– Aconteceu há muitos anos. Escrevi-a, certa feita, e a dediquei a um amigo muito querido. Ainda a tenho de cor. Em voz pausada, como quem dá uma aula, sabida há longo tempo. Duca Eleotério começou: – Quando meu avô materno, o alferes do Exército Porfírio dos Santos Lisboa, cognominado o Labatut Capixaba, adquiriu, em hasta pública, as terras em que construiu a confortável fazenda Boa Vista, hoje tapera, encontrou vizinhando com as mesmas, pelo lado sul, um casal de pretos, marido e mulher, Manoel do Riacho e dona Maria. Humildes, trabalhadores, econômicos e conformados com a sorte, viviam como em perpétua harmonia. Meu avô os distinguia com sua amizade e proteção... Maria chegou com copos, dentro dos quais havia um líquido vermelho-terra. Trocou com Lina algumas palavras de boas-vindas. José Roberto preferia a cajuada original, mas elogiou o refresco. – Certa feita – continuou o velho –, o casal pediu ao fazendeiro, como o fazia sempre, a casa de farinha. Prontamente atendido, foi o serviço iniciado, no dia previamente estabelecido. Após ser descascada e bem lavada, encheu-se uma banca com a mandioca, e os auxiliares retiraram-se, ficando somente os donos do serviço e um rapazinho encarregado de alertar os bois da bolandeira. A mulher, acomodando-se ao banco em frente à roda de ralar, ia retirando, uma a uma, da banca, as raízes que, em fração de segundos, eram transformadas em massa. Manoel, por sua vez, depois de forrar a prensa com palhas de coqueiro de guriri, ia passando a massa de dentro do depósito para a prensa. Corria tudo normalmente, quando enorme estrondo se ouviu e fragmentos de madeira caíram em várias direções. Manoel que, com o imprevisto, ficara perturbado, ao verificar de onde viera tão insólito e atordoante ruído, ficou estarrecido. A sua boa e leal companheira jazia semimorta, atirada que fora a algumas braças de distância, com o peito rasgado deixando ver o coração ainda palpitante e a face descarnada por um pedaço de cobre picotado que circundava a roda raladeira... – Meu Deus, que horror! – exclamou Lina, sem se conter. – Sem proferir uma exclamação, sem um queixume, sem uma lágrima, concentrando no peito sua grande dor, como um autômato, ajoelha-se junto àquele monte de carne dilacerada, tenta recompor aquele corpo. Sabedor do ocorrido, meu avô forneceu-lhe dois escravos, uma canoa e uma carta às autoridades, relatando o ocorrido. Realizado o enterro, ao agradecer ao alferes disse-lhe: – “Sinhá Maria era uma surucucu (referindo-se a sua falta de atrativos físicos), mas sem ela não dá gosto de viver...” No dia seguinte, vieram dizer ao fazendeiro que a barraquinha de sapê do Manoel do Riacho permanecia, contra seu costume, já alto o dia, fechada. Arrombaram a porta e encontraram-no morto, com os dedos entrelaçados comprimindo o coração. Vejam vocês, que são moços, se um médico-legista atestasse o óbito examinando a alma, diria: morreu por amor... – Que belo exemplo, Sr. Manoel!... – comentou Roberto. – Oxalá muitos casais pudessem repeti-lo... – Das muitas histórias que meu avô materno me contou, esta a que mais me comovia... Lina, pensando em si mesma, sem qualquer fingimento, chorara, e pediu ao namorado para irem embora. – Cedo, é cedo! Tomem mais cajuada... 61