48 ANAIS III FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005 QUESTÕES SOBRE O NACIONALISMO E O MODERNISMO NO BRASIL CARTA DE MÁRIO DE ANDRADE A CAMARGO GUARNIERI: UM ESTUDO SOBRE INFERÊNCIA Rita de Cássia Domingues dos Santos* RESUMO: Esta pesquisa versa sobre a aplicabilidade do Esquema Geral das Inferências, apresentado por Marcuschi em seu artigo Leitura como processo inferencial num universo cultural-cognitivo. O Esquema, neste caso, foi utilizado na análise das interpretações geradas por participantes de um seminário sobre a carta de Mário de Andrade a Camargo Guarnieri (11 de agosto de 1934) e na subseqüente análise da manifestação do maestro Lutero Rodrigues sobre a mesma carta. O Esquema foi usado a fim de oferecer subsídios para a pesquisa em História da Música, chegando-se a um equilíbrio entre o que se crê ser a intenção de Mário de Andrade ao escrever a carta e a abertura de opções interpretativas a vários leitores. Este ponto de equilíbrio foi o objetivo deste trabalho, pois é possível realizar pesquisas em História da Música com uma perspectiva crítica para com a leitura e, ao mesmo tempo, pelo princípio de diferença, com a postura de respeito a toda interpretação de texto, pois ele é de natureza comunicativa, não estática, sendo seus sentidos plurais e móveis. A proposta foi demonstrar que todas as interpretações são úteis nâmbito da pesquisa, cada uma com suas peculiaridades. O compartilhamento do universo cognitivo entre o autor e o leitor produzirá resultados de vários matizes, tão variados quanto o próprio conhecimento compartilhado. * Mestrado em Musicologia na USP. Graduada em Composição e Regência pela UNESP e em Educação Artística pela FASM. Compositora, regente coral e professora de Educação Musical. 49 APRESENTAÇÃO A originalidade deste trabalho consiste em aplicar o Esquema Geral das Inferências, montado por Marcuschi e por ele apresentado em seu artigo Leitura como processo inferencial num universo cultural-cognitivo,1 no nosso caso, utilizado para dois procedimentos: a análise das interpretações geradas por participantes de um seminário, sobre a carta escrita por Mário de Andrade para Camargo Guarnieri, em 11 de agosto de 1934, e a subseqüente análise da manifestação do maestro Lutero Rodrigues sobre a mesma carta.2 Visando oferecer subsídios para a pesquisa a serviço da História da Música, partimos do pressuposto de que quando um musicólogo está estudando a obra e a vida de um compositor já falecido, é importante a análise detalhada da correspondência deste com seus pares intelectuais da época. “A correspondência entre Camargo Guarnieri e Mário de Andrade, ora revelada, é tão importante e necessária a todos os que se interessam pelo estudo do compositor e sua obra, que os estudos até agora realizados correm o risco de haver omitido ou contrariado fatos e informações essenciais”.3 Dada a natural diversidade de interpretações acerca de um mesmo texto, de uma mesma carta, torna-se necessária uma alternativa para desenvolver o espírito crítico na leitura e na produção de sentido do texto lido. O esquema geral das inferências de Marcuschi apresenta-se como essa alternativa. Mas é Derrida, em verdade, que mais radicalmente questiona o sentido, propondo que as identidades se deslocam e as significações e as verdades são plurais [...] Desconstruir é sair em busca do sentido que, para ele, como para Lacan e sua cadeia de significantes, jamais será localizado; dele só se pode ter “pistas“, referências, relações, nunca o verdadeiro desvelamento, a verdadeira revelação do que ele é ou significa. Estamos, portanto, diante de um reconhecimento da impossibilidade efetiva de decifrar, em definitivo, a linguagem ou de encontrar nela a significação última.4 Após a leitura da carta já mencionada colheu-se o material para essa classificação, no seminário realizado no dia 16 de abril de 2004 no Departamento de Departamento de Biblioteconomia e Documentação da Escola de Comunicações e Arte – USP, em aula da Profª. Dr.ª Anna Maria Marques Cintra, seminário no qual foram debatidas as conclusões dos participantes acerca do conteúdo daquela correspondência. As opiniões foram anotadas, analisadas e classificadas de acordo com o Esquema Geral acima mencionado. Muito embora seja pequena a amostragem, foi comprovada ampla diversidade na produção de sentidos. Não questionamos os participantes do seminário, leitores da carta, quanto ao raciocínio que cada um seguiu em suas inferências, deixando uma base livre para a interpretação e posterior 1 MARCUSCHI, L. A. Leitura como processo inferencial num universo cultural-cognitivo. In: BARSOTTO, V. H. (Org.). Estado de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999. p. 103. 2 RODRIGUES, Lutero. A música, vista da correspondência. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a música. Rio de Janeiro: Funarte, 2001. p. 322-326. 3 RODRIGUES, Lutero. Op. cit., p. 321. 4 MARCONDES FILHO, Ciro. O espelho e a máscara: o enigma da comunicação no caminho do meio. São Paulo: Discurso Editorial, 2002. p. 63. 50 classificação, o que resultou num processo bastante enriquecedor, porquanto livre de pressões. Aparentemente, o único meio de chegar à informação quanto à intenção do texto é o próprio texto e as indicações nele constantes. Roger Chartier, em seu debate com Pierre Bourdieu, afirmou: “creio que a idéia de retornar ao objeto para interrogá-lo o mais profundamente possível naquilo que pode nos ensinar sobre sua leitura possível implica uma tensão extrema, uma vez que, em boa lógica, é impossível reconstruir uma relação conhecendo apenas um de seus termos”.5 Sobre o texto, deverá então ser lançado um olhar crítico, para acolher suas proposições em seus múltiplos sentidos. Utilizando-nos do Esquema Geral das Inferências e das releituras colhidas no seminário, estabelecemos outros termos entre o texto e algumas de suas possíveis interpretações para reconstruir a relação entre ambos, por intermédio do processo inferencial. O processo inferencial já foi descrito como ferramenta básica para atuar-se com proposições científicas no meio acadêmico e também como instrumento de aculturamento na vida cotidiana. É amplamente utilizado na leitura em geral, como resultado do trabalho que o leitor exerce sobre si mesmo, abrindo-se para novas perspectivas, numa reelaboração constante da qual este processo é parte preponderante. Para o meio acadêmico, valemo-nos, a título de exemplo, da definição apresentada por Cervo e Bervian: Pode-se tomar a inferência como equivalente ao raciocínio. Pela inferência, o espírito é levado a tirar conclusões a partir de premissas conhecidas. Inferir é tirar uma conclusão de uma ou várias proposições dadas, nas quais está implicitamente contida. É imediata a inferência quando chegamos à proposição nova sem intermediários; e mediata quando há intermediários.6 Outra classificação do conceito de inferências encontramos no livro Semiótica e Filosofia, escrito por Charles Sanders Peirce, que fez o seguinte gráfico: a) Dedutiva (ou analítica) INFERÊNCIA b) Sintética: 1) indução 2) hipótese Pierce afirma: 5 BOURDIEU, P.; CHARTIER, R. A leitura: uma prática cultural. In: BOURDIEU, P. et al. Práticas da leitura. 2. ed. rev. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 250-251. 6 CERVO, A. L.; BERVIAN, P. A. Metodologia científica. 2. ed. rev. amp. São Paulo: McGraw-Hill, 1977. p. 33. 51 A indução ocorre quando generalizamos a partir de certo número de casos em que algo é verdadeiro e inferimos que a mesma coisa será verdadeira do total da classe. Ou quando verificamos que certa coisa é verdadeira para certa proporção de casos e inferimos que é verdadeira, na mesma proporção, para o total da classe.7 Uma observação quanto à palavra classe, que neste contexto, refere-se a uma determinada qualidade inerente ao “objeto” analisado, qualidade esta compartilhada e estendida aos demais elementos do grupo em que está inserido. Para o aculturamento e a leitura em geral, situando o tema agora na segunda descrição, ou seja, na perspectiva do estudo da utilização de inferências no processo de leitura, com a subjacente compreensão e interpretação do texto lido, não disporíamos de espaço suficiente para relatar aqui ainda que alguns dentre os muitos estudos desenvolvidos e seus respectivos autores. Centraremos então nossa atenção naquele, de cujo esquema nos serviremos para o desenvolvimento do nosso trabalho, Luiz Antonio Marcuschi. ESQUEMA GERAL DAS INFERÊNCIAS, DE LUIZ ANTONIO MARCUSCHI • Inferências lógicas: baseadas nas relações lógicas e submetidas aos valores-verdade na relação entre as proposições. São elas dedutivas, indutivas ou condicionais. • Inferências pragmático-culturais: baseadas sempre no input textual e também no conhecimento de itens lexicais e relações semânticas. São elas: por identificação referencial; por generalização; por associações; por analogia; por composições; ou por decomposições. • Inferências pragmático-culturais: baseadas nos conhecimentos, experiências, crenças, ideologias e axiologias individuais. São elas: convencionais; experienciais; avaliativas; cognitivo-culturais. Texto oferecido para a interpretação dos leitores O texto oferecido para a interpretação dos leitores foi a carta que Mário de Andrade escreveu para Camargo Guarnieri, em 11 de agosto de 1934, foi colhido do livro Camargo Guarnieri: o tempo e a música, organizado por Flávio Silva, e integra o capítulo “A correspondência”, elaborado por Flávia Camargo Toni.8 Por ser deveras extenso, transcreveremos, com algumas análises escolhidas, apenas os trechos a que os leitores em questão estão se referindo. 7 PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 150. TONI, Flávia C. A correspondência. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a música. Rio de Janeiro: Funarte, 2001. p. 197-317. 8 52 Interpretação de alguns leitores participantes do seminário 1. “Diante desta primeira leitura, a impressão que se tem é que Mário foi bastante ferrenho e crítico na análise que fez da Sonata. Ele apresenta alguns indícios positivos no que diz respeito as partes das idéias, de dados, porém é cruel e direto quanto ao próprio Guarnieri. Para Mário, a sonata não apresenta estética e harmonia. Além disso, apresenta lacunas no texto. Para Mário, Guarnieri não é um inventor ou um artista da pós-modernidade.” • De acordo com o Esquema Geral das Inferências, de Marcuschi, este leitor utilizouse de inferências pragmático-culturais experienciais na maior parte da sua reprodução. • Conforme a classificação das inferências de Clark (apud: Marcuschi, 1999), nas frases destacadas, o leitor utiliza-se de inferências não-autorizadas pelo texto: “Para Mário, a sonata não apresenta estética e harmonia. [...] Para Mário, Guarnieri não é um inventor ou um artista da pós-modernidade.” “Não tenho dúvida que ela me desperta um número formidável de idéias, e a prova é esta carta. Isso prova que você é criador, põe em marcha problemas estéticos e sua arte contém aquela parte imprescindível de inteligência que faz com que a obra seja rica.” Mário de Andrade. _____________________________________ 2. “Expressa a meu ver a coragem de ser sincero, decorrente de sua posição no cenário cultural da cidade e do país. Aparentemente rude, na verdade mostra uma preocupação de preceptor, capaz de com franqueza, mostrar "defeitos" a um (provavelmente) jovem músico, mas já com uma vasta produção. A relação invenção/uso do métier pareceu muito oportuna, pois embora não explícita, mostra a diferença entre o ato criativo e a produção em massa. Mário de Andrade se mostra duro, mas "lógico", algo como um pai dando lições a um filho. Suas observações são, acima de tudo construtivas. Dúvidas: teria sido Mário de Andrade extremamente exigente e a essa altura já estaria ultrapassado? A leitura da carta, embora muito interessante me deixa com uma sensação de que faltam algumas informações (o lugar sócio-cultural do qual cada um "fala", por exemplo) para eu construir "sentidos" bastante satisfatórios a partir do texto.” 1. De acordo com o Esquema Geral das Inferências, de Marcuschi, este leitor utilizouse de inferências pragmático-culturais por analogia na linha geral de sua reprodução. 2. Inferência lógico-dedutiva “decorrente de sua posição no cenário cultural...”. 3. Inferências pragmático-culturais convencional e avaliativa: “preocupação de preceptor...” e “Mário de Andrade se mostra duro, mas ...” _______________________________ 3. “Trata-se de um depoimento sincero e rigoroso de um homem ligado às artes, portanto, de sensibilidade à altura do compositor em questão. Entende que, em defesa da arte, o teor da carta é um chamamento ao equilíbrio intuição/técnica. Ficou claro que o compositor (perdoe-me a ousadia do comentário) preocupa-se muito mais em fazer um trabalho acadêmico, com perfeição de forma, a soltar a criatividade de que é capaz. A composição, conforme Mário de Andrade, ficou manca, sem alma, quadrada. Não se discute a questão do talento, houve resistência à entrega, no ato da criação.” 53 4. De acordo com o Esquema Geral das Inferências, de Marcuschi, este leitor utilizouse de inferência lógico-indutiva na linha geral de sua reprodução. 5. Inferência pragmático-cultural avaliativa: “Trata-se de um depoimento sincero e rigoroso...”. 6. Inferência pragmático-cultural experiencial: “Ficou claro que o compositor...”. Obs.: O leitor, aparentemente, não compreendeu que a opinião de Mário de Andrade poderia não ser a verdade sobre a qualidade da obra, talvez devido ao fato de Mário de Andrade ser um ícone da cultura brasileira, muito mais conhecido do que Camargo Guarnieri, adquirindo as declarações daquele um caráter determinante. “A gente pensa que está inventando um tema, uma polifonia, em vez, não está, é o métier, é a habilidade de fazer que está fazendo. Não se trata pois de um apelo profundo do ser, dum grito necessário, duma verdade lírica fruto de gozo ou mesmo de reflexão: se trata sim da macaqueação de tudo isso, feita pela habilidade técnica.” Mário de Andrade. _______________________________ 4. “Eu me confundi, sorri, entrei no emaranhado dessa teia de Mário que me parece refletir o processo criativo dele próprio, do Guarnieri, e de outros criadores. A teia prende nos mesmos fios o processo de recepção. A ambigüidade está presente, levando o leitor de críticas que escancaram ou escondem elogios a novas reflexões sobre o processo, ligando sempre criação e recepção, estética. Mário se deteve a escrever, inspirado, como afirma ao fim do texto, pela música de Guarnieri. Destaco alguns elogios que mostram a ambigüidade e o humor ao longo do texto. Construções que tecem ‘altos’ e ‘baixos’ e ‘baixos’ que não são ‘altos’ e ‘baixos’ mas a profundidade e riqueza da obra e do processo. ‘...Você está moço e por isso sente aquela facilidade natural de compor da mocidade, e está compondo demais. E o que é pior, compondo com muita rapidez’... ‘Você não reflete sobre, não se controla’. Mário é irônico e bem humorado: ‘..você vai ficar danado com essa afirmativa que aparentemente é injusta’. A afirmação é justa e elogiosa. Acredito que Mário elogia o que me parece ser a resposta de Guarnieri a um apelo profundo do ser ao escrever sua música aliado à aquisição técnica, treino de compor etc. Mas Mário faz seus comentários de forma criativa, ambígua, como é a arte. Percebi uma referência a idéias de mímese... ‘pra distinguir o que é de fato a gente e o que é apenas Camargo Guarnieri imitando Camargo Guarnieri...’.” 7. De acordo com o esquema geral das inferências, de Marcuschi, este leitor utilizouse de inferências pragmático-culturais por analogia na linha geral de sua reprodução. “A teia prende nos mesmos fios o processo de recepção. A ambigüidade está presente, levando o leitor de críticas que escancaram ou escondem elogios...”. 8. Inferências pragmático-culturais avaliativas que referem-se à assertiva “a afirmação é justa”: “A afirmação é justa e elogiosa.” E à assertiva “Mas Mário faz seus comentários de forma criativa, ambígua, como é a arte”. Obs.: O leitor tomou como verdadeiro o julgamento de Mário de Andrade, talvez, como referido anteriormente, devido ao fato de Mário de Andrade ser um marco da cultura brasileira. ____________________________ 54 5. “O texto é uma crítica arrasadora de Mário a respeito da 2ª Sonata para violino e piano, de Camargo Guarnieri. Na verdade, conforme consta no rodapé, a sonata não estava pronta quando Mário a leu. Segundo Guarnieri ‘ainda não havia nenhuma indicação de dinâmica, estava só com as notas’. As críticas principais referem-se à falta de inventividade e de lirismo na obra. O autor foi pragmático, dotado de habilidade técnica, é verdade, porém sem o ‘dom’ da criação máxima, aquele algo mais, que vai além da pura expressão técnica.” 9. De acordo com o Esquema Geral das Inferências, de Marcuschi, este leitor utilizouse de inferências pragmático-culturais por analogia (recuperações lexicais) que referem-se às relações semânticas em que “falta de inventividade” foi extraída de “é o métier que se substitui à invenção” e “lirismo na obra” foi extraído de “duma verdade lírica fruto de sofrimento de gozo”. “Você sabe perfeitamente que você pode escrever uma fuga à Bach ou um noturno à Chopin, mas o que cria semelhantes obras é um apelo profundo do ser? Uma verdade essencial? Não é o métier que se substitui à invenção, e às vezes tão perfeitamente que a coisa chega a ser linda.” Mário de Andrade 10. Inferências pragmático-culturais avaliativas que se referem às assertivas “o autor foi pragmático” e “o texto é uma crítica arrasadora de Mário”. Houve aqui um processo de ativação de experiências pessoais, conhecimentos, crenças e ideologias, fornecendo uma leitura avaliativo-elaborativa num esquema geral de associação de experiências. Classificação da interpretação do maestro Lutero Rodrigues O maestro Lutero Rodrigues manifestou-se sobre esta mesma carta em um texto intitulado A música, vista da correspondência constante do livro O Tempo e a Música, organizado por Flávio Silva. Ao utilizarmos esta manifestação do maestro, objetivamos comprovar que a diferença de conhecimentos prévios específicos sobre o assunto em tela conduziu a interpretações diversas. Como o texto original é extenso, serão transcritos apenas os trechos da interpretação do maestro Lutero utilizados para nossa análise. Mediante o texto oferecido, segue a classificação inferencial da interpretação de Lutero Rodrigues: 1. “Se essa importante atuação do primeiro tema, em toda Sonata, já existisse em sua primeira versão, não teria sido comentada por Mário em suas cartas? Por outro lado, não teria Guarnieri transformado a Sonata, dando ao tema inicial um papel de relevo em toda a obra com o propósito de mostrar que ele poderia ser ‘essencial’?” L.R. 11. Inferências lógico-dedutivas: está questionando, por dedução, em primeiro lugar porque Mário não escreveu sobre um dado musical que ele, enquanto maestro, descobriu em sua análise e achou relevante. Em segundo lugar, considera a 55 hipótese de Guarnieri haver procedido a alterações em sua composição em um segundo momento. Teria havido esta alteração? “o tema não era essencial, o tema não despertava em você desenvolvimentos completos em si.” Mário de Andrade _____________________________ 2. “O assunto poderia parecer encerrado se tratássemos apenas dessa obra, mas o que houve em torno dela não foi um episódio isolado. [...] Dentre as muitas críticas a composições de Guarnieri, publicadas por Mário de Andrade em jornais da época, encontramos aquelas em que Mário fez restrições a determinados procedimentos composicionais. [...] A dureza de algumas dissonâncias, a complexidade do contraponto e até mesmo o uso da atonalidade eram os pontos negativos mais visados, fazendo antever as objeções formuladas à Sonata.” L.R. 12. Inferências pragmático-culturais, no seu subtipo cognitivo-culturais: como o maestro já havia estudado as críticas a composições de Guarnieri que Mário havia escrito na época, pôde observar a insistência de Mário em criticar Guarnieri sempre nos mesmos pontos, parecendo-lhe conseqüência natural o desfecho das críticas na Sonata. “Pego no contraponto que você pôs embaixo da frase. Toco ele sozinho. Não me diz nada. Canto, repito, na me diz nada. Toco junto com o tema. Não valorizou o tema e continua mudo sem dizer nada. É música? Não, é apenas um contraponto, como seria possível inventar milhares de outros pra contrapontar o tema... No Segundo tempo, me horroriza desde logo, essa vontade do mal, essa perversão que hoje reputo incontestável que é a dissonância pela dissonância. Que quer dizer, meu Deus! esse elemento acompanhante iniciado pela mão direita e que com uma malvadeza sadista se prolonga e muda de notas com uma malvadeza insuportável durante duas páginas. O que é isso! Não é musicalmente nada. Tecnicamente são dissonâncias. Mas você levado pela mania da dissonância, do cromatismo, da alteração que acabou dissolvendo a função harmônica da dissonância, perdeu totalmente as estribeiras... Mas aí se introduz o problema mais terrível da música do nosso tempo: o atonalismo.” Mário de Andrade. _____________________________ 3. “Tomou-a como uma verdadeira definição de sua personalidade musical, usando-a sempre para explicar suas dificuldades em tornar-se um compositor de maior popularidade. Ao final de sua vida, a afirmação de Mário já havia adquirido o significado de uma profecia que se cumprira.” L.R. 13. Inferências pragmático-culturais, no seu subtipo cognitivo-culturais. As assertivas do maestro demonstram que ele conhece bem a maioria das composições de Guarnieri, e que, ou o conhecia pessoalmente, ou já havia lido ou assistido entrevistas com o compositor, nas quais Camargo confirmara a afirmação de Mário. “ você, de sua própria essência psicológica já é um escritor difícil, um compositor sem grandes faculdades de amabilidade, que agradem a toda gente.” Mário de Andrade. _____________________________ 4. “Guarnieri operou várias mudanças em sua música, ao longo da vida, mas não transigiu com a banalidade.” L.R. 56 14. Inferências pragmático-cultural avaliativas: o maestro afirma que Guarnieri fez mudanças em sua música, mas que nunca foi banal, relacionando essa afirmação com o trecho da carta em questão. Influenciado por esta assertiva que “nobilita um artista”, reforçou ainda mais este traço da maneira de compor do músico. “você tem horror do agradável, por causa desse perigo do agradável que é se confundir com o banal. Está muito bem, esse horror, antes o medo do agradável é mais que justo e nobilita um artista. Mas o diabo é que o horror do agradável está se tornando preconceito, e se transformando na mania do desagradável.” Mário de Andrade. _____________________________ 5. “Na mesma obra, porém, há um ponto em que o efeito dos intervalos harmônicos dissonantes é muito mais contundente: trata-se do trecho compreendido entre os compassos 94 e 110 do primeiro movimento, no qual, durante vários compassos, a mão direita do piano toca uma seqüência de nonas menores paralelas, em f e ff , e com acentos! ...É curioso que Mário não tenha feito qualquer referência a esse trecho da obra: existiria ele na primeira versão?” L.R. 15. Inferências lógico-dedutivas: está questionando, por dedução, em primeiro lugar porque Mário não escreveu sobre um dado musical que ele, enquanto maestro, descobriu em sua análise e achou relevante. Em segundo lugar, considera a hipótese de Guarnieri haver procedido a alterações em sua composição, em um segundo momento. “No segundo tempo, me horroriza desde logo essa vontade do mal, essa perversão que hoje reputo incontestável que é a dissonância pela dissonância.” Mário de Andrade. _____________________________ 6. “a proximidade cronológica entre os dois acontecimentos e a inegável influência de Mário sobre Guarnieri, enquanto seu orientador estético, dão ao episódio da Sonata a condição de causa em potencial da mudança de rumos admitida pelo compositor e constatada em sua música.” L.R. 16. Inferência pragmático-cultural avaliativa (inegável influência de Mário sobre Guarnieri, enquanto seu orientador estético). 17. Inferência pragmático-cultural, no seu subtipo cognitivo-culturais (a proximidade cronológica entre os dois acontecimentos, a mudança de rumos admitida pelo compositor e constatada em sua música.). Nota-se novamente o pleno conhecimento do maestro em relação às obras de Guarnieri e o julgamento que fez da relação de Mário e Guarnieri. Para respaldar a classificação acima, transcrevemos o trecho em que Lutero cita um depoimento de Guarnieri: “em 1933, comecei a estudar muito Hindemith e neste período minha música se tornou meio atonal. Mas, depois, cheguei à conclusão de que aquilo era muito fútil. Então, adicionei os elementos que me interessavam e continuei com a minha música.” 57 CONCLUSÃO Inferir é algo que versa sobre tudo, tanto sobre a leitura de mundo, como de textos, e qualquer situação que se nos apresente. Sobre tudo concluímos algo e lhe damos sentido, que passa a fazer parte de nossa memória, permanecendo muitas vezes adormecido, porém sempre pronto a despertar e a servir, agora como conhecimento prévio, a outras inferências que fazemos, e assim por diante, como num círculo virtuoso ou vicioso. Não podemos depreciar esse círculo qualificando-o de vicioso e nos resignarmos com este seu traço. O círculo encerra em si um autêntica possibilidade do conhecer mais original que só apreendemos corretamente quando admitimos que toda explicitação (ou interpretação) tem por tarefa primeira, permanente e última não deixar que seus conhecimentos e concepções prévios se imponham pelo que se antecipa nas intuições e noções populares, mas assegurar o seu tema científico por um dedobramento de tais antecipações segundo as ‘coisas mesmas’.9 Submetemos ao esquema geral das inferências, criado por Marcuschi, as conclusões anotadas por participantes do seminário sobre a carta escrita por Mário de Andrade a Camargo Guarnieri. A aplicação do esquema nos proporcionou a percepção de quando o leitor fez inferências não autorizadas pelo texto, sem índices ou parâmetros que corroborassem tal compreensão. Ficou patente também a relevância do referencial de conhecimento de mundo, conhecimento prévio, constantes no universo cognitivo dos leitores da carta. Nenhum deles, presentes ao seminário em que houve a coleta das interpretações, possuía conhecimentos musicais específicos. Eles se serviram de sua história de leitura e experiência de vida, fazendo ilações bastante pertinentes sobre aquilo que o texto lhes oferecia, atuando em níveis diversos. Há, então, interação de diversos tipos de conhecimentos. Quando há problemas no processamento em um nível, outros tipos de conhecimento podem ajudar a desfazer a ambigüidade ou obscuridade, num processo de engajamento da memória e do conhecimento do leitor que é, essencialmente, interativo e compensatório; isto é, quando o leitor é incapaz de chegar à compreensão através de um nível de informação, ele ativa outros tipos de conhecimento para compensar as falhas momentâneas.10 De outro lado, no estudo da análise da carta, levada a efeito pelo maestro Lutero Rodrigues, o conhecimento prévio deste sobre assuntos musicais conduziu-o a interpretações objetivamente técnicas. Comprova-se a partir daí que a propriedade das interpretações não é necessariamente afetada pela falta de conhecimentos específicos, alterando-se talvez a profundidade da interpretação e o âmbito em que ela é exercida, mais subjetivamente (âmbito pessoal) ou mais objetivamente (âmbito técnico). Citamos Manguel que, em seu livro Uma História de Leitura,11 aborda a possibilidade de níveis diversos e simultâneos de significado 9 Heidegger. Apud: GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. 10 KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989. p. 16. 11 MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 109-110. 58 utilizados pelos estudiosos talmúdicos asquenazi: sentido literal, sentido limitado, de elaboração racional, e sentido oculto. Notamos que os leitores participantes do seminário recorreram, segundo nossa classificação, em sua maioria a inferências pragmático-culturais por analogia e pragmáticoculturais avaliativas. Isto demonstra que, onde não existia o conhecimento técnico solicitado pelo texto, o leitor recorreu primordialmente a analogias, secundariamente a inferências avaliativas, em terceiro plano adotou inferências experienciais (individuais, históricas, sociais, existenciais), pela ordem, a associações (que por sua natureza se assemelham à analogia), a inferências delineadas sobre convenções (caráter axiológico individual ou social) e, por derradeiro, amparou-se em suas referências lógicas, tanto indutiva como dedutiva, sendo que estas últimas, como processo inferencial, têm a peculiaridade de ser mais utilizadas em relação à pesquisa científica. Por sua vez, o maestro Lutero Rodrigues, pelo conhecimento prévio, de ordem técnica, absteve-se de qualquer inferência por analogia, amparando-se quase exclusivamente ao subtipo cognitivo-cultural e ao lógico-dedutivo, restando as pragmático-culturais avaliativas em torno de assuntos que remetem a alguma subjetividade, qual seja, a ascendência de Mário de Andrade sobre Camargo Guarnieri quanto a assuntos estéticos, por exemplo. Analisando e comparando, por meio do Esquema Geral das Inferências, de Marcuschi, as compreensões expressas, tanto pelos leitores do seminário como pelo maestro Lutero Rodrigues, percebe-se que, do procedimento adotado, podem ser efetivamente extraídos subsídios para o tipo de pesquisa a que nos propusemos, mesmo dentre aqueles que não possuam amplos conhecimentos de História da Música. Isso, pois mantiveram-se bastante pertinentes ao que o texto lhes oferecia, ensejando a conclusão de que aspectos importantes à pesquisa podem ser alcançados em vários níveis de produção de sentido. Para isso, descrevemos os tipos de ilações mais recorrentes a cada um dos tipos de leitor, separados, para efeito de pesquisa, entre aqueles que não possuíam conhecimentos específicos sobre o tema proposto e aquele que o possuía. Objetivamos demonstrar que todas as interpretações são efetivamente úteis no âmbito da pesquisa, cada qual com suas peculiaridades, não esquecendo, porém, que o compartilhamento do universo cognitivo entre o autor e o leitor há de produzir resultados de vários matizes, tão variados quanto o próprio conhecimento compartilhado. A capacidade de aproveitarmos a reconstrução de significados que cada leitor é apto a produzir, ativando seu conhecimento prévio, fazendo suas inferências, relacionando o que lhe parece relevante dentro de suas hipóteses e traduzindo isto num todo coerente, conduz a um prodigioso enriquecimento da pesquisa. Era esta comprovação que almejávamos, e cremos havê-la atingido. 59 Referências BOURDIEU, P.; CHARTIER, R. A leitura: uma prática cultural. In: BOURDIEU, P. et al. Práticas da leitura. 2. ed. rev. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 231-253. (debate). CERVO, A. L.; BERVIAN, P. A. Metodologia científica. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: McGraw-Hill, 1977. GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MARCONDES FILHO, Ciro. O espelho e a máscara: o enigma da comunicação no caminho do meio. São Paulo: Discurso Editorial, 2002. MARCUSCHI, L. A. Leitura como processo inferencial num universo cultural-cognitivo. In: BARSOTTO, V. H. (Org.). Estado de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999. p. 95-124. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. RODRIGUES, Lutero. A música, vista da correspondência. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a música. Rio de Janeiro: Funarte, 2001. p. 321-335. TONI, Flávia C. A correspondência. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a música. Rio de Janeiro: Funarte, 2001. p. 197-317.