9
UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA
MESTRADO EM HISTÓRIA
ALAN DE CARVALHO SOUZA
Desordem senhorial no Vale Paraíba fluminense na primeira metade
do século XIX. Paty do Alferes/Vassouras: terras e escravos.
Vassouras / RJ
10
2011
UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA
MESTRADO EM HISTÓRIA
Desordem senhorial no Vale Paraíba fluminense na primeira metade
do século XIX. Paty do Alferes/Vassouras: terras e escravos.
ALAN DE CARVALHO SOUZA
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós graduação em História
da Universidade Severino como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em História.
Orientadora: Cláudia Regina.
Co-orientador: Eduardo Cruz.
Vassouras
11
2011.
Alan de Carvalho Souza
Desordem senhorial no Vale Paraíba fluminense na primeira metade
do século XIX. Paty do Alferes/Vassouras: terras e escravos.
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós graduação em História
da Universidade Severino como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em História.
Banca Examinadora:
__________________________________
Profª Drª. Cláudia Regina - Orientadora
__________________________________
Profº. Drº. Eduardo Cruz – Co-orientador
__________________________________
Profº. Drº. Carlos Engemann
__________________________________
Profª. Drª Ana Moura.
12
Para Ana Paula Souza
13
Resumo
O presente trabalho apresenta a desordem da classe senhorial através do víeis
metodológico da microhistória. Abordando assuntos distintos, mas ligado
diretamente a disputa intraelite, foi possível refletir sobre a “homogeneidade”
deste grupo que se mostrou defensor dos seus interesses particulares em
detrimento da melhoria e progresso da extinta vila de Paty do Alferes.
Abstract
The present work shows the mess of the landpeople class throughout the
methodological sequence from microhistory. Approaching distinct subjects, but
concerned directly to the competition intraelite it was possible to reflect on the
“homogeneity” of this group that seemed defenders of their particular interests in
favor of improvement and progress of thr extinct villa from Paty do Alferes.
14
Agradecimentos
A todos que participaram desta caminhada, incentivando ou não.
A Deus, por estar presente em minha vida e consequentemente em meu
coração.
Jorge F.Corrêa de Souza e Lucimary de Carvalho Souza, meus pais, que me
proporcionaram a realização dos meus estudos e por ter me ensinado o sentido e
significado de uma família.
Mery Cristhiane e Mere Ana, minhas irmãs, pela paciência e apoio neste
desafio.
Arthur, meu sobrinho.
Ana Paula, por tudo que você representa em minha vida e principalmente por
acreditar em mim... Devo-lhe mais esta...
15
ÍNDICE:
Introdução
9
Capítulo 1
Paty do Alferes – da ocupação à vila – o desabrochar da desordem senhorial.
12
A insurreição de 1838.
12
Paty do Alferes: a ocupação e o início da tensão senhorial..
17
Solicitação para elevação do povoado em vila. O aflorar da desordem senhorial. 22.
A criação da vila
29
A vila: estagnação e mudança .
35
Capítulo 2
As famílias senhoriais num invólucro de desordem.
48
A desordem senhorial apropriando-se da ordem pública
48
A realização dos batismos de escravos refletindo a desordem senhorial.
52
Reflexos de uma desordem na disputa territorial.
61
Capítulo 3
Transformações políticas e instabilidades
70
Juiz de paz e guarda nacional: parcialidade na apuração dos fatos.
70
Uma fissura no costume.
74
Análise da comunicação da insurreição dos escravos.
80
Repercussão da insurreição.
90
O Julgamento.
96
Conclusão.
111
Anexo.
114
Fontes.
117
Referências Bibliográficas.
118
16
Introdução
Nesta pesquisa utilizamos a micro-história que, segundo Giovanni Levi, é uma
metodologia pautada na redução da escala de observação e em um estudo intenso
dos documentos1. O autor afirma ainda que: “o princípio unificador de toda pesquisa
micro-histórica é a crença em que a observação microscópica revelará fatores
previamente não observados”2.
Tendo como ponto de partida metodológico esse referencial, buscamos uma
melhor compreensão da classe senhorial na principal vila produtora de café da
província fluminense. Durante a investigação, deparamo-nos com a existência de
disputas intraelites responsáveis por diversos desdobramentos políticos, como a
transferência do título de vila de Paty do Alferes para Vassouras.
Essa porfia, que aqui apresentamos, se fez presente durante toda a primeira
metade do século XIX, período de rápidas e importantes transformações para a excolônia, elevada à categoria de Reino Unido de Portugal.
Essas modificações, tanto políticas quanto econômicas, refletiram-se
diretamente nas pequenas localidades do Vale Paraíba fluminense, transformado-as
em polo de produção de gêneros de subsistência.
Por meio do estudo da classe senhorial da vila de Paty do Alferes/Vassouras,
alcançamos o entendimento não só da extinção de Paty do Alferes em 1833
enquanto sede administrativa, como também de alguns acontecimentos que
marcaram a história da província do Rio de Janeiro.
A insurreição de 1838 é um desses eventos. Todavia, a abordagem não se
limitou a recontar uma história meramente local. Possibilitou sim, a compreensão de
alguns aspectos importantes da história social e política do período, entre eles: a
heterogeneidade da classe senhorial, a criação do cargo de juiz de paz; as
discussões em torno do federalismo e da centralização.
Dessa maneira, alcançamos o entendimento das mudanças ocorridas com o
processo de interiorização da metrópole, pós-vinda da Corte em 1808 e analisamos
os interesses senhoriais na busca e/ou manutenção pelo status de grande
proprietário rural e de obtenção de títulos de nobreza.
Assim, para obtermos um conhecimento mais profundo sobre a classe
senhorial da extinta vila, realizamos um levantamento no Arquivo Público do Estado
1
LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas
perspectivas. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1992. p. 136.
2
Ibidem, p. 139.
17
do Rio de Janeiro (APERJ) com a finalidade de encontrarmos a solicitação para a
criação da vila de Paty do Alferes em 1816, posteriormente fundada em 1820,
conforme seu Alvará de Criação.3
Logo no primeiro capítulo, focalizamo-nos no período que vai da fundação da
vila de Paty do Alferes até sua transferência, objetivando o entendimento de toda a
sua efêmera existência de exatos 13 anos. Nesse contexto, além dos conflitos no
seio da classe senhorial e, consequentemente, sua heterogeneidade, observamos a
predominância dos interesses particulares agindo diretamente sobre a vida política
da vila, que ocasionou sua mudança em 1833.
Na busca dos motivos que levaram aos conflitos dentro da classe senhorial,
utilizamos as obras de vários memorialistas que abordaram o nascimento de Paty do
Alferes enquanto vila e sede administrativa. Por meio da transcrição de documentos
apresentados nesses livros, notamos que a “desordem senhorial” nasceu em torno
da disputa pela manutenção de suas propriedades.
Utilizando-se das transcrições realizadas pelos memorialistas como possíveis
fontes4, buscamos o entendimento da querela intraelite em que esteve inserida a vila
de Paty do Alferes,e constatamos que tal embate existia antes mesmo da solicitação
de elevar o então povoado à condição de vila. Todavia, somente a partir do pedido
para a criação da vila, em 1816, que se verificou o afunilamento das disputas
senhoriais.
Por meio das obras de Matoso Maia Forte, frei Aurélio, Ignácio Raposo,
Alberto Lamego, entre outros, penetramos nesse universo de desordem em que se
encontrava a localidade, assim como todo o Vale Paraíba fluminense, que apesar de
suas particularidades, refletiam o novo momento político do Brasil.
Com questões envolvendo os proprietários locais, foi possível observar como
os senhores atuaram para não ter suas propriedades fracionadas com a
determinação do local que abrigaria a sede da vila a ser fundada.
No segundo capitulo, ainda analisando o mesmo período, mais precisamente
o interregno de 1825 a 1833 e chegando até o ano de 1840, apresentamos os
desdobramentos das disputas senhorias em assuntos não políticos.
3
Alvará de Criação da vila de Paty do Alferes, 1820. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro:
Fundos PP; notação 0138; maço 07; caixa 0049.
4
Infelizmente, os livros utilizados não informam o tipo de documentação. No entanto, em função da
linguagem utilizada, que diverge da apresentada no texto, e do destaque dado pelos autores,
sabemos que se trata de documentos da época.
18
A realização dos batismos escravos nos surpreendeu por apresentar
consequências da disputa senhorial. Em relação ao rito sacramental, verificamos
que um dos envolvidos se diferenciava quase que totalmente dos outros senhores
quando batizava seus cativos. Além disso, o início da década de 1830 apresentou
uma contenda judicial em torno de um terreno, que nos forneceu mais indícios da
influência da desordem senhorial. Por meio desta questão, trouxemos um exemplo
concreto de disputa pela terra com a expansão da lavoura do café que demonstra o
quanto o interesse político/particular agia numa esfera (jurídica) onde a neutralidade
e a observância dos dados e fatos deveriam ser os norteadores.
Por fim, no terceiro capítulo analisamos a insurreição de 1838, utilizando-se
dos processos crimes (homicídio e insurreição) resultantes da sublevação, com o
objetivo de perceber o que levou os escravos a se rebelarem e como se processou
toda a mobilização de captura, monopolizada pela família Werneck, envolvida
diretamente na disputa senhorial, sem deixar de lado o momento político e as suas
transformações. Para esse exame, utilizamos, basicamente, dois tipos de
documentos existentes: as comunicações das autoridades envolvidas na captura
dos cativos e o relatório do presidente de Província.
Cap. I. Paty do Alferes – da ocupação à vila – o desabrochar da
desordem senhorial.
1 A insurreição de 1838
19
Neste momento me participa o capitão-mor Manuel Francisco Xavier que, na
noite do dia 6 do corrente, lhe fugiram oitenta e tantos escravos, e que, na
seguinte noite, tornaram à fazenda da Maravilha, e tornaram a conduzir uma
porção de escravos, fazendo hoje um número de cento e tantos escravos
fugidos, sendo a maior parte deles armados. Os primeiros que fugiram
arrombaram diversas casas, de onde roubaram mantimentos e vários outros
objetos, e na seguinte (noite) foram então à fazenda da Maravilha, onde
quizeram matar o capataz, que escapou no telhado da casa, e, tendo
espancado outro preto, trataram de arrombar as casas, de onde tiraram feijão,
milho, farinha e açúcar, e bem assim capados que se achavam na seva, e
continuam nas suas excursões; e suponho, segundo os pormenores que tenho,
que o seu fim é ir reunir força, e depois lançar mão de outros meios que a
Vossa Senhoria e a mim não são ocultos, e como seja urgente precisão cortar
em princípio seus danados fins, rogo a Vossa Senhoria que mande pôr a minha
disposição a força da Guarda Nacional que Vossa Senhoria puder arranjar, a
qual se deverá achar no dia 10 do corrente, às quatro da tarde, no lugar do Pati
à minha disposição, os quais deverão vir armados e os que não trouxerem
munição lhes será por mim fornecida.5
De acordo com a citação, na noite de 6 de novembro de 1838, escravos
pertencentes ao capitão-mor Manoel Francisco Xavier sublevaram-se saindo da
fazenda da Freguesia e, formando um grupo de mais ou menos oitenta cativos,
seguiram em direção à fazenda de morada do capitão para arrebanhar mais
revoltosos. Após um dia de caminhada nas matas de Santa Catarina, o grupo inicial
chegou à fazenda da Maravilha, onde realizaram saques de mantimentos,
ferramentas e reuniram mais escravos para participarem da insurreição, como
algumas mulheres que se encontravam dormindo na cozinha da casa grande. Por
fim, tentaram um acerto de contas com o feitor Zeferino que escapou pelo telhado. 6
Após a chegada na fazenda Maravilha, o grupo passou a ser composto por
mais de uma centena que seguiu em direção à mata para se encontrar com outros
escravos liderados pelo feitor do sítio dos Encantos, Epifâneo Moçambique,
propriedade de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar.
Mas a comunicação informando o ocorrido só aconteceu dois dias após o
início da insurreição. A correspondência do capitão-mor Manoel Francisco Xavier,
datada de 8 de novembro, levou ao conhecimento do juiz de paz o evento ocorrido
na fazenda da Freguesia e Maravilha. Depois disso, houve o encaminhamento da
comunicação ao chefe da Guarda Nacional. Nela, o juiz de paz José Pinheiro de
5
Apud SOUZA, José Antonio Soares de. O efêmero quilombo de Pati do Alferes. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 295, p. 42, 1972.
6
Idem.
20
Souza Werneck descrevia os pormenores da insurreição ao seu primo Francisco
Peixoto de Lacerda Werneck (futuro barão de Pati do Alferes).
Essa comunicação remetida pelo juiz de paz não fez menção aos escravos
liderados pelo cativo Epifâneo, o que gerou o nosso questionamento a respeito
desse silêncio. Será que Paulo Gomes Ribeiro de Avelar não informou sobre a
sublevação de seus escravos ao juiz de paz? Sendo a resposta afirmativa, por que o
silêncio? Tendo em vista que a família Werneck era uma ramificação da Ribeiro de
Avelar,7 talvez esse silêncio se explique por essa proximidade e afinidade entre os
senhores envolvidos.
Mas voltando à insurreição, o juiz de paz informou que os escravos
arrombaram diversas casas, das quais levaram mantimentos e vários objetos, e
comunicou que em sua maioria os insurrectos estavam armados. 8 Ao analisar os
processos
crimes9
dos
cativos
presos,
não
encontramos
nenhum
outro
arrombamento, a não ser o verificado na fazenda de morada do capitão-mor Manoel
Francisco Xavier. Desse arrombamento, temos a informação de que foram levados:
feijão, milho, farinha, açúcar e capados (animais criados para o consumo).
A insurreição gerou um grande medo ou assim quis demonstrar o juiz de paz
na solicitação enviada à Guarda Nacional. Nela, requeria a presença da guarda em
Paty do Alferes no dia 10 de novembro, às quatro horas da tarde, e justificava sua
atitude com o receio de que aumentasse o mal.10 O temor era de que a insurreição
atingisse outras fazendas e se alastrasse a sublevação em toda a localidade.
O medo de uma insurreição geral na região era alimentado pelas referências
à revolta haitiana ocorrida no final do século XVIII. Este grande exemplo de
insurreição escrava perturbava as Américas e atormentava os pensamentos dos
proprietários que dependiam da mão-de-obra cativa em suas plantations.
7
A família teve sua origem na região do Pilar, por intermédio de Antônia Ribeira, casada com Manuel
de Azevedo Matos. Antônia é uma das duas filhas que com outros quatro filhos são a prole resultante
do casamento de João Bernerk (Verneck ou Werneck) com Isabel de Souza, filha ilegítima, mas
reconhecida de Francisco Gomes Ribeiro, primeiro representante da família que se tornou conhecida
como Ribeiro de Avelar.
8
Apud SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 42.
9
Processos crimes: Insurreição e homicídio (1838). Centro de Documentação Histórica (CDH),
Universidade Severino Sombra (USS).
10
Apud SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 42.
21
Além desse fantasma, o período pós-independência do Brasil apresentou um
aumento de fugas escravas.11 Além disso, várias outras insurreições estavam
presentes no imaginário senhorial da época e vinham a alimentar o “grande” medo.
Relembremos os malês. Considerada a mais importante rebelião ocorrida na Bahia,
contou, em sua formação, apenas com africanos de mesma origem que, segundo
Eduardo Silva e João José Reis, teria permitido a formação de uma cultura escrava
mais definida.
Sem entrar no mérito das discussões sobre a participação de livres nessa
insurreição que possibilitou várias interpretações a respeito, podemos ponderar no
sentido de homogeneidade desses escravos a partir da origem africana.
Diferente foi a revolta ocorrida em Carranca, localizada na comarca do Rio
das Mortes, em Minas Gerais, que se iniciou em 1833 com três escravos: Ventura,
Domingos e Julião. Estes mataram o filho do senhor Gabriel Francisco Junqueira,
proprietário dos cativos, que após o assassinato do “senhorzinho” se juntaram a
outros cativos e se dirigiram à sede de outra fazenda, onde mataram todos os
brancos que encontraram.12
A revolta de Carrancas apresenta alguns pontos em comum com as
informações contidas no abaixo assinado de 105 assinaturas de fazendeiros e
moradores da freguesia de Nossa Senhora da Glória da Villa de Valença, datado de
12 de julho de 1831.13 Nesse documento, era solicitada a substituição do juiz de paz
à majestade Imperial, devido à parcialidade daquele na apuração da conjuração dos
escravos.
Marcada para acontecer em julho de 1831, 14 a conjuração foi delatada por um
escravo ao senhor Manoel do Nascimento no dia 29 de junho. Os escravos
pertencentes aos senhores Manoel do Nascimento, Manoel Pereira Terra, Francisco
Martins, Joaquim Pinheiro e marquês de Baependy tinham como objetivo assassinar
11
SILVA, Eduardo; REIS, João. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhias das Letras, 1989. p. 10.
12
FARIA, Sheila de Castro. Identidade e comunidade escrava: um ensaio. Tempo. Revista do
Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, v. 11, n. 22, p. 122146, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tem/v11n22/v11n22a07.pdf. Acesso em: 9 de
janeiro de 2010.
13
O documento analisado é um abaixo-assinado da vila de Valença impresso pela Tipografia de
Torres no Rio de Janeiro no ano de 1831. O Documento foi gentilmente cedido por Antonio Carlos,
mestre em história. Ver anexo I.
14
Idem.
22
todos os homens brancos e livres que se encontravam no caminho até a vila de
Valença em prol da liberdade. A exceção era destinada às mulheres que serviriam
de esposas. Segundo a informação das autoridades, era “[...] para delles
desfrutarem, as fazendas, gozar lhes das Esposas [...]”. 15
Descoberta a trama, o fazendeiro Joaquim Pinheiro de Souza escreveu uma
carta a João Baptista Reis Motta solicitando a comunicação do intento às
autoridades. Ausentes o juiz de paz e seu suplente, o escrivão encarregado de
tomar as providências convocou os oficiais de quarteirão, milicianos, ordenanças da
vila e o “povo”. A força chegou a oitenta e poucas pessoas que no mesmo dia, por
volta das oito horas da noite, seguiram em direção às fazendas de Francisco Martins
e Joaquim Pinheiro, duas das quatro envolvidas, onde prenderam mais de setenta
escravos. Após a prisão, na noite de 29 de junho de 1831, os cativos foram
castigados com açoites e confessaram o dia marcado para a revolta, 4 de julho.
Ainda nas confissões, informaram que já tinham seu “Imperador”, um escravo
pertencente ao marquês de Baependy, e que os “negros” desse marquês foram os
responsáveis pela tentativa de revolta. Assim, apresentaram nove nomes de cativos
apontados como mentores.16
No dia 1º de julho, já com a presença do juiz de paz, foram presos os
escravos de Manoel do Nascimento. Esses novos presos chegaram à vila e
confirmaram suas participações após serem açoitados. 17 Nesse ínterim, os cativos
gritaram que os culpados eram os “negros do Sr. Marquez”, o que ocasionou a
solicitação do povo18 para a prisão e castigo dos escravos do marquês de Baependy.
Além
do
fantasma
do
Haiti
e,
posteriormente
dos
malês,
esses
acontecimentos estavam muito mais próximos geograficamente dos senhores da
extinta vila de Paty do Alferes e, consequentemente, muito mais vivo no imaginário.
Talvez, por isso, todo o alarde por parte das autoridades na insurreição de 1838.
O temor inicial do juiz de paz de uma insubordinação geral não se
materializou, pois os escravos só atacaram a fazenda da Maravilha, propriedade do
capitão-mor Manoel Francisco Xavier, se encontrando posteriormente com os outros
15
Idem.
16
O abaixo-assinado não informa os nomes desses escravos.
17
Não foi informado o número de cativos presos de Manoel do Nascimento.
18
O documento informa que foi a população da vila que fez a solicitação.
23
cativos que já estavam na mata. E, dessa maneira, seguiram adiante levando todo o
possível para o estabelecimento de uma nova fazenda.19
Mesmo assim, no dia 10 de novembro, a Guarda Nacional, sob o comando do
coronel Francisco Peixoto Lacerda Werneck, chegou a Paty do Alferes com uma
força composta por mais de 160 homens, dentre guardas e cidadãos. A solicitação
da presença da guarda foi prontamente atendida, não respeitando a determinação
do decreto de 6 de julho de 1836, que exigia a autorização do presidente da
província para a movimentação de uma força superior a vinte homens.
Antes da chegada da guarda, no dia 8 de novembro, às duas horas da tarde,
o coronel da Guarda Nacional, Francisco Peixoto Lacerda Werneck, recebeu o ofício
do juiz de paz de Paty do Alferes. Após a leitura do documento, encaminhou ao
presidente da província uma cópia do referido, acrescentando que o ocorrido na
propriedade do capitão-mor preocupava há tempos a autoridade local pela forma
como o próprio lidava com a sua escravatura. Em seu relatório, o coronel deu sua
versão para a explosão da insurreição:
Há muito tempo que se receava o que hoje acontece, por fatos que se têm
observado entre esta escravatura. Há pouco mais de um mês que mataram um
parceiro a tiros, e foi, por ordem do capitão mor, sepultado no maior segredo, e
só se soube pela boca pequena que tal crime se havia perpetrado. 20
O coronel apresentou a situação da escravaria do capitão-mor Manoel
Francisco Xavier envolvida na insurreição, associando-a a uma certa falta de
governo dentro das fazendas. Ao dizer “há muito tempo”, o coronel se referia a
acontecimentos ocorridos quatro anos antes que, segundo ele, deixaram os
fazendeiros da região em estado de cautela. O modo como os escravos viviam
dentro das fazendas do capitão-mor era o principal motivo de temor, na visão do
coronel Francisco Peixoto Lacerda Werneck. A pretensa ingovernabilidade estava
associada a certos atos dos escravos do capitão-mor como ferimentos a homens
brancos e espancamentos mortais de capatazes. 21 Dessa maneira, o coronel
indicava ao presidente da província o ambiente das fazendas da Freguesia e
Maravilha que, segundo sua opinião, comprometia a tranquilidade pública.
19
SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 51.
20
Apud SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 43.
21
Idem.
24
Sem minimizar a importância da insurreição, e considerando a referência à
desordem pública, como explicar a ausência de ataques a outras fazendas? Apesar
de não ter havido novos ataques, a insurreição parecia ameaçar diretamente as
autoridades, o que, talvez, explique a ação rápida sem o cumprimento das
determinações do decreto de 6 de julho de 1836. As medidas tomadas para conter a
insurreição também podem ser entendidas como uma oportunidade para pôr fim à
disputa intraelite, iniciada antes mesmo da fundação da vila de Paty do Alferes em
1820.
Ao analisar as obras Histórias de quilombolas22 e Insurreição negra e
Justiça,23 uma informação gerou nossa indagação sobre este levante de escravos. A
primeira obra salienta a existência de conflitos entre os senhores que teriam
influenciado na apuração e nos julgamentos dos cativos presos. A segunda obra
afirma que a instauração dos processos não passou de “vestimenta”, dada a uma
decisão anteriormente tomada.24
A partir dessa leitura, buscamos dados que pudessem comprovar tais
afirmações. Para alcançarmos nosso objetivo realizamos um estudo em períodos
anteriores à insurreição de 1838, focando nossos esforços na época da ocupação da
região da vila de Paty do Alferes.
1.1 Paty do Alferes: a ocupação e o início da tensão senhorial
Nos anos finais do século XVII, Garcia Rodrigues Pais iniciou a abertura do Caminho
Novo, que ligaria a região de Minas Gerais à cidade de São Sebastião, atual Rio de
Janeiro. No ano de 1700, Garcia chegou à roça do alferes Leonardo Cardoso da
Silva, ao vencer o morro São Paulo.25 Posteriormente ao ano de 1705, quando
finalmente o Caminho Novo começou a ser transitável, 26 a região começou a sofrer
22
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no
Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
23
PINAUD, João Luiz Duboc et al. Insurreição negra e Justiça. Rio de Janeiro: Ed. Expressão e
Cultura – Exped Ltda., 1987.
24
Ibidem, p. 27.
25
STULZER, Aurélio (frei). Notas para a história da Villa de Pati do Alferes. Dezembro de 1944, p.5.
26
Informação retirada da obra de MAGALHÃES, Basilio. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, tomo 84. Apud. MAIA FORTE, José Mattoso. Memória da fundação de Vassouras. Rio de
Janeiro: Ed. O Globo, 1933. p. 6.
25
uma ocupação mais sistemática pelos transeuntes que utilizavam a nova rota de
escoamento da produção aurífera.
Mas, antes mesmo da chegada de Garcia Rodrigues, a região já apresentava
seus primeiros sesmeiros: o alferes Leonardo e o capitão Francisco Tavares, 27
proprietários das mais antigas sesmarias da localidade. 28* Com o aumento da
utilização da nova “via”, muitos outros foram ocupando as margens e construindo
ranchos para pouso dos viajantes e pequenos comércios.
Assim, ao redor dessas sesmarias, foram se estabelecendo outros
moradores. Alguns desses vizinhos receberam doações de sesmarias, como Valério
Francisco da Costa que obteve sua carta em 8 de janeiro de 1750. 29 Com o
crescimento do número de habitantes, as autoridades espirituais identificaram a
necessidade de um “pasto espiritual”. Dessa forma, frei Francisco de S. Jeronymo,
bispo de São Sebastião, permitiu que o oratório da fazenda do capitão Tavares
passasse a servir de capela curada.30*
[...] pareceu conveniente ao bispo D. Francisco de S. Jerônimo providenciar
tanta necessidade, permitindo o uso e privilégio de capela curada ao oratório
do capitão de ordenanças Francisco Tavares, enquanto se descobriu, pela
cultura das terras, sítio proporcionado à fundação de um templo. 31
Em função da prosperidade da localidade e, novamente, do aumento
demográfico, os próprios moradores solicitaram uma nova igreja. Mas, antes da
27
O nome do capitão Tavares era: Jose Francisco Tavares que antes de se tornar capitão fora
alferes.
28
Informação retirada do Arquivo público Nacional. Coleção 60, Lº 18 fs 139. Apud MAIA FORTE,
José Mattoso. Op. cit., p. 8.
*Segundo o Instituto de Arqueologia Histórica do Médio Paraíba, os Sesmeiros mais antigos são:
Francisco Tavares, Martins Correa Vasques e marcos da Costa da Fonseca Branco.
29
Ibidem, p. 14.
30
Idem.
*Capela Curada: ministrada, em caráter permanente, por um pároco ou cura, é igualada à paróquia.
31
Informação retirada da declaração realizada pelo Bispo Fr. João da Cruz em 8 de junho de 1742. In:
Apud ARAÚJO, Joze de Souza Azevedo Pizarro e. Memórias históricas do Rio de Janeiro. In:
BRAGA, Greenhalgh H. Faria. De Vassouras: histórias, fatos, gente. Rio de Janeiro: Ultra set Ed.,
1978. p. 16.
26
edificação deste templo, o capitão Tavares doou, em 13 de março de 1739, cem mil
réis e hipotecou a esta quantia meia légua de terras 32 para patrimônio desta igreja.33
Posteriormente, na década de 1780, com o contínuo crescimento da
localidade, além da igreja apresentar sérios problemas em função da ação do
tempo, passou a não comportar o grande número de fiéis. Durante uma missão
religiosa, por exemplo, não comportou todos os devotos, deixando-os expostos ao
sol, ocasionando a solicitação do missionário para a construção de um novo templo.
Para isso, os senhores José Ribeiro da Cruz e José de Oliveira Ribeiro doaram
seiscentos mil réis cada um.34
Após muito rogo dos moradores e, também, em função da obrigação contida
no registro de doação para patrimônio da igreja realizado pelo capitão Tavares, José
de Oliveira Ribeiro doou uma pequena área para a nova construção. José de
Oliveira era o proprietário da fazenda Freguesia, sucessor do capitão Tavares. Por
conseguinte, tinha a obrigação de cumprir com a doação realizada pelo seu
antecessor.
[...] faz doação para patrimônio da quantia de cem mil reis em dinheiro cuja
quantia toma ele, [...] sobre si a razão de juros de seis e um quarto por cento
em cada ano, cujo juros se obriga ele, [...] a dar conta ou em dinheiro, ou em
despesas para a dita capela [...] e especialmente hipoteca a esta quantia de
cem mil reis deste patrimônio a dita meia légua de terras com as ditas fazendas
em sua vida, e por sua morte, dele, outorgante a seus herdeiros, ou a quem os
possuir que será sempre com essa obrigação [...].35
Tirando proveito de sua obrigação e da doação de seiscentos mil réis, José
de Oliveira Ribeiro impôs ao seu cunhado a construção da nova igreja. 36 Mas Inácio
32
“[...] Escritura de doação para patrimônio de uma capela que fez o cap. Francisco Tavares e
obrigação de hipoteca [...] tem ele uma capela ornada e paramentada de todo o necessário de
invocação Nossa Senhora da Conceição, que levantou e fabricou, ele outorgante a sua custa, e para
conservação dela e se poder dizer missa e servir de freguesia lhe faz doação para patrimônio da
quantia de cem mil reis em dinheiro cuja quantia toma ele, [...] sobre si a razão de juros de seis e um
quarto por cento em cada ano, cujo juros se obriga ele, [...] a dar conta ou em dinheiro, ou em
despesas para a dita capela [...] e especialmente hipoteca a esta quantia de cem mil reis deste
patrimônio a dita meia légua de terras com as ditas fazendas em sua vida, e por sua morte, dele,
outorgante a seus herdeiros, ou a quem os possuir que será sempre com essa obrigação [...]” Apud
STULZER, Aurélio (frei). Op. cit., p. 9-10.
33
A igreja foi benzida pelo rev. Manuel da Costa em 26 de abril de 1739. Apud STULZER, Aurélio
(frei). Op. cit., p. 11-12.
34
35
Ibidem, p. 32.
Transcrição do documento de doação realizado pelo capitão Tavares, mas o autor não cita a fonte
utilizada. Ibidem, p. 9-10 (grifo do autor).
27
de Souza Werneck tinha se apresentado para edificá-la. 37 Assim sendo, foram
apresentados dois orçamentos idênticos, salvo por algumas especificidades. Mesmo
assim, José de Oliveira Ribeiro afirmou que o seu cunhado, José de Souza Vieira,
seria quem a construiria. Para forçar a aceitação do seu desejo, só permitiria a
retirada de madeira de sua mata para a obra da igreja se a mesma estivesse sendo
erguida por José de Souza.38
A construção terminou, sendo acertada com José de Souza Vieira no valor de
quatro contos de réis. O primeiro pagamento foi feito ao iniciar a obra e o segundo
com toda a cobertura pronta e a última ao término. 39
Não sabemos o porquê desta imposição. Talvez, uma forma de reaver o
dinheiro doado pela família? E, por que Inácio de Souza Werneck se apresentou
como construtor? Sabemos que Inácio Werneck fora um religioso e, após o
falecimento de sua esposa, tornou-se vigário num momento em que a coroa
buscava transformar os sacerdotes em funcionários reais 40. Mas isso não explica sua
apresentação como construtor da igreja.
Durante o andamento da construção, José de Souza Vieira não recebeu o
segundo pagamento, pois não realizou toda a obra restando as varandas e a
sacristia.41 Em função do não recebimento, José de Souza Vieira abandonou a obra
obrigando o vigário, José Pereira Furtado, juntamente com Luis Gomes Ribeiro a
contratarem um novo construtor. Inácio Ferreira Pinto, após o recebimento de
setecentos mil réis, retirou-se para a Corte,42 deixando a obra a cargo de dois outros
funcionários.
36
A forma escrita no livro nos leva a acreditar que foi retirada de algum documento, mas não há a
citação da fonte. Ibidem, p. 32.
37
Mais uma vez o autor não informa fonte. Ibidem, p. 31.
38
Idem.
39
Ibidem, p. 32.
40
Para saber mais ver: NEVES, Guilherme Pereira. A religião do Império e a igreja. In: GRINBERG,
Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 1 vol.
41
Informação contida na obra de Aurélio Stulzer, mas não cita a documentação. Apud STULZER,
Aurélio (frei). Op. cit., p. 33.
42
Idem.
28
Posteriormente, a obra foi paralisada, possivelmente em função da imposição
de José de Oliveira Ribeiro. Por isso, Francisco Lacerda Peixoto afirmou que José
de Oliveira Ribeiro “é mau homem, falta caridade e religião”. 43
Além disso, alegou-se que a não finalização da obra se deu à má vontade da
família de José de Oliveira Ribeiro44 e que a família desejava isolar as suas terras
dos outros fazendeiros locais. Para este fim, teria realizado diversas compras para
deslocar os seus vizinhos. Esse anseio ficou mais explícito com a proibição para a
construção de casas para aforamentos.45*
Com base nas informações encontradas, nota-se inicialmente uma resistência
dos proprietários da fazenda Freguesia (capitão Tavares e José de Oliveira Ribeiro)
em doar parte de suas terras, o que sugere uma disputa pela manutenção territorial
da propriedade.
Esse desejo de isolar a propriedade parece se conformar a uma prática
comum da época. Segundo Márcia Motta, Nas fronteiras do poder, ser senhor de
terras representava “a capacidade de exercer o domínio sobre suas terras e sobre
os homens que ali cultivavam”. 46 A atitude de José de Oliveira, ao desalojar os
ocupantes, demonstra uma das faces do que estava em jogo. A questão do domínio
e da expansão da propriedade parecem ser centrais no contexto da compra de
terras de seus vizinhos. Soma-se a isso, a intenção de estar distante de outros
proprietários para assim exercer em total plenitude o seu poder.
A compra de terras dos vizinhos ocorreu na segunda metade do século XVIII,
período de intensa ocupação em toda região do Vale do Paraíba e de intensas
disputas pelo acesso à terra,47 o que, de certa maneira, pode ajudar a explicar a
resistência em fazer doações para a edificação da igreja. O período ainda trouxe
43
Ibidem, p. 34.
44
Apud STULZER, Aurélio (frei). Op. cit., p. 33. Informação possivelmente retirada de algum
documento, esta ponderação é plausível pela forma de escrita que difere da do texto.
45
“Nunca permitiu se fizessem casas para aforamento, como era o uso, para servir aos de fora, por
ocasião de missas e festas, e quando quis faze-lo, não querendo, trombeteava que cobraria 320 réis
a braça - um absurdo para aqueles tempos!”. Apud STULZER, Aurélio (frei). Op. cit., p. 33.
*Casa para repouso dos viajantes.
46
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do
século XIX. 2. ed. Niterói, RJ: Editora da Universidade Federal Fluminense (EdUFF), 2008. p. 44.
47
Ibidem, p. 196.
29
várias solicitações para demarcações das sesmarias e, de acordo com Márcia Motta,
em quase todos os pedidos existiam pendências em relação aos confrontantes. 48
Até aqui, observamos o posicionamento de José de Oliveira Ribeiro frente à
doação do terreno e sua imposição para que o seu cunhado, José de Souza Vieira,
construísse a igreja. Essa atitude gerou um descontentamento do povoado,
agravada pelo abandono da construção da igreja.
O resultado foi a avaliação, em 1817, das ruínas da igreja em trezentos mil
réis.49 Tal fato ocasionou uma tensão na classe senhorial, que apresentou
desdobramentos no contexto da fundação da vila de Paty do Alferes.
1.2 Solicitação para elevação do povoado em vila. O aflorar da desordem
senhorial
Antes de abordarmos as questões relativas à elevação de Paty do Alferes à
categoria de vila, conforme solicitação em 1816, nos deteremos, por um breve
momento, num acontecimento ocorrido no final do século XVIII. Em 1793, faleceu
José de Oliveira Ribeiro, deixando uma filha de nome Francisca Xavier das Chagas
sob a guarda de sua esposa, então viúva, Maria Victória. 50
Em 4 de fevereiro de 1798, a viúva Maria Victória casou-se pela segunda vez
com José Francisco Xavier, oriundo do Açores e considerado pelo bispo do Rio de
Janeiro, Dom José Caetano, um homem temente a Deus: “[...] duas vezes procurei o
vizinho senhor Jose Francisco Xavier, ilhéu, tagarela, mas capaz de um
desempenho e amigo da igreja [...]”.51
José Francisco Xavier tem papel de destaque no que consideramos a
“desordem senhorial”, sendo uma das figuras centrais na porfia que se envolveu a
freguesia de Paty do Alferes com a solicitação de sua transformação em vila.
Ao analisarmos a certidão de casamento de José Francisco Xavier,
encontramos uma particularidade quanto à realização da cerimônia. O horário
marcado para a celebração dos laços matrimoniais não era o habitual. Vejamos:
48
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito, 1795-1824. São
Paulo: Alameda, 2009. p. 195.
49
Apud STULZER, Aurélio (frei). Op. cit., p. 33.
50
Transcrição da certidão de óbito de José de Oliveira Ribeiro. Apud STULZER, Aurélio (frei). Op. cit.,
p. 12.
51
Transcrição do relatório da visita de dom José Caetano a freguesia de Paty do Alferes em agosto
de 1813. Apud STULZER, Aurélio (frei). Op. cit., p. 37.
30
Aos quatro dias do mês de fevereiro de mil setecentos e noventa e oito, nesta
paroquial igreja do Alferes, às nove para às dez horas da noite por me
apresentarem despacho, digo, provisão de Sua Excelência para serem
recebidos à noite, feitas as denunciações do Sagrado Concílio Tridentino, por
provisão que me apresentaram do ver. Cônego José Rodrigues de Carvalho
que serviu de vigário geral, em minha presença, e das testemunhas Antônio
Gomes da Cruz, e Antônio da Cunha Godoi, se casaram em face da Igreja, por
palavras de presente, José Francisco Xavier, filho legítimo de Felipe José
Xavier e de Mariana Rosa, natural da Ilha de Santa Catarina do Faial, bispado
de Angra, com Maria Vitória da Conceição, viúva de José de Oliveira Ribeiro,
natural da freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Alferes, e lhe dei as
bênçãos por lhe serem devidas, de que para constar fiz este assunto que
assinei. João Álvares de Barros, vigário (Grifo nosso). 52
Possivelmente, o casamento foi realizado às “escondidas” em função da
determinação do testamento do primeiro marido de Maria Victória.
[...] Nomeio a mesma minha mulher, pela sua capacidade que tenho
experimentado e faço do meritíssimo juiz de órfão, caso ela mande continuar
os termos do inventário e partilhas, para ela reger e governar a pessoa do
mesmo menor e a sua legítima, aplicando-se rendimento da mesma para sua
subsistência, e ainda pela sua meação; não passando a segundas núpcias
como é trivial neste caso (grifo do autor).53
Já no século XIX, mais especificamente no ano de 1817, o momento político
era de rápidas transformações. Todavia, ao observarmos a freguesia de Paty do
Alferes, encontramos indícios da permanência da tensão senhorial.
Nesse período, conforme apresentado anteriormente, temos a informação de
que a igreja não tinha sido construída totalmente, encontrando-se a obra paralisada 54
e avaliada em trezentos mil réis, ou como informa frei Aurélio “[...] as ruínas desta 2ª
matriz inacabada, em trezentos mil réis”.55
Mas um ano antes, em 20 de abril de 1816, era solicitada a criação da vila de
Paty do Alferes56. Segundo a solicitação, a criação da vila serviria para cuidar melhor
dos interesses da ordem civil, já que os moradores poderiam resolver seus assuntos
na própria vila, sem a necessidade de deslocamento até a Corte.
52
Transcrição da certidão de casamento de José Francisco Xavier com Maria Vitória da Conceição.
Apud STULZER, Aurélio (frei). Op. cit., p. 17. (grifo do autor).
53
Testamento de Jose de Oliveira Ribeiro. Apud STULZER, Aurélio (frei). Op. cit., p. 15. (grifo do
autor).
54
A obra fora iniciada antes de 1784, ou seja, já durava mais de 33 anos.
55
Apud STULZER, Aurélio (frei). Op. cit., p. 33.
56
A solicitação foi encaminhada pelo ouvidor do Rio de Janeiro a Mesa de Desembargo.
31
No que diz respeito à solicitação, José Francisco Xavier se posicionou
contrário. Lembremos que este senhor estava, nesse momento, defendendo o
interesse de sua esposa, Maria Victória, proprietária da fazenda Freguesia. Esta
propriedade tinha pertencido anteriormente a José de Oliveira Ribeiro, envolvido nas
questões em torno da construção da igreja.
Ao se posicionar dessa forma, José Francisco Xavier não estava se
colocando contra a criação da vila, mas, sim, defendendo a unidade territorial da sua
propriedade, pois o local escolhido para abrigar a sede encontrava-se dentro dos
limites da fazenda Freguesia, da mesma forma que a solicitação anterior, referente à
construção da igreja, em função da doação registrada em cartório. Dessa maneira,
ele buscava se libertar da obrigação de doar parte de suas terras para a construção
da sede. Essa obrigação de doar terrenos para construções públicas existia para
toda propriedade obtida por meio de concessão do título de sesmaria.
Notamos mais uma vez o interesse desses proprietários em manter suas
propriedades intocadas. Assim, em busca dessa conservação, José Francisco
Xavier realizou uma petição junto à Corte alegando que o terreno demarcado para a
sede estava a 42 braças de seu engenho e que o local era impróprio por se
encontrar entre morros.57 Em função dessa alegação, indicou a localidade de Sacra
Família, pela sua planície e estrutura “com casa de vigário, particulares e de
negócios”.58
Não diferente do ocorrido na freguesia de Paty do Alferes, Sacra Família
também apresentou um proprietário que se posicionou contrário à construção da
sede em suas propriedades. A petição de José Francisco Xavier não foi aceita pelo
ouvidor que considerou a localidade indicada como “excêntrica”. 59 Juntamente com a
negação, o ouvidor solicitou a José Francisco Xavier alguns esclarecimentos sobre o
estado de ruína da igreja e sobre o motivo de ter sido construída em local deserto.
Além disso, pediu a apresentação da carta de sesmaria.
Segundo o ouvidor, a ruína da igreja teria sido causada pelo próprio José
Francisco Xavier e disso era prova a carta do capitão Francisco Peixoto de Lacerda.
No entanto, neste momento em que José Francisco Xavier sofreu a acusação,
57
Petição encaminha a Corte por José Francisco Xavier. Apud MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit.,
p. 22.
58
MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 22.
59
Idem.
32
surgiu seu irmão Manoel Francisco Xavier como novo proprietário da fazenda
Freguesia, após casar-se com a filha de Maria Victória, Francisca Xavier das
Chagas.
O casamento ocorreu em 4 de setembro de 1804. A partir desta data,
Francisca passou a assinar como Francisca Eliza Xavier.
Aos quatro dias do mês de setembro de mil oitocentos e quatro anos nesta
paroquial igreja de Nossa Senhora da Conceição do Alferes, às dez horas da
manhã, em virtude de sua provisão que me apresentaram do muito reverendo
doutor juiz dos casamentos Francisco Gomes Vilasboas, recebi
matrimonialmente, por palavras de presente, sem impedimento, in face
ecclesiae, na forma do Sagrado Concílio Tridentino e constituição, a Manuel
Francisco Xavier, filho legítimo de Felipe José Xavier e de Mariana Rosa da
Trindade, natural e batizado na freguezia de Santa Catarina, bispado de Angra;
e Francisca Xavier das Chagas, filha legítima de José de Oliveira Ribeiro e de
Maria Vitória da Conceição, natural e batizada nesta freguezia da Nossa
Senhora da Conceição do Alferes, e logo lhes dei as bênçãos nupciais; foram
testemunhas presentes o Alferes José Francisco Xavier e Antônio Gomes da
Cruz todos desta freguezia, de que fiz este assunto. 60
O vig. Joaquim José
Pereira Furtado.
Dessa forma, a propriedade de José de Oliveira Ribeiro passou a pertencer a
Manoel Francisco Xavier. Nesta aliança, notamos a preocupação em manter o
patrimônio dentro do núcleo familiar formado. Aliás, havia uma determinação
testamentária, no caso de um segundo casamento de Maria Victória, da perda do
domínio dos bens existentes.
Não
diferente
do
irmão,
Manoel
Francisco
Xavier
apresentou
um
requerimento impugnando a criação da vila. Alegou a existência em sua fazenda de
uma capela particular que atendia à família e aos vizinhos. 61 E, assim como os
proprietários anteriores, posicionou-se em favor da unidade territorial da sua
propriedade. Lembremos esses senhores:
1º Proprietário
Capitão Tavares
60
2º Proprietário
3º Proprietário
4º Proprietário
Certidão de casamento de Manoel Francisco Xavier com Francisca Eliza. Apud STULZER, Aurélio
(frei).
cit., p.17.
JoséOp.
Oliveira
Ribeiro
Manoel Francisco
Maria Victória e
e
Xavier
e Francisca
JoséFrancisco
Francisco
Requerimento apresentado por Manoel
Xavier ao procurador
da Coroa.
Apud MAIA
Eliza
Xavier
FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 23.
Xavier
Maria Victória
61
33
Para este novo personagem, a criação da vila se restringia inicialmente à
presença da igreja. Como a fazenda possuía uma capela que servia à comunidade,
a presença administrativa não se faria necessária.
Ainda na argumentação apresentada, ressaltava-se que a fazenda contribuía
com os direitos para o erário régio. 62 Manoel Francisco Xavier informou que não era
contra a fundação da vila, só não queria a mesma dentro de sua propriedade, pois
prejudicaria o progresso da fazenda e, assim, ofereceu um terreno em uma das
extremidades da fazenda e um conto de réis para a realização das obras. 63
Com a argumentação do cumprimento da obrigação, o proprietário Manoel
Francisco Xavier deixou transparecer que suas terras eram legalizadas e, talvez por
isso, não fez referência ao cultivo do solo que era uma das exigências para ter o
título de proprietário reconhecido. Em sua alegação, notamos também o conflito
existente entre a classe senhorial e a Coroa 64 que encontrou forte restrição por parte
dos fazendeiros para ter suas determinações cumpridas.
Ainda sobre o cumprimento da obrigação com o erário régio, notamos que
sua citação visava o não questionamento sobre a legalização de sua propriedade.
Dessa maneira, estava se protegendo de uma “nova” demarcação de seus limites e
consequente comprovação da posse ou, ainda, a obrigatoriedade de algum
documento de áreas agregadas à extensão da propriedade. Conforme as
Ordenações Fillipinas:
Porém se os administradores se oferecerem provar dentro de trinta dias, como
por si e seus antecessores estão em posse da administração por tanto tempo
que a memória dos homens não é contrário, sem saberem parte da instituição,
e que sempre cumpriram os encargos, que seus antecessores sempre
cumpriram. Ser-lhes-á recebida tal razão e não serão tirados da posse [...]. 65
62
Ibidem, p. 24.
63
Idem.
64
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Op. cit., 2008, p. 44.
65
Ibidem, p. 107.
34
Em função desta resistência da família Xavier, o procurador da Coroa solicitou
ao ouvidor a opinião da “nobreza” e do povo para a melhor localização da sede e
também o valor da antiga igreja que se achava em ruína.66*
Dessa forma, um segundo ouvidor, dr. José Joaquim de Queiroz, examinou a
propriedade dos Xavier e informou não encontrar um local próprio para a sede.
Segundo José Joaquim Queiroz, a melhor região seria a denominada de Paty ou
Patys, onde se achavam estabelecidos muitos moradores formando uma espécie de
arraial.67 Mas onde se encontrava tal localidade?
Após três anos da solicitação de 1816 para a fundação da vila, um novo local
foi escolhido. Este se encontrava dentro da propriedade de Antonio Luiz Machado
que se posicionou contrário à nova indicação. Antônio era proprietário do sítio dos
Patys68 e, como tal, era o responsável por arcar com certas obrigações de
detentores do título de proprietário de sesmaria. 69
Segundo o jornal Vassourense,70 Antonio Luiz Machado era morador da
freguesia de Sacra Família, o que confirmava a primeira indicação realizada por
José Francisco Xavier.
Sacra Família foi elevada à Freguesia no ano de 1755. Sua criação destinavase a atender as necessidades espirituais dos moradores, obrigados a grandes
deslocamentos para participarem dos rituais católicos. 71 Antes de receber o título de
freguesia e seus benefícios, como a construção de uma igreja, os moradores eram
obrigados a se deslocarem até a localidade da Roça do Alferes. Local esse que já
contava com uma capela curada para atender os rituais católicos.
A escolha entre as propriedades de Antonio Luiz Machado e Manoel
Francisco Xavier, para implantação da vila, apresentou vários desdobramentos.
Machado informou ao ouvidor que a fazenda do Xavier era muito maior e por isso
66
MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit.. p. 24.
*Conforme informado anteriormente, a igreja foi avaliada em 300$000 (trezentos mil réis).
67
Relatório do dr. José Joaquim de Queiroz de 8 de junho de 1819. Apud MAIA FORTE, José
Mattoso. Op. cit., p. 25.
68
LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e a Serra. 2. ed. Rio de Janeiro: IHGB, 1963. p. 139.
Ao ser escolhida a localidade para edificação da sede da vila e, se a mesma encontrava-se dentro
dos limites de uma sesmaria, o proprietário era obrigado a doar parte do território. Por sua vez, a
população arcava com toda doação para a construção dos prédios públicos.
69
70
Jornal Vassourense de 31 de dezembro de 1893. Museu Casa da Era, Vassouras, Rio de Janeiro.
71
MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p.54.
35
poderia arcar com a fundação. Além disso, argumentou que os Xavier eram
herdeiros e sucessores de José de Oliveira Ribeiro e esposa, responsáveis pela
doação de um terreno para construção da igreja e duzentos mil réis. Por fim, alegou
que muitos fazendeiros, como Luiz Gomes, se obrigaram, por escritura, a doar o que
faltasse para a conclusão da igreja 72 e que o arraial considerado pela autoridade
para a instalação da sede não passava de “[...] seis moradores, dois dos quaes eram
possuidores de terras desmembradas da mesma fazenda, sendo os demais
agregados desta e tão miseráveis que viviam em pequenos ranchos de palha”. 73
O ouvidor Queiroz, em resposta ao apresentado pelo sr. Antonio Luiz
Machado, argumentou da seguinte maneira: o próprio sr. Antonio não informou
nenhum outro local para a fundação e ainda defendeu tacitamente que o local onde
se encontravam as ruínas da igreja não era apropriado. Quanto ao sítio dos Patys,
era uma várzea com grande extensão que contava com 26 moradores, rios e
cruzamento de estradas das freguesias.74
Ao final do confronto das argumentações, o ouvidor Queiroz provou ser
verdade a informação quanto ao número de habitantes, pois as pessoas que
assinaram o auto de vistoria reconheceram tais dados. Por fim, Queiroz foi favorável
à fundação da vila nas terras de Antonio Luiz Machado, afirmando que o mesmo
encontraria recompensa na afluência de moradores. Finalmente, no dia 29 de maio
de 1820, a Mesa do Desembargo opinou a favor do auto realizado pelo ouvidor
Queiroz pela fundação da vila no sítio denominado Patys 75 em Sacra Família.
Notamos que o interesse senhorial em manter a unidade territorial da
propriedade foi o principal foco das argumentações para se ter a sede da vila longe
das propriedades envolvidas. Além disso, estava em questão o poder de um senhor
de terras que se expressava através do domínio de determinado espaço, bem como
a sujeição dos homens que ali trabalhavam. 76 Portanto, uma vitória frente à
determinação da Coroa para a demarcação do terreno não só sustentava a posição
72
Informação contida no livro de Maia Forte, mas infelizmente a fonte não é citada. Apud MAIA
FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 27.
73
MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 28.
74
Idem.
75
76
Ibidem, p. 29.
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Op. cit., 2008, p. 44.
36
de mando desse senhor, como proporcionava um aumento da autoridade desse
proprietário.
1.3 A criação da vila
Nesse cenário, no qual os interesses dos senhores falavam mais alto que os
interesses comunitários, chegou o ano de 1820 que trouxe consigo a fundação da
vila ocorrida em 4 de setembro:
Alvará de creação: - Eu El Rei faço saber aos que este alvará com força de ley
virem, que, sendo-me presente em conselho da mês do meo desembargo do
Paço a necessidade que há de se criar huma Villa na Freguesia de Nossa
Senhora da Conceição do Alferes do Termo desta cidade, afim de facilitar aos
seos habitantes, que passão de oito mil, a mais pronpta administração da
Justiça e aliviar-lhes os grandes incômodos e prejuízos, que experimentão em
virem freguentemente a esta Corte demonstrar os seos recursos, na destancia
de vinte e cinco a trintra léguas: e verificando-se pelas informações do actual
Ouvidor da Comarca, a vestoria, e averiguações legais, a que elle procedeo,
não haver outro local dentro daquela Freguesia mais adeguado para erigir a
dita Villa, do que ofereceo citio denominado Paty, não só por ser o mais plano e
mais centrau, e crusarem ali as estradas das outras Freguesias vizinhas, que
devem construir o destricto da mesma Villa; mas também por se acharem n’elle
já estabelecidas muitas habitações que formão huma espécie de Arraial, com
capacidade e proporções vantajosas para novos edeficios, sendo por isso o
mais próprio para o assento da igreja matriz, e consequentemente para mais
oportuna e fácil administração dos Sacramentos [...] (Grifo nosso). 77
O alvará demonstra que a fundação foi em conformidade com a vistoria
realizada pelo ouvidor e, assim, o sítio Paty foi o local escolhido para a sede da vila.
A escolha se deu pela centralidade com cruzamentos de estradas e por existir uma
espécie de arraial; todas essas informações contidas no alvará estavam presentes
no laudo de vistoria tão refutado pelo proprietário Antonio Luiz Machado.
Além dos posicionamentos em favor da manutenção da propriedade, o
contexto da fundação da vila apresentou, ao mesmo tempo, uma resistência quanto
ao estabelecimento do poder administrativo na localidade. Possivelmente, esses
senhores pensavam que tal proximidade prejudicaria a direção de suas
propriedades, pois estavam acostumados a viver longe do olhar fiscalizador de um
poder superior.
Ainda analisando o alvará, pode-se concluir que Manoel Francisco Xavier,
além de conseguir retirar de sua terra a fundação da vila, também transferiu, mesmo
77
Alvará de Criação da vila de Paty do Alferes, 1820. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro:
Fundos PP; notação 0138; maço 07; caixa 0049 (grifo nosso).
37
que provisoriamente,78 a construção da igreja para o sítio dos Patys: “[...] com
capacidade e proporções vantajosas para novos edeficios, sendo por isso o mais
próprio para o assento da igreja matriz, e conseqüentemente para mais oportuna e
fácil administração dos Sacramentos”.79
Logo, constatamos que a escolha do local para a criação da vila de Paty do
Alferes se deu por suas “[...] proporções vantajosas que o mesmo lugar offerecia”. 80
Entretanto, num período de menos de dez anos, encontramos a criação de três vilas
na região do Vale do Paraíba Fluminense. A vila de São Pedro de Cantagallo em
1816, Paty do Alferes em 1820 e a vila de Valença em 1823. 81 O que estaria
representando a elevação dessas localidades em vila?
Com a vinda da Corte, em 1808, para o Rio de Janeiro, além de provocar uma
ruptura no aspecto político, ocasionou ainda a acentuação dos conflitos internos
entre os portugueses (de Portugal) e os da nova Corte. 82 Além disso, podemos
salientar alguns aspectos do enraizamento do Estado no Centro Sul da antiga
colônia, conforme nos apresenta Maria Odila.83
Esse enraizamento seu deu por meio das construções, compras de terras e
até pelo estabelecimento de firmas.84 Assim, com a instalação da Corte, o mercado
do Rio de Janeiro passou a conviver com a escassez de alimentos para suprir sua
alta demanda. Tal situação obrigou o então regente d. João a incentivar a produção
de alimentos para prover essa necessidade.
Em 1815, tomava a decisão de
promover a produção e o comércio na região onde se encontraria a vila de
Valença.85
78
Provisoriamente, porque, em 1840, Francisca Eliza Xavier iniciou a construção da igreja que foi
entregue a população em 1844.
79
Alvará de Criação da vila de Paty do Alferes, 1820. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro:
Fundos PP; notação 0138; maço 07; caixa 0049 (grifo nosso).
80
Apud MAIA FORTE, José Matoso. Op. cit., p. 21.
81
SILVA, S. P. História regional: ocupação e formação da vila de Valença, Província do Rio de
Janeiro (1823). Saber digital: Revista Eletrônica do CESVA, Valença, v. 1, n. 1, março/agosto de
2008, p. 8. Disponível em: http://www.faa.edu.br/revista/v1_n1_art08.pdf. Acesso em: 20 de julho de
2009.
82
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo:
Alameda, 2005. p. 12.
83
Ibidem, p. 18.
84
Ibidem, p. 20-21.
85
LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil
– 1808-1842. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1992. p. 23.
38
Uma das atitudes foi a abertura de estradas que visava facilitar o comércio e a
chegada de alimentos ao Rio de Janeiro. Dessa maneira, a colonização do Vale do
Paraíba Fluminense se difundiu a partir da produção de alimentos de subsistência 86
e não como resultado do esforço de transformá-lo em núcleo de apoio à extração
mineral, conforme apresenta Mapurunga quando aborda a criação da vila de Paty do
Alferes.87
Tendo como principal núcleo abastecedor de alimentos o Sul de Minas, o
governo se utilizou do caminho que anteriormente abastecia as minas, ou seja, o
Caminho Novo, para suprir a necessidade após a instalação da Corte. Observamos
nesse momento o sentido inverso, a região que antes era abastecida em função da
crise do ouro começou a prover a demanda de alimentos da Corte. Assim,
identificamos que o caminho passou a ser utilizado para “descer” gado, porcos,
galinhas, carneiros toucinhos e queijos, além de outros alimentos. 88
Com a crescente necessidade de alimentos de subsistência em função do
aumento da população, a Junta do Comércio iniciou em 1812 a construção da
estrada do Comércio que passaria na então vila de Paty do Alferes. Paralelamente,
era construída a estrada da Polícia que seguiria o roteiro da do Comércio até a
região do Iguaçú, onde tomaria o rumo de Sacra Família, Vassouras até atingir
Valença.89 Além de facilitar o escoamento de produtos agrícolas, ambas as estradas,
valorizaram as terras e provocaram o povoamento do Vale do Paraíba Fluminense. 90
Retornando para o período da criação da vila de Paty do Alferes, observa-se
a necessidade de se constituir a primeira Câmara de Vereadores que, nessa época,
era composta por: dois juízes ordinários, três vereadores, um procurador do
conselho, dois almotacés, dois tabeliães do público, alcaide e escrivão.
Na eleição para os primeiros vereadores da vila de Paty do Alferes, os cargos
foram preenchidos pela “nobreza da terra”, segundo o postulado vigente no reino de
Portugal.91 A casa de Câmara foi composta pelos seguintes membros: juízes
ordinários: Manoel Francisco Xavier e o capitão Francisco das Chagas Werneck.
86
Idem.
87
MAPURUNGA, Marta Cursino. Paty do Alferes: progresso e estagnação. Dissertação de Mestrado
(Mestre em História) – Universidade Severino Sombra, USS, Vassouras, Rio de Janeiro, 2002, p. 19.
88
LENHARO, Alcir. Op. cit., p. 48.
89
Ibidem, p. 49-50.
90
Ibidem, p. 50.
39
Vereadores: Antônio Gomes da Cruz, Manoel João Goulart e o capitão José Lopes
de Pontes ou José Luiz França. 92 A câmara poderia ainda ser composta por um juiz
de fora, caso fosse nomeado pelo rei,93 o que não se apresentou.
Após aprovação da eleição dos vereadores pelo ouvidor geral e corregedor da
Comarca, estabeleceu-se o dia para instalação da vila, 14 de março de 1821. Sendo
a data de 21 de fevereiro do mesmo ano, dia da posse de Manoel Francisco Xavier
como capitão-mor94 dia em que prestou juramento ao desembargador Joaquim José
de Queiroz.95
•
O título de capitão-mor, durante o período colonial, delegava poderes
parecidos com os de delegado, com jurisdição sobre o colono português ou
estrangeiro96 e, além disso, era responsável pela segurança e proteção dos
habitantes.97 Como o título significava ser um representante do rei em terras
distantes, cuja monarquia tinha como religião oficial o catolicismo, necessariamente
o candidato à manifestação de honra deveria ser católico. Para ser católico era
necessário realizar todos os ritos religiosos e respeitar os dias considerados santos.
Retornando à Câmara, sua primeira reunião aconteceu em 21 de fevereiro de
1821, com o objetivo de empossar os vereadores. Nessa primeira sessão foram
empossados: Antônio Gomes da Cruz, Manoel João Goulart, capitão José Lopes
91
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In:
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). O antigo
regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001. p. 203.
92
Segundo observação na ata consta a assinatura de José Lopes de Pontes. In: MARTINS, Antonio.
Vereadores de Vassouras do Império à Nova República. Vassouras, 1993. p. 14.
93
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Op. cit., p. 191.
94
(ver Ignácio Raposo, p. 21 nota-se divergência na data, aqui 23 de fevereiro). RAPOSO, Ignácio.
História de Vassouras. Niterói: Seec, 1978.
95
RAPOSO, Ignácio. Op. cit.. p. 21.
“O capitão mor era quem regia a localidade, obrigado a mante-la em paz prevenindo os crimes ou
prendendo os criminosos. Podia mandar e tinha de ser obedecido em tudo quanto lhe parecesse ou
constava ser útil a ordem publica e ao socego da população. Podia prender correcionalmente os
perturbadores, expellir da terra o vagabundo e forasteiros suspeitos, prohibir as reuniões em publico,
permitir ou negar licença para divertimentos e festas da rua. Se o capitão se limitasse a esse e outros
deveres do officio, quanto mais enérgico e austero, tanto era estimado. Valla, em suma, um autocrata,
que só ao capitão general dava contas”. Apud MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 35.

96
DINIZ, Mônica. Sesmarias e posse de terras: política fundiária para assegurar a colonização
brasileira.,Revista On Line do Arquivo Público de São Paulo, São Paulo, n. 2, p. 3, 2005. Disponível:
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao02/materia03/. Acesso em: 24
de outubro de 2009.
97
URICOECHEA, Fernando. O minotauro Imperial. Rio de Janeiro: Difel, 1978. p. 34.
40
França. Procurador: Alferes José de Souza Vieira. Juízes Ordinários: Manoel
Francisco Xavier (presidente da Câmara) e capitão Francisco das Chagas
Werneck.98 Ainda nesta primeira reunião, os juízes ordinários resolveram: “nomear
juízes Almocatés no resto do mês e nos três meses seguintes: João dos Santos de
Araujo e Antônio Borges de Carvalho, elegeram juízes de Sesmaria: 1º lugar,
Antônio Luiz Machado, 2º lugar, Antônio Gomes da Cruz e 3º lugar, Antonio José da
Silva Semmedo, para o triênio 1821/1823”.99
Notamos que os adversários, quanto ao local para o estabelecimento da vila,
foram agraciados com títulos: Manoel Francisco Xavier recebeu a honraria de
capitão-mor e juiz ordinário da Câmara e Antônio Luiz Machado foi nomeado para o
cargo de juiz de sesmarias. Portanto, mesmo se colocando contrários à doação de
parte da propriedade para edificar a sede, ambos assumiram importantes cargos na
primeira formação da administração da vila.100
Consequentemente, já em sua primeira formação, a Câmara apresentava
uma forte divisão. O grupo político formado pelos grandes proprietários locais e
futuros produtores de café apresentou senhores que traziam consigo algumas
tensões de momentos anteriores. Para exemplificá-las citamos a presença de
Francisco das Chagas Wernerck (filho de Inácio de Souza Werneck) e do já
mencionado Antonio Luiz Machado.
Situando a composição da Câmara em relação ao momento político,
observamos que coincide com o período em que a coroa portuguesa tentava conter
o avanço republicano no território do Reino Unido em função do exemplo vivenciado
nos países vizinhos na América Sul. Segundo Magnoli, a condição de Reino Unido a
98
MARTINS, Antonio. Op. cit., p.15.
99
Idem. As atribuições dos vereadores durante o período se restringiam a: “tratar em suas vereações
dos bens e obras do conselho (município), do governo econômico e policial da terra; cuidar de saber
o estado em que se achavam os bens e obras municipais, para reivindicarem os que achassem
alheados contra a determinação das Leis; fazer repor, no estado anterior, as servidões, e caminhos
públicos, não consentindo de maneira alguma que proprietários dos prédios usurpassem, tapassem,
estreitassem, ou mudassem as estradas a seu arbítrio; guardar as rendas, multas e demais coisas
que pertencessem à Câmara, bem assim documentos de eleições, escrituras e demais papéis que
formavam o Arquivo da Câmara; ter a seu cargo, enfim, tudo quanto dissesse respeito à polícia,
economia das povoações e seus termos, pelo que tomavam deliberações e proviam, por meio de
posturas, sobre os assuntos de interesses locais, conforme extenso dispositivo da mencionada Lei de
1º de outubro de 1828”. MARTINS, Antonio. Op. cit., p. 7.
100
“[...] para os dois cargos de maior relevo são justamente nomeados os que mais haviam
contrariado a sua formação: Manuel Francisco Xavier é o seu primeiro capitão mor e Antônio Luís
Machado o primeiro juiz de sesmarias, numa época de contínuas questões de terras, pelas contínuas
concessões em mata virgem. Além do mais, eram ambos inimigos, por dissenções recentes, cada
qual querendo que a vila fosse erigida em terras do outro”. LAMEGO, Alberto Ribeiro. Op. cit., p. 140.
41
que foi elevado “[...] estava destinado a defender a presença da Europa
restauracionista no Novo Mundo”.101
Além disso, a composição da Câmara nos trouxe uma indagação em função
da afirmação de Fânia Fridman, de que “[...] apesar de sentir-se inicialmente
prejudicado [Antonio Luiz Machado] foi compensado com o título de juiz de
sesmarias e o direito de aforar lotes circundantes ao núcleo. Outros privilégios foram
concedidos: Manoel Francisco Xavier [...], vários membros das famílias Werneck e
Gomes Ribeiro receberam cargos públicos”.102
O questionamento diz respeito à afirmação: “privilégios foram concedidos”.
Sabemos que a única que poderia oferecer qualquer tipo de vantagem era a coroa.
Então, ao agraciar dois senhores que se tornaram inimigos em função da
demarcação do lugar para sediar a vila, estaria a coroa evitando algum tipo de
monopólio que poderia ser exercido por algum desses proprietários?
Temos o conhecimento de que no período colonial, para evitar o monopólio
administrativo, a coroa realizava vendas e doações de serventias a grupos rivais.
Mas e nessa época? De acordo com a análise feita por Maria Fernanda Baptista
Bicalho, os únicos cargos vendidos pela coroa nesse momento eram os de escrivão
do judicial e juiz de órfãos. 103 Por sua vez, Manoel Hespanha afirma que a
reintrodução do leilão de serventias dos ofícios de justiça em 1799 continuava em
uso.104 Essas informações contraditórias sobre o mesmo período nos deixa com
dúvidas sobre o processo de composição da Câmara de Vereadores da vila de Paty
do Alferes e de seus cargos.
Dessa maneira, com a existência ou não das vendas de cargos, trabalhamos
aqui com a hipótese do fortalecimento da coroa enquanto mediadora que se
beneficiaria dos conflitos internos para se assegurar como centro político.
1.4 A vila: estagnação e mudança
101
MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (18081912). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Moderna, 1997. p. 83.
102
FRIDMAN, Fania. As cidades e o café. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional.
Taubaté,
SP,
v.
4,
n.
3
(4),
p.
33,
agosto
de
2008.
Disponível
em:
http://www.forumrio.uerj.br/documentos/revista_18-19/Cap-6-Fania_Fridman.pdf. Acesso em: 10 de
dezembro de 2010.
103
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. Op. cit., p. 192.
104
HESPANHA, Antonio Manoel. Op. cit., p. 185.
42
Com a vila fundada e a necessidade de construção do prédio da Câmara, iniciou-se
uma nova etapa de disputa entre os senhores. Até esse momento, apesar de já
definido o local onde seria edificada a sua sede, ainda havia uma resistência em
edificá-la no sítio Paty. Assim, ressurge um “novo” protagonista, Ignácio Werneck,
responsável por um dos orçamentos para a construção da igreja. Em suas palavras
“o local mais próprio para fundação da vila era o local da antiga matriz, ou então
outro qualquer dali até o Pau Grande”.105
O local da antiga matriz, como já exposto, ficava exatamente dentro da
propriedade de Manoel Francisco Xavier, isto é, dentro da fazenda da Freguesia. O
posicionamento do então proprietário, contrário à edificação da sede da vila dentro
de sua propriedade, foi justificado pela perda de toda a estrutura que a envolvia,
como os engenhos. Iniciou-se então um afunilamento da tensão existente,
transformando-se em disputa que acarretou várias consequências para a curta vida
da vila de Paty do Alferes como sede administrativa.
Portanto, após a fundação e com a existência de disputas entre os senhores
locais que não aceitavam dividir suas terras para beneficiar a vila, verificou-se o
descumprimento de algumas obrigações para promover “um maior povoamento e
desenvolvimento da recém criada vila”. Sendo que uma dessas obrigações era a
construção da cadeia pública concluída somente em 1832. No entanto, as fazendas
desses mesmos proprietários responsáveis pelo atraso da vila passavam por
momento inteiramente inverso, conforme apresentado nesta passagem:
As fazendas do município cresciam prosperamente [...] as da Freguesia e da
Maravilha, pertencentes ao capitão-mor Manoel Francisco Xavier, e algumas
outras que, pela sua quantidade de terras cultiváveis e cultivadas, pelas suas
numerosas escravaturas, que constituíam verdadeiros exércitos, indicavam
grandes ou formidáveis riquezas.106
Neste momento, observamos também o desvio da estrada geral por caminhos
“escabrosos”,107 em função da disputa em que se encontravam esses senhores.
Esse acontecimento é resultado da preponderância do interesse particular de
Manoel Francisco Xavier, então presidente da Câmara, que proibiu o tráfego na
melhor estrada da vila. Todavia, tal proibição representava exatamente o oposto de
105
Apud STULZER, Aurélio (frei). Op. cit., p. 31.
106
Apud RAPOSO, Ignácio. Op. cit., p. 23-24.
107
Apud LAMEGO, Op. cit., p. 140.
43
uma das obrigações de um vereador que era “fazer repor, no estado anterior, as
servidões, e caminhos públicos, não consentindo de maneira alguma que
proprietários dos prédios usurpassem, tapassem, estreitassem, ou mudassem as
estradas a seu arbítrio”.108
Assim, em meio a questões como esta, o ano de 1822 foi marcado por
intensas disputas que acarretaram várias consequências para o progresso e
desenvolvimento da vila. Destarte, em função da tensão intraelite, um período de
apatia se abateu sobre a recém criada vila, que chegou a gastar “um dia para
enterrar uma simples estaca no solo ou para remover de uma estrada uma pedra de
maiores proporções”.109
Neste mesmo ano, a Câmara recebeu uma petição do Senado, solicitando
que o povo de Paty pedisse uma Assembleia Constituinte para o reino do Brasil. 110
Mesmo atendendo ao que foi solicitado, os vereadores-fazendeiros não deixaram de
lado a disputa em que estavam envolvidos. A preocupação maior desses senhores
era a manutenção dos seus grandes latifúndios monocultores, sem apresentar em
nenhum momento uma homogeneidade que talvez tenha sido demonstrada somente
quanto à manutenção da escravidão e/ou na ambição de se tornarem senhores de
engenho.111
Ao observar o desenrolar da vida política da vila, notamos que enquanto o
capitão-mor Manoel Francisco Xavier esteve envolvido na administração da recém
criada vila, participando diretamente ou indiretamente,* a vida política da vila
demonstrou-se completamente envolvida em disputas entre os seus grandes
108
Apud MARTINS, Antonio. Op. cit., p. 7.
109
Apud DEISTER, Sebastião. Op. cit., p. 245.
110
Apud RAPOSO, Ignácio. Op. cit., p. 22.
111
“A posse de um engenho confere aos lavradores dos arredores do Rio de Janeiro uma espécie de
nobreza. Só se fala com consideração de um senhor de engenho, e vir a sê-lo é a ambição de todos.
Um senhor de engenho tem geralmente uma aspecto que prova que se nutre bem e trabalha pouco.
Quando está com inferiores, e mesmo com pessoas da mesma categoria, impertiga-se, mantém a
cabeça erguida e fala com essa voz imperioso que indica o homem acostumado a mandar em grande
número de escravos”. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e
Minas Gerais. Apud MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. 5.
ed. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 50.
*Manoel Francisco Xavier ocupou a presidência da Câmara de vereadores em sua primeira formação
e posteriormente no ano de 1824 e 1831. Apud Jornal Vassourense de 31 de maio de 1836. Museu
Casa da Hera, Vassouras, Rio de Janeiro e RAPOSO, Ignácio. Op. cit., p. 25.
44
proprietários. A porfia envolvendo-os ganhou mais força quando Antonio Luiz
Machado obteve o apoio de Inácio de Souza Werneck e aliados. 112
Logo, envolta em diferenças intraelite e mais preocupada com seus interesses
particulares, a vila, por meio dos seus senhores, deixou de lado qualquer tipo de
melhoria que poderia ter sido realizada. Como consequência dessa desordem
senhorial, não foi construído o prédio da sede administrativa. Consequentemente,
observamos a decomposição da vila em ambientes diferentes, se utilizarmos aqui a
afirmação, apresentada por Marc Bloch, de que raramente uma sociedade é uma. 113
Já no ano de 1832, a estagnação da vila foi identificada. A alternativa
encontrada para resolver tal situação foi a criação da Sociedade Promotora da
Civilização e da Indústria, cujo objetivo era impulsionar o progresso. Mesmo com a
fundação da Sociedade, o seu maior entusiasta e fundador, Francisco das Chagas
Werneck, afirmaria mais tarde: “O Pati do Alferes estava fatalmente condenado a ser
o que ainda é hoje, apesar da excelência de seu clima, da feracidade de suas terras,
das suas possantes quedas d’água e da proverbial hospitalidade de seus filhos”. 114
A partir da criação da sociedade, imaginou-se mais um veículo para ajudar
não só no desenvolvimento da vila, como também na construção da sede
administrativa. Assim, Francisco das Chagas Werneck, tendo como exemplo a
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, fundou uma versão na vila de Paty do
Alferes.
Enfim, com a informação sobre a criação da Sociedade em Paty do Alferes
buscamos mais dados sobre o modelo que influenciou sua fundação, e, baseando
nossa análise no estudo de José Murilo de Carvalho, parece que este modelo –
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional – produzido no Império, propunha um
centro de estudo, sem significar inutilidade política. 115 O fato final é que na vila de
Paty do Alferes a sociedade não alcançou o que se imaginava, o desenvolvimento
da região, se tal foi o seu objetivo.
A constatação do “fracasso” da sociedade patyense é verificada no ano de
1833 com a transferência da efêmera vila. A mudança se tornou possível em função
112
Informação encontrada em: Apud MAIA FORTE, José Matoso. Op. cit., p. 45.
113
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2001. p. 151.
114
115
Apud RAPOSO, Ignácio. Op. cit., p. 22.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a
política imperial. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 52.
45
da apresentação de uma proposta sugerida e enviada pelo ministro da Justiça,
Hónorio Hermeto Leão,116 que se transformou em um questionário com perguntas
pertinentes ao desenvolvimento da vila. Nesse questionamento, era perguntado:
qual a melhor divisão do termo município? Quais os melhoramentos de que
necessitava o Município? Onde melhor conviria estabelecer a cabeça da vila? E,
segundo o relato encontrado em Matoso Maia Forte:
O vereador Vasconcellos discutiu todos os quesitos com notável bom senso, e,
quanto ao terceiro, opinou pela mudança da Vila para Vassouras, não só pela
prosperidade sempre crescente do lugar, comodidade resultante aos povos de
Sacra Família, cujo eleitorado era de sete eleitores e ser mais próximo de
Vassouras, ao passo que Paty do Alferes continuava com as quatro casas,
além da falta absoluta de recursos. Esta decisão foi aprovada unanimente,
achando-se presentes os Vereadores Correa e Castro (Laureano), Francisco
das Chagas Werneck, Joaquim Ribeiro de Avellar, Pacheco de Mello e
Vasconcellos.117
Tendo em vista essa proposta apresentada, surgiram para nós algumas
ponderações. Por que a escolha de um novo lugar? Se a pergunta anterior se referia
aos melhoramentos de que necessitava a vila? Todavia, nos parece que essa opção
de mudança sugerida pelo ministro da Justiça era o que esperava a Câmara, diante
da decisão unânime pela transferência.
Esses votos pertenceram aos vereadores Laureano Correa e Castro,
Francisco das Chagas Werneck, Joaquim Ribeiro de Avelar, Pacheco de Mello e
Vasconcellos,118 sendo que Francisco Jose Teixeira Leite não esteve presente,
justificando sua ausência em função da longa distância a ser percorrida.
Teixeira Leite não tomou parte dessa reunião. Sendo convocado para ir a uma
das sessões em Paty, escusou em ofício o seu comparecimento, alegando a
distância que o separava da sede, oito léguas, o que o obrigava a ir de véspera
e pedir pousada a um fazendeiro próximo – e este ficava a uma légua da
Câmara.119
116
Vindouro marquês do Paraná e oriundo de família proprietária de extensas terras no Vale do
Paraíba. Era proprietário da fazenda Lordello em Sapucaia e genro de João Netto Carneiro Leme,
sendo este, comerciante estabelecido no Rio de Janeiro que revendia escravos africanos para o
interior da Província do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Mais tarde o ministro se transformou em líder
do partido conservador na província fluminense. Apud SALLES, Ricardo. E o Vale era escravo:
Vassouras, século XIX – senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008. p. 142.
117
Apud MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 91.
118
Ibidem, p. 92.
119
Idem.
46
A justificativa pode ser entendida de duas maneiras: a primeira como uma
simples explicação pela ausência; a segunda e mais interessante é uma ausência
programada e pensada com o intuito de fazer pesar ainda mais a transferência para
Vassouras, talvez um boicote. Se analisarmos as justificativas apresentadas para a
transferência da vila, notaremos que a comodidade aos eleitores de Sacra Família
foi uns dois principais motivos:
[...] finalmente a mudança da sede do Município para Vassouras, tanto pela
prosperidade do lugar como pela comodidade para a população de Sacra
Família que já contava sete eleitores e era mais próxima de Vassouras que o
Pati do Alferes que continuava com quatro casas e absoluta falta de
recursos.120
Possivelmente, com o conhecimento prévio do assunto em pauta marcado
para a sessão, Francisco Teixeira Leite demonstrou, por intermédio de sua
ausência, a insatisfação em ter que se deslocar até a localidade onde funcionava a
Câmara. Então, qual outra explicação teria para faltar à sessão que decidiu os
rumos da vila? Francisco José Teixeira Leite era, talvez, o principal interessado pela
mudança proposta pelo ministro da Justiça, pois logo após a decisão unânime,
prontamente doou um terreno para edificar a nova sede da vila, por onde passavam
a estrada da Polícia e a estrada do Comércio.121
Essa hipótese de ser o principal interessado e articulador da transferência da
vila se tornou possível após verificarmos essas informações:
Foi Vassouras pouso até 1833, anno em que os esforços e instancias do
[futuro] barão [Vassouras] se tornou a sede removida de Paty. Foi seu
fundador.
Voto da Câmara e esforços de Teixeira Leite foram ouvidos pela Regência. 122
Francisco José Teixeira Leite era filho de Francisco José Teixeira, que por
meio do comércio e transação financeira adquiriu uma próspera situação
econômica.123 Segundo as informações encontradas no artigo escrito por Affonso de
E. Taunay, era considerado chefe liberal em Minas Gerais e, por diversos anos, foi
120
121
Apud RAPOSO, Ignácio. Op. cit., p. 27.
FRIDMAN, Fania. Op. cit., p. 33.
122
Apud MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 93.
123
TAUNAY, Affonso de E. Os Teixeira Leite. In: BRAGA, Greenhalgh H. Faria. Op. cit., p. 138.
47
presidente da Câmara de Vereadores de São João Del Rei. Mais tarde, no ano de
1846, seria agraciado com o título de barão de Itambé.124
Francisco José Teixeira Leite chegou à vila de Paty do Alferes no ano de sua
fundação, em 1820, acompanhado de seu tio Custódio Ferreira Leite. 125 Fixou
moradia na localidade de Sacra Família e, após sete anos de sua chegada, em
1827, já tinha sua própria lavoura.126
A influência de vereadores de Sacra Família na Câmara da vila de Paty do
Alferes é verificada desde sua primeira formação com a presença de Manoel João
Goulart e Antonio Luiz Machado. 127 A novidade no ano de 1833 restringiu-se ao
questionamento enviado pelo ministro, após todos esses anos de disputas intraelite.
Com a real possibilidade de mudança que se apresentou, houve uma movimentação
pela transferência. Esta pode ser comprovada não só pela votação unânime, como
também pela atitude tomada logo em seguida à decisão com a doação de Francisco
José Teixeira Leite do terreno para edificar a vila.
A família Teixeira Leite ficaria conhecida, não pela doação e nem pelas
lavouras e, sim, pelas operações de créditos. Após a chegada de alguns dos irmãos
de Francisco José Teixeira Leite na região (João Evangelista, José Eugênio e
Antonio Carlos) e do próprio pai acompanhado de dois genros (Francisco José
Teixeira e Souza e Luciano Leite Ribeiro), 128 começaram a agir em conjunto
realizando grandes operações de créditos.
Diante da questão territorial que envolvia a antiga sede e, por ser Francisco
José Teixeira Leite mais credor do que senhor de terras, Vassouras já contava no
momento de sua fundação com o terreno doado por Francisco J. T. Leite, uma vez
que o próprio foi o articulador da mudança. Caso contrário, como explicaria o
questionamento enviado pelo Ministro da Justiça com perguntas relacionadas ao
desenvolvimento da vila e de uma possível mudança?
Assim, com a definição do lugar onde seria edificada a vila, a questão da
perda de parte da propriedade não se fez presente. Em Vassouras, a doação foi
uma das maneiras encontradas para não ocorrer o que se verificou na antiga sede,
124
Idem.
125
MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 92.
126
TAUNAY, Affonso de E. Op. cit., p. 139.
127
Jornal Vassourense de 31 de dezembro de 1893. Museu Casa da Era, Vassouras, Rio de Janeiro.
128
TAUNAY, Affonso de E. Op. cit., p. 139.
48
pois desde a elevação do povoado de Paty à freguesia, a disputa pela manutenção
territorial se apresentava como o principal problema.
Retornando à votação, uma questão deve ser destacada. Manoel Francisco
Xavier era membro da recém formada Câmara do ano de 1833 129 e foi substituído
por Francisco das Chagas Werneck. Por quê? Como será apresentado mais adiante,
Francisco das Chagas Werneck era considerado pelo próprio Manoel Francisco
Xavier um inimigo inconciliável, filho de Inácio de Souza Werneck, o mesmo do
orçamento da igreja e que apoiou Antonio Luiz Machado na disputa em torno da
escolha do local para edificar a vila.
Essa substituição na sessão que decidiu o futuro da vila, somada à forma
como os Wernecks relataram o estado de suas fazendas no momento da rebelião –
anárquicas sem nenhum tipo de controle –, indicava algo mais do que uma simples
substituição. Possivelmente, temos aqui o momento da cisão no seio dessa classe
senhorial.
Num trecho da comunicação do chefe da Guarda Nacional, Francisco Peixoto
Lacerda Werneck, encaminhada ao presidente da Província, Paulino José Soares,
durante a insurreição de 1838, indica-se que os problemas na fazenda de Manoel
Francisco Xavier teriam começado logo após a transferência da vila de Paty do
Alferes em 1833:
Em outra ocasião tem sido feridos homens brancos e espancados mortalmente
capatazes desta grande fazenda [Freguesia]; fatos que o mesmo capitão-mor
[ Manoel Francisco Xavier] trata de capear e esconder [...] Tantos fatos
sucedidos ultimamente, por espaço, de quatro anos, tem posto em cautela os
demais fazendeiros desta freguesia de Pati do Alferes, receosos de que se
contamine a insubordinação que lavra naquela freguesia e que pode acarretar
funestíssimas conseqüencias.130
A intenção dessa comunicação era justificar a insurreição e subjugar o
capitão-mor perante a Justiça com a indicação de instabilidade dentro das fazendas.
Mas ao mesmo tempo, ela também pode ser vista como uma tentativa de justificar a
transferência da vila para Vassouras, pois durante a curta trajetória de Paty do
Alferes como cabeça da vila, Manoel Francisco Xavier foi o seu principal político e
ainda capitão-mor.
129
MARTINS, Antonio. Op. cit., p. 19.
130
Apud SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 43 (grifo nosso).
49
Uma das justificativas utilizadas na votação que decidiu pela transferência da
vila foi a prosperidade crescente do lugar, e por ser mais cômodo ao “povo” de
Sacra Família, que nesse momento contava com sete eleitores e era mais próxima
de Vassouras. Ao mesmo tempo em que favorecia o “povo” da localidade citada,
possivelmente não tinha o apoio da maioria da população da vila.
Conforme apresentamos, nota-se que a mudança fora concedida pelas
“vantagens” apresentadas e não pelo atraso de Paty. Para compreendê-las,
voltemos ao alvará de fundação da vila de Paty do Alferes em 1820, mais
especificamente para a localidade escolhida para abrigar a sede.
Nele observamos que o local designado foi o sítio denominado Paty,
propriedade de Antonio Luiz Machado, morador de Sacra Família. Segundo a
informação trazida por Mattoso Maia Forte, a escolha se deu pelo fato da localidade
apresentar certa estrutura como casa de vigário, de particulares e de negócios. 131
Todavia, ressaltamos que o sítio Paty nunca abrigou a sede da vila e, de
acordo com o jornal Vassourense, a Câmara funcionou numa casa alugada de
propriedade de José de Souza Machado, que ali se reuniu durante os treze anos da
vila de Paty do Alferes. 132 Tudo indica que essa propriedade ficava ao redor da
fazenda Freguesia, pois na manhã do dia 14 de março de 1821, data da instalação
da vila, encontramos informações que os convidados vieram das estradas de Sacra
Família, Sant’Ana e Pau Grande. Assim, se tivesse sido respeitada a determinação
do Alvará de criação da vila, encontraríamos os convidados se dirigindo para a
localidade de Sacra Família e não afluindo da mesma.
Então, se a mudança da vila em 1833 foi realizada para facilitar os eleitores
de Sacra Família, por que não ter cumprindo com a determinação do alvará de
1820?
O não cumprimento dessa determinação de edificar a vila nas terras de
Antonio Luiz Machado demonstra ainda que, mesmo após a independência, a queda
de braços entre fazendeiros e a Coroa se mantinha. Essa relação de conflito se
apresentava, por exemplo, quando se pretendia o reconhecimento do título de
proprietário de uma sesmaria, conforme apresenta Motta. 133 No caso da fundação da
131
MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 22.
132
O aluguel no valor de trinta e quatro mil reis anual. Jornal Vassourense 31 de dezembro de 1893.
Museu Casa da Hera, Vassouras, Rio de Janeiro.
133
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Op. cit., 2009, p. 94
50
vila, essa relação ultrapassou o perímetro das obrigações para a obtenção do título
de propriedade. A nosso ver, essa conflituosa relação se estendia por vários outros
campos, principalmente quando as determinações da Coroa iam contra os
interesses desses fazendeiros que, no entanto, haviam recebido da própria Coroa,
em muitos casos, a terra que ocupavam.
Voltando ao motivo da mudança, e aceitando a afirmação de que Paty não
passava de quatro casas e ainda sofria com a absoluta falta de recursos, 134 é preciso
admitir que a localidade escolhida, Vassouras, não era muito diferente da antiga vila.
Nas palavras de Antônio Martins, verifica-se que a futura vila não tinha ainda nome,
e sua localidade só tinha a vantagem de se encontrar no cerne de terras de primeira
ordem e à margem da estrada aberta por Custódio (responsável pela construção)
para o tráfego de quase totalidade do comércio entre Minas e Rio de Janeiro.
Mas se verificarmos o motivo para a criação da vila de Paty, encontraremos
essa mesma argumentação. Um dos fatores para a criação foi exatamente por se
encontrar em um ponto de convergência de várias estradas de outras freguesias.
Ainda em relação a Vassouras, “foi Vassouras pouco até 1833, ano em que com
esforço e instâncias do Barão se tornou a sede, removida de Paty”. 135 A
transferência escondia talvez outros interesses, uma vez sendo Vassouras, ainda
em 1833, “[...] uma lagoa, e seus dezoito ou vinte tetos se ocultavam, modestos no
meio das capoeiras”.136
Lamego alega que Vassouras foi fruto da união da nobreza rural: “Em
Vassouras, distanciada da costa, veremos num milagre de coesão cultural, toda a
sua nobreza agrária unir-se para criação de um grande centro urbano”, 137 uma vez
que sua localização e sua posição econômica não podiam explicar a escolha:
“Vassouras, é a única importante cidade a levantar-se fora das grandes vias de
comunicação e sem qualquer amparo oficial ou motivos geográficos a indicarem a
sua fundação”.138
134
MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 27.
135
Apud MARTINS, Antonio. Op. cit., p. 20.
136
Apud LAMEGO, Alberto Ribeiro. Op. cit., p. 157.
137
Ibidem, p. 136.
138
Ibidem, p. 137.
*A família Correa e Castro é oriunda da região de Mariana, Minas Gerais, segundo informação trazida
pelo jornal Vassourense, no qual afirma a presença de Laureano juntamente com seus irmãos Pedro,
51
Acreditamos, contrariamente a Lamego, que a fundação da vila em
Vassouras ocorreu em razão de disputas intraelite e não pela coesão de sua
“nobreza”. Um dos motivos foi a questão fundiária, responsável pela divisão dos
senhores. Quanto ao amparo oficial para a mudança, tido pelo autor como ausente
no processo, é no mínino relativo, pois foi através de um questionamento formulado
pelo ministro Hermeto Leão que a subjugação da antiga vila se solidificou.
No entanto, após ter tido Vassouras como sede por um ano, a antiga sede,
Paty do Alferes, solicitou sua anexação ao recém criado município de Paraíba do
Sul. A princípio, o requerimento fora acatado por Joaquim Ribeiro de Avelar, mas
não obteve o mesmo êxito com Francisco José Teixeira Leite. Deste modo, o
assunto foi à pauta da reunião da Câmara da sessão de 14 de julho de 1834,
quando: “[...] o vereador Francisco das Chagas Werneck combateu tenazmente o
parecer favorável, e foi acompanhado na votação pelos vereadores Laureano Correa
e Castro, [...] e Francisco José Teixeira Leite”. 139 Contrariamente a estes, Ribeiro de
Avelar, Antônio Delfim da Silva, Pacheco de Melo e Avelar 140 foram a favor da
anexação.
Assim sendo, apesar da divisão da Casa, decidiu-se a favor da solicitação.
Mas a vitória do grupo liderado pelo vereador Ribeiro de Avelar foi de apenas um
mês. Exatamente no dia 19 de agosto, chegava uma portaria da Secretaria do
Estado dos Negócios do Império dizendo “que não podia se realizar a passagem dos
reclamantes para a Paraíba do Sul”, 141 o que proporcionou a Vassouras “um alívio e
muita satisfação”. A intervenção do governo Imperial foi “recebida em Vassouras
com as mais inequívocas provas de reconhecimento ao governo imperial”. 142
A vitória do projeto de anexação de Paty do Alferes a Paraíba do Sul na
Câmara de Vassouras, mesmo que tenha sido revogada, demonstrou um novo
Jose e Antonio Correa como agregados da fazenda Pau Grande, de onde saíram e construíram toda
a riqueza da família Correa e Castro. Jornal Vassourense de 2 de agosto de 1896. Museu Casa da
Hera, Vassouras, Rio de Janeiro.
139
Apud RAPOSO, Ignácio. Op. cit., p. 35.
140
Idem.
141
Idem.
142
Idem.
*Como sugere a obra de Ricardo Salles. SALLES, Ricardo. Op. cit.
52
interesse do vereador Joaquim Ribeiro de Avelar, após ter votado a favor da criação
de Vassouras.
Esse posicionamento pode ser entendido como uma tentativa de corte com
qualquer tipo de vínculo administrativo com a antiga sede e, consequentemente,
com a sua principal força política, o capitão-mor Manoel Francisco Xavier.
A articulação liderada na Câmara por Ribeiro de Avelar contou também com
o voto de Pacheco de Melo, outro que foi favorável pela mudança em 1833. O
ocorrido demonstrou mais uma vez a heterogeneidade do grupo que em pouco
tempo tornou-se representante do coração do Império,* em função da produção do
café.143
Acreditamos que Joaquim Ribeiro de Avelar tenha identificado nesse episódio
a possibilidade de monopolizar as oportunidades de poder e utilizá-las para
marginalizar e estigmatizar membros do próprio grupo. 144 Nota-se que esse senhor
tentou uma articulação para retirar de vez a antiga sede Paty e o seu principal
representante, Manoel Francisco Xavier, da vida administrativa da vila de
Vassouras.
Cremos que o não desenvolvimento da vila de Paty do Alferes esteve
diretamente ligado à disputa intraelite em razão dos interesses particulares. Além
disso, destacamos o mando de Manoel Francisco Xavier na Câmara que enquanto
esteve sob sua influência foi um obstáculo ao desenvolvimento. Durante esse
período da administração da vila, Manoel Francisco quando não exercia diretamente
algum cargo na Câmara, contava com aliados na Casa para realizar seus desejos.
A disputa pela defesa do interesse individual e familiar apresentou várias
consequências, mas segundo a informação encontrada em Lamego: “A discórdia
entre os proprietários rurais devido a prepotência do capitão mor que desviara de
suas fazendas para outras a estrada geral, traçando-a por lugares escabrosos,
aumentou o descontentamento”.145 Essa passagem demonstra a opinião do autor
sobre o ocorrido. Mas seria esse o único fator responsável por toda essa discórdia?
Logicamente, o poder que detinha e as atitudes do capitão-mor causaram muitos
143
O café alcançou a primeira colocação na lista de produtos de exportação no ano de 1835. Apud
FAZOLI FILHO, Arnaldo. O período regencial. São Paulo: Ática, 1990. p. 31. Série Princípios.
144
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. p. 13.
145
LAMEGO, Alberto Ribeiro. Op. cit., p. 140.
53
descontentamentos a outros senhores, mas não estariam também esses senhores
defendendo o que melhor lhes convinha?
Lembremos que, conforme o alvará, a vila deveria ter sido erigida nos limites
do sítio Patys, propriedade de Antonio Luiz Machado e aliado da família Werneck.
Então, seria o capitão-mor o responsável por toda a disputa? Nossa argumentação
se estrutura em torno da ideia de que os interesses particulares desses senhores
foram os responsáveis pela desordem senhorial e não apenas o posicionamento de
um único senhor. Portanto, não existe uma responsabilidade individual, mas uma
estrutura de poder na qual a disputa e a concorrência eram elementos essenciais.
Logo, em função dos interesses senhoriais a vila pouco se desenvolveu,
contrariando a expectativa de sua inauguração em 1820. A transferência no ano de
1833, apoiada pelos vereadores, exceto Manoel Francisco Xavier, colocou fim à
divergência que prejudicou o processo de ampliação da vila, mas não eliminou a
disputa senhorial. Assim, o momento final dessa querela só chegaria bem mais
tarde, com a insurreição dos escravos no ano de 1838.
Os fatos apresentados até aqui demonstram vários momentos em que os
interesses senhoriais estiveram à frente do coletivo. Dessa forma, analisando as
atitudes dos proprietários locais, consideramos que a classe social desses senhores
estava bem distante de uma homogeneidade.
Ora, se durante a curta vida da vila de Paty do Alferes observamos vários
acontecimentos nos quais os interesses particulares foram responsáveis pela porfia
intraelite, logo essa classe senhorial era heterogênea.
Observando essa heterogeneidade, demonstraremos no próximo capítulo que
a disputa senhorial, consequentemente sua desordem, se fez presente na realização
dos batismos de escravos e, também, em dois processos nos quais Manoel
Francisco Xavier solicitava o embargo de Manoel Vieira dos Anjos por ter invadido
um terreno de sua propriedade.
54
Cap. II. As famílias senhoriais num invólucro de desordem
1 A desordem senhorial apropriando-se da ordem pública
No capítulo anterior, focalizamos nossa abordagem nos momentos que a classe
senhorial da vila de Paty do Alferes se mostrou em conflito. Assim, antes mesmo de
sua fundação em 1820, buscamos analisar os primeiros indícios da disputa senhorial
que nos levou ao período de ocupação da região. Dessa maneira, realizamos uma
análise cronológica dos acontecimentos até a transferência da vila no ano de 1833.
Neste capítulo, realizaremos em recuo temporal, ou seja, não continuaremos
a partir do ano de 1833. Iniciaremos nossa análise no ano da independência do
Brasil, período em que a vila apresentava sua porfia em torno da proibição do
tráfego em sua principal estrada. Nos debates que ocorreram para a liberação da
estrada, a utilização do termo “bem público” nos chamou a atenção, logo a análise
se fez necessária.
Após esse primeiro momento, o objeto de nossa abordagem serão os
batismos de escravos de três famílias envolvidas na querela. A partir de 1825,
identificamos e analisamos a realização desse sacramento pelas famílias Xavier,
Werneck e Ribeiro de Avelar. Finalmente, a análise recai sobre dois processos de
embargos, nos quais buscamos, juntamente com os batismos, desdobramentos da
disputa e laços senhoriais existentes na conturbada vila de Paty do Alferes.
A recém criada Câmara de Vereadores de Paty do Alferes, deixando um
pouco de lado suas questões locais, realizou solenidades para marcar os
acontecimentos relacionados ao processo de independência do Brasil. Foram
realizadas sessões solenes para o movimento da Câmara do Rio de Janeiro para a
convocação de uma Constituinte em 22 de junho de 1822, para a aclamação de d.
55
Pedro I (12 de outubro de 1822), como também para o juramento à nova
Constituição do Império, de 1824.146
No entanto, no ano da independência nos chamou a atenção a proibição do
tráfego na principal estrada da vila de Paty do Alferes. A alegação do capitão-mor
Manoel Francisco Xavier apresenta algo bem peculiar para a época:
[...] alegando [va] que a pretensão de Chagas 147 não se inspirava no bem
público, mas em ódios e inveja e em brigas particulares contra elle, movidos
por Ignácio de Souza Werneck, cuja família, esperando desde muito o
comando da vila, não pudera ter ficado satisfeita [...]. 148
Considerando o período, primeira metade do século XIX, identificamos
normalmente a correspondência entre ambos (público/privado). Mas se os
envolvidos tinham essa percepção de público e privado, tentaremos seguir, com
bastante cuidado, essa tênue linha divisória para entendermos a utilização desse
termo.
Nas argumentações para a liberação da estrada foi apresentada a seguinte
alegação: “Ao bem publico disseram os reclamantes, se oppunha o bem particular
do capitão-mor e de seus sequazes, que exerciam empregos públicos para delles se
servirem em benefício próprio”.149
Existe aí a constituição de um campo de disputa que se estrutura a partir da
apropriação da noção público/privado. Assim, com a existência das disputas entre os
senhores pela manutenção territorial, notamos que os cargos públicos eram
utilizados em benefícios próprios.
Observamos, anteriormente, que a manutenção territorial das propriedades foi
um dos motivos da disputa intraelite, por conseguinte, da desordem senhorial por
nós observada na vila de Paty do Alferes. Neste momento (1822), a terra, além de
delegar poder e status quando reconhecida sua propriedade, era o elemento
estruturador e hierarquizador da sociedade. 150 A partir dessa informação é possível
146
MAIA FORTE, José Mattoso. Memória da fundação de Vassouras. Rio de Janeiro: Ed. O Globo,
1933. p. 77.
147
Francisco das Chagas Werneck era juiz ordinário da Câmara de Vereadores e filho de Ignácio de
Souza Werneck.
148
Apud MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 47 (grifo nosso). Não é informada a fonte.
149
Ibidem, p. 46.
150
MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. O Império do retrato: família, riqueza e representação social
no Brasil oitocentista (1840-1889). Tese de Doutorado (Doutor em História) – Departamento de
56
explicar o posicionamento dos senhores envolvidos na desordem senhorial e, ainda,
a mutação de comerciantes em senhores de terra após o enriquecimento.
Esta transformação se explica pela busca de status e títulos de nobreza que,
em sua maioria, era destinado aos senhores rurais. Dessa forma, a vila de Paty do
Alferes também apresentava o seu exemplo através da família Ribeiro de Avelar,
fundadora da fazenda Pau Grande 151 e oriunda do comércio na cidade do Rio de
Janeiro.
Logo, a disputa pela manutenção da unidade territorial significava mais do que
manter a integridade física da propriedade. Em caso de derrota, representava além
do fracionamento do domínio, a perda da autoridade enquanto senhor de terras, e
uma desvantagem na disputa pelos títulos de nobreza.
Nesse processo, em que a terra viabilizava a obtenção de títulos, observamos
na transformação de um senhor em senhor de terras que os interesses particulares
causavam tensões nessa classe. Manoel Francisco Xavier ao se tornar proprietário
da fazenda Freguesia, além de se posicionar em favor da unidade do território da
propriedade, conseguiu, de certo modo, monopolizar as ações políticas e
administrativas após a criação da vila, a qual tanto lutou para que fosse criada longe
de suas terras.
Mesmo com a existência do conflito intraelite que já se arrastava desde a
apresentação do orçamento para a construção da igreja, esse novo momento de
transformação possibilitou a “revolta” dos que se sentiram prejudicados com o novo
cenário político e administrativo da recém criada vila. Assim, os senhores que
sentiram esse processo de monopolização realizaram um procedimento de
remonopolização das ações152 visando apenas os seus próprios interesses.
De uma forma ou de outra, o poder inicialmente adquirido através da
acumulação de oportunidades em lutas privadas tende, a partir de um ponto
assinalado pelo tamanho ótimo das posses, a escorregar das mãos dos
governantes monopolistas para as mãos dos dependentes, tais como a
administração monopolista.153
História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. p. 52.
151
Para saber mais sobre a fazenda. MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. Op. cit.
152
ELIAS. Nobert. O processo civilizador. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1993. p. 99. 2 vol.
153
Ibidem, p. 101.
57
É o que se observa na atitude do capitão-mor Manoel Francisco Xavier de
proibir a circulação na principal estrada.
Com a proibição, os moradores tentaram um diálogo com o capitão-mor Manoel
Francisco Xavier, o qual alegou que o caminho prejudicava suas plantações. 154
Contudo, acionaram uma única vez a Câmara de Vereadores por meio de uma
petição solicitando o pronto restabelecimento da estrada que não foi atendida em
função do domínio exercido pelo capitão-mor Manoel Francisco na Casa.
Essa questão apresentou ainda um outro episódio. Como não foi respeitada a
petição, Francisco das Chagas Werneck, no uso da atribuição do seu cargo de juiz
ordinário, tentou embargar uma obra que Manoel Francisco Xavier realizava em uma
de suas senzalas. O intuito do embargo era fazer com que o capitão-mor recuasse,
o que não ocorreu.155
A saída então encontrada foi a realização de um apelo junto à Coroa que,
através do ouvidor da comarca, determinou o pronto restabelecimento da estrada.
Por sua vez, Manoel Francisco argumentou, através de seu procurador, que
Francisco das Chagas Werneck tornara-se seu inimigo inconciliável:
[...] por antecedentes e rivalidades talvez a este pouco decorosas, e como
Chagas fosse também juiz ordinário da Villa, lançara mão da autoridade do seu
cargo para menoscabal-o, suscitando-lhe quantas pertubações podia imaginar
seu gênio, por natureza inquietador, e, por geração, ambicioso de governar. 156
Após a ordem da mesa do Desembargo para restabelecer o fluxo na estrada,
Manoel Francisco Xavier alegou que a petição feita por Francisco das Chagas
Werneck não era baseada no bem público e sim em ódios e disputas particulares
movidas por Ignácio de Souza Werneck, pai de Francisco das Chagas Werneck, que
queria o comando da vila nas mãos da família. 157
Nota-se que nesse episódio ocorreu a apropriação do bem público pelo
interesse privado, algo bastante comum na história do século XIX. Mas o que nos
chamou a atenção foi o posicionamento do capitão-mor Manoel Francisco Xavier.
Neste ano de 1822, a vila já havia sido criada e já se conhecia a propriedade que
154
MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 46. Não é informada a fonte pelo autor.
155
Idem.
156
Documento apresentado pelo procurador de Manoel Francisco Xavier. Ibidem, p. 46-47.
157
MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 47.
58
abrigaria a sede, mesmo assim a postura de Manoel Francisco continuava a mesma.
Por quê?
A alegação apresentada pelo capitão-mor de que Francisco das Chagas
Werneck tornara seu inimigo, nos traz indícios sobre a sua motivação ao proibir a
estrada. Ao falar de “antecedentes e rivalidades”, possivelmente estava se referindo
a toda história em torno da construção da igreja, que estava diretamente ligada ao
pai de Francisco das Chagas, Inácio de Souza Werneck.
Porém a apropriação do bem público (estrada) ocorreu em função da
desordem senhorial em que se encontrava a vila; a proibição foi uma forma de
prejudicar um inimigo que se utilizava desse caminho para escoar sua produção, ou
seja, verificamos nesse episódio uma retaliação que não só afetou um desafeto
como também a todos os moradores.
Destarte, buscamos mais desdobramentos dessa desordem senhorial.
Consideramos como possível objeto de análise a realização de batismos de
escravos.
1.1 A realização dos batismos de escravos refletindo a desordem senhorial
O batismo é considerado a porta de entrada para a Igreja católica, mas durante o
século XIX, mesmo mantendo sua proposta de arrebanhar mais adeptos ao
catolicismo, é possível observarmos nas relações de compadrios vários tipos de
interesses. Em muitos casos, o rito religioso tinha a função de sancionar
formalmente uma aliança anteriormente concebida 158 e, ao mesmo tempo, fixar
responsabilidade pública exercida na esfera privada. 159
Entretanto, o batismo ligava o escravo a pessoas de níveis sociais distintos,
como, por exemplo, forros, libertos, livres e senhores proprietários. O rito cerimonial
indicava, ainda, a existência de uma sociabilidade entre cativos de fazendas
distintas, observadas no apadrinhamento dos filhos de escravos por outros cativos.
Além disso, demonstra os vínculos entre os proprietários que escolhiam
padrinhos para seus escravos entre as pessoas de sua esfera social e política,
158
159
ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p. 107.
COSTA, Suely Gomes. Sociabilidade políticas e relações de gênero: ritos domésticos e religiosos
no Rio de Janeiro do século XIX. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, n. 54, p. 40,
dezembro de 2007. Disponível em: http://redalyc.uaemex.mx/pdf/263/26305406.pdf. Acesso em: 30
de janeiro de 2009.
59
exprimindo assim uma organização de “bandos”,160 cujos membros se protegiam e
tentavam manter e/ou ampliar o domínio sobre outros setores da população.
Contudo, o batismo funcionou também como um controle de comprovação da
propriedade do escravo durante todo o período da escravidão. Em diversas
ocasiões, foi usado para a obtenção de um registro que comprovasse o domínio do
cativo nascido dentro das fazendas. Nesses casos, os padrinhos tornavam-se
testemunhas “legítimas” das informações trazidas à pia batismal:
Quando um escravo era comprado, havia uma matrícula que servia como
“comprovante” da posse. Porém o inocente nascido de uma escrava não era
matriculado, já que não tinha ocorrido uma transação comercial. Dessa
maneira o registro de batismo era a única forma de que dispunha o proprietário
para comprovar que alguns, dos escravos, nascidos em seus plantéis, eram
efetivamente seus.161
Independente de ser livre ou cativo, ao se tornar padrinho de um escravo,
automaticamente tornava legal o direito de propriedade do senhor. Mas o rito
sacramental não só atendia ao interesse do senhor de escravo em ter mais uma
peça de sua escravaria reconhecida, como também era utilizado como parte de um
“projeto” pelas pessoas livres e sem influência política, objetivando o apoio de um
grande senhor.
Na
realização
do
batismo, podemos observar ainda
as redes de
sociabilidades entre os cativos e a busca por diversas formas de interesses. O
escravo buscando por proteção e possibilidade de alforrias, 162 através da escolha de
padrinhos livres ou filhos (a) de seus proprietários e até articulações políticas entre
os senhores por meio de apoio e favores.
O registro batismal também nos fornece dados importantíssimos sobre as
relações entre o proprietário e a sua escravaria. A escolha dos padrinhos pode
indicar certos padrões de alianças por parte dos senhores de escravos.
É
importante procurar compreender os interesses em jogo em cada tipo de escolha.
160
FRAGOSO, João. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra
do Rio de Janeiro, século XVII. Algumas notas de pesquisa. Tempo. Revista do Departamento de
História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, v. 8, n. 15, p. 11-35, 2003.
161
NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Ampliando a família escrava: o compadrio de escravos
em São Paulo no século XIX. Apud FREIRE, Jonis. Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor
Bom Jesus do Rio Pardo (MG-1838-1888). In: XIV ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS
POPULACIONAIS,
Caxambú,
2004,
p.
5.
Disponível
em:
http://www.abep.nepo.unicamp.br/site_eventos_abep/PDF/ABEP2004_543.pdf. Acesso em: 30 de
janeiro de 2009.
162
COSTA, Suely Gomes. Op. cit., p. 45.
60
No caso dos padrinhos escravos ou ex-escravos, a possibilidade de terem
sido escolhidos pelos pais escravos é bastante alta, devido à existência necessária
de vivências comuns. No entanto, quando o cativo tinha como padrinhos pessoas de
classe social distinta, como as que pertenciam à classe dos grandes proprietários, a
probabilidade de terem sido escolhidos pelo senhor também se torna considerável.
Nossa análise refere-se aos batismos de escravos pertencentes a três
famílias proprietárias de grandes plantéis 163 que estavam envolvidas na desordem
senhorial. Talvez, por isso, as conclusões a respeito dos padrões de batismo
verificados não possam ser aplicadas aos pequenos proprietários de escravos. A
escolha dessas famílias se deu em função do ponto de partida da nossa pesquisa
que foi a insurreição de 1838.
Dessa forma, o estudo realizado nos livros de batismo de escravos (1825 a
1830) da vila de Paty do Alferes levantou 235 assentos. 164 Desses dados, foram
retirados os batismos de cativos pertencentes à família Xavier e ao núcleo familiar
Ribeiro de Avelar/Werneck. A primeira família realizou 23 batismos, a Ribeiro de
Avelar 14, enquanto a Werneck realizou 15, representando as três famílias, 21,70%
do total de batismo na localidade. A família Xavier foi responsável por 9,8%, os
Wernecks representaram 6,4% e os Ribeiros de Avelar 5,9 %.
163
Para realizar a base de batismo para o estudo foram considerados apenas as pessoas que
apresentaram sobrenomes Lacerda,Werneck, Ribeiro de Avelar e Xavier.
164
Livro de batismos de escravos da vila de Paty do Alferes. Paróquia Nossa Senhora da Conceição,
Paty do Alferes. Base de dados cedida gentilmente pelo graduado José da Silva Oliveira. Não foram
encontrados os registros anteriores.
61
Gráfico I
Fonte: livro de Batismo de escravos, Paty do Alferes.
A família Xavier levou à pia batismal 23 inocentes. Deste número, apenas três
não tiveram como padrinhos pessoas livres, 165 o que representa 13,04% do seu total.
Mas qual a implicação desses dados?
Como esses escravos apresentaram 86,96% de padrinhos livres, foi possível
estabelecer comparações com o estudo realizado por Tarcílio Botelho 166 para a
freguesia de Montes Claros (MG). Verificou-se nesse estudo uma porcentagem de
80% de pessoas livres como padrinhos, o que difere do estudo de Ana Lugão que
apresentou um equilíbrio entre livres e escravos na região de Paraíba do Sul (RJ)
durante o século XIX ao indicar que 48,6% dos padrinhos eram cativos. 167
Os dados trabalhados por Ana Lugão, numa região fronteiriça a Paty do
Alferes, evidenciam que o tratamento dispensado pelos Xavier aos seus cativos, no
caso dos batismos, pode ser considerado fora do padrão, já que apenas três
165
166
Pessoas livres ou portadoras de sobrenome que o sugeriam. Foi a forma utilizada na análise.
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Família e escravarias: demografia e família escrava no norte de
Minas Gerais no século. XIX. Dissertação de Mestrado (Mestre em História) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994. Apud FREIRE, Jonis.
Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo (MG-1838-1888). In: XIV
ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Caxambú, 2004, p. 8.
167
RIOS, Ana Lugão. Família e transição. Dissertação de Mestrado (Mestre em História) –
Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1990, p. 9. Apud FREIRE,
Jonis. Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo (MG-1838-1888). In:
XIV ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Caxambú, 2004, p. 8.
62
batizados não tiveram padrinhos livres. Esses três padrinhos constam como pardos
sem indicação sobre a sua condição de livre ou escravo.
José Roberto Góes, no seu estudo sobre a freguesia de Inhaúma no Rio de
Janeiro durante a primeira metade do século XIX, no mesmo período dos batismos
realizados em Paty do Alferes, observou que 66,6% dos pais e mães escolhiam
cativos para serem padrinhos,168 indicando um alto índice de sociabilidade entre a
comunidade cativa. Se considerarmos a participação de ex-escravos no rito
batismal, a porcentagem chega a 90,6% dos padrinhos. 169
A família Werneck apresentou, no mesmo período, um padrão diferente da
família Xavier frente à pia batismal. Dos quinze inocentes levados ao batismo,
apenas dois tiveram como padrinhos pessoas livres (13,33%), enquanto treze
escravos tiveram cativos e pardos como protetores. A forma como a família Werneck
se posicionava estava mais de acordo com o padrão encontrado por Góes quando
encontrou um número superior de padrinhos escravos. A família Werneck por sua
vez, apresentou a porcentagem de (86,67%) de padrinhos escravos e pardos
batizando os inocentes, praticamente o inverso da família Xavier.
Diferenciando-se um pouco, mas não muito, do padrão da família Werneck,
os Ribeiro de Avelar apresentaram a seguinte porcentagem: 71,43% dos batismos
tiveram como padrinhos escravos e pardos, sendo o restante, 28,57%, de batismos
com padrinhos livres.
Já na análise de Jonis Freire170 realizada na freguesia do Senhor Bom Jesus
do Rio Pardo (MG) durante o século XIX, indicou uma superioridade de padrinhos
livres em relação aos escravos e forros (69,2% livres, 30,6% escravos e 0,2% de
forros). Essas informações confrontadas com as das famílias aqui pesquisadas
ficam mais próximas da situação encontrada dentro das propriedades da família
Xavier.
Então temos:
Gráfico II
168
GÓES, José Roberto. O cativeiro imperfeito: um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da
primeira metade do século XIX. Vitória: Lineart, 1993. p. 168. Apud FREIRE, Jonis. Compadrio em
uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo (MG-1838-1888). In: XIV ENCONTRO
NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Caxambú, 2004, p. 8-9.
169
Idem.
170
FREIRE, Jonis. Op. cit., p. 16.
63
Escravos sendo batizados por padrinhos livres (1825 a 1830).
Mas qual a implicação desses dados?
O período da realização dos batismos (1825 a 1830) é o mesmo em que
houve o acirramento das disputas intraelite. Esse momento coincide com a
implantação da sede administrativa da vila de Paty do Alferes e, também, com o
momento anterior à transferência da vila para Vassouras, ocorrida em 1833.
Quanto às implicações da divisão intraelite e suas relações com a prática do
batismo, é interessante enfatizar certas questões. A análise dos batismos, nesse
período em Paty do Alferes, além de gerar um melhor entendimento das relações
desses proprietários com suas escravarias, nos permite apresentar a hipótese de
que uma dessas famílias se utilizou do batismo para fortalecer seus laços com as
pessoas livres.
A família Xavier realizou nesse período 23 batismos, dos quais vinte tiveram
como padrinhos pessoas livres. Ainda mais interessante, é a quantidade de
padrinhos pertencentes à elite local. Dos vinte batizados, seis tiveram como
padrinho o senhor Luiz França ou de França, um dos procuradores da família que foi
acompanhado uma vez de sua filha e os restantes de sua esposa.
Outro que também figurou como padrinho dos escravos, foi Gil Francisco
Xavier,171 filho adotivo de Manoel Francisco Xavier e herdeiro de suas duas fazendas
171
Foi batizado em 11 de maio de 1824, casou-se em 13 de fevereiro de 1851 com Enídia Francisca
Feijó. Tornou-se comandante da Guarda Nacional da cidade de Vassouras e tinha a fama de ser
muito garboso, e também era viciado em jogo, vício pelo qual hipotecou e perdeu a fazenda da
Freguesia para o dr. Joaquim Teixeira de Castro, vindouro visconde de Arcozelo. Gil Francisco
64
(Maravilha e Freguesia).172 Essas informações mostram a participação de pessoas
ligadas ou pertencentes à família no apadrinhamento dos escravos.
Além desses já citados, figuraram ainda coronel Joaquim Alberto de Souza da
Silveira, Vicente Borges de Carvalho, tenente Bento Borges de Carvalho (talvez
irmão de Vicente), José Porcino Pereira, Severino Jose de França, Felisberto Jozé
da Silveira, Manoel da Costa e Luiz José de França. Essa rede de pessoas livres
interligadas pela prática do compadrio reflete a precaução da família Xavier em
fortalecer a sua zona de influência – procedimento não utilizado pelas famílias
Ribeiro de Avelar/Werneck.
Também analisamos o livro II 173 que apresentou um total de 667 batismos de
escravos, compreendendo os anos de 1833 a 1840. 174 Novamente, as três famílias
foram separadas e estudadas individualmente.
A família Werneck batizou 81 inocentes. Desse total, 55 tiveram como
padrinhos escravos ou pardos, representando 67,90%, enquanto os padrinhos livres
batizaram 26 inocentes, perfazendo 32,10% dos batismos da família. Mais uma vez
a família apresentou uma maior quantidade de padrinhos escravos.
Por sua vez, a família Ribeiro de Avelar apresentou 39 batismos, sendo 31
batizados por padrinhos escravos (79,50%) e oito por pessoas livres (20,50).
Comparando com a análise realizada no período de 1825 a 1830, notamos certo
equilíbrio: 76,93% e 23,07%, respectivamente.
Já a família Xavier manteve o padrão de batizar seus escravos com padrinhos
livres. Mas a análise ficou restrita aos anos de 1833 e 1834 com dezesseis
batismos. Desse total, 81,25% foram batizados por padrinhos livres (13), sendo
apenas três batizados com padrinhos escravos, o que representa 18,75%. Em
relação aos padrinhos livres dos escravos da família Xavier, notamos que
pertenciam ou tinham acesso à elite local. Nessa amostragem dos dezesseis
batismos, não se verificou padrinhos forros ou libertos.
Gráfico III
acabou falecendo muito pobre ainda relativamente novo aos 53 anos em 19 de novembro de 1880.
STULZER, Aurélio (frei). Notas para a história da Villa de Pati do Alferes. Dezembro 1944, p. 59.
172
Idem
173
Livro de Batismo escravo. Paróquia Nossa Senhora da Conceição, Paty do Alferes, Rio de Janeiro.
174
Não foi encontrado livro algum com os batismos entre 1831 e 1832.
65
Escravos sendo batizados por padrinhos livres (1833 a 1840).
Porém o fato mais importante a ser registrado, é que nenhum batismo de
escravo da família Xavier foi realizado após o ano de 1834 até o ano de 1840. O
capitão-mor Manoel Francisco Xavier faleceu em 1840 e, só após a sua morte a
família Xavier, voltou a realizar o batismo de seus cativos, apresentando 11 neste
mesmo ano. Enfim, durante os anos de 1835 a 1839, não foi realizado um único
batismo.
A partir dessa ausência, é possível identificar uma mudança de atitude do
capitão-mor Manoel Francisco Xavier após a transferência da sede da vila de Paty
do Alferes para Vassouras. Com a existência das disputas intraelite e a extinção da
vila de Paty do Alferes, Manoel Francisco passou a não exteriorizar os seus
assuntos, não mais os levando ao conhecimento das autoridades civis e/ou
religiosas. Possivelmente, em razão dessa nova maneira de proceder, a referência
de seus adversários à falta de governo de suas fazendas para explicar o motivo da
insurreição escrava de 1838.
Essa “falta” de governo nas propriedades da família Xavier, considerada pelo
juiz de paz José Pinheiro,175 parece não se comprovar. Na análise dos batismos que
aqui apresentamos, nota-se que o núcleo familiar Ribeiro de Avelar/Werneck
realizou, durante os anos de 1833 e 1834, um total de 25 batismos. Neles
encontramos doze filhos legítimos (presença de pai e mãe) e treze filhos naturais (só
175
SOUZA, José Antonio Soares de. O efêmero quilombo de Pati do Alferes. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 295, p. 43, 1972.
66
com a presença da mãe). Por sua vez, a família Xavier apresentou dezesseis
batismos, todos de filhos legítimos. Mas qual o significado desse dado? A principal
observação é a presença de famílias nas senzalas de propriedade dos Xavier.
Segundo Manolo Florentino e José Roberto Góes:
Organizado a vida no cativeiro, a família amainava os enfrentamentos entre
cativos [...] A pacificação e a organização parental eram importantes também
ao próprio sistema sem se constituir em instrumento direto de controle
senhorial, a família escrava funcionava como elemento de estabilização social,
ao permitir ao senhor auferir uma renda política. 176
Os escravos organizados em famílias estariam menos dispostos a prepararem
insurreições.
Outra observação referente à constituição da família escrava é a conquista de
seu espaço dentro da própria senzala. Quando existe o reconhecimento da família,
normalmente observa-se um espaço diferente dentro da senzala. Se levarmos em
conta apenas esse dado referente à formação de famílias, poderíamos argumentar
que havia maior predisposição dos escravos do núcleo familiar Ribeiro de
Avelar/Werneck ao motim do que os cativos da família Xavier.
Considerando-se apenas os dados referentes às famílias escravas, é possível
estabelecer o mesmo tipo de raciocínio em relação ao período de 1825 a 1830. Dos
29 inocentes levados à pia batismal pelos Werneck, apenas seis eram legítimos,
enquanto na família Xavier, dos 23 inocentes levados ao batismo, apenas quatro
eram naturais. Nesse caso, as informações confirmam a formação de famílias dentro
da senzala dos Xavier, o que segundo alguns estudos sobre a questão, é um dado
importante na estabilização das senzalas.
Certamente, não é possível estabelecer nenhuma relação de causa e efeito
tão simplificadora entre formação de famílias e ausência de motins. No entanto,
esses dados podem nos ajudar a contextualizar as afirmações da família Werneck
sobre a “falta de governo” das fazendas dos Xavier que parecem estar menos
relacionadas à desorganização das senzalas do que à decisão do capitão-mor de
resolver as suas questões internamente, sem levá-las à esfera pública.
176
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico
atlântico. Rio de Janeiro, 1790-1850. Apud MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros,
pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
p. 105.
67
Esse
segundo
período
analisado
forneceu
alguns
elementos
que
possibilitaram um melhor entendimento do fato de Manoel Francisco Xavier ter sido
considerado como um “mal” senhor pelo núcleo familiar rival.
Em outra ocasião tem sido feridos homens brancos e espancados mortalmente
capatazes desta grande fazenda; fatos que o mesmo capitão-mor trata de
capear e esconder, e só se sabe por seus fâmulos ou escravos, que dizem
debaixo do maior segredo. Tantos fatos tem sucedidos ultimamente, por
espaço de quatro anos [...].177
Observando a citação, nota-se que a propriedade do capitão-mor Manoel
Francisco Xavier era considerada sem governo com a ocorrência de espancamentos
e até assassinatos. Por conseguinte, esperávamos a abertura de alguns processos
para a apuração desses crimes cometidos, o que não encontramos nesse período.
O único assassinato registrado nos limites das propriedades da família foi o do
escravo Camilo; crime cometido pelo feitor Jacques, crioulo no ano de 1838.
O
levantamento
desses
dados
possibilitou
também
observar
as
consequências da desordem senhorial que culminou na extinção da vila de Paty do
Alferes e na criação de Vassouras. Na realização dos batismos de escravos, a
consequência foi a abdicação da realização do sacramento pelo capitão-mor Manoel
Francisco Xavier.
Em função deste posicionamento, partimos em busca de mais indícios que
demonstrassem outras consequências da desordem senhorial ou circunstâncias que
apresentassem outros acontecimentos, no qual a disputa senhorial pudesse ser
apreciada.
Por se apresentar como um dos protagonistas e também pela condenação de
seus escravos na insurreição de 1838, pesquisamos processos em que figurasse o
capitão-mor Manoel Francisco Xavier.
2 Reflexos de uma desordem na disputa territorial
Um pouco antes da transferência da sede da vila para Vassouras, mais
precisamente em 6 de setembro de 1831, Manoel Vieira dos Anjos e sua esposa
eram citados na Justiça por invadir um terreno pertencente a Manoel Francisco
Xavier.178 Manoel Vieira dos Anjos era acusado de realizar na propriedade um
177
178
Apud SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 43.
Documento 103664145001. Centro de Documentação Histórica (CDH), Universidade Severino
Sombra (USS).
68
roçado. A propriedade em questão era um terreno que Manoel Francisco Xavier
havia adquirido de Antonio Joze Evangelista e Maximiniana Roza Angelica,
localizado no lugar denominado Camohã (Camoão) com 400 braças de testada e ¼
de légua de fundo, conforme documento apresentado.
A alegação, por parte dos autores Manoel Francisco Xavier e sua esposa, foi
que os réus não respeitaram o direito de propriedade ao invadir o terreno.
Representados no processo inicialmente por Luis de França e, posteriormente, por
Eleutério Delfim Silva, a família Xavier buscava a reintegração da posse e, ainda, a
reposição do terreno, prejuízos, danos e mais as custas processuais triplicada.
Ao ser intimado pela primeira vez, em 12 de setembro do mesmo ano, Manoel
Vieira dos Anjos não compareceu, sendo lançada a revelia. 179 Em uma segunda
audiência pública, em 28 do mesmo mês, o réu compareceu e, após ouvir a
solicitação contida nos autos, utilizou-se de diversos argumentos dizendo que não
conciliava com os autores.
A partir desse momento, Manoel Vieira dos Anjos passou uma procuração a
Thimothio Vitorino de Oliveira para representá-lo no processo. Assim, não se
restringindo apenas às colocações verbais, o procurador apresentou um documento
no qual constava que os antigos “proprietários” nunca poderiam ter realizado a
venda do terreno em litígio, já que este nunca estivera em posse deles. Segundo o
procurador,
a
propriedade
já
pertencia
aos
réus
“há
muitos
anos”
e,
consequentemente, os autores da ação não poderiam ter realizado a transação do
terreno com a família Xavier, pois não eram herdeiros de Felipe Roiz dos Santos
(considerado como primeiro proprietário do terreno em litígio).
Dessa maneira, o procurador de Manoel Vieira dos Anjos, Thimótio Vitorino
de Oliveira, julgava improcedente a ação, solicitava a absolvição dos réus e a
condenação dos autores em prejuízos, danos e mais as custas do processo. Assim
sendo, foi solicitada a determinação da Lei Ordinária L 4 TT 58 =ibi=.
Se alguma forçar, ou esbulhar outra da posse de alguma caza ou herdade ou
de outra posseção não tendo primeiro citado ou ouviso com sua justiça, forçado
perca o direito, q tiver na cauza forçada de q esbulhou o possuidor, o qual
direito será adquirido, e aplicado ao esbulhado, e lhe seja logo restituída a
posse della. E se forçador não tiver direito na caza em q fez a força pagara ao
forçado outro tanto, quanto a caza valer, e mais toda as perdas, e dannos, q na
força, ou cauza della em qualquer modo receber. E posto q alguém q he
Senhor da caza ou lhe pertencer ter nella algum direito, não lhe seja recebido
tal razão, mais sem embargo della seja logo constrangido, restituila, a q
179
Revelia é quando o ato processual é dado como nulo.
69
apossua asseca todo o direito, q nella tinha, pelo fazer sua própria força e sem
authoridade de justiça.180
Ao solicitar a ação judicial contra Manoel Vieira dos Anjos e esposa, os
requerentes não contavam com a articulação do procurador Thimótio Vitorino de
Oliveira que além de contestar a veracidade do título de propriedade, solicitou o
cumprimento da lei, julgando improcedente a ação movida e, consequentemente, o
pagamento das custas processuais. Os autores da ação passaram a apresentar
argumentos e documentos para que não fossem surpreendidos com uma sentença
contrária à requerida e, por conseguinte, penalizados.
Em busca da absolvição dos réus, o procurador Thimótio Vitorino de Oliveira
requeria a improcedência da ação por não ter sido o terreno comprado dos
“verdadeiros” donos, buscando com isso a anulação do processo. Assim, após a
alegação do procurador de Manoel Vieira dos Anjos, a confirmação das informações
ficou condicionada à apresentação de duas ou três testemunhas. 181
A comprovação da propriedade pelos réus foi realizada com a apresentação
das testemunhas que foram solicitadas pela Justiça. Diante disso, o procurador
solicitou a absolvição dos réus e a condenação dos autores em prejuízos, danos e
mais as custas do processo.182
Na sessão ocorrida em 21 de julho de 1832, foi solicitado ao juiz ordinário e
de órfãos, Francisco Ignacio Pacheco de Mello, uma nova audiência para que os
autores assinassem o fim do processo e que fosse pronunciada a sentença.
Todavia, a ação não terminaria ainda.
É bem provável que essa disputa estivesse relacionada à expansão da
lavoura do café na região, que em menos de quatro anos assumiria a posição de
principal produto exportado. Segundo Stanley, essa expansão gerou uma
intensificação das disputas por terras,183 tornando o tipo de processo em questão
bastante frequente.
180
Documento 103664145001. CDH, USS.
181
Por se encontrar incompleto o processo, não foi possível a verificação dos nomes das
testemunhas.
182
183
Processo 103664145001, fls. 27. CDH, USS.
STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Tradução Vera Bloch
Wrobel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 37.
70
Outro aspecto que devemos salientar quando se buscava o reconhecimento
de propriedade de uma área de terras era a obrigatoriedade do cultivo do solo. A
origem dessa obrigação era a lei de sesmaria.
Essa mesma obrigação era cobrada na obtenção de concessão de terras. 184
Assim, ao realizar o roçado, possivelmente Manoel Vieira dos Anjos e esposa
tentavam buscar o reconhecimento de proprietários, demonstrando que estavam
cumprindo com uma das obrigações.
Já quanto ao andamento do processo, é notório que a apelação apresentada
pelos réus obtivesse sucesso pelo menos até o momento em que o juiz ordinário e
de órfãos, Francisco Ignacio Pacheco de Mello, 185 conduzia a ação. O juiz em
questão é o mesmo que em 1833, fazendo parte da Câmara de Vereadores da vila
de Paty do Alferes, optou pela transferência da vila.
O terreno disputado tinha uma dimensão de 400 braças de testada e ¼ de
légua de fundo, informação que vai ao encontro da argumentação de Márcia Motta,
quando afirma que as disputas por terras podiam ocorrer em função de uma
pequena parcela que pouco acrescentaria na extensão da propriedade. 186 É preciso
destacar o fato de que os envolvidos no litígio eram dois grandes fazendeiros, algo
raro. Segundo Márcia Motta, as acusações, quando existentes, partiam sempre “do
pressuposto de que o senhor e possuidor das terras em litígio não havia dado
consentimento para que o outro roçasse [...]”. 187
Ao mesmo tempo em que corria essa ação, em 5 de novembro de 1831, em
um processo paralelo, era curado o embargo movido por Manoel Francisco Xavier
contra Manoel Vieira dos Anjos.188
O que levou os Xavier a abrirem uma nova ação judicial? Seria a forma como
foi encaminhado o primeiro processo pelo juiz Francisco Ignacio Pacheco de Mello?
Possivelmente. Lembremos que existiam disputas senhoriais motivadas por
interesses particulares, sendo o juiz em questão um dos envolvidos.
184
Ibidem, p. 36.
185
Francisco Ignacio Pacheco e Mello era oriundo de Minas Gerais e sobrinho do padre Pedro, dono
da fazenda da Divisa em Paty do Alferes. In: Vassourense de 2 de agosto de 1896. Museu casa da
Hera, Vassouras, Rio de Janeiro.
186
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do
século XIX. 2. ed. Niterói, RJ: Editora da Universidade Federal Fluminense (EdUFF), 2008. p. 44.
187
Ibidem, p. 82.
188
Processo 103664051007. CDH, USS.
71
Assim, a análise do segundo processo pode nos fornecer outros indícios
dessa questão.
O juiz responsável pela abertura dessa nova ação fora o sargento-mor Joze
Maria de Guadalupe que, por intermédio do procurador do capitão-mor Manoel
Francisco Xavier, reestabeleceu o pedido de embargo aos réus.
Posteriormente, Manoel Vieira dos Anjos compareceu e pediu vista do
processo. Após verificarmos essas primeiras informações da ação, nos deparamos
com a ausência de diversas folhas. Sendo a página na sequência a treze, na qual se
encontra a parte conclusiva, datada de 1º de junho de 1832: “Os embargos a f10
Recebo e Julgo aprovado e julgo provados por sua materia aos autos despacoes de
Direto com que me enformo em vista de nulidade com q foi feito o Embargº f2 q
achei procedente e pague os Embargados as Custas”. 189
Este despacho não foi realizado pelo mesmo juiz que iniciou essa nova ação.
Neste momento, quem despachava aprovando a solicitação de embargo era o juiz
Francisco Ignacio Pacheco de Mello. Mas, no primeiro processo, esse mesmo juiz
acataria em 21 de julho de 1832 a solicitação do procurador dos réus por uma nova
audiência para os autores assinarem o fim do processo.
Em um período de pouco mais de um mês, observamos dois posicionamentos
distintos do juiz Francisco Ignacio Pacheco de Mello sobre a mesma questão.
Relembremos, no processo inicial despachava em 21 de julho de 1832 solicitando
uma audiência para finalizá-lo. E, anteriormente, em 1º de junho, despachou
condenando os réus e determinando o pagamento das custas.
Possivelmente, em função desse posicionamento do Juiz Francisco Ignácio
Pacheco de Melo e da disputa intraelite, Manoel Francisco Xavier tenha atuado pela
troca do juiz. Logo, um novo magistrado, Antonio Delfim Silva, assumiria o
andamento da ação. Mas antes da substituição do juiz e da declaração da sentença
final, solicitava-se no segundo processo a anulação da primeira ação.
Mesmo com a saída do juiz Francisco Ignácio Pacheco de Melo, o procurador
de Manoel Francisco Xavier, Eleutério Delfim Silva, fundamentava no segundo
processo a anulação da ação. Em seu pedido argumentava a incompetência do
189
Documento 103664051007. CDH, USS.
72
foro190 se dirigindo ao novo juiz, Antonio Delfim Silva que antes de dar continuidade
na ação se declarou suspeito, conforme informa as folhas 11 do processo. 191
Porquanto me tenho declarado suspeito entre estas partes por despacho
proferido em authos que convem estas partes sobre o mesmo objeto, ficando
por isso suspeito o juiz Parceiro, na conformidade da Ord’ L°3°f°21°SS19°,
deve-se remeter o presente processo aos juízes do anno passado [...]. 192
Deste modo, em 20 de novembro de 1832, Antonio Delfim Silva despachou
nos dois processos sua decisão de encaminhar a solicitação de embargo aos juízes
do ano anterior para julgar sobre seus termos, conforme a lei Ord’ Lº 3º Fº 21º
SS19º.
Ao buscarmos o entendimento da declaração de suspeito do juiz Antonio
Delfim, notamos que este apresentava o mesmo sobrenome do procurador Eleutério
Delfim Silva, portanto, a hipótese de serem pai e filho foi comprovada pelas
informações contidas no jornal Vassourense de 28 de junho de 1896. Neste, há um
artigo que conta a história da criação da vila de Paty do Alferes e traz a informação
de que Antonio Delfim Silva foi proprietário da fazenda do Monte Alegre e que, entre
os seus filhos, encontrava-se Eleutério Delfim Silva. 193
Também chama a atenção a informação de ter sido proprietário da fazenda
Monte Alegre, mesma propriedade do futuro barão de Pati do Alferes, Francisco
Peixoto de Lacerda Werneck. Desse modo, somos levados a pensar na existência
de vínculos entre Antonio Delfim e Francisco Peixoto que possivelmente apoiou os
Wernecks no momento da escolha do lugar para abrigar a sede da vila e que,
consequentemente, ficou do lado de Antonio Luiz Machado. 194
Com mais esse dado, algumas interrogações foram formuladas: a declaração
seria apenas por ser pai do procurador de uma das partes ou essa declaração seria
por algum outro motivo?
190
Documento 103664051007. CDH, USS.
191
Documento 103664051007. CDH, USS.
192
Documento 103664145001. CDH, USS.
193
Jornal Vassourense de 28 de junho de 1896. Museu Casa da Hera, Vassouras, Rio de Janeiro.
194
MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 45.
73
Infelizmente, não obtivemos respostas para essas questões. No entanto, é
possível esboçar certas explicações a partir de outros estudos que também
enfatizam a classe senhorial.
João Fragoso, no artigo “A nobreza vive em bandos”, 195 identifica e analisa as
várias formas de alianças entre os ditos nobres. Essas alianças eram criadas entre
as famílias e também com outros grupos sociais. O objetivo da formação desses
laços era a manutenção e/ou a hegemonia política. Assim, com a formação de
“bandos”, principalmente com outros grupos sociais, as famílias governantes
adquiriam a cumplicidade de mais uma parcela da sociedade. Segundo o historiador,
a formação de bandos resultava dos conflitos entre as facções nobres, cuja origem
desse tipo de experiência está ligada à história medieval portuguesa.
A nossa análise sobre a desordem senhorial abre várias questões. Em
primeiro lugar, é preciso indicar que o posicionamento de Antonio Delfim Silva, que
durante a fundação da vila apoiou Antonio Luiz Machado, não impossibilitou sua
aproximação com a família do capitão-mor Manoel Francisco Xavier. Mas no
momento em que poderia beneficiar seu aliado, se afastou do processo.
Essa mudança de posicionamento pode ser explicada em função do jogo de
interesses e da necessidade de Manoel Francisco Xavier em alargar sua rede de
alianças no momento posterior à fundação da vila de Paty do Alferes.
Dessa forma, podemos ponderar sobre a expansão de sua rede de relações
e/ou de alianças políticas. Portanto, a ligação com Eleutério Delfim Silva e,
consequentemente, com o seu pai é melhor compreendida.
No entanto, a busca por novas alianças pode ter sido motivada também pela
criação do cargo de juiz de paz em 1827 que ocasionou um forte abalo no poder do
capitão-mor. Até este momento, o título de capitão-mor era o mais importante de
uma localidade, sendo a função comparada a de um delegado de polícia. Era o
capitão-mor quem devia manter a ordem e mandar prender os criminosos. Podia
expulsar os vagabundos e os forasteiros considerados “suspeitos”, proibir reuniões
públicas, conceder ou não licença para festas nos logradouros públicos. 196
Mas, a partir de 1827, toda paróquia ou freguesia foi obrigada a ter um juiz de
paz que, além de várias outras funções, tinha a responsabilidade de manter a ordem
195
FRAGOSO, João. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do
Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). Topoi. Revista de História do Programa de Pós-Graduação em
História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 1, p. 45-122, 2000.
196
Apud MAIA FORTE, José Mattoso. Op. cit., p. 35.
74
pública, pôr em custódia os bêbados, levar para a prisão os considerados
criminosos. Além dessas funções que nos lembram as de um capitão-mor, também
competia ao juiz de paz processar e julgar as causas cíveis, cujo valor não
ultrapassasse a 16 mil réis, resolver as contendas sobre caminhos particulares,
etc.197
Com a criação do cargo de juiz de paz, as atribuições do capitão-mor foram
diminuídas, restando quase apenas a imponência do título. Além de ter absorvido as
atribuições de capitão-mor, o juiz de paz acumulou também as funções do juiz de
almotacés. Além dessas funções, o cargo agregou, em 1831, a responsabilidade
pelos processos em ex officio de crimes públicos até a pronúncia.198
Concluímos que além das disputas vivenciadas na fundação da vila, Paty do
Alferes apresentou ainda vários desdobramentos dessas mesmas disputas. A
desordem senhorial refletiu diretamente na realização dos batismos dos escravos,
fazendo com que o capitão-mor Manoel Francisco Xavier procurasse fortalecer suas
ligações ao batizar seus cativos com padrinhos de sua esfera social.
Enquanto Manoel Francisco Xavier se posicionava dessa maneira, o núcleo
familiar Ribeiro de Avelar/Werneck realizava o rito religioso com a maioria dos
inocentes sendo batizado pelos próprios escravos.
Por sua vez, Manoel Francisco Xavier, no momento seguinte à transferência
da vila, deixou de realizar os batismos de seus cativos. Possivelmente, verifica-se
uma tentativa de se afastar dos assuntos que ligavam suas propriedades à
administração da então vila de Vassouras.
197
RODYCZ, Wilson Carlos. O juiz de paz imperial: uma experiência de magistratura leiga e eletiva
no Brasil. Revista Justiça e História, v. 3, n. 5, p. 7, 2003. Disponível em:
http://www.googleacademico.com.br. Acesso em: 4 de julho de 2009. Atribuições de um juiz de paz:
ao juiz de paz competia conciliar as partes antes da demanda, processar e julgar as causas cíveis
cujo valor não excedesse a dezesseis mil-réis; manter a ordem nos ajuntamentos (reuniões públicas),
dissolvendo-os no caso de desordem; pôr em custódia os bêbados durante a bebedice; corrigi-los por
vício e turbulência e as prostitutas escandalosas, obrigando-os a assinar termo de bem viver, com a
cominação de penas; fazer destruir os quilombos; fazer autos de corpo de delito; interrogar os
delinquentes, prendê-los e remetê-los ao juiz competente; ter uma relação dos criminosos para fazer
prendê-los; fazer observar as posturas policiais das câmaras; informar o juiz de órfãos sobre
incapazes desamparados e acautelar suas pessoas e bens, enquanto aquele não providenciasse;
vigiar sobre a conservação das matas públicas e obstar nas particulares ao corte de madeiras
reservadas por lei; participar ao presidente da província quaisquer descobertas úteis que se fizessem
no seu distrito (minas); procurar a composição das contendas e dúvidas sobre caminhos particulares,
atravessadouros e passagens de rios ou ribeiros, sobre uso das águas empregadas na agricultura ou
na mineração, dos pastos, pescas e caçadas, sobre limites, tapagens e cercados das fazendas e
campos, e sobre os danos feitos por familiares ou escravos; dividir o distrito em quarteirões que não
contivessem mais de 25 fogos.
198
Ibidem, p. 8.
75
Não se restringindo apenas ao posicionamento de um dos envolvidos, a
desordem senhorial mostrou sua interferência num campo ainda não explorado – o
Judiciário. Nos dois processos analisados demonstramos que os senhores
envolvidos utilizavam-se de suas áreas de influências para subjugar um desafeto
particular.
O exemplo do juiz Francisco Ignácio Pacheco Melo, que esteve envolvido
diretamente na transferência da vila, demonstra bem o quanto o interesse particular
agia e se manifestava em momentos em que a neutralidade deveria ser observada.
Assim, em função da disputa senhorial em que estava envolvido, o juiz realizou
despachos contraditórios levando-o ao afastamento dos processos.
Portanto, não se restringindo aos assuntos ligados e/ou relacionados à
fundação e transferência da vila de Paty do Alferes, a disputa senhorial invadiu
outros campos. Mas ainda nos falta analisar um último, no qual o interesse de
subjugar um inimigo político se posicionou acima dos procedimentos obrigatórios de
apuração de uma insurreição, quando a mesma ocorria.
No próximo capítulo, analisaremos a insurreição escrava de 1838 à luz das
informações sobre as disputas senhorias apresentadas nesses dois primeiros
capítulos.
76
Cap. III. Transformações políticas e instabilidades
1 Juiz de paz e guarda nacional: parcialidade na apuração dos fatos
Com a criação do cargo de juiz de paz, por meio da lei de 15 de outubro de 1827, foi
dado o primeiro passo do que se considerou a primeira grande reforma do sistema
judicial. Tendendo aos propósitos liberais, representava assim o desejo de
descentralização após o fechamento da Assembleia Constituinte que havia gerado o
receio de um absolutismo.
Para ocupar e exercer a função era necessária uma eleição e o candidato não
precisava ser formado em direito. O modo eletivo foi considerado um avanço, pois
dessa forma, o poder da escolha não emanava do imperador e sim do “povo”, 199 o
que trouxe o apoio da imprensa.
A classe dos ocupantes do cargo de juiz de paz, principalmente das zonas
rurais, era oriunda das grandes famílias proprietárias que se utilizavam de a função
para benefícios próprios. Assim, em meados da década de 1830, a função começou
a ser criticada por estar sendo utilizada como veículo de perseguição política.
Relembremos o abaixo assinado da conjuração escrava de Valença. Nele, era
solicitada a substituição do juiz de paz após sua parcialidade na apuração dos fatos.
Após a confissão dos cativos presos de que, os “negros do senhor Marquez”
eram os mentores e “verdadeiros” culpados, houve uma solicitação da população
para a prisão e castigo desses últimos. Embora o juiz tenha atendido ao solicitado
199
De acordo com a Constituição de 1824, capítulo VI, artigo 92 e inciso V era necessária uma renda
líquida anual no valor de cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego para se tornar
eleitor.
77
com o envio de um ofício ao marquês de Baependy, este se recusou a enviar os
escravos denunciados.
Tal atitude causou a reação da “população”, 200 que insistiu na prisão destes
cativos afirmando que a lei é igual para todos. E, por fim, o abaixo-assinado
informava que era de conhecimento de todos que alguns escravos do marquês
andavam armados pela fazenda.201
Com a recusa do marquês de Baependy e, posteriormente, com um novo
apelo da população, o juiz de paz encaminhou pela segunda vez o ofício solicitando
o envio dos cativos denunciados. Por fim, estes foram enviados. Mas ao contrário
dos outros escravos que chegaram todos amarrados, vieram soltos e conduzidos
pelo feitor da fazenda.
Esse procedimento destinado aos outros participantes da conjuração e a
forma como foi realizada a audição desses escravos gerou nas pessoas que
assinaram o abaixo-assinado um descontentamento.
Com a apresentação dos escravos do Marquês, “finalmente Augustissimo sr
Juiz de Paz lhe comette juramento, se sim, ou não tem parte na conjuração: elles
dizem que não” e, assim, todos voltaram para a fazenda de seu senhor.
Nota-se que não se verificou o mesmo tratamento destinado aos cativos de
Baependy para com os outros envolvidos na conjuração. Estes, antes de serem
interrogados, foram açoitados e somente após o castigo informaram a finalidade da
conspiração.
Ao tomar conhecimento da atitude do juiz de paz, os responsáveis pelo
abaixo-assinado de Valença se indignaram e solicitaram justiça, argumentando que
por muito menos vários escravos foram presos, como também homens livres
frequentaram a prisão até terem provadas suas inocências.
Por conseguinte, em função do que se observou na apuração dos fatos, a
população encaminhou o abaixo assinado a “Majestade Imperial e Constitucional”
solicitando a substituição do juiz de paz.
Inserida no contexto regencial que apresentou diversas insurreições, a
conjuração de Valença era mais um exemplo da instabilidade do período, além de
apresentar uma das questões que moveram as discussões em torno do juiz de paz
200
201
O abaixo-assinado não informa os nomes dos assinantes, apenas o número de 120 assinaturas.
Abaixo-assinado com 120 assinaturas dos moradores da vila de Valença. Tipografia Torres 1831.
Documento gentilmente cedido pelo mestre Antônio Carlos, formado pela Universidade Severino
Sombra.
78
durante o debate sobre o federalismo e a centralização. Em outras palavras, a
parcialidade no exercício da função.
Mesmo apresentando discussões sobre a forma como agiam os juízes de
paz, consolidou-se a estrutura judicial em torno da função com a promulgação do
Código do Processo Criminal em 1832.
Contudo, a criação do ofício de juiz de paz é um elemento importante na
reforma do sistema judicial e, fez parte do processo de descentralização observada
na regência. Segundo Thomas Flory, sua criação tinha o objetivo de reduzir o poder
do Imperador após o fechamento da Assembleia Constituinte. 202 O exercício da
função não era remunerado e muitos aspirantes políticos preencheram a função nas
capitais. Já nas zonas rurais as famílias proprietárias de terras ocuparam o cargo.
O ano de 1831 vivenciou, em 7 de abril, a abdicação de d. Pedro I e,
consequentemente, o fim do primeiro reinado. Em julho, Valença apresentaria sua
conjuração escrava e no dia 18 de agosto seria criada a Guarda Nacional.
Apesar de estar vivendo um novo momento político de sua história, o Império
do Brasil continuava reproduzindo alguns modelos da época da Colônia.
A forma patrimonial ainda era a base. Fixada em dois grupos, senhores de
terra e militares que no fim formavam um único grupo, observamos o papel
desempenhado pela terra que era distribuída em muitos casos, em troca de favor
real.
Com a criação da Guarda Nacional, verificamos em sua hierarquização a
transposição da hierarquia social. Além dessa reprodução, a guarda foi um exemplo
da militarização de grande parte da sociedade, transformando senhores de terras
em “paramilitares”. Ainda sobre a Guarda Nacional, nota-se sua contribuição para a
estabilização política, ao agregar hierarquicamente indivíduos de diferentes regiões
em torno da ordem institucional.203
Os cargos de oficiais eram exercidos pelos senhores, enquanto a tropa era
formada pelos “de cor e membros das classes trabalhadoras”. 204 Além disso, a
guarda era subordinada ao juiz de paz.
202
RODYCZ, Wilson Carlos. O juiz de paz imperial: uma experiência de magistratura leiga e eletiva
no Brasil. Revista Justiça e História, v. 3, n. 5, 2003, p. 10.
203
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de
janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 24.
204
URICOECHEA, Fernando. O minotauro Imperial. Rio de Janeiro: Difel, 1978. p. 69.
79
Igualmente ao restante do território do Império, a extinta vila de Paty do
Alferes apresentava instabilidade, principalmente no período regencial. Neste
contexto, os projetos federalistas e descentralizadores ganharam mais forças
ocasionando grandes discussões. Nesse debate, o juiz de paz foi utilizado tanto
como exemplo positivo quanto negativo. Defensores da centralização o criticavam
enquanto os federalistas o defendiam.
A criação da função de juiz de paz representou, num certo sentido, uma
resposta a esse anseio federalista, num movimento no sentido da descentralização
do poder Judiciário. O cargo trazia algumas novidades, desde a sua forma de
eleição até as suas atribuições. A sua forma eletiva foi bem vista por não estar
diretamente ligada ao poder Judiciário, uma vez que qualquer eleitor podia se
candidatar sem ter a obrigatoriedade da formação em direito. O juiz de paz, além de
substituir o juiz ordinário dos tempos da Colônia, também agregou um aumento de
sua autoridade perante às ações penais. Assim, com a promulgação do Código do
Processo em 1832, as funções do juiz de paz superaram as do juiz ordinário. 205
Anterior e posteriormente à criação do cargo de juiz de paz, muitos políticos
se posicionaram a favor e contra a função. Alguns, como os liberais exaltados, eram
a favor em razão da possibilidade de maior acesso ao poder Judiciário. Outros,
como os moderados, temiam que o cargo fosse ocupado por qualquer pessoa.
O receio quanto à ocupação do cargo era bem relativa, até porque para se
candidatar era necessário ser eleitor e existiam alguns impedimentos, como, a
necessidade de uma renda líquida anual no valor de 100 mil réis por bens de raiz,
indústria, comércio ou emprego, conforme capítulo VI, artigo 92 e inciso V 206 da
Constituição de 1824.
Dessa forma, verificaram-se monopólios exercidos pelas famílias mais ricas
na ocupação da função. A utilização de alianças para eleger um juiz de paz era
corriqueira, pois as famílias se utilizavam de o cargo para lançar alguns de seus
membros objetivando maior expressão política. Logo, por meio de uniões, as
grandes famílias se revezavam no exercício da função, manipulando muitas das
ações em benefício próprio ou do “bando” do qual participava, visto que era assim
205
COSER, Ivo. Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil 1823-1866. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 66.
206
Constituição de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 18 de março de
2008.
80
realizada a “cabala”.207 Para Evaristo da Veiga208 esse “acordo” marcaria o processo
de eleição para a ocupação da função de juiz de paz. 209
Na obra, Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil, Ivo
Coser tem como objeto o pensamento político de Paulino José Soares de Souza. O
caminho escolhido é a análise do posicionamento do político frente aos debates em
torno das principais leis e códigos discutidos na regência. Na sua análise, o
historiador tenta entender o uso dos termos civilização e sertão utilizados por
Paulino José. A civilização era o litoral e as grandes cidades como polo irradiadores
do bom exemplo de viver em sociedade; o sertão representava a barbárie, além de
estar associado às disputas locais. Dentro desse contexto, o juiz de paz sofreu duras
críticas do político que tinha como objetivo a centralização do poder para a obtenção
de o controle total da justiça,210 pois muitas localidades encontravam-se divididas em
disputas entre grandes famílias que se utilizavam da autoridade do cargo de juiz de
paz para resolver questões particulares.
Segundo Ivo Coser, o federalismo do período regencial era pensado a partir
do município,211 sendo o juiz de paz peça fundamental em todo esse processo de
descentralização. As críticas de Paulino José Soares de Souza procuravam
demonstrar a fragilidade do projeto federalista.
Como muitos juízes de paz eram parciais, as críticas salientavam a
deficiência de um dos principais pontos do projeto federalista. Por sua vez, o
federalista Evaristo da Veiga defendia a ideia de que o cidadão não deveria deixar
que uma pessoa enviada por um poder ausente tomasse as rédeas de seus
assuntos.212 Para ele, os interesses individuais eram a forma de mobilizar a
população para o federalismo.
Na insurreição de 1838, ocorrida na extinta vila de Paty do Alferes, o debate
em torno da função do juiz de paz assumirá novos contornos.
207
Arranjo de votos maquinado por um grupo objetivando a eleição de um candidato. Apud COSER,
Ivo. Op. cit., p. 78.
208
Político e proprietário do jornal Aurora Fluminense.
209
COSER, Ivo. Op. cit., p. 78.
210
Ibidem, p. 259.
211
Idem.
212
COSER, Ivo. Op. cit., p. 85.
81
2 Uma fissura no costume
A quebra de um costume, uma fissura no silêncio 213 da escravidão? O que teria
motivado a insurreição do dia 6 de novembro?
Formação de quilombos, insurreição, revoltas, fugas e tantas outras maneiras
de se sublevar aconteceram em muitos momentos quando os escravos percebiam
que a elite senhorial estava dividida. 214 Tal percepção só era possível por ser o
proprietário um dos mais fortes conectores da vida cativa com o mundo exterior à
fazenda,215 o que demonstra uma ligação direta do mundo da casa grande com o
mundo da senzala, no qual cada um vivia sob a influência do outro.
O efeito desta influência pode ser percebido diretamente nas revoltas –
mesmo quando sufocadas, deixavam uma espécie de “recado” subentendido aos
senhores. O receio de uma nova revolta se fazia presente na vida da casa grande,
possibilitando momentos favoráveis às negociações dos escravos com os
proprietários, os quais viviam apreensivos com a segurança de sua vida e de sua
família.216
O medo de novas revoltas gerou, logo após a insurreição de 6 de novembro,
a criação da comissão permanente de fazendeiros da vila de Vassouras, 217 que
funcionou durante toda a década de 1840. Com a proibição do comércio
transatlântico em 1850 e, consequente, o abastecimento de mão-de-obra escrava
oriunda do nordeste do Império, a comissão publicou, em 1854, um manual.
Os escravos do nordeste traziam em seu “currículo” algumas revoltas que
abalaram o Império, basta citarmos a revolta dos Malês ocorrida em 1835, na Bahia,
quando cativos africanos e mulçumanos provocaram medo em toda classe
senhorial.
Mas vários outros motivos impulsionaram a sublevação dos escravos durante
o período Colonial e Imperial do Brasil, entre eles: separação de familiares, abusos
213
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de
teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007. (Coleção História).
214
SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 10.
215
216
217
ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p. 149.
SILVA, Eduardo; REIS, João José. Op. cit., p. 33.
Instruções para a comissão permanente nomeada pelos fazendeiros. In: BRAGA, Greenhalgh H.
Faria. De Vassouras: história, fatos, gente. Rio de Janeiro: Ultra-set Ed., 1978. p. 59.
82
físicos, desrespeito aos dias santos, (por serem dias destinados ao cuidado de sua
roça ou ao culto de seus santos), etc.
Durante o período posterior à transferência da sede administrativa da vila de
Paty do Alferes para Vassouras, por mais ou menos quatro anos, os escravos do
capitão-mor Manoel Francisco Xavier viviam, segundo o chefe da Guarda Nacional,
Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, numa espécie de atropelo da ordem
senhorial.218 A “anarquia reinou” nos limites da propriedade da Maravilha que, de
acordo com a comunicação do chefe da Guarda Nacional ao presidente da
Província, estava presenciando espancamentos e mortes de capatazes e outros
tantos fatos durante esse espaço temporal.219
Esse período é um momento de instabilidade senhorial e, consequentemente,
de instabilidade política, basta salientar que um dos senhores, Joaquim Ribeiro de
Avelar, que votou a favor da mudança da sede para Vassouras, um ano depois,
apareceu solicitando a anexação de Paty do Alferes ao município de Paraíba do
Sul.220
Após a transferência da sede, o isolamento do capitão-mor Manoel Francisco
Xavier frente aos outros senhores, indicada na sua decisão de não batizar seus
escravos, ocasionou a adjetivação de suas propriedades pelos Wernecks como
anárquicas. Mas teria sido esse o motivo da insurreição?
No processo de homicídio movido contra o escravo Manoel Congo pela morte
dos dois pedestres no confronto com a Guarda Nacional, lhe é perguntado o motivo
de terem fugido. Ele apresenta como principal motivação o assassinato de Camilo
sapateiro, efetuado por Jacques Crioulo:
[...] perguntado porque tinha fugido para o mato, respondeo que em casa de
seo senhor houvera huma morte, em hum de seos parceiros, por nome Camilo
sapateiro, prespetrada pelo escravo do mesmo senhor, por nome Jacques
crioulo, é que sabe que ora o dito Jacques que matara o dito Camilo por este
mesmo diser antes de morrer: e que em conseqüência desta morte elle reo e
outros sahirão da fazenda da Freguesia e forão para a outra fazenda da
Maravilha partici digo, da Maravilha onde se achava seo senhor e lhe
participarão o acontecimento, e eu seo senhor respondera que daria as
providencias e que fugirão [...].221
218
Comunicação do chefe da guarda nacional ao presidente de província do Rio de janeiro. In:
SOUZA, José Antonio Soares de. O efêmero quilombo de Pati do Alferes. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 295, p. 43, 1972.
219
220
Idem.
RAPOSO, Ignácio. História de Vassouras. Niterói: Seec, 1978. p. 35.
83
De acordo com o depoimento de Manoel Congo, logo após comunicarem ao
senhor o assassinato de Camilo, o mesmo, por sua vez, ficou de tomar as devidas
providências, o que não aconteceu. E, assim, aproveitaram os escravos para
fugirem. Mas se ficarmos apenas restritos a esta versão, acabamos por limitar o
entendimento sobre a insurreição.
A sublevação ocorreu somente após um mês e meio ou dois do
assassinato,222 o que demonstra que os cativos aguardaram uma punição do
assassino, não ocorrida. Só após verificar que Jacques Crioulo continuava impune
foi que a insurreição ocorreu.
Ao analisarmos a comunicação do chefe da Guarda Nacional ao presidente
de Província durante a insurreição, em 8 de novembro de 1838, é comentada a
morte de um escravo ocorrida no mês anterior. Esta informação demonstra que a
insurreição não ocorreu em decorrência da notificação do assassinato e, sim, após
um período de espera para o cumprimento da promessa. “Há pouco mais de um
mês que mataram um parceiro a tiros, e foi, por ordem do capitão-mor, sepultado no
maior segredo, e só se soube pela boca pequena que tal crime se havia
perpetrado”.223
Ainda sobre essa comunicação é “revelado” que o capitão-mor Manoel
Francisco Xavier tratou de “consertar” tudo dentro do maior segredo, sem que fosse
levado ao conhecimento das autoridades o assassinato. Assim, ao tentar resolver
internamente e sem conseguir atender ou atingir o que esperavam os seus
escravos, terminou ocasionando a realização da migração destes cativos,
quebrando ou ferindo um costume. Francis Bacon considera que o costume é uma
conduta inercial, habitual e induzida,224 enquanto para E. P. Thompson vigora num
contexto de normas e tolerâncias sociológicas.225
221
Processo-crime de insurreição, fls 19. Centro de Documentação Histórica (CDH), Universidade
Severino Sombra (USS).
222
Comunicação do chefe da guarda nacional ao presidente de província do Rio de janeiro. In:
SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 43.
223
Ibidem, p. 45.
224
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Tradução Rosaura Eichemberg. 3. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 14.
225
Ibidem, p. 89.
84
O poder de um senhor perante seus escravos poderia correr perigo com a
quebra de um costume, quando este abusava dos direitos, ferindo e enfurecendo 226
sua escravaria. O abuso fora o assassinato de Camilo, um afrontamento do
costume, entendido como lugar de conflito de interesses.
No momento do assassinato, os cativos não só o comunicaram ao capitãomor Manoel Francisco Xavier, como, também, solicitaram medidas que punissem o
assassino. A ausência desta ação para amenizar a morte do escravo Camilo
provocou na escravaria uma reação.
Considerando que a informação provoca reação, podemos considerar a
hipótese dos cativos do capitão-mor se utilizarem de o conhecimento do momento
político vivido pelo seu senhor para realizar a insurreição.
Em vários momentos, o conhecimento enquanto “verdade” é manipulado com
o intuito de manter a ignorância do sujeito explorado das coisas alheias à sua rotina
para melhor suportar, sem se revoltar, as fadigas e dificuldades de sua vida. 227
Para que não houvesse uma reação em momentos adversos, neste caso
tomando a adversidade como o período de isolamento político do capitão-mor após
a transferência da sede administrativa, era necessária a ignorância da população 228,
que só seria alcançada por meio do controle do discurso “verdadeiro”, 229 cujo
objetivo é sempre
a exclusão da maior parcela da população da real intenção
daquilo que pode ser dito, conhecido ou vivido. No entanto, no processo da
insurreição, esse conceito acabou por se mostrar ineficaz.
A eficácia não aguardada pelos escravos e executada durante a insurreição
foi a reação rápida e articulada das autoridades para capturá-los.
Escravos e
autoridades, conhecedores dos desdobramentos políticos vivenciados na freguesia
de Paty do Alferes, após a transferência da vila, se aproveitaram, cada um à sua
maneira, das circunstâncias para alcançarem seus objetivos.
Com tal cisão da elite local, é possível que os escravos tenham pensado que
os representantes da justiça não acolheriam de imediato o pedido de socorro do
capitão-mor
226
Ibidem, p. 96.
227
Ibidem, p. 15.
228
Idem.
229
Manoel
Francisco
Xavier,
em
função
de
estarem
rompidos
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 3. ed. São
Paulo: Edições Vozes, 1972.
85
politicamente. E, ainda, por defenderem posicionamentos distintos frente a seus
escravos.
Porém, as autoridades, representadas pelo núcleo familiar Ribeiro de
Avelar/Werneck, enxergaram na insurreição a possibilidade de colocar um ponto
final nas questões que se arrastavam desde antes da fundação da vila de Paty do
Alferes em 1820.
Retornando ao que consideramos como quebra do costume, nota-se que para
viver em liberdade, caso o sucesso absoluto fosse alcançado, os cativos teriam que
viver fora das disciplinas da escravidão. Assim, viveriam de forma contrária aos
costumes adquiridos no dia-a-dia da vida escrava.
Logo, os insurretos se encontrariam lutando, também no interior de sua
própria subjetividade, contra o processo de escravização que sofreram durante a
vida. As senzalas funcionavam como um tipo “arcaico” de quartel, no qual todos os
escravos dividiam o mesmo espaço acordando na mesma hora, coordenados pelo
feitor e se recolhendo no mesmo horário após o dia de trabalho.
A escravização se utiliza de vários métodos e um deles é o cumprimento do
horário. O escravo começava sua jornada às 5h da manhã, almoçava às 8h, jantava
às 13h e ceava às 21 h. 230 Mas antes de começarem a trabalhar, acontecia a divisão
dos destinados a cuidar da roça, casa, sem contar com os especializados como os
ferreiros, carpinteiros, etc. Essa distribuição mantinha um melhor controle das
atividades, sem que ocorresse perda de tempo, e quando acontecia, o escravo era
castigado justificando a essência de todos os sistemas disciplinares, 231 que tem no
castigo a função de diminuir os desvios.232
Desta forma, o escravo castigado teoricamente não voltaria a cometer o delito
que o levou à punição e ainda serviria de exemplo aos demais.
Vários foram os exemplos de castigo fornecidos pela escravidão aplicados ao
cativo quando infligia alguma regra ou quebrava alguma norma. A utilização do
castigo físico disciplinava o considerado “indisciplinado”.
Um exemplo dentre muitos é o caso do escravo Januário que durante um dia
de serviço demorou-se um pouco mais na senzala e acabou sendo castigado pelo
230
Carta do barão de Pati ao filho. In: BRAGA, Greenhalgh H. Faria. Op. cit., p. 38.
231
FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 149.
232
Ibidem, p. 150.
86
feitor.233 O exemplo do escravo citado demonstra o uso do exercício da violência,
que necessita de meios de coerção visíveis para a manutenção do poder 234 e para a
continuidade da obediência.
O capitão-mor Manoel Francisco Xavier quando castigava demais seus
escravos extrapolava no uso da coerção, o que acabou provocando indignação em
toda senzala, e assim possibilitando, talvez, uma desordem dentro de suas fazendas
em comparação com as outras da localidade. Esse modo de lidar ocasionou o uso
do termo “anarquia” por parte das autoridades para descrever o convívio e a
situação de sua escravaria e também por ter se voltado internamente para as
questões referentes aos seus cativos como a ausência de batismo entre 1835 até o
seu falecimento em 1840.235
A insurreição migratória demonstrou uma fissura na disciplina aplicada
durante a escravidão, uma descontinuidade da vida diária dos escravos que
buscaram a liberdade dentro de um modelo rígido que não possibilitava tamanha
insubordinação. Mas ao mesmo tempo em que se buscou essa liberdade longe dos
mandos e desmandos de um senhor, em nenhum momento se apresentou uma
proposta para a quebra do sistema escravista. Nota-se uma disposição de coabitar
dentro desse mesmo modelo com as suas próprias “leis” e com suas liberdades
adquiridas por meio da insurreição.
A experiência vivida pelos escravos do capitão-mor foi possível em função de
o próprio ter quebrado um costume quando prometeu tomar providência após a
morte do escravo Camilo e não a cumpriu.
2.1 Análise da comunicação da insurreição dos escravos
No momento da insurreição escrava, o presidente da província do Rio de Janeiro,
Paulino José Soares de Souza, se encontrava em Vassouras e, dirigia-se à Piraí
para participar da comemoração de sua inauguração enquanto vila, marcada para o
dia 11 de novembro de 1838. Por meio de um comunicado do chefe da Guarda
Nacional, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, datado em 8 do novembro,
233
Processo crime de ofensas físicas; réus: Círio, Antonio Moçambique e outros escravos de
Marcelino José d’Avelar. Apud GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e
comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
234
FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 143.
235
Livro de Batismo de escravos 2. Paróquia Nossa Senhora da Conceição de Paty do Alferes, Rio de
Janeiro.
87
recebia o presidente a informação do ocorrido. Neste documento, encontrava-se, em
anexo, a comunicação do juiz de paz de Paty do Alferes, José Pinheiro de Sousa
Werneck, recebida anteriormente.
Esse anexo trazia a notícia do dia do ocorrido e a quantidade de escravos
envolvidos. Além disso, era informado que os escravos insurretos pertenciam ao
capitão-mor Manoel Francisco Xavier, proprietário das fazendas da Maravilha e
Freguesia, estimando-se um participação de “cento e poucos” escravos.
O juiz de paz informava que a fazenda da Maravilha se encontrava “[...] da
mais completa anarquia, com muita vivacidade [...]”, 236 o que considerou como o
motivo da insurreição. Por sua vez, o chefe da Guarda Nacional, Francisco Peixoto
de Lacerda Werneck, utilizou da morte de um escravo para explicar a insurreição:
“Há pouco mais de um mês que mataram um parceiro a tiros, e foi, por ordem do
capitão-mor, sepultado no maior segredo [...]”. 237 Ainda, na busca de um motivo que
justificasse a fuga, citou alguns acontecimentos vivenciados dentro das propriedades
do capitão-mor Manoel Francisco Xavier.
Em outra ocasião têm sido feridos homens brancos e espancados mortalmente
capatazes desta grande fazenda; fatos que o mesmo capitão-mor trata de
capear e esconder, e só se sabe por seus fâmulos ou escravos [...]. Tantos
fatos sucedidos ultimamente, por espaço de quatro anos [...]. 238
Detendo-se um pouco mais na comunicação das autoridades envolvidas,
notamos que o presidente de Província, Paulino Jose Soares de Souza, recebeu a
comunicação sobre a insurreição no dia 10 de novembro e, no mesmo dia, enviou
uma resposta ao chefe da Guarda Nacional e ao juiz de direito e ao juiz de paz para
que tomassem providências quanto ao ocorrido. Logo após, solicitou ao corpo
policial localizado em Niterói que enviasse uma força ao local da fuga, “mas não
devia de ser muita”.239
Pouco depois de expedir as ordens soube pelos próprios de Vassouras que
“[...] a sublevação não inspirava o cuidado que, de início, infundira ás autoridades
locais”.240 Assim sendo, o presidente seguiu de volta para a capital, onde comunicou
236
Apud SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 43.
237
Ibidem, p. 45.
238
Ibidem, p.43.
239
Ibidem, p. 45.
240
Idem.
88
e justificou ao ministro da Justiça, Bernardo Pereira de Vasconcelos, o seu retorno,
após ter recebido notícias satisfatórias em relação à insurreição, considerada por ele
“[...] não era negócio que pudesse produzir mui graves receios [...]”. 241 Por fim, no dia
16 do novembro recebeu o comunicado do juiz de direito interino de Vassouras
sobre o fim da insurreição.
Ambas as autoridades, juiz de paz e chefe da Guarda Nacional, eram
taxativas que tal ocorrido só fora possível em função da “anarquia” existente nas
fazendas do capitão-mor, a qual durava mais ou menos quatro anos. Portanto, a
insurreição era algo já esperado.
Mas, no ofício encaminhado pelo chefe da Guarda Nacional ao presidente de
Província, nota-se que além da “anarquia” apresentada como responsável pela
insurreição dos escravos, o modo como o capitão-mor lidava com seus cativos
também foi considerado como causa: “Há pouco mais de um mês que mataram um
parceiro a tiros, e foi, por ordem do capitão-mor, sepultado no maior segredo e só se
soube pela boca pequena que tal crime se havia perpetrado”. 242
A passagem indica ainda que, esse mesmo senhor, capitão-mor Manoel
Francisco Xavier, não comunicava às autoridades os acontecimentos das suas
propriedades. Mesmo se encontrando obrigado a informar a insurreição de seus
escravos, só a comunicou às autoridades após dois dias do seu início. Essa atitude
demonstra o “afastamento” social de Manoel Francisco Xavier, principalmente, após
a transferência da vila de Paty do Alferes para Vassouras.
Outro dado importante foi a intenção do chefe da Guarda Nacional, Francisco
Peixoto de Lacerda Werneck, de provocar uma maior preocupação no presidente de
Província, Paulino José Soares de Souza. Baseamos nossa afirmação na seguinte
passagem: “Devo previnir a Vossa Excelência que tem este proprietário 500 e tantos
cativos; e que no círculo de uma légua existem as fazendas das Pindobas, Pau
Grande, Guarabu e Anta, cada uma com mais de 300 [...]”. 243 Mas ao verificarmos as
informações contidas na comunicação do juiz de paz, notamos que participaram da
insurreição “cento e tantos escravos” 244 do capitão-mor Manoel Francisco Xavier.
241
Ibidem, p. 46.
242
Ibidem, p. 43.
243
Ibidem, p. 44.
244
Ibidem, p. 42.
89
Dessa maneira, podemos afirmar que a maioria dos cativos não participou da
insurreição.
Ainda analisando as informações do chefe da Guarda Nacional, observa-se a
citação de diversas fazendas com grande número de cativos, que em nenhum
momento foram alvos dos insurretos. Por meio desse conhecimento, ponderamos
mais uma vez sobre a intenção do chefe da Guarda Nacional, Francisco Peixoto de
Lacerda Werneck, em alarmar o presidente de Província, Paulino José.
Salientamos que a única fazenda “visitada” pelos insurretos fora a de morada
do capitão-mor Manoel Francisco Xavier, a Maravilha. O que demonstra que a
intenção dos insurretos não era tomar de assalto as outras propriedades.
Uma vez que a intenção não era atacar as outras propriedades, então por que
uma intensa movimentação das autoridades locais? Sendo que essa mesma
insurreição não despertou maiores receios ou cuidados do presidente de Província,
o que estaria em jogo?
A “euforia” por parte do juiz de paz e do chefe da Guarda Nacional em pôr fim
à insurreição se deve à participação dos escravos pertencentes ao capitão-mor
Manoel Francisco Xavier. Esse senhor era inimigo político da família Werneck desde
os tempos da fundação da vila de Paty do Alferes, quando se posicionou contrário
ao desejo do patriarca dos Wernecks, Inácio de Souza Werneck, defensor da
implantação da vila dentro dos limites da propriedade do capitão-mor Manoel F.
Xavier.
Com o surgimento dessa “oportunidade”, os Wernecks se utilizaram dos seus
cargos para subjugar um antigo desafeto. Esse anseio fica mais nítido no
descumprimento de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck do decreto de 6 de julho
de 1836.
O decreto em questão impunha a autorização do presidente de Província para
a mobilização de um destacamento superior a 20 homens. Mesmo com a existência
desse decreto, o chefe da Guarda Nacional disponibilizou em 10 de novembro de
1838, uma força composta por mais de 150 homens para atender à solicitação do
juiz de paz de Paty do Alferes, José Pinheiro de Sousa Werneck. 245
Após esse primeiro momento de análise das comunicações informando sobre
a insurreição, passemos à narrativa do juiz de paz, Jose Pinheiro de Sousa
Werneck, sobre a captura dos cativos.
245
Ibidem, p. 47.
90
Segundo o juiz, a mobilização para a captura teve seu início às 6 horas da
manhã do dia 11 de novembro. O destacamento foi dividido em duas colunas:
esquerda e direita. A coluna da esquerda ficou a cargo do major Jordão e do
inspetor de quarteirão José Borges Damasceno, enquanto a da direita estava sob o
comando do tenente-coronel Avelar e do próprio juiz de paz. 246
Durante a “caça” dos insurretos, coube à coluna da direita achar a trilha
deixada pelos cativos e, posteriormente, encontrar 33 ranchos construídos para
pernoitarem. Depois desse primeiro contato com os rastros dos sublevados, essa
mesma coluna encontraria mais ranchos e os próprios escravos, após uma “dura
marcha de seis léguas em matos agrestes”, ocorrida às 5 horas da tarde. 247
Quando do encontro, um cativo dera o aviso da chegada da tropa e, segundo
o juiz de paz “um número de 150 valeram-se das suas armas de fogo e outras
cortantes [...], fizeram uma linha, pararam e gritaram: atira caboclos, atira diabos
[...]”.248 Dessa forma, foram atingidos quatro pedestres, sendo dois mortalmente e
outros dois feridos, um gravemente.
No ofício encaminhado pelo juiz de paz ao presidente de Província
encontramos essa narrativa:
[...] pusemo-nos em seguimento dos negros no dia 11 pelas 6 da manhã, e
depois de uma penosa marcha de 6 léguas, pouco mais ou menos, em matos
agrestes, encontramos, às 5 horas da tarde, os negros aquilombados à beira
de um córrego, os quais, quando nos sentiram postaram-se, uma porção deles
que se achavam nos ranchos, em um morro que nos ficava fronteiro, e dali nos
receberam, dando-nos uma descarga de mosquetaria, à qual segui-se um forte
tiroteio dos nossos, efetuando-se a diligência com morte de sete negros (vistos)
e 22 presos, sendo parte deles chumbados; os outros se puseram em
debandada total.249
Posteriormente a esse embate, verificamos uma perda de 29 escravos no
total dos insurretos. Com a debandada foi deixada para trás toda bagagem, a qual
fora apreendida e destruída. Mas antes de sua destruição, fez-se um levantamento
que segundo o juiz de paz era composta de:
246
Ibidem p. 48.
247
Ibidem, p. 49.
248
Ibidem, p. 50.
249
Ibidem, p. 61.
91
[...] algumas armas latas de pólvora, uma porção de chumbo, muitos
machados, foices grandes e pequenas, uma safra de ferreiro, ferramenta
completa de carpinteiro, muitas facas, mais de quarenta caixas com roupas,
muita comedoria, carneiros, perus, galinhas, que tudo se achava vivo. 250
Observamos que foram apreendidas algumas armas, talvez não a quantidade
que se pensava inicialmente. O próprio juiz utilizou “algumas” para discriminar as
armas de fogo do restante da bagagem, enquanto utilizou a terminologia “muitos”
para as facas e machados.
Comparando essas informações com as contidas no ofício destinado ao juiz
de direito interino de Vassouras, Inácio Pinheiro de Sousa Werneck, o juiz de paz
substituiu a terminologia “algumas” na hora de informar a quantidade de armas de
fogo apreendidas por “diversas”. Essa simples substituição ocasiona um peso maior
à quantidade de armas de fogo existentes, uma vez que o próprio não informava a
quantidade que fora apreendida, justificada “[...] pelo grande trabalho e pouco
espaço de tempo”.251
De acordo com o relato, o confronto iniciou-se às 5 horas da tarde e, após o
tiroteio, os escravos foram perseguidos por mais ou menos uma hora 252, ou seja,
deixando a entender que até às 6 horas da tarde todos ainda se encontravam dentro
da mata. Todavia, se compararmos essa informação com a versão do tenentecoronel Avelar sobre a bagagem dos escravos, nota-se que não é citada a existência
de armas de fogo:
[...] mais de 20 arrobas de açúcar, [...] vinte galinhas, cinco perus, dois
carneiros [...], grande quantidade de utensílios de cozinha, machado, foices,
enxadas, cavadeiras, ferramentas de carpinteiro, de ferreiro, uma bigorna,
quarenta a cinqüenta caixas com roupa fina e alguma engomada, grande
quantidade de periódicos para cartuchame, folhas em que tinham trazidos
pólvora, cento e tantas esteiras, numerosas quantidade de mantas de dormir,
talvez 60$000 rs.253
O relatório do tenente é bem mais minucioso citando até a quantidade de
açúcar, animais, periódicos e folhas utilizadas para o transporte de pólvora. Mas
apesar do minucioso detalhamento, a existência de armas de fogo não foi informada,
250
Ibidem, p. 51.
251
Ibidem, p. 51.
252
Ibidem, p. 50.
253
Ibidem, p. 51.
92
e só viemos ter a certeza da existência, quando observamos o interrogatório de
Miguel crioulo, que citou o número de 11 armas em poder dos escravos. 254
Ainda analisando as informações do tenente-coronel Avelar, verificamos que
foi queimado tudo aquilo que não pôde ser carregado pelos “camaradas”, em função
da aproximação da noite. Essa atitude tinha o objetivo de tirar todo e qualquer
recurso dos cativos, se esses voltassem ao local do embate para recuperar algum
objeto. Assim, com a destruição da bagagem os “camaradas” chegaram à fazenda
do capitão Carlos de Almeida Jordão255 às “ave-marias”.256*
Enfim, com o recuo da tropa para pernoitar, somente no dia seguinte fora
realizada a retirada dos dois corpos dos pedestres mortos. Essa nova expedição
estava composta por uma escolta de 60 homens, os quais, além de retirar os corpos,
buscavam por mais cativos e encontraram dois feridos nas pernas.
Em ofício encaminhado ao ministro da Justiça, o juiz de direito informava o
resultado do embate do dia 11 de novembro e as consequências para ambos os
lados. E, notamos, mais uma vez, a utilização de “algumas” para discriminar a
existência de armas de fogo. Mas em nenhum momento nas comunicações das
autoridades é afirmado o número exato dessas armas de fogo.
Ao compararmos a quantidade de escravos com o número de armas
informado por Miguel Crioulo (11), notamos que mais de 90% dos cativos não se
encontravam armados. Assim, ponderamos sobre a inferioridade dos insurretos
frente aos mais de 150 homens da força de captura, os quais, com certeza, se
encontravam armados.
Essa comparação é interessante, pois demonstra que o embate não fora tão
difícil para a força de captura. Além dos escravos terem um menor número de armas
de fogo, uma parte dos insurretos era composta por mulheres. Outro dado se refere
à dispersão dos cativos, pois muitos estavam ocupados construindo ranchos para
pernoitarem e outros caminhavam mais a frente realizando picadas para facilitar a
caminhada. Pela relação dos objetos levados pelos insurretos, é possível levantar a
hipótese de que a rebelião foi bem preparada.
254
Apud PINAUD, João Luiz Duboc. Insurreição negra e justiça. Rio de Janeiro: Ed. Expressão e
Cultura – Exped Ltda., 1987. p. 49.
255
Fazenda em que pernoitaram.
256
SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 51.
* Às 6h da noite.
93
No dia 12 de novembro de 1838, houve outra comunicação entre o juiz de
paz, José Pinheiro de Sousa Werneck e o juiz de direito interino de Vassouras,
Inácio Pinheiro de Sousa Werneck, informando que os escravos tinham tudo para
estabelecer uma fazenda.257 E, aproveitando o momento, informava a quantidade de
escravos envolvidos na fuga: “[...] sim, mais de duzentos”. 258
Na comunicação do capitão-mor Manoel Francisco Xavier, endereçada ao juiz
de paz, José Pinheiro de Sousa Werneck, foi informado que oitenta e poucos
escravos haviam fugido na primeira noite e, após o ataque à fazenda da Maravilha,
esse total passou a ser de “cento e tantos”. 259 Por sua vez, o juiz de paz informava
no dia 12 de novembro que o total de insurretos superava duzentos.
Teria essa insurreição a participação de cativos de outros senhores? Essa
dúvida é sanada com o interrogatório feito ao escravo Epifâneo, propriedade de
Paulo Gomes Ribeiro de Avelar,260 no processo de insurreição.
Durante o interrogatório dos dois processos decorrentes da insurreição, os
escravos ouvidos informaram que a quantidade em sublevação era mais ou menos
“duzentos e poucos”. Esse total era a soma de todo o grupo que contava com a
participação de cativos de outras fazendas. Por sua vez, na comunicação entre os
Wernecks, juiz de paz (José Pinheiro de Sousa Werneck – e juiz de direito interino
(Inácio Pinheiro de Sousa Werneck), era informada uma quantidade acima da
constatada pelo próprio capitão-mor em relação a seus escravos: “Faltam ao
capitão-mor 250 a 300 escravos de um e outro sexo [...]”. 261
Por que um aumento no número de escravos do capitão-mor Manoel
Francisco Xavier? Estaria escondendo a participação dos cativos de Paulo Gomes
Ribeiro de Avelar? Ou seria uma maneira de justificar a mobilização da guarda
nacional junto ao presidente de Província, que por sua vez comunicou o ocorrido ao
ministro da Justiça?
Em outro ofício endereçado ao ministro da Justiça, Bernardo Pereira de
Vasconcelos, pelo presidente de Província Paulino José Soares de Souza, era
solicitado: “[...] averiguar cuidadosamente a origem e causa da sua sublevação, e
257
Apud SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 51.
258
Idem.
259
Ibidem, p. 42.
260
Processo de insurreição, fls 32. CDH, USS.
261
Apud SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 52.
94
punir os seus autores.262 Esse pedido demonstra que Paulino José não acatou de
imediato a justificativa dada para explicar a insurreição. A “anarquia” nas
propriedades do capitão-mor Manoel Francisco Xavier foi utilizada tanto pelo juiz de
paz, José Pinheiro de Sousa Werneck, quanto pelo chefe da guarda nacional,
Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, como um dos motivos da sublevação dos
cativos.
Mas ao verificarmos a opinião sobre a insurreição do presidente de Província,
Paulino José, diz que: “a sublevação não inspirava o cuidado que, de início, infundira
ás autoridades locais”.263
No mesmo dia em que participou ao ministro da Justiça, Bernardo Pereira de
Vasconcelos, as informações e atitudes tomadas frente ao sucedido, o presidente de
Província, Paulino José, redigiu uma portaria encaminhada ao juiz de paz.
Primeiramente, agradeceu todo o zelo e a forma como cuidou do evento,
para em seguida, solicitar esse mesmo zelo para perseguir e aprisionar os escravos
que não foram capturados no dia 11 de novembro. Tal solicitação soa como um
“puxão de orelha” do presidente: “Agora, porém, cumpre que Vossa Mercê continue
a empregar esse mesmo zelo e atividade em perseguir e apreender os escravos que
se debandaram [...]”.264
Ainda, na mesma portaria, solicitou uma apuração mais minuciosa, a fim do
Governo formar um juízo definitivo de todo o acontecimento. 265 O juízo do Governo
só foi apresentado no relatório de 1839 e 1840:
Se exceptuarmos alguns porquês desaguisados que tem ocorrido em vários
municípios da província, nascidos de intrigas próprias de povoações pequenas,
e do abuzo com que alguns juizes de paz se servem da terrível arma da
pronuncia em satisfação de ódios e ressentimentos particulares, e bem assim
os acontecimentos ocorridos em novembro próximo passado na fazenda do
capitão mor Manoel Francisco Xavier, na freguesia do Paty do Alferes, cujos
escravos em grande numero se insubordinarão e fugirão, aquilombando-se nos
mattos onde forão perseguidos logo, e presos, sendo depois devidamente
castigados, pode assegurar-se que toda a província tem gozado a mais
profunda tranqüilidade.266
262
Ibidem, p. 60.
263
Ibidem, p. 45.
264
Ibidem, p. 68.
265
Ibidem, p. 68.
266
Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, o conselheiro Paulino José Soares de
Souza, na abertura da 2ª sessão da 2ª legislatura da Assembleia Provincial, acompanhado do
orçamento da receita e despesa para o ano de 1839 a 1840. 2. ed. Niterói: Typ. De Amaral & Irmão,
95
Finalmente, o presidente de Província se colocava frente ao ocorrido
afirmando que tudo não passava de intrigas e abuso da autoridade por parte do juiz
de paz para solução de problemas particulares.
Apesar de Paulino José Soares de Souza criticar a ação do juiz de paz de
Paty do Alferes durante a sublevação, o seu tom é de censura a todos os juízes de
paz que se utilizavam de a função em proveito particular. Ao se reportar à
insurreição, o então presidente de Província tentava minimizar o ocorrido ao
descrevê-lo da seguinte forma: “Se exceptuarmos alguns porquês desaguisados que
tem ocorrido em vários municípios da província, nascidos de intrigas próprias de
povoações pequenas”.267
A posição escolhida pelo juiz de paz desagrada tanto, que logo no início de
seu relatório critica o juiz de Paty do Alferes por se utilizar de o poder a ele delegado
para resolver questões de ressentimentos particulares. Ainda, utilizando-se de sua
crítica para destacar a eleição desta mesma autoridade pelos mesmos partidos
políticos “cujos excessos he mister reprimir”.268
Salientamos que, além de criticar o juiz de paz, Paulino José aproveitava para
reforçar seu posicionamento a respeito do projeto de centralização do poder. O Alvo
de suas críticas, o juiz de paz, era uma das peças do projeto federalista que militava
pela descentralização do poder. Assim, Paulino José Soares de Souza ao mesmo
tempo em que recriminava o juiz de paz de Paty do Alferes, questionava a
efetividade do cargo objetivando atingir o projeto federalista.
Por isso, durante todo o seu relatório se volta em críticas aos juízes de paz
dos municípios, como observado nesta passagem:
[...] e a falta de providencias de alguns juízes de paz e de meios facceis e
promptos para os perseguir a tempo, são na minha opinião, alem de outras
causas geraes de impunidade, os principaes motivos, porque sendo alias tão
freqüente esse delicto, são tão poucas vezes punidos os seus autores. 269
1851. Disponível em: http://www.nd.edu/~kic/brazil/jain.html. Acesso em: 2 de julho de 2008.
267
Idem.
268
Idem.
269
Idem.
96
Em outra passagem, a crítica é sobre a eleição desses juízes: “[...] Se as
eleições não deparão hum juiz de paz activo e intelligente, pouco ou nada aproveita
a acção do juiz de direito, que não obra por si, e cujas funcções se limitão a
recommendações muitas vezes extereis, em comarcas summamente extensas”. 270
Nota-se que o presidente iniciou seu relatório questionando e atacando o juiz de Paz
de Paty do Alferes, ao mesmo tempo em que criticava os juízes de paz da província
como uma forma de atingir o projeto federalista.
Uma insurreição considerada de tão grande magnitude pelo juiz de paz,
nunca poderia ter sido destruída com uma busca, como ocorrera. A princípio contava
com mais de duzentos escravos que após o primeiro confronto sofreram uma baixa
de 29 pessoas, sendo sete mortos e 22 presos. Diante dessa informação e da
ausência de uma nova busca, ficam duas questões: todo o evento teria sido
exatamente como informado ao presidente de Província? Sendo afirmativa a
resposta, por que a ausência de outra busca após toda a mobilização de mais de
150 homens?
2.2 Repercussão da insurreição
A insurreição escrava gerou grande repercussão nos periódicos da Corte. Algumas
matérias informavam a população sobre o ocorrido que, segundo as autoridades,
colocou toda a região em estado de alerta. De acordo com as mesmas, o medo era
que a sublevação chegasse a outras fazendas. Mas lembremos que não houve
ataque a nenhuma outra propriedade.
Durante o mês de novembro de 1838, uma matéria em especial nos chamou
a atenção. No dia 30, o jornal Sete d’Abril publicou, a pedido, um artigo de um
fazendeiro com o pseudônimo “Um vizinho do capitão-mor, não influente no lugar”. O
artigo visava pôr um ponto final nos rumores publicados no jornal O Chronista.
Durante esse mesmo mês, o jornal havia informado que os efeitos da insurreição
tinham aumentado em função das intrigas entre os fazendeiros. 271 Por sua vez, a
matéria do Sete d’Abril dizia:
Os escravos do capitão-mor Manuel Francisco Xavier são conhecidos, desde
muito tempo, por desordeiros e levantados; têm dado já a morte a muitos
capatazes e outros parceiros, e parece que mesmo bem perto da residência do
270
271
Idem.
Periódico O Chronista Apud GOMES, Flávio dos Santos. Op. cit., p. 199.
97
senhor. Que vizinho influente, pois, poderia contribuir para semelhante
acontecimento? É provável que esse vizinho influente também tenha escravos;
e poderia querer tão funesto exemplo, ainda mesmo, supondo que se tratava
de uma simples fuga? Os motivos devem ser procurados no tratamento que dá
o capitão-mor a seus escravos, umas vezes afagando-os demais, outras lhes
dando extravagantes castigos, sem que, por uma e outra coisa, tenha havido
antecedente que o justifiquem; deixando matar a seus olhos os seus mesmos
capatazes, sem tomar providência alguma. Se o capitão-mor tratasse de
exercer uma polícia vigilante nas suas fazendas, castigando e premiando com
circunspecção, certamente nem tivera sofrido semelhante desgosto, e nem
hoje tão escandaloso fato seria imputado a seus vizinhos (grifo nosso). 272
No artigo, o autor chama a atenção para o fato de não haver interesse por
parte de nenhum vizinho influente em contribuir para tal acontecimento (insurreição).
Para o autor, o motivo da insurreição era a forma como o capitão-mor Manoel
Francisco Xavier tratava seus cativos: “[...] umas vezes afagando-os demais, outras
lhes dando extravagantes castigos [...]”. 273
Essa publicação objetivava responsabilizar o capitão-mor Manoel Francisco
Xavier pela insurreição frente aos leitores da Corte. O artigo era uma forma de
silenciar os rumores em torno das disputas locais e, ainda, apresentar o
responsável. Dessa forma, a opinião pública julgaria e condenaria apenas o capitãomor, como se a insurreição tivesse contado apenas com os seus escravos.
Lembremos a participação dos cativos de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar, 274
proprietário do escravo Epifâneo Moçambique, 275 considerado pelos próprios
insurretos como um dos líderes. Este escravo foi citado nos depoimentos de vários
cativos no processo condenatório, mas sequer fora indiciado.
Mariana Crioula informou que quando chegou ao mato “[...] lá achara um
preto de nome Epifâneo de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar, que já se achava com
uma porção de pretos da casa de seu senhor, e que o dito Manuel Congo entregara
ao sobredito Epifâneo a ela e as outras, a fim dele Epifâneo as governar [... ]”.276
Retornando para a publicação do jornal O Sete d’Abril, notamos a intenção de
transformar a opinião pública em julgadora do capitão-mor Manoel Francisco Xavier,
272
O Jornal O Sete d’Abril. Apud Ibidem, p. 200 (grifo nosso).
273
Idem.
274
Ver primeiro capítulo.
275
Único escravo de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar preso, mas não indiciado. Epifâneo prestou
depoimento no dia 23 de novembro de 1838 e, após esta data, não se encontra nenhuma referência
deste cativo no processo de insurreição, apesar de ser apontado pelos próprios insurretos como um
dos líderes.
276
Processo crime de insurreição, fls, 53v. CDH, USS.
98
o que seria para Barthes “o espírito majoritário, o consenso do pequeno burguês, a
voz do natural, a violência do preconceito”.277
Funcionando como um sensor, a opinião pública serviria, ainda, para testar a
forma de tratamento defendida pelo autor do texto. Segundo ele (autor), a melhor
maneira seria: castigando e premiando com circunspecção.
Procurando elementos “indiciários”278, que podem levar a uma compreensão
mais ampla ou até mesmo levantar suspeitas sobre determinado evento,
buscaremos discutir as particularidades apresentadas no texto publicado no
periódico Sete d’Abril pelo vizinho do capitão-mor.
Começando pelo próprio pseudônimo.279 O que estaria escondendo ao se
posicionar como não influente? Seria este vizinho exatamente o contrário, ou seja,
influente?
O texto apresentado no periódico apresenta alguns posicionamentos do
capitão-mor Manoel F. Xavier para com sua escravaria: “[...] umas vezes afagandoos demais, outras lhes dando extravagantes castigos, sem que, por uma e outra
coisa, tenha havido antecedente que o justifiquem [...]”. Mas, o tratamento
apresentado como sendo do capitão mor é uma descrição do autor do texto, que na
escolha das palavras se posicionava em relação à forma de lidar com os escravos.
Para ele, os escravos deveriam ser tratados exercendo uma polícia sempre vigilante
ao mesmo tempo castigando e premiando com prudência.
Mas como se aplicaria tal exemplo na prática do dia-a-dia dos escravos? Para
o exemplo do castigo não faltam penalidades aplicadas aos escravos que, de
alguma forma, se sublevavam. Mas como seria premiar um escravo?
Na busca de indícios que possam responder como um escravo poderia ser
premiado, analisamos o manual escrito pelo barão de Pati do Alferes, Francisco
Peixoto Lacerda Werneck, direcionado ao seu filho recém chegado da Europa e sem
nenhuma experiência de como lidar com os escravos. 280 Esse manual apresenta
277
BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 58.
278
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução Federico Carotti. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
279
Prática comum utilizada pela grande imprensa nas matérias pagas durante o século XIX.
280
Carta do barão de Pati do Alferes ao filho. Apud BRAGA, Greenhalgh H. Faria. Op. cit., p, 37.
* Como uma conduta inercial, habitual e induzida, segundo Francis Bacon . In: THOMPSON, E, P.
Op. cit., p. 14.
99
alguns modelos de premiação que, na realidade, tem como objetivo doutrinar o
cativo para que não se torne insubordinado.
Para o barão, o escravo deveria ter o domingo e dia santo e, ainda, ouvir a
missa quando possível, desde que realizada na fazenda. O objetivo era doutrinar o
escravo na passividade, utilizando-se principalmente da confissão religiosa como
principal instrumento para alcançar o sucesso da obediência cega do escravo ao seu
senhor.
O fazendeiro, segundo o barão, deveria sempre que possível destinar aos
cativos um pedaço de terra para que pudessem cultivar sua própria roça. Achava
que o próprio fazendeiro deveria comprar a colheita do escravo para que não
houvesse extravios e mau comportamento nas tavernas com o dinheiro arrecado.
Ou ainda, uma possível barganha com terceiros. Mas,ao mesmo tempo em que
doutrinava o escravo, não estaria o proprietário criando, por assim dizer, um
costume*? No caso de uma não observância destes “direitos” isso poderia
certamente levar o escravo a um estado de insubordinação.
Ainda no manual do barão de Pati do Alferes destinado ao filho, é ensinado
que o senhor não deve deixar o escravo passar por extremo aperreamento, cuja
consequência seria uma inclinação para o “mal”. Em suas palavras “o senhor deve
ser severo, justiceiro e humano”. A demasiada severidade ou frouxidão excessiva
torna o escravo um inimigo de seu senhor. Aquele apenas deveria ser castigado
quando cometesse alguma infração considerada como crime, sendo o castigo
aplicado pelo senhor proporcional ao delito cometido. O que para Carlos Engemann
equivale dizer “[...] que a postura senhorial poderia ser crucial na decisão coletiva de
rebelar-se ou negociar a vida”.281
O manual deixado para o filho nos sugere uma relação de paternalismo do
senhor para com os seus escravos. Mas, o próprio termo pressupõe uma relação de
calor humano, conforme apresentou Thompson: “[...] o termo não consegue escapar
de implicações normativas: sugere calor humano, numa relação mutuamente
consentida [...]”.282 Então, como utilizá-lo na escravidão? Como explicar tanto o Brasil
quanto os Estados Unidos que trilharam o caminho do paternalismo para controlar e
civilizar o microcosmo da plantation?283
281
ENGEMANN, Carlos. Op. cit., p. 157.
282
THOMPSON, Edward Palmer. Op. cit., p. 30.
283
ENGEMANN, Carlos. Op. cit., p. 155
100
Na relação pai e filho, o pai tem consciência de seus deveres e
responsabilidades para com o filho, enquanto o filho é submisso ou complacente na
sua posição.284 Excluindo desta relação o calor humano, ela se torna aplicável na
relação senhor escravo. Como?
Voltando ao manual, encontra-se o reconhecimento dos deveres e das
responsabilidades do senhor para com os seus escravos: “no domingo de manhã,
devem vestir roupa lavada [...], o senhor deve ser severo, justo e humano, [...] o
senhor deve fazer sua revista à enfermaria para animar os doentes e dar-lhes alívio
[...] reservar um bocado de terras onde façam suas roças”. 285 Assim, durante a maior
parte do século XIX, principalmente a partir do final da década de 1830, o Brasil
“produziu senhores um tanto ciosos do trato com suas escravarias, não por
benevolência, mas porque a sobrevivência desta como instituição dependia disto”. 286
Por que chamar a atenção para o manual escrito em momento posterior pelo
barão de Pati do Alferes? Em função de alguns pontos que observamos estarem
presentes nesse manual.
Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, durante a insurreição, ainda não era
detentor do título de barão de Pati do Alferes. Na verdade, Francisco exercia nessa
época a função de chefe da Guarda Nacional. Portanto, encontrava-se envolvido
diretamente na captura dos insurretos que contavam com a participação mais ou
menos oitenta cativos287 de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar, seu cunhado.288
Voltemos à carta do vizinho. Nela, destacamos algumas passagens, como:
“umas vezes afagando-os demais, outras lhes dando extravagantes castigos” e “[...]
castigando e premiando”.289 Essas passagens apresentam pontos em comum com
os posicionamentos apresentados no manual: “Nem se diga que o preto é sempre
inimigo do senhor; isto só sucede com os dois extremos: demasiada severidade, ou
284
THOMPSON, Edward Palmer. Op. cit., p. 30
285
Carta do barão de Pati do Alferes ao filho. Apud BRAGA, Greenhalgh H. Faria. Op. cit., p. 36-37
(grifo do autor).
286
287
ENGEMANN, Carlos. Op. cit., p. 156.
Conforme informação dos próprios escravos nos depoimentos no processo condenatório.
288
Maria Isabel de Assumpção, irmã de Paulo Gomes, era casada com Francisco Peixoto de Lacerda
Werneck. Ver: SILVA, Eduardo. Barões e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
289
O jornal O Sete d’Abril. Apud GOMES, Flávio dos Santos. Op. cit., p. 200.
101
frouxidão excessiva, [...]”,290 em outra parte é ensinado quando castigar o escravo: “o
negro deve ser castigado quando comete crime: o castigo deve ser proporcional ao
delito: [...]”.291
Não é a intenção afirmar que o responsável pela carta publicada tenha sido o
então chefe da Guarda Nacional e vindouro barão de Pati do Alferes, e, sim,
apresentar os indícios que propiciaram a análise no sentido da proximidade entre os
dois autores, e que as divergências entre os senhores locais ganharam as páginas
da imprensa da época.
Ainda observando a repercussão da publicação do O Sete d’ Abril pelo senhor
vizinho, o periódico O Chronista de 1º de dezembro de 1838, responde:
O vizinho julga as seriedade do negócio pelo susto que incutiu em diversos
municípios. Isto é verdade: as pessoas da Corte que tiveram notícias do
movimento assustaram-se [...] e confessamos que fomos desse número; o
governo provincial assustou-se e temeu pela segurança pública, e ainda teme,
porque muito desses escravos se acham ainda no mato, podem formar
quilombo, e todos nós sabemos o que são quilombos; até o governo geral
assustou-se, e tanto que mandou um forte destacamento, que voltou
imediatamente que chegou ao lugar do movimento. Ora, não queremos crer
que o governo geral mandasse essa tropa unicamente para mostra-se, e a sua
retirada indica que as cousas não eram tão feias como se pintavam, e que o
negócio é todo da competência dos capitães-do-mato. As notícias exageradas,
Senhor Vizinho, causaram o susto.292
O forte destacamento enviado pelo governo geral se refere à ajuda do corpo
policial solicitada pelo presidente de Província, Paulino José Soares de Souza, e
comandada pelo tenente-coronel Luís Alves de Lima e Silva, vindouro duque de
Caxias. Essa força era composta por cinquenta praças de municipais Permanentes.
A tropa no dia 14 de novembro já se achava na localidade da insurreição, mas
não a tempo de combater os insurretos. Apenas trouxe mais boatos ao informar ao
juiz de direito interino que os escravos insurretos estavam de conluio com os cativos
da fábrica de pólvora,293 o que não se comprovou. 294 Restringiu, assim, a
participação da tropa comandada pelo tenente-coronel Lima e Silva.
290
Carta do barão de Pati de Alferes ao filho. Apud BRAGA, Greenhalgh H. Faria. Op. cit., p. 37 (grifo
do autor).
291
Ibidem (grifo nosso).
292
Periódico O Chronista. Apud GOMES, Flávio dos Santos. Op. cit., p. 225.
293
A fábrica de pólvora ficava localizada na região do Pilar no recôncavo da Guanabara, atualmente
Município de Duque de Caxias
294
SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 53-54.
102
Dessa vez, a matéria publicada em resposta ao vizinho não influente, utilizou
de a mesma “arma” apresentada anteriormente, o sensor da opinião pública.
Portanto, O Chronista colocava um ponto final na discussão que iniciou ao noticiar o
aumento das consequências da insurreição como fruto de intrigas dos fazendeiros
locais.295
3 O Julgamento
[...] que tem ocorrido em vários municípios da província, nascidos de intrigas
próprias de povoações pequenas, e do abuzo com que alguns juizes de paz se
servem da terrível arma da pronuncia em satisfação de ódios e ressentimentos
particulares, e bem assim os acontecimentos ocorridos em novembro próximo
passado na fazenda do capitão mor Manoel Francisco Xavier, na freguesia do
Paty do Alferes, cujos escravos em grande numero se insubordinarão e fugirão,
aquilombando-se nos mattos onde forão perseguidos logo, e presos, sendo
depois devidamente castigados, pode assegurar-se que toda a província tem
gozado a mais profunda tranqüilidade. 296
Analisando o relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, 297 elaborado
para abertura da 2ª sessão da 2ª legislatura da Assembleia Provincial, verificamos a
apresentação de explicações sobre os acontecimentos ocorridos nos municípios, em
especial na Vila de Vassouras – Paty do Alferes. O evento a que se referia era a
insurreição de escravos. Nesse mesmo relatório era realizada uma dura crítica sobre
o abuso no exercício da função pelos juízes de paz que se utilizavam do cargo para
resolver problemas particulares.
Verificamos que logo após a insurreição de 1838 foram abertos e concluídos
dois processos, que segundo o estudo apresentado por Pinaud 298, não passaram de
uma “vestimenta dada a uma decisão já direcionada”. 299 A decisão de culpar um
único “responsável” pela insurreição foi o fator norteador na apuração dos fatos.
Os julgamentos foram comandados pelo juiz Inácio Pinheiro de Sousa
Werneck, que substituía o juiz titular. A substituição de um juiz era algo natural no
295
Periódico O Chronista Apud GOMES, Flávio dos Santos. Op. cit., p. 199.
296
Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, o conselheiro Paulino José Soares de
Souza, na abertura da 2ª sessão da 2ª legislatura da Assembleia Provincial, acompanhado do
orçamento da receita e despesa para o ano de 1839 a 1840. 2. ed. Niterói: Typ. De Amaral & Irmão,
1851. Disponível em: http://www.nd.edu/~kic/brazil/jain.html.
297
Idem.
298
PINAUD, João Luiz Duboc. Op. cit.
299
Ibidem, p. 27.
103
século XIX e ocorria de acordo com os interesses dos senhores locais. Richard
Graham indica que em apenas 25% das ocasiões contava-se com a presença do
juiz titular,300 o que se transformava numa possibilidade de substituição em harmonia
com o interesse em jogo.
Outro fator contundente para confirmar o direcionamento da condenação, é a
não aplicação do artigo 113 do Código Criminal do Império do Brasil, de 16 de
dezembro de 1830, ao escravo Epifâneo Moçambique, apontado pelos insurretos
como um dos “cabeças” da insurreição.
Julgar-se-á cometido este crime, reunindo-se vinte ou mais escravos, para
haverem a liberdade por meio de força.
Penas – aos cabeças – de morte no grau máximo: de galés perpetuas no
médio e por quinze anos no mínimo; - aos mais – açoutes. 301
Conforme o artigo 113, aos “cabeças” pelo crime de insurreição a pena era a
morte. E então, como explicar a não condenação do escravo Epifâneo Moçambique,
considerado pelos próprios cativos como o responsável pela fuga juntamente com
Manoel Congo?
Nos depoimentos apresentados pelas escravas no dia 31 de janeiro de 1839,
quando perguntadas sobre os “cabeças” da insurreição, responderam:
Mariana Crioula citou Manoel Congo e Epifâneo Moçambique como os
cabeças: Rita Crioula também citou os dois anteriores; Lourença Crioula
também os citou; Brisida Crioula acusou Manoel Congo e outros escravos;
Joana Mufumbe acusou Manoel Congo como responsável pelo Primeiro
disparo do confronto com a Guarda Nacional;
Josefa Angola acusou Manoel Congo; Emília Conga Acusou Manoel Congo e
Epifâneo Moçambique.302
Mas verificando o primeiro depoimento dessas mesmas escravas no processo
de insurreição, concluído em 5 de dezembro de 1838, todas foram suspeitamente
unânimes ao citarem o nome de Manoel Congo como um dos “cabeças”. Na relação
300
GRAHAM, Richard. Construindo uma nação no Brasil do século XIX: visões novas e antigas sobre
classe, cultura e estado. Diálogos. Revista do Departamento de História da Universidade Estadual de
Maringá, Maringá, p. 21, 2001.
301
RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a lei de 10 de junho de 1835
– os escravos e a pena de morte no Império do Brasil: 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p.
29.
302
Processo-crime de insurreição, segundo interrogatório da escrava Emília Conga, fl. 60 v. CDH,
USS.
104
de nomes apresentada pelas cativas, encontramos ainda: João Angla, Vicente
Moçambique, Manoel Pedro, Evaristo Benguela e Noberto Cabinda.
Já nos depoimentos das cinco testemunhas utilizadas durante todo o
processo de insurreição, em nenhum momento houve uma troca na ordem dos
nomes apresentados como os responsáveis pela insurreição: Manoel Congo – rei –
e Mariana Crioula – rainha –; Justino Benguela; Antônio Magro; Pedro Dias; Adão;
Belarmino Congo; Miguel Crioulo; Canuto; Afonso Angola; Rita Crioula; Lourença;
Brizida; Joana Mufumbe; Josefa Angola e Emília Conga.303
Com essas informações que corroboram para explicar como ocorreu a
“vestimenta” dos processos, salientamos a prisão do escravo Epifâneo Moçambique,
propriedade de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar, no dia 19 de novembro, e seu
interrogatório no dia 23 de novembro de 1838, 304 quando citou vários escravos de
propriedade do capitão-mor Manoel Francisco Xavier como “cabeças” da
insurreição.
Com o termo de conclusão da primeira fase dos depoimentos, findado em 15
de dezembro de 1838, o juiz de paz José Pinheiro de Souza Werneck indiciou todos
os escravos capturados no artigo 113 do Código Criminal, ou seja, acusados pelo
crime de insurreição, exceto o escravo Epifâneo Moçambique. Por quê?
O artigo em questão considerava o envolvimento de vinte ou mais escravos
em movimentos que buscavam a liberdade por meio de força. O próprio Epifâneo
disse que se encontrava “a pe do quilombo em hum morro de frente cortando
palmitos”.305 Observando o artigo que considera o crime de insurreição, todos os
escravos deveriam ser indiciados, o que demonstra parcialidade na aplicação do
mesmo na conclusão do juiz de paz José Pinheiro de Sousa Werneck.
O processo de insurreição mostra que somente os escravos de propriedade
de Manoel Francisco Xavier foram encaminhados para cadeia pública da vila em
Vassouras,306 deixando claro um destino diferente para Epifâneo Moçambique.
Na sessão realizada no dia 31 de dezembro de 1838, na sala do júri, o juiz
interino Ignácio Pinheiro de Sousa Werneck ao indagar o réu Pedro Dias sobre a
303
304
Ibidem, fls. 6-15.
Ibidem, fls. 32.
305
Processo-crime de insurreição, interrogatório do escravo Epifâneo Moçambique, fl. 32 v. CDH,
USS.
306
Processo-crime de insurreição, fl. 34. CDH, USS.
105
fuga, demonstrava que considerava Epifâneo como um dos “cabeças” da
insurreição:
Proguntado o que fes o Epifânio quando chegou com Manoel Congo,
respondeo que chegara e tomara conta do governo deles todos: Proguntado se
pretendião [...] digo se Manoel Congo e Epifâneo disião que pretendião voltar
para casa ou irem de huma vês, respondeo que não sabia [...]. 307
Essa mesma pergunta se repetiu ao réu Miguel Crioulo, 308 o qual afirmou que
quem governava era Epifâneo e Manoel Congo. 309 Esse mesmo relato pode ser
observado no depoimento de Mariana Crioula, Rita Crioula, Lourença Crioula e
Emília Conga.310
As informações apresentadas, além de configurarem a parcialidade na
aplicação do Código Criminal, demonstram o direcionamento do processo para a
condenação dos escravos de Manoel Francisco Xavier.
A condenação desses cativos seria uma forma de punir o capitão-mor Manoel
F. Xavier pelos “problemas” trazidos a então vila de Nossa Senhora da Conceição
de Paty do Alferes. Portanto, esse senhor estava sendo condenado não só pela
insurreição, como também pelas suas atitudes durante a curta vida da efêmera vila
de Paty do Alferes.
Por se encontrar envolvidas em disputas senhoriais, as autoridades não
sentiram a necessidade de uma apuração minuciosa dos fatos. Segundo Pinaud, o
direcionamento do processo ocasionou:
[...] a desnecessidade de efetiva apuração dos fatos e o contorno, através de
atos nulos, de todas as exigências de segurança processual, na forma da lei
então vigente [...]. dispensando, inclusive, as apurações preliminares, como
levantamento do Quilombo, apreensão das armas utilizadas e dos objetos
furtados, perícia na fazenda arrombada, etc.311
307
Processo-crime de insurreição, segundo interrogatório do escravo Pedro Dias, fl. 47. CDH, USS.
308
O mesmo escravo aparece com o nome de Miguel Viado durante o processo de Insurreição.
309
Processo-crime de insurreição, segundo interrogatório do escravo Miguel Crioulo, fl. 50. CDH,
USS.
310
311
Processo-crime de insurreição. CDH, USS.
PINAUD, João Luiz Duboc. Op. cit., p. 56.
106
O descumprimento do artigo 134 da lei processual, o qual exigia o exame de
corpo de delito para infrações que deixassem vestígios, 312 não verificada no
processo em questão, demonstra mais uma vez o não cumprimento da lei na
elaboração do processo de insurreição.
Uma outra infração durante o andamento do processo, fora a entrega dos dois
libelos, um pelo crime de homicídio e outro pelo de insurreição, ao escravo Manoel
Congo antes mesmo do próprio ter o seu curador. O que faria um escravo analfabeto
com os libelos? Ele sem o seu curador apresentaria a contradição? Manoel Congo
era conhecedor que teria de apresentar sua contradição dos libelos três dias antes
do julgamento? Mesmo que o escravo fosse conhecedor dos trâmites jurídicos não
seria possível a entrega da contradição dentro do período, pois Manoel Congo
recebeu os libelos no último dia do prazo, ou seja, no dia 23 de janeiro de 1839.
No libelo referente ao crime de homicídio, encontramos:
P. que o reo Manoel Congo escravo do Cap. Mor. Manoel Francisco Xavier
abuzando da bondade de seu Sr. [...]
P. que, pelo dito dastes verifica-se que hindo a forsa armada os bater a fim de
serem punidos com as penas da lei; o dito escravo. Manoel Congo despara
huma espingarda no pedestre Constantino Francisco de Oliveira, que ali ficara
morto.
P. que nos melhores de Direito e a vista da forticima prova dos autos, hade o
reo Manoel Congo ser condenado no grão máximo do atr. 192. do código
Criminal.313
Já no libelo pelo crime de insurreição:
P. q o R. Manoel Congo não só commeteo o Crime de morte, pelo qual foi
sentenciado a pena última em outro processo q a este recto, e respeitoso
Tribunal subio para ser julgado como o de insurreição, sendo d’esta hum dos
principais cabeças [...] (grifo nosso).314
Estudando os dois libelos é encontrada mais uma incoerência cometida pelo
juiz interino Inácio Pinheiro de Souza Werneck. De acordo com as informações
contidas no libelo de insurreição, o escravo Manoel Congo já se encontrava
condenado pelo crime de homicídio do pedestre Constantino Francisco de Oliveira.
A condenação ocorreu antes do seu interrogatório, realizado somente no dia 26 de
312
Idem.
313
Processo-crime homicídio, p. 16 e 16v. CDH, USS.
314
Processo-crime de insurreição, p. 39v. (grifo do autor). CDH, USS.
107
janeiro de 1839.315 Neste mesmo dia aconteceu a nomeação do seu curador dr.
Alexandre Joaquim de Siqueira: “Nomeio para curador do Reo Manoel Congo ao
Snr. Doutor Alexandre Joaquim de Siqueira. Vassouras 26 de janeiro de 1839”. 316
Com a nomeação do curador e a entrega do libelo ao escravo no dia 23 de
janeiro de 1839, não houve o cumprimento do artigo 254 317 do código que estipulava
um prazo de três dias, pelo menos antes do julgamento para a defesa apresentar
uma resposta ao libelo. Como entregar uma resposta três dias antes do julgamento
se o curador fora nomeado no dia do julgamento?318
Se observarmos como ocorreu a entrega do libelo e a nomeação do curador,
o escravo Manoel Congo não poderia ter sido condenado e, muito menos, ao grau
máximo pelo crime de homicídio. E, verticalizando um pouco mais nossa
observação, a decisão condenatória do júri no dia 20 de janeiro de 1839 não poderia
ter sido acatada, mas, sim, anulada, pois o escravo ainda não havia recebido o
libelo, menos ainda a nomeação de seu curador:
Visto a decisão do jury de julgação condenno o reo Manoel Congo a penna de
morte marcada no grão máximo do artigo 192 do Código Criminal, combinado
com o artigo 4° da Lei de 10 de junho de 1835, indinização e Custas. Salla das
Seçoins do Tribunal do Jury do termo de Vassouras em 20 de janeiro de
1839.319
Outro dado sobre a irregularidade da condenação pelo crime de homicídio se
refere à data do interrogatório. Esse só ocorreu no dia 26 de janeiro de 1839.
Portanto, como poderia ter sido condenado no dia 20 de janeiro? “P. q o R. Manoel
Congo não só commeteo o Crime de morte, pelo qual foi sentenciado a pena última
em outro processo [...]”.320 Lembremos que os libelos só foram entregues no dia 23
de janeiro, sem a existência de um curador.
O curador, dr. Alexandre Joaquim de Siqueira, era um funcionário público de
carreira que ocupou diversos cargos, como: juiz de direito, juiz municipal e de órfãos
315
Processo-crime homicídio, p. 17v. CDH, USS.
316
Processo-crime homicídio, fls. 17. CDH, USS.
317
PINAUD, João Luiz Duboc. Op. cit., p. 60.
318
Talvez a comparação com outros processos para termos a certeza de como era realizada a
nomeação de um curador. Mas, houve o descumprimento do artigo 254.
319
Processo-crime homicídio, fls. 20v.
320
Processo-crime de insurreição, fls. 39v.
108
da vila Vassouras,321 entre tantos outros. Considerado um funcionário de segundo
escalão e ligado aos saquaremas,322 esse bacharel em direito escreveria no ano de
1852 sua versão sobre a história de Vassouras. A publicação, entretanto, só
aconteceria bem mais tarde, no ano de 1896, pelo jornal Vassourense.
Intitulada Memória histórica do município de Vassouras, o bacharel tentava
resgatar a história da fundação do município. A presente história fora publicada em
partes pelo jornal em quatro edições. Em sua primeira parte, trazia a informação
sobre a insurreição se restringindo a citá-la. Possivelmente, a ausência de um maior
detalhamento estava ligada à sua participação questionável como curador do
escravo Manoel Congo.
Retornando aos processos, as questões que apresentamos demonstram
claramente como caminhou a condenação do cativo Manoel Congo e de seu
proprietário Manoel Francisco Xavier. Além de perder um bem de seu patrimônio,
teve a condenação dos outros escravos a pena de açoites.
Assim, o capitão-mor Manoel Francisco Xavier não contaria com o retorno
imediato dos escravos ao trabalho, além de arcar com as custas dos processos e a
alimentação da tropa que ficara em sua propriedade após o fim da insurreição.
A permanência da tropa pode ser vista de duas maneiras. A primeira seria
uma proteção à propriedade. A segunda, uma demonstração de impotência do
capitão-mor Manoel Francisco Xavier frente à Justiça, ou melhor, aos que a
representavam. Dessa forma, podemos entender a carta de Manoel F. Xavier
encaminhada ao presidente de Província informando que: “a maior parte dos
escravos que se evadiram já me acho de posse dele [...]”. 323 E, solicitando a retirada
da tropa de sua fazenda: “[...] me parece não ser mais necessário sofrer o incômodo
da Força Pública”.324
Além de ser o único senhor que perdeu escravos, uma vez que a insurreição
contou com a participação de cativos de Paulo Gomes Ribeiro de Avelar, Manoel
Francisco Xavier era exposto à população como derrotado.
321
Jornal Vassourense de 26 de abril de 1896. Museu Casa da Era. Vassouras, Rio de Janeiro.
322
CANDIDO, Antonio. Um funcionário da Monarquia. Apud SALLES, Ricardo. E o Vale era escravo:
Vassouras, século XIX – senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008. p. 209.
323
Apud SOUZA, José Antonio Soares de. Op. cit., p. 55
324
Ibidem. p. 56.
109
Ainda sobre os processos, analisamos o “sorteio” dos jurados que
demonstrou mais um aspecto da articulação para a condenação dos cativos do
capitão-mor Manoel Francisco Xavier.
O “sorteio” dos jurados de acusação para o crime de homicídio ocorreu no dia
22 de janeiro de 1839 e contou com os nomes de 23 jurados, ficando de fora Manoel
Joaquim das Chagas, considerado suspeito pelo juiz interino Ignácio Pinheiro de
Souza Werneck. Este mesmo júri ficou sob a presidência de Manoel de Azevedo
Barboza Werneck e foi composto por: João Borges Damasseno, Manoel de Azdo.
Barbzª Verneck, Antonio Soares de Castro, Francisco Jose Marco de Assis, Pedro
Correa e Castro Jr, Joze Vieira Maxado, João Jose Manco, Ignácio Gomes de
Assumpção, Francº Ferreira Goulart, Joaquim Antonio de Andrade, Joze Francisco
da S Per, Joze Antonio da Costa, Damco Je. Glzs, Ignácio Gomes de Aguiar, João
Barboza dos Santos, João Jose de Can Peixoto, Jacinto Alves Barboza, Vicente
Jose de Souza, Mel Ignco Barboza, Joze de Azdo Ramos, Joaquim Mascarenhas
Salter, Ambrozio de Szª Lima, Ant° Mel. Gomes de Szª.325
Nesse mesmo dia aconteceu o “sorteio” do júri de acusação para o crime de
insurreição que contou com 67 nomes. Mas chamamos a atenção para o “sorteio”
dos mesmos 23 nomes, a exclusão da mesma pessoa e para a presidência de
Manoel de Azevedo Barboza Werneck.
Apesar de ocorrer o sorteio no mesmo dia, como dois processos distintos
poderiam apresentar os mesmos nomes? E, por que Manoel Joaquim das Chagas
foi considerado suspeito?
Analisando a formação desse júri, notamos que um novo era formado. Os
jurados de condenação para o crime de insurreição e homicídio eram escolhidos
através de dois “sorteios”. Dessa vez, ocorreram em dias distintos em função da
alegação de se tratar de processos paralelos quanto ao andamento.
No dia 26 de janeiro de 1839, foram “escolhidos” pela “sorte” os jurados de
condenação para o crime de homicídio: Jose Maria de Guadalupe, Antonio do
Nascimento Costa, Manoel FranciscoAlves, Joaquim Joze da Silva, Domco Ant. [...]
Montr, Luis Barbª dos Santos Verneck, Bernardo de Freitas Brandão, Joze Ant°
Damazio, Luiz Querino da Rocha, Jozuhe da Costa Souza, Antonio de Souza
325
Processo-crime homicídio. fls. 13v e 14. CDH, USS.
110
Barreto, Camilo de Lellis Carmo, 326 tendo como presidente Jose Maria de Guadalupe
e o jurado Luis de França excluído da composição do mesmo.
Já em 31 de janeiro de 1839 aconteceu o “sorteio” dos jurados de
condenação para o crime de insurreição. Algumas diferenças existiram na formação
desses júris. A presidência desta formação ficava sob o controle de Antônio de
Souza Barreto e sendo recusados os nomes de: Jose Maria Guadalupe; Lucidoro
Francisco Xavier; Antonio Delfim Silva e Francisco de Paula Barreto. 327 A
composição contou com os senhores: Antonio Gomes Aguiar, Antonio de Souza
Barreto, Joaquim Joze da Silva, Domiciano Na° Souza Montr°, Luiz Barboza dos
Santos, Manoel Francisco e Silva, Bernardo de Freitas Brandão, Lucidonio da Costa
Souza, Camillo de Lellis Carmo, Luiz Quirino da Rocha e Antonio do Nascimento
Costa.328
Nota-se que as pessoas ligadas ao capitão-mor Manoel Francisco Xavier
foram recusadas. Lucidoro Francisco Xavier era irmão do capitão-mor, Antonio
Delfim Silva foi o juiz que se declarou suspeito no processo de embargo e Luis de
França, talvez, seja um dos padrinhos dos escravos de Manoel Francisco Xavier que
no registro de batismo apresentou o nome de Luiz José de França.
Na verificação das assinaturas dos jurados de condenação para o crime de
insurreição, notamos a ausência do jurado Manoel Francisco e Silva. Assim, a
condenação à morte de Manoel Congo e a açoites dos demais cativos do sexo
masculino, exceto do escravo Adão que foi absolvido juntamente com as mulheres,
contou com apenas 11 assinaturas.
Após o término dos processos, o juiz interino Ignácio Pinheiro Souza
Werneck, encaminhou ao presidente da Província um ofício no qual expunha sua
opinião em relação à condenação dos escravos de Manoel Francisco Xavier e, em
especial, do réu Manoel Congo. Neste ofício afirmava claramente a validade das
provas encontradas nos processos e a legalidade da condenação à pena capital:
[...] resulta que o reo Manoel Congo no ato de ir a força armada bater o
quilombo na fazenda Santa catarina, matara com um tiro de espingarda a um
pedestre de Manoel Constantino Francisco d’Oliveira, por este crime
condenado à morte pelo Juiz e teve o reo por curador o doutor Alexandre
Joaquim de Silveira, por mim nomeado a vista da pleníssima prova dos autos
326
Processo-crime homicídio, fls. 18. CDH, USS.
327
Processo-crime insurreição, fls. 40 v. CDH, USS.
328
Processo-crime insurreição, fls. 41. CDH, USS.
111
achou que foi justa a sentença [...] o mencionado reu por um dos cabeças de
Insurreição [...] foi igualmente sentenciado a pena capital, bastante justa vista a
exuberante prova dos autos, e do que resulta dos interrogatórios dos co-réus,
seus parceiros [...].329
Nota-se que ao citar a nomeação do curador do réu, não informou que a
mesma ocorreu três dias antes da condenação: “[...] teve o reo por curador o doutor
Alexandre Joaquim de Silveira, por mim nomeado [...]”. 330
Com essa versão do ocorrido, recebia o presidente de Província o ofício. Mas
ao contrário do que se esperava, ao menos para o juiz interino, o próprio Paulino
José Soares de Souza deixaria sua opinião sobre o ocorrido no relatório de abertura
da 2ª sessão da 2ª legislatura da Assembleia Provincial, acompanhado do
orçamento da receita e despesa para o ano de 1839 a 1840, no qual diz
categoricamente que o sucedido fora intrigas próprias de povoações pequenas. 331
Além do relatório se referir diretamente à insurreição, não podemos deixar de
situar o contexto político no qual fora produzido. Notamos que juntamente com sua
opinião sobre o levante de escravos, Paulino José Soares de Souza aproveitara
para demonstrar sua censura a todos os juízes de paz.
Ao indicar os interesses particulares dos juízes de paz como responsáveis
pela existência de conflitos, indiretamente sugeria que para manter a ordem era
necessário um governo central que representasse o desejo de todo o território e não
um governo fragmentado movido por interesses distintos. Dessa maneira, as
disputas entre os projetos de federalismo e /ou de centralização demonstravam que
o mundo da desordem não se restringia apenas aos pardos e pretos. Quanto à
disputa intraelite existente na vila de Paty do Alferes, esta gerou uma desordem que
paralisou o seu desenvolvimento e resultou em sua transferência.
Esse conflito entre senhores apareceria no relatório de Província no ano de
1844:
Em geral entregues aos cuidados e detalhes de sua lavoura, e do seu
commercio mais ou extenso, os habitantes da Provincia, apenas divididos nas
pequenas povoações por intrigas de famílias o verdadeiro cancro das nossas
329
Apud PINAUD, João Luiz Duboc. Op. cit., p. 61.
330
Idem.
331
Relatório do presidente da província do Rio de Janeiro, o conselheiro Paulino José Soares de
Souza, na abertura da 2ª sessão da 2ª legislatura da Assembleia Provincial, acompanhado do
orçamento da receita e despesa para o ano de 1839 a 1840. 2. ed. Niterói: Typ. De Amaral & Irmão,
1851. Disponível em: http://www.nd.edu/~kic/brazil/jain.html.
112
localidades ou por interesses meramente locaes, repellem com horror as
inspirações da anarchia, as innovações perigosas, e esses princípios
exagerados, partos de utopias alambicadas, verdadeiros desvarios do espírito
humano, que infelizmente em nosso tirocínio político tendo achado eche e
partido tem accendido o [...] da guerra civil em seu fúnebre cortejo em muitas
Provincias co-irmãs, e crestado sua prosperidade nascente (Grifo nosso). 332
A vila de Paty do Alferes reproduzia o que estava acontecendo em diversas
partes do imenso território do Império, com disputas entre as famílias da classe
senhorial.
A desordem na classe senhorial expandia-se pelos laços e vínculos de seus
representantes. A família Werneck, de forte ligação com os futuros conservadores,
também apresentava ligação com representantes da corrente liberal.
Marianna Isabel de Lacerda e Almeida, filha do chefe da Guarda Nacional e
vindouro barão de Pati do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, casou-se
com o liberal Francisco de Assis e Almeida, 333 que segundo Mauad, veio foragido
para a região: “Francisco de Assis e Almeida, advogado liberal, tendo vindo foragido
de Minas por causa das desavenças entre liberais e o poder central, fixa residência
em Vassouras”.334
Assim, dentro do contexto da divisão intraelite, notamos laços parentais ou de
compadrios tanto com liberais e conservadores numa mesma família. Olhando mais
detalhadamente para essa união da família de Francisco Peixoto de Lacerda
Werneck com um representante liberal, notamos que Francisco de Assis, antes
mesmo de sua chegada à Vassouras, graduo-se em direito na Faculdade de São
Paulo, onde se tornou amigo de Joaquim Teixeira Leite. 335
Observamos que a formação dos que se tornariam liberais e conservadores
teve o mesmo centro de estudo. Segundo Adorno, a Faculdade de São Paulo foi o
celeiro do mandarinato imperial.336 A formação da elite, a partir dos dois novos
332
Relatório do presidente de Província do Rio De Janeiro, 1844: Presidência de João Caldas Viana,
p. 3 (grifo nosso).
333
MONTEIRO, Angelo Ferreira. Redes de sociabilidade em Vassouras no século XIX: o caso
Benatar. Vassouras: Ed. Autor, 2007. p. 61.
334
MAUAD, Ana Maria. Imagem e Auto-imagem do segundo reinado. In: NOVAIS, Fernando Antonio;
ALENCASTRO, Luis Felipe (orgs). História da vida privada no Brasil – Império: a corte e a
modernidade nacional. Vol. II. 3. reimpresssão. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. In:
MONTEIRO, Angelo Ferreira. Op. cit., p. 61.
335
MONTEIRO, Angelo Ferreira. Op. Cit., p. 62.
336
ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 237.
113
cursos,337 principalmente o da faculdade de São Paulo, salientou a valorização do
individualismo.338
Pautando nossa a argumentação na informação trazida por Adorno da
introdução do jus-naturalismo nos cursos de direito, buscamos o significado dessa
corrente do pensamento jurídico. Para Bobbio, a significação resulta num Estado
pensado a partir dos direitos do indivíduo, 339 consequentemente, esse Estado
valorizará mais tais direitos em detrimento do coletivo.
Dessa forma, os cursos de direito de Olinda e São Paulo formavam bacharéis
mais voltados para o pensamento individualista e, talvez, por isso, a afirmação de
Adorno de que não houve uma política voltada para a democratização da
sociedade.340
Considerando-se a formação intelectual desses bacharéis e futuros políticos,
notamos a valorização do interesse individual na vida política em detrimento de uma
política mais ampla no sentido da coletividade. O próprio ministro Hermeto Leão, em
momento posterior, como representante dos conservadores na Província fluminense,
demonstrou que os interesses dos senhores proprietários de escravos e produtores
de café se ligavam ao poder do Estado.
Foi o próprio Hermeto Leão, tirando proveito da função de ministro da Justiça,
que convidou a Paulino José Soares de Souza 341 para exercer, em 1832, a função
de juiz na Corte.
Paulino José Soares de Souza se formaria na Faculdade de São Paulo, que
seguira o mesmo modelo de ensino 342 da Universidade de Coimbra, onde iniciou
seus estudos. Além de contar em seu quadro docente com alguns dos professores
337
As duas primeiras faculdades de direito foram abertas em São Paulo e Olinda.
338
ADORNO, Sérgio. Op. cit., p. 239.
339
COSER, Ivo. Op. cit., p. 381.
340
ADORNO, Sérgio. Op. cit., p. 238.
341
Paulinho José iniciou o curso de direito em Coimbra, mas retornou ao Brasil em 1828 e retornou
os estudos em 1830 já na faculdade de São Paulo. CARVALHO, José Murilo de (org.). Visconde do
Uruguai. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 12.
342
Mesmo seguindo o modelo citado, houve o abandono do direito romano, pois a ideia era formar
não só juristas, mas, advogados, deputados, senadores e diplomatas. In: CARVALHO, José Murilo
de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 4. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008 , p. 76.
114
do antigo centro de formação de bacharel em direito, vários brasileiros que lá
estudavam (Coimbra) vieram transferidos. 343
Possivelmente, em função de sua formação em direito, sentia que o exercício
da função de juiz de paz por pessoas leigas diminuía a importância da formação
jurídica, pois o cargo agregava muitos afazeres jurídicos dos quais os ocupantes não
tinham um conhecimento prévio e teórico.
Além de criticar a ação do juiz de paz de Paty do Alferes, Paulino José
considerava como negligente a forma como muitas pessoas exerciam tal função. 344
No entanto, apesar de enumerar várias críticas aos juízes de paz, reconhece o
grande número de atribuições do cargo, o que para ele sobrecarregou uma função
eletiva não remunerada e exercida por particulares.
Com o conhecimento do tipo de formação acadêmica dos políticos envolvidos
no processo do regresso conservador, podemos, por meio do diálogo com alguns
estudos, entender um pouco mais a formação do Estado e a centralização do poder.
Nesta pesquisa trouxemos dois movimentos escravos, conjuração de Valença
e a insurreição de Paty do Alferes, que, de certa forma, demonstram a fragilidade do
Estado em gestação. Além disso, salientamos o jogo de interesses da classe
senhorial que chegou a iniciar vários outros movimentos de sublevação.
Portanto, em nosso recorte temporal (1816-1840), ou seja, anterior ao
regresso conservador, notamos que os interesses particulares estavam à frente de
qualquer outro, o que ocasionou uma desordem senhorial.
Ao analisar a construção do Estado-Nação, José Murilo no livro a Construção
da ordem argumenta que a base desse processo foi a formação da classe senhorial
na Universidade de Coimbra. E, somando a esse aspecto, traz ainda a ocupação no
funcionalismo público como fator importante nesse processo de construção. Dessa
maneira, possibilitou que os representantes da sociedade civil fossem ao mesmo
tempo representantes do Estado.
Com essa formação houve, segundo o autor, uma diminuição do conflito
intraelite. Tal constatação serviu para a afirmação do estudioso de que quanto mais
homogênea a elite, mais tranquila é a formação do Estado. Outro ponto utilizado é a
343
344
Ibidem, p. 76.
Relatório de abertura da segunda sessão da segunda legislatura da Assembléia provincial do Rio
de Janeiro para o ano de 1839 a 1840, fls. 3-4.
115
herança burocrática portuguesa, (base para a unidade), salientando que a formação
em direito tinha como um de seus objetivos formar funcionários para o Estado. 345
Ainda na obra de José Murilo, observa-se o diálogo do autor com o prefácio
escrito por Hermes Lima para o volume das obras de Rui Barbosa. Carvalho diz que
para Lima a centralização favorecia a manutenção da escravidão. 346 Baseando sua
argumentação em testemunhos de época, José Murilo afirma ainda que havia receio
de revolta escrava. Nesse sentido, o medo era de uma revolta parecida com a
ocorrida no Haiti. Os interesses na manutenção da ordem escravista podem ter
colaborado para a unidade territorial, 347 mas não foram a peça central neste
processo.
Para o autor, o medo não era da fragmentação do Estado em gestação, pois
caso ocorresse, poderia fortalecer o sistema escravista em função das Províncias
em que a escravidão desempenhava uma maior peso econômico. 348
Por sua vez, na principal Província do Império, a região responsável pela
produção do café demonstrava que os interesses particulares dos senhores da terra
era um dos pontos que limitava, ou melhor, impossibilitava a homogeneidade da
classe senhorial.
Mesmo estando bem distante de ser considerada como uma classe
homogênea é possível observar a formação de algumas alianças. A formação
acadêmica comum dessa classe possibilitou o nascimento de uma forte ligação
entre Joaquim Teixeira Leite e Francisco de Assis. O primeiro se tornaria
representante da corrente conservadora, enquanto o outro um liberal.
Outra forma de aliança era por meio do matrimônio. As famílias proprietárias o
utilizavam para harmonizar alguns interesses comuns. O liberal Francisco de Assis,
que se casou com a filha do chefe da Guarda Nacional, Francisco Peixoto de
Lacerda Werneck, Marianna Isabel de Lacerda exemplifica bem essa união.
Nesse aspecto é bastante adequada a afirmação encontrada em Ilmar Mattos:
“nada tão parecido com um conservador como um liberal no poder”; 349 ou uma
345
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a
política imperial. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 76.
346
Ibidem, p.18.
347
Idem.
348
Ibidem, p. 19.
349
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 115.
116
quadrinha nordestina da época: “Por subir Pedrinho ao trono/Não fique o povo
contente/Não pode ser boa coisa/servindo com a mesma gente”. 350
Conclusão
Para entendermos a classe senhorial do Vale do Paraíba Fluminense da primeira
metade do século XIX, foi necessário focarmos a pesquisa numa determinada
localidade e compreender sua criação dentro do contexto político – e, assim, realizar
a investigação sobre as disputas senhoriais.
A localidade, objeto da pesquisa, foi a vila de Paty do Alferes. Nela
observamos a presença de disputas intraelite. A primeira se deu em torno da
construção da igreja, mas não foi só este fato que nos levou a aprofundar o nosso
entendimento sobre a povoação.
Seria impossível entender a classe senhorial sem alargar o nosso campo de
análise. Logo, não nos limitamos apenas a Paty do Alferes. Buscamos, também,
entender o processo de ocupação e criação de vilas no Vale do Paraíba Fluminense,
após a instalação da Corte no Rio de Janeiro.
Com a chegada da família real, houve a necessidade da produção de
alimentos para atender a nova demanda da cidade do Rio de Janeiro. Assim, o
povoamento e criação das vilas no Vale Paraíba fluminense visava a produção
agrícola para suprir a nova procura. Logo, o trajeto que antes era usado para o
escoamento do ouro produzido nas Minas Gerais, conhecido por Caminho Novo,
passou a ser utilizado para abastecer de alimentos o novo centro de poder.
Durante este processo de povoamento e criação das vilas, observamos que
no povoado de Paty do Alferes, além da querela relacionada à construção da igreja,
houve uma intensificação das disputas intraelite. Naquele momento, a manutenção
territorial surgiu como o principal motivo.
Os senhores envolvidos na criação da vila não aceitavam ceder parte de suas
propriedades para beneficiar a construção da sede administrativa. Nessa disputa
que se arrastou durante toda a existência da vila de Paty do Alferes, notamos que a
manutenção territorial era a principal questão em torno das porfias senhoriais, as
350
Apud FAZOLI FILHO, Arnaldo. O período regencial. São Paulo: Ática, 1990. p. 47. Série Princípios.
117
quais adjetivamos como desordem senhorial. No entanto, a fundação da vila ocorreu
em 1820, trazendo mais embates que buscavam agregar ao poder senhorial o poder
administrativo da vila e suas vantagens.
Identificamos durante a criação da vila uma busca pelo monopólio do poder
local. Como consequência, a classe senhorial apresentou sua heterogeneidade.
Portanto, com o conhecimento de que a manutenção territorial era a razão da
disputa, passamos a buscar fatos e/ou acontecimentos em que as porfias senhoriais
se fizessem presentes. E, por diversos momentos da existência da vila de Paty do
Alferes, encontramos o bem público sendo apropriado pelo interesse particular.
Mas em um campo de análise no qual não imaginávamos interferências
destas porfias, encontramos a ação da desordem em que se achava a classe
senhorial. A realização de batismos escravos foi o palco.
Estudamos a realização do rito sacramental de três famílias envolvidas
diretamente. Enquanto a Xavier, por intermédio do capitão-mor Manoel Francisco,
buscava fortalecer os laços sociais e políticos com pessoas pertencentes à classe
senhorial batizando seus cativos, observamos que as famílias Ribeiro de Avelar e
Werneck tinham um posicionamento oposto, ou seja, procuravam os próprios
escravos, como padrinhos, para batizarem os inocentes.
No entanto, a influência maior da disputa senhorial ocorreu posteriormente à
mudança da vila de Paty do Alferes para Vassouras em 1835. Neste ano, Manoel
Francisco Xavier deixou de batizar seus cativos que só voltariam a receber o
sacramento após sua morte em 1840.
Além deste desdobramento no campo religioso, outro eixo de análise por nós
apreciado foi o Judiciário.
No embargo movido pela família Xavier contra Manoel Vieira dos Anjos, a
desordem senhorial também se fez presente. Mas foi na apuração e julgamento da
insurreição escrava de 1838 que sua influência se mostrou mais veemente.
Com a sublevação escrava, as autoridades envolvidas realizaram uma farta
comunicação, nas quais notamos que houve uma intenção de subjugar o capitãomor Manoel Francisco Xavier, proprietário da maioria dos escravos envolvidos. Os
senhores que representavam a lei pertenciam à família Werneck, considerada pelo
capitão-mor como inimiga.
A consequência desse “monopólio” foi responsabilizar o capitão-mor Manoel
Francisco Xavier pela insurreição, a qual contou com a participação dos escravos de
118
Paulo Gomes Ribeiro de Avelar, que em nenhum momento foi citado pelas
autoridades.
Portanto, através da vila de Paty do Alferes e de seus acontecimentos, a
pesquisa apresenta a heterogeneidade da classe senhorial na primeira metade do
século XIX, sem se limitar a uma história local. Assim, foi possível observar, em
função da redução da escala de análise, parte do processo de construção do próprio
Estado e a ação de “homogeneização das elites”, juntamente com toda a discussão
em torno do federalismo e centralização política.
Para além da importância econômica-política da localidade, o trabalho
demonstra, ainda, que a massa de desordem não se restringia apenas aos
escravos, pois esses em muitos momentos reproduziam o que seus senhores
viviam. Em síntese, diríamos que a desordem se refere muito mais à classe
senhorial do que aos escravos.
119
Anexo
120
121
122
123
Fontes.
Abaixo-assinado da vila de Valença impresso pela Tipografia de Torres no Rio de
Janeiro no ano de 1831. Gentilmente cedido por Antônio Carlos ( Mestre em História
–USS).
Alvará de Criação da vila de Paty do Alferes, 1820. Arquivo Público do Estado do
Rio de Janeiro.
Constituição de 1824.
Documento
103664145001.
CDH,
Centro
de
Documentação
Histórica
da
Universidade Severino Sombra.
Documento 103664051007. Centro de Documentação Histórica, CDH. Universidade
Severino Sombra.
Documento 103664073006. Centro de Documentação Histórica, CDH. Universidade
Severino Sombra
Documento 103664355023. Centro de Documentação Histórica, CDH. Universidade
Severino Sombra.
Processos crimes: Insurreição e homicídio (1838). CDH da Universidade Severino
Sombra.
Livro I de Batismo escravo. Paróquia Nossa Senhora da Conceição, Paty do Alferes,
Rio de Janeiro.
Livro II de Batismo escravo. Paróquia Nossa Senhora da Conceição, Paty do
Alferes, Rio de Janeiro.
Relatório de abertura da segunda sessão da segunda legislatura da Assembléia
provincial do Rio de Janeiro para o ano de 1839 a 1840
Relatório do presidente de Província do Rio De Janeiro, 1844.
124
Jornal.
Jornal Vassourense de 31 de maio de 1836. Museu Casa da Hera, Vassouras, Rio
de Janeiro.
Jornal Vassourense de 31 de dezembro de 1893. Museu Casa da Era, Vassouras,
Rio de Janeiro.
Jornal Vassourense de 28 de junho de 1896. Museu Casa da Hera, Vassouras, Rio
de Janeiro.
Jornal Vassourense de 2 de Agosto de 1896. Museu Casa da Hera, Vassouras, Rio
de Janeiro.
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