Mídias Sociais, Saberes e Representações
Salvador - 13 e 14 de outubro de 2011
O POSTAL PUBLICITÁRIO COMO MÍDIA LOCATIVA
Breno da Silva Carvalho 1
Resumo: O artigo analisa a recente adoção de quick response code (QR Code) por um meio
de comunicação massivo – postal publicitário –, tornando-o uma mídia locativa. O veículo
reposiciona sua condição de “mídia-fim” para ofertar a opção de “mídia-meio”. Desta forma,
novas premissas discursivas são exigidas para os meios massivos, respeitando uma
confluência com a linguagem publicitária veiculada pelos pós-massivos. Com isso, mídia
locativa e exercício de consumo caracterizam-se pela estética de fluxo e pelo caráter mediador
que assumem na contemporaneidade.
Palavras-chave: mídia locativa, postal publicitário, consumo.
Abstract: This paper analyses the recent use of the quick-response code (QR Code) in a
massive comunication media, the advertising port-card, changing it into a locative media. The
media repositions its “media-end” condition to offer an “media-way” option. Therefore, new
discursive assumptions are demanded regarding the massive-media, concerning the
confluence between the advertising speech relayed by the post-massive media. So, the
locative-media and the exercise of consumption is caracterized by the flux aesthetics and by
the mediatory characteristic that they assume in this contemporary times.
Keywords: locative media, advertising post-card, consumption.
1. Introdução
A elaboração deste artigo deriva de uma recente identificação: o diálogo das mídias
sociais com os tradicionais meios de comunicação de massa tem redirecionado e modificado a
produção dos conteúdos expostos nestes veículos, assim como provocado em distintas
empresas a necessidade de interagir com mídias massivas (televisão, rádio, jornal, revistas
etc.) e pós-massivas (eletrônico-digitais) por meio de um discurso único e compreensível para
seu público – agentes estes com quem passa a travar maior diálogo.
Segundo Lemos (2008), as mídias de massa caracterizam-se por um consumo em
sentido único (recepção) em espaço privado e sem mobilidade (com exceção dos jornais e do
rádio). É devido pensar que há outros meios também massivos, que alteram estas
1
Professor Substituto do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia. Graduado
em Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica do Salvador (2001) e Mestre em
Antropologia pela Universidade Federal da Bahia (2010), onde também conclui o Bacharelado em
Ciências Sociais - Antropologia. Atualmente, leciona Teoria Antropológica e é planner do Grupo
ForAll1, holding composta pelas empresas Licia Fabio Produções de Eventos e Usina Marketing’s.
características, como, por exemplo, a mídia exterior (outdoor, mobiliário urbano etc.),
oferecendo consumo em espaço público, além de ser móvel em certos casos (busdoor, postais
publicitários, etc.).
Este artigo objetiva analisar como um meio de massa exterior articula-se com as
mídias pós-massivas ao assumir a função de mídia locativa, requerendo um novo
entendimento por parte de anunciantes e do público consumidor acerca dos serviços de
divulgação que presta: oferecer conteúdo digital a um objeto/veículo de comunicação,
servindo para funções informativas e de entretenimento acerca do produto ou serviço
divulgado na peça publicitária.
Para tanto, recorre-se às recentes mudanças sofridas pelos postais publicitários da
2
Mica , responsável pela produção e distribuição de mídias cards em pontos comerciais
previamente cadastrados em sua rede de expositores. Existente no Brasil desde 1998, a
empresa possui hoje cobertura nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Campinas,
Brasília, Goiânia, Curitiba, Porto Alegre etc., totalizando mais de 2.000 pontos e impressão
superior a 500.000 postais/mês.
Figura 1 – Display da Mica com
postais publicitários
Fonte: http://www.mica.com.br/
Em julho deste ano, a Mica passou a oferecer ao mercado publicitário postais com
quick response code (QR Code), de forma a levar o consumidor, através da leitura desta
imagem por meio de dispositivos móveis, às mídias sociais do anunciante. Ao assumir esta
funcionalidade, estes postais efetivam-se como mídia locativa na medida em que as trocas
informacionais propostas “não emergem nem dos meios de massa (rádio, TV, jornais), nem
2
Mais informações podem ser obtidas na home page da empresa: http://www.mica.com.br/
do ciberespaço acessado em espaços fechados (espaços privados ou semipúblicos), mas de
objetos que emitem localmente informações que são processadas através de artefatos móveis”.
(LEMOS, 2008, p. 219).
É devido analisar a representatividade da adição deste elemento em uma mídia que, até
o momento, cumpria sua funcionalidade como meio de comunicação expondo pequena arte
gráfica e texto informativo sobre o produto ou serviço anunciado. Para tanto, as próximas
seções destinam-se a esclarecer e apresentar um entendimento sobre consumo e estratégias de
mercado para, em seguida, problematizar a introdução do QR Code nos postais publicitários.
2. Sobre o consumo
No fim da década de 70 e início dos anos 80, a temática do consumo assume
relevância na Europa e nos Estados Unidos, ganhando destaque no Brasil dentro da esfera
acadêmica e constituindo-se, institucionalmente, apenas nos primeiros anos no século XXI,
como um campo disciplinar capaz de manifestar novas abordagens teóricas e metodológicas
distintas das habituais, as quais se mantinham alicerçadas em enfoques marxistas ou
frankfurtianos – um claro reflexo da própria estruturação das ciências sociais no Brasil.
É neste período que a literatura antropológica produzia algumas das obras centrais
para o estudo da cultura material, apenas traduzidas para o português em anos recentes
(SAHLINS, 2003; DOUGLAS, ISHERWOOD, 2006; BOURDIEU, 2007). Este conteúdo já
apresentava o entendimento do consumo como uma atividade social realizada com objetos
capazes de assumir a condição de acessórios rituais para a construção de um universo próprio
por parte do consumidor, superando assim o propósito da emulação como elemento
motivacional do sujeito para a aquisição de bens.
Em 2004, Barbosa assim descortinava os vieses existentes sobre o consumo: (i) o
consumo é percebido como agente de destruição da cultura, aniquilando diferenças entre
indivíduos e sociedade; (ii) percebe-se o consumo como oponente à socialização, sendo o
responsável por apegos materialistas e desejos irracionais; (iii) opõe-se autenticidade e
consumo, depositando-se neste a justificativa para a perda da profundidade dos agentes; (iv) o
consumo “produz” tipos humanos por meio da imitação, competição e da necessidade de
status e prestígio. Após sete anos e com a publicação das traduções supracitadas, torna-se
mais complexo listar as vertentes constitutivas sobre tal tema. As novas abordagens
adquirirem contornos e enfoques anteriormente negligenciados e que requerem, por
conseguinte, o diálogo com outros campos disciplinares.
Atualmente, quanto ao debate contemporâneo sobre o consumo, identifica-se,
claramente, a superação constante de formulações antiquadas, aliadas à revisão permanente de
autores clássicos por pesquisadores brasileiros e a inclusão de novas pautas na agenda, como,
por exemplo, a regulamentação mais incisiva sobre o discurso publicitário destinado ao
público infantil, a preservação do meio ambiente, os direitos e deveres dos consumidores na
aquisição e usufruto de bens e serviços etc. (FORJAZ, 1988; GOTTSCHALL, 1999;
BARBOSA, 2003; BEVILAQUA, 2003?; BRANDINI, 2007).
2.1. Consumo enquanto ordem cultural
A utilização dos objetos por grupos humanos respondem e refletem o sistema
simbólico no qual habitam e convivem:
Sem o consumo, o objeto não se completa como um produto: uma casa desocupada
não é uma casa. [...] Essa determinação de valores de uso, um tipo específico de
construção habitacional como um tipo específico de lar, representa um processo
contínuo de vida social na qual os homens reciprocamente definem os objetos em
termos de si e definem-se em termos de objetos. (SAHLINS, 2003, p. 169).
O consumo, neste caso, mantém relação direta com a rede social do indivíduo, além de
apresentar completa sintonia com a ordem cultural implícita que permite o fluxo contínuo
desta sociedade – o seu devir.
Sahlins (2004) registra como o uso de valores monetários pela sociedade de mercado
para a mensuração de bens e serviços encobre a real significação das coisas. Com isso, a
relação dos sujeitos com estas mercadorias seria meramente econômica, o que implica, por
conseqüência, na proposição de relações culturais mediadas pelo cálculo econômico.
O alerta do autor incide sobre como este enfoque utilitarista – ou meramente
econômico – oculta uma ordem simbólica subjacente à produção e ao consumo de objetos, já
que estes são demarcadores de categorias sociais. Trata-se, acima de tudo, de um raciocínio
que almeja desenvolver a noção da atividade econômica como uma disposição funcional da
ordem cultural (SAHLINS, 2006).
Portanto, para Sahlins (2003) a produção de bens deriva da constituição do sistema
cultural da sociedade e só tem significação social como “bem” a partir do momento em que os
sujeitos constituintes desta sociedade o definem simbolicamente como tal.
Miller (2002) ilustra este raciocínio quando identifica em certa pesquisa como a
menção a determinados produtos que apresentam longevidade no mercado e sua utilização –
normalmente introduzida nos atuais consumidores por gerações passadas – relacionam-se à
sua memória sentimental. A constância e previsibilidade destas marcas respeitam uma
estabilidade cultural e atendem ao indivíduo por projetar-lhe simbolicamente uma
significação já sedimentada.
Para McCracken (2007), a moda, assim como a publicidade, são as instâncias
responsáveis por transmitir o significado do mundo culturalmente constituído para os bens.
Nessa última instância, o anúncio publicitário transfere as propriedades culturais conhecidas
para as propriedades até então desconhecidas de uma mercadoria. Este processo cumpre seu
objetivo quando o indivíduo/receptor da peça publicitária visualiza uma congruência entre
mundo e bem material.
É interessante atentar como McCracken (2007) articula estas transferências de
significados culturais e rejeita um viés que subjugue o sujeito a esta engrenagem.
Opostamente, sua abordagem responsabiliza-o pela construção de seu campo pessoal e de sua
identidade a partir da cultura material que agrega para si, conforme ressalto no seguinte
trecho:
Uma das maneiras pelas quais os indivíduos satisfazem sua liberdade e cumprem a
responsabilidade da autodefinição é por meio da apropriação sistemática das
propriedades significativas dos bens. [...] O indivíduo usa os bens de maneira livre
de problemas para constituir partes cruciais de si mesmo e do mundo.
(McCRACKEN, 2007, p. 110).
De fato, torna-se nítido como a atividade econômica capitalista contemporânea
caminha refletindo uma ordem cultural pré-existente, o que faz com que a produção, por
conseguinte, possua uma explicação cultural para sua existência. Subjacente a esta produção,
há o entendimento, por parte de alguns pesquisadores, de que a lógica do consumo
manifestada na sociedade permite o desenvolvimento de redes sociais entre os indivíduos,
como sugere Douglas (2007).
Douglas e Isherwood (2006, p. 102) são alguns dos pioneiros a expressar uma
conceituação própria sobre o consumo – “uso de posses materiais que está além do comércio
e é livre dentro da lei” – e promover uma alteração na forma de tratamento dada ao tema ao
superar o propósito da emulação como elemento motivacional.
A antropologia serve ao pensamento econômico na medida em que “introduz a
dimensão social das necessidades” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006, p. 151) e compreende
o consumo como um ritual, no qual os objetos assumem a condição de acessórios para a
construção de um universo próprio por parte do consumidor. É neste universo que o sujeito
desenvolverá sua rede de socialização:
O consumo é um sistema de rituais recíprocos que envolvem gastos para a marcação
apropriada da ocasião, seja dos visitantes e anfitriões, seja da comunidade em geral.
[...] O que chamamos de rituais de consumo são as marcas normais da amizade. O
fluxo padronizado de consumo mostra um mapa da integração social. (DOUGLAS;
ISHERWOOD, 2006, p. 40).
A busca em responder a pergunta “por que as pessoas querem bens?” desloca-se do
mero levantamento de bens ou do seu (excessivo) acúmulo para um olhar que os aponta como
instrumentos de socialização e integração social; olhar este que rastreie a necessidade de
reciprocidade entre os agentes envolvidos no processo – amigos, parentes, chefes etc. – e a
indispensabilidade de se pensar em seu círculo social como definidor e gerenciador destas
relações, nas quais se entrelaçam consumo e convivência. Ressalta-se, por exemplo, como
Douglas e Isherwood (2006) analisam os desdobramentos da socialização ocasionados pelas
relações sociais e a indispensabilidade de certo rendimento financeiro para sua realização:
Mais do que provavelmente, a possibilidade de um homem não se tornar dispensável
na próxima década e, certamente, a capacidade de levar seus filhos para cima
dependem da escala de consumo que mantém. Ele deverá manter boas relações com
os amigos de seu pai e seus antigos colegas de trabalho, e manter contato com seus
irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas. O rendimento muitas vezes depende de
amplas fontes de informação que só podem ser alcançadas pelo consumo
compartilhado. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006, p. 144-145, grifo meu).
É, sem dúvida, uma forma de analisar o consumo que o apresenta como uma prática
social a partir da qual se irradiam outras atividades sociais, propiciadoras de novas
perspectivas financeiras e profissionais aos sujeitos envolvidos. Isto justifica a importância do
convívio com outros distintos grupos de indivíduos, como familiares ou profissionais.
De fato, o consumo cumpre uma função comunicativa, como aponta Fardon (2004), na
medida em que caracteriza o estilo de vida da família e espelha nestes sujeitos-consumidores
a conduta pessoal que criaram para viver e habitar. Como estas criações são particulares, as
informações transmitidas e recebidas por estes indivíduos possuem natureza diversa, o que
reforça o caráter marcador dos bens e a necessidade dos eventos de consumo como meios de
provar ou testar a existência de uma denominação compartilhável entre estes sujeitos.
As escolhas referentes ao consumo são padronizadas, porque correspondem aos
requisitos do convívio com outras pessoas num tipo definido de meio social. Em vez
de criticar duramente as pessoas por sua maneira insensata de gastar dinheiro, os
investigadores deveriam se perguntar que tipo de socialidade o consumo delas se
destina a reproduzir. (FARDON, 2004, p. 215, grifos meus).
Na medida em que estas escolhas seguem um padrão, é possível identificar através das
mesmas certo ordenamento e regularidade no desenho de consumo realizados pelos
indivíduos. Uma ação dissonante no que tange à seleção e compra de determinada mercadoria
repercute na socialização que este bem é capaz de engendrar – consideração esta que só vem a
legitimar a função comunicativa dos bens.
Atenta a esta configuração, a sociedade capitalista é hábil na produção, em volume e
permanentemente, de novos bens que possam redefinir o status social dos seus possuidores,
desenhando-se, com isso, uma hierarquia de consumidores a partir da gramática cultural
articulada pelo sujeito. Afinal, como a distribuição de bens materiais e simbólicos é feita
desigualmente, as escolhas, por partes dos sujeitos, refletem e reproduzem as relações de
dominação existentes na sociedade. (BOURDIEU, 2007; BAUDRILLARD, 2008;
FEATHERSTONE, 1995, 1997). Ou seja: a posse de um dispositivo móvel capaz de realizar
a leitura de um QR Code fornece indícios sobre o estrato social deste ator.
3. Postais publicitários como mídia locativa
Homem, mídia locativa e prática de consumo travam um jogo dialético, no qual se
deve recusar um submisso condicionamento humano ao jogo mercadológico, como também
dissuadir a absoluta determinação deste aparato ao livre processo de escolha praticado pelo
ator. A análise deve ser multidimensional.
Tal adoção perpassa inclusive o fundamental debate entre consumo e lazer, como
sugere Taschner (2003). Ao advogar o lazer como propiciador do consumo (CARVALHO,
2010), é devido apontá-lo como um exercício prático que, quando compreendido como um
fim em si mesmo, mostra-se limitado. Semelhante à interação com as mídias locativas, o
fluxo de sentido subjetivo que o exercício de consumo – mesmo quando inserido nas práticas
de lazer – incita, faz com que as atividades destinadas ao gozo e ao espírito sejam um meio de
articulação deste sujeito junto à sua rede social, com o claro intuito de legitimar sua
identidade – este, sim, o fim das ações desempenhadas. Constatação esta que ratifica a
natureza indissociável entre humanidade e materialidade (MILLER, 2002).
O consumo torna-se uma forma de lazer na medida em que assume a condição de
instrumento para a renovação da aparência do sujeito ou para o seu relaxamento, permitindo-o
ingressar em contextos de profundo apelo imaginativo (CAMPBELL, 2001; LEITÃO, 2007).
Rocha problematiza esta reflexão na medida em que delega à mídia o papel de órgão
responsável pela introdução de significados na esfera da produção, a fim de que se crie um
código próprio e passível de decodificação por parte dos sujeitos para que nasça o consumo:
“A mídia faz com que a produção possa ter sentido e, portanto, possa ser percebida como
consumo.” (2000, p. 26).
Ao assumir a função de mídia locativa, ou seja, um “dispositivo informacional digital
cujo conteúdo está ligado a uma localidade [/objeto]” (LEMOS, 2008, p. 207), o postal
publicitário potencializa e atualiza o sentido que dá a esta produção industrial capitalista,
deixando de tangenciar a simples apresentação do produto ou serviço ao consumidor para
desdobrar-se em novos sentidos de comunicação. Ou seja, a mídia é destituída de sua
condição de “mídia-fim” para a condição de “mídia-meio”. Com isso, o consumidor interage
com o objeto realizando a leitura do QR Code com algum dispositivo móvel para ser
redirecionado a uma das páginas da rede social do anunciante tendo a capacidade de
compartilhar tal conteúdo com outros usuários da mesma rede.
→
Figuras 2 e 3 – À esquerda (fig. 2), frente de um dos postais com QR
Code no verso. À direita (fig. 3), imagem do Facebook com vídeo
informativo sobre o material divulgado no postal.
Fonte: Material de divulgação da Mica.
Em outro material publicitário, o acesso ao conteúdo esta condicionado à junção de
dois postais, fazendo com que a própria leitura do QR Code seja indicativa do conteúdo da
mensagem que se deseja transmitir: a prevenção a AIDS.
Figura 4 e 5 – Imagens de dois postais complementares
para a leitura do QR Code.
Fonte: Material de divulgação da Mica.
Munidos de uma gama de informação que provém de canais e circuitos de
comunicação diversos, estes agentes constroem e remodelam seus referenciais simbólicos de
forma a atender e corresponder às transformações em andamento globalmente – até porque a
sociedade ocidental fomenta mudanças permanentes (McCRACKEN, 2007). Trata-se de um
processo caracterizado pelo culto ao presente, ou melhor, por um senso de atualização
instantâneo, típico da sociedade informacional (BURGOS, PINTO, 2002).
Falar em estética do fluxo, nesse sentido, implica perceber que a linguagem dessas
novas produções, essa linguagem informe, em fluxo, em tempo real, dialoga com as
questões mais gerais do sistema capitalista contemporâneo; um capitalismo de fluxo
que tem, cada vez mais, sustentado sua economia nos meios informacionais. Se o
capitalismo industrial sustentou-se na produção em massa de produtos materiais, o
capitalismo contemporâneo tem se sustentado, cada vez mais, na produção de bens
imateriais, simbólicos e culturais (ARANTES, 2008).
Esta nova codificação informacional passou a exigir uma confluência na comunicação
expostas nas distintas mídias. Pleiteia-se, com isso, uma complementariedade discursiva e
uma forma de facilitar a compreensão por parte do ator dos conteúdos publicitários
veiculados, de modo que este mesmo ator reflita-se na mercadoria (ou serviço), posicionandoo como artigo consumível dentro de sua grade hierárquica de prioridades de desejo e compra.
A satisfação das necessidades que aparece como corolário do consumo nos leva a
pensar, portanto, que essas necessidades não dizem respeito à função do produto,
mas ao posicionamento que o consumo de certas marcas atribui ao indivíduo na
hierarquia social por meio da ordem econômica. (BRANDINI, 2007, p. 163, grifo do
autor).
Para os anunciantes, as estratégias de divulgação em mídias sociais imediatizam a
informação e proporcionam uma constante renovação dos componentes de uma cultura
material. Se o consumo é um exercício constitutivo para sua identidade e manejado conforme
o sentido pessoal que seu estilo de vida lhe faz representar, o condicionante temporal é um
fator decisivo para a permanente atualização e acompanhamento do fluxo das coisas –
inclusive no âmbito das redes sociais. Assim, faz-se preciso o acesso criterioso aos meios de
comunicação.
Além da já discutida noção de escala, manifesta por Fardon (2004), o mesmo
apresenta o conceito douglasiano de temporalidade do consumo extremamente adequado a
presente discussão e cabível de uma pequena revisão. Segundo ele, esta temporalidade se dá
por meio de uma (a) periodicidade e de um (b) horizonte temporal.
O primeiro deles consiste na dimensão em que um consumidor pode tornar-se
autônomo da coerção da rotina e venha a usufruir do uso flexível do tempo. Como ilustração,
pode-se recorrer à produtora doméstica: quanto menor a renda ou sua vinculação tecnológica,
mais acentuada é a demanda por tempo, o que reduz o espaço para autonomia. O horizonte
temporal vincula-se ao entendimento que os indivíduos e grupos manifestam sobre a decisão
de dever e quanto poupar, obtida a partir de noções sobre o futuro e prevista de acordo com o
meio social no qual se encontram.
É pertinente propor a introdução de uma dimensão relativa à verticalidade temporal, a
qual confere ao ator o exercício voluntário, despretensioso, lúdico e sinérgico de identificação
das chamadas tendências antes da sua massificação para outros estratos – como fazem os
hippies, punks e gays na condição de difusores de inovações pelo papel marginal e
“contraventor” que manifestam socialmente (MCCRACKEN, 2007). Ou seja, em um eixo
temporal verticalizado, alguns indivíduos devem se posicionar à frente dos demais,
antecipando e inventando categorias culturais antes de que as mesmas tornem-se
“convenções” (DOUGLAS, 2007) aceitas e validades pelo grande coletivo.
A constante oferta de bens, desejáveis e na moda, ou a usurpação de bens
requintados por uma camada mais baixa leva aqueles que pertencem a uma camada
superior a ter de investir em novos bens (informacionais) a fim de restabelecer a
distância social original. (FEATHERSTONE, 1997, p. 42).
A pretendida manutenção de uma “distância social original” é uma conduta que,
apesar das novas configurações das constelações familiares e esfacelamento da nobiliarquia
tradicional, (LIMA, 2005; NERY, 2008), se ampara na quantificação bourdieusiana de capital
que este sujeito desfruta (ORTIZ, 1983, THIRY-CHERQUES, 2006) e que perpassa,
inclusive, o caráter visionário que indivíduo pode manifestar, prevendo comportamentos e
novas regras de conduta.
Há mesclas sociais, sim, mas há espaços prévios e nítidos para ocupação de cada um
dos estratos e um contínuo esforço de estabelecimento de novas demarcações espaciais e
temporais com o objetivo de que áreas restritas sejam novamente delineadas e o acesso a tais
campos requeiram o cumprimento de certas obrigações que alguns indivíduos desconhecem
ou estão impedidos de praticar – seja por ausência de capital econômico, social e ou cultural.
Com a introdução das mídias locativas e sociais, a temática do consumo ganha novos
contornos analíticos sem tangenciar o cerne da questão – o processo de compra de um bem ou
serviço –, mas abarcando um conjunto de circunstâncias simbólicas que são imprescindíveis
para a composição de um painel no qual estes objetos e discursos dialogam entre si e com os
homens a partir de uma ordem cultural que lhe é imanente.
4. Considerações finais
Ao passar a ostentar um QR Code, o postal publicitário firma-se como mídia locativa e
confere plasticidade ao anúncio publicitário veiculado. A exposição deste discurso de cunho
informativo visa destituir os bens e serviços da instância da produção para o do consumo, de
modo a apresentar aos atores sociais a constituição de novos artigos à sua disposição.
Assim, emerge-se um entendimento de consumo enquanto proponente de um
ordenamento cultural, do qual ensejam discussões relativas à congruência entre os bens e o
sistema simbólico, atreladas ainda à capacidade dos mesmos em tecer redes de interação
social entre indivíduos, seja em práticas de aproximação ou de distanciamento, já que
cumprem a função de diferenciadores. Logo, é explícito que este artigo acaba por tangenciar
uma crítica à sociedade de consumo na tentativa de melhor compreender suas estratégias de
funcionamento e articulação com os sujeitos que nela vivem.
Isso justifica a necessidade de se debruçar sobre significados manejados pelos atores
sociais em um jogo dialético entre seus valores pessoais e o estrato social ao qual pertence, o
que invalida uma submissão ao coletivo, mas, opostamente, uma atividade sinérgica na qual
estas partes acordam mutuamente sobre a legitimidade e o desacordo de uma conduta de
consumo, amparada pela ordem simbólica. Para tanto, é devida sua atenção e interesse por
indícios e práticas culturais inovadoras capazes de apresentar-lhe a novidade, a ruptura, antes
que esta se firme como comportamento padrão.
Por fim, a presente inovação no postal publicitário permite apontar os seguintes
desdobramentos:
- a necessidade de reposicionamento das mídias massivas frente à expansão e
permissividade das mídias pós-massivas;
- o entendimento do postal publicitário como mídia locativa, tendo substituído sua
condição de “meio de comunicação final” para um mediador do discurso publicitário,
conduzindo o consumidor para outras instâncias de comunicação;
- a proposição de uma confluência de linguagem aos anunciantes dos distintos meios;
- a legitimação da estética de fluxo como principal premissa discursiva, gerando um
movimento de continuidade na informação apresentada e compartilhada;
- a proximidade da noção de consumo e atividade de lazer – inclusive a realizada
através de mídia locativa –, requerendo uma análise multidimensional, levando em
consideração o operativo do consumo nas atividades destinadas ao relaxamento;
- a recusa a uma perspectiva que observa o indivíduo como subsumido ao imperativo
da lógica do consumo ou das mídias.
Afinal, o que este artigo sinaliza é a necessidade de se lançar luz nas distintas
situações em que a informação publicitária se faz presente – seja ela em postais, mídias
massivas ou redes sociais – e os desdobramentos possíveis acerca do que o ato de comprar
quer dizer.
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