48
ANAIS
III FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE
Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005
QUESTÕES SOBRE O NACIONALISMO E O
MODERNISMO NO BRASIL
CARTA DE MÁRIO DE ANDRADE A CAMARGO GUARNIERI:
UM ESTUDO SOBRE INFERÊNCIA
Rita de Cássia Domingues dos Santos*
RESUMO: Esta pesquisa versa sobre a aplicabilidade do Esquema Geral das Inferências,
apresentado por Marcuschi em seu artigo Leitura como processo inferencial num universo
cultural-cognitivo. O Esquema, neste caso, foi utilizado na análise das interpretações geradas
por participantes de um seminário sobre a carta de Mário de Andrade a Camargo Guarnieri (11
de agosto de 1934) e na subseqüente análise da manifestação do maestro Lutero Rodrigues
sobre a mesma carta. O Esquema foi usado a fim de oferecer subsídios para a pesquisa em
História da Música, chegando-se a um equilíbrio entre o que se crê ser a intenção de Mário de
Andrade ao escrever a carta e a abertura de opções interpretativas a vários leitores. Este ponto
de equilíbrio foi o objetivo deste trabalho, pois é possível realizar pesquisas em História da
Música com uma perspectiva crítica para com a leitura e, ao mesmo tempo, pelo princípio de
diferença, com a postura de respeito a toda interpretação de texto, pois ele é de natureza
comunicativa, não estática, sendo seus sentidos plurais e móveis. A proposta foi demonstrar
que todas as interpretações são úteis nâmbito da pesquisa, cada uma com suas
peculiaridades. O compartilhamento do universo cognitivo entre o autor e o leitor produzirá
resultados de vários matizes, tão variados quanto o próprio conhecimento compartilhado.
*
Mestrado em Musicologia na USP. Graduada em Composição e Regência pela UNESP e em Educação Artística
pela FASM. Compositora, regente coral e professora de Educação Musical.
49
APRESENTAÇÃO
A originalidade deste trabalho consiste em aplicar o Esquema Geral das Inferências,
montado por Marcuschi e por ele apresentado em seu artigo Leitura como processo inferencial
num universo cultural-cognitivo,1 no nosso caso, utilizado para dois procedimentos: a análise
das interpretações geradas por participantes de um seminário, sobre a carta escrita por Mário
de Andrade para Camargo Guarnieri, em 11 de agosto de 1934, e a subseqüente análise da
manifestação do maestro Lutero Rodrigues sobre a mesma carta.2 Visando oferecer subsídios
para a pesquisa a serviço da História da Música, partimos do pressuposto de que quando um
musicólogo está estudando a obra e a vida de um compositor já falecido, é importante a análise
detalhada da correspondência deste com seus pares intelectuais da época. “A correspondência
entre Camargo Guarnieri e Mário de Andrade, ora revelada, é tão importante e necessária a
todos os que se interessam pelo estudo do compositor e sua obra, que os estudos até agora
realizados correm o risco de haver omitido ou contrariado fatos e informações essenciais”.3
Dada a natural diversidade de interpretações acerca de um mesmo texto, de uma
mesma carta, torna-se necessária uma alternativa para desenvolver o espírito crítico na leitura
e na produção de sentido do texto lido. O esquema geral das inferências de Marcuschi
apresenta-se como essa alternativa.
Mas é Derrida, em verdade, que mais radicalmente questiona o sentido, propondo que as
identidades se deslocam e as significações e as verdades são plurais [...] Desconstruir é sair em busca do
sentido que, para ele, como para Lacan e sua cadeia de significantes, jamais será localizado; dele só se
pode ter “pistas“, referências, relações, nunca o verdadeiro desvelamento, a verdadeira revelação do que
ele é ou significa. Estamos, portanto, diante de um reconhecimento da impossibilidade efetiva de decifrar,
em definitivo, a linguagem ou de encontrar nela a significação última.4
Após a leitura da carta já mencionada colheu-se o material para essa classificação, no
seminário realizado no dia 16 de abril de 2004 no Departamento de Departamento de
Biblioteconomia e Documentação da Escola de Comunicações e Arte – USP, em aula da Profª.
Dr.ª Anna Maria Marques Cintra, seminário no qual foram debatidas as conclusões dos
participantes acerca do conteúdo daquela correspondência. As opiniões foram anotadas,
analisadas e classificadas de acordo com o Esquema Geral acima mencionado. Muito embora
seja pequena a amostragem, foi comprovada ampla diversidade na produção de sentidos. Não
questionamos os participantes do seminário, leitores da carta, quanto ao raciocínio que cada
um seguiu em suas inferências, deixando uma base livre para a interpretação e posterior
1
MARCUSCHI, L. A. Leitura como processo inferencial num universo cultural-cognitivo. In: BARSOTTO, V. H. (Org.).
Estado de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999. p. 103.
2
RODRIGUES, Lutero. A música, vista da correspondência. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e
a música. Rio de Janeiro: Funarte, 2001. p. 322-326.
3
RODRIGUES, Lutero. Op. cit., p. 321.
4
MARCONDES FILHO, Ciro. O espelho e a máscara: o enigma da comunicação no caminho do meio. São Paulo:
Discurso Editorial, 2002. p. 63.
50
classificação, o que resultou num processo bastante enriquecedor, porquanto livre de
pressões.
Aparentemente, o único meio de chegar à informação quanto à intenção do texto
é o próprio texto e as indicações nele constantes. Roger Chartier, em seu debate com
Pierre Bourdieu, afirmou: “creio que a idéia de retornar ao objeto para interrogá-lo o mais
profundamente possível naquilo que pode nos ensinar sobre sua leitura possível implica uma
tensão extrema, uma vez que, em boa lógica, é impossível reconstruir uma relação
conhecendo apenas um de seus termos”.5
Sobre o texto, deverá então ser lançado um olhar crítico, para acolher suas
proposições em seus múltiplos sentidos. Utilizando-nos do Esquema Geral das Inferências e
das releituras colhidas no seminário, estabelecemos outros termos entre o texto e algumas de
suas possíveis interpretações para reconstruir a relação entre ambos, por intermédio do
processo inferencial.
O processo inferencial já foi descrito como ferramenta básica para atuar-se com
proposições científicas no meio acadêmico e também como instrumento de aculturamento na
vida cotidiana. É amplamente utilizado na leitura em geral, como resultado do trabalho que o
leitor exerce sobre si mesmo, abrindo-se para novas perspectivas, numa reelaboração
constante da qual este processo é parte preponderante.
Para o meio acadêmico, valemo-nos, a título de exemplo, da definição apresentada por
Cervo e Bervian:
Pode-se tomar a inferência como equivalente ao raciocínio. Pela inferência, o espírito é levado a
tirar conclusões a partir de premissas conhecidas. Inferir é tirar uma conclusão de uma ou várias
proposições dadas, nas quais está implicitamente contida. É imediata a inferência quando chegamos à
proposição nova sem intermediários; e mediata quando há intermediários.6
Outra classificação do conceito de inferências encontramos no livro Semiótica e
Filosofia, escrito por Charles Sanders Peirce, que fez o seguinte gráfico:
a) Dedutiva (ou analítica)
INFERÊNCIA
b) Sintética:
1) indução
2) hipótese
Pierce afirma:
5
BOURDIEU, P.; CHARTIER, R. A leitura: uma prática cultural. In: BOURDIEU, P. et al. Práticas da leitura. 2. ed.
rev. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 250-251.
6
CERVO, A. L.; BERVIAN, P. A. Metodologia científica. 2. ed. rev. amp. São Paulo: McGraw-Hill, 1977. p. 33.
51
A indução ocorre quando generalizamos a partir de certo número de casos em que algo é
verdadeiro e inferimos que a mesma coisa será verdadeira do total da classe. Ou quando verificamos que
certa coisa é verdadeira para certa proporção de casos e inferimos que é verdadeira, na mesma proporção,
para o total da classe.7
Uma observação quanto à palavra classe, que neste contexto, refere-se a uma
determinada qualidade inerente ao “objeto” analisado, qualidade esta compartilhada e
estendida aos demais elementos do grupo em que está inserido.
Para o aculturamento e a leitura em geral, situando o tema agora na segunda descrição,
ou seja, na perspectiva do estudo da utilização de inferências no processo de leitura, com a
subjacente compreensão e interpretação do texto lido, não disporíamos de espaço suficiente
para relatar aqui ainda que alguns dentre os muitos estudos desenvolvidos e seus respectivos
autores. Centraremos então nossa atenção naquele, de cujo esquema nos serviremos para o
desenvolvimento do nosso trabalho, Luiz Antonio Marcuschi.
ESQUEMA GERAL DAS INFERÊNCIAS, DE LUIZ ANTONIO MARCUSCHI
•
Inferências lógicas: baseadas nas relações lógicas e submetidas aos valores-verdade
na relação entre as proposições. São elas dedutivas, indutivas ou condicionais.
•
Inferências pragmático-culturais: baseadas sempre no input textual e também no
conhecimento de itens lexicais e relações semânticas. São elas: por identificação
referencial; por generalização; por associações; por analogia; por composições; ou
por decomposições.
•
Inferências
pragmático-culturais:
baseadas
nos
conhecimentos,
experiências,
crenças, ideologias e axiologias individuais. São elas: convencionais; experienciais;
avaliativas; cognitivo-culturais.
Texto oferecido para a interpretação dos leitores
O texto oferecido para a interpretação dos leitores foi a carta que Mário de Andrade
escreveu para Camargo Guarnieri, em 11 de agosto de 1934, foi colhido do livro Camargo
Guarnieri: o tempo e a música, organizado por Flávio Silva, e integra o capítulo “A
correspondência”,
elaborado por Flávia
Camargo Toni.8 Por
ser
deveras
extenso,
transcreveremos, com algumas análises escolhidas, apenas os trechos a que os leitores em
questão estão se referindo.
7
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 150.
TONI, Flávia C. A correspondência. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a música. Rio de
Janeiro: Funarte, 2001. p. 197-317.
8
52
Interpretação de alguns leitores participantes do seminário
1. “Diante desta primeira leitura, a impressão que se tem é que Mário foi bastante ferrenho e crítico na
análise que fez da Sonata. Ele apresenta alguns indícios positivos no que diz respeito as partes das idéias,
de dados, porém é cruel e direto quanto ao próprio Guarnieri. Para Mário, a sonata não apresenta estética e
harmonia. Além disso, apresenta lacunas no texto. Para Mário, Guarnieri não é um inventor ou um artista
da pós-modernidade.”
•
De acordo com o Esquema Geral das Inferências, de Marcuschi, este leitor utilizouse de inferências pragmático-culturais experienciais na maior parte da sua
reprodução.
•
Conforme a classificação das inferências de Clark (apud: Marcuschi, 1999), nas
frases destacadas, o leitor utiliza-se de
inferências não-autorizadas pelo texto:
“Para Mário, a sonata não apresenta estética e harmonia. [...] Para Mário, Guarnieri
não é um inventor ou um artista da pós-modernidade.”
“Não tenho dúvida que ela me desperta um número formidável de idéias, e a prova é esta carta.
Isso prova que você é criador, põe em marcha problemas estéticos e sua arte contém aquela parte
imprescindível de inteligência que faz com que a obra seja rica.” Mário de Andrade.
_____________________________________
2. “Expressa a meu ver a coragem de ser sincero, decorrente de sua posição no cenário cultural da cidade
e do país. Aparentemente rude, na verdade mostra uma preocupação de preceptor, capaz de com
franqueza, mostrar "defeitos" a um (provavelmente) jovem músico, mas já com uma vasta produção. A
relação invenção/uso do métier pareceu muito oportuna, pois embora não explícita, mostra a diferença
entre o ato criativo e a produção em massa. Mário de Andrade se mostra duro, mas "lógico", algo como um
pai dando lições a um filho. Suas observações são, acima de tudo construtivas. Dúvidas: teria sido Mário de
Andrade extremamente exigente e a essa altura já estaria ultrapassado? A leitura da carta, embora muito
interessante me deixa com uma sensação de que faltam algumas informações (o lugar sócio-cultural do
qual cada um "fala", por exemplo) para eu construir "sentidos" bastante satisfatórios a partir do texto.”
1. De acordo com o Esquema Geral das Inferências, de Marcuschi, este leitor utilizouse de inferências pragmático-culturais por analogia na linha geral de sua
reprodução.
2. Inferência lógico-dedutiva “decorrente de sua posição no cenário cultural...”.
3. Inferências pragmático-culturais convencional e avaliativa: “preocupação de
preceptor...” e “Mário de Andrade se mostra duro, mas ...”
_______________________________
3. “Trata-se de um depoimento sincero e rigoroso de um homem ligado às artes, portanto, de sensibilidade
à altura do compositor em questão. Entende que, em defesa da arte, o teor da carta é um chamamento ao
equilíbrio intuição/técnica. Ficou claro que o compositor (perdoe-me a ousadia do comentário) preocupa-se
muito mais em fazer um trabalho acadêmico, com perfeição de forma, a soltar a criatividade de que é
capaz. A composição, conforme Mário de Andrade, ficou manca, sem alma, quadrada. Não se discute a
questão do talento, houve resistência à entrega, no ato da criação.”
53
4. De acordo com o Esquema Geral das Inferências, de Marcuschi, este leitor utilizouse de inferência lógico-indutiva na linha geral de sua reprodução.
5. Inferência pragmático-cultural avaliativa: “Trata-se de um depoimento sincero e
rigoroso...”.
6. Inferência pragmático-cultural experiencial: “Ficou claro que o compositor...”.
Obs.: O leitor, aparentemente, não compreendeu que a opinião de Mário de Andrade
poderia não ser a verdade sobre a qualidade da obra, talvez devido ao fato de Mário de
Andrade ser um ícone da cultura brasileira, muito mais conhecido do que Camargo Guarnieri,
adquirindo as declarações daquele um caráter determinante.
“A gente pensa que está inventando um tema, uma polifonia, em vez, não está, é o métier, é a
habilidade de fazer que está fazendo. Não se trata pois de um apelo profundo do ser, dum grito necessário,
duma verdade lírica fruto de gozo ou mesmo de reflexão: se trata sim da macaqueação de tudo isso, feita
pela habilidade técnica.” Mário de Andrade.
_______________________________
4. “Eu me confundi, sorri, entrei no emaranhado dessa teia de Mário que me parece refletir o processo
criativo dele próprio, do Guarnieri, e de outros criadores. A teia prende nos mesmos fios o processo de
recepção. A ambigüidade está presente, levando o leitor de críticas que escancaram ou escondem elogios
a novas reflexões sobre o processo, ligando sempre criação e recepção, estética.
Mário se deteve a escrever, inspirado, como afirma ao fim do texto, pela música de Guarnieri.
Destaco alguns elogios que mostram a ambigüidade e o humor ao longo do texto. Construções que tecem
‘altos’ e ‘baixos’ e ‘baixos’ que não são ‘altos’ e ‘baixos’ mas a profundidade e riqueza da obra e do
processo. ‘...Você está moço e por isso sente aquela facilidade natural de compor da mocidade, e está
compondo demais. E o que é pior, compondo com muita rapidez’... ‘Você não reflete sobre, não se
controla’.
Mário é irônico e bem humorado: ‘..você vai ficar danado com essa afirmativa que aparentemente
é injusta’. A afirmação é justa e elogiosa. Acredito que Mário elogia o que me parece ser a resposta de
Guarnieri a um apelo profundo do ser ao escrever sua música aliado à aquisição técnica, treino de compor
etc. Mas Mário faz seus comentários de forma criativa, ambígua, como é a arte.
Percebi uma referência a idéias de mímese... ‘pra distinguir o que é de fato a gente e o que é
apenas Camargo Guarnieri imitando Camargo Guarnieri...’.”
7. De acordo com o esquema geral das inferências, de Marcuschi, este leitor utilizouse de inferências pragmático-culturais por analogia na linha geral de sua
reprodução. “A teia prende nos mesmos fios o processo de recepção. A
ambigüidade está presente, levando o leitor de críticas que escancaram ou
escondem elogios...”.
8. Inferências pragmático-culturais avaliativas que referem-se à assertiva “a afirmação
é justa”: “A afirmação é justa e elogiosa.” E à assertiva “Mas Mário faz seus
comentários de forma criativa, ambígua, como é a arte”.
Obs.: O leitor tomou como verdadeiro o julgamento de Mário de Andrade, talvez, como
referido anteriormente, devido ao fato de Mário de Andrade ser um marco da cultura brasileira.
____________________________
54
5. “O texto é uma crítica arrasadora de Mário a respeito da 2ª Sonata para violino e piano, de Camargo
Guarnieri. Na verdade, conforme consta no rodapé, a sonata não estava pronta quando Mário a leu.
Segundo Guarnieri ‘ainda não havia nenhuma indicação de dinâmica, estava só com as notas’. As críticas
principais referem-se à falta de inventividade e de lirismo na obra. O autor foi pragmático, dotado de
habilidade técnica, é verdade, porém sem o ‘dom’ da criação máxima, aquele algo mais, que vai além da
pura expressão técnica.”
9.
De acordo com o Esquema Geral das Inferências, de Marcuschi, este leitor utilizouse de inferências pragmático-culturais por analogia (recuperações lexicais) que
referem-se às relações semânticas em que “falta de inventividade” foi extraída de “é
o métier que se substitui à invenção” e “lirismo na obra” foi extraído de “duma
verdade lírica fruto de sofrimento de gozo”.
“Você sabe perfeitamente que você pode escrever uma fuga à Bach ou um noturno à Chopin, mas o
que cria semelhantes obras é um apelo profundo do ser? Uma verdade essencial? Não é o métier que se
substitui à invenção, e às vezes tão perfeitamente que a coisa chega a ser linda.” Mário de Andrade
10. Inferências pragmático-culturais avaliativas que se referem às assertivas “o autor foi
pragmático” e “o texto é uma crítica arrasadora de Mário”. Houve aqui um processo
de ativação de experiências pessoais, conhecimentos, crenças e ideologias,
fornecendo uma leitura avaliativo-elaborativa num esquema geral de associação de
experiências.
Classificação da interpretação do maestro Lutero Rodrigues
O maestro Lutero Rodrigues manifestou-se sobre esta mesma carta em um texto
intitulado A música, vista da correspondência constante do livro O Tempo e a Música,
organizado por Flávio Silva. Ao utilizarmos esta manifestação do maestro, objetivamos
comprovar que a diferença de conhecimentos prévios específicos sobre o assunto em tela
conduziu a interpretações diversas. Como o texto original é extenso, serão transcritos apenas
os trechos da interpretação do maestro Lutero utilizados para nossa análise. Mediante o texto
oferecido, segue a classificação inferencial da interpretação de Lutero Rodrigues:
1.
“Se essa importante atuação do primeiro tema, em toda Sonata, já existisse em sua primeira versão,
não teria sido comentada por Mário em suas cartas? Por outro lado, não teria Guarnieri transformado a
Sonata, dando ao tema inicial um papel de relevo em toda a obra com o propósito de mostrar que ele
poderia ser ‘essencial’?” L.R.
11. Inferências lógico-dedutivas: está questionando, por dedução, em primeiro lugar
porque Mário não escreveu sobre um dado musical que ele, enquanto maestro,
descobriu em sua análise e achou relevante. Em segundo lugar, considera a
55
hipótese de Guarnieri haver procedido a alterações em sua composição em um
segundo momento. Teria havido esta alteração?
“o tema não era essencial, o tema não despertava em você desenvolvimentos completos em si.” Mário de
Andrade
_____________________________
2.
“O assunto poderia parecer encerrado se tratássemos apenas dessa obra, mas o que houve em torno
dela não foi um episódio isolado. [...] Dentre as muitas críticas a composições de Guarnieri, publicadas
por Mário de Andrade em jornais da época, encontramos aquelas em que Mário fez restrições a
determinados procedimentos composicionais. [...] A dureza de algumas dissonâncias, a complexidade
do contraponto e até mesmo o uso da atonalidade eram os pontos negativos mais visados, fazendo
antever as objeções formuladas à Sonata.” L.R.
12. Inferências pragmático-culturais, no seu subtipo cognitivo-culturais: como o maestro
já havia estudado as críticas a composições de Guarnieri que Mário havia escrito na
época, pôde observar a insistência de Mário em criticar Guarnieri sempre nos
mesmos pontos, parecendo-lhe conseqüência natural o desfecho das críticas na
Sonata.
“Pego no contraponto que você pôs embaixo da frase. Toco ele sozinho. Não me diz nada. Canto,
repito, na me diz nada. Toco junto com o tema. Não valorizou o tema e continua mudo sem dizer nada. É
música? Não, é apenas um contraponto, como seria possível inventar milhares de outros pra contrapontar
o tema... No Segundo tempo, me horroriza desde logo, essa vontade do mal, essa perversão que hoje
reputo incontestável que é a dissonância pela dissonância. Que quer dizer, meu Deus! esse elemento
acompanhante iniciado pela mão direita e que com uma malvadeza sadista se prolonga e muda de notas
com uma malvadeza insuportável durante duas páginas. O que é isso! Não é musicalmente nada.
Tecnicamente são dissonâncias. Mas você levado pela mania da dissonância, do cromatismo, da alteração
que acabou dissolvendo a função harmônica da dissonância, perdeu totalmente as estribeiras... Mas aí se
introduz o problema mais terrível da música do nosso tempo: o atonalismo.” Mário de Andrade.
_____________________________
3.
“Tomou-a como uma verdadeira definição de sua personalidade musical, usando-a sempre para
explicar suas dificuldades em tornar-se um compositor de maior popularidade. Ao final de sua vida, a
afirmação de Mário já havia adquirido o significado de uma profecia que se cumprira.” L.R.
13. Inferências pragmático-culturais, no seu subtipo cognitivo-culturais. As assertivas do
maestro demonstram que ele conhece bem a maioria das composições de
Guarnieri, e que, ou o conhecia pessoalmente, ou já havia lido ou assistido
entrevistas com o compositor, nas quais Camargo confirmara a afirmação de Mário.
“ você, de sua própria essência psicológica já é um escritor difícil, um compositor sem grandes faculdades
de amabilidade, que agradem a toda gente.” Mário de Andrade.
_____________________________
4.
“Guarnieri operou várias mudanças em sua música, ao longo da vida, mas não transigiu com a
banalidade.” L.R.
56
14. Inferências pragmático-cultural avaliativas: o maestro afirma que Guarnieri fez
mudanças em sua música, mas que nunca foi banal, relacionando essa afirmação
com o trecho da carta em questão. Influenciado por esta assertiva que “nobilita um
artista”, reforçou ainda mais este traço da maneira de compor do músico.
“você tem horror do agradável, por causa desse perigo do agradável que é se confundir com o banal. Está
muito bem, esse horror, antes o medo do agradável é mais que justo e nobilita um artista. Mas o diabo é
que o horror do agradável está se tornando preconceito, e se transformando na mania do desagradável.”
Mário de Andrade.
_____________________________
5.
“Na mesma obra, porém, há um ponto em que o efeito dos intervalos harmônicos dissonantes é muito
mais contundente: trata-se do trecho compreendido entre os compassos 94 e 110 do primeiro
movimento, no qual, durante vários compassos, a mão direita do piano toca uma seqüência de nonas
menores paralelas, em f e ff , e com acentos! ...É curioso que Mário não tenha feito qualquer
referência a esse trecho da obra: existiria ele na primeira versão?” L.R.
15. Inferências lógico-dedutivas: está questionando, por dedução, em primeiro lugar
porque Mário não escreveu sobre um dado musical que ele, enquanto maestro,
descobriu em sua análise e achou relevante. Em segundo lugar, considera a
hipótese de Guarnieri haver procedido a alterações em sua composição, em um
segundo momento.
“No segundo tempo, me horroriza desde logo essa vontade do mal, essa perversão que hoje
reputo incontestável que é a dissonância pela dissonância.” Mário de Andrade.
_____________________________
6.
“a proximidade cronológica entre os dois acontecimentos e a inegável influência de Mário sobre
Guarnieri, enquanto seu orientador estético, dão ao episódio da Sonata a condição de causa em
potencial da mudança de rumos admitida pelo compositor e constatada em sua música.” L.R.
16. Inferência pragmático-cultural avaliativa (inegável influência de Mário sobre
Guarnieri, enquanto seu orientador estético).
17. Inferência pragmático-cultural, no seu subtipo cognitivo-culturais (a proximidade
cronológica entre os dois acontecimentos, a mudança de rumos admitida pelo
compositor e constatada em sua música.). Nota-se novamente o pleno
conhecimento do maestro em relação às obras de Guarnieri e o julgamento que fez
da relação de Mário e Guarnieri.
Para respaldar a classificação acima, transcrevemos o trecho em que Lutero cita um
depoimento de Guarnieri: “em 1933, comecei a estudar muito Hindemith e neste período minha
música se tornou meio atonal. Mas, depois, cheguei à conclusão de que aquilo era muito fútil.
Então, adicionei os elementos que me interessavam e continuei com a minha música.”
57
CONCLUSÃO
Inferir é algo que versa sobre tudo, tanto sobre a leitura de mundo, como de textos, e
qualquer situação que se nos apresente. Sobre tudo concluímos algo e lhe damos sentido, que
passa a fazer parte de nossa memória, permanecendo muitas vezes adormecido, porém
sempre pronto a despertar e a servir, agora como conhecimento prévio, a outras inferências
que fazemos, e assim por diante, como num círculo virtuoso ou vicioso.
Não podemos depreciar esse círculo qualificando-o de vicioso e nos resignarmos com este seu
traço. O círculo encerra em si um autêntica possibilidade do conhecer mais original que só apreendemos
corretamente quando admitimos que toda explicitação (ou interpretação) tem por tarefa primeira,
permanente e última não deixar que seus conhecimentos e concepções prévios se imponham pelo que se
antecipa nas intuições e noções populares, mas assegurar o seu tema científico por um dedobramento de
tais antecipações segundo as ‘coisas mesmas’.9
Submetemos ao esquema geral das inferências, criado por Marcuschi, as conclusões
anotadas por participantes do seminário sobre a carta escrita por Mário de Andrade a Camargo
Guarnieri. A aplicação do esquema nos proporcionou a percepção de quando o leitor fez
inferências não autorizadas pelo texto, sem índices ou parâmetros que corroborassem tal
compreensão. Ficou patente também a relevância do referencial de conhecimento de mundo,
conhecimento prévio, constantes no universo cognitivo dos leitores da carta. Nenhum deles,
presentes ao seminário em que houve a coleta das interpretações, possuía conhecimentos
musicais específicos. Eles se serviram de sua história de leitura e experiência de vida, fazendo
ilações bastante pertinentes sobre aquilo que o texto lhes oferecia, atuando em níveis diversos.
Há, então, interação de diversos tipos de conhecimentos. Quando há problemas no
processamento em um nível, outros tipos de conhecimento podem ajudar a desfazer a ambigüidade ou
obscuridade, num processo de engajamento da memória e do conhecimento do leitor que é,
essencialmente, interativo e compensatório; isto é, quando o leitor é incapaz de chegar à compreensão
através de um nível de informação, ele ativa outros tipos de conhecimento para compensar as falhas
momentâneas.10
De outro lado, no estudo da análise da carta, levada a efeito pelo maestro Lutero
Rodrigues, o conhecimento prévio deste sobre assuntos musicais conduziu-o a interpretações
objetivamente técnicas. Comprova-se a partir daí que a propriedade das interpretações não é
necessariamente afetada pela falta de conhecimentos específicos, alterando-se talvez a
profundidade da interpretação e o âmbito em que ela é exercida, mais subjetivamente (âmbito
pessoal) ou mais objetivamente (âmbito técnico). Citamos Manguel que, em seu livro Uma
História de Leitura,11 aborda a possibilidade de níveis diversos e simultâneos de significado
9
Heidegger. Apud: GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1998.
10
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989. p. 16.
11
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 109-110.
58
utilizados pelos estudiosos talmúdicos asquenazi: sentido literal, sentido limitado, de
elaboração racional, e sentido oculto.
Notamos que os leitores participantes do seminário recorreram, segundo nossa
classificação, em sua maioria a inferências pragmático-culturais por analogia e pragmáticoculturais avaliativas. Isto demonstra que, onde não existia o conhecimento técnico solicitado
pelo texto, o leitor recorreu primordialmente a analogias, secundariamente a inferências
avaliativas, em terceiro plano adotou inferências experienciais (individuais, históricas, sociais,
existenciais), pela ordem, a associações (que por sua natureza se assemelham à analogia), a
inferências delineadas sobre convenções (caráter axiológico individual ou social) e, por
derradeiro, amparou-se em suas referências lógicas, tanto indutiva como dedutiva, sendo que
estas últimas, como processo inferencial, têm a peculiaridade de ser mais utilizadas em relação
à pesquisa científica.
Por sua vez, o maestro Lutero Rodrigues, pelo conhecimento prévio, de ordem técnica,
absteve-se de qualquer inferência por analogia, amparando-se quase exclusivamente ao
subtipo cognitivo-cultural e ao lógico-dedutivo, restando as pragmático-culturais avaliativas em
torno de assuntos que remetem a alguma subjetividade, qual seja, a ascendência de Mário de
Andrade sobre Camargo Guarnieri quanto a assuntos estéticos, por exemplo.
Analisando e comparando, por meio do Esquema Geral das Inferências, de Marcuschi,
as compreensões expressas, tanto pelos leitores do seminário como pelo maestro Lutero
Rodrigues, percebe-se que, do procedimento adotado, podem ser efetivamente extraídos
subsídios para o tipo de pesquisa a que nos propusemos, mesmo dentre aqueles que não
possuam amplos conhecimentos de História da Música. Isso, pois mantiveram-se bastante
pertinentes ao que o texto lhes oferecia, ensejando a conclusão de que aspectos importantes à
pesquisa podem ser alcançados em vários níveis de produção de sentido. Para isso,
descrevemos os tipos de ilações mais recorrentes a cada um dos tipos de leitor, separados,
para efeito de pesquisa, entre aqueles que não possuíam conhecimentos específicos sobre o
tema proposto e aquele que o possuía. Objetivamos demonstrar que todas as interpretações
são efetivamente úteis no âmbito da pesquisa, cada qual com suas peculiaridades, não
esquecendo, porém, que o compartilhamento do universo cognitivo entre o autor e o leitor há
de produzir resultados de vários matizes, tão variados quanto o próprio conhecimento
compartilhado.
A capacidade de aproveitarmos a reconstrução de significados que cada leitor é apto a
produzir, ativando seu conhecimento prévio, fazendo suas inferências, relacionando o que lhe
parece relevante dentro de suas hipóteses e traduzindo isto num todo coerente, conduz a um
prodigioso enriquecimento da pesquisa. Era esta comprovação que almejávamos, e cremos
havê-la atingido.
59
Referências
BOURDIEU, P.; CHARTIER, R. A leitura: uma prática cultural. In: BOURDIEU, P. et al. Práticas da
leitura. 2. ed. rev. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 231-253. (debate).
CERVO, A. L.; BERVIAN, P. A. Metodologia científica. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: McGraw-Hill, 1977.
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1998.
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989.
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MARCONDES FILHO, Ciro. O espelho e a máscara: o enigma da comunicação no caminho do meio.
São Paulo: Discurso Editorial, 2002.
MARCUSCHI, L. A. Leitura como processo inferencial num universo cultural-cognitivo. In: BARSOTTO,
V. H. (Org.). Estado de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999. p. 95-124.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1975.
RODRIGUES, Lutero. A música, vista da correspondência. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri:
o tempo e a música. Rio de Janeiro: Funarte, 2001. p. 321-335.
TONI, Flávia C. A correspondência. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a música. Rio
de Janeiro: Funarte, 2001. p. 197-317.
Download

Carta de Mário de Andrade a Camargo Guarnieri