Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS
ISSN – 2175-4128
Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso
São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014
A VERDADE PELO CORPO: LOUCURA E PADECIMENTO EM ANTÔNIO CARLOS
VIANA
Maria Oscilene de Souza Fonseca (UFS)
1. INTRODUÇÃO
Avesso ao pitoresco, Antônio Carlos Viana confessa preferir a complexidade na
composição de seus personagens (VIANA, 2010). Nessa intencionalidade, o autor aborda
o ‘outro’ sob o contexto da “pobreza conformada” (MARTINS, 2012, p. 32), quando o traz
em situações limites, a exemplo da fome e da loucura. Todavia, nesse contista, o corpo é
aquele que mais padece.
Assim, o desgaste do corpo, em Viana, é um viés que atravessa o discurso e
vitima os personagens, que subsistem inertes a reflexões mais complexas. Aliada à
abordagem psicológica, que se integra mais à perspectiva do narrador, o corpo seria o
objeto para o qual recai o olhar pessimista desse autor. E, mediante essa focalização, são
lançadas as perfídias humanas que, além de aprisionarem esses corpos em espaços
determinantes, os mantêm sob um discurso opressor. Nesse ínterim, o espaço, no
contexto desse autor, abarca a concepção de Milton Santos (2009), porque não figura
mera representatividade. O espaço, portanto, engloba valores sociais impossíveis de
serem construídos artificialmente, já que se torna um sistema de valores e não
simplesmente paisagem (SANTOS, 2009).
Nordestino de origem e de vivência, os ambientes vianianos, por vezes
degradantes, não se integram às narrativas da seca (MARTINS, 2012, p. 74), fato que
não o impede de verbalizar os dramas da gente local. Criticado como um escritor
biográfico, Viana defende-se: “A gente escreve com mais verdade sobre mundos que
conhece...” (VIANA, 2010).
Possuidor de uma linguagem fortemente adequada ao contexto, a plasticidade de
Viana formula espaços sociais determinantes e circunstanciais que aprisionam o ser –
visto não haver alternativa para mudanças. Nessa temática, abordaremos dois contos da
obra Cine Privê (2009): “Quando meu pai voltou” e “Minha avó Inocência”.
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2. LOUCURA E PADECIMENTO EM ANTÔNIO CARLOS VIANA
Nos contos de Viana, o corpo é também o lugar do suplício, que nem sempre se
finda com a morte (FOUCAULT, 1987). Nesse âmbito, a temática da loucura e da morte
aproxima-se pela representatividade, quando aquela, de certa maneira, perfaz uma morte
simbólica, ainda que esse corpo – morto ou não – sirva como espetáculo do menosprezo
humano (FOUCAULT, 1987). Todavia, é o narrador-menino de Viana que assume o
comando dessas ações. Diante desse olhar que silencia os personagens, só existem
passado e presente, pois o futuro talvez fosse mais aniquilador. O representativo desses
contos seria então a consciência do adulto no mundo infantil – proposta essa que dialoga
com a historiografia literária brasileira (BOSI apud OLIVEIRA, 2009, p. 70).
Contestador, Viana assume seu pessimismo: "Fica difícil ser otimista num mundo
em que não há muitas saídas para quem está à margem de tudo, sobretudo da educação”
(VIANA, 2010). O louco, portanto, seria aquele cuja “exclusão” do sistema e “interdição”
do discurso é legalizada pelo poder (FOUCAULT, 2003, p. 9-10). Nesse aspecto, Foucault
(2003, p. 17) relaciona a “vontade de verdade”, que relativiza os conceitos de razão e
loucura em favor da ordem. Contudo, o conhecimento desse saber, no ato de ser
distribuído à sociedade, é reformulado constantemente (FOUCAULT, 2003, p. 17-18).
Já no contexto interno da narrativa, as forças que o louco opera, regem a trama e
conduzem a descobertas. O propósito de Viana seria, quando traz à tona a subjetividade
da criança na voz dos excluídos, uma “vontade de verdade” (FOUCAULT, 2003, p. 17);
postura essa que é assumida pelo autor: “Me lembro da miséria dos trabalhadores, da
falta de perspectivas, da degradação moral de suas famílias” (VIANA, 2010).
Atento aos saberes circundantes, o autor formula os espaços nordestinos entre o
rural e o urbano, ou entre a ação e a inércia – em que problematiza o sistema. Assim,
com seus ambientes hostis povoados de corpos deformados, Viana causa certo incômodo
a quem o lê, pois aceitar a realidade posta pela literatura é também conceber a ‘verdade’
como ironia.
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3. ANÁLISE DO CONTO “QUANDO MEU PAI VOLTOU”
Esse conto é narrado na perspectiva do narrador-menino, em primeira pessoa.
Tempo e lugar vianianos são apenas contextualizados, porque nele o espaço é um
sistema de valores, não mera paisagem (SANTOS apud CLAVAL, 2004, p. 28). Quando
apropriado às ações, o autor cria períodos curtos, de sintaxe simples, certamente, para
construir um tempo ideal de leitura, que deve ser rápido ou lento, conforme as ações da
narrativa.
Em “Quando meu pai voltou”, a memória do narrador-menino reporta-se a
momentos de turbulências: o retorno do pai do hospício. Em termos, há uma morte
simbólica, pois a consciência não retoma ao corpo: “Agora não passava de uma sombra
espessa de um outro que não conseguíamos reconhecer” (VIANA, 2009, p. 32). Restam,
nesse ínterim, lapsos de memória que fazem o pai do menino retomar tempos aleatórios.
No suposto retorno, a mãe e a tia do menino tinham ido buscar o pai no hospício, que
voltara para casa sem uns tufos de cabelos na cabeça. Há, nessa narrativa, certo desejo
de “gritar de dor” (VIANA, 2009, p. 31):
(...) e sapos gritando no poço? Havia um que a gente pensava ser gente
gemendo, mas nossa tia dizia que não, era o sapo-dor, gemia como se
sofresse de um mal sem fim. (VIANA, 2009, p. 32)
A abordagem realista de Viana leva-nos a considerar ainda que a loucura não
exista fora das normas sociais, e que sua aceitação depende ainda da nossa experiência
da linguagem (FOUCAULT, 2003) – que nos dá consciência dos fatos. Assim,
consideremos a loucura como uma experiência possível, dada a sua relatividade e
conveniências subjacentes (FOUCAULT, 1978).
Em “Quando meu pai voltou”, cujo título é ambíguo, o retorno representaria uma
mudança de paradigma. Contudo, o narrador antecipa, sutilmente, que as mudanças não
foram as esperadas: “Ele entrou na sala alumiada apenas pelo candeeiro, que mostrou
um rosto macilento, inchado (...)” (VIANA, 2009, p.31).
O futuro, em Viana, é inexistente. De fato, o tempo, para ele, segue ao alcance do
olhar. Assim, seus contos “encenam a tensão entre o passado e o presente, o passado
repressor e o presente brutal” (CORREIA, 2010, p. 28). Em consonância a esses tempos,
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o narrador vai notificando o declínio moral e físico do pai, cujo corpo dócil não mais
ameaça a ordem mantenedora (FOUCAULT, 1987, p. 164).
Na abordagem foucaultiana, tanto a sociedade moderna, quanto a contemporânea
lançam a proposta de que a punição carcerária detém o poder do corpo sem exterminá-lo
fisicamente (FOUCAULT, 1987). O sistema então projeta o poder sobre o corpo para
puni-lo como exemplo, numa tentativa de adestramento. Leiamos Viana: “Meu pai
continuou calado, até que puxou um fio de voz machucada, como se durante o tempo que
passou internado não tivesse feito outra coisa senão gritar de dor. A cabeça tinha tufos de
cabelo arrancados (...)” (VIANA, 2009, p. 31). O narrador denuncia que o retorno desse
homem à sociedade não deve acontecer. Leiamos Viana: “O corpo balofo de meu pai era
um sinal de que algo nele tinha ruído para sempre” (VIANA, 2009, p. 32).
Em análise com o texto de Foucault (1987), podemos considerar que o louco, por
romper com o contrato social, torna-se um excluído socialmente, já que o corpo perde a
utilidade de mercado por não ser totalmente ‘corpo’ nem ‘sujeito’ (FOUCAULT, 1987).
Natural, em Viana, consciência e corpo não se encontrarem: “De repente, a boca
começou a se mexer e ele foi falando” (VIANA, 2009, p. 35). Não à toa, Viana expõe as
necessidades básicas do homem, a exemplo da fome, que é denunciada de maneira
quase animalesca: “(...) embora houvesse os porcos para comer tudo o que sobrava”
(VIANA, 2009, p. 30). Conforme evidencia Foucault (1987), a coisificação humana não
está apenas para a literatura; ela permeia toda a história da humanidade.
A plasticidade de Viana, antes de um recurso estilístico, é um processo
persuasivo, pois projeta suas impressões em quem o lê. Óbvio, portanto, que a
deformidade dos corpos não esteja apenas para a loucura, mas para quem assim os vê.
4. ANÁLISE DO CONTO “MINHA AVÓ INOCÊNCIA”
O clã familiar do conto “Minha avó Inocência” é composto por seis personagens: o
narrador-menino, tio Adolfo, a mãe do menino, a vovó Inocência, o pai e uma tia.
Novamente, o cenário é o semi-árido nordestino, embora não possamos nos deter a esse
princípio, já que seria “perder o essencial” (MOURA apud CORREIA, 2010, p, 29).
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O narrador, irônico, assume um aparente distanciamento dos personagens, em
que envolve ainda mais o leitor. Assim, no intuito de desviar a atenção de sua
subjetividade, lança falsos vieses, cujo alvo principal é o pai. Loucura e vontade, por fim,
percorrerão terrenos fronteiriços (FOUCAULT, 2003).
Em termos, loucura e verdade dialogam entre si (FOUCAULT, 2003). O rompante
que motiva a trama é a morte de Adolfo, que fora vitimado na explosão de um galpão. A
avó do narrador-menino, dona Inocência, ficara “alheada” (VIANA, 2009, p. 57) com a
morte repentina do filho. A família vianiana costuma compor um cenário doméstico meio
grotesco; talvez “medonho”, na concepção de outros pesquisadores (OLIVEIRA, 2009).
Já a loucura da avó do menino não é denunciada literalmente, apenas algumas
características são passadas, a exemplo do delírio do mesmo pensamento, isto é: o filho
morto (FOUCAULT, 1978, p. 290) e o isolamento voluntário.
Mas é a família, tida como racional, que autoriza a “confusão entre o castigo e o
remédio” (FOUCAULT, 1978, p. 99). E, entre o gesto que pune e o que cura, vó Inocência
vai definhando.
Engano pensar que a loucura e a miséria não seriam motivos para risos. Cruel
com seus personagens, Viana nos faz até rir das desgraças alheias. O reclame da anciã,
no velório do filho, deu-se porque “só Adolfo não estava naquela festa” (VIANA, 2009, p.
55), ou: “A missa de sétimo dia foi para ela uma festa, nenhum sinal de tristeza, achou
que já era Natal” (VIANA, 2009, p. 56).
Cheia de manias depois da morte do filho, vó Inocência começa a dar lucros à
família com o feitio manual de renda, fato que muito alegrou Expedito. Essa,
inconformada com a morte do filho, passou a dormir em uma cadeira, pois evitava a cama
de “colchão macio” (VIANA, 2009, p. 56), presente do filho Adolfo. O narrador confessa:
“Sorte minha, fiquei dormindo lá, no bem bom” (VIANA, 2009, p. 58).
É corriqueiro, em Viana, a estigmatização da figura masculina, nesse conto
representada pelo pai do menino: um homem entregue ao ócio. Leiamos o autor: “Meu pai
entrou quase em desespero, porque trabalhar para sustentar uma casa não era com ele”
(VIANA, 2009, p. 59-60). E, no ato de providenciar a cadeira para a sogra dormir: “(...) ia
deixar a pontinha de um prego pra ver se ela não acordava de vez” (VIANA, 2009, p. 58).
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O narrador-menino, que faz o pai cúmplice de suas infâmias, desvia de si a perda
da inocência, que é passada de modo sarcástico. Diríamos então que o motivo que
conduz a narrativa seria: “A miséria do povo e a corrupção dos costumes” (FOUCAULT,
1987, p. 98).
Em contrapartida à repugnância pelo corpo (OLIVEIRA, 2009, p. 74), os pequenos
prazeres lá estão, embora seguidos de castigo e vigiados pelo narrador: “(...) preferiu ficar
dormindo na cadeira nua. Parecia querer se mortificar, como se tivesse uma culpa
escondida e quisesse pagar por ela antes da morte” (VIANA, 2009, p. 58).
Anterior a esse fato, o narrador assume que houve um trabalho “ao contrário”
((VIANA, 2009, p. 60), para que a senhora permanecesse nos “delírios” (FOUCAULT,
1978, p. 290). Indiferente ao sofrimento da avó, ele declara: “Vovó Inocência, mais feliz do
que nunca, não parava de fazer as rendas (...)” (VIANA, 2009, p. 57). Na voz do narrador,
os familiares experimentam pequenos prazeres com os lucros da renda: “As vendas
aumentaram muito (...) o que punha mais comida em nossa mesa” (VIANA, 2009, p. 57).
Viana, consciente de seu ofício, coloca seus personagens em ambientes de
privação, sendo mais propício para a exploração do desejo (FOUCAULT, 2001). Desse
modo, se o prazer confronta-se com a ausência de algo, o desejo somente existe com a
privação (FOUCAULT, 2001).
Irônico, o narrador-menino joga com as palavras quando confessa que vó
Inocência apenas reconhecia tia Lurdes. Todavia, aqui e acolá ele insinua que vó
Inocência, nem sempre ‘inocente’, desconfia das artimanhas que lhe preparam.
Circunstância implícita na passagem em que Expedito diz que vai envenenar os sapos do
brejo. Vó Inocência reage: “De repente, falou que sapo só traz o bem, o que traz o mal
são os homens” (VIANA, 2009, p. 59). Nas últimas linhas, o narrador anuncia a morte da
senhora, que morreu solitariamente.
Contrário ao discurso hegemônico, Viana inverte determinadas metáforas sociais.
Assim, a família abstém-se do sagrado; o enterro é uma alegria; já a festa é motivo para
tristeza:
“A festa teve um efeito contrário do esperado. No outro dia, vó Inocência
não quis mais saber de renda. Passou o dia inteiro sentada na sala,
alisando a barra da saia, enxugando os olhos de vez em quando.
(VIANA, 2009, p. 57)
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Vó Inocência parece incorporar o desconhecido, enquanto o corpo é sacrificado:
“Seu corpo logo tomou proporções nunca vistas” (VIANA, 2009, p. 62). Nesse processo
de autoflagelação, por vezes, ela nem parece mais humana: “(...) não esboçava a menor
reação” (VIANA, 2009, p. 62), ou: “Com o tempo, foi amolecendo (...)” (VIANA, 2009, p.
63).
Nessa nulidade, a consciência desse narrador não está sã nem salva, talvez
reflexiva. Mas, a fim de que a literatura manifeste o seu intercâmbio, faz-se necessário
que retorne à consciência e impulsione os saberes latentes em cada um de nós.
5. CONCLUSÃO
Muitas vezes criticado pelo cru de suas histórias e pelo vocabulário fortemente
adequado, Antônio Carlos Viana evidencia a fragilidade dos que são excluídos pelo
sistema, quando a loucura é um dos veios para denunciar a fragilidade dos corpos. Não
obstante, o narrador-menino é focalizado via um discurso opressor, porque lança os
personagens sob forças circunstanciais que minam qualquer resistência. Sarcástico,
o
narrador-menino de Viana desperta-nos ainda para o riso mediante ações ignóbeis ou
mesmo desumanas. Os preceitos foucaultianos servem-nos então como subsídios para
abarcar a ironia desse contista, que detém o corpo para deflagrar a corrupção da mente
humana. Dessa forma, o narrador-menino não se detém apenas na complexidade de
representar os personagens, mas também na construção de espaços inóspitos, cuja
relação com os personagens faz-se na mediação entre a opressão do discurso e o
negaceio dos corpos. Nesse impasse, entre o físico e o psicológico, os corpos vianianos
lembram marionetes, mas não pelo fato de serem conduzidos, e sim, pelo aspecto da
nulidade. Consciente das circunstâncias do espaço, Viana traz para a literatura um
realismo tão áspero quanto a linguagem – lá – reinventada.
REFERÊNCIAS
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BRANDÃO, A. M, RIBEIRO, T. C. A. (org.). Milton Santos e o Brasil. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 17-35. 319 p.
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OLIVEIRA, A. O monstro materno: representação da família no conto Herança de Antônio Carlos
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________. Aberto está o inferno. São Paulo: Companhia das letras, 2004.
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