11.10.2003
Ciência
A libertação do espírito
Num livro novo e polémico, o físico teórico Jorge Dias de Deus apresentase em defesa da ciência e do espírito científico. Afirma que não pretende
atiçar a «guerra das ciências», mas apenas repor as coisas no seu lugar
Jorge Dias de Deus é um físico teórico que lecciona no Instituto Superior Técnico, em
Lisboa. Além da sua actividade de investigação, tem-se preocupado com o papel da
ciência na sociedade e com a crítica a que esta tem sido submetida por várias correntes
filosóficas. Num novo livro, recusa a arrogância dos que pretendem que a ciência dê
respostas a todas as questões da humanidade. Mas entra abertamente em polémica com
os que levam a crítica da ciência ao ponto de a pretender transfigurar. O livro tem o
sugestivo título Da Crítica da Ciência à Negação da Ciência e foi editado pela Gradiva.
Será lançado em Lisboa esta sexta-feira pelas 19h na Livraria Almedina. Adiantando-nos
ao lançamento, fizemos algumas perguntas a Jorge Dias de Deus.
O que o levou a escrever este livro?
Julgo que, no essencial, existiram duas razões. Por
um lado, alguma vontade de retornar a problemas que
me preocupam, tais como o do papel da comunidade
científica na definição do que está certo e errado em
ciência. Por outro, o abanão que senti com o livro de
Boaventura de Sousa Santos, A Crítica da Razão
Indolente, onde a ciência é apresentada como se
estivesse à beira de um precipício, em crise
catastrófica final, tendo perdido todas as qualidades
positivas...
Comecemos pela primeira parte do seu livro: a
crítica da ciência. A que crítica se refere?
ANA BAIÃO
O trabalho de Jorge Dias de Deus
teve origem no «abanão» que
sentiu ao ler «A Crítica da Razão
Indolente» de Boaventura Sousa
Santos
A crítica da ciência se calhar é tão velha como a
própria ciência... Sempre houve a oposição das religiões, das tradições, dos poderes
estabelecidos, porque a ciência tende a ultrapassar os dogmas, as crenças, os equilíbrios
de poder existentes. Mas não é dessa crítica que se trata. É antes a crítica duma visão da
ciência como entidade acima do contexto social, fora dos conflitos humanos, da política,
da economia, quer dizer, fora da própria sociedade. É a crítica do «cientismo». É a crítica
duma ciência etérea, como se fosse feita por deuses. Explicar que a ciência é actividade
humana - sujeita às vicissitudes da natureza humana - e não actividade divina é, para
mim, o papel positivo da crítica da ciência.
Quem iniciou essa crítica?
Os críticos da ciência, no sentido indicado, começaram por ser os próprios cientistas, nos
finais do século XIX, Boltzmann, Planck, Poincaré. No século XX apareceram os cientistas
sociais, Webber, Needham, Merton, Khun. E muitos outros mais.
E em que consiste a «negação da ciência» que o preocupa?
Em minha opinião, Thomas Kuhn levou a crítica da ciência ao seu limite. A partir daí,
temos um buraco negro que se abre. Que há uma comunidade científica que decide o que
está certo e o que está errado, isso é verdade. Mas daí a concluir-se que tudo depende
exclusivamente de jogos de poder (académicos, políticos, mediáticos, ou outros) vai uma
distância infinita. O que a História mostra é que, por vezes, apesar da comunidade
científica, a verdade científica acaba sempre, ou quase sempre, por ganhar. É um pouco
como a democracia...
Não poderão sociólogos e filósofos ter razão quando acusam a ciência de uma
atitude arrogante?
Os sociólogos e filósofos têm a sua razão quanto à arrogância da ciência. Há cientistas
das ciências duras, infelizmente, que continuam a portar-se de maneira arrogante e a
contribuir para a «guerra das ciências». Fiz um esforço muito grande no livro para inverter
essa tendência, mas não sei se consegui o que queria. Deve ter ficado claro que, embora
concordando com o conteúdo das críticas de Sokal, Baptista e outros, não tenho
entusiasmo pelo estilo usado.
Mas há ou não «críticos de ciência» que se apropriam indevidamente de conceitos
científicos deturpando-os? Do Princípio da Incerteza, por exemplo?
O que me preocupa é a negação da ciência. Aquela
crítica da ciência que vai no sentido de chamar à
atenção para que se trata de uma actividade humana,
tem todo o meu apoio. Mas daí a identificar incerteza
com subjectividade, relatividade com relativismo,
teorema de Goedel com o fim da matemática vai uma
enormíssima distância. A ciência fomentou muitas
ilusões, como a do socialismo científico e a do
cristianismo científico. A ideia da morte e
transfiguração da ciência é outra ilusão. Mas, voltando
à incerteza, por exemplo, o que é preciso dizer é que
o modo de fazer ciência no essencial continua a ser o
mesmo, antes e depois do Princípio de Incerteza. E
antes e depois da Relatividade ou do Teorema de
Goedel. O método, no essencial, continua a ser o
método desenvolvido por Galileu e muitos outros.
Incluindo a falsificabilidade de Popper. Boaventura de
Sousa Santos insiste, e bem, na questão da
complexidade, apresentando-a como algo difícil para
a ciência integrar. Mas novamente cai numa ilusão: a
complexidade e a não linearidade estão perfeitamente
integradas na ciência normal!
O livro de Boaventura Sousa Santos que tem sido mais asperamente criticado é Um
Discurso sobre as Ciências, mas não é esse que refere no seu trabalho. Porquê?
Eu realmente não conhecia Um Discurso sobre as Ciências. Quando o li, já a discussão
sobre ele tinha estalado. E também por essa altura já estava a escrever a primeira parte
do meu livro e a ler Crítica da Razão Indolente. Daí a ausência de referência ao Discurso.
Agora que conhece os dois livros, acha que as teses de um e de outro são
diferentes?
Penso que, no essencial, são as mesmas. Mas na Crítica há uma visão mais messiânica
para o futuro da ciência, e não só da ciência, que me interessa mais. O que me perturbava
não era tanto a interpretação, que julgo em muitos casos errada, dos resultados científicos
feita pelos pós-modernistas, mas sim a tal visão messiânica de fim da ciência com a
transfiguração desta numa nova ciência. Esse processo é que eu considero poder levar à
negação da própria ciência.
Por que é importante esta polémica no nosso país?
É importante porque há, a todos os níveis, uma grande incompreensão do que é a ciência
e de como é feita a ciência. Na profusão dos saberes e dos seus hipotéticos relativismos
perde-se a importância da ciência e o seu papel central nas sociedades actuais e futuras.
Tentei clarificar o mais possível esta questão no meu livro.
ENTREVISTA DE NUNO CRATO
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