A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA PARA BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
E A NEGAÇÃO DO MARXISMO
Adriele Andreia Inacio1
Tatiani Maria Garcia de Almeida2
Gilson Mezarobba
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a democracia participativa para Boaventura de
Sousa Santos por meio da negação do marxismo. Para tanto, será abordado brevemente o seu
pensamento em relação ao conceito de democracia e participação social. Assim, este trabalho procura
reconhecer que a democracia participativa, apresentada pelo autor e absorvida, principalmente na
América Latina, tem uma postura antimarxista de negação da teoria central que, nas últimas décadas
tem norteado os rumos da esquerda na luta contra o capitalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Democracia; Participação social; Boaventura de Sousa Santos, antimarxismo.
INTRODUÇÃO
Boaventura de Sousa Santos é internacionalmente reconhecido como um importante
intelectual da área das Ciências Sociais. Seus trabalhos podem ser enquadrados em diversas
áreas: Direito, Filosofia, Serviço Social, Ciência Política entre outras, tornando-se referência,
principalmente, quando o assunto é Democracia.
Santos (2000) identifica no limiar do século XXI, a existência de uma transição entre
paradigmas societais e epistemológicos que estavam presentes no projeto da modernidade. Os
paradigmas societais referem-se aos diferentes modos de organizar e viver a vida em
sociedade, enquanto que os paradigmas epistemológicos dizem respeito à passagem da ciência
moderna para uma ciência pós-moderna.
A transição epistemológica ocorre entre o paradigma dominante da ciência moderna e
o paradigma emergente (conhecimento prudente para uma vida decente). A transição societal
ocorre do paradigma dominante (sociedade patriarcal, produção capitalista, consumismo
1
Mestranda em Ciências Sociais pela UEL (Universidade Estadual de Londrina). Professora do Departamento de
Serviço Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO.
2
Mestra em Ciências Sociais pela UEL (Universidade Estadual de Londrina). Professora do Departamento de
Pedagogia da Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO.
1
individualista, identidades fortaleza, democracia autoritária e desenvolvimento global e
excludente) para um conjunto de paradigmas que ainda não sabemos exatamente o que vem a
ser (PEREIRA, p. 46, 2008).
A perda da atualidade marxista, para Santos, refere-se principalmente aos limites
epistemológicos e políticos da obra marxiana, pois ao se referir a transição epistemológica o
autor também se remete as novas formas de organização da sociedade atual. Os organismos da
sociedade civil e do Estado mudaram ao longo da história capitalista e enfrentam novas
determinações que necessitam de novas teorias para dar conta de sua complexidade.
Para o Boaventura de Sousa Santos, a relação entre o moderno e o pós-moderno não é
uma relação de ruptura total e nem de continuidade linear. É uma relação contraditória. É uma
situação de ruptura. Além disso, afirma que o projeto da modernidade possui duas formas de
conhecimento: o conhecimento regulação e o conhecimento emancipação. Os pontos
extremos do primeiro são o caos (ignorância) e a ordem (conhecimento); do segundo são o
colonialismo (ignorância) e a solidariedade (conhecimento). O pilar da regulação é composto
pelo Estado, o mercado e a comunidade, enquanto no pilar da emancipação encontramos três
formas de racionalidade: a estético-expressiva, a-cognitivo - o que o autor vai denominar
instrumental e por último a racionalidade prático-moral do direito. A absorção do pilar da
emancipação pelo pilar da regulação se deu através da convergência entre modernidade e
capitalismo e a consequente racionalização da vida coletiva baseada apenas na ciência
moderna e no direito estatal moderno (SANTOS, 2000, p. 42).
Ao identificar essa superação dos paradigmas da modernidade, Santos identifica-se
com a teoria pós-moderna e distancia-se do pensamento marxista. Hobsbawm (2005) se
posicionar ao dizer que ao pensar na superação da teoria central significa em si um
antimarxismo que é uma postura presente na história recente das sociedades capitalistas
centrais e periféricas.
Santos ainda argumenta que as teorias produzidas nos países centrais não refletem a
realidade dos países da América Latina, principalmente, no que se refere às lutas democráticas
e os movimentos sociais que tem uma outra conotação nos países periféricos. Ele distingue
dos países centrais por trazerem outras lutas que não evidenciam uma transformação do
2
sistema capitalista, mas um espaço a ser conquistados pela ampliação da democracia e dos
direitos sociais.
Assim, ele entende que a dimensão da participação contribui para a criação de uma
nova gramática social e política - capaz de mudar as relações de gênero, de raça e de etnia -,
articulada a uma nova institucionalidade que vislumbre novas formas de participação e
promoção da cidadania.
OBJETIVOS GERAL
Analisar a democracia participativa para Boaventura de Sousa Santos por meio da
negação do marxismo
OBJETIVO ESPECÍFICOS
Refletir sobre a democracia e a participação social para Boaventura de Sousa Santos
Evidenciar as critica que se referem à Boaventura como um antimarxista.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O cunho da pesquisa é bibliográfico, de acordo com segundo Lakatos e Marconi
(1991), a pesquisa bibliográfica tem por finalidade conhecer as diferentes formas de
contribuição científica que se realizaram sobre determinado assunto ou fenômeno. Isso será
apresentado por meio da revisão da literatura apresentada na sequência. No que se refere aos
aspectos éticos da pesquisa, com base na Resolução 466-2012, não apresenta riscos, pois não
envolvem seres humanos no que tange a discussão dos resultados.
RESULTADOS
A democracia participativa para Santos – Conflitos e debates
Santos e Avritzer preocupam-se com as origens das concepções de democracia. Para
eles é preciso saber negar as concepções substantivas de razão e as formas homogeneizadoras
de organização da sociedade, reconhecendo a pluralidade humana.
3
Este reconhecimento, entretanto, da pluralidade humana dá-se não apenas a partir da
suspensão da ideia de bem comum, tal como propõem, por exemplo, Schumpeter (1984) ao
defender a democracia representativa e argumentar que o papel do eleitorado é produzir um
governo e desapossá-lo. Produzir um governo significa a aceitação de um líder ou grupo de
líderes, enquanto a função de desapossar é a retirada da aceitação nas urnas. As rédeas do
governo, por sua vez, devem ser dadas àqueles que têm mais apoio na competição pelos votos.
Ao contrapor-se a ideia de Schumpeter, Santos e Avritzer (2002) propõem dois
critérios distintos para a efetivação de uma democracia participativa: a ênfase na criação de
uma nova gramática social e cultural e o entendimento da inovação social articulada com a
inovação institucional, isto é, com a procura de uma nova institucionalidade da democracia.
Entende-se a democracia como uma forma sócio-histórica, não sendo esta determinada
por leis naturais. Isso implica em romper com concepções tradicionais democráticas e uma
forma de instituir novas determinações.
É essa a indeterminação produzida pela gramática democrática, ao invés apenas da
indeterminação de não saber quem será o novo ocupante de uma posição de poder (SANTOS
E AVRITZER, 2002, p. 51-52).
Estes elementos chamados por Santos e Avritzer de contra-hegemônicos, também
precisam levar em consideração as condições sociais, econômicas e políticas que se
encontram determinados países. Essa condição reflete aspectos do posicionamento elaborado
por Santos de que os paradigmas teóricos que explicam as realidades da Europa e Norte
Americana, não dão conta da realidade da América do Sul, por exemplo.
Neste contexto, no interior das teorias contra−hegemônicas, Santo e Avritzer ressaltam
que Jürgen Habermas foi o autor que abriu o espaço para que o procedimentalismo passasse a
ser pensado como prática societária e não como método de constituição de governos.
“Para Habermas, a esfera pública constitui um local no qual os indivíduos − mulheres,
negros, trabalhadores, minorias raciais − podem problematizar em público uma condição de
desigualdade da esfera privada” (SANTOS, AVRITZER, 2002, p. 52).
Nesta concepção, a ampliação da democracia parte da participação dos segmentos
sociais, parte da esfera privada para a pública. A política torna-se plural quando conta com o
assentimento desses atores em processos racionais de discussão e deliberação.
4
Portanto, o procedimentalismo democrático não pode ser, tal como supõe Bobbio, um
método de autorização de governos. Ele tem de ser, tal como nos mostra Joshua Cohen,
uma forma de exercício colectivo do poder político cuja base seja um processo livre de
apresentação de razões entre iguais (COHEN apud SANTOS E AVRITZER, 2002, p. 52).
A democracia, para Boaventura, passa pelo respeito à diferente história dos povos. As
mudanças ocorridas recentemente, nas três últimas décadas, no âmbito da sociedade,
desenvolvem uma subjetividade cidadã preconizada pelos movimentos sociais, organizados
nos diferentes grupos, com os mais diversos interesses. Isso amplia os processos
participativos e torna os espaços mais democráticos, inclusive o Estado.
(...) a globalização neoliberal não se limita a submeter ao mercado um número crescente de
interacções, nem a aumentar a taxa de exploração dos trabalhadores (…) veio mostrar, com
acrescida e brutal clareza, que a exploração está ligada a muitas outras formas de opressão
que afectam mulheres, minorias étnicas, povos indígenas, camponeses, desempregados,
trabalhadores do sector informal, imigrantes legais e ilegais, subclasses de guetos urbanos,
homossexuais e lésbicas, crianças e jovens sem futuro digno. Todas essas formas de poder e
opressão criam exclusão. Não se pode atribuir a uma delas, em abstracto, ou às práticas que
lhe resistem, qualquer reivindicação de "um outro mundo possível". (...), no entanto, não
basta a igualdade como ideal emancipatório. A igualdade, entendida como equivalência
entre o mesmo, acaba por excluir o que é diferente. Tudo que é homogêneo no início tende
a converter-se mais tarde em violência excludente (...). Aqui reside a base para a opção em
favor da democracia participativa, enquanto princípio regulador da emancipação social, em
detrimento de modelos fechados como o socialismo de Estado (SANTOS, 2005, p. 35-36).
O sociólogo português acredita ainda que ao defender a necessidade de uma nova teoria da
democracia, busca alargar e aprofundar o campo político de todos os espaços estruturais de
interação social. Desvela, assim, as relações de poder existentes no interior de cada um destes
espaços, além de conquistar o caráter político destas relações. Esta teoria deve-se articular com uma
nova teoria da emancipação, cujas bases ainda estão por construir, mas que deverão,
necessariamente, articular os novos sujeitos emergentes, como os movimentos que nos últimos
trinta anos tem assumido um papel de centralidade nos debates mais decisivos da luta política nos
espaços acima mencionados, entre outros cita-se o feminista, o de igualdade racial, o de
homossexuais, o de juventude, idosos, ecológico (SANTOS, 1995).
Neste sentido, as relações de poder que se estabelecem na sociedade não são isoladas,
conforme afirma Santos. Os espaços de poder se integram, contudo tem formas de dominação
diferenciada, têm também formas de resistência que se integram a uma constelação de
práticas emancipatórias.
5
Para Santos, a emancipação e a transformação social passariam por todos os espaços
de poder, que se complementam e se interrelacionam, não havendo, assim, um espaço
privilegiado de transformação das relações sociais.
A emancipação é tão relacional como o poder contra o qual se insurge. Não há
emancipação em si, mas antes relações emancipatórias, relações que criam um número cada
vez maior de relações cada vez mais iguais. As relações emancipatórias desenvolvem-se,
portanto, no interior das relações de poder, não como resultado automático de uma qualquer
contradição essencial, mas como resultados criados e criativos de contradições criadas e
criativas (SANTOS, 2001, p. 269).
Para o autor, a democracia participativa torna-se alternativa que se coloca no campo
das teorias não-hegemônicas e espaço da emancipação social pela transformação das relações
de poder em relações de autoridade compartilhada, tem experimentado inovações que
parecem bem sucedidas, as quais possibilitam a instauração de uma nova determinação
política baseada na criatividade dos atores sociais (SANTOS, 2001).
Dessa forma, as mudanças mais significativas no formato democrático têm suas
origens em movimentos sociais que questionaram práticas sociais excludentes, por meio de
ações que geraram novas formas de controle do governo pelos cidadãos, surgindo a partir de
mudanças em práticas societárias introduzidas pelos atores sociais e resgatando tradições
democráticas locais, ignoradas pelas formas de democracia representativas hegemônicas. É
importante salientar, no entanto, que o desenho de novas formas de emancipação social tem
seu traçado construído a partir de práticas que ocorrem em contextos específicos, para dar
respostas a problemas concretos, não sendo possível, portanto, "tirar delas soluções
universais, válidas em qualquer contexto" (SANTOS, 2002. p. 71).
Assim, para Santos, a democracia participativa constituiria uma das grandes
possibilidades de emancipação social e transformação das desigualdades sociais, que se
elevariam as esferas públicas.
O Antimarxismo de Boaventura de Souza Santos
A teoria de Boaventura de Sousa Santos consiste em enaltecer a democracia
participativa como um meio de transformação social, em que os indivíduos lutam pelos seus
direitos sociais. Contudo, é necessário elencar-se alguns apontamentos no que se refere à
6
abordagem não critica de transformação a dominação capitalista do autor. Ele atinge apenas
aspectos parciais do sistema que não implicam um enfrentamento a sociedade burguesa.
Nesta perspectiva, Santos procura estabelecer um nova teoria critica, pois expõe diversas
alternativas que no interior da democracia participativa poderiam acontecer para a transformação
social, ou seja, constituída por “subjetividades rebeldes” (MELO, 2010, p. 303).
Santos se distancia do marxismo ao fragmentar o pensamento da totalidade, que é a
síntese das múltiplas determinações, configurando uma realidade social que não totalizante,
mas composta por fenômenos que se interinfluenciam continuamente, ainda que possuam
autonomia relativa (MELO, 2010).
A aproximação do autor da pós-modernidade3 descaracteriza a perspectiva de luta em
longo prazo. Evidencia, na verdade, as reivindicações nos grupos minoritários ou que sentem
desprivilegiados dentro do sistema democrático e de direito.
Não se trata de projetar para um futuro que nunca chegue às possibilidades de melhoria das
condições de vida, numa concepção de uma sociedade comunista como uma espécie de
paraíso cristão em que reinaria a harmonia, o descanso eterno, enfim o reino da liberdade
idílico. Por outro lado, a contratação do futuro cancela a perspectiva da necessidade de
enfrentamento sistêmico ordem do capital, algo que só se pode fazer em perspectiva mais
ampliada, salvo se partidário das teses mais explosivas, de revolução (MELO, 2010, p. 304).
Nesse sentido, é impossível visualizar na teoria do sociólogo português a transformação
do sistema capitalista. Como corrobora José Paulo Netto (2004) ao criticar a abordagem de
Boaventura sobre o marxismo, considerando-a incipiente e sem contextualização histórica das
contribuições que as revoluções marxistas trouxeram para a história.
Em suma, a minha crítica não incide sobre as escolhas, os cortes, enfim a seleção a que Sousa
Santos obrigou-se pela natureza sinótica do seu 'breve excurso': o que é débil e frágil é o
tratamento teórico-crítico que conferiu ao objeto desse excurso – do qual resulta uma leitura
vulgar e muito simplória da tradição marxista. Resultado não só injustificável, quando se
3 Na Pós-modernidade, há na verdade a desconcentração do poder corporativo em rápido crescimento com
relação aos mercados nacionais; crescente internacionalização do capital e, em alguns casos, separação entre
capital industrial e capital bancário; declínio relativo/absoluto da classe trabalhadora e da eficácia da
negociação coletiva; ocorre a industrialização de países do Terceiro Mundo e desindustrialização de países
centrais, que se voltam para a especialização em serviços; ocorre a fragmentação cultural e pluralismos,
aliados ao solapamento das identidades tradicionais ou de classe; sentimos o declínio da dimensão da fábrica
propiciado pela dispersão geográfica, pelo aumento da sub-contratação e por sistema de produção global
(HARVEY, 1998, p.165, 166).
7
conhece o talento do autor e se reconhece a riqueza do objeto, mas, sobretudo, inepto para
fundar qualquer apreciação séria do legado marxiano no século XX (NETTO, 2004, p. 227).
Não se pode pensar na hipótese de uma continuidade do capitalismo de forma natural,
sem as contradições postas no sistema. Não existe espontaneidade da reprodução no que toca
ao desenvolvimento das forças produtivas vinculadas às lutas entre capital e trabalho.
Dessa forma, é neste antagonismo radical, cuja solução socialmente progressista
depende do nível de consciência e intervenção sociopolítica dos trabalhadores, que leva o
capital à inovação científico-tecnológica (NETTO, 2004).
Para Boaventura de Sousa Santos (1995) o conflito leste-oeste foi um dos grandes
responsáveis pelo que durante todo o século XX a sociologia tivesse sido feita com as teorias
e conceitos que nos foram legados pelo século XIX. Para o autor, o fim desse conflito cria a
oportunidade para a “criatividade teórica e para a transgressão metodológica e epistemológica
e essa oportunidade só será desperdiçada se nos esquecermos que o fim do conflito LesteOeste ocorre de par com o agravamento do conflito Norte-sul” (SANTOS, 1995, p. 19).
O conflito leste-oeste de que fala Santos trata-se dos embates entre os projetos
socialista e capitalistas. Conforme o autor essas questões tem levado a utilização de teorias
atrasadas. Com o fim do conflito, surge a possibilidade de uma nova teoria. Contudo, com o
fim da chamada Guerra Fria, o antigo conflito entre o socialismo e o capitalismo nos termos
anteriores terminou, mas ainda há um impasse entre essas concepções duais. Assim, a
denominada “criatividade teórica e transgressão metodológica e epistemológica”, nada mais é
do que uma teoria social reformadora.
CONCLUSÃO
Com base nos pressupostos de Boaventura de Sousa Santos a democracia assumiu um
lugar de destaque no campo político no século XX. Entre as principais transformações
ocorridas, podemos citar a emergência dos novos movimentos sociais, protagonizadas por
diferentes grupos sociais, emergindo assim, novos sujeitos nesse âmbito.
É esta a razão que faz este “olhar sociológico” converter a teoria social de Marx numa
enciclopédia sob tal luz de determinações complexas, bem como os seus igualmente
complexos sistemas de mediações, que articulam a totalidade concreta que é a sociedade
8
burguesa. Desse modo, passam a oferecer o espaço ideal, seja para a construção reflexiva de
determinismos simplistas, seja para a postulação, também puramente reflexiva, de autonomias
relativas. Santos conceitua como hipostasia, que são as concretas indeterminações e
mediações entre os vários níveis, instâncias e esferas constitutivas da sociedade – dificuldades
que, às vezes, se convertem mesmo em impossibilidades (SANTOS, 2000).
Além disso, as lutas dos novos movimentos sociais pautam-se pela democracia
participativa, tendo como lócus a sociedade civil e não mais o Estado, devido à ampliação do
Estado democrático. Assim, a revisão da teoria democrática tem como objetivo realizar uma
repolitização global, emergindo com base em critérios de participação política que não se
resumem ao simples ato de votar.
Para Boaventura o modelo liberal de democracia, como único e universal, implicaria
na perda da demodiversidade4, o que seria extremamente negativo por dois fatores: primeiro
porque há uma distinção entre democracia como um ideal (hegemônico) e democracia como
prática; e segundo porque, acreditando que o valor da democracia é intrínseco e não
meramente uma utilidade instrumental, esse valor não pode assumir-se como universal, pois
estaria inscrito em uma determinada cultura, a da modernidade ocidental. Essa cultura, por
coexistir em um mundo que agora se reconhece como multicultural, não poderia reivindicar
universalidade de seus valores, pois impor qualquer universalidade seria uma prática imperial
que infelizmente hoje é promovida pelas instituições que em seu nome impõem a adoção da
democracia liberal (por exemplo, ONU, UNESCO). A convergência entre concepções
postuladas por diferentes culturas devem ser, no máximo, um ponto de chegada de um
“diálogo intercultural” (GAROFANO, 2012, p. 16).
Desse modo, as culturas nacionais não são unificadas, mas constituem um dispositivo
discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Segundo Boaventura
(2002, p. 52) “pensar em democracia como ruptura positiva da trajetória de uma sociedade
implica abordar os elementos culturais dessa mesma sociedade”. O ponto central desta
definição de democracia é limitar o poder arbitrário do Estado a fim de proteger o indivíduo e
a “sociedade civil” das intervenções indevidas deste. Mas nada se diz sobre a distribuição do
4 Boaventura de Sousa Santos entende que a demodiversidade é a coexistência pacífica ou conflitual de
diferentes modelos e práticas democráticas.
9
poder social, quer dizer, a distribuição de poder entre as classes. Em realidade, a ênfase desta
concepção de democracia não se encontra no poder do povo, mas sim em seus direitos
passivos, não assinala o poder próprio do povo como soberano, mas sim no melhor dos casos
aponta para a proteção de direitos individuais contra a ingerência do poder de outros. De tal
modo, esta concepção de democracia focaliza meramente o poder político, abstraindo-o das
relações sociais ao mesmo tempo em que apela a um tipo de cidadania passiva na qual o
cidadão é efetivamente despolitizado (WOOD, 2004).
A Democracia representativa, a democracia eleitoral, tal como existe, como assevera
Celiberti (2005, p. 56), é incapaz de sustentar a democracia como sistema, senão articulada
como uma forte participação cidadã e, portanto, como uma democracia participativa que
amplie o debate sobre as prioridades e urgências da agenda social e econômica dos cidadãos.
REFERÊNCIAS
AVRITZER, Leonardo; SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Ampliar o Cânone Democrático. IN:
Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia Participativa. RJ: Civilização Brasileira,
2002.
CELIBERTI, Lilian. Atores, Práticas e Discursos da Participação. In: TEIXEIRA, A. C. C. (Org.).
Os Sentidos da Democracia e Participação. SP: Instituto Pólis, 2005.
DAGNINO, E; OLVERA, A.; PANFICHI, A. (orgs.). A disputa pela construção democrática na
América Latina. São Paulo/Campinas, SP: Paz e Terra/Unicamp, 2006.
GAROFANO, Rafael Roque. Capitalismo e democracia na pós-modernidade: uma análise crítica
da teoria democrática de Boaventura de Sousa Santos. In: Âmbito Jurídico. Rio Grande, XV, n.
98, mar 2012. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11216&revista_caderno=24>.
Acesso em abril de 2014.
GOMES, Fabio Guedes. Conflito Social e Welfare State: Estado e desenvolvimento social no
Brasil. RAP. RJ: 201-236. Mar/Abr-2006.
HARVEY, David. A condição pós-moderna. Trad. Adail Sobral e Maria Gonçalves. 7ª ed. São
Paulo: Layola, 1998.
HOBSBAWM, Eric. Tempos Interessantes: uma vida no século XX. SP: Companhia das Letras,
2005.
LAKATOS, Eva Maria & MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Científica. 2ª ed. São Paulo:
Atlas, 1991.
10
MELO, Marcelo Paula de. Boaventura de Sousa Santos e antimarxismo: algumas notas. In:
Revista HISTEDBR on-line, Campinas, n. 39, p. 297-315, set, 2010. Disponível em
http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/edicoes/39/art18_39.pdf. Acessado em 13 de Maio de
2014.
NETTO, José Paulo. De como não ler Marx ou não o Marx de Sousa Santos. In:______. Marximo
Impenitente. Contribuições à história das ideias marxistas, SP: Cortez, 2004, pp. 223-241.
PEREIRA, Marcus Abílio; CARVALHO, Ernani. Boaventura de Sousa Santos: por uma nova
gramática do político e do social. Revista Lua Nova, São Paulo, 45-58, 2008.
RESOLUÇÃO
Nº
466,
de
12
de
Dezembro
de
2012.
Disponivel
em:
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf, Acesso em: 20 de Junho de 2014.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Cortez, 1995.
______. O Fórum Social Mundial: manual de uso. Porto: Afrontamento, 2005.
______. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez,
2001.
______. Democracia e participação. Porto: Afrontamento, 2002.
______. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editora,
1984.
WOOD, Ellen M. Democracia contra capitalismo: renovação do materialismo histórico. SP:
Boitempo, 2003.
11
Download

Baixar Artigo