Resenha: MARTINS. José de Souza. A Sociabilidade do Homem Simples: Cotidiano e História na Modernidade Anômala . São Paulo. Contexto, 2008. A questão do homem: cotidianidade e modernidade Dauto da Silveira* Modernidade: “É o permanente revolucionar da produção. O abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento internos” (Karl Marx). O livro de José de Souza Martins, embora sendo uma compilação de textos produzidos durante a sua trajetória intelectual, é muito oportuno neste atual momento da sociedade burguesa, por se tratar de um tema que os cientistas sociais vêm se ocupando, qual seja, o modo pelo qual o homem produz a sua existência na atualidade e qual o papel das ciências sociais na compreensão desta realidade social que se configura. A rigor o tema do livro desenvolve-se e se contrapõe à perspectiva do universalismo do homem. O homem simples, segundo Martins, sofre com a sólida desconfiguração do local, interage com a vida que ele não domina e com o estranhamento que lhe é peculiar. Profundamente sensível aos problemas que regem a existência do homem neste atual período histórico, o autor se propõe “a tratar da vida social do homem simples e cotidiano, cuja existência é atravessada por mecanismos de dominação e de alienação que distorcem sua compreensão da história e do próprio destino 1 ”. Tenta neste mosaico de desencontro da sociedade moderna encontrar a unidade do diverso. Fazer com que o homem simples (comum) se torne agente ativo do seu destino. Martins apresenta a vida do homem moderno explicitando como aparência na sociedade burguesa algo recorrentemente visto na obra de Georg Simmel: “o problema verdadeiramente prático da sociedade reside na relação que suas forças e formas estabelecem com os indivíduos – e se a sociedade existe dentro ou fora deles 2 ”. Uma vida que não se expressa pelo que essencialmente é e sim pelas formas aparentes de realidade (realidade invertida). “Uma vida em que além do mais tudo aparece falso e falsificado até mesmo a esperança, porque só o fastio e o medo parecem autênticos 3 ”. Enfim, o propósito do livro é fazer uma reflexão a este respeito “uma proposta de compreensão de como a esperança se torna práxis na adversidade das mediações que tornam inautênticos o nosso viver e o nosso sonhar4 ”. Metodologicamente, a proposta é tornar o que é * Cientista Social e Mestrando em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina PPGSPUFSC. 1 MARTINS, José de Souza. A Sociabilidade do Homem Simples: Cotidiano e História na Modernidade Anômala. São Paulo: Contexto, 2008. 2 SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da Sociologia: Indivíduo e Sociedade . Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2006. 3 Ibidem, pg. 10 4 Ibidem, pg. 11 Revista Espaço Acadêmico, nº 90, novembro de 2008 http://www.espacoacademico.com.br/090/90res_silveira.pdf liminar, marginal e anômalo como referência da compreensão sociológica. Estamos em face da primeira crise social, mas também de uma crise de conhecimento sociológico, que nos pede a elaboração de um mapa das dificuldades, um mapa das alternativas e saídas para a modernidade indecisa. É assim que a primeira parte do livro, “As hesitações do moderno e as contradições da modernidade no Brasil 5 ”, tenta dar conta deste desafio. Ou seja, o autor apresenta a autenticidade do inautêntico: um modo de dize r que a modernidade no Brasil e na América Latina se confronta com o tradicional: ...entre o novo e seu padrão lógico racional e secularizado, de um lado, e aquilo que a tradição nos legou, as obras do passado, que são também as obras, o irrelevante, do incapturável pelos mecanismos de dominação e de exploração. Esse tem sido o método que nos revela o que o moderno tem de postiço, de estranho e de “estrangeiro” em relação a nós. É o método que se volta para o desencontro dos tempos históricos que marcam e demarcam a realidade brasileira e latino-americana, as relações sociais, as mentalidades e utopias 6 . Cabe pôr em relevo o desencontro histórico da realidade brasileira em relação ao que já é real em outras partes, isto é, o conservadorismo que permaneceu na nossa sociedade mesmo com o advento das formas sociais da modernidade. A cultura brasileira resiste a este modo de vida moderno e acaba revelando uma autenticidade no inautêntico, ou seja, as formas culturais populares negaram as formas modernas, mas, ao mesmo tempo, agregaram fragmentos do moderno. Com a perspicácia intelectual que lhe é inerente, torna patente a natureza da modernidade no Brasil. Mostra como o moderno é incorporado pelo popular e encontra dificuldades de se manifestar tal qual é a sua natureza; mesmo nas relações sociais reais as dificuldades estão presentes7 . É neste exato momento que elenca uma série de exemplos onde as formas modernas defrontam-se com as formas locais e cria um quadro onde surge uma forma hibrida, qual seja, o de elementos modernos mundiais combinando-se com elementos tradicionais. O trabalhador escravizado da Fazenda Vale do Rio Cristalino, quando ainda pertencia ao Grupo Volkswagen, trabalhavam no desmatamento em formação de pastagens enquanto o processo de produção de gado de corte e “exportação eram feitos como tecnologias da maior sofisticação: chips eram implantados nos animais para por esse meio monitorar suas condições de saúde e determinar o momento apropriado do abate 8 . Disto resulta a lógica cultural invertida, ou seja, a modernidade anômala do colonizado: “é modernidade, mas sua constituição e difusão se enredam em referenciais do tradicionalismo sem se tornar conservadorismo 9 .” Ainda na primeira parte fala do “Senso Comum e a Vida Cotidiana ” neste, com um acentuado elogio ao senso comum – como forma de reprodução da vida - chama a atenção para o lugar do conhecimento do senso comum na vida cotidiana e também na história. Mais do que isto, 5 Este ensaio foi publicado sob o título de “The hesitations of the modern and the contradictions of modernity in Brazil”, in Vivian Scheling (ed.) Tbrough the Keleidoscope. (The Experience of Modernity in Latin America), London, Verso, 2000, pp. 248-74. 6 Ibidem, pg. 25 7 José de Souza Martins diz que a modernidade na América Latina, especialmente no Brasil, recebe um tom que não é o seu, não é a sua expressão mais pura, fina. Apresentar-se-á o que ele diz acerca disto: “a modernidade nos chega, pois pelo seu contrário e estrangeira como expressão do ver e não como expressão do ser, do viver e do acontecer. Chega como uma modernidade epidêmica e desconfortável sob a forma do fardo nas costas do escravo negro ele mesmo negação do capital e do capitalismo, embora agente humano e desumanizado do lucro naquele momento histórico” (pg. 24). 8 Ibidem, pg. 30 9 Ibidem, pg. 44 2 Revista Espaço Acadêmico, nº 90, novembro de 2008 http://www.espacoacademico.com.br/090/90res_silveira.pdf menciona que o interesse sociológico pela vida cotidiana tem resultado diretamente no reflexo das esperanças da humanidade em um mundo novo de justiça. Se a vida de todo dia se tornou o refúgio dos céticos, tornou-se igualmente o ponto de referência das novas esperanças da sociedade. O novo herói da vida é o homem comum imerso no cotidiano. É que no pequeno mundo de todos os dias está também o tempo e o lugar da eficácia das vontades individuais, daquilo que faz a força da sociedade civil, dos movimentos sociais 10 . A sua defesa atinge à perspectiva erudita que desqualifica o senso comum, banaliza-o, tornando-o destituído de verdade, fonte de equívocos e distorções. É neste momento que define senso comum: é conhecimento compartilhado entre os sujeitos da relação social, pois “é no fragmento de tempo do processo repetitivo produzido pelo desenvolvimento capitalista, o tempo da rotina, da repetição e do cotidiano, que essas contradições fazem saltar fora o momento da criação e de anúncio da história – o tempo do possível11 .” No ensaio “A Peleja da Vida Cotidiana em nosso Imaginário Onírico 12 ” o autor tem como hipótese sociológica que o sonhador produz legitimamente a sua própria chave de interpretação dos sonhos. Diversamente do que ocorre com as interpretações do tipo psicanalítico, especialmente das vulgarizadas e de uso corrente na “cultura do corredor das instituições acadêmicas”. Martins explica como os sonhos são manifestações de nós mesmos, como através deles nos mostramos, muitas vezes, capazes de enfrentar os temores da vida cotidiana, “a coragem de nossa noite põe diante dos nossos olhos e da nossa consciência a coragem que nos falta durante o dia em face do que nos conforma e nos obriga 13 .” Diante desta referência, o autor diz que o sonho não se separa da interpretação do sonho, “o sonho é o interpretável”, a interpretação do sonho aparece como fenômeno social. Portanto, há que se compreender que os sonhadores se diferenciam de acordo com o nível de complexidade de vida que levam. Essa é a nossa preocupação da pesquisa, ou seja, mostrar como as populações mergulhadas na modernidade tendem a se relacionar com os sonhos de modo bem diverso do que acontece com as populações ainda organizadas com base no aconchego das relações sociais tradicionais e familísticas14 . Assim, Martins conseguiu compreender a diferença entre o mundo do sonho e o mundo da vida cotidiana, mostrando que é a relação entre o cotidiano e o imaginário onírico. Esta pesquisa, de uma grande dimensão sociológica, deixa o livro carregado de significados acerca dos elementos que envolvem a vida cotidiana. Põe em relevo o mundo do homem simples e o seu relacionamento, preocupações, perspectivas materiais e imateriais que circundam a complexa sociabilidade na modernidade. De resto, a primeira parte do livro termina com os “Apontamentos sobre a vida cotidiana e história ”15 onde o autor centraliza seu 10 Ibidem, pg. 52 Ibid. pg. 57 12 Este ensaio fez parte do capítulo do livro do próprio autor (org), (Des)figurações – A Vida Cotidiana no Imaginário Onírico da Metrópole, Editora Huncitec, São Paulo, 1996, pg. 15-46. Conforme menciona o autor o material utilizado neste e nos textos citados a seguir é constituído dos 180 sonos recolhidos em pesquisa exploratória sobre “O imaginário onírico do brasileiro”, realizada pelos alunos da disciplina Sociologia da Vida Cotidiana, de 1995, do currículo de graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 13 Ibid. pg. 60 14 Ibid. pg. 61 15 Este ensaio foi publicado nos Anais do Museu Paulista, v.4, Nova Série, São Paulo, Janeiro-dezembro 1996, pg. 49-58. A resposta do Ronaldo Vainfas a este comentário e a comentários de outros autores ao seu texto encontra-se na mesma revista, pg. 105-122. 11 3 Revista Espaço Acadêmico, nº 90, novembro de 2008 http://www.espacoacademico.com.br/090/90res_silveira.pdf comentário no texto de Ronaldo Vainfas16 nos aspectos problemáticos de sua referência à vida cotidiana e à relação entre vida privada e vida cotidiana. O livro termina com duas entrevistas, a primeira intitulada “História e Memória 17 ” que revela a situação do que ele chama de “homem simples”, ou seja, do homem que fez história e não é apresentado nos grandes debates acadêmicos. A entrevista fala, de modo central, sobre o “Subúrbio” e a imigração dos trabalhadores de São Paulo, dos grandes fluxos migratórios que configuraram as regiões do ABC, enfatizando a questão da sociabilidade do homem simples que dá vida ao “subúrbio”. A segunda entrevista “Por uma Sociologia Sensível18 ” discute o que se pode chamar de sociologia da vida cotidiana, pressupondo que a vida cotidiana não é um resíduo desprezível da realidade social histórica, política, cultural, etc.: “ela domina a vida social no mundo moderno e, ao mesmo tempo, tornou-se mediação fundamental na historicidade da sociedade moderna 19 .” Em contato com perspectiva marxista de construção do “novo”, da luta para a superação das demandas sociais, aparece neste momento o ponto sensível do livro, ou seja, Martins patenteia o seu modo de apreender os elementos de emancipação do homem, “da sua libertação em relação às carências e necessidades decorrentes de sua dependência do mundo externo e de sua própria natureza 20 .” Portanto, o livro destaca alguns dos mais expressivos temas acerca das circunstâncias que envolvem a vida na sociedade moderna burguesa. A essência do “homem simples”, no âmbito da leitura de Martins, mediante a sua cotidianidade levanta elementos que possibilitam a sua superação. “A Sociabilidade do homem simples” é um livro que contribui para a formação e para o aperfeiçoamento do debate que está sendo travado nas Ciências Sociais, ou seja, encontrar um instrumental analítico rigoroso que dê conta de compreender a atual complexidade da realidade social, mais dinâmica e desafiadora. Nas palavras de Pablo González Casanova, para quem o tema é familiar, o grande desafio que se ajeita hoje é “desenvolver uma bagagem teórica e metodológica adequada ao grau de complexidade que a realidade atual comporta21 ”. De resto, a ocasião nos oferece um horizonte de possibilidades revolucionárias que pede em contrapartida uma permanente atenção e seriedade nas observações feitas. 16 Ronaldo Vainfas, “História da vida privada: dilemas, paradigmas, escalas”, loc.cit., pg. 9-27. Esta entrevista foi publicada em 1993 com o título “Abismos da Memória” em Memória (Ano v, n. 19, Eletropaulo, São Paulo) e foi realizada pelos pesquisadores José Antônio Segato, Luiza Monteiro A. Soares e Roniwalter Jatobá. 18 Esta entrevista foi publicada originalmente em Revista Plural – Revista do Curso de Pós-Graduação em Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1998. 19 Ibid. pg.135 20 Ibid. pg.147 21 CASANOVA, Pablo G. As Novas Ciências e as Humanidades da Academia à Política. São Paulo: Boitempo. 2006. 17 4