TEORIA E PRÁTICA DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL E A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES SILVA, Camila Pompeu da. - PUCPR [email protected] VILLA, Vivian – PUCPR [email protected] Resumo A presente reflexão tem por objetivo discutir a problemática da formação de professores na Educação de Jovens e Adultos no Brasil. Para isso, fez-se necessário refletir inicialmente sobre o histórico da Educação de Jovens e Adultos no Brasil desde o humanismo tradicional, passando pela primeira Constituição nacional até os dias atuais. Destacou-se em cada período o modelo de sociedade, de escola e de formação de professores. Em outro momento, o texto destaca as tendências teóricas e práticas na Educação de Jovens e Adultos, observando a perspectiva da corporeidade na EJA1. Os escritos de Foucault (1979, 1987) permitirão concluir que a preocupação com o poder levou à descoberta do corpo como objeto e alvo do mesmo. A atenção dedicada ao corpo para torná-lo hábil e útil, se manifesta pelas ações de manipulação, modelagem, treinamento, regramento e disciplina que se impõe sobre o corpo. Examinando a história da EJA, percebemos a presença de duas concepções de ensino na alfabetização de adultos que se refletiram diretamente em um modelo de formação de professor para essa modalidade de ensino. Discute-se, também o fato de que, desde a época dos jesuítas, essa ideologia da interdição do corpo atinge os sujeitos e é justificadora das diferenças existentes na sociedade brasileira. O estudo incita os pesquisadores a se debruçarem sobre a Educação de Jovens e Adultos no Brasil, especialmente para repensar a teoria e a prática pedagógica, valorizando-se a importância de uma formação que possibilite ao professor estar sempre consciente de sua dimensão de constante reconstrução pessoal e profissional e que trabalhe de forma a articular conhecimentos e saberes, ciente de sua contribuição para a formação integral do educando. Palavras-chave: História; Educação de Jovens e Adultos; Brasil; Corporeidade; Formação de Professores. Introdução A presente discussão iniciará com o breve histórico da Educação de Jovens e Adultos no Brasil desde o humanismo tradicional até os dias atuais. Verificar-se-á, em um segundo momento, duas concepções de ensino na alfabetização de adultos. São conhecidas como concepção tradicional ou instrumental e a concepção dialógica, crítica ou emancipatória. Fato posto, analisar-se-á a questão da corporeidade na Educação de Jovens e Adultos, isto é, como 1 EJA: Educação de Jovens e Adultos. 10818 o ideal de corpo se constrói socialmente, este influenciado pelo ambiente social e político em que está inserido e, portanto, absorve idéias, expectativas, intenções desse meio e, ainda, a influência das concepções tradicional e dialógica no modelo de formação de professores para a Educação de Jovens e Adultos no Brasil. Breve história da Educação de Jovens e Adultos no Brasil Segundo Moura (1999, p. 23), a história das idéias em torno da alfabetização de adultos no Brasil acompanha a história da educação como um todo que, por sua vez, acompanha a história dos modelos econômicos e políticos e conseqüentemente a história das relações de poder, dos grupos que estão no poder. Partindo das diferentes classes de educação e do desenvolvimento econômico e cultural de cada fase histórica da humanidade – caracterizando as sociedades escravista, feudal e moderna – Pinto (1991, p. 77) também conclui que a educação em cada fase de sua evolução histórica é sempre produto cultural da sociedade, refletindo os interesses nela dominantes. O tipo de homem que cada espécie da educação visa formar é variável com a respectiva constituição social, ou seja, o homem que cada sociedade deseja formar é aquele capaz de desenvolver ao máximo as potencialidades econômicas e culturais desta forma social. Como nenhuma sociedade é imóvel, as realizações materiais alteram significativamente seu conteúdo e a fazem ser outra. A educação, por sua vez, é contraditória nesse sentido, porque, visando conservar a sociedade que a distribui, é levada a modificá-la por outra forma social mais adiantada. Muitos autores consideram que a Educação de Jovens e Adultos formal surgiu no Brasil apenas com a vinda dos jesuítas. Sabe-se que o sistema educacional jesuítico surgiu aproximadamente em 1549 com a chegada desses padres da Companhia de Jesus ao Brasil, quando do início da colonização portuguesa. Seu principal objetivo era catequizar os gentios. Teve 210 anos de duração, sendo que no século XVI era dirigido essencialmente à catequização dos índios nas ditas “escolas de ler e escrever”, em que os indígenas e seus filhos eram catequizados. Cabe destacar quanto a este último aspecto que, segundo Paiva (2000), esta forma de alfabetização se distanciava do sentido que a reforma protestante deu ao termo, tanto que, posteriormente, a educação dirigiu-se unicamente aos filhos das famílias abastadas, principalmente porque a base do sistema econômico colonial era diferente do sistema vigente nos países do norte da Europa e não cabia naquele a educação estritamente popular. Posteriormente, no século XVII, o sistema expandiu-se, a ponto de, já no século XVIII, consolidar-se com a construção dos Seminários. 10819 Do ponto de vista pedagógico, fundava-se em um sistema de ensino de cunho humanista, aristotélico-tomista, em que o aluno era convidado a comentar apenas os pontos em estudo e não a apresentar uma postura crítica, pois se partia do pressuposto de que a verdade absoluta pertencia a Deus; cabia, então, ao homem procurar a retidão em suas ações, fugindo do pecado. Educavam-se os pequenos indígenas e os órfãos como uma forma de estender a catequização a todo o povo, ou seja, a educação dos adultos tinha uma função ideológica bastante importante. Verifica-se que o jesuíta buscava o aluno, porém levava apenas a sua visão de mundo como correta. Entende-se que esse ensino teve papel fundamental na manutenção do território brasileiro como colônia portuguesa dentro do contexto do surgimento do mercantilismo europeu e da reforma protestante, portanto preconizando valores anteriores a essa reforma. O sistema educacional jesuítico era composto por uma estrutura escolar (prédios, escola, organização interna, etc.), uma teoria pedagógica com uma visão de homem bem delineada, voltada para a sociedade colonial. Paiva (2000) destaca que a realidade brasileira da época era permeada por sangrentas guerras (lutas, escravização dos negros e índios, etc.) e a vida no colégio jesuíta continuava naturalmente, como se não estivesse envolvida por esse ambiente. Não havia percepção de incoerência entre o discurso proferido (o que se aprendia de fato na escola) e a prática realizada. Nesse caso, verifica-se o formalismo pedagógico como uma das formas de legitimização da cultura, ou seja, o contraste entre a prática e os princípios, validados pela aprovação social, correspondendo à interpretação que a sociedade fazia de seus comportamentos. Assim, a subversão da ordem é concedida ainda que se mantenha o status quo. Quando da pressão social, os colonizadores buscavam apoio dos letrados e canonistas no sentido de legitimar argumentos que promovessem a continuidade da escravização e da guerra. O formalismo pedagógico se justificava no contexto da época, pois não era interessante à sociedade portuguesa uma transformação do ponto de vista estrutural na colônia. A religião e a vida social tinham a marca da formalidade. Esse aspecto se consolida na questão do currículo. Segundo Azevedo (1996, p. 509), a Ratio studiorum, publicada em 1599, corporificava as regras pedagógicas de Santo Inácio e as experiências no campo da educação, no que diz respeito ao plano completo de estudos da Companhia. Ele deveria abranger o curso de letras humanas, o de filosofia e ciências e o de teologia e ciências sagradas. Assim, como pontua Tânia Maria de Melo Moura (1999, p. 24), no período em questão verifica-se uma concepção instrumental da educação de jovens e adultos, em que a 10820 alfabetização tinha por objetivo dotar a população com os rudimentos da leitura e da escrita (leitura do catecismo, catequização). Não há ainda uma política de formação dos professores, mas pode-se perceber claramente um ideal de professor para este tipo de ensino, como uma espécie de pregador (ou até mesmo “desconvertor”, cabendo-lhe o papel de representante de Deus) e, como tal, a importância dada aos métodos de memorização e de educação pela palavra. Neves (2007) destaca que no início do século XIX a educação primária assume o papel de convertora das classes subalternas ao trabalho disciplinado, por meio do Método Lancaster, instituído oficialmente por D. Pedro I, com a Lei de 15 de outubro de 1827. A principal função desta escola é “disciplinar homens indisciplinados”, de modo que a difusão da instrução elementar às massas trabalhadoras exige a racionalização do ato pedagógico, pela rapidez de ensinar, pelo baixo custo, pelo uso de poucos professores e vários alunos-mestres (BASTOS, 2005). O Estado ainda não assume a formação do professor e este adquire papel secundário no método mútuo. Do ponto de vista econômico, Vanilda Paiva (1987, p. 54), verifica que por volta de 1870 houve um surto de progresso na economia brasileira, com conseqüências sobre sua organização social, e a introdução de idéias liberais; apareceram também os primeiros pronunciamentos em favor da educação do povo num sentido semelhante ao encontrado com vigor a partir de 1915. Não se tratava, entretanto, de um movimento, mas de pronunciamentos isolados de indivíduos interessados no problema. Um exemplo é o parecer do projeto de Rui Barbosa de 1882, o primeiro diagnóstico da educação popular no país. É importante considerar, ainda, que, neste período da história da educação brasileira, a autora trata a educação de adultos como parte da educação popular, [...] pois a difusão da escola elementar inclui as escolas noturnas para adultos que, durante muito tempo, foram a única forma de educação de adultos praticada no país. Mais tarde, quando ganha autonomia e pretende-se que sua duração seja menor que aquela oferecida à população em idade escolar, ela passa a ser tratada como alfabetização e educação de base [...] (PAIVA, 1987, p. 47). Além disso, as principais idéias e debates sobre a educação popular durante o Império abarcaram a questão do artigo 10 do Ato Adicional. Os debates dos projetos de reforma do ensino no Município da Corte apresentados à Assembléia Legislativa concentraram-se na busca de uma estratégia através da qual o Governo Central pudesse auxiliar as províncias na difusão da instrução popular. Outra discussão mais antiga era aquela referente ao ensino obrigatório. 10821 Com relação à educação dos adultos, ela se desenvolve – de forma precária e irregular – a partir de 1870, quando quase todas as províncias criam escolas noturnas. A criação de tais escolas, entretanto, estava (com algumas exceções) ligada à valorização da educação em si mesma, sem considerar o seu aspecto instrumental e sem adequação às reais necessidades de ensino para a faixa da população à qual eram destinadas. Também o ensino profissional defendido e preconizado na época era em grande parte fruto de idéias humanitaristas; tratava-se da multiplicação das escolas para 'desvalidos'. (PAIVA, 1987, p. 75) Para Vanilda Paiva (1987, p. 78), a passagem do regime monárquico para a República refletia as modificações na composição da sociedade brasileira. O progresso, que se intensificara a partir de 1870, possibilitara o surgimento de novos setores sociais e novos grupos econômicos ligados ao surto de industrialização que passaram a atuar na defesa dos preceitos liberais e do industrialismo. A República, proclamada em meio ao enfraquecimento dos grupos ligados à agricultura pelas crises do final do Império e pela própria Abolição, integra tais elementos em seus quadros. Os ideais republicanos são liberais e há nos primeiros governos elementos que pretendem favorecer a industrialização do país. Porém, esses setores não se sustentam por muito tempo no poder, não sobreviveram às crises financeiras e às primeiras dificuldades comerciais do café no final do século. Além disso, o domínio oligárquico estadual, facilitado pelo federalismo e tendo à frente os fazendeiros de café, caracteriza o quadro político da Primeira República, que só será alterado com a Primeira Guerra. No âmbito educacional, os primeiros 25 anos do regime republicano não diferem das duas últimas décadas do Império. Assiste-se ao crescimento da demanda por educação popular, e seu precário atendimento, apenas nas cidades maiores. A população do campo (maior parte da população brasileira), ligada por laços paternalistas às oligarquias estaduais, não sentia a instrução como uma necessidade imediata nem pressionava no sentido de sua difusão. A interpretação beletrista da instrução pública presente na Carta Constitucional de 1891 perpetuou o estado de precariedade do sistema elementar de ensino brasileiro. A Proclamação da República provocou a recolocação do problema do funcionamento da democracia liberal com base no voto, pois a partir de 1882, o alistamento eleitoral passava a inscrever apenas os que dominassem as técnicas da leitura e da escrita. Dessa forma, até o final do Império não se havia colocado em dúvida a capacidade do analfabeto. A instrução não era condição para que o indivíduo participasse da classe dominante ou das principais atividades do país. “Somente quando a instrução se converte em instrumento de identificação das classes dominantes (que a ela têm acesso) e quando se torna preciso 10822 justificar a medida de seleção é que o analfabetismo passa a ser associado à incompetência.” (PAIVA, 1987, p. 83) Essa idéia se difunde no país e estará presente na história da educação popular posterior. Ainda nesse período a autora destaca a inexistência de qualquer organismo nacional encarregado da coordenação do sistema de ensino. O final da Primeira República, contudo, constitui um importante período. Nele se delineiam características mais claras da educação popular e das idéias pedagógicas que irão orientar sua evolução. Em um primeiro momento, há uma verdadeira cruzada contra os altos índices de analfabetismo e esta discussão se desenvolve em ligação com os temas do serviço militar obrigatório e da nacionalização do ensino nos Estados do Sul (momento definido como “entusiasmo pela educação”). Em seguida, observa-se o arrefecimento deste entusiasmo, em função do final da guerra e da atuação conseguida pelos “profissionais da educação” nos anos 1920, bem como a ênfase do aspecto qualitativo do ensino, deixando de lado a relação entre o sistema educacional e o conjunto da sociedade e sua evolução históricosocial: são introduzidos os ideais da Escola Nova e sua transformação em “otimismo pedagógico”2. O desencadeamento da Primeira Guerra Mundial provocou no Brasil a eclosão de um surto de nacionalismo. O grupo industrial-urbano recebe um forte estímulo para se expandir e fortalecer, ampliando sua capacidade de luta pela hegemonia política. O nacionalismo dos anos 1910 trás os ideais democráticos e republicanos, aos quais se ligam aos anseios de universalização do ensino elementar e de ampliação das oportunidades educacionais para o povo. O “entusiasmo pela educação” não sobrevive com o mesmo caráter logo após os primeiros anos da década seguinte, quando foi se tornando claro para os grupos em luta no poder que, através da educação, a conquista da hegemonia política era problemática e demandava muito tempo. Os primeiros profissionais da educação são exatamente os responsáveis pelas reformas educativas da década de 1920. Deste modo, as leituras de Valdemarin (1998) e Souza (2005) também permitem considerar que a escola na Primeira República adota um viés cientificista, abrindo novos rumos para a formação do professor. A nova cultura escolar em marcha (fundamentada no método intuitivo) valoriza a missão de instruir e, principalmente, o enciclopedismo, isto é, o conhecimento da ciência como meio de formação para a cidadania. 2 Neste momento, Paiva utiliza os termos “entusiasmo pela educação” e “otimismo pedagógico” ambos criados por Jorge Nagle. 10823 Moura (2007) entende que a Proclamação da República não alterou significativamente o quadro educacional, porque o modelo de educação continuou privilegiando as classes dominantes, mantendo alto o percentual da população adulta analfabeta. Assim, até os anos 1940, a educação de adultos no Brasil era entendida como uma extensão da escola elementar. Gadotti e Romão citados por Moura (2007, p. 03) afirmam que a história recente da educação de adultos no Brasil pode ser dividida em três períodos: de 1946 a 1958, onde foram realizadas campanhas nacionais de iniciativa oficial; de 1958 a 1964 – quando da realização do 2º Congresso Nacional de Educação de Adultos com a participação de Paulo Freire (momento em que as proposições de Paulo Freire demarcam uma revolução conceitual para a área); pós 1964, quando o governo militar insistia em campanhas como a “Cruzada ABC” e o MOBRAL (promovendo a hegemonia da concepção instrumental de alfabetização). Com relação à Lei 5692/71, Haddad (1997, p. 107) afirma que, apesar de ser reproduzida por um governo conservador, ela estabeleceu pela primeira vez, um capítulo específico para a educação de jovens e adultos, o capítulo IV, sobre o ensino supletivo. Na década de 1980, com a abertura política, as manifestações nos diversos setores da sociedade trouxeram avanços legais no campo da educação de jovens e adultos, consubstanciados nos princípios estabelecidos pela nova Constituição Federal, promulgada em 1988. Contudo, para Haddad (1997, p. 112), a LDB 9394/96 vem completar esse movimento de transformar a educação de pessoas jovens e adultas em uma educação de segunda classe. O autor considera importante uma leitura bastante atenta da atual lei de ensino, pois a seção dedicada à educação de jovens e adultos e a aparente flexibilidade podem enganar o leitor desavisado. Portanto, a análise minuciosa e cuidadosa da LDB 9394/96 permite considerar, assim como afirma Haddad (1997, p. 116), que a lei aprovada reafirma o conceito de educação de adultos que o regime militar consolidou, isto é, o do ensino supletivo. Com relação à formação do professor, não foi considerada também a idéia de professores especializados para este tipo de ensino e a menção explícita de uma organização escolar diferente, não marcado pelo modelo escolar regular. O ponto fundamental é o fato de a lei ter desconsiderado a importância de uma atitude ativa por parte do Estado no sentido de criar condições de permanência de um grupo social que tem de realizar um esforço redobrado para freqüentar qualquer programa educacional. “[..] o Estado abre mão da sua responsabilidade da formação, garantindo apenas mecanismos de creditação e certificação. [...]” (HADDAD, 1997, p. 117) Outro problema refere-se à diminuição das idades mínimas para os exames supletivos, o que, 10824 segundo o autor, deve criar um impacto bastante negativo na qualidade do ensino para jovens e adultos e, ao mesmo tempo, uma “supletivação” do ensino regular. Além disso, a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF – Lei 9424/96) apresentou um grande problema, pois não contempla recursos para os alunos jovens e adultos das redes estadual e municipal. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (2008), por sua vez, destacam que a formação do professor para a EJA se dará em nível médio ou superior. Destaca que os métodos, conteúdos e processos devem ser diferentes dos utilizados na educação básica. A diretriz estabelece a necessidade de formação específica, o que cabe unicamente às instituições formadoras de professores. Verifica-se, como postulado por Moura (1999), uma carência de propostas teóricas criativas e decisões políticas sérias realmente comprometidas com a Educação de Jovens e Adultos e a Formação do Professor. Questionase se as ações propostas nas Diretrizes são suficientes para promover uma Educação de Jovens e Adultos com qualidade no Brasil. Ainda sobre este aspecto, Tanuri (2000, p. 85) considera que, apesar de todas as iniciativas registradas nas duas últimas décadas, o esforço ainda se configura bastante pequeno no sentido de investir de modo consistente e efetivo na qualidade da formação docente. As falhas na formação se fazem acompanhar de ausência de ações governamentais adequadas pertinentes à carreira e remuneração do professor, o que acaba por se refletir na desvalorização social da profissão docente, com conseqüências drásticas para a qualidade do ensino em todos os níveis. Tendências teóricas e práticas da EJA: um olhar sobre a perspectiva da corporeidade na Educação de Jovens e Adultos Examinando a história da Educação de Jovens e Adultos, percebe-se a presença de duas concepções de ensino na alfabetização de adultos. São conhecidas como concepção tradicional ou instrumental e concepção dialógica, crítica ou emancipatória. Seguindo as idéias de Mizukami, citado por Souza (2007), far-se-á uma breve síntese acerca das características principais dessas duas concepções de ensino. Na pedagogia tradicional, o aluno é considerado como parte de um mundo que irá conhecer, ou seja, a realidade ainda lhe será transmitida. Na aprendizagem, há uma espécie de armazenagem de conhecimentos, somente por meio da instrução e transmissão de conteúdos. E estes conteúdos não têm qualquer relação com a realidade social do aluno; não há sentido 10825 algum naquilo em que estão aprendendo. Quem instrui os alunos são os professores e estes estabelecem uma relação vertical com os alunos. Nas aulas, há um grande predomínio da metodologia expositiva, na qual o professor, detentor de todo saber, fala aos seus alunos e estes devem apenas ouvi-lo, sem manifestar divergências de opiniões. A avaliação é tida como verificação da capacidade momentânea de memorização dos conteúdos; momentânea, porque, freqüentemente, depois de passado o período de avaliação, tudo que foi “aprendido” é esquecido, justamente porque não tinha sentido para quem o aprendeu. Estas são características da chamada educação bancária, criticada por Freire3, onde o saber é depositado na cabeça do aluno como se o educando fosse um recipiente passivo de conteúdos. A educação bancária que, desde os jesuítas, informou o ensino brasileiro, é vista por Paulo Freire como uma prática pedagógica de “interdição do corpo” (FREIRE, 2000ª, p. 102). Trata-se de uma prática docente que “dociliza” e “conforma”, proibindo os homens de “ser, saber e poder” (FREIRE, 2000ª, p. 232). Literalmente, é o “corpo” que é conformado, impedido de expressar-se de maneira criativa e autônoma. Isso porque no pensamento de Paulo Freire, a expressão da palavra é uma ação que se origina do homem integral, do homem enquanto “SOMA”, nas suas mais diversas formas de ser em liberdade. A ideologia da “interdição do corpo” submete o indivíduo, inconscientemente, à opressão, fazendo com que ele permaneça no estágio da “consciência ingênua” ou “semi-transitiva” (FREIRE, 2000ª, p. 102). Dessa maneira, ao libertar o corpo da interdição que o sufoca, a educação como prática da liberdade, realiza a pedagogia do oprimido que é uma pedagogia para a liberdade. O corpo se constrói socialmente; é influenciado pelo ambiente social e político em que está inserido e, portanto, absorve idéias, expectativas, intenções desse meio. Ou seja, não é constituído por uma universalidade das vontades, como diria Foucault; “não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos.” (FOUCAULT, 1979, p. 146) A preocupação com o poder levou também a descoberta do corpo como objeto e alvo do mesmo. A atenção dedicada ao corpo para torná-lo hábil e útil, se manifesta pelas ações de manipulação, modelagem, treinamento, regramento e disciplina que se impõe sobre o corpo. Mas há de se lembrar que o poder não somente tem a função de repressão, pois agindo somente assim tornar-se-ia frágil. Foucault (1979) ressalta este ponto quando distingue a 3 Freire reflete melhor sobre estes aspectos em sua obra “Pedagogia do Oprimido”. 10826 existência da consciência do efeito de poder sobre o corpo na situação de trabalho na perspectiva marxista e na perspectiva dos pára-marxistas. Estes, [...] dão à noção de repressão uma importância exagerada. Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos no nível do desejo – como se começa a conhecer – e também no nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. (FOUCAULT, 1979, p. 148) Portanto, ao mesmo tempo em que se busca a formatação de corpos para o trabalho também se preza pela valorização dele, mas de uma maneira a escravizá-lo, tirar-lhe a liberdade sem que isso seja consciente à pessoa. Um exemplo disso seria o culto ao corpo, que reina até os dias atuais. Aprecia-se o corpo sadio, magro, esbelto e tudo gira em torno desse estereótipo de beleza. A mídia propaga essa idéia e procura vender todos os produtos imagináveis para que as pessoas alcancem esse ideal corporal, negligenciando até mesmo questões físicas e psicológicas. Segundo Foucault (1987), em qualquer sociedade a questão do corpo remete-se a questão do poder. O corpo que pode ser modelado em favor de interesses de determinadas pessoas ou classes seria o que Foucault chama de corpos dóceis. Corpos que podem ser adestrados, manipulados. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.” (FOUCAULT, 1987, p. 118) Essa disciplina corporal que busca padronizar os corpos e tirar-lhes a liberdade, destruindo, assim suas capacidades expressivas, inventivas, comunicativas corporal, carregada de séculos de preconceitos quanto aos gestos, exposição e até mesmo percepção e consciência de si próprio, afastou do âmbito escolar uma educação corporal, com foco na expressividade, na comunicação e criação individual, ou seja, desconsiderou o corpo como processo, produto e objeto da arte e da educação em arte. Disciplina tida como uma fórmula geral de dominação. Mas uma disciplina que domina os corpos em favor da utilidade e conseqüência da obediência e vice-versa. Foucault compara e distingue a forma de dominação por meio da docilidade dos corpos com a escravidão, com a domesticidade, vassalidade e o ascetismo. É interessante observar essa distinção e ver que o corpo que agora é dócil, não se conscientiza de sua situação porque é iludido pelos resultados que seu corpo produz, por se sentir útil, capacitado e com aptidão para realizar o que lhe é proposto acaba não percebendo que é ao mesmo 10827 tempo, dominado devendo submeter-se às exigências alheias a si próprio. Nas palavras de Foucault: Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu “capricho”. Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do ascetismo e das disciplinas de tipo monástico, que têm por função realizar renúncias mais do que aumentos de utilidades e que, se implicam em obediência a outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo. O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. (FOUCAULT, 1987, p. 119) A disciplina irá fabricar corpos submissos, “dóceis”, que lhes tirará também suas singularidades; não saberão mais quem realmente são, seus gestos e movimentos serão pensados por outras pessoas, por outras instâncias de poder. Não tem mais consciência própria, agem em função de objetivos, de sua capacidade de produzir. Toda essa manipulação se dá através de técnicas minuciosas, sutis, muitas vezes imperceptíveis. Ana Maria Freire (2001, p. 32), em seu livro sobre o analfabetismo no Brasil estabelece relações interessantes sobre o analfabetismo e a prática da interdição do corpo. Segundo essa autora, desde a época dos jesuítas essa ideologia da interdição do corpo nos atinge e é justificadora das diferenças existentes na sociedade brasileira. Portanto o período jesuítico foi o início da interdição do corpo. “[...] A preocupação pela educação surgiu como meio capaz de tornar a população dócil e submissa, atendendo à política colonizadora portuguesa [...]” Ou seja, a preocupação com o corpo também se fazia necessária para a educação, nesse contexto. População dócil e submissa, precisa de corpos dóceis e submissos e para isso; necessário se faz promover uma educação corporal. Já na Pedagogia Sociocultural, assim denominada por Mizukami, que possui muitas características semelhantes à Pedagogia Dialógica, defendida por Paulo Freire, há uma busca pela interação entre homem e mundo. Paulo Freire é um pensador comprometido com a vida, não pensa idéias, pensa a própria existência. Esse educador existencia um pensamento para uma prática libertadora. Percebe a educação como comunicação, diálogo, encontro de pessoas que procuram a razão de ser dos acontecimentos (FREIRE, 1977, p. 77), pois, para ele, a educação é diálogo; do contrário não é educação. 10828 Por isso, nessa concepção, que tem em seu cerne as bases do pensamento freireano, o sujeito é entendido como elaborador e criador de conhecimentos, ele mesmo é o sujeito do conhecimento. E por isso, na ação educativa fundada no diálogo, as figuras de professor e aluno são substituídas pela de educandos, pois, ninguém ensina ninguém, os homens se educam uns com os outros. O corpo não pode ser conformado, impedido de expressar-se de maneira criativa e autônoma no processo educativo. Dessa maneira, ao libertar o corpo da interdição que o sufoca, a educação como prática da liberdade, realiza a pedagogia do oprimido que é uma pedagogia para a liberdade. Por tudo isso, destaca-se aquele professor que, consciente de sua dimensão de constante reconstrução pessoal e profissional, trabalhe de forma a articular conhecimentos e saberes, ciente de sua contribuição para a formação integral do educando. Considerações finais Examinando a história da Educação de Jovens e Adultos, percebemos a presença de duas concepções de ensino na alfabetização de adultos. São conhecidas como concepção tradicional ou instrumental e concepção dialógica, crítica ou emancipatória. Estas concepções influenciarão sobremaneira o ideal de formação de professores. Quando se pensa em uma educação que nega a crítica e a liberdade do educando, forma-se o professor para reproduzir este modelo. Quando se pensa em uma educação emancipatória, se valoriza também uma formação de professores crítica. Prevalece na história da educação de jovens e adultos práticas tradicionais, que impedem o sujeito de ser mais. Contudo, como fugir destes estigmas? A formação de professores para uma educação de jovens e adultos emancipatória implica profunda problematização dos pontos propostos por Freire (2003). O primeiro deles diz respeito ao fato de não haver docência sem discência, pois ensinar exige reflexão crítica sobre a prática. Ensinar não se resume à mera transferência de conhecimentos, uma vez que exige respeito à autonomia do ser dos educandos. Como especificidade humana, ensinar exige comprometimento e a compreensão de que a educação é uma forma de intervenção no mundo e como tal é ideológica e dialógica. Valoriza-se uma atitude investigativa por parte do professor e sobretudo a consciência de sua natureza inconclusa como sabedor. Dessa forma, estes conhecimentos permitirão repensar a teoria e a prática pedagógica na educação de jovens e adultos no Brasil, principalmente a partir das concepções de corpo e 10829 de poder no ambiente escolar; sabe-se que a ideologia da interdição do corpo atinge todos os educandos e é justificadora das diferenças existentes na sociedade brasileira. REFERÊNCIAS AZEVEDO, F. A cultura brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Brasília: Editora UnB, 1996. BASTOS, M. H. C. O ensino monitorial / mútuo no Brasil. (1827 – 1854). In: STEPHANOU, M. e BASTOS, M. H. C. (Org.) Histórias e memórias da educação no Brasil. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 2005. BRASIL. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Disponível em: www.inep.gov.br. Acesso em: 30 abr 2008. FREIRE, A. M. A. 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