quinta-feira, 24 de julho de 2008, 11:36 | Online 0 comentário(s) Avalie esta Notícia • • • • • Ruim Regular Bom Ótim o Excelent e 1 votos Ruth, a opção pascal na política O abraço de Lula em FHC no velório cobra um pacto sem o qual PT e PSDB perecerão e o Brasil que se deseja se perderá José de Souza Martins* Tamanho do texto? A A A A SÃO PAULO - Só em 1994, com a posse de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República, se firmou entre nós a real possibilidade de um novo regime político, democrático e pluralista, baseado no respeito aos direitos humanos. Até então, ameaçado pela morte precoce de Tancredo Neves, o regime pós-ditatorial periclitara nas mãos de herdeiros da cultura política do antigo regime. Foi numa audiência pública sobre a violência no País que o deputado federal Raul Jungmann, horas antes da morte de Ruth Cardoso, no Centro Maria Antônia, o mesmo local em que Ruth e Fernando Henrique foram alunos e professores, mencionou um fato fundamental do momento político. A importância de que tenham finalmente chegado ao poder, após a ditadura, partidos que expressam a cultura política e democrática da resistência ao regime autoritário. Referia-se particularmente ao PSDB e ao PT e à ameaça que pesa hoje sobre esse fato político historicamente decisivo. Ruth Cardoso estava entre os primeiros a compreender isso. Competente, discreta e avessa à visibilidade pública, não se deixou vencer pelo poder nem pela sina anti-republicana de que esposas de presidentes cuidam da caridade estatal. Compreendeu o espaço de criação política que se abria com a posse de Fernando Henrique e o desafio que lhe tocava quanto a quebrar rotinas e inovar. Ruth criou o Comunidade Solidária para substituir a ideologia e a prática do assistencialismo estatal por uma prática moderna de distribuição de conhecimento e valorização da cultura e do capital social da própria população pobre. É aqui que convém ter em conta a diferença entre Ruth e Fernando Henrique, enquanto intelectuais e personificações distintas da missão do intelectual. Fui aluno deles. Fernando Henrique, sociólogo, nos ensinava as teorias relativas às grandes estruturas e aos processos sociais, os fatores da permanência e os fatores da mudança na intrincada e indócil trama do sistema social. Ruth, antropóloga, também se empenhava no esmero teórico de uma ciência dedicada à cultura e aos modos de ser, às diferenças, o imediato da vida e não o longínquo. Foi com eles que aprendi quanto a sociologia e a antropologia se completam. De certo modo, com Fernando Henrique na Presidência e Ruth no Comunidade Solidária, essa complementaridade de perspectivas se propôs no ideário de uma verdadeira revolução, que vai da política e do poder aos modos cotidianos de ser, a revolução ainda que lenta de que o País carecia e carece. Revolução porque na dialética que une e diferencia essas perspectivas propunha-se uma compreensão sociológica e antropológica da sociedade, apoiada em descobertas essenciais relativas ao advento e disseminação do capitalismo no marco da resistência pré-moderna que a ele opuseram os trabalhadores por ele vitimados em países como a Inglaterra. Resistência que culminou com o reconhecimento dos direitos sociais. Aqui as coisas foram diferentes, como mostrou Fernando Henrique Cardoso num estudo dos anos 70. Nossa Independência não foi produto de uma revolução social e política. Aqui, o Estado independente nasceu do Estado metropolitano, proposto pelo próprio rei. Não foi a sociedade que criou o Estado. Ao contrário, o Estado é que tem atuado para criar a sociedade civil, em completa inversão do modelo. Não é casual que a obra de Ruth no governo de Fernando Henrique tenha recebido o nome de Comunidade Solidária e sua continuidade fora do governo se chame Comunitas. Isto é, numa polarização clássica das ciências sociais, o Estado e o poder de um lado e o comunitário e cidadão como núcleo do que é propriamente a sociedade, de outro. De um lado, o Estado inovador e de outro a comunidade como essência da sociedade, repositório no fundo afetivo de valores de questionamento das forças de desagregação e de mudança próprias daquilo que se pauta por uma racionalidade coisificante. Ruth tinha uma rica compreensão dessas relações. Escolhera como objeto de seu doutorado a comunidade dos descendentes de japoneses, emblemáticos protagonistas de uma virtuosa combinação de tradição com valorização da cultura e da ascensão social, sobretudo a valorização da formação universitária, o moderno no marco da tradição. Em suas pesquisas e estudos dedicou-se a compreender quanto há dessa relação promissora em outros grupos sociais que foram grandemente despojados de suas referências na pobreza iníqua decorrente de um desenvolvimento econômico muitas vezes desatento em relação aos problemas sociais que cria. Ruth Cardoso esteve entre os pioneiros no reconhecimento da relevância do que chamou de novos movimentos sociais, novos sujeitos sociais e nova forma da política e da relação entre a sociedade e o Estado. Foi ela, portanto, uma educadora acima de tudo, uma educadora para a civilidade, num magistério de emancipação do povo como meio essencial de sua libertação. Diante do inevitável, do poder e das forças da permanência, a civilidade da mudança, com base no querer daqueles que podem descobrir o capital social e cultural de sua competência histórica. Ruth personificou a opção pascal na política brasileira que se inaugura com a posse de Fernando Henrique Cardoso. O abraço afetivo e comovente de Lula em Fernando Henrique, no velório de Ruth, foi o grande momento de expressão dessa dimensão pascal na política. Muito parecido na emoção com que um comovido Fernando Henrique passou a faixa presidencial para o operário Luiz Inácio. Ele tinha consciência do amplo significado histórico daquele ato: um intelectual primeiro e um operário depois, chamados a presidir a República pela primeira vez. Nesses dois momentos, a dimensão de um pacto subjacente aos confrontos, tensões e dilacerações que opõem petistas despistados a tucanos equivocados. O pacto da complementaridade e da alternância, sem o qual os dois partidos perecerão e o Brasil que queremos se perderá nas vielas do corporativismo oportunista e do menosprezo pelo historicamente possível. * José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP Nota da Redação: este texto foi originalmente publicado em O Estado de S. Paulo em 29 de junho de 2008