Mídias Sociais, Saberes e Representações Salvador - 13 e 14 de outubro de 2011 O POSTAL PUBLICITÁRIO COMO MÍDIA LOCATIVA Breno da Silva Carvalho 1 Resumo: O artigo analisa a recente adoção de quick response code (QR Code) por um meio de comunicação massivo – postal publicitário –, tornando-o uma mídia locativa. O veículo reposiciona sua condição de “mídia-fim” para ofertar a opção de “mídia-meio”. Desta forma, novas premissas discursivas são exigidas para os meios massivos, respeitando uma confluência com a linguagem publicitária veiculada pelos pós-massivos. Com isso, mídia locativa e exercício de consumo caracterizam-se pela estética de fluxo e pelo caráter mediador que assumem na contemporaneidade. Palavras-chave: mídia locativa, postal publicitário, consumo. Abstract: This paper analyses the recent use of the quick-response code (QR Code) in a massive comunication media, the advertising port-card, changing it into a locative media. The media repositions its “media-end” condition to offer an “media-way” option. Therefore, new discursive assumptions are demanded regarding the massive-media, concerning the confluence between the advertising speech relayed by the post-massive media. So, the locative-media and the exercise of consumption is caracterized by the flux aesthetics and by the mediatory characteristic that they assume in this contemporary times. Keywords: locative media, advertising post-card, consumption. 1. Introdução A elaboração deste artigo deriva de uma recente identificação: o diálogo das mídias sociais com os tradicionais meios de comunicação de massa tem redirecionado e modificado a produção dos conteúdos expostos nestes veículos, assim como provocado em distintas empresas a necessidade de interagir com mídias massivas (televisão, rádio, jornal, revistas etc.) e pós-massivas (eletrônico-digitais) por meio de um discurso único e compreensível para seu público – agentes estes com quem passa a travar maior diálogo. Segundo Lemos (2008), as mídias de massa caracterizam-se por um consumo em sentido único (recepção) em espaço privado e sem mobilidade (com exceção dos jornais e do rádio). É devido pensar que há outros meios também massivos, que alteram estas 1 Professor Substituto do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia. Graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica do Salvador (2001) e Mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia (2010), onde também conclui o Bacharelado em Ciências Sociais - Antropologia. Atualmente, leciona Teoria Antropológica e é planner do Grupo ForAll1, holding composta pelas empresas Licia Fabio Produções de Eventos e Usina Marketing’s. características, como, por exemplo, a mídia exterior (outdoor, mobiliário urbano etc.), oferecendo consumo em espaço público, além de ser móvel em certos casos (busdoor, postais publicitários, etc.). Este artigo objetiva analisar como um meio de massa exterior articula-se com as mídias pós-massivas ao assumir a função de mídia locativa, requerendo um novo entendimento por parte de anunciantes e do público consumidor acerca dos serviços de divulgação que presta: oferecer conteúdo digital a um objeto/veículo de comunicação, servindo para funções informativas e de entretenimento acerca do produto ou serviço divulgado na peça publicitária. Para tanto, recorre-se às recentes mudanças sofridas pelos postais publicitários da 2 Mica , responsável pela produção e distribuição de mídias cards em pontos comerciais previamente cadastrados em sua rede de expositores. Existente no Brasil desde 1998, a empresa possui hoje cobertura nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Campinas, Brasília, Goiânia, Curitiba, Porto Alegre etc., totalizando mais de 2.000 pontos e impressão superior a 500.000 postais/mês. Figura 1 – Display da Mica com postais publicitários Fonte: http://www.mica.com.br/ Em julho deste ano, a Mica passou a oferecer ao mercado publicitário postais com quick response code (QR Code), de forma a levar o consumidor, através da leitura desta imagem por meio de dispositivos móveis, às mídias sociais do anunciante. Ao assumir esta funcionalidade, estes postais efetivam-se como mídia locativa na medida em que as trocas informacionais propostas “não emergem nem dos meios de massa (rádio, TV, jornais), nem 2 Mais informações podem ser obtidas na home page da empresa: http://www.mica.com.br/ do ciberespaço acessado em espaços fechados (espaços privados ou semipúblicos), mas de objetos que emitem localmente informações que são processadas através de artefatos móveis”. (LEMOS, 2008, p. 219). É devido analisar a representatividade da adição deste elemento em uma mídia que, até o momento, cumpria sua funcionalidade como meio de comunicação expondo pequena arte gráfica e texto informativo sobre o produto ou serviço anunciado. Para tanto, as próximas seções destinam-se a esclarecer e apresentar um entendimento sobre consumo e estratégias de mercado para, em seguida, problematizar a introdução do QR Code nos postais publicitários. 2. Sobre o consumo No fim da década de 70 e início dos anos 80, a temática do consumo assume relevância na Europa e nos Estados Unidos, ganhando destaque no Brasil dentro da esfera acadêmica e constituindo-se, institucionalmente, apenas nos primeiros anos no século XXI, como um campo disciplinar capaz de manifestar novas abordagens teóricas e metodológicas distintas das habituais, as quais se mantinham alicerçadas em enfoques marxistas ou frankfurtianos – um claro reflexo da própria estruturação das ciências sociais no Brasil. É neste período que a literatura antropológica produzia algumas das obras centrais para o estudo da cultura material, apenas traduzidas para o português em anos recentes (SAHLINS, 2003; DOUGLAS, ISHERWOOD, 2006; BOURDIEU, 2007). Este conteúdo já apresentava o entendimento do consumo como uma atividade social realizada com objetos capazes de assumir a condição de acessórios rituais para a construção de um universo próprio por parte do consumidor, superando assim o propósito da emulação como elemento motivacional do sujeito para a aquisição de bens. Em 2004, Barbosa assim descortinava os vieses existentes sobre o consumo: (i) o consumo é percebido como agente de destruição da cultura, aniquilando diferenças entre indivíduos e sociedade; (ii) percebe-se o consumo como oponente à socialização, sendo o responsável por apegos materialistas e desejos irracionais; (iii) opõe-se autenticidade e consumo, depositando-se neste a justificativa para a perda da profundidade dos agentes; (iv) o consumo “produz” tipos humanos por meio da imitação, competição e da necessidade de status e prestígio. Após sete anos e com a publicação das traduções supracitadas, torna-se mais complexo listar as vertentes constitutivas sobre tal tema. As novas abordagens adquirirem contornos e enfoques anteriormente negligenciados e que requerem, por conseguinte, o diálogo com outros campos disciplinares. Atualmente, quanto ao debate contemporâneo sobre o consumo, identifica-se, claramente, a superação constante de formulações antiquadas, aliadas à revisão permanente de autores clássicos por pesquisadores brasileiros e a inclusão de novas pautas na agenda, como, por exemplo, a regulamentação mais incisiva sobre o discurso publicitário destinado ao público infantil, a preservação do meio ambiente, os direitos e deveres dos consumidores na aquisição e usufruto de bens e serviços etc. (FORJAZ, 1988; GOTTSCHALL, 1999; BARBOSA, 2003; BEVILAQUA, 2003?; BRANDINI, 2007). 2.1. Consumo enquanto ordem cultural A utilização dos objetos por grupos humanos respondem e refletem o sistema simbólico no qual habitam e convivem: Sem o consumo, o objeto não se completa como um produto: uma casa desocupada não é uma casa. [...] Essa determinação de valores de uso, um tipo específico de construção habitacional como um tipo específico de lar, representa um processo contínuo de vida social na qual os homens reciprocamente definem os objetos em termos de si e definem-se em termos de objetos. (SAHLINS, 2003, p. 169). O consumo, neste caso, mantém relação direta com a rede social do indivíduo, além de apresentar completa sintonia com a ordem cultural implícita que permite o fluxo contínuo desta sociedade – o seu devir. Sahlins (2004) registra como o uso de valores monetários pela sociedade de mercado para a mensuração de bens e serviços encobre a real significação das coisas. Com isso, a relação dos sujeitos com estas mercadorias seria meramente econômica, o que implica, por conseqüência, na proposição de relações culturais mediadas pelo cálculo econômico. O alerta do autor incide sobre como este enfoque utilitarista – ou meramente econômico – oculta uma ordem simbólica subjacente à produção e ao consumo de objetos, já que estes são demarcadores de categorias sociais. Trata-se, acima de tudo, de um raciocínio que almeja desenvolver a noção da atividade econômica como uma disposição funcional da ordem cultural (SAHLINS, 2006). Portanto, para Sahlins (2003) a produção de bens deriva da constituição do sistema cultural da sociedade e só tem significação social como “bem” a partir do momento em que os sujeitos constituintes desta sociedade o definem simbolicamente como tal. Miller (2002) ilustra este raciocínio quando identifica em certa pesquisa como a menção a determinados produtos que apresentam longevidade no mercado e sua utilização – normalmente introduzida nos atuais consumidores por gerações passadas – relacionam-se à sua memória sentimental. A constância e previsibilidade destas marcas respeitam uma estabilidade cultural e atendem ao indivíduo por projetar-lhe simbolicamente uma significação já sedimentada. Para McCracken (2007), a moda, assim como a publicidade, são as instâncias responsáveis por transmitir o significado do mundo culturalmente constituído para os bens. Nessa última instância, o anúncio publicitário transfere as propriedades culturais conhecidas para as propriedades até então desconhecidas de uma mercadoria. Este processo cumpre seu objetivo quando o indivíduo/receptor da peça publicitária visualiza uma congruência entre mundo e bem material. É interessante atentar como McCracken (2007) articula estas transferências de significados culturais e rejeita um viés que subjugue o sujeito a esta engrenagem. Opostamente, sua abordagem responsabiliza-o pela construção de seu campo pessoal e de sua identidade a partir da cultura material que agrega para si, conforme ressalto no seguinte trecho: Uma das maneiras pelas quais os indivíduos satisfazem sua liberdade e cumprem a responsabilidade da autodefinição é por meio da apropriação sistemática das propriedades significativas dos bens. [...] O indivíduo usa os bens de maneira livre de problemas para constituir partes cruciais de si mesmo e do mundo. (McCRACKEN, 2007, p. 110). De fato, torna-se nítido como a atividade econômica capitalista contemporânea caminha refletindo uma ordem cultural pré-existente, o que faz com que a produção, por conseguinte, possua uma explicação cultural para sua existência. Subjacente a esta produção, há o entendimento, por parte de alguns pesquisadores, de que a lógica do consumo manifestada na sociedade permite o desenvolvimento de redes sociais entre os indivíduos, como sugere Douglas (2007). Douglas e Isherwood (2006, p. 102) são alguns dos pioneiros a expressar uma conceituação própria sobre o consumo – “uso de posses materiais que está além do comércio e é livre dentro da lei” – e promover uma alteração na forma de tratamento dada ao tema ao superar o propósito da emulação como elemento motivacional. A antropologia serve ao pensamento econômico na medida em que “introduz a dimensão social das necessidades” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006, p. 151) e compreende o consumo como um ritual, no qual os objetos assumem a condição de acessórios para a construção de um universo próprio por parte do consumidor. É neste universo que o sujeito desenvolverá sua rede de socialização: O consumo é um sistema de rituais recíprocos que envolvem gastos para a marcação apropriada da ocasião, seja dos visitantes e anfitriões, seja da comunidade em geral. [...] O que chamamos de rituais de consumo são as marcas normais da amizade. O fluxo padronizado de consumo mostra um mapa da integração social. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006, p. 40). A busca em responder a pergunta “por que as pessoas querem bens?” desloca-se do mero levantamento de bens ou do seu (excessivo) acúmulo para um olhar que os aponta como instrumentos de socialização e integração social; olhar este que rastreie a necessidade de reciprocidade entre os agentes envolvidos no processo – amigos, parentes, chefes etc. – e a indispensabilidade de se pensar em seu círculo social como definidor e gerenciador destas relações, nas quais se entrelaçam consumo e convivência. Ressalta-se, por exemplo, como Douglas e Isherwood (2006) analisam os desdobramentos da socialização ocasionados pelas relações sociais e a indispensabilidade de certo rendimento financeiro para sua realização: Mais do que provavelmente, a possibilidade de um homem não se tornar dispensável na próxima década e, certamente, a capacidade de levar seus filhos para cima dependem da escala de consumo que mantém. Ele deverá manter boas relações com os amigos de seu pai e seus antigos colegas de trabalho, e manter contato com seus irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas. O rendimento muitas vezes depende de amplas fontes de informação que só podem ser alcançadas pelo consumo compartilhado. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2006, p. 144-145, grifo meu). É, sem dúvida, uma forma de analisar o consumo que o apresenta como uma prática social a partir da qual se irradiam outras atividades sociais, propiciadoras de novas perspectivas financeiras e profissionais aos sujeitos envolvidos. Isto justifica a importância do convívio com outros distintos grupos de indivíduos, como familiares ou profissionais. De fato, o consumo cumpre uma função comunicativa, como aponta Fardon (2004), na medida em que caracteriza o estilo de vida da família e espelha nestes sujeitos-consumidores a conduta pessoal que criaram para viver e habitar. Como estas criações são particulares, as informações transmitidas e recebidas por estes indivíduos possuem natureza diversa, o que reforça o caráter marcador dos bens e a necessidade dos eventos de consumo como meios de provar ou testar a existência de uma denominação compartilhável entre estes sujeitos. As escolhas referentes ao consumo são padronizadas, porque correspondem aos requisitos do convívio com outras pessoas num tipo definido de meio social. Em vez de criticar duramente as pessoas por sua maneira insensata de gastar dinheiro, os investigadores deveriam se perguntar que tipo de socialidade o consumo delas se destina a reproduzir. (FARDON, 2004, p. 215, grifos meus). Na medida em que estas escolhas seguem um padrão, é possível identificar através das mesmas certo ordenamento e regularidade no desenho de consumo realizados pelos indivíduos. Uma ação dissonante no que tange à seleção e compra de determinada mercadoria repercute na socialização que este bem é capaz de engendrar – consideração esta que só vem a legitimar a função comunicativa dos bens. Atenta a esta configuração, a sociedade capitalista é hábil na produção, em volume e permanentemente, de novos bens que possam redefinir o status social dos seus possuidores, desenhando-se, com isso, uma hierarquia de consumidores a partir da gramática cultural articulada pelo sujeito. Afinal, como a distribuição de bens materiais e simbólicos é feita desigualmente, as escolhas, por partes dos sujeitos, refletem e reproduzem as relações de dominação existentes na sociedade. (BOURDIEU, 2007; BAUDRILLARD, 2008; FEATHERSTONE, 1995, 1997). Ou seja: a posse de um dispositivo móvel capaz de realizar a leitura de um QR Code fornece indícios sobre o estrato social deste ator. 3. Postais publicitários como mídia locativa Homem, mídia locativa e prática de consumo travam um jogo dialético, no qual se deve recusar um submisso condicionamento humano ao jogo mercadológico, como também dissuadir a absoluta determinação deste aparato ao livre processo de escolha praticado pelo ator. A análise deve ser multidimensional. Tal adoção perpassa inclusive o fundamental debate entre consumo e lazer, como sugere Taschner (2003). Ao advogar o lazer como propiciador do consumo (CARVALHO, 2010), é devido apontá-lo como um exercício prático que, quando compreendido como um fim em si mesmo, mostra-se limitado. Semelhante à interação com as mídias locativas, o fluxo de sentido subjetivo que o exercício de consumo – mesmo quando inserido nas práticas de lazer – incita, faz com que as atividades destinadas ao gozo e ao espírito sejam um meio de articulação deste sujeito junto à sua rede social, com o claro intuito de legitimar sua identidade – este, sim, o fim das ações desempenhadas. Constatação esta que ratifica a natureza indissociável entre humanidade e materialidade (MILLER, 2002). O consumo torna-se uma forma de lazer na medida em que assume a condição de instrumento para a renovação da aparência do sujeito ou para o seu relaxamento, permitindo-o ingressar em contextos de profundo apelo imaginativo (CAMPBELL, 2001; LEITÃO, 2007). Rocha problematiza esta reflexão na medida em que delega à mídia o papel de órgão responsável pela introdução de significados na esfera da produção, a fim de que se crie um código próprio e passível de decodificação por parte dos sujeitos para que nasça o consumo: “A mídia faz com que a produção possa ter sentido e, portanto, possa ser percebida como consumo.” (2000, p. 26). Ao assumir a função de mídia locativa, ou seja, um “dispositivo informacional digital cujo conteúdo está ligado a uma localidade [/objeto]” (LEMOS, 2008, p. 207), o postal publicitário potencializa e atualiza o sentido que dá a esta produção industrial capitalista, deixando de tangenciar a simples apresentação do produto ou serviço ao consumidor para desdobrar-se em novos sentidos de comunicação. Ou seja, a mídia é destituída de sua condição de “mídia-fim” para a condição de “mídia-meio”. Com isso, o consumidor interage com o objeto realizando a leitura do QR Code com algum dispositivo móvel para ser redirecionado a uma das páginas da rede social do anunciante tendo a capacidade de compartilhar tal conteúdo com outros usuários da mesma rede. → Figuras 2 e 3 – À esquerda (fig. 2), frente de um dos postais com QR Code no verso. À direita (fig. 3), imagem do Facebook com vídeo informativo sobre o material divulgado no postal. Fonte: Material de divulgação da Mica. Em outro material publicitário, o acesso ao conteúdo esta condicionado à junção de dois postais, fazendo com que a própria leitura do QR Code seja indicativa do conteúdo da mensagem que se deseja transmitir: a prevenção a AIDS. Figura 4 e 5 – Imagens de dois postais complementares para a leitura do QR Code. Fonte: Material de divulgação da Mica. Munidos de uma gama de informação que provém de canais e circuitos de comunicação diversos, estes agentes constroem e remodelam seus referenciais simbólicos de forma a atender e corresponder às transformações em andamento globalmente – até porque a sociedade ocidental fomenta mudanças permanentes (McCRACKEN, 2007). Trata-se de um processo caracterizado pelo culto ao presente, ou melhor, por um senso de atualização instantâneo, típico da sociedade informacional (BURGOS, PINTO, 2002). Falar em estética do fluxo, nesse sentido, implica perceber que a linguagem dessas novas produções, essa linguagem informe, em fluxo, em tempo real, dialoga com as questões mais gerais do sistema capitalista contemporâneo; um capitalismo de fluxo que tem, cada vez mais, sustentado sua economia nos meios informacionais. Se o capitalismo industrial sustentou-se na produção em massa de produtos materiais, o capitalismo contemporâneo tem se sustentado, cada vez mais, na produção de bens imateriais, simbólicos e culturais (ARANTES, 2008). Esta nova codificação informacional passou a exigir uma confluência na comunicação expostas nas distintas mídias. Pleiteia-se, com isso, uma complementariedade discursiva e uma forma de facilitar a compreensão por parte do ator dos conteúdos publicitários veiculados, de modo que este mesmo ator reflita-se na mercadoria (ou serviço), posicionandoo como artigo consumível dentro de sua grade hierárquica de prioridades de desejo e compra. A satisfação das necessidades que aparece como corolário do consumo nos leva a pensar, portanto, que essas necessidades não dizem respeito à função do produto, mas ao posicionamento que o consumo de certas marcas atribui ao indivíduo na hierarquia social por meio da ordem econômica. (BRANDINI, 2007, p. 163, grifo do autor). Para os anunciantes, as estratégias de divulgação em mídias sociais imediatizam a informação e proporcionam uma constante renovação dos componentes de uma cultura material. Se o consumo é um exercício constitutivo para sua identidade e manejado conforme o sentido pessoal que seu estilo de vida lhe faz representar, o condicionante temporal é um fator decisivo para a permanente atualização e acompanhamento do fluxo das coisas – inclusive no âmbito das redes sociais. Assim, faz-se preciso o acesso criterioso aos meios de comunicação. Além da já discutida noção de escala, manifesta por Fardon (2004), o mesmo apresenta o conceito douglasiano de temporalidade do consumo extremamente adequado a presente discussão e cabível de uma pequena revisão. Segundo ele, esta temporalidade se dá por meio de uma (a) periodicidade e de um (b) horizonte temporal. O primeiro deles consiste na dimensão em que um consumidor pode tornar-se autônomo da coerção da rotina e venha a usufruir do uso flexível do tempo. Como ilustração, pode-se recorrer à produtora doméstica: quanto menor a renda ou sua vinculação tecnológica, mais acentuada é a demanda por tempo, o que reduz o espaço para autonomia. O horizonte temporal vincula-se ao entendimento que os indivíduos e grupos manifestam sobre a decisão de dever e quanto poupar, obtida a partir de noções sobre o futuro e prevista de acordo com o meio social no qual se encontram. É pertinente propor a introdução de uma dimensão relativa à verticalidade temporal, a qual confere ao ator o exercício voluntário, despretensioso, lúdico e sinérgico de identificação das chamadas tendências antes da sua massificação para outros estratos – como fazem os hippies, punks e gays na condição de difusores de inovações pelo papel marginal e “contraventor” que manifestam socialmente (MCCRACKEN, 2007). Ou seja, em um eixo temporal verticalizado, alguns indivíduos devem se posicionar à frente dos demais, antecipando e inventando categorias culturais antes de que as mesmas tornem-se “convenções” (DOUGLAS, 2007) aceitas e validades pelo grande coletivo. A constante oferta de bens, desejáveis e na moda, ou a usurpação de bens requintados por uma camada mais baixa leva aqueles que pertencem a uma camada superior a ter de investir em novos bens (informacionais) a fim de restabelecer a distância social original. (FEATHERSTONE, 1997, p. 42). A pretendida manutenção de uma “distância social original” é uma conduta que, apesar das novas configurações das constelações familiares e esfacelamento da nobiliarquia tradicional, (LIMA, 2005; NERY, 2008), se ampara na quantificação bourdieusiana de capital que este sujeito desfruta (ORTIZ, 1983, THIRY-CHERQUES, 2006) e que perpassa, inclusive, o caráter visionário que indivíduo pode manifestar, prevendo comportamentos e novas regras de conduta. Há mesclas sociais, sim, mas há espaços prévios e nítidos para ocupação de cada um dos estratos e um contínuo esforço de estabelecimento de novas demarcações espaciais e temporais com o objetivo de que áreas restritas sejam novamente delineadas e o acesso a tais campos requeiram o cumprimento de certas obrigações que alguns indivíduos desconhecem ou estão impedidos de praticar – seja por ausência de capital econômico, social e ou cultural. Com a introdução das mídias locativas e sociais, a temática do consumo ganha novos contornos analíticos sem tangenciar o cerne da questão – o processo de compra de um bem ou serviço –, mas abarcando um conjunto de circunstâncias simbólicas que são imprescindíveis para a composição de um painel no qual estes objetos e discursos dialogam entre si e com os homens a partir de uma ordem cultural que lhe é imanente. 4. Considerações finais Ao passar a ostentar um QR Code, o postal publicitário firma-se como mídia locativa e confere plasticidade ao anúncio publicitário veiculado. A exposição deste discurso de cunho informativo visa destituir os bens e serviços da instância da produção para o do consumo, de modo a apresentar aos atores sociais a constituição de novos artigos à sua disposição. Assim, emerge-se um entendimento de consumo enquanto proponente de um ordenamento cultural, do qual ensejam discussões relativas à congruência entre os bens e o sistema simbólico, atreladas ainda à capacidade dos mesmos em tecer redes de interação social entre indivíduos, seja em práticas de aproximação ou de distanciamento, já que cumprem a função de diferenciadores. Logo, é explícito que este artigo acaba por tangenciar uma crítica à sociedade de consumo na tentativa de melhor compreender suas estratégias de funcionamento e articulação com os sujeitos que nela vivem. Isso justifica a necessidade de se debruçar sobre significados manejados pelos atores sociais em um jogo dialético entre seus valores pessoais e o estrato social ao qual pertence, o que invalida uma submissão ao coletivo, mas, opostamente, uma atividade sinérgica na qual estas partes acordam mutuamente sobre a legitimidade e o desacordo de uma conduta de consumo, amparada pela ordem simbólica. Para tanto, é devida sua atenção e interesse por indícios e práticas culturais inovadoras capazes de apresentar-lhe a novidade, a ruptura, antes que esta se firme como comportamento padrão. Por fim, a presente inovação no postal publicitário permite apontar os seguintes desdobramentos: - a necessidade de reposicionamento das mídias massivas frente à expansão e permissividade das mídias pós-massivas; - o entendimento do postal publicitário como mídia locativa, tendo substituído sua condição de “meio de comunicação final” para um mediador do discurso publicitário, conduzindo o consumidor para outras instâncias de comunicação; - a proposição de uma confluência de linguagem aos anunciantes dos distintos meios; - a legitimação da estética de fluxo como principal premissa discursiva, gerando um movimento de continuidade na informação apresentada e compartilhada; - a proximidade da noção de consumo e atividade de lazer – inclusive a realizada através de mídia locativa –, requerendo uma análise multidimensional, levando em consideração o operativo do consumo nas atividades destinadas ao relaxamento; - a recusa a uma perspectiva que observa o indivíduo como subsumido ao imperativo da lógica do consumo ou das mídias. Afinal, o que este artigo sinaliza é a necessidade de se lançar luz nas distintas situações em que a informação publicitária se faz presente – seja ela em postais, mídias massivas ou redes sociais – e os desdobramentos possíveis acerca do que o ato de comprar quer dizer. Referências ARANTES, Priscila. Tudo que é sólido derrete: da estética da forma à estética do fluxo. In: SANTAELLA, Lucia; ARANTES, Priscila (Orgs.). Estéticas tecnológicas: novos modos de sentir. São Paulo: Educ, 2008, p. 21-33. BARBOSA, Lívia. Marketing etnográfico. RAE Executivo – Revista de Administração de Empresas Executivo, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 39-43, mai./jul. 2003. ______. Sociedade de consumo. São Paulo: Jorge Zahar, 2004. (Ciências sociais passo-apasso, n. 49). BAUDRILLARD, Jean. Sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2008. BEVILAQUA, Ciméa Barbato. Notas sobre a forma e a razão dos conflitos no mercado de consumo. NAU – Núcleo de antropologia urbana da USP, São Paulo, [2003?]. 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