A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA PARA BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS E A NEGAÇÃO DO MARXISMO Adriele Andreia Inacio1 Tatiani Maria Garcia de Almeida2 Gilson Mezarobba RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a democracia participativa para Boaventura de Sousa Santos por meio da negação do marxismo. Para tanto, será abordado brevemente o seu pensamento em relação ao conceito de democracia e participação social. Assim, este trabalho procura reconhecer que a democracia participativa, apresentada pelo autor e absorvida, principalmente na América Latina, tem uma postura antimarxista de negação da teoria central que, nas últimas décadas tem norteado os rumos da esquerda na luta contra o capitalismo. PALAVRAS-CHAVE: Democracia; Participação social; Boaventura de Sousa Santos, antimarxismo. INTRODUÇÃO Boaventura de Sousa Santos é internacionalmente reconhecido como um importante intelectual da área das Ciências Sociais. Seus trabalhos podem ser enquadrados em diversas áreas: Direito, Filosofia, Serviço Social, Ciência Política entre outras, tornando-se referência, principalmente, quando o assunto é Democracia. Santos (2000) identifica no limiar do século XXI, a existência de uma transição entre paradigmas societais e epistemológicos que estavam presentes no projeto da modernidade. Os paradigmas societais referem-se aos diferentes modos de organizar e viver a vida em sociedade, enquanto que os paradigmas epistemológicos dizem respeito à passagem da ciência moderna para uma ciência pós-moderna. A transição epistemológica ocorre entre o paradigma dominante da ciência moderna e o paradigma emergente (conhecimento prudente para uma vida decente). A transição societal ocorre do paradigma dominante (sociedade patriarcal, produção capitalista, consumismo 1 Mestranda em Ciências Sociais pela UEL (Universidade Estadual de Londrina). Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO. 2 Mestra em Ciências Sociais pela UEL (Universidade Estadual de Londrina). Professora do Departamento de Pedagogia da Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO. 1 individualista, identidades fortaleza, democracia autoritária e desenvolvimento global e excludente) para um conjunto de paradigmas que ainda não sabemos exatamente o que vem a ser (PEREIRA, p. 46, 2008). A perda da atualidade marxista, para Santos, refere-se principalmente aos limites epistemológicos e políticos da obra marxiana, pois ao se referir a transição epistemológica o autor também se remete as novas formas de organização da sociedade atual. Os organismos da sociedade civil e do Estado mudaram ao longo da história capitalista e enfrentam novas determinações que necessitam de novas teorias para dar conta de sua complexidade. Para o Boaventura de Sousa Santos, a relação entre o moderno e o pós-moderno não é uma relação de ruptura total e nem de continuidade linear. É uma relação contraditória. É uma situação de ruptura. Além disso, afirma que o projeto da modernidade possui duas formas de conhecimento: o conhecimento regulação e o conhecimento emancipação. Os pontos extremos do primeiro são o caos (ignorância) e a ordem (conhecimento); do segundo são o colonialismo (ignorância) e a solidariedade (conhecimento). O pilar da regulação é composto pelo Estado, o mercado e a comunidade, enquanto no pilar da emancipação encontramos três formas de racionalidade: a estético-expressiva, a-cognitivo - o que o autor vai denominar instrumental e por último a racionalidade prático-moral do direito. A absorção do pilar da emancipação pelo pilar da regulação se deu através da convergência entre modernidade e capitalismo e a consequente racionalização da vida coletiva baseada apenas na ciência moderna e no direito estatal moderno (SANTOS, 2000, p. 42). Ao identificar essa superação dos paradigmas da modernidade, Santos identifica-se com a teoria pós-moderna e distancia-se do pensamento marxista. Hobsbawm (2005) se posicionar ao dizer que ao pensar na superação da teoria central significa em si um antimarxismo que é uma postura presente na história recente das sociedades capitalistas centrais e periféricas. Santos ainda argumenta que as teorias produzidas nos países centrais não refletem a realidade dos países da América Latina, principalmente, no que se refere às lutas democráticas e os movimentos sociais que tem uma outra conotação nos países periféricos. Ele distingue dos países centrais por trazerem outras lutas que não evidenciam uma transformação do 2 sistema capitalista, mas um espaço a ser conquistados pela ampliação da democracia e dos direitos sociais. Assim, ele entende que a dimensão da participação contribui para a criação de uma nova gramática social e política - capaz de mudar as relações de gênero, de raça e de etnia -, articulada a uma nova institucionalidade que vislumbre novas formas de participação e promoção da cidadania. OBJETIVOS GERAL Analisar a democracia participativa para Boaventura de Sousa Santos por meio da negação do marxismo OBJETIVO ESPECÍFICOS Refletir sobre a democracia e a participação social para Boaventura de Sousa Santos Evidenciar as critica que se referem à Boaventura como um antimarxista. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS O cunho da pesquisa é bibliográfico, de acordo com segundo Lakatos e Marconi (1991), a pesquisa bibliográfica tem por finalidade conhecer as diferentes formas de contribuição científica que se realizaram sobre determinado assunto ou fenômeno. Isso será apresentado por meio da revisão da literatura apresentada na sequência. No que se refere aos aspectos éticos da pesquisa, com base na Resolução 466-2012, não apresenta riscos, pois não envolvem seres humanos no que tange a discussão dos resultados. RESULTADOS A democracia participativa para Santos – Conflitos e debates Santos e Avritzer preocupam-se com as origens das concepções de democracia. Para eles é preciso saber negar as concepções substantivas de razão e as formas homogeneizadoras de organização da sociedade, reconhecendo a pluralidade humana. 3 Este reconhecimento, entretanto, da pluralidade humana dá-se não apenas a partir da suspensão da ideia de bem comum, tal como propõem, por exemplo, Schumpeter (1984) ao defender a democracia representativa e argumentar que o papel do eleitorado é produzir um governo e desapossá-lo. Produzir um governo significa a aceitação de um líder ou grupo de líderes, enquanto a função de desapossar é a retirada da aceitação nas urnas. As rédeas do governo, por sua vez, devem ser dadas àqueles que têm mais apoio na competição pelos votos. Ao contrapor-se a ideia de Schumpeter, Santos e Avritzer (2002) propõem dois critérios distintos para a efetivação de uma democracia participativa: a ênfase na criação de uma nova gramática social e cultural e o entendimento da inovação social articulada com a inovação institucional, isto é, com a procura de uma nova institucionalidade da democracia. Entende-se a democracia como uma forma sócio-histórica, não sendo esta determinada por leis naturais. Isso implica em romper com concepções tradicionais democráticas e uma forma de instituir novas determinações. É essa a indeterminação produzida pela gramática democrática, ao invés apenas da indeterminação de não saber quem será o novo ocupante de uma posição de poder (SANTOS E AVRITZER, 2002, p. 51-52). Estes elementos chamados por Santos e Avritzer de contra-hegemônicos, também precisam levar em consideração as condições sociais, econômicas e políticas que se encontram determinados países. Essa condição reflete aspectos do posicionamento elaborado por Santos de que os paradigmas teóricos que explicam as realidades da Europa e Norte Americana, não dão conta da realidade da América do Sul, por exemplo. Neste contexto, no interior das teorias contra−hegemônicas, Santo e Avritzer ressaltam que Jürgen Habermas foi o autor que abriu o espaço para que o procedimentalismo passasse a ser pensado como prática societária e não como método de constituição de governos. “Para Habermas, a esfera pública constitui um local no qual os indivíduos − mulheres, negros, trabalhadores, minorias raciais − podem problematizar em público uma condição de desigualdade da esfera privada” (SANTOS, AVRITZER, 2002, p. 52). Nesta concepção, a ampliação da democracia parte da participação dos segmentos sociais, parte da esfera privada para a pública. A política torna-se plural quando conta com o assentimento desses atores em processos racionais de discussão e deliberação. 4 Portanto, o procedimentalismo democrático não pode ser, tal como supõe Bobbio, um método de autorização de governos. Ele tem de ser, tal como nos mostra Joshua Cohen, uma forma de exercício colectivo do poder político cuja base seja um processo livre de apresentação de razões entre iguais (COHEN apud SANTOS E AVRITZER, 2002, p. 52). A democracia, para Boaventura, passa pelo respeito à diferente história dos povos. As mudanças ocorridas recentemente, nas três últimas décadas, no âmbito da sociedade, desenvolvem uma subjetividade cidadã preconizada pelos movimentos sociais, organizados nos diferentes grupos, com os mais diversos interesses. Isso amplia os processos participativos e torna os espaços mais democráticos, inclusive o Estado. (...) a globalização neoliberal não se limita a submeter ao mercado um número crescente de interacções, nem a aumentar a taxa de exploração dos trabalhadores (…) veio mostrar, com acrescida e brutal clareza, que a exploração está ligada a muitas outras formas de opressão que afectam mulheres, minorias étnicas, povos indígenas, camponeses, desempregados, trabalhadores do sector informal, imigrantes legais e ilegais, subclasses de guetos urbanos, homossexuais e lésbicas, crianças e jovens sem futuro digno. Todas essas formas de poder e opressão criam exclusão. Não se pode atribuir a uma delas, em abstracto, ou às práticas que lhe resistem, qualquer reivindicação de "um outro mundo possível". (...), no entanto, não basta a igualdade como ideal emancipatório. A igualdade, entendida como equivalência entre o mesmo, acaba por excluir o que é diferente. Tudo que é homogêneo no início tende a converter-se mais tarde em violência excludente (...). Aqui reside a base para a opção em favor da democracia participativa, enquanto princípio regulador da emancipação social, em detrimento de modelos fechados como o socialismo de Estado (SANTOS, 2005, p. 35-36). O sociólogo português acredita ainda que ao defender a necessidade de uma nova teoria da democracia, busca alargar e aprofundar o campo político de todos os espaços estruturais de interação social. Desvela, assim, as relações de poder existentes no interior de cada um destes espaços, além de conquistar o caráter político destas relações. Esta teoria deve-se articular com uma nova teoria da emancipação, cujas bases ainda estão por construir, mas que deverão, necessariamente, articular os novos sujeitos emergentes, como os movimentos que nos últimos trinta anos tem assumido um papel de centralidade nos debates mais decisivos da luta política nos espaços acima mencionados, entre outros cita-se o feminista, o de igualdade racial, o de homossexuais, o de juventude, idosos, ecológico (SANTOS, 1995). Neste sentido, as relações de poder que se estabelecem na sociedade não são isoladas, conforme afirma Santos. Os espaços de poder se integram, contudo tem formas de dominação diferenciada, têm também formas de resistência que se integram a uma constelação de práticas emancipatórias. 5 Para Santos, a emancipação e a transformação social passariam por todos os espaços de poder, que se complementam e se interrelacionam, não havendo, assim, um espaço privilegiado de transformação das relações sociais. A emancipação é tão relacional como o poder contra o qual se insurge. Não há emancipação em si, mas antes relações emancipatórias, relações que criam um número cada vez maior de relações cada vez mais iguais. As relações emancipatórias desenvolvem-se, portanto, no interior das relações de poder, não como resultado automático de uma qualquer contradição essencial, mas como resultados criados e criativos de contradições criadas e criativas (SANTOS, 2001, p. 269). Para o autor, a democracia participativa torna-se alternativa que se coloca no campo das teorias não-hegemônicas e espaço da emancipação social pela transformação das relações de poder em relações de autoridade compartilhada, tem experimentado inovações que parecem bem sucedidas, as quais possibilitam a instauração de uma nova determinação política baseada na criatividade dos atores sociais (SANTOS, 2001). Dessa forma, as mudanças mais significativas no formato democrático têm suas origens em movimentos sociais que questionaram práticas sociais excludentes, por meio de ações que geraram novas formas de controle do governo pelos cidadãos, surgindo a partir de mudanças em práticas societárias introduzidas pelos atores sociais e resgatando tradições democráticas locais, ignoradas pelas formas de democracia representativas hegemônicas. É importante salientar, no entanto, que o desenho de novas formas de emancipação social tem seu traçado construído a partir de práticas que ocorrem em contextos específicos, para dar respostas a problemas concretos, não sendo possível, portanto, "tirar delas soluções universais, válidas em qualquer contexto" (SANTOS, 2002. p. 71). Assim, para Santos, a democracia participativa constituiria uma das grandes possibilidades de emancipação social e transformação das desigualdades sociais, que se elevariam as esferas públicas. O Antimarxismo de Boaventura de Souza Santos A teoria de Boaventura de Sousa Santos consiste em enaltecer a democracia participativa como um meio de transformação social, em que os indivíduos lutam pelos seus direitos sociais. Contudo, é necessário elencar-se alguns apontamentos no que se refere à 6 abordagem não critica de transformação a dominação capitalista do autor. Ele atinge apenas aspectos parciais do sistema que não implicam um enfrentamento a sociedade burguesa. Nesta perspectiva, Santos procura estabelecer um nova teoria critica, pois expõe diversas alternativas que no interior da democracia participativa poderiam acontecer para a transformação social, ou seja, constituída por “subjetividades rebeldes” (MELO, 2010, p. 303). Santos se distancia do marxismo ao fragmentar o pensamento da totalidade, que é a síntese das múltiplas determinações, configurando uma realidade social que não totalizante, mas composta por fenômenos que se interinfluenciam continuamente, ainda que possuam autonomia relativa (MELO, 2010). A aproximação do autor da pós-modernidade3 descaracteriza a perspectiva de luta em longo prazo. Evidencia, na verdade, as reivindicações nos grupos minoritários ou que sentem desprivilegiados dentro do sistema democrático e de direito. Não se trata de projetar para um futuro que nunca chegue às possibilidades de melhoria das condições de vida, numa concepção de uma sociedade comunista como uma espécie de paraíso cristão em que reinaria a harmonia, o descanso eterno, enfim o reino da liberdade idílico. Por outro lado, a contratação do futuro cancela a perspectiva da necessidade de enfrentamento sistêmico ordem do capital, algo que só se pode fazer em perspectiva mais ampliada, salvo se partidário das teses mais explosivas, de revolução (MELO, 2010, p. 304). Nesse sentido, é impossível visualizar na teoria do sociólogo português a transformação do sistema capitalista. Como corrobora José Paulo Netto (2004) ao criticar a abordagem de Boaventura sobre o marxismo, considerando-a incipiente e sem contextualização histórica das contribuições que as revoluções marxistas trouxeram para a história. Em suma, a minha crítica não incide sobre as escolhas, os cortes, enfim a seleção a que Sousa Santos obrigou-se pela natureza sinótica do seu 'breve excurso': o que é débil e frágil é o tratamento teórico-crítico que conferiu ao objeto desse excurso – do qual resulta uma leitura vulgar e muito simplória da tradição marxista. Resultado não só injustificável, quando se 3 Na Pós-modernidade, há na verdade a desconcentração do poder corporativo em rápido crescimento com relação aos mercados nacionais; crescente internacionalização do capital e, em alguns casos, separação entre capital industrial e capital bancário; declínio relativo/absoluto da classe trabalhadora e da eficácia da negociação coletiva; ocorre a industrialização de países do Terceiro Mundo e desindustrialização de países centrais, que se voltam para a especialização em serviços; ocorre a fragmentação cultural e pluralismos, aliados ao solapamento das identidades tradicionais ou de classe; sentimos o declínio da dimensão da fábrica propiciado pela dispersão geográfica, pelo aumento da sub-contratação e por sistema de produção global (HARVEY, 1998, p.165, 166). 7 conhece o talento do autor e se reconhece a riqueza do objeto, mas, sobretudo, inepto para fundar qualquer apreciação séria do legado marxiano no século XX (NETTO, 2004, p. 227). Não se pode pensar na hipótese de uma continuidade do capitalismo de forma natural, sem as contradições postas no sistema. Não existe espontaneidade da reprodução no que toca ao desenvolvimento das forças produtivas vinculadas às lutas entre capital e trabalho. Dessa forma, é neste antagonismo radical, cuja solução socialmente progressista depende do nível de consciência e intervenção sociopolítica dos trabalhadores, que leva o capital à inovação científico-tecnológica (NETTO, 2004). Para Boaventura de Sousa Santos (1995) o conflito leste-oeste foi um dos grandes responsáveis pelo que durante todo o século XX a sociologia tivesse sido feita com as teorias e conceitos que nos foram legados pelo século XIX. Para o autor, o fim desse conflito cria a oportunidade para a “criatividade teórica e para a transgressão metodológica e epistemológica e essa oportunidade só será desperdiçada se nos esquecermos que o fim do conflito LesteOeste ocorre de par com o agravamento do conflito Norte-sul” (SANTOS, 1995, p. 19). O conflito leste-oeste de que fala Santos trata-se dos embates entre os projetos socialista e capitalistas. Conforme o autor essas questões tem levado a utilização de teorias atrasadas. Com o fim do conflito, surge a possibilidade de uma nova teoria. Contudo, com o fim da chamada Guerra Fria, o antigo conflito entre o socialismo e o capitalismo nos termos anteriores terminou, mas ainda há um impasse entre essas concepções duais. Assim, a denominada “criatividade teórica e transgressão metodológica e epistemológica”, nada mais é do que uma teoria social reformadora. CONCLUSÃO Com base nos pressupostos de Boaventura de Sousa Santos a democracia assumiu um lugar de destaque no campo político no século XX. Entre as principais transformações ocorridas, podemos citar a emergência dos novos movimentos sociais, protagonizadas por diferentes grupos sociais, emergindo assim, novos sujeitos nesse âmbito. É esta a razão que faz este “olhar sociológico” converter a teoria social de Marx numa enciclopédia sob tal luz de determinações complexas, bem como os seus igualmente complexos sistemas de mediações, que articulam a totalidade concreta que é a sociedade 8 burguesa. Desse modo, passam a oferecer o espaço ideal, seja para a construção reflexiva de determinismos simplistas, seja para a postulação, também puramente reflexiva, de autonomias relativas. Santos conceitua como hipostasia, que são as concretas indeterminações e mediações entre os vários níveis, instâncias e esferas constitutivas da sociedade – dificuldades que, às vezes, se convertem mesmo em impossibilidades (SANTOS, 2000). Além disso, as lutas dos novos movimentos sociais pautam-se pela democracia participativa, tendo como lócus a sociedade civil e não mais o Estado, devido à ampliação do Estado democrático. Assim, a revisão da teoria democrática tem como objetivo realizar uma repolitização global, emergindo com base em critérios de participação política que não se resumem ao simples ato de votar. Para Boaventura o modelo liberal de democracia, como único e universal, implicaria na perda da demodiversidade4, o que seria extremamente negativo por dois fatores: primeiro porque há uma distinção entre democracia como um ideal (hegemônico) e democracia como prática; e segundo porque, acreditando que o valor da democracia é intrínseco e não meramente uma utilidade instrumental, esse valor não pode assumir-se como universal, pois estaria inscrito em uma determinada cultura, a da modernidade ocidental. Essa cultura, por coexistir em um mundo que agora se reconhece como multicultural, não poderia reivindicar universalidade de seus valores, pois impor qualquer universalidade seria uma prática imperial que infelizmente hoje é promovida pelas instituições que em seu nome impõem a adoção da democracia liberal (por exemplo, ONU, UNESCO). A convergência entre concepções postuladas por diferentes culturas devem ser, no máximo, um ponto de chegada de um “diálogo intercultural” (GAROFANO, 2012, p. 16). Desse modo, as culturas nacionais não são unificadas, mas constituem um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Segundo Boaventura (2002, p. 52) “pensar em democracia como ruptura positiva da trajetória de uma sociedade implica abordar os elementos culturais dessa mesma sociedade”. O ponto central desta definição de democracia é limitar o poder arbitrário do Estado a fim de proteger o indivíduo e a “sociedade civil” das intervenções indevidas deste. Mas nada se diz sobre a distribuição do 4 Boaventura de Sousa Santos entende que a demodiversidade é a coexistência pacífica ou conflitual de diferentes modelos e práticas democráticas. 9 poder social, quer dizer, a distribuição de poder entre as classes. Em realidade, a ênfase desta concepção de democracia não se encontra no poder do povo, mas sim em seus direitos passivos, não assinala o poder próprio do povo como soberano, mas sim no melhor dos casos aponta para a proteção de direitos individuais contra a ingerência do poder de outros. De tal modo, esta concepção de democracia focaliza meramente o poder político, abstraindo-o das relações sociais ao mesmo tempo em que apela a um tipo de cidadania passiva na qual o cidadão é efetivamente despolitizado (WOOD, 2004). A Democracia representativa, a democracia eleitoral, tal como existe, como assevera Celiberti (2005, p. 56), é incapaz de sustentar a democracia como sistema, senão articulada como uma forte participação cidadã e, portanto, como uma democracia participativa que amplie o debate sobre as prioridades e urgências da agenda social e econômica dos cidadãos. REFERÊNCIAS AVRITZER, Leonardo; SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Ampliar o Cânone Democrático. 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