Por dentro da notícia novembro/2009 A metrópole minada N ossa sociedade não consegue superar os valores arcaicos e adversos à vida propriamente urbana, que nos levam a tratar vizinhos, mesmo os que põem a vida dos outros em risco, como se fossem merecedores das deferências de parentesco. [...] Essas coisas acontecem porque nossa vida urbana é regida por uma mentalidade antiurbana. Não só na leniência e na tolerância de tudo o que conspira contra a vida civilizada própria das cidades. Mas também, no centro dessa ignorância, no utilitarismo anticivilizado da especulação imobiliária, que faz da cidade não o lugar de um modo civilizado de viver, mas de um modo incivilizado de ganhar. A mentalidade do dono da lojinha de Santo André e de todos os que se agarram a papéis e alvarás para se omitirem na governação incompetente faz parte dessa cultura predatória que nos coloca num cenário de guerra mesmo quando ingenuamente acreditamos que somos de paz. As cidades brasileiras, e na região metropolitana de São Paulo isso é particularmente grave, estão dominadas pelo pressuposto da terra de ninguém, de que cidade é o lugar em que tudo se pode, lugar da predação em nome dos interesses privados, a sociedade engolida pelos interesses egoístas do indivíduo. Nessa mentalidade antropofágica [...] a cidade existe para ser consumida, devorada, e não para ser desfrutada, socialmente utilizada em nome do bem comum. Adaptado de MARTINS, José de Souza. A metrópole minada. O Estado de S. Paulo, 27 set. 2009. Em seu artigo intitulado A metrópole minada, do qual reproduzimos o trecho acima, o professor José de Souza Martins examina sociologicamente a tragédia verificada em Santo André, cidade da grande São Paulo, quando a explosão em uma loja provocou a morte de duas pessoas, além de mais de uma dezena de feridos. Referido estabelecimento possuía licença para oferecer artigos de bazar, embora fosse de conhecimento público que no local comercializavam-se fogos de artifício. A partir dessas informações e da interpretação do texto, discorra sobre as questões propostas. 1. De acordo com o autor do artigo, o acontecimento em questão não consiste em um fenômeno isolado que possa ser explicado unicamente pela negligência de autoridades administrativas e pela ação do proprietário da loja, mas, isto sim, trata-se de um fenômeno significativo acerca da cultura prevalecente em nossas cidades. a) Conforme a perspectiva de José de Souza Martins, é possível afirmar a presença de uma responsabilidade coletiva em tragédias dessa natureza? Justifique. b) De acordo com o artigo, como se associam práticas capitalistas ilimitadas e valores sociais tradicionais na formação da mentalidade urbana tipicamente brasileira? 2. Acusa-se, no artigo, a ausência de uma cultura pública na vida urbana brasileira, sendo que eventos como a explosão de loja de fogos em Santo André seriam a expressão trágica do predomínio de uma mentalidade antropofágica. a) Em que sentido o autor emprega a expressão mentalidade antropofágica? b) Em que medida cultura republicana e mentalidade antropofágica são termos contrários? Expectativa de resposta 1. a) Segundo José de Souza Martins, há uma responsabilidade coletiva, pois acontecimentos dessa natureza exprimem a cultura dominante em nossas cidades, marcada pela ausência de um espírito republicano — na acepção profunda da expressão —, pela sobreposição das aspirações egoístas aos interesses coletivos e, consequentemente, por relações predatórias que os habitantes desenvolvem com o espaço urbano. Para o autor, a combinação de valores sociais tradicionais com a noção de que a cidade é algo a ser consumido sustenta uma espécie de cumplicidade perante situações desse tipo. A omissão dos vizinhos ― que, quando muito, apenas esboçam tímidas denúncias —, o descaso das autoridades públicas e a aceitação social de usos indevidos do espaço coletivo demonstram a persistência, na cultura brasileira, de que aquilo que é denominado de público, na realidade, não pertence a ninguém. A partir dessa concepção, as cidades definem-se como locais incivilizados de ganhar, e não como lugares civilizados de viver. b) Os valores sociais tradicionais, que prolongam as relações pessoais para a esfera sociopolítica, inviabilizam uma cultura verdadeiramente pública, a saber, regulada por direitos e deveres de cidadãos em condição de igualdade jurídica e articulados na partilha de um espaço coletivo. Assim, esses pressupostos favorecem ações socioeconômicas baseadas unicamente em expectativas de lucros ou de vantagens sociais, sem que se considerem os limites éticos, ou melhor, precisamente públicos a essas formas de conduta. 2. a) A mentalidade antropofágica é expressão empregada pelo autor para aludir ao predomínio dos interesses individuais nas relações urbanas, a saber, a supremacia de condutas que levam em consideração somente as aspirações de seus protagonistas, mesmo que isso implique prejuízos possíveis ou imediatamente concretos para a sociedade. A antropofagia concebe a cidade como mero objeto de consumo. b) Uma cultura republicana consiste em relações simétricas de cidadania que se expressam em direitos e deveres vividos coletivamente, sem a interferência de relações pessoais que possam conferir vantagens a alguns em detrimento de outros. A cultura republicana, portanto, pressupõe a harmonia das ações individuais com os interesses públicos ou, no mínimo, que a esfera coletiva não seja invadida pelas relações privadas. Nesse sentido, é clara a sua oposição a uma mentalidade antropofágica, que concebe a cidade como algo a ser devorado em conformidade com os objetivos exclusivamente individuais.