FACULDADE DE MÚSICA SOUZA LIMA
RICARDO UCHIYAMA TENORIO BELO
A COMPOSIÇÃO ESPONTÂNEA DE PIXINGUINHA
São Paulo
2014
Ricardo Uchiyama Tenorio Belo
A COMPOSIÇÃO ESPONTÂNEA DE PIXINGUINHA
Monografia apresentada à Faculdade de Música
Souza Lima como requisito à obtenção do título
de Bacharel em Música.
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Pereira Coelho
Co-orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Cecília de
Barros Santiago
São Paulo
2014
AGRADECIMENTOS
Aos meus orientadores Prof. Dr. Marcelo Pereira Coelho e Prof.ª Dr.ª Maria Cecília
de Barros Santiago pelo apoio, compreensão, profissionalismo e valiosos conselhos.
Aos colegas e professores, em especial o Prof. Daniel Maudonnet pelas ótimas aulas
de harmonia e análise.
Aos Profs. Me Pedro Augusto Ramos, Walter Nery Filho, Ciro Visconti e Lupa
Santiago pela sempre disposição em ajudar.
À Faculdade Souza Lima representada pelo Prof. Antônio Mario da Silva Cunha por
sempre acreditar e apoiar meus projetos. E à todos os funcionários da instituição.
À Elizene G. de Oliveira, Lucas O. U. Belo e Arthur O. U. Belo, pelo apoio e
compreensão.
À Deus, por ter colocado a música em minha vida.
RESUMO
Este projeto de pesquisa propõe uma análise das melodias executadas por Pixinguinha
ao saxofone, no choro, em contracanto com as melodias tocadas na flauta por Benedito Lacerda.
À partir da análise técnica busca-se a compreensão do que foi executado de maneira espontânea,
o que aqui denominamos “composição espontânea”. A aplicação prática deste procedimento,
identificado à partir das análises, terá como objetivo a composição de uma obra inédita, no
gênero choro.
Palavras-chave: Pixinguinha; choro; contraponto; improvisação; saxofone
ABSTRACT
This term paper proposes an analysis of the melodies played by Pixinguinha on
saxophone in counterpoint with the ones played by Benedito Lacerda on flute. By means of
musical analysis, we wish to understand what was played spontaneously, here named
Spontaneous Composition. The practical use of this proceeding identified by analysis, aims the
elaboration of an unpublished composition in the genre chôro.
Keywords: Pixinguinha; choro; contraponto; improvisação; saxofone
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1 .......................................................................................................................... 14
1.1 PIXINGUINHA – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA.......................................... 14
1.2 PIXINGUINHA – CONTEXTUALIZAÇÃO MUSICAL ............................................. 16
CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA ............................................. 20
2.1 DEFINIÇÕES ................................................................................................................. 20
2.1.1 Contraponto ........................................................................................................... 20
2.1.2 Improvisação .......................................................................................................... 21
2.1.3 Forma ...................................................................................................................... 21
2.2 PLANO DE TRABALHO .............................................................................................. 22
2.3 FUNDAMENTAÇÃO DAS ANÁLISES ...................................................................... 22
2.3.1 Divisão das Análises/Forma/Tonalidades ............................................................ 22
2.3.2 Análise Harmônica ................................................................................................ 23
2.3.3 Análise Melódica .................................................................................................... 27
2.3.4 Análise Rítmica ...................................................................................................... 30
2.3.5 Análise Fraseológica .............................................................................................. 32
CAPÍTULO 3 - ANÁLISES ................................................................................................... 34
3.1 CHORO CHEGUEI........................................................................................................ 34
3.1.1 Análise Macro ........................................................................................................ 34
3.1.2 Análise Micro do Choro Cheguei (Harmonia, Melodia e Rítmo) ..................... 34
3.1.3 Análise Intermediária............................................................................................ 39
3.2 CHORO DISPLICENTE ................................................................................................ 48
3.2.1 Análise Macro ........................................................................................................ 48
3.2.2 Análise Micro do Choro Displicente (Harmonia, Melodia e Rítmo) ................ 48
3.2.3 Análise Intermediária............................................................................................ 53
3.3 RESUMO DAS ANÁLISES .......................................................................................... 62
3.4 CHORO CHORANDO SE FOI ..................................................................................... 63
3.4.1 Análise Macro ........................................................................................................ 63
3.4.2 Análise Micro do Choro Chorando Se Foi (Harmonia, Melodia e Rítmo) ...... 64
3.4.3 Análise Intermediária............................................................................................ 69
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 74
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 76
ANEXOS ................................................................................................................................. 78
1 Partitura do choro Cheguei ................................................................................................ 78
2 Partitura do choro Displicente ........................................................................................... 80
3 Partitura do choro Chorando se Foi ................................................................................... 83
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Quadro ilustrativo dos acordes dominantes secundários e suas resoluções...............24
Tabela 2 - Quadro ilustrativo dos acordes SubV7 e suas resoluções..........................................25
Tabela 3 - Quadro ilustrativo dos acordes diminutos e suas resoluções.....................................26
Tabela 4 - Acordes disponíveis (em destaque) de empréstimo modal........................................26
Tabela 5 - Macro estrutura do choro Cheguei............................................................................34
Tabela 6 - Análise harmônica do choro Cheguei........................................................................35
Tabela 7 - Seção A, tonalidade de F...........................................................................................36
Tabela 8 - Seção B, tonalidade de Dm........................................................................................36
Tabela 9 - Seção C, tonalidade de Bb.........................................................................................37
Tabela 10 - Número de ocorrências em tempos fortes, de fundamentais, terças, quintas e sétimas
utilizadas por Pixinguinha nas melodias de sax do choro Cheguei.............................................37
Tabela 11 - Macro estrutura do choro Displicente.....................................................................48
Tabela 12 - Análise harmônica das seções A, B e C da música Displicente................................50
Tabela 13 - Seção A, tonalidade de F.........................................................................................51
Tabela 14 - Seção B, tonalidade de Dm. ...................................................................................51
Tabela 15 - Seção C, tonalidade de Bb. .....................................................................................51
Tabela 16 - Tabela com o número de ocorrências em tempos fortes, de fundamentais, terças,
quintas e sétimas utilizadas por Pixinguinha nas melodias de sax do choro Displicente............51
Tabela 17 - Macro estrutura do choro Chorando Se Foi. ...........................................................64
Tabela 18 - Análise harmônica do choro Chorando Se Foi........................................................64
Tabela 19 - Seção A, tonalidade de Am. ....................................................................................65
Tabela 20 - Seção B, tonalidade de C.........................................................................................65
Tabela 21 - Seção C, tonalidade de F. .......................................................................................65
Tabela 22 - Número de ocorrências em tempos fortes, de fundamentais, terças, quintas e sétimas
utilizadas no choro original Chorando Se Foi. ..........................................................................65
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Inversão dos acordes..................................................................................................24
Figura 2 - Acorde subV7............................................................................................................24
Figura 3 - Acorde diminuto com função dominante...................................................................26
Figura 4 - Notas alvo em destaque com o círculo.......................................................................28
Figura 5 - Nota de passagem......................................................................................................29
Figura 6 - Dupla nota de passagem............................................................................................28
Figura 7 - Notas de aproximação cromática...............................................................................29
Figura 8 - Bordadura..................................................................................................................29
Figura 9 - Apogiatura.................................................................................................................29
Figura 10 - Escapada por salto...................................................................................................29
Figura 11 - Suspensão................................................................................................................30
Figura 12 - Antecipação.............................................................................................................30
Figura 13 - Cambiata.................................................................................................................30
Figura 14 - Células rítmicas características no choro (ALMADA, 2006, p.10-11)....................31
Figura 15 - Células rítmicas adicionais......................................................................................31
Figura 16- Células rítmicas combinadas....................................................................................31
Figura 17 - Síncopas..................................................................................................................31
Figura 18 - Semínima. ...............................................................................................................32
Figura 19 - Anacruse característico do choro.............................................................................32
Figura 20 - Cheguei, parte A, frase 1.........................................................................................33
Figura 21 - Cheguei, parte A, frase 2..........................................................................................33
Figura 22 - Cheguei, parte A, frase 3..........................................................................................33
Figura 23 - Cheguei, parte A, frase 4. ........................................................................................33
Figura 24 - Apogiatura e bordadura no tempo. ..........................................................................36
Figura 25 - Antecipação será considerada a própria como nota do acorde antecipado...............36
Figura 26 - Células rítmicas da flauta e sax tenor da seção A (compassos 1 à 8)........................37
Figura 27 - Células rítmicas da flauta e sax tenor da seção A (compassos 9 à 12)......................38
Figura 28 - Células rítmicas da flauta e sax tenor da seção B (compassos 1 à 4 e 9 à 12).........38
Figura 29 - Células rítmicas da flauta e sax tenor da seção B (compassos 5 à 8).......................38
Figura 30 - Células rítmicas da flauta e sax tenor da seção C.....................................................39
Figura 31 - Seção A com análise melódica e identificação das frases........................................39
Figura 32 - Primeira frase da seção A, notas-alvo e inflexões....................................................40
Figura 33 - Segunda frase da seção A.........................................................................................40
Figura 34 - Terceira frase da seção A.........................................................................................41
Figura 35 - Quarta frase da seção A...........................................................................................42
Figura 36 - Seção B com análise melódica e identificação das frases..................................42-43
Figura 37 - Primeira frase da seção B.........................................................................................43
Figura 38 - Segunda frase da seção B.........................................................................................44
Figura 39 - Terceira frase da seção B.........................................................................................44
Figura 40 -Quarta frase da seção B............................................................................................45
Figura 41 - Seção C com análise melódica e identificação das frases........................................45
Figura 42 - Primeira frase da seção C.........................................................................................46
Figura 43 - Segunda frase da seção C.........................................................................................47
Figura 44 - Terceira frase da seção C.........................................................................................47
Figura 45 - Quarta frase da seção C............................................................................................48
Figura 46 - Linha melódica do sax tenor nos compassos 1, 2 e 3 da seção A..............................49
Figura 47 - Linha melódica do sax tenor nos compassos 9, 10 e 11 da seção A..........................49
Figura 48 - Linha melódica do sax tenor nos compassos 13 e 14 da seção A..............................49
Figura 49 - Linha melódica do sax tenor nos compassos 1, 2 e 3 da seção C..............................50
Figura 50 - Suspensão ou retardo na melodia da flauta, antecipação na melodia do sax
tenor..........................................................................................................................................50
Figura 51 - Motivo rítmico da seção A.......................................................................................52
Figura 52 - Rítmica dos compassos 1 à 4 da seção B..................................................................52
Figura 53 - Rítmica dos compassos 9 à 12 da seção B................................................................52
Figura 54 - Rítmica dos compassos 13 à 16 da seção B..............................................................53
Figura 55 - Compassos 7 à 10 da seção C...................................................................................53
Figura 56 - Seção A com análise melódica e identificação das frases..................................53-54
Figura 57 - Primeira frase da seção A, notas-alvo e inflexões....................................................54
Figura 58 - Segunda frase da seção A, notas-alvo e inflexões....................................................55
Figura 59 - Terceira frase da seção A, notas-alvo e inflexões...................................................55
Figura 60 - Quarta frase da seção A, notas-alvo e inflexões.......................................................56
Figura 61 - Seção B com análise melódica e identificação das frases..................................56-57
Figura 62 - Primeira frase da seção B, notas-alvo e inflexões....................................................57
Figura 63 - Segunda frase da seção B, notas-alvo e inflexões....................................................58
Figura 64 - Terceira frase da seção B, notas-alvo e inflexões.....................................................58
Figura 65 - Quarta frase da seção B, notas-alvo e inflexões.......................................................59
Figura 66 - Seção C com análise melódica e identificação das frases..................................59-60
Figura 67 - Primeira frase da seção C, notas-alvo e inflexões....................................................60
Figura 68 - Segunda frase da seção C, notas-alvo e inflexões....................................................61
Figura 69 - Terceira frase da seção C, notas-alvo e inflexões.....................................................61
Figura 70 - Quarta frase da seção C, notas-alvo e inflexões.......................................................62
Figura 71 - Células rítmicas da seção A, compassos 1 à 4..........................................................66
Figura 72 - Células rítmicas da seção A, compassos 5 à 8..........................................................66
Figura 73 - Células rítmicas da seção A, compassos 9 à 12........................................................67
Figura 74 - Células rítmicas da seção A, compassos 13 à 16......................................................67
Figura 75 - Célula rítmica da seção B, compassos 1 à 4.............................................................67
Figura 76 - Célula rítmica da seção B, compassos 5 à 8.............................................................67
Figura 77 - Células rítmicas da seção B, compassos 9 à 12.......................................................68
Figura 78 - Células rítmicas da seção C, compassos 1 à 4 e 5 à 8................................................68
Figura 79 - Células rítmicas da seção C, compassos 9 à 12, casa 1 (C).......................................68
Figura 80 - Células rítmicas da seção C, compassos 9 à 14, casa 2 (C’).....................................69
Figura 81 - Primeira frase da seção A, notas-alvo e inflexões....................................................69
Figura 82 - Segunda frase da seção A, notas-alvo e inflexões....................................................70
Figura 83 - Terceira frase da seção A, notas-alvo e inflexões.....................................................70
Figura 84 - Quarta frase da seção A, notas-alvo e inflexões.......................................................70
Figura 85 - Primeira frase da seção B, notas-alvo e inflexões....................................................71
Figura 86 - Segunda frase da seção B, notas-alvo e inflexões....................................................71
Figura 87 - Terceira frase da seção B, notas-alvo e inflexões.....................................................72
Figura 88 - Primeira frase da seção C, notas-alvo e inflexões....................................................72
Figura 89 - Segunda frase da seção C, notas-alvo e inflexões....................................................72
Figura 90 - Terceira frase da seção C, notas-alvo e inflexões.....................................................73
Figura 91 - Terceira frase da seção C’, notas-alvo e inflexões....................................................73
11
INTRODUÇÃO
Em quase 30 anos de carreira como músico profissional sempre estudei, pesquisei e
toquei a chamada música “instrumental”, onde a improvisação e a liberdade de expressão tem
grande importância no diálogo musical, principalmente no jazz norte americano e brasileiro
(em ritmos como samba, baião, maracatu). Porém, tive contato tardiamente com este estilo
originalmente brasileiro, o choro, onde a improvisação é muito peculiar, e se desenvolve
durante todas as partes da música. Existe uma conversa musical permanente entre todos os
instrumentistas envolvidos, se expressando através de seus instrumentos, onde um dialoga com
o outro na mais perfeita concordância, parecido com contraponto, porém improvisado.
Tinhorão menciona em seu livro este fato, mostrando a importância do coletivo neste
estilo, se referindo a Joaquim Antônio Calado, flautista da segunda metade do séc. XIX:
“Embora não haja qualquer dúvida quanto ao fato de Calado ter sido um autêntico
autor e músico de choro (o próprio maestro Batista Siqueira observa que suas
partituras parecem exageradamente simples, mas por não traduzirem a riqueza das
improvisações, em meio ao clima virtuosístico do conjunto), seria reduzir demais a
amplitude do processo de criação da música do choro o pretender reduzi-lo à ação de
um único instrumentista.” (Tinhorão-pág104).
Há uma grande polifonia rítmica e melódica nas músicas executadas pelos grupos de
choro, porém na partitura apenas são escritos os acordes e a melodia principal, todas as vozes
que se desenvolvem paralelamente a essa melodia são criadas na hora da execução, respeitando
os critérios idiomáticos que são passados de músico para músico, de geração para geração por
tradição oral, durante o processo de fazer música.
Pixinguinha foi um dos grandes gênios da música popular brasileira e um dos
principais representantes do choro, tocava flauta, saxofone, era compositor, orquestrador e
regente. Aos 13 anos já se destacava como exímio flautista e rapidamente criou fama, atuando
em teatros de revista, grupos carnavalescos, cineteatros e grupos atuantes em festas. Com seu
grupo Os Batutas excursionou pela Europa em 1922, sendo um dos pioneiros na divulgação da
música popular brasileira no exterior. Em 1929 foi o primeiro maestro arranjador contratado
por uma gravadora no Brasil, a Victor, além de atuar como orquestrador para as rádios. Em
1942 trocou a flauta pelo saxofone tenor, uns dizem que foi devido a bebida, pois suas mãos já
não manejavam as chaves do instrumento com a leveza exigida. Outros dizem que teve um sério
12
problema dentário que o levou a perder a embocadura para a flauta. Ele mesmo jamais deu
qualquer justificativa para a decisão de mudar de instrumento.
Trabalhando pouco e gastando muito com o álcool, começou a atrasar os pagamentos
das prestações de sua casa. Nessa transição aparece para ajuda-lo o flautista Benedito Lacerda,
conhecido não só pelo talento como instrumentista, mas também pela habilidade nos negócios.
Consegue com a Editora Vitale, a título de adiantamento, a liberação do dinheiro suficiente para
o amigo ficar em dia com suas dívidas, e um contrato com a gravadora RCA Victor para a
gravação de 25 discos (ao todo foram 34 músicas em 17 discos, entre os anos de 1946 e 1950),
com ele tocando flauta e Pixinguinha ao saxofone. Em troca, passaria a ter parceria como autor
de todos os choros que gravassem, até mesmo dos choros mais antigos de Pixinguinha. Neste
momento, a música popular brasileira foi enriquecida por algumas da melhores e mais
importantes gravações de choro da história. “Benedito foi um flautista admirável e Pixinguinha,
com os contrapontos dos mais requintados, aperfeiçoando o que ouvira desde menino no
oficlide de Irineu de Almeida, abriu novos caminhos para a música instrumental brasileira.”
(CABRAL, 2006, pg161).
Este cenário é o enfoque e a motivação deste estudo, o entendimento das linhas
melódicas do sax tenor em diálogo com a flauta e sua relação com a harmonia. Quando
Pixinguinha trocou a flauta pelo saxofone levou o choro adiante, confirmando a sua permanente
modernidade, introduzindo contrapontos enriquecedores para o gênero.
Este trabalho tem como objetivo contribuir para o aprofundamento dos estudos da
trajetória estilística do choro, conferindo maior ênfase aos processos improvisatórios e
contrapontísticos, fazer uma análise no desenvolvimento melódico, no intuito de compreender
os procedimentos característicos desse gênero musical, e, à partir dos parâmetros das análises
e o entendimento da linguagem musical de Pixinguinha, pretende-se criar uma obra musical
inédita, colocando em prática os procedimentos analisados.
Em algumas publicações encontramos diferentes denominações referentes ao enfoque
deste trabalho de pesquisa, Cabral (1997) e Caldi (2000) chamam de contraponto, Matos (2012)
de improvisação/contraponto, Valente (2009) por sua vez apenas de improvisação, Geus (2009)
assume o termo contracanto, Moreira Júnior (2011) de contracanto improvisado.
Passado de geração para geração, a prática interpretativa do choro tem como base a
improvisação, que pode ser definido como:
“A criação de uma obra musical, ou de sua forma final, à medida que está sendo
executada. Pode significar a composição imediata da obra pelos executantes, a
13
elaboração ou o ajuste de detalhes numa obra já existente, ou qualquer coisa dentro
desses limites”, ou ainda estar ligada à idéia de “retorno a uma forma mais espontânea
de realização musical, em que membros diferentes de um conjunto respondem ao que
outros intérpretes estão tocando”. (SADIE, 1994, p. 450).
E, segundo Almada (2006), “o ato de improvisar nada mais é – ou ao menos deveria
ser considerado – do que compor instantaneamente”, e no choro, a composição, a improvisação,
e o contraponto acontecem em tempo real, ou seja, a composição nas linhas melódicas pré
definidas e repetidas a cada execução, a improvisação caracterizada nas variações das melodias
e contornos harmônicos, o contraponto como melodias secundárias soando simultaneamente,
como resposta ou ornamentação da melodia principal. Esses três elementos aplicados no choro
compreendo como “composição espontânea”, termo que será adotado neste estudo.
Para alcançar nossos objetivos devemos analisar questões relativas à harmonia, ritmo,
melodia e fraseado, compreender os processos criativos da composição espontânea de
Pixinguinha, em sua produção musical de 1946 a 1950, entender a construção da linha de
saxofone em relação a melodia principal da flauta e da harmonia - utilização de graus conjuntos,
saltos, tessitura, notas de passagem, apogiatura, cromatismo, frases e motivos, funções das
notas em relação aos acordes (fundamental, 3ª, 5ª, 7ª), padrões rítmicos e variações.
Iremos analisar a relação entre as duas melodias - movimento das linhas, importância
da harmonia no desenvolvimento da melodia do saxofone nas músicas Cheguei (1946) e
Displicente (1950).
As características observadas nas análises são fundamentais para se compreender os
processos criativos da composição espontânea de Pixinguinha, as quais se manifestam no
âmbito idiomático do choro.
14
CAPÍTULO 1
1.1 PIXINGUINHA – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
Durante o governo presidencial do marechal Hermes da Fonseca, que tomou posse em
1910 aconteceu uma das mais famosas revoltas brasileiras ocorridas na Primeira República,
a Revolta da Chibata. O movimento teve localização no Rio de Janeiro e envolveu alguns
militares da Marinha Brasileira.
O grande corpo da Marinha era formado por negros e mulatos que tinham sido alforriados
ou libertos em 1888 com a Lei Áurea. Mas quem ocupava de fato os cargos de comando, as
lideranças, eram militares brancos. Naturalmente, os brasileiros não deixaram de lado
simplesmente com a abolição da escravatura o preconceito e a discriminação com os negros.
Havia sido prática comum em todos os países do mundo a punição física dos marinheiros
em decorrência de condutas inadequadas. Essa punição se dava normalmente através de
chibatadas. Esse tipo de punição se assemelhava muito as punições sofridas pelos escravos
anteriormente, e como os punidos tendiam sempre a serem negros pairava no ar ainda a ideia
de uma continuação das práticas escravistas1.
As biografias não falam sobre isso, mas em depoimento para o programa ensaio da TV
Cultura, o grande flautista de choro Altamiro Carrilho conta sobre a homenagem que os amigos
jornalistas cariocas fizeram para Pixinguinha e seu grupo “Os Oito Batutas” devido ao grande
sucesso que fizeram na turnê pela França, proporcionando um grande jantar ao grupo num
famoso e conceituado hotel (do qual não citou o nome), e chegando lá, todos arrumados e bem
vestidos, foram barrados pelo porteiro de entrarem, dizendo “negros entram pela porta dos
fundos”. Pixinguinha em sua humildade vira para os integrantes da banda e diz “lamento,
amigos, teremos que entrar pelos fundos”, e lá foram eles, mas quando o gerente do hotel ficou
sabendo do acontecido mandou o porteiro ir ao camarim pedir desculpas, este, ao saber quem
eram as pessoas que mandou entrar pelos fundos se ajoelhou pedindo mil desculpas, dizendo
que só cumpriu ordens, e quase foi despedido se não fosse a intervenção do próprio Pixinguinha,
falando novamente, lamento que isto tenha acontecido, enfim, tudo resolvido, então ele pegou
um papel e no camarim começou a escrever uma música, nasce o choro “Lamentos”. Este fato
ocorreu em 1922.
Conto este fato para ilustrar os tempos difíceis para os negros, que sofriam muito com o preconceito racial,
pertinente nesta pesquisa, pois o protagonista desta história era negro, Alfredo da Rocha Viana Filho, o
Pixinguinha.
1
15
Pixinguinha, aos 14 anos de idade, em 1911, é convidado por Irineu de Almeida a integrar
o conjunto Choro Carioca, que contava com a participação de dois irmão de Pixinguinha ao
violão. Irineu era inquilino da Pensão Viana, casa onde o velho Alfredo da Rocha Viana
abrigava a família e alugava quartos para os amigos músicos, e foi professor de Pixinguinha,
que aprendeu rapidamente a ler e escrever música. Foi possível perceber nas gravações do
Choro Carioca os contrapontos criados por Irineu de Almeida no oficleide e que, sem dúvida,
constituem a semente dos maravilhosos “contrapontos” de Pixinguinha, tão marcante nas
gravações feitas em dupla com Benedito Lacerda, na década de 40.
O cenário musical até o final do século XIX, as composições da música clássica europeia
eram baseadas no tonalismo, ou música tonal, baseado em várias regras estabelecidas à partir
da escala maior natural: Dó Ré Mi Fá Sol Lá Si. Esse período foi o final do romantismo onde,
na Europa Central, o compositor que houvesse decidido continuar a linha tradicionalista
clássico-romântica se depararia com a obstrução de vários caminhos, pois parecia que as vias
haviam chegado ao extremo de sua trajetória.
O lento, mas insistente fluir cromático desintegrador da tonalidade, provocou a crise dos
valores tonais no findar do século XIX. Faltava ainda acrescentar uma ação centralizadora e
condensadora dos múltiplos esforços da desintegração tonal, assumida pouco mais tarde por
Arnold Schoenberg e seus contemporâneos.
Assiste-se então, o abandono do sistema tonal, no fim do século XIX, de maneira mais
ostensiva e sistemática nas composições de Franz List, Richard Wagner e Claude Debussy.
Schoenberg e seus alunos, chamados de A Segunda Escola de Viena, renovaram tudo
aquilo que se supusera imutável, de maneira que, a partir desse momento não foi mais possível
compor com as regras da tonalidade, caracterizando as obras dessa etapa como Atonal-livre,
novos encadeamentos de acordes e vários elementos que se distanciavam das regras tonais. Essa
música atonal ficou demasiadamente sem regras, e buscando uma maneira de organização
formal, Schoenberg, partindo da escala de doze sons, propôs um método para organiza-la de
maneira que cada um de seus sons obtivesse igual valor, e que não seria repetido um som
enquanto toda a série das doze notas não fosse apresentada, método esse que ficou conhecido
como dodecafonismo serial.
Esse foi um processo muito avançado de composição que chegou ao Brasil com
Koellreutter em 1937, mas não teve muito reflexo. Villa-Lobos adicionara a sua invenção
efeitos debussistas e solidifica o senso rítmico com o Sacre du Printemps, de Stravinsky. Mas
apesar de Pixinguinha ser amigo de Villa, não sabemos se ele teve contato com essa música
16
europeia, e se teve, não se influenciou, pois o choro que o acompanhou por toda a vida é uma
música tonal.
Nos EUA a música popular, o dixieland, nasceu no começo do século XX, em New
Orleans, e rapidamente se espalhou por Chicago, New York, pelas New Orleans Bands. Esse é
o primeiro tipo de música que se refere ao termo jazz. A situação dos EUA nessa época era
caracterizada por uma onda de crescimento e otimismo, em 1918, com o final da Primeira
Guerra Mundial e a Europa extremamente fragilizada, o jazz prosperou por todo o país, onde
Chicago tinha mais cabarés e bares noturnos do que o sul inteiro. Logo após surgiram as big
bands, na década de 1920, usinas sonoras dançantes, formadas por trompetes, trombones,
saxofones e uma clarineta, piano, contra-baixo, guitarra, bateria, além de um cantor. A febre
não tardou a se espalhar pelo mundo. No Brasil se formaram várias orquestras de baile, que
animavam as noites junto a bandas locais, bandas militares e formações de coretos. Sucessos
de Glenn Miller e Duke Ellington dividiam a preferência com clássicos da música popular
brasileira, todos devidamente rearranjados para agradar ao público dançante.
1.2 PIXINGUINHA – CONTEXTUALIZAÇÃO MUSICAL
O maestro Villa-Lobos comparava Pixinguinha ao compositor clássico J. S. Bach. Para
Jobim, era “um gênio da raça”. Vinicius de Moraes o considerava o “ser humano perfeito”, e
era tido pela Velha Guarda como “o mestre dos mestres”.
Pixinguinha foi um músico prodígio, nasceu e viveu em um ambiente musical, onde o
pai e os irmãos também eram músicos, além da frequência de grandes músicos em sua casa,
conhecida como Pensão Viana, onde seu pai hospedava músicos que estavam de passagem pela
cidade. Um dos moradores da pensão era o tocador de oficlide, bombardino e trombone Irineu
de Almeida, importante professor de Pixinguinha, que o ensinou a ler e escrever música, o que
foi muito importante para o rápido crescimento de sua carreira.
Durante toda sua carreira, sempre foi um músico muito requisitado, e contribuiu para a
consolidação do gênero quanto à forma, harmonia, melodia e desenvolvimento do estilo
improvisatório, que acontece, sobretudo, na forma de variações da linha melódica.
Com os Batutas viajou pelo Brasil, e foi pioneiro na divulgação da música popular
brasileira no exterior, em 1922 fizeram uma célebre excursão pela Europa, em Paris, prevista
inicialmente como curta temporada, a turnê se estendeu por seis meses, com casa cheia,
frequentada pela nobreza européia. Esse período ocasionou profundas mudanças na estética do
grupo, na instrumentação, na forma de arranjar, e na inclusão de novos gêneros, influenciado
17
pelos fox-trot, ragtimes, shimmys, blues e outros ritmos estrangeiros da moda. Em 11 de
fevereiro os Oito Batutas chegaram ao Porto Bordeaux, e sua estreia foi no dia 16, os Batutas
foram aplaudidíssimos, podendo-se dizer que a apresentação foi um verdadeiro sucesso.
De volta ao Brasil, influenciados pelo jazz americano que viram em Paris, reformularam
a formação dos Oito Batutas, identificando-se como uma jazz band, acrescentando piano,
bateria, e instrumentos de sopro. O novo conjunto ganhou o nome de Bi-Orquestra Os Batutas,
com repertório de músicas internacionais somadas ao repertório de choro. Foi nessa viagem que
Pixinguinha ganhou o saxofone e começou a usá-lo no grupo. Uma das músicas compostas com
influência da música americana foi Segura Ele.
Em 1923 excursionaram para a Argentina durante cerca de cinco meses, onde registraram
20 músicas para a gravadora Victor desse país, a maioria delas com Pixinguinha ao saxofone.
Os arranjos escritos para seus conjuntos chamaram a atenção das gravadoras, pois quase
todos os maestros da época eram estrangeiros e incapazes de escrever arranjos com a bossa
exigida pelo samba e pela música de carnaval. Precursor em tudo que fez, foi o primeiro maestro
arranjador contratado por uma gravadora no Brasil, a Victor, em 1929, fazendo uma verdadeira
revolução, atuando também como orquestrador para as rádios. Utilizou-se das técnicas de
orquestração para mudar a maneira de organizar a música, incorporando elementos
característicos brasileiros e dando destaque aos instrumentos percussivos e de sopro. Misturou
ritmos tradicionais europeus e africanos aos acordes nacionais determinados por Ernesto
Nazareth e Chiquinha Gonzaga e a novíssima sonoridade das jazz bands norte-americanas, já
enraizadas na Europa nessa época. Compositor totalmente livre de preconceitos foi, ainda, um
pesquisador incansável, reunindo com perfeição todos esses elementos para construir a gênese
da música popular.
“Pixinguinha “abrasileirou” as orquestrações de forma tão nítida e radical, que se pode
dizer, sem qualquer medo de errar, que foi ele o grande pioneiro da orquestração para a música
brasileira.” (CABRAL-pg127).
São incontáveis os arranjos que escreveu durante os anos em que atuou como orquestrador
das gravadoras brasileiras, vivendo um período de grande produtividade à frente de diversas
formações como Pixinguinha e Conjunto, Orquestra Típica Pixinguinha, Orquestra Típica Oito
Batutas. Tudo isso nos leva a garantir que não estará cometendo qualquer exagero quem afirmar
que Pixinguinha é uma das grandes referências do arranjo musical brasileiro.
Na década de 1930, gravou também muitos discos como instrumentista e várias músicas
de sua autoria como Rosa e Carinhoso, mas o mais expressivo daquela fase (incluindo mais da
metade da década de 40) foi a atuação como arranjador.
18
Em 1933, é convidado pelo prefeito Pedro Esnesto para entrar para o Serviço Público,
com o objetivo de fundar a Banda Municipal do Rio de Janeiro. Pixinguinha trabalhou no
dancing Eldorado, na Pça Tiradentes e diploma-se em Teoria Musical no Instituto Nacional de
Música.
Em 1942, fez a última gravação como flautista num disco com dois choros de sua autoria:
Chorei e Cinco Companheiros, para a gravadora Odeon.
Pixinguinha jamais deu qualquer justificativa convincente para a decisão de mudar de
instrumento, embora acredita-se que o consumo excessivo de bebida seja o motivo. Mas deixou
este registro:
Um dia, cismei que não tocava mais como queria. Comecei a ter medo. Medo de que
notassem os defeitos que eu notava na minha execução. Tempos depois vi uma
imagem de São Francisco de Assis falando aos peixes, que botavam as cabecinhas
fora das ondas para ouvir o santo. Pensei: ‘Pixinga, você já tocou num navio e os
peixes não botaram a cabecinha de fora. Você precisa aprender mais flauta, Pixinga!’
parei com medo de ficar doido. (Sérgio Cabral-Vida e Obra-pg160).
Nesse momento a música brasileira foi enriquecida pelos mais requintados contrapontos
com o lançamento de dezenas de discos em dupla com o virtuoso flautista Benedito Lacerda,
certamente um dos grandes momentos do choro. Até 1950 a dupla registrou 34 faixas, em 17
discos de 78 rpm, com obras primas do choro: “Ingênuo”, “Vou Vivendo”, “Um a Zero”,
“Sofres porque Queres”, “Pagão”, “Os Oito Batutas”, “André do Sapato Novo”, etc.
A semente plantada por Irineu Batista se desenvolveu, e mais de 30 anos depois,
Pixinguinha veio mostrar a influência desses contrapontos criados por seu professor, o que
aconteceu, em partes, pela troca da flauta pelo saxofone. Segundo Henrique Cazes:
...foi possível perceber nas gravações do Choro Carioca os contrapontos criados por
Irineu de Almeida no oficlide e que, sem dúvida, constituem a semente dos
maravilhosos contrapontos de Pixinguinha, tão marcantes nas gravações feitas em
dupla com Benedito Lacerda, na década de 40. (CABRAL, pg.25).
O choro é uma manifestação popular urbana, tipicamente da classe média e baixa, tendo
seu surgimento ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, em torno de 1850, conforme apontado na
maioria dos autores que escreveram sobre o assunto. Se transformou em um gênero musical na
segunda metade do século XIX (1870), sendo que a improvisação se constitui em um dos
19
principais elementos estilísticos característicos do gênero, que pode ser individual, sobre a base
rítmica e harmônica, ou coletivo, em contraponto com outro solista ou com os instrumentos de
acompanhamento. Teve como um dos marcos importantes na história desse gênero musical as
performances de Pixinguinha tocando saxofone tenor.
Algumas características do choro dessa época era a presença de poucos acordes
dissonantes, cadências perfeitas, o campo harmônico da tonalidade principal era sempre
presente, os improvisos eram curtos, geralmente aparecem na repetição da terceira parte, e com
apenas alguns arpejos e escalas sobre os acordes que estão sendo tocados. A linha melódica e a
harmonia baseiam-se no princípio da funcionalidade tonal, das inflexões melódicas (arpejos,
apogiaturas, antecipações, dentre outros elementos), que são delineados e funcionam
dialogando de perto com os princípios e funcionalidade do sistema tonal. Ao mesmo tempo, a
construção melódica é baseada principalmente em grupos de semicolcheia (4 notas por tempo),
e suas variações, por isso existe um caráter virtuosístico em sua execução, característica entre
os chorões que compõem e tocam as melodias.
É com esse conhecimento da formação musical e profissional de Pixinguinha que, em
1945, em suas gravações com Benedito Lacerda, analisaremos mais detalhadamente as
composições e contracantos tocados no saxofone tenor.
20
CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA
2.1 DEFINIÇÕES
2.1.1 Contraponto
O contraponto trata de inter-relações entre linhas melódicas, e deve ser levado em
consideração ao se compor esta linha: frases e motivos, clímax (ponto mais agudo de uma
melodia) e anticlímax (ponto mais grave de uma melodia), uso de tensões 2 dos acordes
utilizados, notas auxiliares, ritmo harmônico.
O contraponto aplicado a música popular apresenta um estilo livre, podendo a melodia
contrapontística apresentar arpejos, saltos, sequências e cromatismos, pois ocorre
principalmente em formações instrumentais e não mais vocais como observadas no contraponto
modal, estando, deste modo, diretamente relacionado a sonoridade utilizada nos acordes de uma
música. Todos os elementos tem influência sobre a construção do contraponto: a melodia
principal, que norteia a linha contrapontística, o ritmo, a harmonia.
Em relação ao aspecto rítmico, as variações utilizadas na melodia principal definem
que tipo de linha contrapontística se relacionam melhor com a mesma. Por exemplo: se a
melodia principal apresenta-se sincopada, uma linha contrapontística mais simples, com
abundância de notas longas, terá mais clareza e não prejudicará a fluência da outra. Por outro
lado, a utilização de grupos rítmicos pertencentes ou derivados da melodia principal na
construção do contraponto dará maior unidade ao arranjo.
A harmonia, como parte fundamental na elaboração da linha contrapontística,
apresenta grandes possibilidades de combinação intervalar, pois os cinco acordes básicos
(X7M, Xm7, X7, Xm7(b5), Xº) utilizados na música popular tem quatro sons (T, 3ª, 5ª e 7ª) e
podem oferecer uma série de tensões de acordo com a função que estes desenvolvem. Essas
tensões não modificam a função do acorde, apenas o intensifica e destaca, possibilitando
diferentes configurações para um mesmo acorde apresentado. Combinações intervalares que no
contraponto modal eram consideradas extremamente dissonantes são, do mesmo modo,
essenciais para a sonoridade da música popular, como por exemplo, as 2ª, 4ª, 7ª, 9ª e suas
alterações. Portanto, no contraponto tonal aplicado a música popular a ocorrência de tensões
torna-se muito importante para a qualidade do contorno melódico.
2
Tensões são os intervalos acima da sétima, estendendo o acorde em terças sucessivas. Assim, as tensões são 9,
11 e 13, e suas alterações b9, #9, #11, b13. (PEASE, 2003, p.xiv)
21
2.1.2 Improvisação
A improvisação musical consiste de uma prática baseada em diferentes maneiras de
manipulação de sons, individual ou coletiva, ligada diretamente a performance, composição e
interpretação musical (GEUS, 2009, p.43). Pode significar uma composição espontânea de
realização musical, onde os músicos interagem de acordo com o que o solista está tocando.
Essa prática está ligada a uma recriação da obra, onde o intérprete não reproduz
exclusivamente o que está impresso na partitura, mas participa criativamente, quase como sendo
co-autor, mostrando suas características particulares, ligadas a conhecimento, técnica,
sensibilidade e inventividade, interagindo mutuamente entre os integrantes do grupo, fazendo
com que cada execução tenha um caráter ímpar, com infinitas possibilidades de reinvenção.
O conceito de improvisação é bastante amplo, o instrumentista se torna ao mesmo
tempo improvisador, compositor e intérprete, com relativa liberdade de execução, restringida
apenas no que se refere ao estabelecimento de forma e convenções, geralmente acertadas em
ensaios prévios e coletivos, onde o discurso musical pode ser transmitido e assimilado pelos
integrantes através de forma oral e/ou escrita, traçando as diretrizes de execução através da
elaboração de um arranjo.
2.1.3 Forma
No choro há uma espinha dorsal para a escolha da interpretação quanto ao gênero,
forma, andamento e convenções a serem executadas pelo grupo. Quando a música é conhecida,
o arranjo praticamente encontra-se definido, pré-estabelecido principalmente pela tradição oral,
onde a prática de “acompanhar de ouvido” vem da herança dos chorões do meados do século
XIX. Desde o começo, o choro trouxe a característica da improvisação e do desafio entre os
músicos.
A forma do choro chamado “tradicional”, consolidado por Pixinguinha, usando a
forma rondó, em 3 partes A, B e C (ABACA)3, não é uma forma cíclica, e sim fechada, cada
música tem um começo e fim definidos, e entre eles um número de compassos determinado,
onde a improvisação se dá mais no sentido da interpretação e variação da melodia, juntamente
com a improvisação coletiva, cujo solista e os outros músicos do grupo improvisam melodias
3
Importante salientar que há o choro em duas seções, AB, como em “Lamento” (1928) e “Carinhoso” (1923),
ambas de Pixinguinha.
22
em contraponto, como as frases graves do violão, chamadas de “baixaria”. Como qualquer
gênero musical, o choro possui seu próprio vocabulário de frases típicas.
2.2 PLANO DE TRABALHO
A escolha das músicas a serem analisadas foram de acordo com a fase cronológica
referente a esta pesquisa. O choro Cheguei foi gravado no primeiro ano da parceria entre
Pixinguinha e Benedito Lacerda, e Displicente no último ano, com a intenção de observarmos
se houve ou não mudanças consideráveis na sua concepção criativa.
Para a análise dos aspectos técnico-musicais referentes às peças, recorreremos a
transcrições já disponíveis nos songbooks oficiais.
A partir do conjunto de transcrições, passaremos então às análises de fato, seguindo
um roteiro de análise, que aplicaremos à peça da seguinte maneira:
•
Macro análise: forma, tonalidade/modulação.
•
Micro análise: harmonia, células rítmicas, material melódico
•
Análise intermediária: fraseologia, identificação das frases, semifrases e notas-alvo.
Sobre os métodos de análise a serem utilizados usaremos a bibliografia de análise
teórica da música popular, pois nos ajudará em nossos objetivos investigativos. Dessa maneira,
podemos citar a princípio as seguintes fontes de pesquisa:
-Artigos acadêmicos e livros (bibliografia)
2.3 FUNDAMENTAÇÃO DAS ANÁLISES
2.3.1 Divisão das Análises/Forma/Tonalidades
A organização formal, que acontece em diferentes níveis na linguagem musical, é
necessária para a compreensão dos elementos estruturais e funcionais, dessa maneira iremos
dividir a análise em macroforma, que se refere a estrutura mais ampla: forma e as principais
modulações, e microforma, que enfoca os elementos estruturais mínimos, como os intervalos
da melodia em relação a harmonia, as progressões harmônicas, inflexão melódica, motivos
rítmicos e melódicos. Almada propõe também uma análise de nível intermediário, que envolve
a estrutura fraseológica interna das partes, e que iremos abordar em nossa pesquisa.
O choro tradicional normalmente é estruturado em 3 partes, com modulações em cada
parte, quase sempre em compasso binário e melodias com figuras rítmicas sincopadas.
23
Os músicos da comunidade do choro reconhecem a terminologia “choro típico” ou
“choro clássico” para designar a forma proveniente das ancestrais danças européias, quase todas
construídas na tradicional forma rondó ABACA, que cristalizou-se no choro da seguinte
maneira:
A (com repetição) – B (com repetição) – A – C (com repetição) – A.
Cada parte apresenta-se em tonalidades diferentes, porém vizinhas, criando contraste
entre elas, sendo formalmente obrigatórias, indo para regiões vizinhas ou paralelas.
As principais modulações características são:
A=tonalidade maior, B=modulação para a tonalidade relativa menor, C=modulação
para a tonalidade da subdominante maior.
A=tônica maior, B=dominante, C=subdominante.
A=tônica menor, B=relativa maior, C=homônima maior.
Pixinguinha consolidou essa forma devido ao fato de ter composto uma grande
quantidade de choros com três partes. Almada destaca que cada uma das três partes tem grande
autonomia, quando se fala em temas e motivos, como se fossem três choros independentes.
Lembrando novamente que há muitos choros compostos em duas partes, A B.
2.3.2 Análise Harmônica
A harmonia do choro tradicional se caracteriza pela simplicidade, baseada em acordes
perfeitos maiores e menores, e acordes dominantes. Além dos acordes do centro tonal da seção,
outros são usados, como as dominantes secundárias, acordes diminutos com função dominante
ou de passagem, acordes de empréstimo modal e o acorde de “sexta napolitana”.
Para a análise harmônica vamos usar os algarismos romanos, como é usado nas
análises de harmonia funcional em música popular, designando o grau do acorde em relação a
tonalidade. A característica do grau será especificado nas análises, ou seja, na tonalidade maior
o II é referente a um acorde menor, ou IIm.
Sobre as inversões dos acordes, fazem parte da identidade harmônica do choro, esse
elemento é bastante utilizado pelos compositores, sendo uma característica extremamente
importante.
Para os acordes invertidos, que na maioria das vezes fazem a condução do baixo em
uma única direção, ascendente ou descendente, faremos a notação apenas escrevendo o número
do intervalo que assumirá a nota mais grave do acorde ao lado do número romano, entre
parênteses. Dessa maneira, vamos usar o número 3 ao lado do algarismo romano para indicar
24
que o acorde está na primeira inversão (terça no baixo), o número 5 na segunda inversão (quinta
no baixo) e o número 7 na terceira inversão (sétima no baixo). Veja como ficam a cifra e a
análise no tom de dó maior. Acorde: C/E = I(3), C/G = I(5) e C/B = C(7) (Fig.1c).
Figura 1 - Inversão dos acordes.
2.3.2.1 Acordes Dominantes Secundário
À partir do modelo já consagrado e principal fórmula harmônica da hierarquia entre as
relações tonais, a cadência V7 – I, os demais graus diatônicos podem ser preparados por acordes
funcionalmente semelhantes ao quinto grau, como se fossem tônicas provisórias, pelos acordes
chamados dominantes secundários. Eles tem a mesma função do acorde V7 e devem resolver o
trítono de maneira convencional, ou seja, a terça do dominante dirige-se para a fundamental do
acorde de resolução e a sétima do dominante, para a terça do acorde de resolução. Como o
sétimo grau do campo harmônico maior tem a quinta diminuta, sua tríade é instável, o que o
torna impróprio ser chamado de acorde de resolução, não sendo possível o acorde V/VII.
O seguinte quadro resume a classe do acordes dominantes secundários:
Dominante secundário
V/II
V/III
V/IV
V/V
V/VI
Grau de origem
VI
VII
I
II
III
Acorde de resolução
II
III
IV
V
VI
Tabela 1 - Quadro ilustrativo dos acordes dominantes secundários e suas resoluções.
2.3.2.2 Acordes Substituto da Dominante, SubV7
Outro acorde com função dominante bastante usado nas harmonias de choro é o acorde
SubV7. A base desse acorde é o trítono do acorde V7, que por sua vez forma um outro acorde
dominante, apenas mudando sua fundamental. No acorde G7 temos as notas si e fá,
respectivamente terça e sétima, e simultaneamente, essas notas são sétima e terça do acorde
Db7 (enarmonizado para este acorde, dób e fá):
25
Figura 2 - Acorde subV7.
As funções que suas notas podem exercer dentro de um acorde dominante, isto é, terça
e sétima, podem ser livremente intercambiadas, sem que isso faça mudar a sonoridade
harmônica (em outras palavras, o acorde resultante após a troca de notas continua a ser de
qualidade dominante) (ALMADA, 2012, pg125), dessa maneira podemos entender os acordes
SubV7. A resolução desse acorde se faz em meio tom descendente (exemplo em C maior):
SubV/I - I
SubV/II - II
SubV/III – III
SubV/IV – IV
SubV/V – V
SubV/VI - VI
Db7 – C
Eb7 – Dm
F7 – Em
Gb7 – F
Ab7 – G7
Bb7 – Am7
Tabela 2 - Quadro ilustrativo dos acordes SubV7 e suas resoluções.
2.3.2.3 Acorde Diminuto
O acorde diminuto também assume função dominante por conter trítonos em sua
formação. Se analisarmos o acorde Bº temos as notas si ré fá e láb, onde nota-se o mesmo trítono
do acorde G7, e resolvem de maneira igual em relação as notas, si para dó e fá para mi do acorde
de dó maior. Neste caso a fundamental do acorde diminuto resolve em um acorde cuja
fundamental esteja um tom acima (CHEDIAK, 1986, pg.102):
Figura 3 - Acorde diminuto com função dominante.
O acorde diminuto recebe o algarismo romano em relação ao grau da tonalidade. Dessa
maneira podemos entender os acordes diminutos com função dominante e sua resolução:
26
VIIº
#Iº
#IIº
IIIº
#IVº
#Vº
Bº – C
C#º – Dm
D#º – Em
Eº – F
F#º – G7
G#º – Am7
Tabela 3 - Quadro ilustrativo dos acordes diminutos e suas resoluções.
2.3.2.4 Acordes de Empréstimo Modal
Além das opções de acordes com função dominante, não diatônicos pelo sistema tonal,
muito usados na música popular, temos outra fonte de acordes, os de empréstimo modal,
necessários para o entendimento das nossas análises.
Tomando como referência dó maior, as tonalidades vizinhas são sol maior e fá maior
(por terem a maior quantidade de notas em comum em relação a dó maior), ambas tem apenas
um acidente, e por sua vez são aquelas referentes aos graus dominante e subdominante. Esse
grau de parentesco, Almada (2012, pg.145) chama de regiões dominante e subdominante. E
ainda temos a região da tonalidade homônima menor. Os acordes de empréstimo modal,
substituem os graus diatônicos de mesmo numeral romano, com exceção de casos especiais de
dupla funcionalidade.
Os acordes do campo harmônico de sol maior tem três acordes em comum com o tom
de dó maior, e apresenta três novos acordes, visto que o II7 é dominantes secundária. O campo
harmônico de fá maior terá três novos acordes, e na tonalidade homônima de dó menor, todos
os acordes podem ser incorporados:
Graus
I
II
III
IV
V
VI
VII
Região
dominante
Em relação a
Dó
Região
subdominante
Em relação a
Dó
Região
homônima
menor
Em relação a
Dó
Gmaj7
Am7
Bm7
Cmaj7
D7
Em7
F#m7(b5)
Vmaj7
VIm7
VIIm7
I
II7
IIIm7
#IVm7(b5)
Fmaj7
Gm7
Am7
Bbmaj7
C7
Dm7
Em7(b5)
IVmaj7
Vm7
VI
bVIImaj7
I7
IIm7
IIIm7(b5)
Cm7
Dm7(b5)
Ebmaj7
Fm7
Gm7
Abmaj7
Bb7
Im7
IIm7(b5)
bIIImaj7
IVm7
Vm7
bVImaj7
bVII7
Tabela 4 - Acordes disponíveis (em destaque) de empréstimo modal.
2.3.2.5 Acorde Napolitano
27
E para finalizar os acordes de empréstimo modal, o acorde Napolitano, que é uma
tríade maior sobre o segundo grau escalar abaixado de um semitom, a abreviatura usada é bII
(DUDEQUE, 2003, pg.30). Este acorde também é conhecido como II frígio, ou seja, ele é
semelhante ao acorde do 2º grau no modo frígio e que está a uma distância de semitom da
tônica, neste caso, modal. O uso mais frequente deste acorde é no modo menor e na sua primeira
inversão (bII6). Este uso é tão comum que o acorde passou a ser conhecido como sexta
napolitana (Dudeque-2006).
Vale lembrar que a harmonia do choro tradicional não usa notas de tensão, como nona,
décima primeira ou décima terceira. A composição espontânea é basicamente fundamentada
através da combinação de arpejos com aproximações, cromatismos, notas de passagem e
inflexões melódicas. De modo prático, as notas que não fazem parte do acorde são chamadas
inflexões.
2.3.3 Análise Melódica
Na maioria dos Choros, a estrutura melódica é construída por arpejos, inflexões como
elemento importante e fragmentos escalares ligados por notas de passagem (diatônicas ou
cromáticas). O cromatismo é utilizado em trechos curtos, inseridos em linhas melódicas e
harmonia de tendência diatônica.
O processo de construção melódica é estabelecido através de “notas alvo”, que servem
como ponto de apoio para o fraseado e construção do contraponto, localizadas na maioria dos
casos em tempo forte (Fig.4).
Figura 4 - Notas alvo em destaque com o círculo.
As notas alvo são as notas do acorde: os números 1, 3, 5 e 7 grafados nas linhas
melódicas da flauta e do saxofone designam a função de cada nota dentro do contexto
harmônico, sendo que a variação dos intervalos, maior, menor, justo, aumentado ou diminuto,
apresentam-se implícitos na especificação do acorde de acordo com a cifragem.
1=fundamental do acorde;
3=terça do acorde, maior ou menor, de acordo com o acorde apresentado;
28
5=quinta do acorde, justa, aumentada ou diminuta, de acordo com o acorde
apresentado;
7=sétima do acorde, maior, menor ou diminuta, de acordo com o acorde apresentado.
As anacruses são idiomáticas nos inícios de frases. Em algumas obras ocorre uma
linearidade rítmica na melodia por meio da utilização de uma única figura de tempo (geralmente
semicolcheia). Essas melodias aparecem sobrepostas a um acompanhamento ou a uma linha
dos baixos sincopados, resultando em um variado efeito rítmico.
2.3.3.1 Ornamentos Melódicos
Os ornamentos são inflexões melódicas, modificações ocorrentes nas melodias
arpejadas nos choros. Uma nota exerce o papel de inflexão quando ela não pertence ao arpejo
do acorde que a acompanha, e invariavelmente dirige-se por grau conjunto, ascendente ou
descendente, à uma nota do arpejo, harmonicamente estável. Almada (2006) classifica os
ornamentos melódicos da seguinte maneira:
a) Nota de passagem (abreviatura: np): condução melódica com notas da escala do acorde,
através de graus conjuntos que conduzem a uma nota alvo, caracterizada por ter curta
duração, ocorre na métrica fraca, portanto é uma nota estranha ao acorde (Fig.5).
Figura 5 - Nota de passagem.
b) Dupla nota de passagem: esta situação acontece sempre que, dentro de um movimento
escalar, deseja-se preencher o espaço entre a quinta e a fundamental do acorde em vigor
Fig.6).
Figura 6 - Dupla nota de passagem.
29
c) Notas de aproximação cromática (cr): muito característico do choro, duas ou mais notas
cromáticas podem funcionar como pontes entre notas estáveis do arpejo, condução
melódica através de uma sequência de semitons que conduzem a uma nota alvo, e, como
na característica diatônica, suas notas podem ser do acorde ou constituírem notas de
passagem (Fig.7).
Figura 7 - Notas de aproximação cromática.
d) Bordadura (b): deslocamento de uma nota do arpejo por grau conjunto, ascendente ou
descendente, retornando para a mesma nota, classificada como superior ou inferior
(Fig.8).
Figura 8 - Bordadura.
e) Apogiatura (ap): acontece na métrica forte, consiste de uma nota estranha à harmonia,
e resolve de forma descendente por grau conjunto. As apogiaturas podem ser
ornamentais e melódicas (Fig.9).
Figura 9 - Apogiatura.
f) Escapada por Salto (es): acontece em métrica fraca, não possui preparação (quase
inversão da apogiatura) (Fig10).
Figura 10 - Escapada por salto.
30
g) Suspensão (sus): é alcançada com a mesma nota e deixada por grau conjunto
descendente, ligada ou não. A Suspensão mantém (ou suspende) uma nota do acorde
após as outras partes terem se movido para outro acorde (Fig.11).
Figura 11 - Suspensão.
h) Antecipação (ant): consiste em uma ou mais notas que soam dissonantes em um acorde
e se tornam consonantes nos seguintes (Fig.12).
Figura 12 - Antecipação.
i)
Cambiata (camb): ou resolução indireta, onde a nota de resolução é “cercada”
ascendente e descendentemente por inflexões distanciadas por grau conjunto (Fig.13).
Figura 13 - Cambiata.
2.3.4 Análise Rítmica
A divisão rítmica é um dos fatores principais que diferenciam um gênero musical de
outro, pois cada um tem suas próprias características. O choro é escrito em compasso binário,
normalmente em 2/4, e as células rítmicas mais usadas nessa linguagem, e que combinadas
31
formam a base para um motivo rítmico/melódico, podem ser resumidas nas figuras mostradas
abaixo:
Figura 14 - Células rítmicas características no choro (ALMADA, 2006, p.10-11).
Duas outras figuras foram identificadas nos choros analisados (Fig.15):
Figura 15 - Células rítmicas adicionais.
Duas dessas células combinadas formam dois tempos, o que pode gerar motivos
rítmicos, com inúmeras possibilidades (Fig.16):
Figura 16- Células rítmicas combinadas.
A síncopa é bastante usada, gerando outras possibilidades rítmicas (Fig.17):
Figura 17 - Síncopas.
Semínimas são usadas nos começos ou finais de frases, ou ainda na condução de baixos
nos contrapontos (Fig.18):
32
Figura 18 - Semínima.
Essas células rítmicas são usadas nos anacruses, idiomático no choro, em início de
frases, as mais usadas são (Fig.19):
Figura 19 - Anacruse característico do choro.
2.3.5 Análise Fraseológica
Para facilitar a visualização, as análises dos choros serão divididas em suas respectivas
seções A, B e C, sendo inicialmente apresentadas num esquema comparativo baseado na
sobreposição e indicação de suas frases. Em seguida, as frases serão apresentadas uma a uma
visando estabelecer a relação entre a composição espontânea e a melodia principal.
Como já falamos anteriormente, a forma rondó, característica nos choros analisados,
formado por três seções, A, B e C, contendo cada seção um período de 16 compassos, e dividido
em quatro fases por seção, pode ser descrito da seguinte maneira (Almada-2006):
Frase 1 (compasso 1 a 4) – enunciado principal ou antecedente;
Frase 2 (compasso 5 a 8) – contraste;
Frase 3 (compasso 9 a 12) – repetição do enunciado (consequente);
Frase 4 (compasso 13 a 16) – desfecho cadencial.
Almada (2006-pág.16) ressalta a possibilidade de subdividir e definir funcionalmente
a estrutura interna de cada frase. Vejamos as subdivisões exemplificadas na parte A do choro
Cheguei:
Frase 1 - Enunciado principal ou antecedente (compasso 1 a 4) – geralmente possui
estrutura simétrica, isto é, constitui-se de duas semifrases (cada uma composta por dois
compassos), que possuem mútua correspondência. Isto quer dizer que, motivicamente (em
relação a ritmo e contorno melódico), o bloco formado pelos compassos 1 e 2 tem relação de
parentesco com aquele dos compassos 3 e 4 (Fig.20):
33
Figura 20 - Cheguei, parte A, frase 1.
Frase 2 - estrutura interna similar ao da frase 1 (Fig.21):
Figura 21 - Cheguei, parte A, frase 2.
Frase 3 – geralmente possui a mesma estrutura e conteúdo da frase 1, e quase sempre
tem seu final modificado, de modo a conectar-se mais apropriadamente à frase 4 (Fig.22):
Figura 22 - Cheguei, parte A, frase 3.
Frase 4 – é a única das quatro frases que não se subdivide em duas semifrases, forma
uma espécie de bloco único de quatro compassos que é, quase sempre, resultado de um forte
impulso rítmico e harmônico (leia-se cadencial) em direção à conclusão da seção (Fig.23).
Figura 23 - Cheguei, parte A, frase 4.
34
CAPÍTULO 3 - ANÁLISES
3.1 CHORO CHEGUEI
Este choro foi gravado em 20 de maio de 1946, e lançado em novembro do mesmo
ano, foi a sexta música das 34 gravações registradas pela dupla Benedito Lacerda-Pixinguinha.
Nossa análise baseia-se numa transcrição onde foram grafadas as alturas das notas e respectiva
divisão rítmica, sem especificar dinâmicas e articulações. Como referência ao acompanhamento
harmônico foi usado a cifra tradicional de música popular.
3.1.1 Análise Macro
A tabela abaixo ilustra a macro estrutura, demonstrando as seções e o número de
compassos, e suas tonalidades respectivas:
Compassos
Tonalidade
Modulação
Seção A
16
F
Maior
Seção B
16
Dm
Relativa menor
Seção C
16
Bb
Subdominante
Tabela 5 - Macro estrutura do choro Cheguei.
3.1.2 Análise Micro do Choro Cheguei (Harmonia, Melodia e Rítmo)
3.1.2.1 Harmonia
Além dos acordes disponíveis referentes à tonalidade de cada seção (Tabela 6), temos
os acorde dominantes secundários nos compassos 5, 7 e 13 na seção A, onde Pixinguinha
valorizou as notas do acorde estranhas à tonalidade (não diatônicas), resolvendo terça e sétima
respectivamente na fundamental ou terça do acorde de resolução.
Na seção A, a melodia do sax, compasso 5, a nota dó#, terça do A7 (V/VI), resolve na
nota ré, fundamental do acorde seguinte Dm (VIm), no primeiro tempo do compasso 7, a nota
si (natural), terça do acorde G7 (V/V), seguida do arpejo do acorde, resolvendo a sétima meio
tom abaixo, terça do acorde C7 (V), e no compasso 13, a nota mib, sétima do acorde de F7
(V/IV), resolve meio tom abaixo, terça do acorde Bb (IV).
35
Na seção B, as dominantes secundárias dos compassos 3, 4, e sua repetição exata nos
compassos 11 e 12, estão cifrados na segunda inversão, e fazem parte de uma linha melódica
por grau conjunto do baixo. No compasso 7 (mesma situação do compasso 7 da seção A), nota
sol#, terça do acorde E7 (V/V), seguido do arpejo, e a sétima resolvendo meio tom abaixo, terça
do acorde A7 (V), e no compasso 15 (V/V V) apenas as fundamentais dos acordes.
Na seção C, compasso 7, situação parecida do compasso 5 da seção A, não em grau,
mas em acorde, nota dó#, terça do A7 (V/III), resolve na nota ré, fundamental do acorde
seguinte Dm (VIm), no compasso 10 temos o acorde Bb7 (V/IV), onde Pixinguinha começa a
melodia pela sétima, faz um grande arpejo até a sétima uma oitava acima, fazendo uma cambiata
com cromatismo e resolve na terça do acorde Eb (IV).
O acorde F#º do compasso 2 da seção B, tem função dominante (Vº/IV), e resolve
meio tom acima no acorde Gm (IVm), e encontra-se no meio de uma linha melódica ascendente
por grau conjunto de condução de baixo, repetido de maneira idêntica no compasso 10.
Na única aparição de um acorde subV7 no compasso 2 da seção C, Gb7 (subV/V) a
fundamental do acorde é antecipada em colcheia, seguido do arpejo e voltando à fundamental
com resolução meio tom abaixo no acorde F (V).
Os empréstimos modais ficam por conta do acorde IVm, na seção A, compasso 14 e
seção C, compasso 13, em ambos os casos a melodia do sax está na terça menor do acorde, nota
não diatônica, descendo meio tom para a quinta do acorde I.
No compasso 13 da seção B temos o acorde de sexta napolitana, em sua primeira
inversão, o acorde é arpejado, e a fundamental do acorde desce meio tom para a fundamental
do acorde Im.
A seguir a análise detalhada em graus da harmonia das três seções:
Seção/Tom
A (F)
1
2
3
4
5
6
7
8
I
V7
I
V7
V7/VI
VI
V7/V
V7
B (Dm)
Im V7(5)
I(3) IIIº
IVm V7(5)/IV
IVm(3) V7(5)/IV
IVm IIm
I(3)
V7/V
V7
C (Bb)
I
SubV7/V
V7
I V7
I
VI
V7/VI
VIm V7
9
10
11
12
13
14
15
16
I IIIm(5)
IIm(5) V7(3)
I IIIm(5)
IIm(5) V7(3)
V7/IV
IV(3) IVm(3)
I VIm IIm V7
I
Im V7(5)
IIIº
IVm V7(5)/IV
IVm(3) V7(5)/IV
bII(3)
Im
V7/V V7
Im
I
V7/IV
%
IV(3)
IVm(3)
I VIm
V7/V V7
I
Tabela 6 - Análise harmônica do choro Cheguei.
36
3.1.2.2 Melodia
Para a análise intervalar e das inflexões, se a apogiatura ou a bordadura (Fig.24)
estiverem na primeira semicolcheia do primeiro ou segundo tempo, será considerado a próxima
nota do acorde, no caso na segunda semicolcheia. Antecipação (Fig.25) será considerada a
própria como nota do acorde antecipado:
Figura 24 - Apogiatura e bordadura no tempo.
3
Figura 25 - Antecipação.
A tabela a seguir mostra os intervalos da melodia executada por Pixinguinha ao
saxofone, em relação a melodia principal e a harmonia, em tempo forte (tempos um e dois), e
caso a nota do tempo seja uma inflexão, consideraremos a primeira nota seguinte pertencente a
tétrade do acorde:
F
C7
F
C7
A7
Dm
G7
C7
1 1
3 1
1 1
3 1
1 1
5 3
1 1
5 7
1 3
5 1
1 3
5 5
3 1
1 3
3 1
3 1
(CONT.)
F Am/E
Gm/D C7/E
F Am/E
Gm/D C7/E
F7/Eb
Bb/D Bbm/Db
F Dm Gm7 C7
F
flauta
sax
1 5
5 1
1 5
5 1
1 3
1 5
5 5
1 -
1 5
5 1
1 5
5 3
7 1
3 3
5 5
1 1
Acordes:
flauta
sax
Tabela 7 - Seção A, tonalidade de F.
Acordes:
flauta
sax
Dm A7/E
Dm/F F#º
Gm D7/A
Gm/Bb D7/A
Gm Em7(b5)
Dm/F
5 7
3 7
5 7
3 5
1 5
3 1
1 1
5 5
1 5
3 1
1 5
3 5
1 1
3 1
3 1
3 3
(CONT.)
Dm A7/E
F#º
Gm D7/A
Gm/Bb D7/A
Eb/G
Dm
E7 A7
Dm
flauta
sax
5 7
1 7
5 7
3 5
3 5
1 3
5 5
1 1
1 5
1 -
1 5
3 5
3 1
1 3
1 1
1 -
Tabela 8 - Seção B, tonalidade de Dm.
E7
A7
37
Bb
Gb7
F F7
Bb F7
Bb
Dm
A7
Dm F7
5 1
1 -
3 5
5 5
5 3
5 1
5 3
1 1
1 -
1 7
1 7
3 5
1 -
5 3
3 1
1 1
(CONT.)
Bb
Bb7
%
Eb/G
Ebm/Gb
Bb Gm7
C7 F7
Bb
flauta
sax
5 1
7 1
5 7
1 1
3 5
5 5
1 1
1 5
1 -
7 1
7 5
3 3
3 1
5 1
3 7
3 -
Acordes:
flauta
sax
Tabela 9 - Seção C, tonalidade de Bb.
Notamos claramente na linha melódica do sax a preocupação com a condução
harmônica, em tocar a fundamental do acorde ou sua inversão descrita na cifra (Tab.10):
Seção
A
B
C
1 (fundamental)
13
15
11
3 (terça)
9
9
8
5 (quinta)
9
6
4
7 (sétima)
1
0
5
Tabela 10 - Número de ocorrências em tempos fortes, de fundamentais, terças, quintas e sétimas utilizadas por
Pixinguinha nas melodias de sax do choro Cheguei.
Em sua composição espontânea, Pixinguinha utiliza amplamente as fundamentais,
terças e quintas, as sétimas são menos ocorrentes, mais explorada apenas na seção C. A melodia
é conduzida delineando a harmonia, a estrutura harmônica é claramente percebida através do
desenho melódico de seu improviso, graças ao uso de vários arpejos e tríades.
3.1.2.3 Ritmo
Observa-se que Pixinguinha, em sua composição espontânea, dialoga ritmicamente
com a melodia da flauta em contraste, isto é, quando neste há maior densidade rítmica, o sax
toca notas longas ou de maior duração, e vice-versa.
Neste choro, a seção A tem nos primeiros oito compassos um motivo rítmico formado
por dois compassos (Fig.26), onde o sax tenor começa com anacruse, valorizando a nota alvo,
e repetindo em compassos intercalados (para facilitar o entendimento da métrica, cada seção é
formada por 16 compassos, sendo assim vamos enumera-los de 1 à 16):
Figura 26 - Células rítmicas da flauta e sax tenor da seção A (compassos 1 à 8).
38
No compasso 9 (terceira frase) o motivo rítmico muda (Fig.27), e a cada dois
compassos Pixinguinha varia o ritmo no segundo tempo do segundo compasso do motivo:
Figura 27 - Células rítmicas da flauta e sax tenor da seção A (compassos 9 à 12).
A seção B tem um motivo melódico que se desenvolve por quatro compassos em
semicolcheia (Fig.28), e repete nos compassos 9 à 12, em contraste o sax toca a linha do baixo
em semínimas:
Figura 28 - Células rítmicas da flauta e sax tenor da seção B (compassos 1 à 4 e 9 à 12).
Nos compassos 5 à 8, Pixinguinha dialoga mais ativamente com a flauta,
principalmente dobrando ritmicamente o segundo tempo (Fig.29):
Figura 29 - Células rítmicas da flauta e sax tenor da seção B (compassos 5 à 8).
Nos quatro últimos compassos da seção B não há novidade rítmica entre as duas vozes,
a flauta segue em semicolcheia e o sax em semínimas.
Na seção C nota-se uma alternância rítmica (Fig.30), principalmente na melodia do
sax, começando o primeiro compasso com semínimas e colcheias e no segundo semicolcheias,
em diálogo com a flauta, onde o primeiro compasso se desenvolve com semicolcheias e o
segundo compasso é menos movimentado, com algumas notas longas e pausa:
39
Figura 30 - Células rítmicas da flauta e sax tenor da seção C.
3.1.3 Análise Intermediária
Cheguei
choro
Pixinguinha e Benedito Lacerda
Transcr. Sève e Ganc
Figura 31 - Seção A com análise melódica e identificação das frases.
40
3.1.3.1 Análise das Frases e Notas-alvo do Choro Cheguei
Seção A (Fig.31): formada por um período contendo quatro frases, nota-se que as
notas-alvo circuladas muitas vezes são precedidas por diferentes inflexões em função da escolha
de diferentes caminhos de condução melódica.
A primeira frase da composição espontânea divide-se em duas semifrases, conforme
mostra a figura abaixo:
Aproximação
diatônica
Aproximação cromática
Aproximação
Aproximação cromática
diatônica
Figura 32 - Primeira frase da seção A, notas-alvo e inflexões.
A primeira semifrase (Fig.32), compassos 1-3, tem como nota alvo a nota fá,
fundamental do acorde, antecedida por aproximação diatônica, dando apoio para a melodia, que
começa com pausa de semicolcheia, e no terceiro compasso a nota sol, quinta do acorde,
sugerindo segunda inversão do mesmo, e antecedido por aproximação cromática. Nota-se que
a linha melódica do sax tenor apresenta um caráter de complementação da melodia principal,
onde há pouca movimentação, com uso de notas longas. A semifrase 2 (compassos 3-5) é uma
repetição exata da primeira, seguindo a melodia da flauta.
A segunda frase compreende os compassos 5-9:
Aproximação
Aproximação diatônica
diatônica
Figura 33 - Segunda frase da seção A.
Arpejo
41
A primeira semifrase (Fig.33), compassos 5-7, começa com aproximação diatônica
descendente em direção a nota-alvo dó#, terça do acorde A7, pedindo resolução na nota ré, nota
alvo e fundamental do acorde do compasso 7. A segunda semifrase (compassos 7-9) é
semelhante a primeira, começa com aproximação diatônica descendente em direção a nota-alvo
si (natural), porém a nota inicial da semifrase é um sib, nota estranha ao acorde de Dm, meio
tom abaixo da nota alvo seguinte, e, na quarta semicolcheia do segundo tempo a nota dó
resolvendo na nota si natural, terça de G7, caracterizando a cambiata, mas de uma maneira
estendida. Os compassos 5 e 7 são semelhantes ritmicamente, seguindo o modelo da repetição
rítmica da melodia da flauta. No segundo tempo do compasso 8, o arpejo do acorde V7/V, onde
a sétima resolve na terça, nota alvo do acorde C7 (compasso 9).
A terceira frase compreende os compassos 9-13:
Aproximação
Aproximação
diatônica
diatônica
Figura 34 - Terceira frase da seção A.
Também dividido em duas semifrases (Fig.34), a primeira começa no compasso 9,
com aproximação diatônica para a nota alvo fá, fundamental do acorde, apoiando a melodia
principal que começa com pausa de semicolcheia no primeiro tempo do compasso 10. O sax
tenor toca a inversão definida na sifra, com exceção do acorde C7/E do segundo tempo do
compasso 11, onde começa a segunda semifrase, com a mesma aproximação diatônica
ascendente do começo da primeira semifrase, porém com variação rítmica, culminando
novamente na nota fá, com repetição exata até a nota alvo mi, terça do acorde C7/E, obedecendo
dessa vez a inversão escrita na sifra.
A quarta frase correspondente a conclusão da parte A (compassos 13-17), também
dividida por duas semifrases (Fig.35):
42
Arpejo
Aproximação
Aproximação cromática
diatônica
Figura 35 - Quarta frase da seção A.
Observa-se que as inversões escritas na cifra dos acordes segue uma linha cromática
descendente, a nota-alvo mib no compasso 14, sétima do acorde, é alcançada por dupla
aproximação cromática, em semicolcheia, contrastando com a melodia da flauta, em repouso
no segundo tempo do compasso 13. A nota-alvo ré é alcançada com aproximação diatônica
descendente do segundo tempo do compasso 14, cromatizando até a nota-alvo dó, finalizando
a primeira semifrase. A segunda semifrase começa no compasso 16 com arpejo dos acordes, e
dobra da melodia no segundo tempo até a nota-alvo fá, finalizando a seção A com arpejo
descendente até o fá uma oitava abaixo.
3.1.3.2 Análise do Choro Cheguei-Seção B
Estrutura com quatro frases, conforme figura abaixo:
43
Figura 36 - Seção B com análise melódica e identificação das frases.
Análise das frases e notas alvo
Nota-se que a primeira frase dessa seção (Fig.37), compasso 19-22, não foi subdividida
em semifrases.
Motivo
Figura 37 - Primeira frase da seção B
Na primeira frase da seção B a melodia da flauta faz um motivo rítmico e melódico de
arpejo descendente em semicolcheias, sem inflexões, onde Pixinguinha optou em apenas
conduzir a linha do baixo, mantendo as inversões escritas na cifra, em contraste com a melodia
principal, seguindo um caminho ascendente por grau conjunto, mudando a direção no segundo
tempo do compasso 22, culminando na nota alvo sol, fundamental do acorde IVm.
A frase 2 (Fig.38) foi dividida em duas semifrases, a primeira é caracterizada pelos
arpejos do acorde em direção à terça do acorde de Dm, obedecendo a inversão escrita na cifra,
e segue com o arpejo do acorde com uma nota de aproximação cromática em movimento
contrário para a quinta do acorde, cromatizando para a nota alvo sol#, terça do acorde E7. No
44
segundo tempo do compasso 23 temos o arpejo do acorde, onde a sétima resolve meio tom
abaixo, na terça do A7, nota alvo c#. Existe um paralelo desse trecho (compassos 25-26) com
o mesmo trecho da seção A (compassos 8-9), cuja harmonia é V/V – V nas duas seções, onde
Pixinguinha opta por conduzir a harmonia pela terça dos dois acorde, em ambas as seções.
Arpejo
Aprox. cromática
Arpejo
Figura 38 - Segunda frase da seção B
A frase 3 (Fig.39) começa pelo arpejo descendente de A7, resolvendo em grau
conjunto na nota-alvo ré, fundamental do acorde, à partir desse compasso é muito semelhante
à frase 1, com exceção do compasso 26, onde o acorde F#º dura o compasso inteiro, diferente
do seu antecedente (frase 1), onde o compasso é dividido com o acorde Dm/F no primeiro
tempo.
Motivo
Arpejo
Figura 39 - Terceira frase da seção B
A frase 4 (Fig.40) é o desfecho da seção B, composto sem a subdivisão de semifrases,
onde Pixinguinha mais uma vez opta pela condução harmônica tocando a linha do baixo em
semínimas, apenas o arpejo descendente do acorde no segundo tempo do compasso 31, em
direção à nota-alvo, fundamental do acorde de Dm. O contraste é bem evidente nos compassos
32-33, onde a melodia da flauta toca uma escala cromática que ultrapassa a oitava, até a
penúltima semicolcheia do compasso 33.
45
Figura 40 -Quarta frase da seção B
3.1.3.3 Análise do Choro Cheguei-Seção C
Figura 41 - Seção C com análise melódica e identificação das frases.
46
Olhando para a partitura acima (Fig.41), notamos uma grande movimentação da
composição espontânea executada por Pixinguinha, tanto pela parte rítmica com bastante
semicolcheias, quanto pela melodia, com tessitura bastante ampla, variando do grave para o
agudo e vice-versa várias vezes, interagindo de forma mais atuante com a melodia da flauta.
Análise das frases e notas alvo
Nota-se que a primeira frase dessa seção (compasso 37-40, Fig.42) foi subdividida em
duas semifrases. Há um preenchimento melódico entre as vozes, no qual podemos chamar de
pergunta e resposta, a flauta se movimenta em semicolcheias e o sax tenor conduz a harmonia
em semínimas (compassos 37 e 39), enquanto nos compassos 38 e 40 a flauta repousa e o sax
se movimenta. Observe a figura:
Aprox. diatônica
Figura 42 - Primeira frase da seção C.
Na primeira semifrase (Fig.42) vemos a antecipação da nota alvo solb, fundamental
do acorde do compasso 38, seguido do arpejo do mesmo até sua oitava ascendente, conectando
descendentemente pela semifrase 2 até a nota-alvo fá, fundamental do acorde, através de
aproximação diatônica. Seguido de movimento de sétima, valorizando o acorde F7 resolvendo
na nota-alvo ré, terça do acorde de Bb, e aproximação diatônica para a nota mib, antecipação
do acorde F7.
A frase 2 (Fig.43) inicia no segundo tempo do compasso 40, observa-se o começo da
semifrase 1, onde Pixinguinha usa arpejo descendente do acorde com nota de passagem por
grau conjunto intercalada entre a terça e a fundamental, e pela primeira vez a resolução não se
dá por grau conjunto, e sim de um intervalo de quarta ascendente, de fundamental para
fundamental. Na sequência (segundo tempo) uma passagem cromática para a nota-alvo lá,
quinta do acorde Dm, finalizando a semifrase 1. A semifrase 2 começa com nota de passagemarpejo-nota de passagem-arpejo, isto é, movimento escalar diatônico descendente em
47
movimento contrário da melodia da flauta, e resolvendo cromaticamente meio tom abaixo na
nota dó#, terça do acorde V/III, nota não diatônica que é resolvida no compasso 44, na nota ré,
fundamental do acorde, precedida da fundamental do acorde V, retardando a resolução. E
aproximação cromática para a nota fá, fundamental do acorde F7, no segundo tempo do mesmo
compasso, finalizando a frase.
Aprox. cromática
Aprox. cromática
Aprox. diatônica
Figura 43 - Segunda frase da seção C.
A primeira semifrase da frase 3 (Fig.44) inicia-se na nota sib descendo em grau
conjunto para a nota lab, valorizando a sétima do acorde Bb7. Em contraste com a melodia da
flauta, o sax tenor faz um arpejo ascendente em semicolcheia chegando na nota alvo lab, sétima
do acorde uma oitava acima da anterior, por aproximação cromática. Essa nota, não diatônica,
resolve na nota sol (compasso 48), alcançada por sequência cromática ascendente, é a terça do
acorde e ao mesmo tempo nota do baixo segundo a cifra. Segue-se uma cambiata para a
fundamental mib com arpejo descendente novamente para a fundamental, agora uma oitava
abaixo.
Aprox.. cromática
Cromatismo
Figura 44 - Terceira frase da seção C.
A quarta e última frase da seção C (Fig.45) é totalmente conclusiva, tanto na melodia
da flauta quanto na composição espontânea do sax tenor, observa-se nas notas-alvo uma
sequência melódica descendente por grau conjunto, à partir do compasso 50, notas solb, fá, mi,
48
mib e ré, sendo as três últimas, terça para sétima e para terça, reincidência que já vimos
anteriormente.
Figura 45 - Quarta frase da seção C.
3.2 CHORO DISPLICENTE
3.2.1 Análise Macro
Este choro foi gravado em 07 de julho de 1950, e lançado em outubro do mesmo ano,
foi a de número 32 (antepenúltima) das 34 gravações registradas pela dupla Benedito LacerdaPixinguinha.
A tabela abaixo ilustra a macro estrutura, demonstrando as seções, o número de
compassos, e suas tonalidades respectivas:
Compassos
Tonalidade
Modulação
Seção A
16
F
Maior
Seção B
16
Dm
Relativa menor
Seção C
16
Bb
Subdominante
Tabela 11 - Macro estrutura do choro Displicente.
Nota-se que a forma e tonalidades são as mesmas da música Cheguei.
3.2.2 Análise Micro do Choro Displicente (Harmonia, Melodia e Rítmo)
3.2.2.1 Harmonia
A análise harmônica segue o mesmo conceito da harmonia tonal do choro anterior, ou
seja, uso dos acordes disponíveis de cada tonalidade, além dos acordes dominantes secundários
e de empréstimos modais, porém no primeiro compasso da seção A (Fig.46) nota-se um novo
49
elemento, o acorde diminuto sem função dominante, / F Bº / F /, acorde #IVº, que pode ser visto
como um acorde Bb7(b9) (IV7) sem resolução, função subdominante. Porém, em sua linha
melódica ao sax tenor Pixinguinha toca a nota sol#, inversão do Bº, e resolve meio tom acima,
na nota lá, terça do acorde F, que por sua vez poderia ser um acorde IIIm (Am), visto que a nota
lá é tocada três vezes nesse compasso e a nota fá (fundamental do acorde) nenhuma, e no
terceiro compasso temos um D7/F#, completando a cadência (implícita) IIm V7/II:
Figura 46 - Linha melódica do sax tenor nos compassos 1, 2 e 3 da seção A.
Na reexposição do tema (compasso 9-Fig.47) o caminho melódico é repetido, porém
a fundamental do acorde F é reforçada no primeiro tempo do compasso:
Figura 47 - Linha melódica do sax tenor nos compassos 9, 10 e 11 da seção A.
No compasso 13 (Fig.48), temos o mesmo Bº, antecedido do Bb (IV), indo para o F/A,
porém, contrariando a cifra, Pixinguinha resolve a nota si meio tom acima, na nota dó, quinta
do F, seguindo o mesmo princípio do exemplo anterior:
Figura 48 - Linha melódica do sax tenor nos compassos 13 e 14 da seção A.
No primeiro compasso da seção C (Fig.49) temos a mesma situação da seção A,
transposta uma quarta acima, e a resolução do acorde diminuto se faz da mesma maneira, nota
dó#, inversão do acorde Eº, resolvendo na nota ré, terça de Bb, sugerindo um IIIm:
50
Figura 49 - Linha melódica do sax tenor nos compassos 1, 2 e 3 da seção C.
Seção/Tom
A (F)
1
2
3
4
5
6
7
8
I #IVº
I
V7(3)/II
IIm
IIm IIm(7)
V7(3) IIm(5)
I(5) V(7)
I(5) V7
B (Dm)
Im
V7(3)
V(7)/IV
IVm(3)
V7/bIII
bIII VIm7(b5)
V V7/V
V V(5)/bIII
C (Bb)
I #IVº
I
V/II
IIm
V7/VI
VIm
IIIm(3) V7(5)/III
IIIm V7(5)
9
10
11
12
13
14
15
16
I #IVº
I
V7(3)/II
IIm
IV #IVº
I(3) V7/II
IIm V7
I V7
bIII V7(5)
V7/IV
IVm(3) V7(5)/IV
IVm V/IV
IVm IIm7(b5)
Im Im(7)
V7(5)/V V7
I
I V(7)/IV
IV(3)
V7/II
IIm
#IIº
I(3) V7/II
V7/V V7
I
Tabela 12 - Análise harmônica das seções A, B e C da música Displicente.
3.2.2.2 Melodia
Outra novidade, mas agora na parte melódica, foi o uso de dissonâncias na melodia da
flauta, através da suspensão de uma nota do acorde, que se torna dissonante no acorde seguinte,
ou resolução atrasada, normalmente para a segunda semicolcheia do primeiro tempo do
compasso, onde na nota do tempo encontramos nota de passagem ou pausa. Na maioria dos
casos, Pixinguinha antecipou os acordes em uma semicolcheia:
Compassos 1 a 4 da seção A.
Compassos 5 a 8 da seção B.
Figura 50 - Suspensão ou retardo na melodia da flauta, antecipação na melodia do sax tenor.
51
A tabela a seguir mostra os intervalos da melodia executada por Pixinguinha ao
saxofone, em relação a melodia principal e a harmonia, em tempo forte (tempos um e dois), e
consideraremos a nota de resolução, caso a nota do tempo seja uma inflexão:
Acordes:
flauta
sax
F Bº
F
D/F#
Gm
Gm Gm/F
C7/E Gm/D
F/C C/Bb
F C7
1 3
5 5
1 5
1 3
1 7
3 5
5 7
1 1
1 3
3 5
3 1
1 3
1 7
3 5
5 7
3 1
(CONT.)
F Bº
F
D/F#
Gm
Bb Bº
F/A D7
Gm7 C7
F
flauta
sax
1 5
5 5
1 5
3 3
5 5
5 1
1 9
1 1
1 5
3 5
3 1
1 3
3 1
5 1
1 1
1 1
Tabela 13 - Seção A, tonalidade de F.
Acordes:
Dm
A7/C#
D/C
Gm/Bb
C7
F Bm7(b5)
A E7
A
C7/G
1 7
flauta
sax
3 5
5 3
9 1
5 3
3 7
1 5
1 1
1 3
3 5
7 1
3 3
3 1
1 5
5 7
1 7
(CONT.)
F A7/E
D7 D/C
Gm/Bb D7/A
Gm D7
Gm Em7(b5)
Dm Dm/C
E7/B A7
Dm
flauta
sax
3 5
1 5
1 7
5 3
1 1
3 1
9 3
1
1 5
1 7
3 5
1 7
1 5
5 1
1 1
1
Tabela 14 - Seção B, tonalidade de Dm.
Bb Eº
Bb
G7
Cm
D7
Gm Gm6
Dm/F A7/E
Dm F7/C
3 1
5 5
5 7
1 1
3 1
3 1
3 5
1 7
1 7
1 1
1 3
3 7
3 1
1 1
3 5
1 3
(CONT.)
Bb Bb/Ab
Eb/G
G7
Cm
C#º
Bb/D G7
C7 F7
Bb
flauta
sax
1 1
1 1
3 13
1 1
1 1
5 1
9 3
1 1
1 7
3 3
5 1
3 3
3 1
5 1
1 3
1 5
Acordes:
flauta
sax
Tabela 15 - Seção C, tonalidade de Bb.
Novamente observa-se a condução harmônica na linha melódica do sax tenor (Tab.16),
tocando a fundamental do acorde ou sua inversão descrita na cifra, esta mais reincidente nesta
música, percorrendo trechos de até cinco compassos seguidos de linha melódica de baixo
ascendente ou descendente, delineando a harmonia.
Seção
A
B
C
1 (fundamental)
14
13
14
3 (terça)
10
6
11
5 (quinta)
6
7
4
7 (sétima)
2
5
3
Tabela 16 - Tabela com o número de ocorrências em tempos fortes, de fundamentais, terças, quintas e sétimas
utilizadas por Pixinguinha nas melodias de sax do choro Displicente.
3.2.2.3 Ritmo
52
A seção A (Fig.51) tem o motivo rítmico da melodia principal no primeiro e segundo
compasso, repetindo nos compassos 3-4 e 5-6, e na segunda metade da seção o motivo se
mantém simétrico nos compassos 9-10, 11-12 e 13-14. O motivo do sax acontece nos mesmos
compassos do motivo da flauta, dando apenas o apoio harmônico nos tempos 1 e 2, antecipando
o segundo compasso do motivo:
Figura 51 - Motivo rítmico da seção A.
Na seção B (Fig.52) o motivo rítmico mais evidente está nos compassos de 1 à 4, tanto
na melodia da flauta quanto na melodia do sax, que participa ativamente dobrando ritmicamente
boa parte da melodia principal:
Figura 52 - Rítmica dos compassos 1 à 4 da seção B.
Nos compassos 9 à 12 (Fig.53), Pixinguinha faz a condução de baixos em semínimas,
em contraste com o motivo em semicolcheias da flauta:
Figura 53 - Rítmica dos compassos 9 à 12 da seção B.
Nos 4 últimos compassos da seção B (Fig.54) não há um motivo rítmico da flauta, mas
o sax mantém a rítmica dentro de uma organização motívica:
53
Figura 54 - Rítmica dos compassos 13 à 16 da seção B.
A motivo rítmico da melodia da flauta na seção C (Fig.55) é o mesmo da seção A, e
se desenvolve a cada dois compassos, com pequenas variações nas repetições seguintes até o
fim da seção. O sax faz a mesma rítmica da seção A nos compassos 1-2 e 4-5, mas nota-se que
não manteve o motivo em todos os compassos como na seção A, nos compassos 7-8 dobrou a
rítmica da flauta, e nos compassos 9-10 optou pelas semínimas:
Figura 55 - Compassos 7 à 10 da seção C.
3.2.3 Análise Intermediária
Displicente
Choro
Pixinguinha e Benedito Lacerda
Transcr. Sève e Ganc
54
Figura 56 - Seção A com análise melódica e identificação das frases.
3.2.3.1 Análise das Frases e Notas-alvo do Choro Displicente
Seção A: formada por um período contendo quatro frases, nota-se que as notas-alvo
circuladas muitas vezes são precedidas por diferentes inflexões em função da escolha de
diferentes caminhos de condução melódica.
A primeira frase da composição espontânea divide-se em duas semifrases, conforme
mostra a figura abaixo:
Antecipação
Sequência diatônica
Ap
Aprox. crom.
Antecipação
Figura 57 - Primeira frase da seção A, notas-alvo e inflexões.
A primeira semifrase (compassos 2 e 3-Fig.57) começa com a terça do acorde, nota lá,
seguindo para a nota sol#, inversão do Bº, voltando ao mesmo lá, situação já comentada
anteriormente, seguindo para a nota-alvo fá# (segunda semifrase), terça do acorde D, e nota do
baixo segundo a cifra, usando movimento escalar (sequência diatônica) e resolvendo com
55
aproximação cromática. O acorde seguinte tem a nota alvo sol, fundamental do acorde,
alcançada por antecipação de semicolcheia.
A segunda frase compreende os compassos 5-9:
Motivo
Figura 58 - Segunda frase da seção A, notas-alvo e inflexões.
A primeira semifrase (Fig.58) começa em anacruz no compasso 5 com nota de
aproximação diatônica para a nota-alvo sol, fundamental do acorde, onde até o primeiro tempo
do compasso 10, a linha melódica do sax acompanha as inversões da cifra, em movimento por
grau conjunto descendente. No compasso 7, um motivo rítmico e melódico com arpejo
descendente em movimento contrário da melodia da flauta. Nos compassos 7 e 9 as notas alvo
são antecipadas em semicolcheia, compensando a ausência da nota do acorde no primeiro tempo
desses compassos na melodia da flauta, situação comentada anteriormente.
A terceira frase (compassos 9-13-Fig.59) é igual a primeira, exceto pela conclusão do
último compasso, onde há um novo motivo melódico, acorde-b-acorde-np / acorde-b-acordenp, se adequando a frase 4.
Sequência diatônica
Figura 59 - Terceira frase da seção A, notas-alvo e inflexões.
A frase 4 (Fig.60), dividida em duas semifrases, começa por aproximação diatônica na
última semicolcheia do compasso 13, em direção a nota-alvo ré, terça do acorde Bb, passando
pela nota-alvo si (fundamental do acorde) e chegando na nota-alvo dó, quinta do acorde,
56
contrariando a cifra F/A, como já foi falado. O arpejo do acorde D7 foi apenas para combinar
com a melodia principal, em semicolcheias descendentes, sai da fundamental e volta, atingindo
a nota alvo sol, fundamental do próximo acorde, finalizando a seção A por movimento de
quartas, sol-dó-fá. No compasso 16, na melodia da flauta, no segundo tempo, observa-se o
arpejo de Dbº sobre o acorde C7, resultando no acorde C7(b9), mais uma novidade na
construção melódica. Nota-se que a nota-alvo dó, fundamental do acorde do compasso 17 é
retardada para a parte fraca do tempo, na segunda semicolcheia, através de apogiatura.
Aprox. diatônica
Arpejo
Figura 60 - Quarta frase da seção A, notas-alvo e inflexões.
Retardo
57
Figura 61 - Seção B com análise melódica e identificação das frases.
3.2.3.2 Análise das frases e notas alvo-seção B
A seção B modulou para Dm (tonalidade relativa menor-fig.61). A primeira frase
(Fig.62) compreende os compassos 18 a 21, e está dividida em duas semifrases:
Motivo
Figura 62 - Primeira frase da seção B, notas-alvo e inflexões.
A primeira semifrase (Fig.62) começa no segundo tempo do compasso 17, melodia
descendente diatônica ao acorde A7, por grau conjunto, em direção a nota-alvo ré, fundamental
do acorde. Este motivo rítmico e melódico se estende por toda frase 1, sendo as notas-alvo do#,
terça do acorde A7 (compasso 19), nota dó, sétima do acorde D (compasso 20) e nota sib, terça
do acorde Gm (compasso 21), observa-se que são as notas do baixo segundo a cifra, formando
uma linha descendente por grau conjunto, apesar da mudança de oitava no compasso 19.
A primeira semifrase da frase 2 (Fig.63) começa no segundo tempo do compasso 21,
chegando na nota-alvo mi, terça do acorde, por aproximação cromática. No segundo tempo do
compasso 22 observamos o motivo que vai se repetir até o fim da frase 2, finalizando nas notas
alvos, porém por salto. Nesse primeiro motivo vemos a reincidência da antecipação do acorde
na melodia, nota fá, compensando as notas dissonantes da melodia da flauta.
58
Aprox.. crom.
Motivo
Inflexão/arp
Arpejo
Inflexão/arp
Figura 63 - Segunda frase da seção B, notas-alvo e inflexões.
A frase 3 (Fig.64) não é subdividida em semifrases, baseada em semínimas, dá apoio
harmônico para a melodia da flauta, muito densa ritmicamente, construída apenas com
semicolcheias. Observa-se o contraste rítmico entre as duas, onde a flauta faz dois motivos
melódicos, um em cada semifrase, o primeiro descendente e o segundo ascendente. O sax toca
exatamente as notas das inversões dos acordes indicados na cifra, tocando uma linha melódica
descendente por grau conjunto quase completando uma oitava. A frase 3 finaliza na sétima do
acorde D7, cadenciando para a frase 4.
Figura 64 - Terceira frase da seção B, notas-alvo e inflexões.
A frase 4 (compasso 29-33-Fig.65)) é dividida em duas semifrases. A nota-alvo sol
(compasso 30), é antecedida por arpejo e atingida por salto de quarta ascendente. No compasso
31 a nota alvo lá, quinta do acorde Dm, é antecipada, novamente compensando as notas
dissonantes da melodia da flauta. O arpejo descendente de Dm chega na nota-alvo mi,
fundamental do acorde, por grau conjunto ascendente e seguem as notas-alvo lá e ré, esta
antecipada, e fundamentais dos acordes, finalizando a seção B.
59
Arpejo
Arpejo
Figura 65 - Quarta frase da seção B, notas-alvo e inflexões.
3.2.3.3 Análise das Frases e Notas-alvo-Seção C
60
Figura 66 - Seção C com análise melódica e identificação das frases.
Modulada uma quarta acima, para a tonalidade da subdominante, observamos que a
primeira frase (compassos 35-39-Fig.67) da composição espontânea de Pixinguinha está
dividida em duas semifrases:
Cromátismo
Cromátismo
Arpejo
Figura 67 - Primeira frase da seção C, notas-alvo e inflexões.
A primeira semifrase começa no compasso 35 (Fig.67), cromatizando da nota fá até o
ré chegando diatonicamente e por grau conjunto na nota-alvo sib, fundamental do acorde de
mesmo nome. No segundo tempo (compasso 36), a melodia do sax antecipa a nota-alvo ré, terça
do acorde Bb, amenizando a tensão da suspensão na melodia da flauta, alcançada por
aproximação cromática pela nota dó#, sétima diminuta do acorde Eº criando um efeito de
resolução, mesmo este não tendo função dominante, situação recorrente na seção A. No
compasso 37 a rítmica é a mesma da flauta, preenchido com notas do arpejo do acorde seguido
de cromatismo descendente em direção à nota-alvo sol, fundamental do acorde e continuando
as notas da tétrade resolvendo a sétima um tom abaixo, na terça menor do acorde Cm.
A segunda frase da seção C (Fig.68) é dividida em duas semifrases, a primeira começa
em anacruz no compasso 39, com sequência diatônica descendente resolvendo cromaticamente
até a nota-alvo fá#, terça de D7. O acorde Gm no compasso 40 é antecipado, novamente
diminuindo a tensão da melodia principal. O arpejo desse acorde é encadeado no arpejo do
61
acorde Dm/F iniciado pela terça, inversão indicada na cifra, chegando na nota-alvo mi, quinta
do acorde A7/E, com aproximação cromática e obedecendo a inversão cifrada. O acorde Dm
no compasso 43 tem a fundamental antecipada, e finaliza a segunda semifrase com notas do
acorde em semicolcheia antecipando a nota do baixo invertido do acorde F7. Observa-se que
as notas-alvo dos compassos 41 ao 43 formam uma linha descendente por grau conjunto, usando
basicamente notas dos acordes como embelezamento melódico e delineando a harmonia.
Arpejo
Seq diatônica
Figura 68 - Segunda frase da seção C, notas-alvo e inflexões.
A terceira frase (Fig.69) é regida pelos acordes e suas inversões determinadas na cifra,
começando pelo compasso 43 com aproximação diatônica descendente do arpejo do acorde
dominante em direção a nota-alvo sib, fundamental do acorde (compasso 44), seguindo com
notas-alvo até o compasso 46, nota ré, quinta do acorde, antecipado por três notas de
aproximação diatônica, mantendo os graus conjuntos descendentes. O mesmo motivo melódico
é usado, porém com mudança rítmica, antecipando a nota-alvo mib, diminuindo a tensão
causada na suspensão na melodia da flauta, finalizando com bordadura.
Aprox diat (motivo)
Motivo
Figura 69 - Terceira frase da seção C, notas-alvo e inflexões.
E finalmente a quarta e última frase (Fig.70), começa com dupla aproximação
cromática em direção a nota-alvo mi natural, por antecipação, e terça do acorde C#º, onde
através do arpejo do acorde como preenchimento melódico chega na nota-alvo fá (compasso
62
49), por aproximação cromática ascendente, dando a sensação de resolução do trítono, e
contrariando a inversão cifrada (Bb/D), seguindo para os compassos 49-50 passando pelas
fundamentais sol e dó e sequência diatônica descendente até a nota-alvo lá e antecipação da
fundamental do acorde Bb. Observa-se que no compasso 51 Pixinguinha toca o arpejo exato do
acorde Gm, sobreposto ao Bb, explorando a dissonância de sexta.
Figura 70 - Quarta frase da seção C, notas-alvo e inflexões.
3.3 RESUMO DAS ANÁLISES
De acordo com as análises, constatamos que a harmonia é tonal, cujos acordes são
formados por tríades (1, 3 e 5), com exceção dos acordes dominantes (primários e secundários),
e dos acordes diminutos e meio diminutos, formados por tétrades (1, 3, 5 e 7).
Uma das características predominantes são os acordes com baixo invertido (1ª, 2ª e 3ª
inversões), sendo comum sequências de 3 à 4 compassos, com 2 acordes por compasso, criandose uma linha melódica de baixo ascendente ou descendente.
Na harmonia não há a presença de dissonâncias de 9ª, 11ª ou 13ª, mas na música
Displicente observamos o acorde menor com sexta maior (m6), sendo o único diferencial dos
acordes já citados.
Como pudemos notar à partir da análise intervalar, as melodias da flauta e do sax tenor
são guiadas pelas notas dos acordes, identificadas nas partes fortes dos tempos 1 e 2 pelas notas
alvo, e alcançadas através de arpejos ou inflexões melódicas. Nesse contexto, observou-se que
as linhas melódicas do sax apoiam a harmonia, tocando as fundamentais ou a inversão cifrada
do acorde, e participando mais ativamente interpolando frases curtas de semicolcheia nos
momentos de notas longas ou pausas da melodia principal, ou dobrando ritmicamente a melodia
mas com notas independentes.
63
Na análise fraseológica pode-se observar claramente a organização formal de cada
seção, subdividida em 4 frases com 4 compassos cada. No choro Cheguei, as 3 seções tem essa
subdivisão bem clara, onde a primeira frase expõe o motivo principal e a terceira frase é uma
repetição da primeira com pequena variação, a segunda e quarta frases são independentes e
contrastantes, sendo que esta conduz à finalização da seção, regido pela harmonia que cadencia
para o acorde tônica no último compasso. Em sua composição espontânea, Pixinguinha é bem
claro quanto a essa organização formal, com fraseados de 4 compassos, dialogando com a
melodia, ou apoiando a harmonia.
O choro Displicente, apesar de obedecer a mesma organização fraseológica do choro
Cheguei na seção A, mostra certa independência nas seções B e C, onde as quatro frases de
cada seção são independentes entre si, não havendo repetição de motivos rítmicos ou melódicos,
apenas a seção C se desenvolve ritmicamente com o motivo dos dois primeiros compassos até
o final da seção.
A melodia do sax, entretanto, mantém a subdivisão das frases nas três seções, ficando
um pouco mais livre na seção C, onde reforça o motivo rítmico da melodia principal
antecipando os acorde com a sincopa presente no motivo.
3.4 CHORO “CHORANDO SE FOI”
As conclusões das análises dos choros “Cheguei” e “Displicente” serão usadas para
nortear uma composição original no mesmo gênero, mantendo algumas características como
forma em 3 seções, harmonia tonal, mas com algumas dissonâncias nos acordes que não foram
usados nos choros analisados (maj7, 9, 11, 13), padrões de semicolcheia e ritmos sincopados,
onde o objetivo principal é criar uma melodia de sax nas características analisadas na
composição espontânea de Pixinguinha, em diálogo com a melodia da flauta. Para este choro
daremos o título de “Chorando Se Foi”.
3.4.1 Análise Macro
A tabela abaixo ilustra a macro estrutura, demonstrando as seções e o número de
compassos, e suas tonalidades respectivas. A repetição da seção C tem dois compassos a mais
e faremos a notação C’ para essa indicar esse trecho:
64
Seção A
16
Am
Menor
Compassos
Tonalidade
Modulação
Seção B
12
C
Relativa maior
Seção C
12
F
bVI
Seção C’
14
F
%
Tabela 17 - Macro estrutura do choro Chorando Se Foi.
Esta composição original foi estruturada em 3 partes, mas com número de compassos
irregular entre as seções, onde a tonalidade da parte C é próxima das tonalidades das seções A
e B por ter apenas uma nota diferente. Entretanto, segundo Almada (2006), no caso de choro
em tonalidade menor a modulação mais usada na seção C é a tonalidade homônima maior.
Neste caso a modulação foi para o grau bVI.
3.4.2 Análise Micro do Choro “Chorando Se Foi” (Harmonia, Melodia e
Ritmo)
3.4.2.1 Harmonia
A harmonia segue os padrões da harmonia tonal, mas a diferença é o acréscimo de
dissonâncias de nona, décima primeira e décima terceira, e suas variações maior, menor e
aumentado.
Seção/
Tom
A (Am)
1
2
3
4
5
6
7
8
Im7 subV/bVII
bVImaj7
V7 V7/IV
V7(b9)
bVIm7 subV7/I
Imaj9
V7/V
subV7/I
IVm
IVm(7)
I(3)
IIm7b5
B (C)
bIII(5)
subV7/bVI(#9)
V7/II
V7(3)/II
V(7)/V
subV(7)/I
C (F)
Imaj9
V7(3)/II
IIm II(7)
VIIm
VIIm(7)
Imaj7(5)
V(#5)/IV
IV6
IVm(6)
9
10
11
12
13
14
15
16
Im
Im(7) IV7(3)
bVImaj7
bIIImaj7(3)
bII(3)
Im7(3)
IIm7b5 V7(#9)
Im7
VIsus4 Vsus4
IVsus4 bIIIsus4
bIIsus4 VIIsus4
VIsus4 Vsus4
IIIm7
subV7/II
IIm7
V9
(C’)
II
VIIº
Imaj7
%
Tabela 18 - Análise harmônica do choro Chorando Se Foi.
Podemos notar em todas as seções que, além dos acordes com as dissonâncias já
citadas, nos compassos 9 à 12 da seção B temos uma sequência descendente de acordes 7sus4,
com distância de um tom entre eles, que funcionam como passagem para a seção C.
65
3.4.2.2 Melodia
A tabela a seguir mostra os intervalos da melodia do saxofone, em relação a melodia
principal e a harmonia, em tempo forte (tempos um e dois), neste caso alguns intervalos podem
ser dissonâncias presentes na harmonia, e não serão considerados inflexões:
Acordes:
Flauta
Sax
(CONT.)
fláuta
Sax
Am7 Ab7
9 3
1 1
C/G Gb7(#9)
6 7
5 1
Fmaj7
1 6
1 3
E7 A7(#9)
5 1
1 1
Dm7 Dm/C
1 1
1 7
Bm7(b5)
5 5
1 3
E7(b9)
3 3
1 3
Fm7 Bb7
5 3
1 1
Am7
Am/G D7/F#
Fmaj7
Cmaj7/E
Bb/D
Am7/C
Bm7(b5) E7(#9)
Am
3 3
1 1
1 9
7 3
1 6
1 3
7 5
3 5
- 7
3 1
5 5
3 1
3 #9
1 1
1 9
1 4
Tabela 19 - Seção A, tonalidade de Am.
Cmaj9
A7(#9)
D13
Db7(#5)
9 5
#9 5
13 1
1 5
1 5
1 5
(CONT.)
A7sus4 G7sus4
F7sus4 Eb7sus4
Db7sus4 B7sus4
A7sus4 G7sus4
fláuta
sax
4 4
4 4
4 4
4 4
1 1
1 1
1 1
1 1
Acordes:
fláuta
sax
Cmaj9/E
A7(#9)
D13/C
Db7(#5)/Cb
#5 #4
3 5
#9 5
13 1
#5 1
1 1
3 1
3 1
7 1
7 1
Tabela 20 - Seção B, tonalidade de C.
Fmaj9
D9/F#
Gm Gm/F
3 -
9 9
1 5
(CONT.)
fláuta
sax
Acordes:
fláuta
sax
Fmaj7/C
F7(#5)
Bb6
Bbm6
7 4
Em7
Em7/D
3 1
7 -
7 7
6 9
6 4
3 7
1 7
1 7
5 7
1 #5
1 3
6 5
Am7
Ab7
Gm7
C9
3 -
5 3
1 5
1 9
1 5
1 3
1 5
1 1
Gm7
9 5
Eº
6 1
Fmaj7
1 1
%
1
1 7
5 3
5 3
3
(CONT.)
fláuta
sax
Tabela 21 - Seção C, tonalidade de F.
Nota-se que as dissonâncias dos acordes foram um importante guia para a melodia
principal, onde muitas delas foram determinadas como inflexões melódicas nos choros
analisados do Pixinguinha, uma vez que os acordes eram formados apenas por tríades e tétrades.
No sax, a condução harmônica foi mantida, norteado pela fundamental do acorde ou sua
inversão descrita na cifra:
Seção
A
B
C
1 (fundamental)
19
17
11
3 (terça)
8
2
5
5 (quinta)
2
3
8
7 (sétima)
2
2
5
Tabela 22 - Número de ocorrências em tempos fortes, de fundamentais, terças, quintas e sétimas utilizadas no
choro original Chorando Se Foi.
66
Da mesma maneira que Pixinguinha utilizou amplamente, em sua composição
espontânea, as fundamentais, terças, quintas e sétimas, nesta composição original foi adotado o
mesmo critério, a fim de manter as características melódicas do sax, acompanhando a harmonia,
e ao mesmo tempo dialogar com a melodia principal com arpejos e contornos melódicos.
3.4.2.3 Ritmo
A fim de manter as características do gênero choro, as figuras rítmicas empregadas no
processo composicional foram as demonstradas no capítulo 2. A métrica dos motivos rítmicos
obedece a fraseologia a cada quatro compassos, determinante na estruturação das seções.
Nos compassos de 1 à 4 da seção A (Fig.71), a rítmica do sax faz a marcação do tempo,
em contraste com as figuras sincopadas da flauta:
Figura 71 - Células rítmicas da seção A, compassos 1 à 4.
No próximo grupo de quatro compassos (5 à 8-Fig.72), a flauta teve maior
movimentação, onde usou-se grupos de semicolcheias com sincopa do primeiro para o segundo
tempo. O sax valorizou o padrão rítmico com colcheia pontuada e semicolcheia:
Figura 72 - Células rítmicas da seção A, compassos 5 à 8.
Nos compassos 9 à 12 (Fig.73), a flauta repete o motivo rítmico inicial, com pequena
variação nos compassos 9 e 10, e maior movimentação do sax nos compassos 11 e 12:
67
Figura 73 - Células rítmicas da seção A, compassos 9 à 12.
Finalizando a seção A, compassos 13 à 16 (Fig.74), a flauta faz a repetição da mínima
célula rítmica geradora da sincopa dos compassos anteriores, e o sax numa linha independente
apoia os tempos fortes:
Figura 74 - Células rítmicas da seção A, compassos 13 à 16.
A seção B tem 12 compassos (Fig.75), com três ideias rítmicas de quatro compassos
cada. Nos compassos 1 à 4 o sax e a flauta conversam, onde o sax ‘pergunta’ e a flauta
‘responde’:
Figura 75 - Célula rítmica da seção B, compassos 1 à 4.
Nos compassos 5 à 8 (Fig.76) a flauta assume a rítmica principal e o sax conduz a
marcação dos tempos em semínimas:
Figura 76 - Célula rítmica da seção B, compassos 5 à 8.
68
Os compassos 9 à 12 (Fig.77) são uma passagem para a seção C, a flauta segue em
semicolcheias faz a marcação, com crescimento rítmico no final da seção:
Figura 77 - Células rítmicas da seção B, compassos 9 à 12.
Na seção C, compassos 1 à 4 (Fig.78), o sax ganha maior movimento rítmico, em
contraste com as notas longas da flauta, e nos compassos 5 à 8 essa rítmica é repetida com
pequenas variações:
Figura 78 - Células rítmicas da seção C, compassos 1 à 4 e 5 à 8.
A seção C tem duas finalizações (Fig.79), a casa 1 determina a seção com 12
compassos. Nos compassos 9 e 10 vemos a troca de movimento rítmico, semínima contra
semicolcheias. Situação parecida nos compassos 11 e 12:
Figura 79 - Células rítmicas da seção C, compassos 9 à 12, casa 1 (C).
A seção C (Fig.80), casa 2 (C’), mantem a mesma rítmica nos compassos 11 e 12
mostrado na figura anterior, e finaliza nos compassos 13 e 14 com os dois instrumento dobrando
o ritmo:
69
Figura 80 - Células rítmicas da seção C, compassos 9 à 14, casa 2 (C’).
3.4.3 Análise Intermediária
Tanto a melodia da flauta quanto a do sax tenor, do choro original Chorando se Foi,
foram compostos seguindo a mesma organização formal fraseológica dos choros analisados,
contendo frases de quatro compassos, sendo a seção A formada por quatro frases, e a seção B
e C por 3 frases. A subdivivisão em duas semifrases foi um critério secundário para a construção
das frases.
3.4.3.1 Análise das Frases e Notas-alvo do Choro Chorando se Foi-Seção A
Na seção A, a primeira frase da flauta foi composta subdividida em duas semifrases,
conforme mostra a figura 90. A linha do sax é norteada pelas fundamentais dos acordes e pela
inversão descrita na cifra, melodicamente descendente em semitons.
Figura 81 - Primeira frase da seção A, notas-alvo e inflexões.
A segunda frase (Fig.82) foi composta à partir dos motivos da melodia do sax e da
flauta no compasso 5. As notas principais da melodia da flauta são as notas-alvo no primeiro
tempo de cada compasso, assim como as notas-alvo do sax, que novamente seguem o baixo da
harmonia.
70
Motivo rítmico e melódico
Figura 82 - Segunda frase da seção A, notas-alvo e inflexões.
A terceira frase da seção A (Fig.83) é repetição da frase 1, transposta uma 8ª acima,
com pequena variação rítmica nos compassos 9 e 10, como já foi falado anteriormente. Alguns
acordes foram re-harmonizados, resultando em nota-alvo dissonante no compasso 10, a nona
do acorde D9/F#, não usado nos choros analisados. As notas-alvo do sax delineiam a melodia,
complementadas com arpejos dos acordes.
Figura 83 - Terceira frase da seção A, notas-alvo e inflexões.
Na frase 4 (Fig.84), as dissonâncias foram enfatizadas, principalmente na melodia da
flauta, (indicado pelas flechinhas), criando uma sonoridade bastante diferente dos choros
analisados, onde as notas alvo destes são apenas notas da tétrade. Os dois instrumentos
finalizam suas frases em dissonâncias.
Figura 84 - Quarta frase da seção A, notas-alvo e inflexões.
3.4.3.2 Análise das frases e Notas-alvo do Choro Chorando se Foi-Seção B
71
Dois parâmetros determinaram a composição da frase 1 da seção B (Fig.85), o primeiro
foi a dissonância dos acordes enfatizada no primeiro tempo de cada compasso, na melodia da
flauta. O segundo foi a distribuição de uma melodia ascendente entre os dois instrumentos, o
sax começa com quatro semicolcheias e a flauta continua da mesma nota do sax, em direção à
sua nota alvo. No compasso 19 essa sequência se quebra com a repetição quase exata pela
melodia da flauta, uma oitava acima do sax. Neste caso a união das duas melodias formam a
melodia principal.
Figura 85 - Primeira frase da seção B, notas-alvo e inflexões.
A segunda frase da flauta foi construída à partir de um motivo rítmico e melódico de
dois tempos (Fig.86), valorizando as dissonâncias, junto com as notas da tétrade dos acordes.
O sax evidencia a harmonia tocando a inversão cifrada no primeiro tempo e no segundo a
fundamental do acorde.
Motivo rítmico e melódico
Figura 86 - Segunda frase da seção B, notas-alvo e inflexões.
A terceira e última frase da seção B (Fig.87) é uma passagem para a próxima seção,
composta pelo motivo inicial de quatro semicolcheias e pelos intervalos ‘4 6 1 np’, descendente
de tom em tom, acompanhando o movimento dos acordes 7sus4. A semifrase 2 do sax varia
ritmicamente as fundamentais em oitavas, intencionalmente criando tensão no final da seção
para a passagem para a seção C.
72
Motivo melódico
Figura 87 - Terceira frase da seção B, notas-alvo e inflexões.
3.4.3.3 Análise das Frases e Notas-alvo do Choro Chorando se Foi-Seção C
Em contraste com a frase 3 da seção anterior, a melodia da flauta na frase 1 desta nova
seção (Fig.88) começa no compasso 29 onde a nota mi dura 3 tempos, dissonante para o
segundo acorde por suspensão. Para preenchimento melódico, o arpejo ascendente com
intervalos dissonantes ao acorde no compasso 31, atinge a nota-alvo sol, início da cadência para
a próxima frase. O sax contrasta ritmicamente com a flauta. As notas-alvo são ligadas por notas
do arpejo e notas de passagem.
Figura 88 - Primeira frase da seção C, notas-alvo e inflexões.
A segunda frase da flauta (Fig.89) é uma repetição da primeira, mas não exata, pois a
melodia se adequa aos acordes, tendo alguns intervalos alterados. Apesar da curva melódica do
sax ser diferente em relação a frase 1, o contraste rítmico se mantem e o preenchimento
melódico conduz às notas-alvo.
Figura 89 - Segunda frase da seção C, notas-alvo e inflexões.
73
A terceira frase da flauta na seção C (Fig.90) foi composta com notas em grau
conjunto, descendente às notas-alvo, e diatônico às escalas dos acordes. As notas fundamentais
dos acordes nos primeiros tempos de cada compasso foram a referência para o preenchimento
melódico, em contraste rítmico com a melodia principal. A finalização da ‘casa 1’ conduz à
repetição da seção.
Figura 90 - Terceira frase da seção C, notas-alvo e inflexões.
A novidade da repetição da seção C (Fig.91) é o acréscimo de dois compassos no final,
para adequar a resolução da cadência no primeiro grau da tonalidade. Nos dois instrumentos, a
melodia do acorde Eº gera tensão para a resolução com as notas do arpejo do acorde tônico.
Figura 91 - Terceira frase da seção C’, notas-alvo e inflexões.
74
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises nos ajudaram a entender um fenômeno prático que norteiam a performance
musical, pois o choro não se aprende no papel, mas sim pela oralidade e pelo ato de fazer música
nas rodas de choro. Portanto, conclui-se que é necessário ao músico prático o conhecimento e
domínio de motivos rítmico-melódicos, arpejos e notas de passagem cromática e diatônica,
mesmo que intuitivamente.
A compreensão dos caminhos usados na composição espontânea de Pixinguinha foi
relevante para aplicar na composição original, objetivo final deste trabalho de pesquisa.
O contraste rítmico, a alternância entre movimento e repouso estão presente nas
melodias do sax, orientado pelas notas fundamentais, e/ou pela inversão cifrada dos acordes,
características próprias voltadas para o suporte harmônico. Isso nos faz deduzir que este foi o
caminho adotado pela ‘baixaria’ do violão de 7 cordas. Segundo Geus (2009, pág 153) falando
sobre Dino Sete Cordas, importante violonista integrante do regional de Lacerda, “conclui-se
que os contracantos de Dino Sete Cordas (chamados de baixarias) tem influência direta dos
contracantos realizados por Pixinguinha, instaurando-se com isso uma nova forma de proceder
no violão de sete cordas”.
Essa constatação nos mostra que Pixinguinha tinha como suas referências, além
daquelas no início do século vindas de seu professor Irineu de Almeida, as linhas de baixo
tocadas nos violões, não apenas na construção fraseológica, mas também de função, atuando
como um instrumento de acompanhamento, linguagem que aprimorou nas gravações com o
regional do Lacerda.
Provou-se que, através da compreensão dos parâmetros analisados, foi possível aplicálos como ferramentas para a composição de uma harmonia e melodia originais, e principalmente
para o arranjo de uma segunda linha melódica, com as características da composição espontânea
de Pixinguinha.
Esse paralelo entre a composição espontânea e a baixaria do violão de 7 cordas abre
possibilidades para novas pesquisas, e indo além, estudar caminhos para transferir essa
linguagem para os baixos acústicos e elétricos, a fim de aplicar os procedimentos analisados
em grupos que não se enquadram nos regionais de choro tradicional, mas que tenham choro
com linguagem moderna em seu repertório, como por exemplo Hermeto Paschoal, Hamilton de
Holanda, Guinga, entre outros.
Espera-se que este estudo tenha contribuído para o que aqui chamamos de composição
espontânea, ajudando como referência para novas analises, pois neste estudo foram analisadas
75
2 músicas de um total de 37, referentes ao período deste recorte, e percebemos que há muito
ainda para se investigar.
76
BIBLIOGRAFIA
ALMADA, Carlos. A Estrutura do Choro. RJ: Da Fonseca. 2006.
ALMADA, Carlos. Harmonia Funcional. SP: Ed. Unicamp. 2012.
ARAGÃO, Paulo. Pixinguinha e a gênese do arranjo musical brasileiro. Dissertação de
mestrado. UFRJ. RJ. 2001
BAHIA, Sérgio Gaia. Processos criativos de Moacir Santos: A Criação do Brasil. SP-2011Projeto de doutorado.
BORGES, Luís Fabiano Farias. Tragetória estilística do choro: o idiomatismo do violão de
sete cordas, da consolidação a Raphael Rabbello. Dissertação de mestrado. UnB, DF. 2008.
CABRAL, Sergio. Pixinguinha-Vida e Obra. RJ: Ed. Lumiar. 1997.
CALDI, Alexandre. Os Contrapontos para Sax Tenor de Pixinguinha nas 34 Gravações
com Benedito Lacerda - Primeiras Reflexões. Revista Cadernos do Colóquio V.10, n.1, RJ,
Unirio, 2009.
CALDI, Alexandre. Contracantos de Pixinguinha Contribuições históricas e analíticas
para a caracterização do estilo. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação,
Unirio, Rio de Janeiro, 2000.
CHEDIAK, Almir. Harmonia e Improvisação I. RJ: Lumiar. 1986.
COLLURA, Turi. Improvisação, Vol 1: Práticas criativas para a composição melódica na
música popular / Turi Collura. SP: Irmãos Vitale. 2008.
CÔRTES, Almir. O uso do “formato chorus” para fins de improvisação na prática atual
do choro. Artigo. ANAIS DO II SIMPOM 2012. Pag 1390-1399.
DUDEQUE, Norton. Harmonia Tonal II. Apostila. UFPR, PR, 2003.
GEUS, José Reis de. Pixinguinha e Dino 7 Cordas: reflexões sobre a improvisação no
choro. José reis de Geus. UFG. GO-2009.
MATOS, Everton Luiz Loredo de. A trajetória histórica da improvisação no choro
[manuscrito]: um enfoque de configurações estilísticas e processos de hibridação cultural /
Everton Luiz Loredo de Matos. – 2012.
MATTOS, Fernando Lewis de. Análise Musica I. Apostila. UFRGS, RS, 2006.
MOREIRA JÚNIOR, N. A..; BORÉM, F. Traços do ragtime no choro Segura ele de
Pixinguinha... Per Musi, Belo Horizonte, n.23, 2011, p.93-102.
NERY, Walter, O estilo de improvisação de Kurt Rosenwikel: uma investigação analítica.
Programa de Pós-Graduação-Facul. De Música Carlos Gomes, São Paulo, 2008.
77
NUNES, Andrea dos Guimaraes Alvim. Técnicas contrapontísticas aplicadas em arranjos
de canções da música popular brasileira. Dissertação de mestrado. Unicamp, Campinas,
SP: [s.n.], 2004.
PEASE, Ted. Jazz Composition: Theory and Pratice. Boston: Berklee Press, 2003.
RAMOS, Pedro Augusto Araújo de Oliveira. De Pixinguinha a Jacob do Bandolim: o
Choro em duas décadas de evolução (1930-1950). UNESP-SP-1999
SADIE, Stanley. Dicionário Groove de Música: Edição Concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1994.
SÈVE, Mário e David Ganc. Choro Duetos-Vol.2. SP: Ed. Irmãos Vitale. 2011
SOUZA, Grazielle Mariana Louzada de. “DE NOVA CARA O VELHO CHORO” - Choro
na contemporaneidade: perspectivas artísticas, sociais e educacionais / Grazielle Mariana
Louzada de Souza. -- 2012.
TINHORÃO, José Ramos, Pequena História da Música Popular, São Paulo: Círculo do
Livro, s.d.
VALENTE, Paula Veneziano. Horizontalidade e verticalidade: dois modelos de
improvisação no choro brasileiro. 2009. 139p. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de
Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
78
ANEXOS
1 Partitura do choro Cheguei
79
80
2
Partitura do choro Displicente
81
82
83
3
Partitura do choro Chorando se Foi
84
Download

FACULDADE DE MÚSICA SOUZA LIMA