioridades das populações afrodescendentes. Isso,
contudo, não significa um ambiente político
pacífico. A oposição às cotas na universidade
é apenas uma dessas manifestações. De fato,
o problema do racismo e das ações afirmativas no Brasil reflete um histórico conflito de
Opinião
45
interesses entre sociedade e individuo: de um
lado a sociedade banaliza sua importância e,
de outro, o sujeito afrodescendente constrange-se diante dos obstáculos em qualificar a
denúncia e lutar por seus direitos de igualdade. O judiciário tem um papel fundamental
nas mediações dessa cidadania afirmativa.
Mas como pode guiar-se para potencializar
sua contribuição à sociedade? Considerando
as limitações desse espaço, apresentaremos
algumas reflexões, a seguir.
Reconhecer o racismo em suas velhas e
novas manifestações
As violências raciais do século passado foram tonalizadas pela exclusão no acesso a
estabelecimentos, por ataques físicos de civis
brancos contra negros e pela violência policial. No atual século XXI, com as leis vigentes e o Programa Nacional de Ações Afirmativas, recentemente acrescido do Estatuto da
Igualdade Racial, a violência racial ganhou
contornos mais dissimulados, mas nem por
isso menos devastadores e implacáveis1.
1 Debatemos isso no nosso
livro “Negros, identidade,
exclusão e direitos no
Brasil. Porto Alegre:
Tche,1988.
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Se de um lado os negros “seguem aparecendo
associados a despreparo, pobreza, carência
cultural, feiúra, baixos recursos intelectuais,
acomodação e inadaptação; também se evidencia um disseminado desconforto com os
negros/as que ascendem por invadirem um ter-
ritório que o branco/a considera seu.”2 Essas
novas configurações requisitam um judiciário
mais contundente em sua negativa aos velhos
argumentos da democracia racial e mais crítico
diante dos simulacros racistas que encobrem
estratégias deliberadamente segregacionistas.
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46
Opinião
Ações Afirmativas no Brasil
Considerar a tipificação do racismo
numa perspectiva multidimensional e
multicausal
Compor decisões judiciais balizadas
pelas ações afirmativas, numa perspectiva de complexidade
A tipificação do racismo, no geral, é materializada em testemunhos das vítimas e de outras
pessoas que comprovem a “factualidade” dessa violência. Contudo, o racismo, diante de sua
complexidade, nem sempre pode ser comprovado em testemunhos e, não raramente, isso
acaba desmobilizando muitas vítimas de seguir
com a queixa e buscar seus direitos. Temos
defendido que tanto os operadores de Direito
como o Judiciário devem (re)aprender a buscar
a comprovação do racismo em outras formas de
registro. Laudos periciais são alguns deles. Os
laudos tendem a revelar a correlação fenomenal
entre a discriminação racial e várias situações
como o rebaixamento salarial ou funcional, o
desemprego, a perseguição cultural-religiosa, as
adjetivações estigmatizantes imputadas aos negros, assim como o desenvolvimento de patologias acionadas pelo trauma, tais como: fobias,
pânico, cardiopatias e disfunções neurológicas.
Esses e outros condicionantes precisam ser identificados, interfaceados/confrontados e considerados como prova judicial.
Decisões judiciais, numa perspectiva complexa e afirmativa, poderiam conjugar aspectos
morais e materiais, por meio da aplicação
de retratações morais públicas (em jornais
dentro da abrangência espacial em que o
prejuízo do racismo foi mais marcante), associadas a reparações materiais por meio do
pagamento de numerários, preferencialmente
expressivos (para impactar na educação antiracista) ou de restituições de bens/territórios
(como os devidos a muitas comunidades quilombolas). A decisão judicial pode ainda sinalizar que as instituições e políticas sociais
existentes disponibilizem apoio social4, psicológico ou médico-psiquiátrico para vítimas
de violência racial (discriminação racial, injúria ou ofensa de caráter racial), durante um
tempo específico, enquanto durar o processo
ou após seu arquivamento.
Apoiar a identificação étnico-racial por
meio da auto-atribuição de pertença
O judiciário segue recebendo processos que
lançam dúvidas sobre a negritude de certos
cidadãos, em geral quando o assunto é cotas,
seja nas universidades, seja no acesso a postos
de trabalho. Basicamente, as questões gravitam
em torno da “cor” do sujeito que se reconhece
“afrodescendente”. Mas como em tudo que temos orientado nesse artigo, nesse caso também
a complexidade deve ser o nosso guia. A reconhecida miscigenação racial praticada no Brasil (aliás, entre várias etnias) deve estar na lente
do judiciário ao se pautar o pertencimento étnico; considerando, por exemplo, a genealogia
familiar3; sem ater-se à valorização apenas do
aspecto fenotípico.
47
2 Bento, Maria
Aparecida. In: Racismos
Contemporâneos. Ashoka
(org). RJ: Takano Ed, 2003.
105-106, passim.
3 E quando dizemos isso
nos referimos não apenas
a famílias afrodescententes
(biológicas), mas também
àquelas derivadas de
adoções, mesmo que
miscigenadas – sendo as
crianças negras adotadas
e os pais adotantes (se
brancos) os alvos principais.
4 Sobre isso sugerimos ver
nosso artigo “A questão
racial na assistência social:
um debate emergente”.
In: Revista Serviço Social
e Sociedade, nº 81, Ano
XXVI, 2005. P 58-81.
Essas são apenas algumas reflexões.
Acreditamos que quanto mais
avançarmos na publicização,
criminalização e reparação do
racismo brasileiro, holística e
progressivamente, estaremos
compondo novos parâmetros de
socialidade, efetivamente fundados
na equidade racial.
E essa conquista não será apenas
dos afrodescendentes, mas da
sociedade brasileira como um todo.
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Brancos e Negros
no Ensino Superior
Delcele Mascarenhas Queiroz é Professora Adjunta da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), doutora em Educação e pesquisadora associada ao Programa Cor da Bahia/UFBA.
*Artigo originalmente publicado no livro Afirmando Direitos: acesso e permanência de jovens negros na
universidade, de Nilma L. Gomes e Aracy A. Martins (organizadoras). Ed. Autêntica, 2ª edição, 2006.
Ações Afirmativas no Brasil
O Brasil vem de uma longa história de negação das desigualdades raciais em que, apesar das profundas distâncias entre brancos e
negros, as representações sobre as relações
raciais estiveram influenciadas pela ideia de
“democracia racial”. Essa auto-imagem tem
dificultado a emergência de uma visão crítica sobre a realidade das relações raciais no
país. Apenas agora, depois de enorme luta
das organizações negras, o Estado brasileiro
começa a conhecer a situação diferenciada de
negros e brancos e a consequente necessidade
de medidas de combate ao racismo e à desigualdade racial.
No entanto, a adoção de tais medidas
tem encontrado barreiras consideráveis. Ao
lado de fortes relações vindas de setores da
sociedade, a carência de informações, em
certas áreas, constitui-se num poderoso
obstáculo. No ensino superior, por exemplo, embora as universidades públicas coletem, anualmente, uma gama considerável
de dados sobre a população estudantil que
demanda seus cursos, até bem pouco tempo, era completamente desconhecido o perfil racial dessa população.
Foi com essa preocupação que, na década
passada, indagamos sobre o que se passava
com os negros no interior da universidade.
Até essa época, havia hipóteses sobre a baixa
representatividade do negro no ensino superior, mas não havia sido desenvolvido nenhum estudo que desse conta dessa realidade. A partir de 1997, iniciamos um trabalho
de investigação que, num primeiro momento,
examinou a participação dos negros na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, posteriormente, procurou verificar a situação em
outras universidades do país. Esse estudo
foi realizado nas universidades federais do
Maranhão, Rio de Janeiro, Paraná e Brasília. O estudo mostrou uma situação bastante
parecida entre essas universidades, deixando
a ideia de que se pode afirmar, com alguma
segurança, que essa é a situação nas demais
universidades federais brasileiras.
A pesquisa realizada na UFBA, sobre a
participação de estudantes dos diversos segmentos raciais, talvez seja o primeiro esforço
visando revelar o perfil racial da população
universitária brasileira. Essa investigação levantou informações sobre os estudantes que
ingressaram na universidade naquele ano.
Nesse levantamento, uma proporção de
cerca de 50% dos estudantes se declararam
brancos, aproximadamente 34% pardos e
8% pretos. Isso significa que, agregando pretos e pardos na categoria negros, estes correspondiam a cerca de 42% dos estudantes
que ingressaram na UFBA naquele ano. Esses
resultados, revelando uma distância de apenas oito pontos percentuais entre brancos e
negros na universidade, poderiam parecer
animadores, considerando-se a histórica trajetória de desvantagens dos últimos, não fossem eles cerca de 80% da população baiana,
e os brancos apenas 20% desta. Além disso, o estudo mostrava ainda que os negros
presentes na universidade frequentavam, em
geral, os cursos de menor valorização social,
e, em muitos destes, eles eram minoritários.
Estavam entre os estudantes negros a maioria
dos que tinham frequentado a escola média
em condições mais precárias: a maioria dos
que haviam estudados em escolas públicas,
em turno noturno, que tinham associado estudo e trabalho na sua trajetória escolar; a
maioria daqueles cujos pais eram portadores
de instrução elementar e estavam em ocupações manuais. A pesquisa indicou, dessa forma, que, em que pese a expressiva presença
dos negros no conjunto da população baiana,
eles não estavam se beneficiando, na mesma
medida que o contingente branco, do acesso
à universidade.
A constatação desses resultados instigou
indagações sobre o que se passava em outras
universidades federais brasileiras. Em colaboração com a UFMA, a UnB, a UFRJ e a
UFPR, se decidiu, em 2000, promover um estudo que permitisse comparar realidades de
diversas universidades federais.
Opinião
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50
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Cor e participação
As informações da pesquisa foram coletadas
através de um questionário que indagava sobre
as condições socioeconômicas do estudante, aspectos de sua escolarização anterior, da escolarização e ocupação dos pais e solicitava que o estudante autodeclarasse sua cor ou raça, segundo
duas modalidades de autoclassificação. No primeiro momento, o questionário apresentava uma
questão aberta que permitia ao estudante usar o
termo que desejasse para definir a própria cor ou
raça. No segundo momento, lhe foi apresentada
uma pergunta fechada, em que as opções de resposta eram os termos raciais de uso do IBGE, a
saber: branca, parda, preta, amarela e indígena.
A comparação mostrou uma grande similaridade no modo como se distribuem os segmentos
raciais, evidenciando que a universidade brasileira é predominantemente branco. Excetuando-se
a Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
os brancos representam sempre mais da metade
dos estudantes nas universidades investigadas; e,
ainda aí, eles são o contingente mais significativo. O maior contingente relativo de estudantes
brancos está na Universidade Federal do Paraná
(UFPR), o que não surpreende, uma vez que, dos
Estados contemplados pela pesquisa, o Paraná é
o de maior população branca. Em seguida estão
a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
e a Universidade de Brasília (UnB). A Universidade Federal do Maranhão e Universidade Federal
da Bahia, Estados de maioria negra, são aquelas
que apresentam os menores contingentes relativos de estudantes brancos.
Distribuição percentual dos estudantes segundo a
cor e a universidade*
Cor
UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB
* Foram respondidos
12.278 questionários nas
cinco universidades, assim
distribuídos: UFRJ 4.056;
UFPR 3.499; UFMA 907;
UnB 528; UFBA 3.288.
Branca
76,8
86,5
47,0
50,8
63,7
Parda
17,1
7,7
32,4
34,6
29,8
Preta
3,2
0,9
10,4
8,0
2,5
Amarela
1,6
4,1
5,9
3,0
2,9
Indígena
1,3
0,8
4,3
3,6
1,1
Total
100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
fonte: pesquisa direta
A comparação entre a participação dos segmentos negro e branco no conjunto da população e sua participação na universidade, em cada
Estado, revelou significativas distâncias, indicando o privilégio dos brancos que estão sobrerepresentados na universidade.
Participação dos negros no conjunto da população
do Estado e sua presença na universidade
Estado
População Universidade População
Rio de
38,2
UFRJ
20,3
Janeiro
Paraná
22,4
UFPR
8,6
Maranhão
75,1
UFMA
42,8
Bahia
77,5
UFBA
42,6
Distrito
Federal
53,6
UnB
32,3
fonte: IBGE/pesquisa direta
Participação dos brancos no conjunto da população
do Estado e sua presença na universidade
Estado
População Universidade População
Rio de
61,7
UFRJ
76,8
Janeiro
Paraná
76,2
UFPR
86,5
Maranhão
24,8
UFMA
47,0
Bahia
22,1
UFBA
50,8
Distrito
Federal
45,9
UnB
63,7
fonte: IBGE/pesquisa direta
A história escolar do estudante
Em quase todas as universidades, as maiores
concentrações de estudantes provenientes de
escolas privadas estão entre os brancos. Essas proporções são especialmente elevadas na
UFBA e na UFMA. Entre os pretos estão, em
geral, os menores percentuais de estudantes
oriundos desse tipo de escola. Com exceção da
UFPR, nas universidades investigadas, a proporção de estudantes oriundos de escolas provadas está em torno de dois terços. Essas escolas revelam-se espaços bastante seletivos para
pobres e negros.
Distribuição dos estudantes oriundos de escola
privada de nível médio, segundo a cor
Cor
UFRJ
UFPR
UFMA
UFBA
UnB
Branca
73,7
62,3
74,5
78,6
68,2
Parda
57,9
50,8
66,3
56,4
63,3
Preta
44,6
41,9
60,4
47,0
53,8
Amarela
70,3
71,0
68,6
72,4
53,3
Indígena
63,5
42,3
63,2
76,5
40,0
Total
69,9
61,4
69,4
68,4
65,7
fonte: pesquisa direta
Na UFPR está a melhor situação dos estudantes vindos de escolas públicas; eles representam quase dois quintos dos que aí ingressaram.
Também na UnB eles estão bem representados,
mesmo entre os estudantes brancos. Isso talvez
se explique por uma melhor qualidade do sistema público de educação nesses Estados. Em
quase todas as universidades, está entre os pretos a maior proporção dos que vieram desse
tipo de escola. Entre os pardos é também bastante representativo o segmento oriundo da escola pública. Esse dado é bastante eloquente ao
apontar para a importância da escola pública
para a população negra, mostrando a urgência
de políticas voltadas para a melhoria da qualidade do ensino básico público, como forma
de atacar as desigualdades raciais existentes no
Brasil, sobretudo em universidades do Nordeste, onde se concentram significativas parcelas da
população negra.
Distribuição dos estudantes oriundos da escola
pública de nível médio, segundo a cor
Cor
UFRJ
UFPR
UFMA UFBA
UnB
Branca
24,9
37,7
24,5
17,2
30,9
Parda
39,9
49,2
33,0
36,9
34,0
Preta
53,1
58,1
38,5
44,0
46,2
Amarela
28,1
29,0
29,4
20,4
46,7
Indígena
32,7
57,7
36,8
18,3
40,0
Total
28,5
38,6
29,7
26,4
32,7
fonte: pesquisa direta
Photos.com
Brancos eAções
Negros
Afirmativas
no Ensino no
Superior
Brasil
Opinião
51
52
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Em elevadas proporções, e em todos os
segmentos raciais, os estudantes que frequentam as universidades públicas federais
fizeram seu curso médio no turno diurno;
a maior proporção está na UnB e a menor
na UFPR. Na maioria das universidades, os
pretos são o segmento cujos estudantes, em
menores proporções, frequentaram escolas
nesse turno, o que aponta para a desvantagem desse segmento.
Distribuição dos estudantes oriundos de escola de
nível médio no turno diurno, segundo a cor
Cor
UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB
Branca
87,4 77,4 91,3
89,5 95,5
Parda
79,5 65,6 91,2
79,6 95,4
Preta
73,8 61,3 91,1
76,7 92,3
Amarela
78,1 81,9 85,7
86,7 100,0
Indígena
84,6 76,9
84,2
89,6 66,7
Total
85,4 76,5
90,6
85,0 95,2
Distribuição dos estudantes que trabalharam durante os níveis fundamental e médio, segundo a cor
Cor
UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB
Branca
0,9
3,9
0,5
1,3
3,3
Parda
2,0
6,6
3,3
3,2
Preta
3,1
12,9
1,1
6,2
Amarela
3,1
1,5
1,9
1,0
Indígena
3,8
15,4
1,9
2,6
16,7
Total
1,2
4,2
0,7
2,4
3,2
fonte: pesquisa direta
Cor e prestígio do curso frequentado
Coerentemente com os aspectos anteriormente analisados, na população branca, é
pouco expressiva a parcela dos que associaram trabalho e estudo na sua trajetória pela
escola básica. Entretanto, entre os pretos
estão as mais elevadas proporções dos que
assim procederam. Na UFPR encontra-se a
maior proporção dos estudantes que trabalharam durantes os estudos de nível médio.
Nas demais universidades, esse contingente é
pouco significativo. Entre os pretos estão, em
geral, as maiores participações; na UFPR e na
UFRJ estão as mais elevadas.
Uma das medidas do prestígio dos cursos superiores, adotadas nesse estudo, teve como referência a pesquisa sobre o valor das profissões
no mercado de trabalho da Região Metropolitana de Salvador (RMS). A pesquisa baseou-se
numa coleta de informações realizada em empresas de consultoria em RH, que atuam no
mercado de trabalho da RMS, tomando como
referência o elenco de cursos oferecido pela
UFBA, e que resultou numa escala de prestígio das profissões de cinco posições, a saber:
Alto, Médio alto, Médio, Médio baixo e Baixo1. Essa escala de prestígio respaldou a análise das desigualdades entre os segmentos raciais
no acesso aos cursos.
Na maioria das universidades o segmento
branco é aquele que, frequentemente, apresenta a mais elevada concentração de estudantes
em cursos de Alto prestígio. No Paraná, esse
privilégio cabe aos amarelos e, na UFRJ, são
os que se declararam indígenas os mais bem
posicionados.
Distribuição dos estudantes que trabalharam durante o nível médio, segundo a cor
Cor
UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB
Branca
12,3 25,7 11,6
10,8 12,0
Parda
18,7 32,7 17,3
15,8 11,5
Preta
26,4 25,8 26,1
18,1 15,4
Amarela 18,8 16,9 15,4
13,3 13,3
Indígena 13,5 34,6 15,4
10,4
Total
13,9 26,0 15,7
13,2 11,8
Distribuição dos estudantes em cursos de Alto prestígio segundo a cor
Cor
UFRJ
UFPR UFMA UFBA UnB
Branca
35,1
37,9
26,3
44,2
23,0
Parda
24,6
31,9
21,9
29,9
19,5
Preta
19,6
17,9
16,2
20,8
Amarela 30,9
47,1
19,1
26,7
14,3
Indígena 37,2
13,5
25,0
26,7
16,7
Total
32,8
37,5
23,4
36,3
21,1
fonte: pesquisa direta
fonte: pesquisa direta
fonte: pesquisa direta
Photos.com
Brancos eAções
Negros
Afirmativas
no Ensino no
Superior
Brasil
Considerações finais
Assim, o estudo apontou expressivas desigualdades entre os segmentos raciais no ensino superior, indicando que a universidade brasileira é
um espaço de predomínio de brancos. Em quase
todas as universidades os brancos representaram
proporções superiores à metade dos estudantes. Constatou-se uma sobre-representação dos
brancos e uma sub-representação dos negros na
universidade, mesmo dos Estados em que estes
são a maioria expressiva da população, como a
Bahia e o Maranhão.
A pesquisa mostrou que, em significativas
proporções, os estudantes das universidades federais vieram de escolas privadas, de funcionamento diurno, frequentaram cursos de caráter
propedêutico e não trabalharam durante sua
trajetória escolar básica. No entanto, os pretos
e pardos têm, frequentemente, fraca representação nesse grupo.
A pesquisa evidenciou ainda uma forte seletividade racial no acesso a cursos de elevado
prestígio social, mostrando que é, também, predominantemente dos brancos esse privilégio.
Os resultados do estudo apresentam as universidades federais investigadas como espaços fortemente seletivos, particularmente marcados pela
desigualdade racial. Embora tenha ficado evidente
a posição de desvantagem em eu se encontram os
estudantes negros, é oportuno lembrar que se está
diante de um segmento da população negra já bastante selecionado, porque bem sucedido na disputa por uma oportunidade da universidade pública
brasileira, mas pouco representativo do conjunto
de estudantes negros brasileiros.
Essas evidências concorrem para dar visibilidade a uma realidade que tem estado silenciada
ao longo da história pós-escravista, contribuindo
para manter a população negra nos níveis mais
precários da escala social e para dissimular as práticas racistas vigentes da sociedade brasileira.
Opinião
53
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54
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Políticas afirmativas:
por que o Brasil
precisa delas?
Pesquisa, entrevistas e redação: Isabella Verdolin
Desde que algumas universidades anunciaram que reservariam parte de
suas vagas para estudantes negros e indígenas, o Brasil assiste a um acalorado debate entre os que são contra ou a favor das cotas. Mas, ser contra
ou a favor é mesmo relevante? Afinal, de onde surgiu esta ideia? E por que
o Brasil decidiu colocar em prática as cotas nas universidades?
Especial
Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas?
de, as cotas para ingresso nas universidades
causaram uma enorme polêmica e dividiram opiniões. Afinal, porque o assunto desperta tantas “paixões”? Se olharmos para o
passado, talvez encontremos algumas pistas.
Negros procurando
diamantes, Thomas
Kelly, 1815.
O Brasil foi uma das colônias que mais
recebeu mão de obra escrava vinda da
África (além de escravizar os índios) e a
última a abolir a escravatura.
Photos.com
Para responder estas e muitas outras questões suscitadas pelo tema, é necessário, primeiramente, a compreensão acerca das ações
afirmativas. Ações afirmativas são programas
e medidas especiais adotados pelo Estado e
pela iniciativa privada para a correção das
desigualdades raciais e para a promoção da
igualdade de oportunidades, com o objetivo
de reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas públicas e privadas, durante o
processo de formação social do país, em todos
os setores (educação, saúde, esporte, trabalho,
moradia, entre outros).
“No âmbito do Direito, as políticas e ações afirmativas estão fundamentadas no princípio da Isonomia
ou Igualdade descrito no Artigo 5º
da Constituição Federal de 1988”,
explica João Ricardo dos Santos
Costa, Presidente da Associação
dos Juízes do Rio Grande do Sul –
AJURIS. “É também uma forma de
aplicar o princípio de discriminação
positiva, para que diferenças históricas - culturais, sociais, econômicas
- possam ser diminuídas a partir de
outra condição de partida social. O
transporte coletivo para os portadores de necessidades especiais é uma
ação afirmativa, por exemplo, assim
como assentos preferenciais para
grávidas, idosos, obesos”, completa
Sarita Terezinha Alves Amaro, Dra.
em Assistência Social e Assistente
Social da Secretaria de Educação
do Rio Grande do Sul. Neste sentido, as cotas para estudantes negros
e indígenas são apenas mais uma
iniciativa de reparação histórica às
populações que sofreram tratamento desigual no desenvolvimento do
Brasil enquanto nação.
Mas, ao contrário de ações como
os ônibus adaptados, vistos como
um grande avanço pela socieda-
55
Revista
evista de
de Cultura
CulturaeeDireitos
DireitosHumanos
Humanosdada
AMB
AMB
Photos.com
56
Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas?
mésticas não remuneradas. Este fato acabou, de
certa forma, estigmatizando o lugar da mulher
negra no mercado de trabalho”, afirmam Luiz
Alberto Oliveira Gonçalves e Petronilha Beatriz
Gonçalves e Silva, no artigo Movimento negro
e educação (Revista Brasileira de Educação Set/
Out/Nov/Dez 2000 Nº 15).
Em todo o século XX, mesmo com organizações que defendiam os direitos dos negros
e combatiam o racismo, a crença de que a
miscigenação brasileira não distinguia brancos, negros e índios ganhou força e passou a
permear as políticas públicas de toda ordem.
Com a educação, não foi diferente. Se não
há racismo no Brasil, não há porque desenvolver políticas educacionais que resguardem
grupos étnicos e se comprometam a diminuir
desigualdades. De acordo com esse raciocínio
– de clara inspiração européia – o acesso à
educação, sobretudo a de nível superior, seria apenas uma questão de mérito do aluno.
Constituição Cidadã:
Direitos e Garantias Fundamentais
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade.” (Capítulo
I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos)
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
(Capítulo II - Dos Direitos
Sociais)
Photos.com
A partir da Lei Áurea, em 1888, os negros libertos não receberam qualquer apoio do Estado e ainda sofreram restrições para ter acesso
ao estudo. “A herança do passado escravista,
no início do século XX, marca profundamente
as experiências da população negra no que se
refere à educação. Naquele momento as crianças negras estavam afastadas dos bancos escolares. Desde a tenra idade eram levadas a atividades remuneradas, para auxiliar na manutenção
da família. Sua formação para o trabalho era
feita sob a orientação dos patrões, no desempenho das mais variadas tarefas. A escolarização,
entre os homens negros nascidos no início do
século XX, quando ocorreu, foi, em sua maioria, na idade adulta. Já as mulheres eram encaminhadas a orfanatos, onde recebiam preparo
para trabalhar como empregada doméstica ou
como costureira. Famílias abastadas as adotavam, quando adolescentes, como filhas de criação, o que de fato significava empregadas do-
Especial
57
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Photos.com
58
Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas?
Especial
59
A partir da Constituição de 1988, saúde, educação, moradia e tantos outros itens descritos no Artigo 6º do Capítulo II, tornaram-se uma questão de direito dos cidadãos.
“O mérito é uma construção social e acadêmica. O discurso
do mérito acadêmico, que tem sido formulado por alguns
como algo isento e objetivo, distancia-nos do debate sobre
o direito à educação. Será que é justo continuar pensando
que todos têm direito à educação, desde que a ela façam
mérito?” A questão, levantada por Nilma Lino Rodrigues
no I Seminário Nacional Ações Afirmativas na UFMG, é um
bom ponto de partida para compreendermos a participação
brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata realizada em Durban, na África do Sul,
em setembro de 2001.
Fazendo um cruzamento entre a pertença
racial e os indicadores econômicos de renda,
emprego, escolaridade, classe social, idade, situação
familiar e religião (usando como base dados do IBGE,
IPEA e outras instituições de mesma respeitabilidade),
ao longo de mais de 70 anos, desde 1929, Ricardo
Henriques* chega à conclusão de que, no Brasil, a
condição racial constitui um fator de privilégio para
brancos e de exclusão e desvantagem para os não
brancos. Algumas cifras assustam:
- Do total de universitários brasileiros, 97% são brancos, 2% negros e 1% descendentes de orientais.
- Dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da
linha da pobreza, 70% deles são negros.
- Dos 53 milhões de brasileiros que vivem na
pobreza, 63% deles são negros.
* Texto para discussão nº 807. Desigualdade
racial no Brasil: evolução das condições de
vida na década de 90. IPEA, julho de 2001.
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Os dados da exclusão
60
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
No Relatório do Comitê Nacional para
Reparação da Participação Brasileira, apresentado em Durban e publicado pelo Ministério
da Justiça em 2001, nosso país se comprometeu com propostas em benefício da comunidade negra, a saber: “a adoção de medidas
reparatórias às vítimas do racismo, da discriminação racial e de formas conexas de intolerância, por meio de políticas públicas específicas para a superação da desigualdade.
Tais medidas reparatórias, fundamentadas
nas regras de discriminação positiva prescrita
na Constituição de 1988, deverão contemplar
medidas legislativas e administrativas destinadas a garantir a regulamentação dos direitos de igualdade racial previstos nessa mesma
Constituição, com especial ênfase nas áreas de
educação, trabalho, titulação de terras e estabelecimentos de uma política agrícola e de desenvolvimento das comunidades remanescentes de quilombos, adoção de cotas ou outras
medidas afirmativas que promovam o acesso
de negros às universidades públicas”. Com o
Brasil sendo signatário desta Conferência e de
outros tratados internacionais de Direitos Humanos, não se trata mais de ser contra ou a
favor das cotas. “No âmbito do Direito, as políticas afirmativas, incluindo as cotas, consistem num compromisso assumido pelo Estado
brasileiro perante a comunidade internacional.
Se não cumpri-las, o Brasil está sujeito a sanções internacionais”, esclarece João Ricardo.
A educação é a chave de tudo
Partindo do pressuposto de que o desconhecido amedronta, talvez a melhor maneira de
desmistificar qualquer assunto seja a educação. No caso das políticas e ações afirmativas,
não seria diferente. Tanto é que, desde 1988,
a Constituição estabeleceu que o ensino da
história do Brasil, a partir de então, deveria
abarcar as contribuições das diferentes culturas e etnias que formaram o povo brasileiro.
Na conferência de Durban, em 2001, o plano
de ação aprovado pelo Brasil reafirmou não
só a necessidade desta implementação como
o igual acesso à educação para todos na Lei e
na prática. Em 2003, a Lei nº 10.639 alterou
a Lei nº 9.394/96 – que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional – incluindo no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura AfroBrasileira. Esta ação visa modificar a formação dos alunos, mas ainda há pela frente um
trabalho de capacitação dos educadores e professores. “O desafio é enorme”, afirma Sarita,
“pois é preciso mudar a maneira de pensar. A
sociedade pensa o ‘novo versus velho’ há séculos, buscando o unívoco, a afirmação de si
no outro. As pessoas precisam romper com o
jeito ‘de sempre’ de pensar e criar espaço para
as diferenças. Só assim será possível começar
a pensar de modo includente, enxergando e
convivendo com a diversidade”.
José Roberto Camargo de Souza, o Zezão,
membro do Conselho Nacional de Combate
à Discriminação (CNCD) da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
e do Instituto Casa da Cultura Afro-Brasileira
(ICCAB), vai além e afirma que ações afirmativas “vão proporcionar um grande e melhor desenvolvimento, não só à população vulnerável,
mas ao país como um todo, pois uma população
com nível de escolaridade mais alto, que possa disputar cargos, se aperfeiçoar, ter acesso a
tecnologia, vai conceder a todos a possibilidade
de crescimento. Não é uma política só para os
negros, é uma política para o Brasil”. Correlacionando a questão do acesso ao estudo com a
situação no mercado de trabalho nos dias atuais, Zezão chama a atenção para “o crescimento
tecnológico que o Brasil vive na atualidade. Alguns setores produtivos já não encontram profissionais qualificados no mercado para atender
à demanda. Se não investirmos no aumento do
nível educacional da população, muito em breve
teremos uma escassez severa de mão de obra. A
inclusão da maior parcela populacional na educação superior vai beneficiar a todos os elos da
cadeia produtiva e não só aos negros e indígenas, como querem fazer crer algumas pessoas”.
Photos.com
Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas?
Desafios na escola
Zezão usa como exemplo a sua vivência como estudante para explicar
o tipo de revolução que o ensino da história e cultura africanas pretende
realizar. “Eu tinha vergonha de ir à escola, estudava a história da Europa e da Ásia, com suas grandes invenções, reis e rainhas e o máximo
que ouvia falar da África era que fornecia escravos que vinham para cá
sofrerem humilhações de todo tipo. Assim como eu, muitas crianças negras sentem vergonha e não se interessam pela escola em função disso.
Ensinar as várias histórias da formação do povo brasileiro é fundamental
e precisa ser muito bem trabalhado com os professores e educadores.
Assim eles formarão cidadãos melhores, que entendam e aprendam a
conviver com as diferenças desde a escola. Isso será ensinado a todos os
alunos, negros, indígenas e brancos”.
Especial
61
62
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Mudança de postura
Os compromissos assumidos em Durban conduzem necessariamente à constatação de que o mito da democracia
racial brasileira está desfeito. Existe
racismo no Brasil e não é mais possível negar esta realidade. Talvez as reações inflamadas contrárias às cotas,
ainda que disfarçadas de argumentos racionais, sejam um bom exemplo de como
o racismo é praticado no Brasil do século XXI. Muito mais que uma reparação
após mais de 300 anos de escravidão e
da cobrança de um direito constitucional
oferecido pelo estado, como a educação,
as cotas que garantem o acesso aos estudantes negros e indígenas nas universidades púbicas cumprem outros papéis. Um
deles é o de conferir uma nova dinâmica
à instituição universitária, enriquecendo a
produção de saberes e levando a uma reflexão sobre a excessiva influência européia
na tradição universitária brasileira. Mas a
contribuição de maior relevância, segundo
José Jorge de Carvalho, é “a intensificação
da luta anti-racista no Brasil. Propor cotas
é abrir a discussão, até agora silenciada,
sobre a sociedade racista em que vivemos;
reconhecer que essas práticas racistas estão
presentes também no nosso ambiente acadêmico é forçar uma tomada de posição
por parte de todos nós para reverter esse
quadro e construir as bases para um ambiente universitário livre de práticas racistas e discriminatórias”. Para Sarita Amaro, na atual conjuntura cultural e social
do Brasil, as políticas afirmativas, como
as cotas, “são necessárias para modificar
a situação das populações historicamente
excluídas desde já. Isto não pode e não
deve mais ser adiado. Espero que consigamos avançar bastante, para num futuro
próximo, podermos abrir mão delas, pois
teremos uma sociedade mais igualitária no
sentido de conviver com as diferenças”.
Políticas Afirmativas: por que o Brasil precisa delas?
As cotas não são as únicas
políticas afirmativas em
prática no Brasil
Além da introdução da história e da
cultura africanas no ensino Fundamental,
Médio e Superior – que prepara as novas
gerações para conviver com as diferenças,
há em andamento outras ações afirmativas, não só na área educacional, como
também na área da saúde. Ainda assim,
é a questão das cotas nas universidades
que continua despertando maior atenção.
No artigo intitulado “Um ponto de vista
em defesa das cotas”, Kabengele Munanga analisa cada um dos argumentos
contrários a implantação dessa política
afirmativa e ressalta a importância de
ações coordenadas: “A cota obrigatória se
confirma, pela experiência vivida nos países que a praticaram, como uma garantia
de acesso e permanência nos espaços e
setores da sociedade até hoje majoritariamente reservados à ‘casta’ branca. O
uso desse instrumento seria transitório,
esperando o processo de amadurecimento
da sociedade na construção de sua democracia e plena cidadania. Paralelamente às
cotas, outros caminhos a curto, médio e
longo prazos, projetados em metas, poderiam ser criados e incrementados”.
Para saber mais:
Photos.com
Afirmando Direitos – Acesso
e permanência de jovens
negros na universidade. Nilma
Lino Gomes e Aracy Alves
Martins (org.). 2ª edição. Belo
Horizonte, 2006. Ed. Autêntica.
África-Brasil-África:
matrizes, heranças e
diálogos contemporâneos.
Iris Maria da Costa Amâncio
(org.). Belo Horizonte, 2008.
Ed. Puc Minas e Ed. Nandyala.
Especial
63
Ricardo Avelar
64
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Transformando
o mundo através
da música
Pesquisa: Marina Camisasca
Redação e Entrevistas: Isabella Verdolin,
Juliana Braga e Marina Camisasca
Fotografias: Arquivo FolhaPress,
Arquivo dos entrevistados.
“O ser humano precisa de um elemento para se
libertar dos seus preconceitos, das suas angústias, das suas decepções e esse elemento pode ser
a música, seja ela qual for. Eu entendo a música
como um elemento libertador da pessoa”. Com
essas palavras o Diretor Cultural do Olodum,
Nelson Mendes, procurou retratar a importân-
cia da música, que atualmente é utilizada como
ferramenta por grupos diversos, em várias partes do país, com o objetivo de promover transformações sociais.
Na Cidade de Deus, uma das comunidades
mais violentas do Rio de Janeiro, Alex Pereira
Barbosa, nacionalmente conhecido como MV
Bill, fez da música sua ferramenta de luta contras
as diferenças sociais e hoje está à frente da Central Única de Favelas (Cufa). Criada em 1999,
a Cufa nasceu a partir de reuniões entre vários
jovens ligados ao hip hop. “No início, era apenas
uma maneira de juntar os ‘manos’, mas por fim
Transformando o mundo através da música
foi a alternativa para sair do lugar comum de denúncias e construir novas alternativas, caminhos
e futuro”, lembra MV Bill. Através de uma linguagem própria, a Cufa difunde a conscientização das camadas desprivilegiadas da população
com oficinas de capacitação profissional, entre
outras atividades, que elevam a autoestima das
periferias, oferecendo-lhes novas perspectivas.
Também no Rio de Janeiro, o Grupo AgroReggae se utiliza de oficinas de percussão, dança,
circo e teatro para tentar mudar a realidade de
áreas marginais da cidade. Em 1993, a comunidade de Vigário Geral foi cenário do massacre
de 21 pessoas inocentes, por um grupo de extermínio que invadiu casas e assassinou moradores.
Esse episódio foi o ponto de partida para o início
do trabalho de um pequeno grupo, que depois se
expandiu para outras quatro comunidades: Parada de Lucas, Morro do Cantalago, Complexo
do Alemão e Nova Era, essa última localizada na
cidade de Nova Friburgo. De acordo com o coordenador executivo José Júnior, o foco do trabalho é sempre o mesmo, “atuamos aproximando
as pessoas da cultura e promovendo desenvolvimento econômico e social”.
Em Salvador, foi criado em 1979 por moradores do bairro Pelourinho, o bloco afro
Olodum, que tinha por objetivo representar os
habitantes do bairro no carnaval e também produzir ações sociais durante todo o ano. Nesse
período, o Pelourinho era uma área extremamente degradada, marcada pela miséria e violência. Os casarões do século XVIII estavam em
ruínas e eram utilizados como residências, que
abrigavam cada uma delas, cerca de dez a quinze famílias. “Havia a necessidade de uma intervenção do ponto de vista humano, porque havia
uma população marginal de prostitutas, pessoas
que lidavam com drogas, havia tráfico e tudo
mais”, explica Nelson Mendes. Foi a partir de
aulas de percussão e também da exibição de filmes, palestras e debates, que o Olodum iniciou
seu trabalho no Pelourinho, com o intuito de
combater qualquer tipo de discriminação, principalmente a racial, e tentar inserir essa população majoritariamente negra no convívio social.
Entrelinhas
65
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
cufa.org.br
Todos esses projetos vêm a educação como
a chave mestra para resgatar a cidadania dessas
populações marginalizadas. Para promover essa
mudança a Cufa tem investido na formação dos
jovens e oferece, em todo o país, cursos e oficinas
de DJ, break, graffiti, informática, gastronomia,
basquete, skate, capoeira, cinema, literatura, teatro, dentre outras. “Isso tem feito a diferença. É
necessário mostrar a eles que podemos construir
coisas tão nobres quanto as que conseguimos admirar. O importante é que essas manifestações
são construções nossas. Essa é a grande diferença
para a diminuição da exclusão”, diz MV Bill.
Cufa
Criada em 1999, com sede no Rio de
Janeiro (RJ) já se expandiu para outros 25
Estados brasileiros, além do Distrito Federal. Tem no rapper MV Bill um dos seus
fundadores, que, em 2004, recebeu da
UNESCO o prêmio de um dos dez maiores militantes no mundo na última década.
Além dele, a Cufa conta com Nega Gizza,
uma forte referência feminina no mundo
do Rap, conhecida e respeitada por seu
empenho e dedicação às causas sociais e
muitas outras pessoas envolvidas com a
música e com o desenvolvimento social.
Participantes do Projeto Pixaim,
na Cufa de Mato Grosso
Um desses cursos desenvolvido pela Cufa e
que ocorre no Distrito Federal, é o Cine Periferia Criativa, que além de propiciar que as pessoas de regiões pobres possam assistir a filmes,
também oferece a oportunidade para que elas
aprendam a criar, produzir, dirigir, roteirizar,
filmar, enfim, de serem autores da própria história e assumirem as câmeras. Com isso, o curso
pretende democratizar o acesso à produção audiovisual e incentivar a participação de produções nacionais como estratégia para espalhar a
cultura cinematográfica, promovendo diversão
e discussão.
cufa.org.br
66
Entrelinhas
67
Lula Marques/Folhapress
Transformando o mundo através da música
O Olodum também aposta na formação e
desde 1984, por meio da Escola Olodum, trabalha com o objetivo de explorar o potencial
criativo e empreendedor dos jovens, a partir
de experiências de vida, ritmo e interesses
próprios, com vista à formação de valores sociais e morais, que possibilitem a convivência
de todos os segmentos sociais. A escola oferece cursos de percussão, dança afro, canto, empreendedorismo cultural, informática cultural
e formação de lideranças para crianças e adolescentes de 07 a 18 anos. Esse último curso
é obrigatório para todos os que estão matriculados na escola e tem por objetivo educar
os jovens para a cidadania. Lá os professores
trabalham com a valorização da autoestima
e da identidade étnica dos alunos. Mas a escola não trabalha exclusivamente com alunos
negros, apesar de esses comporem a maior
parte da população mais pobre de Salvador,
“No Olodum o critério para a escolha dos
jovens é social e não racial. Nós entendemos
que se nós trabalhamos contra o preconceito racial nós não podemos ter uma atitude
racista”, conta Nelson. A preocupação é desenvolver, sobretudo, a cidadania dos jovens
e incluí-los na sociedade através das artes,
basicamente da música e da cultura africana.
Músicos do Olodum
tocam no Pelourinho,
em Salvador (BA),
após a classificação
da seleção brasileira
para a decisão da
Copa. 2002
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Olodum
Grupo criado em 1979 com sede
em Salvador (BA), na rua Gregário
Bezerra nº 22, bairro Pelourinho. A
experiência do Olodum tem servido
de estímulo para o surgimento
de iniciativas similares, como o
Grupo Unidos dos Quilombos, em
Sergipe; Meninos do Morumbi,
Régua e Compasso e Arte no
Dique, em São Paulo e Sons de
Cidadania, em Brasília. O Olodum levou sua música para
35 países e já gravou um
DVD, onze CDs no Brasil,
4 no exterior, e tem mais
de 5 milhões de cópias
vendidas.
Danilo Bonfim
Rodrigues, 9 anos, toca
repique na banda mirim
do Olodum em ensaio
para o Carnaval de
Salvador, Bahia. 2001
Xando Pereira/Folhapress
68
Transformando o mundo através da música
triculados em escolas públicas de qualquer
região de Salvador. No entanto, “a procura
é tão grande que é preciso selecionar os alunos, já que a escola só consegue atender a
300 jovens”, afirma o secretário escolar Antonio de Jesus.
O AfroReggae também trabalha por meio
do viés educacional e já ajudou a mudar a vida
de diversas pessoas. A história do carioca Vitor
Onofre ilustra o poder de transformação do grupo: “Comecei na oficina de percussão. Fui componente de Trupe de Saúde, projeto para conscientizar a população sobre o risco das DSTs e
Aids. Depois me tornei assessor desse projeto
e hoje sou coordenador do AfroReggae aqui
em Vigário Geral”, conta. Apesar de histórias
como as de Onofre serem comuns, o coordenador executivo José Júnior é comedido ao falar
sobre o impacto que as atividades do grupo tiveram na população. “Não sei se ajudou as pessoas a superarem o trauma da chacina, mas foi um
diferencial para mostrar que Vigário Geral não
era só tráfico, violência e crime”. Para Júnior,
além de poder oferecer um caminho diferente a
tantas pessoas que antes só vivenciavam a violência, o AfroReggae pode se orgulhar de ter,
69
Moacyr Lopes Júnior/Folhapress
“Originalmente a Escola Olodum foi criada
para atender aos filhos dos percussionistas
que viam os pais tocando e também queriam
tocar”, lembra Nelson. Mas com o passar
dos anos ela foi se expandindo e hoje atende
aos jovens de baixa renda, regularmente ma-
Entrelinhas
Integrantes do bloco
Olodum Mirim desfilam
no Campo Grande, em
Salvador, onde Caetano
Veloso e Margareth
Menezes fizeram um
show para comemorar
os 450 anos da capital
baiana. 1999
70
Rony Maltz/Folhapress
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
Multidão na festa
de inauguração do
Centro Cultural Waly
Salomão, na favela
de Vigário Geral, na
zona norte do Rio de
Janeiro (RJ). Evento
atraiu multidão de
moradores para
shows gratuítos de
Gilberto Gil, Caetano
Veloso e AfroReggae.
A obra custou mais
de R$ 6 milhões e
será sede de uma
ONG. 2010
como se diz nas favelas, construído uma ponte
entre morro e asfalto. “Tocamos em temas que
eram verdadeiros paradigmas, como a proibição de moradores de uma determinada favela,
dominada por uma facção do narcotráfico, entrarem em uma comunidade ‘rival’. Nós nunca
seguimos esses ‘códigos’. Também tivemos um
papel importante na construção de pontes de
vias de mão dupla juntando pessoas de pensamentos e classes sociais diferentes”.
A mais recente realização desse encontro foi
a fundação do Centro Cultural Waly Salomão,
complexo cultural de última geração inaugurado em maio deste ano. Seu nome homenageia o
poeta carioca que foi também um dos incentivadores do AfroReggae. Com design do artista
plástico Luís Stein, o prédio abriga em seus quatro andares uma área para teleconferências, videoteca, espaço para ensaios de teatro e dança,
uma sala com 17 computadores em rede wi-fi e
outro estúdio, profissional, para gravação, mi-
xagem e masterização. Para construí-lo, o grupo
contou com um investimento de R$ 6 milhões,
fruto de uma parceria entre BNDES, Petrobras,
governo do estado do Rio e os institutos Unibanco e Rukha.
Além de trabalharem para promover a educação e a cidadania nas comunidades onde atuam,
esses grupos também trocam experiências e tornam-se exemplos para a ação de muitos outros
grupos sociais em todo o Brasil. Em Santos, por
exemplo, o grupo Régua e Compasso, criado por
antigos membros do Olodum, desenvolve trabalhos sociais a partir do samba reggae e utiliza metodologia semelhante a do grupo baiano em que
se inspirou. O Olodum também é frequentemente requisitado para ensinar as suas metodologias,
como foi o caso do Grupo Unidos dos Quilombos, localizado em Sergipe. A transferência dessa
tecnologia social se concretiza por meio de capacitações, acompanhamento e monitoramento das
atividades realizadas nesses projetos.
Transformando o mundo através da música
Antônio Gaudério/Folhapress
A Cufa também trabalha com diversas outras organizações e iniciativas. “A Cufa tenta se
comunicar com todos os movimentos sejam eles
radicais ou não. Mas o diálogo não é uma vontade de todos os movimentos. Tentamos conviver com todos, com o Movimento Hip Hop, o
Movimento Negro, o de luta pela terra, o da
juventude. Enfim, são muitos”, diz MV Bill.
Segundo o líder do AfroReggae, José Junior,
são tantos os grupos que os procuram que ele
não saberia quantificar, mas cita alguns que são
apoiados, como é o caso do Maje Mole, que
promove aulas de dança em Pernambuco, e o
Grupo Cultura Bagunçaço, que promove oficinas de percussão na Bahia.
O Olodum e o AfroReggae possuem um diálogo muito frutífero, e de acordo com Nelson
Mendes, quando o AfroReggae estava começando, o diretor Júnior os procurou para saber um
pouco da experiência do Olodum.
Além de transmitir seu conhecimento para
grupos brasileiros, o Olodum também procura
levar a sua tecnologia social para outros países,
como ocorreu no Benin. O país possui uma população descendente de antigos escravos do Brasil que retornaram à África e de comerciantes
baianos lá estabelecidos nos séculos XVIII e XIX,
que são conhecidos como agudás. Esse povo possui forte ligação com a cultura brasileira, por isso
a importância de divulgar as nossas tradições do
outro lado do oceano. Assim, ao levar a sua metodologia, o Olodum contribui para manter viva
em comunidades do Benin a história dos africanos no Brasil, utilizando a música como estratégia de mobilização e preservação cultural.
Os feitos desses grupos que utilizam a música como ferramenta de inclusão social são
muitos e todos são unânimes em afirmar que já
conseguiram fazer bastante, mas que ainda não
é o suficiente. Mesmo com tantas conquistas,
AfroReggae
Criado em 1993, com sede no
Rio de Janeiro (RJ), no início
atuava somente na comunidade de Vigário Geral, depois
se expandiu para Parada de
Lucas, Morro do Cantagalo,
Complexo do Alemão e Nova
Era (em Nova Friburgo). Além
do Rio de Janeiro, o AfroReggae
tem 65 projetos em todo o
Brasil e também no exterior.
O vocalista LG durante ensaio da
banda AfroReggae, composta por
moradores da favela carioca de
Vigário Geral, Rio de Janeiro. 2000
Entrelinhas
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72
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
o líder do AfroReggae reconhece que, “a voz
da periferia ainda não é ouvida como deveria,
mas começa a ser mais disseminada pela arte e
pela internet. Nosso maior desafio é continuar
com a entidade viva. É preciso ampliar as pontes e envolver mais pessoas que queiram de fato
mudar o mundo”. De acordo com MV Bill,
mesmo funcionando de maneira efervescente e
crescendo cada vez mais no Brasil, a Cufa ainda
enfrenta os mesmos obstáculos desde seu início: a dificuldade de organizar o discurso das
massas. “Queremos que os jovens das favelas
tenham um senso crítico apurado e, a partir daí,
conquistem sua própria inserção social”. Ele reconhece que o crescimento brasileiro tem provocado uma mudança positiva. “O Brasil está
mudando e isso acaba beneficiando em alguma
medida os jovens das periferias e favelas. Mas
estamos muito longe do ideal”.
Se no começo a Cufa enfrentou a indiferença e a falta de informação, hoje o movimento
está cada vez maior e mais conhecido. Um sinal
dessa notoriedade é o fato de MV Bill integrar o
elenco da nova temporada da novela adolescente “Malhação”, da TV Globo. Nada mais justo
para alguém que é a mais viva prova de que a
música pode abrir um caminho para a inclusão
social. Para o futuro, ele quer para a Cufa um
caminho tão espontâneo quanto o rap. “A Cufa
não tem metas claras, e confesso que não vejo
nisso um problema. Mas eu arriscaria dizer que
sua meta é atender anualmente 3 milhões de jovens a partir de 2015”.
Cantor se apresenta no 1º Funk Festival - Canta
Cidade Tiradentes, em São Paulo. 2008
Entrelinhas
73
Fernando Donasci/Folhapress
Transformando o mundo através da música
74
Revista de Cultura e Direitos Humanos da AMB
tos humanos, porém ainda detectamos focos
de preconceito racial e isso faz com que nós
permaneçamos na luta para mostrar que as
pessoas têm valor e que têm que ser respeitadas, independente da cor da sua pele.”
Nelson também considera que não é o
Olodum que é capaz de mudar a vida das
pessoas, mas sim a música. “Nós somos um
veículo, a arte musical que é transformadora,
nós apenas oferecemos uma mini estrutura
para que as pessoas a usem e possam melhorar as suas próprias vidas, e isso nós estamos
conseguindo!”
Marcelo Justo/Folhapress
Show do rapper MV
Bill em comemoração
ao Dia da Consciência
Negra, na Praça da
Sé, no centro de São
Paulo. 2007
O trabalho do Olodum também conseguiu
mudar a vida de muitos baianos. De acordo
com Nelson, “há centenas de músicos profissionalizados que já passaram pelo Olodum e
hoje tocam com artistas nacionais e internacionais, gente vivendo na Europa, mas que
aprendeu a tocar percussão aqui no Olodum.
Eles estão tocando lá fora com vida digna
como músicos”. No entanto, o diretor afirma
que um dos principais desafios a ser enfrentado ainda é a luta contra o preconceito racial:
“hoje há um avanço na discussão da questão
racial no Brasil e consequentemente dos direi-
“Queremos que os jovens das favelas tenham um senso crítico
apurado e, a partir daí, conquistem sua própria inserção social. (...) O
Brasil está mudando e isso acaba beneficiando em alguma medida os
jovens das periferias e favelas. Mas estamos muito longe do ideal”.
MV Bill
Transformando o mundo através da música
Entrelinhas
Felipe Varanda/Folhapress
Um novo movimento musical: o trabalho do funk
No Rio de Janeiro, os bailes funk haviam sido
proibidos, pois eram realizados nas favelas e estavam associados à questão do tráfico de drogas
e também da sexualização precoce. No entanto,
havia uma demanda do movimento funkeiro, que
não se associava ao tráfico e nem a apologia ao
sexo, que desejava que os bailes pudessem ser
realizados em áreas permitidas pelo poder público e não em locais controlados pelos traficantes.
Esse grupo procurou o deputado estadual do Rio
de Janeiro Marcelo Freixo, então presidente da
comissão dos direitos humanos da ALERJ (Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro),
para que ele os ajudasse a modificar a situação.
O deputado trabalhou para a aprovação de lei
que permitisse a realização dos bailes funks. A lei
nº 5543 de 22/09/2009 foi aprovada na ALERJ
e considerou o funk um movimento cultural e
musical de caráter popular. Além disso, determinou que o poder público fosse responsável por
assegurar ao movimento a realização de suas
manifestações próprias, como festas, bailes e reuniões, sem quaisquer regras discriminatórias ou
diferentes das que regem outras manifestações
da mesma natureza.
Após a aprovação dessa lei, a massa funkeira
começou a ser organizar e criou a Apafunk (Associação de Profissionais e Amigos do Funk). Hoje
essa associação realiza oficinas de funk e direitos
humanos nas escolas públicas do Rio de Janeiro.
Além desse trabalho, a Apafunk promove ainda
as rodas de funk que têm por objetivo discutir
determinados temas nas escolas, parques e praças públicas, como, por exemplo, a construção de
muros no entorno das favelas da cidade.
Essa associação iniciou, assim, um trabalho
importante para construção da cidadania nas
favelas através de um estilo musical discriminado
e marcado por vários estereótipos.
Público no baile
do Via Show, em
São João de Meriti,
Baixada Fluminense,
Rio de Janeiro. 2004
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Ano 1 | Edição 1 | Brasília | Outubro 2010 | ISSN 2179-2178
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