UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS ELISABETE DA SILVA BARBOSA IDENTIDADES ENTRELAÇADAS UMA VISITA AO BRAZIL, DE ELIZABETH BISHOP SALVADOR – BAHIA 2010 ELISABETE DA SILVA BARBOSA IDENTIDADES ENTRELAÇADAS UMA VISITA AO BRAZIL, DE ELIZABETH BISHOP Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Linguagens. Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães. Salvador – Bahia 2010 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrônico para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. FICHA CATALOGRÁFICA: Sistema de Bibliotecas da Uneb Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592 Barbosa, Elisabete da Silva Identidades entrelaçadas: uma visita ao Brasil, de Elizabeth Bishop / Elisabete da Silva Barbosa. – Salvador, 2010. 172f. Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus I. 2010. Contém referências e apêndices. 1. Bishop, Elizabeth, 1911-1979. 2. Criação (Literária, artística, etc.). I. Magalhães, Carlos Augusto. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 801 ELISABETE DA SILVA BARBOSA IDENTIDADES ENTRELAÇADAS: UMA VISITA AO BRAZIL, DE ELIZABETH BISHOP Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Linguagens. Salvador, 25 de agosto de 2010. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________________________ Prof.. Dr. Carlos Augusto Magalhães (Orientador - UNEB) ______________________________________________________________________ Prof. Dra. Márcia Rios da Silva (UNEB) ______________________________________________________________________ Prof. Dra. Silvia Maria Guerra Anastácio (UFBA) Salvador – Bahia 2010 “A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas”. A minha mãe, por tudo, dedico. AGRADECIMENTO “Como o não sabes ainda Agradecer é mistério”. (Fernando Pessoa, Quadras ao Gosto Popular) Serei sempre grata ao Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagem da Universidade do Estado da Bahia pela oportunidade de desenvolver a pesquisa nessa instituição. À Silvia Anástácio, primeiro por ter me acolhido em seu grupo de pesquisas sobre o processo criativo de Bishop e, depois, pelo constante incentivo e confiança de fornecer os manuscritos para a realização da pesquisa. À professora Socorro, por demonstrar interesse pelo objeto de estudo desde os meus primeiros dias como aluna especial, fazendo com que eu acreditasse que meus propósitos eram possíveis. Ao professor Carlos, um agradecimento especial pela orientação e confiança, por aceitar de pronto me acompanhar nessa empreitada e por ter me permitido e incentivado a trilhar caminhos. Aos professores do PPGEL, pela dedicação e cuidado com os mestrandos. A Camila e Danilo, por tanto zelo, atenção e paciência. Aos colegas, pelas tardes compartilhadas e experiências trocadas. Sou grata, em especial, às amigas conquistadas nessa caminhada: Esmeralda Meira e Edna Soares, agradeço pelas iniciais trocas acadêmicas que, com o tempo, se revelaram amizades verdadeiras. Caminho longo, de aprendizagens e descobertas, de alegrias mas, também, de tristezas. Dissertar foi preciso. Nesse percurso, a pessoa mais amada se foi, a quem serei eternamente grata – Maria, minha mãe, obrigada por me ajudar a ver que novos caminhos são sempre possíveis. À você, meu amor sem limites. A Natalino, meu pai, e a meus irmãos Silvania, Jaqueline, Natali, e Natanael, agradeço pelo incentivo e apoio, pelo amor e pela crença de que podemos sempre mais e melhor. A estes que estiveram no processo antes, durante, e que permanecerão por toda a vida, minha eterna gratidão. Uma arte A arte da Perda não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério. Depois perca mais rápido, com mais critério: lugares, nomes, a escala subseqüente da viagem não feita. Nada disso é sério. Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero lembrar a perda de três casas excelentes. A arte de perder não é nenhum mistério. Perdi duas cidades lindas. E um império que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudade deles. Mas não é nada sério. – Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser um mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério. (Elizabeth Bishop. Tradução de Paulo Henriques Britto) Esclarecimento a Elizabeth Bishop Ah, Elizabeth, queria te dizer que há muito mistério em perder... e mesmo que seja inevitável, perder não é uma arte. Faça o processo inverso: em vez de perder algo todos os dias, encontre e economize seu tempo, porque perder é um mistério. Então esteja atenta, não perca as coisas de vista; não se esqueça dos nomes das pessoas, nem dos lugares visitados. Porque quando você relembra, sempre acaba em arte. Também perdi o relógio de minha mãe e ela era a ideia que eu tinha de lar Esta foi a maior perda... um desastre. Onde estarão as coisas perdidas, Elizabeth? procurei todas, e até hoje me pergunto onde elas foram parar. Talvez elas estejam em um mundo de muito mistério. – Não vou te perder, (a voz reticente que eu amo). E não vou mentir pra você. É evidente que você falou tudo ao contrário: perder não é uma arte (pode escrever) parece mais que é mistério! (Elisabete Barbosa para Elizabeth Bishop) RESUMO Este trabalho tem como objetivo o estudo do processo de criação de Brazil, livro de viagens escrito pela norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979) sob encomenda da Time-Life. Esse texto nos chama atenção por sofrer interferências dos editores e, por esse motivo, ser renegado pela autora. Seus esforços para manter a escrita original nos levam a discutir, em um primeiro momento, as questões editoriais envolvidas na produção da obra, bem como a construção de imagens empreendidas por olhares estrangeiros. A montagem de um dossiê com os documentos autorais possibilita revisitar as representações de Brasil a partir de um cotejo entre manuscrito e texto definitivo (para o qual usamos, também, cartas e poemas como fontes secundárias). As imagens de Brasil são lidas nesta pesquisa com o suporte da teoria das representações sociais, as quais demonstram como a nova realidade se ajusta a imagens prévias, acumuladas por meio de leituras e viagens. Trata-se de uma autora que empreende constantes deslocamentos, o que transforma a dimensão geográfica em um vetor que perpassa todo o seu projeto artístico. O trânsito por culturas diversas se reflete nos textos que privilegiam instâncias territoriais (materiais, ficcionais e simbólicas) que se inter-relacionam por uma explícita hierarquização de espaços e culturas. A construção de imagens de brasilidade acaba funcionando, para Bishop, como uma forma de organização dos limites do eu e do Outro, pois o choque cultural, muitas vezes, borra os contornos tanto de espaços, como de subjetividades. Através de Brazil, pudemos observar como o eu e o Outro se enredam em uma tessitura que se engendra como mecanismo revelador de identidades, surgidas nos textos de modo interdependente e que, por esse motivo, revelam-se entrelaçadas. PALAVRAS-CHAVE: Elizabeth Bishop. Processo de criação. Representação social. Multiterritorialidade. ABSTRACT The objective of this study is to analyze the creative process of Brazil, a travel book ordered by the editors of Time-Life to the North American writer Elizabeth Bishop (1911-1979). The interferences of the editors in the text lead the author to disown this work. Bishop’s efforts to preserve her original text is registered in the manuscripts, what makes us to discuss in a first moment the editorial questions involved in the production of this work, as well as the construction of images developed by foreign perspectives. The creation of a dossier with the authorial documents allows us to visit the images of Brazil from a comparative perspective that brings together the manuscripts and the definitive text (as well as letters and poems used as secondary sources). The Social Representation theory proposed by the social psychologist Serge Moscovici (2003) shows that the new reality is adjusted to previous images, summed up by readings and travels. Bishop is an author who makes several dislocations, what transforms the geographical dimension in a vector that is present in her artistic project. The circulation in diverse cultures is reflected in texts that privilege territorial aspects (material, fictional and symbolic) which are interrelated by an explicit rating of spaces and cultures. Bishop’s representation of Brazil can be understood as the organization of limits between the self and the Other, as we understand that the cultural chock blends the contours of spaces and subjectivities. With Brazil, we observe the construction of images that entwine the self and the Other in a tissue engendered as a mechanism capable of revealing the identities that interdependently arouse in the texts. Therefore, they reveal that these identities are plaited together. KEY WORDS: Elizabeth Bishop. Creation Process. Social Representation. Multiterritoriality. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 09 2 O NASCIMENTO DE UMA OBRA................................................................... 18 2.1 Elizabeth Bishop & os editores da Time-Life .......................................... 19 2.2 A aventura do olhar .................................................................................... 28 2.3 O remoer da escrita .................................................................................... 37 3 REPRESENTAÇÕES DA ALTERIDADE........................................................ 48 3.1 Visitando lugares imaginados .................................................................... 49 3.2 Rabiscando Brazil ........................................................................................ 55 3.2.1 O Outro............................................................................................... 62 3.2.2 O espaço do Outro.............................................................................. 75 4 CAMINHOS ENTRECRUZADOS: SEGUINDO AS PISTAS DE ELIZABETH BISHOP......................................................................................... 88 4.1 Manipulando espelhos................................................................................. 89 4.2 Encontrando um canto no mundo ............................................................. 101 4.3 Fissurando diques simbólicos...................................................................... 114 4.4 Trilhando o caminho de casa...................................................................... 125 CONCLUSÃO.......................................................................................................... 129 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 134 APÊNDICE............................................................................................................... 145 1. INTRODUÇÃO Elizabeth Bishop (1911-1979), poeta norte-americana, chega ao Brasil em dezembro de 1951. Parte de Yaddo (colônia de artistas em Saratoga Springs), onde se sente extremamente infeliz. Decide então viajar pelo mundo, mas acaba por se deparar com um navio superlotado, sendo impedida de embarcar. Decidida a não mais viver em Nova York, descobre que há outro navio com destino à América do Sul e então segue viagem. Com planos ainda indefinidos, Bishop demonstra pretensão de visitar amigos no Rio de Janeiro, seguindo para a Terra do Fogo e depois para a Holanda, onde encontraria o amigo Robert Lowell. No entanto, a viagem é finalizada na primeira parada, onde é acometida por uma forte alergia (provocada pela ingestão de caju), o que faz com que ela prolongue a estada para tratar da saúde. Recebe muito carinho dos brasileiros, especialmente de Lota de Macedo Soares que, em pouco tempo, se torna sua companheira. Lota oferece-lhe afetividade, um lar e um estúdio para que possa dedicar-se à escrita de poesia. Segundo a autora, é a primeira vez na vida que se sente extremamente feliz. O Brasil transforma-se em seu novo território. Nascida em Worcester, Massachusetts, Bishop perde os pais muito cedo. O pai morre logo após seu nascimento. Quando completa cinco anos, a mãe é confinada em um asilo para doentes mentais e Bishop não mais a encontra. Passa a viver com os avôs maternos na Nova Escócia até a idade de seis anos, quando é novamente levada a Worcester para viver sob os cuidados dos prósperos avôs paternos, em 1917. Sobre a mudança de lar, Bishop diz que se sentia como que sequestrada por pessoas que ela mal conhecia (desse episódio surgirá, muito tempo depois, em 1961, o poema Country Mouse). A falta da família materna lhe traz muito sofrimento e, em decorrência disso, desenvolve frequentes crises de asma com as quais sofreria pelo resto da vida. Em 1918, muda novamente de residência, indo morar com os tios Maud e George Shepherdson. Desde então, passa a viver como uma expatriada, o que gera, na fase adulta, a constante necessidade de deslocar-se. Graduada pela Vassar College em 1934, ganha diversos prêmios literários. A primeira poesia surge aos oito anos, e aos doze, é premiada pela Legião Americana com o ensaio Americanism (Americanismo). O primeiro livro, North & South (Norte e Sul), ganha o prêmio Houghton Mifflin Literary Fellowship em 1938. Em 1949, por indicação de Robert Lowell, é convidada para ocupar o cargo de Consultora de Poesia da Biblioteca do Congresso em Washington. Alguns anos depois, em 1955, a obra A Cold Spring é premiada com o Pulitzer Prize. Com Geography III, ganha, em 1976, o National Book Award. Em 1950, recebe um prêmio da American Academy of Arts and Letters. 10 No Brasil, a primeira coletânea de poesias é Questions of Travel, publicada em 1965. Na década de 60, além do trabalho com poesias que retratam o espaço e o povo brasileiros, Bishop também se dedica à tradução de obras para o inglês, como o Diário de Helena Morley e alguns poemas de autores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira. Vive essencialmente da atividade de escrever. Somente aos 55 anos, começa a carreira de professora na Universidade de Washington, Seattle, momento em que passa a se dividir entre o Brasil e os Estados Unidos. Os deslocamentos aparecem como marcas relevantes na vida da autora. Mesmo no período em que se fixa no Brasil, ela se divide entre a fazenda Samambaia em Petrópolis (local mais aprazível em sua concepção) e o apartamento do Leme, Rio de Janeiro. Em 1965, adquire uma casa em Ouro Preto, local considerado como o Brasil ideal. Depois do falecimento de Lota, em 1967, a vida no Brasil é intercalada por períodos nos Estados Unidos, até decidir retornar definitivamente para o país de origem, em 1971. Em 1974, adquire um apartamento em Lewis Wharf, Boston, onde passa o resto dos seus dias. Morre, em 1979, de aneurisma cerebral. Ao longo da vida, publica apenas quatro livros. Sua pequena produtividade está diretamente relacionada com o tempo que despende na escritura dos poemas e nas suas intermináveis revisões. No Brasil, sua poesia incorpora temáticas relacionadas à natureza e à vida simples, a cenas da vida brasileira, da cultura, dos mitos e de fatos históricos. O conhecimento adquirido sobre o espaço habitado a transforma em uma espécie de autoridade em conhecimentos sobre o Brasil. Isso faz com que a revista Time Life a convide para escrever um livro de viagens no início da década de sessenta, com o objetivo de retratar aspectos relacionados à política, história, geografia, cultura, ao povo e às artes. Trata-se do livro Brazil, publicado pela Life World Library Series em duas edições, a primeira em 1962, nos Estados Unidos, e a segunda em 1967, com tiragem também para o Canadá. O objeto em questão revela características de uma escrita híbrida. Ao mesmo tempo em que poderia se enquadrar no gênero da literatura de viagem, a obra é editada por um veículo de comunicação de massa, a Time-Life, o que suscita questões relacionadas às formas contemporâneas de criação. A elaboração do livro Brazil se insere em um momento de trânsito entre dois paradigmas distintos: o autor, que cria em sua torre de marfim, vê-se obrigado a lidar com um mercado editorial cada vez mais especializado, no sentido de gerar maior lucratividade. Nessa perspectiva, percebemos que Bishop, mais acostumada a criar livremente, se vê responsável pela construção de uma obra encomendada com objetivos pré- 11 estabelecidos. Assim seu texto fica sujeito a alterações e supervisões de editores, o que gera situações de desconforto para a autora. Multifacetado, o livro de viagem apresenta-se rasurado, pois contém tanto a representação filtrada pelo olhar de uma escritora norte-americana radicada no Brasil, como as modificações de editores que detêm um conhecimento reduzido em relação ao povo e cultura brasileiros, até porque, como afirma Bishop, eles nunca haviam estado no país. Ambas as versões (a de Bishop e a dos editores) apresentam-se como criações de imagens filtradas pelo olhar estrangeiro capazes de refletir pontos de vista que nos orientam para a observação de diferenças e semelhanças nesses dois modos de representar o Outro. Dessa forma, elegemos como objeto desta pesquisa tanto o texto publicado pela TimeLife como os manuscritos. Estes últimos, provenientes da Vassar College, Special Collections, Nova York, estão organizados em uma caixa identificada como Box 47 e subdividida em pastas também numeradas1, material que dialogará com outros textos que nos servirão de fonte – poesias e cartas escritas pela autora ao longo de sua vida. Ao buscar o aspecto múltiplo das representações, o estudo faz emergir a questão da diferença e da construção de identidades. O contato com os manuscritos nos permite acessar, de alguma forma, a dinamicidade do pensamento de Bishop. As páginas manuscritas guardam não somente a escrita primeira da obra, mas também rascunhos que registram o diálogo entre a autora e os editores, em uma tentativa de corrigir o texto. No conjunto desse material, encontramos também manuscritos relacionados ao projeto sonhado pela autora desde sua chegada ao Brasil. A percepção de um Brasil apresentado, por vezes, de forma simples e caricatural, nos conduz a questionamentos que vão além das representações contidas no livro Brazil, tais como: que lugar ocupa o autor no contexto em que os editores alteram a obra original e se colocam como co-autores? De que forma o Brasil é representado no livro publicado, em contraposição aos manuscritos? Em que momentos o olhar de Bishop se cruza com a visão mais estereotipada dos editores acusados por ela como detentores de um conhecimento reduzido sobre o objeto tratado? Como o olhar lançado sobre o Outro pode fazer emergir aspectos do eu ainda não revelados? De que forma essas representações podem se entrecruzar e revelar uma Bishop espelhada na imagem que constrói do Outro? Quais relações de poder enfraquecem ou fortalecem a interação com a cultura brasileira? E, finalmente, questionamos 1 Esse material será transcrito na língua original (inglesa) e traduzido em nota de rodapé. Todas as traduções em nota serão nossas e aparecerão, portanto, sem tal indicação. 12 se teria havido, de fato, uma imersão cultural por parte da autora, uma possibilidade afirmada por muitos estudiosos da trajetória de Bishop no Brasil. Mais especificamente, buscamos inferir como é a produção de uma intelectual que sai de um império como o americano e se instala em um país periférico, nutrindo por ele sentimentos ambivalentes que se refletem em textos que ora rejeitam, ora ressaltam a cultura local, atitudes indiciadas em sua produção literária e epistolar. Interessamo-nos em observar de que forma Bishop, na posição de intelectual, circula nos meandros do poder e quais associações asseguram a manutenção de seu discurso. Tratando-se de uma escritora com tal procedência, marcada por histórias de deslocamentos e reterritorializações, faz-se necessário um estudo de natureza interdisciplinar. O arcabouço teórico dos estudos culturais, a teoria das representações sociais, o conceito de multiterritorialidade e a investigação da gênese da obra possibilitam um diálogo entre elementos presentes no livro de viagens (e também nos rascunhos) e o discurso que a autora tem de si própria (encontrado principalmente em cartas). Dessa forma, torna-se possível um entrecruzamento da imagem de brasilidade por ela criada e da identidade que vai construindo para si. Em face desses questionamentos, surge a necessidade de pensar o que significa a aceitação da proposta da Time-Life, tendo em vista que Bishop já conhecia as restrições das cláusulas contratuais. Em muitas de suas cartas, a autora admite não estar satisfeita com o trabalho ao lado dos editores, os quais participam da elaboração da obra em co-autoria. Por outro lado, a possibilidade de viajar para os Estados Unidos por conta da editora e a remuneração oferecida constituíam atrativos que lhe pareciam irrecusáveis. É assim que a releitura do livro Brazil corrobora uma das hipóteses deste trabalho de pesquisa – Bishop sente-se mais confortável quando escreve a partir do espaço literário, pois nele a autora é capaz de recriar mundos ficcionais como realidades discursivas através de uma persona ou sujeito ficcional. Nas palavras de Luiz Costa Lima (1990, 127) o escritor pode, através desse recurso, se deslocar de seu papel de autor e, dessa maneira, ver-se através de uma viagem que ele próprio realiza, respaldado por uma identidade ficcional. Supomos então que o recurso literário é usado por Bishop como ferramenta que lhe permite a construção de imagens que imprimem uma visão de Brasil que se ambienta, a princípio, em um universo ficcional. O fato de Bishop renegar a obra que tanto sonhara redigir nos faz questionar o quanto o espaço poético figura como um lugar confortável, uma vez que tal universo lhe proporciona maior liberdade para elaborar ideias sobre o Outro, sem o risco de se expor como sujeito real (conceito criado nesta pesquisa para contrapor-se à noção de persona literária). É interessante 13 observar que Bishop evita a poesia confessional, dando preferência a uma escrita menos íntima e comprometedora. Busca em seus textos poéticos um estilo mais enxuto e aberto, e por isso é aclamada por Octávio Paz (1999) como dotada do poder da reticência. Parece que, em sua concepção, a representação ficcional preserva o escritor de um comprometimento maior com o texto, dando-lhe, dessa forma, certa isenção das responsabilidades inerentes à atividade de escrever. Sobre a objetividade jornalística, Cristiane Costa (2010) afirma que ela começa a ser minada com a propaganda política fascista através da manipulação de informações; depois, por ação das teorias psicanalíticas, as quais elucidam o modo como o inconsciente influencia a percepção do sujeito; e, finalmente, pela literatura realista, com a simulação da realidade em textos ficcionais. Demonstra-se, com isso, que as fronteiras entre literatura e jornalismo se constroem com o auxílio de polarizações, tais como, “[...] realidade e imaginação, objetividade e subjetividade, linguagem utilitária e expressiva, significante e significado” (COSTA, 2010, s.p.). Essa reflexão caracteriza a objetividade jornalística como um artifício, o que nos permite visualizar a fragilidade de tal constructo, pois como temos visto, o status de ficcional ou de factual depende de um pacto estabelecido entre escritor e leitor. Nesse sentido, as duas versões de Brazil (a dos manuscritos e a editada) apontam para um jogo de olhares que transforma a representação, de certa forma, em invenção. O encontro com a diferença mobiliza processos de construção de identidades. Nos escritos de Bishop, há a presença tanto do observador, quanto a do observado, o que nos permite discorrer sobre as concepções a respeito das imagens do espaço e do povo elaboradas pelo olhar de um estrangeiro, bem como observar os processos subjetivos que se revelam na reconstrução da imagem do Outro. Os problemas editoriais e a perda da independência da escrita levam a norte-americana a conceber o livro como literatura menor, conforme aponta a pesquisadora Regina Przybycien (1993) em sua tese de doutorado, na seção intitulada Brazil, o livro renegado. Através das cartas, nota-se o descontentamento com as interferências dos editores, os quais acabam por desfigurar o texto da obra original, transmutando-a em um retrato de Brasil não aprovado por Bishop. Sabe-se que a autora nutre preocupação excessiva com a exatidão das informações transmitidas. Por isso, recorre frequentemente a pesquisas, o que confere a seus trabalhos um caráter etnográfico. Ela expressa indignação em vários momentos, como no cuidado que tem com os exemplares distribuídos entre amigos, principalmente os brasileiros. De próprio punho, faz correções em alguns exemplares, indicando os trechos que mais destoam de sua última versão entregue aos editores para publicação. 14 Facilmente podemos observar que só é possível fazer um retrato do Outro de maneira parcial, muitas vezes por meio da absorção de aspectos caricaturais que se repetem ao longo dos tempos. Nessas representações, o sujeito retratado não se reconhece totalmente, pois se percebe como algo muito mais complexo do que a imagem que um livro de viagens pode apresentar. Em fins do século XX, esse sujeito que sempre foi objeto da representação e a quem nunca foi concedido o direito de representar começa a requerer a reconstrução de imagens mais positivas de si mesmo. Uma das contribuições pretendidas por esta pesquisa é a de propor reflexões que colaborem para a desmistificação de um aparente engessamento da imagem do brasileiro que é, também, reproduzido no livro Brazil. Privilegiamos entender o deslocamento, fenômeno bastante presente na vida da autora, a partir de conceitos desenvolvidos no campo da geografia cultural, já que lidamos com um indivíduo que passa grande parte da vida a buscar um lar. Em se tratando de Elizabeth Bishop, a concepção de território inevitavelmente ganha conotações plurais e dinâmicas, já que essa instância conceitual (território) se apresenta na trajetória da autora nas diversas dimensões apontadas por Rogério Haesbaert (2007): material, política, econômica, cultural, simbólica, afetiva (e acrescentamos, também, a ficcional). O trânsito em espaços tão diversos conduz a uma indecisão no modo de ver o Outro. Entender a diferença parece ser um passo decisivo para que, no final da vida, Bishop se reconheça identificada com as culturas nórdicas. Supomos que entender como se elabora a representação do brasileiro é algo necessário para que possamos observar como a identidade da autora vai se organizando. É talvez um passo importante para compreendermos a articulação de imagens que carregam a marca do estereótipo. Nosso intuito, como o proposto pelos estudiosos de cultura, é dar visibilidade ao modo de construção da imagem do brasileiro elaborada por uma estrangeira, pois como afirma Michel Foucault (2007), apontar onde está o erro é uma forma de se colocar contra o poder, de lutar contra o que nos incomoda. Vivenciando uma história marcada por deslocamentos tanto no nível geográfico como no simbólico, Bishop acaba transpondo para sua criação a mobilidade a qual foi submetida. Isso porque o artista, ao conceber novas imagens, lida com processamentos interiores capazes de refletir tanto o próprio posicionamento diante dos objetos representados como as imagens pertencentes ao imaginário de seu grupo social. Dessa forma, as representações assumem um caráter de mobilidade, pois são condicionadas por outras construções presentes na linguagem e na cultura. O pensamento humano sofre os efeitos desses condicionamentos, tornando-se possível perceber apenas o que as convenções nos permitem ver (Moscovici, 2003). O psicólogo social Moscovici, ao desenvolver as bases teóricas do que viria a ser a Teoria das 15 Representações Sociais, argumenta ser impossível eliminar totalmente as convenções ou os preconceitos, sugerindo que, em vez de negá-los, melhor seria entendê-los e explicá-los, pois as representações figuram como um tipo de realidade. As imagens de um povo, quando apresentadas de forma estereotipada, incorporam feições de imobilidade, o que gera situação incômoda para o sujeito representado. Isto constitui um dos motivos pelos quais, na contemporaneidade, tantos pesquisadores que se propõem estudar cultura buscam desmistificar as representações que assumem status de ‘verdade’. Intentaremos observar até que ponto Elizabeth Bishop consegue apresentar aspectos de um Brasil distanciado da lente do exotismo, já que lida com cultura e espaço, instâncias que são moldadas socialmente. O objetivo é entender como as imagens de Brasil produzidas por um estrangeiro podem assumir mais significações no sentido de se tornarem menos estereotipadas. A literatura de viagem, durante muito tempo, foi o modo de acessar informações sobre terras longínquas, servindo como fonte de informação para os que buscavam, através de representações já efetivadas, uma maneira de direcionar o olhar para terras desconhecidas. Tais informações, transmutando-se em imagens internas, atuam nas novas representações por meio de processos organizadores dessas experiências. Segundo a antropóloga Ilka Boaventura Leite (1996, p. 38-9), “[...] a imagem do outro dependeu invariavelmente da hierarquização, estando, portanto, diretamente vinculada ao referencial teórico disponível”. Nesse sentido, podemos dizer que as representações se formam com base não apenas no objeto referencial visualizado, mas também a partir de outras imagens que o sujeito traz em sua bagagem. Sabe-se que os livros de viagens são veículos que contribuem para difundir conhecimentos sobre povos e culturas. Por esse motivo, percebemos que tais construções alimentaram, de algum modo, as imagens elaboradas por Bishop. Com vistas a cumprir os objetivos propostos, dividimos a dissertação em três partes: A primeira seção volta-se para o estudo dos bastidores da obra. Para abordar o processo de criação, o livro de Silvia Maria Guerra Anastácio (1999), O jogo das imagens no universo da criação de Elizabeth Bishop se mostra de grande relevância, pois ali são apontados caminhos percorridos por Bishop na construção de sua poesia, o que, de maneira semelhante, constatamos acontecer também na prosa. O estudo dos bastidores da obra aponta para a importância de investigar os problemas editoriais, pois, ao perder a autonomia da criação, Bishop exterioriza descontentamento em relação ao texto. Isso nos leva a observar até que ponto a autora questiona a autoridade americana (dos editores) para fazer prevalecer a própria visão de Brasil e que “verdades” e princípios são defendidos ou representados. 16 Na primeira etapa da pesquisa, foi necessário transcrever os manuscritos do livro Brazil. Visando uniformidade com os estudos já realizados no processo de criação de Elizabeth Bishop, adotamos o modo de edição diplomática2 e elegemos os códigos de transcrição utilizados na pesquisa desenvolvida por Silvia Anastácio (1999, p. 31): # [ ] < > il >> << { } rascunho para eliminação para acréscimo para ilegível acréscimo à margem direita do texto acréscimo à margem esquerda do texto comentários da pesquisadora, entremeando as citações. Na segunda seção, estudamos a representação de Brasil através de teorias capazes de nos levar a entender como são construídas as imagens do Outro por um estrangeiro. O olhar de Bishop, mediado por uma trajetória de deslocamentos, é pensado nesta pesquisa a partir do conceito de multiterritorialização proposto por Rogério Haesbaert (2007). Os movimentos espaciais e ficcionais traçados pela autora acabam se misturando em um imaginário que vai sendo construído a partir de deslocamentos geográficos. O Brasil é então representado por meio de imagens que recorrem à comparação e à hierarquização de culturas, as quais, muitas vezes, repetem estereótipos criados por outros viajantes. Estabelecemos então um contraponto com A antropologia da viagem (1996), estudo de Ilka Boaventura Leite que trata do olhar do viajante em terras brasileiras. As representações elaboradas por Bishop se definem a partir da ótica do distanciamento, traço que pode ser visualizado no momento em que desenha o brasileiro e sua cultura através de técnicas como a caricatura, a miniaturização e o lúdico. Alguns teóricos que se detêm em sua obra poética (DORESKI, 2003; GOLDENSOHN, 1992) percebem esses modos de retratar a diferença como formas de distanciamento. Na terceira seção, privilegiamos as representações do Outro que espelham a imagem da própria autora. Objetivamos entender como a recriação do brasileiro pode se misturar com imagens que a autora tinha de si. Levamos em consideração o fato de que o Brasil é o território que Bishop considera, por muito tempo, como lar. O conceito de representação social, mais uma vez, nos permite desvelar aspectos de um sujeito que ora se mostra fragmentado e desterritorializado, ora reterritorializado e inteiro – momento em que assume a postura imperial e colonizadora. Partindo da interpretação das imagens destacadas na obra, averiguamos como Bishop, na condição de estrangeira estabelecida no Brasil, se posiciona em um entre-lugar e como interage com a cultura e com o povo brasileiro. 2 Também denominada de edição paleográfica, consiste na reprodução literal de um texto, preservando suas características originais, tais como arrumação do texto na folha e erros de grafia. 17 O estudo da representação do Brasil mostra-se relevante por acreditarmos ser necessário questionar o modo como as imagens desse espaço são articuladas. Analisamos se tais imagens revelam um Brasil que segue os modelos impostos pelos países hegemônicos (no caso específico, os Estados Unidos), se são construídas representações que se repetem desde o primeiro olhar estrangeiro lançado sobre essa terra (ocasião em que geralmente são veiculadas imagens exóticas do país e de seu povo) ou, ainda, se ambicionam desvelar aspectos do Brasil até então não divulgados em outros países. 2 O NASCIMENTO DE UMA OBRA I am neither here nor there Nem aqui, nem ali Never can I be at home Eu nunca consigo me sentir em casa Water claims me not, nor air, As águas não me exigem isso, nem o ar […] I shall come where you are fair, Eu irei onde houver justiça, Quick, look up, and see me there. Rápido, me procure, e vai me ver. (BISHOP, Poems, prose and letters). Acompanhar o processo de criação é buscar compreender, através de rastros deixados pelo artista, o modo como ele retrata o que vê e experimenta. Os registros das experiências da criação permitem entrever o modo como o homem – ser fragmentado – vai se complementando e se entendendo a partir do encontro com o diverso. Corporificada na figura do Outro, a diversidade faz com que um jogo de espelhamento seja ativado, o que permitirá a efetivação de processos mentais organizadores da própria identidade do sujeito. Ao construir representações, este sujeito deixa pistas de como vê o Outro e a si mesmo, inventando um espaço a partir do domínio das informações presentes no mundo. O suporte que dá materialidade à criação – manuscritos, rascunhos, diários, cartas, etc. – guarda registros elaborados pelo artista, permitindo-lhe verificar os processos de re-elaboração da realidade. Assim, a imagem gerada pela representação é concebida como parte integrante do observador, pois ela se mistura a outras imagens interiores, tornando-se capaz de produzir uma leitura única do mundo, através de processos como invenção, comparação, interpretação e combinação. No ato criativo, o artista manipula imagens internas e externas, colocando-as em confronto no momento da materialização da obra. Deslocam-se, portanto, de um mundo objetivo para o subjetivo e vice-versa, um trânsito que permite ao sujeito elaborar representações do mundo. Ao participar de um universo constituído por regras próprias, o observador torna-se capaz de transferir imagens externas para o interior através do olhar. Sobre a atuação do poder imaginativo, o geógrafo Carlos Eduardo Hissa (2006, p. 116) afirma que: A imagem não é exatamente o que está fora do sujeito que olha e vê, do ‘eu’ que observa, do mesmo modo que a representação mantém distância da sua ‘imagem de referência’. A imagem capturada pela mente do sujeito que observa se mistura com suas imagens interiores, de todas as naturezas. Ela se distancia da referência, do objeto à frente, do mesmo modo que o olhar se afasta dos olhos. É a imaginação que faz com que a imagem, processada pelo sujeito, torne-se sempre uma representação do mundo sob leitura. 19 A unicidade das imagens geradas pelo artista é possibilitada por um fluxo constante entre imaginação e realidade. Parece que o real guarda em si uma dimensão oculta, e o artista, para dar conta dessa falta, preenche o espaço vazio com sua própria subjetividade. A imaginação, fazendo com que a imagem processada pelo sujeito torne-se sempre uma representação do mundo sob leitura, atua no sentido de reconstrução da realidade. Elizabeth Bishop, como uma escritora pintora, escreve muitas de suas poesias como se estivesse pintando um quadro. Pensar e organizar as ideias para a elaboração de uma obra é também, nesse contexto, uma forma de “pintar com as palavras”. O estudo da obra em formação permite visualizar algumas tendências seguidas pelo artista. As criações de Elizabeth Bishop seguem três eixos do pensamento apontados por Silvia Anastácio (1999): o pensamento intersemiótico, no qual há a transformação de estímulos sonoros e visuais que ganham forma ao serem recriados verbalmente através do ritmo, da musicalidade, da visualidade e da flexibilidade do discurso; o pensamento diagramático, representado através de ideias soltas, que vão sendo esquematizadas e que se desenvolvem a partir de traços mais específicos em direção ao mais geral, ao mais universal; e o eixo do pensamento dialético, em que há um jogo entre ideias contrárias, o qual deixa transparecer um caos aparente, bem como instabilidades e aberturas argumentativas. Esses eixos perpassam o livro Brazil e outros textos da autora, como as cartas e poesias. Nesta seção, analisaremos como as impressões da cultura e do espaço brasileiros vão sendo organizadas por Bishop, bem como os problemas editoriais que, de algum modo, parecem minimizar a imaginação artística. 2.1 Elizabeth Bishop & os Editores da Time-Life Refazer a história da criação é uma maneira de entender como a mente organiza as imagens de modo criativo – mecanismo que atua na elaboração de novas respostas e interpretações da realidade. Para entender como Elizabeth Bishop percebe e representa a brasilidade, recorremos a seus documentos de processo (registros que compreendem as “pistas” guardadas em suportes materiais, tais como rascunhos, diários, cartas, etc.). Tais pistas nos levam aos bastidores da obra, os quais apontam tanto para o ato criativo quanto para a relação da autora com os editores. É importante notar que, desde os primeiros anos no Brasil, Bishop sonhara com o projeto de desenvolver um livro de viagens. Em junho de 1961, a Time Incorporation a convida para produzir um volume sobre o país, com o objetivo de 20 descrever o espaço e o povo brasileiros. Esta publicação faz parte de uma série de 34 revistas da Life World Library, cada uma retratando uma região específica e seu povo. O convite é visto por Bishop como a oportunidade de realizar o próprio sonho, e, ao mesmo tempo, receber remuneração e viajar – fazer o que mais gosta com as despesas pagas pela editora. Em carta a Robert Lowell, de 25 de junho de 1961, ela menciona: [...] a única notícia que tenho para lhe dar é que assumi uma tarefa que talvez não devesse ter assumido – escrever um livrinho sobre o Brasil para a série The World Library da Life. O livro é mais de fotos, pelo menos os que eu já vi – fotos magníficas, é claro, e um texto superficial de cerca de 55 mil palavras, de tudo um pouco – mas que não seja totalmente à maneira da Life. Tenho muito material, e acho que eu e a Lota vamos nos divertir bastante, incluindo no texto as nossas piadas preferidas, as pessoas que mais gostamos etc. Minha idéia é fazer a coisa depressa, e encará-la como um trabalho puramente comercial e uma espécie de penitência pelos meus anos de vagabundagem. (Provavelmente ninguém nunca vai ler o texto, mesmo!) As vantagens são: eles pagam muito bem, para os meus padrões, e também pagam algumas viagens pelo Brasil e uma viagem a N.Y. com tudo pago, em outubro, por um mês. Esta parte da coisa vai ser um inferno – reescrever o texto em colaboração com eles (BISHOP, 1995, p. 711-712, grifos da autora). Antes de iniciar a escritura do livro Brazil, Bishop prevê os problemas a serem enfrentados no trabalho em parceria com os editores. Em várias cartas, ressalta as dificuldades de acompanhar a produção do livro. Sobre os conflitos com essa obra, pode-se ler em Elizabeth Bishop, an Oral Biography o depoimento do arquiteto e amigo de Lota, Monroe Wheeler, leitor de Brazil: Bishop começou a trabalhar energeticamente e, no prazo estipulado (no mês de agosto), completou três capítulos. No entanto, houve um atraso na finalização de um dos rascunhos para a data limite de 15 de outubro, assim como sempre acontecia com ela em relação a prazos. No início de dezembro, estava ainda em Nova York escrevendo [...]. Bishop reclamava de seus longos dias de trabalho nos escritórios da Time e das mudanças que os editores faziam em seu texto original. Ela ficou ofendida quando os pesquisadores questionaram o conhecimento dela sobre o Brasil. Comunicou aos editores que os escritores com os quais trabalhava haviam mudado o texto. Em janeiro de 1962, quando ela e Lota voltaram para o Rio, recebeu nove páginas como resposta às suas reclamações. No inverno, quando perguntaram se ela gostaria de revisar as seções para uma segunda impressão, sua resposta foi um curto e enfático não (BRAZEAU, 1994, p. 172-173, tradução nossa). Após os primeiros desentendimentos com os editores, a escritura passa a ser uma tarefa árdua. Além do embate com os revisores, repetidas vezes Bishop afirma que escrever em prosa não é um trabalho fácil. Em carta enviada à doutora Anny Baumann, em fevereiro de 1965, se refere à escritura de um texto sobre o quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro para o jornal The New York Times, no qual a autora afirma: Estou escrevendo um artigo sobre o Rio para a revista de domingo do N. Y. Times. Estou arrependida de ter aceito a incumbência, porque para mim é muito difícil escrever prosa, mas na hora achei que ia ser fácil. Preciso entregar hoje à noite, de 21 modo que tenho que trabalhar. Talvez eles nem aceitem meu texto (BISHOP, 1995, p. 473). A dificuldade de escrever em prosa e a perda da autonomia sobre a escolha do formato do texto a ser entregue ao público fazem com que Bishop passe a considerar o livro uma literatura menor (PRZYBYCIEN, 1993). As interferências editoriais transformam a obra em um retrato de Brasil não aprovado totalmente pela autora. A situação vai ficando insuportável, na medida em que ela se sente pressionada com os prazos e ofendida com as ingerências. Não mais isolada em sua torre de marfim, vê-se obrigada a realizar algumas etapas do trabalho em parceria com os editores, além de obedecer aos requisitos previstos em contrato. O modo de criação de Bishop parece se identificar com o que diz Bourdieu (2005) em relação ao campo literário e artístico. Trata-se de um universo dominado pelo poder que não dispensa, jamais, a condição de se apresentar como um mundo econômico invertido. O artista, apresentando interesse no desinteresse, busca desenvolver seu trabalho de forma mais autêntica, mais livre das amarras do economicismo. Nessa perspectiva, o objeto de arte é dotado principalmente de intencionalidade estética, sem que se perca de vista outras intenções que acompanham a produção. O campo do poder é definido como “[...] espaço das relações de força entre agentes ou instituições, que têm em comum possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou cultural, especialmente)” (BOURDIEU, 2005, p. 244). A Time-Life, detentora do poder econômico que viabiliza a realização de Brazil, escolhe Bishop como autora, pois considera relevante o fato dela residir no Brasil há muitos anos, o que a transforma em uma voz autorizada para falar sobre o país. Em nota introdutória, os editores ressaltam a importância e o prestígio da autora: SOBRE A ESCRITORA Elizabeth Bishop, autora do texto interpretativo deste volume da Life World Library, é uma poeta americana radicada no Brasil desde 1952. Amplamente familiarizada com os ciclos artístico, jornalístico e diplomático, ela viajou pelo país e também visitou as selvas distantes do Mato Grosso e do Amazonas. Nascida e criada na Nova Inglaterra, Bishop graduou-se na Universidade de Vassar e tem publicado textos poéticos e em prosa há mais de 25 anos. Com seu volume Poems: North & South – A Cold Spring, foi premiada com o Pulitzer em 1956 (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 4, tradução nossa). Parece que existe um critério de seleção dos nomes que assinam as obras da série, pois, como se pode confirmar no compêndio de informações sobre os volumes da Time-Life (LEGG, 2003), a autoria é sempre confiada a algum nome de prestígio que mantém algum vínculo com o país abordado no texto. Os livros são assinados por jornalistas, historiadores ou 22 escritores que tratam, em linhas gerais, de aspectos relacionados ao espaço e aos habitantes das regiões estudadas. O objetivo da Time, entretanto, parece ser o de dotar cada obra de credibilidade através do nome de seu autor. O nome de Bishop, nesse caso, funciona como um designativo que ocupa posição de destaque no contexto literário. É curioso notar a preocupação com a autoria quando sabemos que na década de 19203, com o surgimento do fotojornalismo na Alemanha, as imagens ganham destaque maior nas reportagens e o texto passa a desempenhar papel complementar (SILVA, 2004). Bishop aponta para a falta de cuidado dos editores para com os títulos e as legendas das fotos: “Acho que o pior de tudo é o modo como eles vulgarizam os títulos de capítulos e as legendas – que, além disso, estão cheias de erros” (1999, p. 714). Ela ainda reitera que os editores, não podendo ser processados pelos conteúdos equivocados das legendas que acompanham as fotografias, dispensam-lhes importância menor. Podemos dizer que o assunto perde sua relevância, e a imagem ganha centralidade nas revistas. Destacamos o que declara um grupo de editores da Life: A criação de uma fotorreportagem requer a organização de um certo número de imagens sobre um mesmo tema de modo que elas dêem uma visão mais profunda, mais ampla, mais completa e mais intensa do assunto do que qualquer imagem isolada poderia dar. O assunto pode ser qualquer coisa – uma idéia, uma pessoa, um evento, um lugar. A organização pode ser tanto cronológica quanto temática; essas coisas pouco importam, já que a forma em si é flexível. O que importa é que as imagens trabalhem juntas para enriquecer o tema. Elas não podem mais ser encaradas como entidades isoladas, como trabalhos de arte individuais, mas antes como partes de um todo. Para que uma fotorreportagem tenha êxito, o todo tem que ser mais importante do que a soma de suas partes (TIME-LIFE apud LACERDA, 1994, p. 261). Parece que as imagens funcionam como um instrumento utilizado pela Time-Life para realizar a missão da qual se encarrega, a de “inventariar o mundo”. Para isso, lança a série Life World Library, agora não mais com o intuito de registro da diversidade cultural, mas visando impor uma nova maneira de ver (COSTA apud FERREIRA, 2008). Brazil, então, pode ser percebido como uma publicação híbrida, beneficiada pela disponibilidade de imagens. Seu surgimento coincide com o momento em que os veículos de comunicação se modernizam e a imprensa passa a adotar o fotojornalismo que, nesse primeiro momento, privilegia a imagem visual em detrimento do escrito. Em carta à amiga May Swenson, Bishop critica o modo como os editores fazem uso de fotografias. 3 A técnica do fotojornalismo irradia-se para outros centros urbanos, destacando-se a revista Vu, lançada em Paris em 1928; a Time Life também se destaca, em 1936, nos Estados Unidos, local onde a técnica melhor se desenvolve; e O Cruzeiro, no Brasil, na década de 1940. 23 A foto da página 89 é um embuste – um still de Orfeu do Carnaval – e a falsidade é evidente para qualquer um que já tenha assistido ao carnaval daqui. As fotos em cor eu só vi em preto-e-branco, umas cópias muito desfocadas – de modo que não me dei conta do fato – além disso, a foto de São Paulo é horrorosa. As fotos são o mais imperdoável de tudo – o que não falta é material, tem coisas maravilhosas – comecei a mandar listas para eles – e além disso eu sabia onde encontrar as coisas – desde julho do ano passado. Eles receberam muitas das minhas idéias com entusiasmo, só que não tomaram nenhuma iniciativa. Quando cheguei em N. Y., eles não (p. 714) tinham quase nada pronto. Imagine um Rio de Janeiro sem nenhum pássaro, nenhum bicho, nenhuma flor. E existem fotos maravilhosas de índios, suas casas, seus adereços, suas danças etc. – não saiu nada. E duas do Villas-Boas – fotos de pelo menos vinte anos atrás – ele já é um velho. Bem, você devia ter visto as fotos de índios que eles queriam pôr – mendigos sifilíticos esfarrapados – pelo menos isso eu consegui que eles mudassem. E agora de repente entendi o motivo – eles têm medo da nudez (BISHOP, 1995, p.715). Segundo Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004), o fotojornalismo se caracteriza como a realização do sonho moderno de atribuir uma função para a arte, que vai sendo inserida no cotidiano das pessoas. No entanto, os autores apontam para uma contradição: a arte não é conscientemente consumida pelo homem visando à libertação de suas dificuldades imediatas; o acesso a ela se dá como uma expressão a serviço dos interesses econômicos, o que entra em contradição com o ideal utópico de modernidade (2004). Diante de tal atitude passiva, a visão ganha destaque especial, como atesta a afirmação do proprietário da Time Henry Luce. No período de lançamento da revista, julho de 1936, são distribuídos prospectos entre seus anunciantes com entusiasmados argumentos daquele empresário: Para ver a vida; par ver o mundo; para presenciar grandes eventos; para ver o rosto do pobre e os gestos dos orgulhosos... para ver as coisas a milhares de distância, coisas que se escondem por trás das paredes e nas salas, coisas difíceis de superar... para ver e surpreender-se; para ver e se instruir (LEVIN, 2000, p. 11, tradução nossa). O objetivo, como se sabe, é atingir o grande público. Lançadas em 1929 e 1936, respectivamente, as revistas Time-Life caracterizam-se pela versatilidade dos temas. À proporção que o número de leitores aumenta, a revista vai atraindo mais anunciantes (COSTA e SILVA, 2004). A tecnologia, nesse contexto, é utilizada como instrumento para a intervenção criativa sobre a reprodução da arte. Néstor García Canclini (1998, p. 38), ao refletir sobre a relação do capital intelectual com o poder, reconhece que o artista aparece como figura central que assume a responsabilidade da obra, mas os colaboradores ocupam papel imprescindível para sua finalização, o que leva o teórico a concluir que “[...] a fronteira entre produtores e colaboradores se torna mais incerta”. Ainda considerando tais reflexões, pode-se dizer que a arte torna-se, na contemporaneidade, uma área privilegiada de investimentos. 24 As exigências da Time-Life enquadram-se no que Canclini define como a maneira moderna de se fazer arte, um mecanismo que se estabelece por intermédio de uma liberdade condicionada. Face à nova realidade, Bishop percebe-se distanciada desse estilo moderno de criação, dificuldade mencionada em carta à tia Grace, em julho de 1961: Acho que já lhe contei que ganhei uma bolsa para “viajar no estrangeiro” – para ser usada neste ano ou no próximo –, mas por causa do trabalho da Lota resolvemos ficar por aqui este ano, e por enquanto não vou gastar este dinheiro. Pois agora arranjei trabalho também – e quase lamento ter assumido este compromisso, porque é uma tremenda dor de cabeça. A revista Life me pediu para escrever o texto de um livrinho sobre o Brasil. Eles publicam uma série destes livros – cada um sobre um país diferente. O mais provável é que ninguém leia o texto, mesmo, e só veja as fotos, que normalmente são maravilhosas – em cor e em preto e branco. Mas escrever esse tipo de coisa é difícil para mim, e tenho que cobrir todo o país – história, economia, geografia, artes, esportes – tudo, ainda que de modo superficial. Porém vou ser bem paga, e, além disso, vão me custear três semanas em N.Y. para trabalhar com eles no livro – passagem de avião incluída, é claro – de modo que resolvi aceitar. Não gosto da revista e não gosto deles – são pessoas iguais a esses vendedores que ficam pressionando a gente – mas quero ganhar dinheiro – e a esta altura de fato sei muita coisa sobre o Brasil, querendo ou não (BISHOP, 1995, p. 434). A autora logo percebe as dificuldades que teria de enfrentar. Os editores, posicionando-se como auxiliares indispensáveis do processo de construção do livro, fazem intromissões não só no corpo do texto, mas também na introdução redigida pelo embaixador John Moors Cabot. Sobre esse texto, Bishop enfaticamente afirma não ter uma palavra sequer do original (BISHOP, 1995), como podemos observar a seguir: “[...] A magnífica redação que acompanha as imagens complementa o brilhante texto de Bishop para dar ao leitor um melhor entendimento de nossa república-irmã da América do Sul” (CABOT apud BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 7, tradução nossa). Muitas das intervenções criam imagens de proximidade entre o Brasil e os Estados Unidos, as quais dão margem a uma dupla leitura do país latino-americano: tanto como imitador de modelos hegemônicos, como dotado de certo exotismo, olhares bem ao gosto das nações que costumam assumir posturas colonizadoras. A Time-Life nesse contexto funciona como um intermediário que, por visar o lucro, torna-se capaz de subordinar qualquer valor estético às tendências do mercado, assim restringindo e limitando a escolha do artista à demanda mercantil. Do ponto de vista artístico, a perplexidade e a revolta de Bishop contra os editores identificam-se com as reflexões de Canclini (1998) no que concerne à observância das transformações das regras de produção da arte, que levam em conta não apenas a questão estética, mas questionam estruturas com as quais os artistas interagem, bem como os costumes e crenças dos receptores de sua produção. 25 O trabalho de escritura do livro Brazil, uma encomenda da editora, pressupõe um “patrão” que confere à obra traços de uma criação heterônoma. A qualidade da criação, associada à liberdade que o indivíduo dispõe para criar, é posta em segundo plano. É por isso que os estudiosos que se preocupam com a atuação do intelectual na sociedade parecem chegar a um consenso sobre a necessidade de haver maior autonomia nesse campo; no entanto, também reconhecem a impossibilidade do intelectual manter-se sem vínculos que lhe forneçam as condições materiais necessárias para o seu sustento (BOURDIEU, 2005; SAID, 2000). Faz-se, então, necessário assumir uma postura que permita a conservação de elos sem que se perca a independência e autonomia, como observa Hissa: A trajetória da liberdade confunde-se com a do poder e, ainda assim, sempre, subordina-se às redes de poderes que, interpenetrantes, exteriorizam um universo complexo de relações de interdependência. E sempre quando a interdependência é a manifestação da vida orgânica entre as instâncias de poder – inclusive dos administrativos – não pode haver uma autonomia irrestritiva do indivíduo, que decidiria exclusivamente conforme suas próprias determinações. [...] A emancipação, entretanto, deve ser compreendida como um ato que envolve relações, interdependências. Não há liberdade sem um movimento na direção do outro. Sem ele, não há possibilidade de autonomia num cenário de trocas. A emancipação não significa a construção de trajetórias fundamentadas exclusivamente no eu (HISSA, 2006, p. 144). Se, por um lado, o indivíduo é o locus onde se projeta a liberdade – um dos fatores ligados à qualidade da criação –, por outro lado, a emancipação subordina-se a uma rede de poderes. Interpenetrável, o poder transpõe os limites de qualquer área, mesmo tratando-se de um campo intelectual ou artístico. Por isso, Hissa não concebe a emancipação como algo oposto à interdependência; logo, é possível que o sujeito transite nas instâncias de poder e continue mantendo a liberdade necessária para criar. Os conceitos de liberdade e autonomia estão, assim, relacionados por Edgar Morin: E eis a situação paradoxal do ser humano, que é e pode ser o mais autônomo e o mais subjugado; as subjugações que lhe são impostas inibem ou suprimem sua liberdade. Mas sua autonomia só se pode afirmar e fazer emergir suas liberdades nas e pelas dependências. Donde estas proposições paradoxais: possuímos os genes que nos possuem; eles nos possuem, são anteriores à nossa existência, nos impõem suas determinações, mas, ao mesmo tempo, nos permitem existir e agir, e, enquanto sujeitos auto-referentes e egocêntricos, nós nos apropriamos deles, sem, contudo, deixar de deles depender (MORIN, 2005, p. 287). Nessa concepção, liberdade e poder devem figurar como aspectos subjacentes à criação que, nas devidas proporções, não prejudicam o espírito criativo. Os bastidores do livro Brazil permitem entrever a luta de Elizabeth Bishop pela autonomia perdida. De maneira incisiva, ela insiste na manutenção de seu discurso, o que gera um mal estar entre ela e os 26 editores. A insatisfação pode ser atestada em várias de suas cartas, como a enviada à amiga Pearl Kazin, em 13 de agosto de 1961: Não adianta bancar o Flaubert (se bem que não sei escrever de outra maneira), já que depois vai tudo passar pelo moedor de carne deles, segundo o contrato, e vai sair igualzinho a tudo que eles publicam, independentemente do que eu tiver escrito... só espero que valha os 9 mil dólares que vou ganhar – por enquanto não parece que vai valer, não (BISHOP, 1995, p 435). Com base nos estudos de Foucault (2002), reconhecemos o nome do autor como uma função surgida no momento em que foi necessária a prestação de contas da unidade do texto pelo sujeito que escreve. Para o filósofo, (2002, p. 27-28), o autor é “[...] aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real”. Diferente dos antigos escritores que tiveram seus textos modificados por copistas, sem possibilidade de acompanhar as alterações efetuadas na obra, a Elizabeth Bishop é permitido ver de perto as interferências em sua escritura. As tentativas de recuperar o texto original são variadas, porém, ainda assim, a publicação apresenta-se permeada de marcas que não as autorais. Em 19 de janeiro, Oliver E. Allen, editor da Life World Library, escreve para Bishop: “Nunca antes eu me senti compelido a tentar provar que eu ou minha equipe somos honestos ou justos ou desapaixonados, e espero nunca ter que passar por isso novamente” (ALLEN apud MILLIER, 1993, p. 327, tradução nossa). Sempre preocupada com a exatidão, Bishop não aceita as informações equivocadas impostas pelos editores, ou o uso de palavras inapropriadas, principalmente porque nutre um sentimento de “dívida” em relação ao Brasil, em especial, pelos amigos brasileiros. De próprio punho, corrige cada exemplar a que tem acesso (um deles, arquivado na Universidade de Harvard). Sobre tal episódio, David Weimer, norte-americano em visita ao Brasil, relata: Eu fui ao centro da cidade no Rio comprar uma cópia do livro Brazil em inglês e a trouxe para que Elizabeth autografasse. Ela disse que não poderia simplesmente deixar que eu ficasse com o livro daquela forma. Ela pegou o livro – e isso ilustra bem o seu perfeccionismo – retirou-se e fez mudanças em cada linha de cada página, colocando o texto do jeito que ela originalmente havia escrito. Então assinou e me devolveu. (DAVID WEIMER apud BRAZEAU; FOUNTAIN, 1994, p. 173, tradução nossa). De forma incansável, Bishop combate o poder dos editores. Mesmo depois da publicação da obra, ela não consegue lidar com a ideia de ter assumido a responsabilidade da escritura de Brazil. A obra apresenta equívocos que, muitas vezes, se apresentam sob a forma de termos preconceituosos, ou ainda, de forte ironia com relação a alguns aspectos culturais brasileiros, assim como demonstra o mesmo David Weimer: 27 O livro sobre o Brasil que Elizabeth escreveu para a Time-Life não saiu muito depois de minha família e eu irmos para o Brasil em julho de 1963. Foi um dos principais textos que minha esposa e eu lemos para aprender um pouco sobre o Brasil. Em um dos nossos primeiros encontros, eu agradeci a Elizabeth por tê-lo escrito e ela disse que o livro era horrível. Ela disse que a Time tinha todo aquele dinheiro, e que eles não sabiam o que fazer com ele, então contratavam graduandos que não dominavam os princípios básicos da escritura para servirem de subeditores. Elizabeth foi pegar o manuscrito e mostrou-o todo marcado por algumas daquelas pessoas ‘insignificantes’ – esta não foi a palavra exata usada por ela, mas foi mais ou menos assim. Elizabeth me contou como um deles havia escrito uma nota marginal, dizendo que alguém que se chamava ‘Silva’ não poderia ser um homem porque a última letra da palavra indica o gênero feminino. Era o tipo de coisa que fazia Elizabeth enlouquecer. Ela disse que telefonou ou escreveu de volta informando que ela já conhecia este homem há quinze anos (DAVID WEIMER apud BRAZEAU; FOUNTAIN: 1994, p. 173, tradução nossa). Bishop não aceita ter seus textos submetidos à apreciação de profissionais que, segundo ela, não estariam capacitados para realizar a tarefa de edição. Ao discutir sobre a condição da autonomia no campo artístico, Canclini (1998) recorre a posição de outros teóricos, como Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu e Howard S. Becker. A abordagem deste último nos é particularmente interessante, pois percebe o mundo da arte como um campo autônomo: “[...] não pela singularidade de criadores excepcionais, mas sim pelos acordos gerados entre muitos participantes” (CANCLINI, 1998, p. 39). Embora não negue a centralidade da figura do artista na criação, o teórico aponta a importância dos colaboradores que interagem na produção. O condicionamento econômico que perpassa a criação na contemporaneidade faz com que os artífices submetam-se a um jogo dialético entre cooperação e competição. O sentimento de competitividade parece acirrar-se por haver interesse econômico por trás do campo artístico. Porém, um terceiro elemento é capaz de viabilizar a interatividade na produção artística: as convenções. Ao apontar a arte não mais como um campo independente, mas submetido a jogos entre o comércio, a publicidade e o turismo, Canclini (1998) questiona o lugar da autonomia, da renovação inerente ao estético e sua ligação com o público. Conclui, finalmente, que a arte se torna uma área privilegiada de investimentos. No livro Brazil, Bishop intenta desenvolver, de alguma forma, uma escritura digna do status que ela ocupa no cenário da literatura norte-americana. No entanto, a Time-Life, como uma grande corporação moderna, visa primeiramente às estratégias de investimento. Os empresários ocupam aí um papel decisivo, assumindo então uma importância até mesmo maior que os mediadores esteticamente especializados. A dinâmica mercantil passa a regular o campo artístico, oferecendo novas propostas para o que deve ser o valor estético. 28 Por fim, consideramos pertinente ressaltar, mais uma vez, que a responsabilidade da autora sobre o livro publicado fica reduzida, o que aponta para a necessidade do estudo de seus rascunhos e documentos de processo. Através da análise desse material, acreditamos ser possível entender a visão que Bishop gostaria de divulgar sobre o Brasil e os esforços realizados no sentido de preservar o discurso da própria autora. 2.2 A aventura do olhar A escrita de Elizabeth Bishop, em prosa, assemelha-se, de certa forma, à sua produção em poesia. Silvia Anastácio (1999), pesquisadora do processo de criação, desenvolve reflexões acerca da gênese da obra de Bishop, destacando a visualidade presente em suas poesias. Como bem demonstra Anastácio, outro campo ao qual Bishop se dedica é o da pintura. A marcante presença da visualidade em sua obra talvez seja o motivo da incessante busca por novas imagens, o que a transforma em viajante. Para entender melhor essa necessidade contínua de renovar seu arquivo mental, poderíamos tomar de empréstimo a expressão cunhada por Francisco Ferreira de Lima – “aventureira do olhar”, termo com o qual ele se refere à prática de constantes deslocamentos e viagens4; também Bishop faz viagens com frequência, deslocando-se para onde é possível experimentar a estranheza do mundo (LIMA, 1998, p. 74). Vivenciada através do ato de ver, a estranheza remete o viajante à busca de novos territórios. A necessidade de ter contatos visuais inusitados é o que transforma Bishop em viajante e a visão atua como veículo principal que possibilita a fusão do eu com o outro. Nesse sentido, o encontro é também um choque, momento em que o viajante experimenta um vazio. Fundindo-se com o novo, escapa-lhe a capacidade de emoldurar essa experiência singular. A duração desse momento de alteridade, tratando-se de um gozo, é um fenômeno de curta duração, no qual a cintilação é logo substituída pela comparação. Nesse sentido, é ainda Lima (p. 88) quem observa: [...] a densidade do encanto é diretamente proporcional à capacidade que o observador tenha de vedar fissuras em diques simbólicos, verdadeiros anteparos do imaginário [...] E se há aqueles que, tal como Vaz de Caminha, preferem vedá-los após o choque inevitável, há outros que se comprazem em abri-los, como se desejassem que esse encanto se eternizasse, pois é como se só em busca dele tivessem viajado. 4 Essa expressão, presente na obra O outro livro das maravilhas: a peregrinação de Fernão Mendes Pinto, de Francisco Ferreira de Lima, é dirigida ao viajante, empreendedor de frequentes peregrinações. 29 Elizabeth Bishop, assemelhando-se mais ao segundo tipo de viajante, parece recorrer constantemente a fissuras em seus diques simbólicos. Estes, funcionando como arquivos mentais, possibilitam, de tempos em tempos, que a alteridade seja acessada. A ideia então vai sendo trabalhada de modo a desvendar os mistérios do Outro, para que o sujeito com ele se funda, ou ainda, para transformar a alteridade em diferença. A alteridade – “encontro com aquilo que, de modo indefinido se sabia faltar, embora não se soubesse exatamente o que era” (LIMA, 1998, p. 60) –, é um termo que resgata a fundamental necessidade humana de ver-se a si. É o resultado do encontro com algo que lhe parecia estranho, mas que, por carregar a marca do humano, guarda certa proximidade com o observador. É o momento em que “o real perde sua configuração e assume uma dimensão cintilatória” (LIMA, 1998, p. 62). Trata-se do instante em que o estranhamento do primeiro encontro provoca uma distorção do real; é o que se pode observar em uma carta de Bishop ao amigo James Merrill, em janeiro de 1955, na qual a autora expressa seu estado de encantamento – como se ainda estivesse vendo pela primeira vez –, o que desencadeia uma percepção das coisas em proporções gigantescas: [...] Você diz que me imagina em uma “selva de Rousseau” – sim, onde eu moro é tão bonito quanto uma selva de Rousseau, mas bem menos exuberante e mais inóspito, a uns oitenta quilômetros do Rio, e muito mais perpendicular. Como o Pão de Açúcar na baía de Guanabara, só que são muitos deles, muito maiores, longe do mar – com nuvens despencando dos cumes às vezes, e cascatas que surgem e somem dependendo das condições meteorológicas (e de falta de condições meteorológicas a gente não pode reclamar). As coisas aqui também são um tanto fora de escala, como num quadro de Rousseau – ou, pelo menos, fora da nossa escala. A “Samambaia” mencionada no cabeçalho é uma samambaia gigantesca, do tamanho de uma árvore, e tem também sapos do tamanho de um chapéu, e caracóis do tamanho de pratos de sobremesa, e neste mês borboletas da cor desta página, algumas quase do tamanho dela, a esvoaçar... Juntamente com a “quaresma” [em port.], árvores de um roxo melancólico, a combinação de cores é maravilhosa – talvez um pouco excessiva em março (BISHOP, 1995, p. 320, grifos nossos). O deslumbramento ante a natureza e a estranheza do novo, fazendo-se presente de maneira estonteante, aguça o olhar de Bishop. Trata-se de um fenômeno de curta duração que se prolonga quando a comparação se sobrepõe à cintilação. Isso faz despontar na mente conceitos como os de superioridade e inferioridade. Quando tais conceitos são acionados, a relação deixa de ser intersubjetiva entre descobridores, os quais passam a se perceber como sujeito e objeto. Nesse momento, o sujeito analisa o objeto com o propósito de dominá-lo ou seduzi-lo. O ver é suplantado pelo desejo de saber, que funciona como um dispositivo capaz de organizar a apropriação. É quando a esfera da alteridade transmuta-se em diferença (LIMA, 1998). 30 Inerente a qualquer sistema de classificação, a diferença aparece em um momento posterior à alteridade. É o que faz o sujeito se reconhecer como pertencente a uma cultura, pensada por Tomaz Tadeu Silva (2000) como um sistema partilhado de significação. A significação obedece a uma lógica cultural que exige do indivíduo a capacidade de organizar seu pensamento através dos processos de classificação. Dessa forma, o encontro com a diferença possibilita que Bishop construa identidades através da montagem de sistemas classificatórios e da criação de significados que se desenvolvem a partir do encontro com o Outro. A construção de significados pode ser visualizada através dos documentos de processo, pois esses materiais registram um pouco da dinamicidade do pensamento, e, assim, permitem que o crítico genético dê visibilidade à intimidade do artista no momento da criação. Esse processo torna a transmutação da diferença em escritura mais compreensível. Segundo Anastácio (1999), observar o nascimento da obra através desses documentos é uma forma de compreender o pensamento do artista, o que também pode levar a uma possível reconstrução das suas intenções. A organização desse dossiê de pesquisa considerou o fato de que a publicação de Brazil, não sendo um texto aprovado por Bishop, foi constantemente negociada para se parecer tanto quanto possível ao conteúdo dos manuscritos da escritora. Foi então necessária a montagem de um prototexto (HAY, 2002, p. 34), ou seja, a reconstituição, de sua escritura a partir do recorte estabelecido para esta pesquisa. Apresentando-se como espaços heterogêneos, os documentos de processo apontam para diversos tempos interligados. O trabalho do geneticista é dar uma ordem temporal para os documentos, mecanismo capaz de apontar uma direção ou uma tendência seguida pelo artista (PINO, 2005). A partir daí, torna-se possível realizar a interpretação do material reunido, o qual nos permite melhor compreender o olhar de Bishop sobre o Brasil. Os rastros da criação do livro Brazil permitem-nos apontar o modo como Bishop tece comparações e representa diferenças entre culturas. Esses mecanismos mentais nos permitem observar a construção de identidades em dois níveis distintos: a identidade da autora, que vai se definindo por oposição ou semelhança a tudo o que o Outro é; e a identidade do brasileiro, muitas vezes reforçada pelo uso de antigos estereótipos, os quais sobrevivem pela repetição. O encontro com o Outro possibilita que Bishop reative o passado, pois a incorporação de novas imagens está associada a uma tendência da mente de buscar em representações préexistentes (guardadas na própria bagagem existencial) as semelhanças com o novo. Assim, é possível que imagens novas se sobreponham às antigas através de processamentos mentais estabelecidos por intermédio de comparações que apontam aproximações ou distanciamentos. 31 Trata-se de mecanismos corporificados nos registros de pensamentos que ressaltam conexões e semelhanças, as quais levam a juízos de valor que se traduzem em classificações do tipo superior e inferior. Em carta a Kit e Ilse Barker, datada de 12 de outubro de 1952, Bishop diz: “[...] é engraçado – eu venho para o Brasil e começo a me lembrar de tudo o que me aconteceu na Nova Escócia – pelo visto, a geografia ainda é mais misteriosa do que a gente pensa” (BISHOP, 1995, p. 255). Capaz de acessar suas memórias do passado por meio do encontro com a alteridade, Bishop percebe no Outro muitos aspectos de si própria que por muito tempo evitara rememorar. As representações estão o tempo todo a reajustar-se, pois o novo é dotado do poder de desestabilizar ou, até mesmo, de reativar o passado. Ângela Arruda (2002, p. 18) nos lembra que [...] “o outro e o mesmo são uma construção recíproca que se desvela ao longo de situações históricas”. O estudo da criação, ao revelar esses momentos de fissura, acaba apontando para a forma como a alteridade é explorada e resolvida. Louis Hay (2002, p. 38) aponta para dois momentos, na análise genética: [...] o primeiro, de ordem propriamente analítica, visa identificar e descrever a combinatória de deslocamentos, substituições, expansões e retrações que o manuscrito manifesta, a fim de assinalar e sistematizar o conjunto das operações genéticas: programação, textualização, transformação. O segundo, de ordem indutiva, procura remontar estas operações até a dinâmica que as movimenta: pulsões do afetivo, representações do imaginário, efeitos da linguagem e do ritmo. Seguindo as sugestões de Hay, no que concerne ao segundo momento do trabalho crítico-genético, percebemos que as imagens do Brasil, construídas por Bishop, acabam revelando traços de um inconsciente carregado da ideologia norte-americana. O discurso da autora nos faz acreditar que seu imaginário é moldado por velhas imagens de Brasil, principalmente as que se delineiam a partir do olhar de outros viajantes. Segundo Serge Moscovici, isso acontece porque [...] nós nunca conseguimos nenhuma informação que não tenha sido distorcida por representações ‘superimpostas’ aos objetos e às pessoas que lhes dão certa vaguidade e as fazem parcialmente inacessíveis. Quando contemplamos esses indivíduos e objetos, nossa predisposição genética herdada, as imagens e hábitos que nós já aprendemos, as suas recordações que nós preservamos e nossas categorias culturais, tudo isso se junta para fazê-las tais como as vemos. Assim, em última análise, elas são apenas um elemento de uma cadeia de reação de percepções, opiniões, noções e mesmo vidas, organizadas em uma determinada seqüência (MOSCOVICI, 2003, p. 33). Para a teoria das representações sociais, a apreensão da realidade acontece de forma distorcida por conta de influências das representações caracterizadas por Moscovici como 32 “superimpostas”. Para Bishop a construção de imagens anteriores a sua chegada ao Brasil causa um choque, pois se depara com uma realidade diferenciada da que imaginou. Suas impressões foram registradas em seu primeiro poema sobre o Brasil, Arrival at Santos (1952), no qual a autora registra a frustração de encontrar signos de uma cultura alternativa a sua de origem (COSTELLO, 1991). Expressa, nesse poema, a decepção de não encontrar as imagens exóticas preconcebidas, elaboradas a partir de um modelo de primitivismo: [...] Ah, turista, então é isso que este país tão longe ao sul tem a oferecer a quem procura nada menos que um mundo diferente, uma vida melhor, e o imediato e definitivo entendimento de ambos após dezoito dias de hiato? (BISHOP, 1999, p. 61). Seu descontentamento é também relatado em carta a Alfred Kazin, em dezembro de 1951, na qual revela suas impressões sobre a cidade do Rio de Janeiro, nos primeiros dias de sua estada. [...] Acho que também não estou gostando muito, mas é difícil dizer – é tanta bagunça – uma mistura de Cidade do México com Miami, mais ou menos; tem homens de calção chutando bolas de futebol por toda a parte. Começam na praia às sete da manhã – e pelo visto continuam o dia todo nos lugares de trabalho. É uma cidade debilitante, totalmente relaxada (apesar do café excepcional), corrupta – passei uns três dias numa depressão horrível, mas depois me recuperei – graças à Pearl, principalmente [...] (BISHOP, 1995, p. 231). Confrontando Arival at Santos com o trecho da carta acima, percebemos que Bishop nutre a expectativa de encontrar o lugar exótico imaginado. No momento em que se defronta com a realidade brasileira e a percebe bem distinta do que concebera, as imagens primeiras vão sendo suplantadas por comparações. Para tratar do estranho, o natural é que se busque um apoio em imagens existentes nos arquivos mentais. O não-familiar é transformado em algo próximo e conhecido através da memória. Moscovici denomina esses dois mecanismos de ancoragem e objetivação. Enquanto o primeiro é uma tentativa de ancorar ideias estranhas para um contexto familiar a partir da busca por algo semelhante ao já conhecido, o segundo mecanismo tenta objetivar, concretizar algo que era antes abstrato, através do espelhamento de imagens mentais no ambiente externo (MOSCOVICI, 2003). Entende-se, então, que, nas representações, o mundo real atua duplamente: ao mesmo tempo em que é moldado por ideias pré-concebidas, também atua no sentido de impor novas significações. As representações, dessa forma, caracterizam-se como mutáveis. É por intermédio dessa mobilidade inerente à 33 escritura de Bishop que se pode visualizar o ajuste e a adaptação de imagens que a autora tinha do Brasil com a realidade com a qual se depara. Um exemplo é o futebol que primeiro aparece representado como algo que incomoda a autora, para depois integrar-se à escritura de forma mais simpática, aparecendo em Brazil como imagem poetizada. Os jogadores, comparados a penas, destacam-se pela leveza e agilidade com que se deslocam; seus uniformes listrados são comparados a vespas – outra imagem recorrente nos escritos de Bishop. -a man wearing workman wearing half a football on his head as hat, tied under his chin - the costumes – the clothesline full of striped sweaters – the wasp-like stripes – the beautiful portion of Sundays – crowd – pale green field [il] of [il] and sums – and the bright drifting insect like figures – crowds watching, under umbrellas against the sun – <the (chupeta)> (The umbrella – the pasta – the umbrella hanging down the back of the neck) … Kites – Horse – but for the few. But in the country it is nice to see the horse still popular –and the painted wagon still in evidence – (Box 47.1, #5)5. Chapter VIII <il> It [is a pretty sight driving] <il> the country on Sundays – every small [il] will be out watching the local futbol teams, -The huge pale-green fields lined with [poele or a rough grandstand – people in their Sunday clothes, carrying umbrellas against the sun, carrying the baby – the [Esk] Q-Bom (Eskimo pie) man with his little yellow wagon, a few kites flying, a spun-sugar man – locally made, mounted on a bicycle – and the players in their brilliant striped jerseys and brief shorts running running. [light as feathers tissue paper] kites fluttering over head – rather quite crowds – It is also a common sight to see the local washerwoman Line hung with all the jersey of one team – striped sweaters like a wasps – a brilliant display. so entire s against the background of a sordid garbage dump, where the buzzards hover among tissue paper kite s – Black buzzards and [delicate] tissue paper kites hover together – (Box 47.1, #20)6. 5 – um homem usando trabalhador usando metade de uma bola de futebol na cabeça como chapéu, presa por baixo do queixo – [il] – o varal cheio de suéteres listrados – são listrados como vespas – a bela porção dos domingos – cheio de gente – campos verdes pálidos [il] de [il] aos montes – e o inseto flutuando como figuras – multidões assistindo, debaixo de sombrinhas contra o sol – <a (chupeta)> ( A sombrinha – a pasta – a sombrinha pendurada por trás do pescoço) … Pipas – Cavalo – mas para poucos. Mas no país é bom ver os cavalos ainda populares – e a carroça pintada ainda em evidência – 6 Capítulo VIII <il> É [uma bela vista] [il] o país aos domingos – cada pequeno [il] estará nas ruas assistindo os times de futebol locais, – Os enormes campos verdes-pálido alinhados com [pessoas ou uma tribuna grosseira – pessoas em suas roupas de domingo, carregando sombrinhas contra o sol, carregando o bebê 34 It is also a common sight to see the local washerwoman's line hung with the jersey of one team, sweaters striped like wasps – a cheerful display – sometimes against the background of a city dump, with more buzzards and more paper kites hovering above it (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 117)7. A poeticidade constrói-se através de elementos recorrentes também em suas poesias. O elemento wasps (vespas), por exemplo, é retomado no poema Santarém (1979), no qual Bishop trabalha uma visão estética singular, ao chamar atenção para a beleza de uma casa de marimbondos: In the blue pharmacy, the pharmcist gave me a [il] wasps’ nest I admired <<he’d<< hanging above a shelf: >>he’d hug>> small, [bell-shaped], hard as stucco, white, >>exquisite>> [perfect and dazzling, dazzling & perfectly] made (Box 60.4, # 4)8. As imagens de urubus e de pipas aparecem novamente no poema The Burglar of Babylon, publicado em 1968, no qual Bishop trabalha a ideia de espacialidade refletida na justaposição de elementos que aparecem no alto, contrapostos aos que estão abaixo. Nessa escritura, a autora parece querer induzir o leitor a observar o posicionamento geográfico das favelas, que se localizam nos morros do Rio de Janeiro. Utiliza-se, então, de recursos imagéticos e sonoros, os quais transmitem a noção de movimento em linha vertical: He could hear the goats ba-ba-ing, He could hear the babies cry; Fluttering kites strained upward. He knew he was going to die. A buazzard flapped so near him He could see its naked neck. He waved his arms and shouted, – o [Esk] O homem da Q-Bom (torta esquimó) com seu carrinho amarelo, algumas pipas voando, um homem do algodão doce – feito no local, montado em uma bicicleta – e os jogadores em seus brilhantes jérseis listrados e shorts correndo, correndo. [leves como penas papel de seda] pipas sobrevoando sobre as cabeças – uma multidão – É também comum ver as lavadeiras locais Cordas penduradas com todo o jérsei de um time – suéteres listrados como vespas – uma exibição brilhante. tão inteiro contra o fundo de um sórdido depósito de lixo, onde os urubus pairam entre pipas de papel de seda – Urubus negros e [delicadas] pipas de papel de seda pairam juntos – 7 É também uma visão comum ver as cordas / das lavadeiras locais penduradas com o jérsei de / um time, suéteres listrados como vespas – uma exibição / alegre – às vezes contra um plano de fundo / de um depósito de lixo, com mais urubus e mais / pipas de papel pairando sobre ele. 8 Na farmácia azul, o farmacêutico / me deu uma [il] casa de marimbondos que eu admirava /<<ele<< a penduraria em uma prateleira >>ele penduraria>> / pequena, [com formato de sino], dura como estuque, branca >>delicada>> / [perfeita e ofuscante, ofuscante e perfeita] feita. 35 “Not yet, my [boy] <il>, not yet!” (Box 58.6, # 5)9. Os problemas sociais brasileiros merecem destaque nos escritos de Bishop. Habilmente a autora é capaz de transformar a caçada ao ladrão Micuçú no Morro da Babilônia em poesia. De seu apartamento no Leme, observa de binóculos o trágico espetáculo da pobreza. No mesmo ano da publicação do livro Brazil, Bishop escreve a Marianne Moore, em junho de 1962: Apesar de todos os problemas do Brasil, a atmosfera está muito alegre de dois dias para cá, porque a seleção brasileira de futebol está se saindo muito bem e tem chance de ganhar o campeonato mundial outra vez. Anteontem eles derrotaram a Espanha, um jogo muito difícil. Todas as empregadas do prédio estavam ouvindo rádio, debruçadas no pátio interno – a nossa chorava de felicidade. Hoje de manhã ela me perguntou o que eram aqueles canos que estão sendo instalados ao longo da praia, e eu lhe expliquei que era um novo sistema de canalização de água financiado por um empréstimo dos Estados Unidos (tento puxar a brasa para a nossa sardinha sempre que posso). Ela respondeu: “Olha, a senhora me desculpe. Eu sei que a senhora é americana – mas o Amarildo é melhor ainda!” – Amarildo é o jogador que fez os dois gols e garantiu a vitória sobre a Espanha. Acho que o futebol é uma coisa daqui que você ia gostar – como o beisebol nos Estados Unidos. Os jogadores são extraordinariamente rápidos e graciosos (BISHOP, 1995, p. 449). Notamos que o futebol vai ganhando uma conotação mais positiva ao longo do tempo; no entanto, aparece sempre ao lado de imagens negativas. Primeiro ele é concebido como um defeito ou uma mania do brasileiro, capaz de jogar até mesmo no horário de trabalho, para depois destacar-se como uma qualidade em oposição a outros traços negativos do país. No livro Brazil, o varal usado para pendurar “o jérsei de / um time, [...] listrado como vespas” (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 117, tradução nossa) tem como plano de fundo um depósito de lixo, em que sobrevoam urubus entre pipas de um papel delicado. A reunião de elementos esteticamente delicados em contraposição a outras imagens mais grosseiras parece indicar o viés pelo qual Bishop percebe a cultura brasileira, o qual ressalta, sempre que possível, imagens paradoxais. Na carta a Marianne Moore, a autora faz alusão a problemas brasileiros, os quais aparecem agora como secundários, contrapostos a uma atmosfera de alegria proporcionada pelo bom desempenho do time brasileiro no campeonato mundial. A imagem do futebol, depois de passar por uma longa fase de amadurecimento nos escritos da autora, será utilizada em comparações com signos de seu país de origem. Enquanto que os brasileiros colocam o futebol acima de tudo, até mesmo dos problemas sociais do país, Bishop vai buscando 9 Ele pôde ouvir as cabras berrando, / Pôde ouvir bebês chorando; / As pipas voavam, tensas, lá em cima. / Ele sabia que iria morrer”. // Um urubu voou tão perto dele / Que ele pôde ver seu pescoço nu. / Ele acenou e gritou, / Não ainda, meu [rapaz] <il>, não ainda! 36 elementos que “puxem a brasa para o lado dos americanos” em um discurso que intenta expor, de alguma forma, uma suposta superioridade americana. Em relação à denúncia social, Sílvia Anastácio aponta para o fato de que a tal proposta perpassa todo o projeto artístico de Bishop, embora apareça de forma velada nas poesias. A pesquisadora ainda percebe uma postura de descompromisso, já que Bishop define-se como autora americana que escreve para o público americano, além de não falar o português. Essa atitude, como nos sugere Anastácio, pode ser lida como uma “superioridade preconceituosa em relação a este entorno” (ANASTÁCIO, 2002, s.p.). A relação ambivalente fica explicita quando percebemos que, embora Bishop se sinta de alguma forma ligada ao território brasileiro, ela experimente choques culturais constantes, aos quais temos acesso através de sua escritura. Situar o livro Brazil em um contexto maior – o projeto artístico de Bishop – ajuda-nos a perceber ações conscientes e inconscientes aplicadas na dinâmica de representar o Outro. Este projeto artístico maior será sempre acionado para fazer ponte entre a poesia e o livro Brazil, quando necessário10. Isso porque todo o trabalho artístico intenta revelar uma “verdade” alcançada pelo artista (ANASTÁCIO, 1999, p. 28). O livro Brazil, apresentado em forma de prosa, reveste-se de um cuidado com a linguagem e com a maneira de retratar o Outro. Escrito em um estilo mais jornalístico, difere da abertura poética a qual autoriza o artista a arriscar-se nas diversas e ambíguas possibilidades linguísticas, pois, se a linguagem poética torna o signo, de certa forma, palpável, há um deslocamento de seu objeto e o foco da atenção volta-se para as qualidades materiais e não para o seu conteúdo (EAGLETON, 1993). Tal aspecto leva a crer que o espaço literário talvez fosse para Bishop um lugar confortável de onde podia expor suas ideias sobre o Brasil, já que ali o signo poético desfruta de independência como objeto de valor em si. A verdade artística apresenta-se, desse modo, permeada de imaginação, a qual se traduz como um dispositivo que movimenta a criação (HISSA, 2006). O estado imaginativo funciona como um reflexo da disponibilidade de imagens, pois pertence a um universo de trocas e, por isso, pode potencializar-se e multiplicar-se. As imagens se relacionam à capacidade de imaginação, ao mesmo tempo em que servem a ela de alimento, assim como postula o geógrafo Hissa (2006, p. 117): Pensa-se que as imagens decorrem do mundo físico, corpóreo, essencialmente visual. Mas elas não são apenas isso. As imagens e a visão são processadas por todos os sentidos, incluindo o tato, a audição, o olfato e o paladar. São organizadas 10 Para um entendimento mais amplo do projeto artístico de Elizabeth Bishop, o qual compreende poesia, pintura, cartas, anotações, cadernos de sonhos e contos, ver o livro O jogo das imagens no universo da criação de Elizabeth Bishop, de autoria de Silvia Maria Guerra Anastácio. 37 também com base em experiências (coletivas e individuais) acumuladas. A visão, assim, solicita experiências que se encontrem além do mundo visual e além do mundo físico. O olhar físico, por si só, não garante a visão no sentido aqui empregado. Não se está referindo à visão física, ótica, mecânica. Pode-se olhar e não ver. A visão, assim, é resultado do processo de sensibilidades que ultrapassam o ‘olhar físico’ e solicitam um ‘olhar interior’. Conforme essa perspectiva, o conhecimento do objeto faz parte do próprio indivíduo cognoscente. Vê-lo só se torna possível porque seus códigos originam-se no próprio sujeito. A imaginação, associada à criatividade, é o meio de reordenar o mundo. Assim, a chegada de Bishop ao Brasil faz com que ela incorpore os novos elementos de uma cultura que vai sendo observada e, aos poucos, aprendida; a novidade então se mistura aos conhecimentos interiores, gerando imagens que se manifestam, por vezes, sob a forma de julgamentos, comparações, e, outras vezes, sob a forma de comentários simpáticos em relação ao que lhe parece exótico. 2.3 O remoer da escrita A perda da autonomia leva-nos aos documentos autógrafos de Bishop, material reunido em um dossiê composto por 81 páginas datilografadas e 13 manuscritas. Estaremos nos referindo a esse material como manuscrito, seguindo a sugestão de Bellemin-Nöel (1993) ao propor um alargamento do termo. Deparamo-nos então com páginas que provavelmente são versões primeiras enviadas aos editores e páginas contendo correções, além de textos posteriores à publicação, os quais atestam que a autora continuou, por muito tempo, mantendo o sonho de escrever seu livro de viagens. Nesta subseção, analisaremos as correções com vistas a entender um pouco mais sobre as imagens de Brasil concebidas por norte-americanos: de um lado, a visão de uma estrangeira radicada no Brasil; de outro, o olhar de editores que, segundo Bishop, não detêm conhecimento profundo sobre o país, construindo representações a partir de um modelo preestabelecido. Os títulos dos capítulos parecem ser as primeiras alterações que geram insatisfação por parte da autora: Chapter titles 1 – A Warm and Reasonable People 2 – Undeveloped Land of Legend 3 – Century of honor and Pride 4 – Shifting Centers for Government 5 – The Slow Awakening of a Giant <A million – A Million of Paradoxes> <The Land of Dye-Wood> <The only Western Empire> <Three Capitals> 38 6 – Graceful and Popular Skills 7 – A Merited Respect for the Arts 8 – A Changing Social Scene 9 – Struggle for a Stable Democracy 10 – A Nation Perplexed and Uncertain (Box 47.1, #51)11. <Unselfconscious Arts> <Selfconscious Arts> <Groups and Individuals> <The Republic> O capítulo um, intitulado por Bishop de Paradoxes [and ironies] (Paradoxos e ironias) é publicado como A warm and reasonable people (Um povo caloroso e sensato). Sobre essa alteração, há um comentário de Bishop no manuscrito 49: Mr. Blashell read me titles for Chapters 1, 5, 6, 8 and 10. The last four were O.K. but surely Chapter 1 can’t be A WARM AND RESPECTABLE PEOPLE ????? I read another in New York, I think, - better than that. “Warm” sounds as if it might refer to the climate – and respectable – must be a mistake? (Box 47.1, #49)12. O uso da palavra respectable (respeitável), modificado no livro publicado para reasonable (sensato) é entendido com a indignação de quem vê nessas alterações um equívoco. A mutilação de seu texto gera um diálogo com os editores que vai ganhando tom de intolerância, o qual está arquivado em meio a seus manuscritos. Expressa, nesse material, de forma irônica, as queixas que faz ao editor chefe sobre a falta de preparo da equipe com a qual ela trabalha. No fim de uma das páginas, Bishop indica a continuidade das correções com a seguinte frase: “MORE COMING, KOMING, I MEAN” (Box 47.1, #24). A insatisfação e a impaciência com o fato de ter a escrita modificada por profissionais considerados por ela despreparados refletem-se na grafia da palavra coming. Em seus manuscritos, com frequência, registra o aborrecimento de ter seu texto alterado. As correções analisadas são de várias ordens: ou expressam a luta por uma representação mais exata, ou buscam eliminar termos pejorativos em relação ao Brasil, ou ainda, buscam moldar o aspecto formal da escrita, obedecendo a padrões literários, os quais a autora bem sabe explorar. 11 Títulos dos capítulos 1 – Um Povo Caloroso e Sensato <Um milhão – Um milhão de paradoxos> 2 – A Lendária Terra Subdesenvolvida <A Terra do Pau Brasil > 3 – Século de Honra e Orgulho <Único Império Ocidental > 4 – Mudanças nos Centros de Governo <Três Capitais> 5 – O Lento Despertar de um Gigante 6 – Habilidades Populares Graciosas <Artes Espontâneas> 7 – Um Respeito Merecido pelas Artes <Artes Sofisticadas> 8 – Uma Cena Social em Mudança <Grupos e Indivíduos> 9 – O Esforço por uma Democracia Estável <A República> 10 – Uma Nação Perplexa e Incerta 12 O sr. Blashell leu para mim os títulos para os capítulos 1, 5, 6, 8 e 10. Os quatro últimos estavam O.K., mas certamente o capítulo 1 não pode ser UM POVO CALOROSO E RESPEITÁVEL????? Eu li um outro em Nova Iorque, eu acho, - melhor que este. “Caloroso” soa como se estivéssemos nos referindo ao clima – e respeitável – seria um engano? 39 Sobre a exatidão, é importante mencionar que, muitas vezes, Bishop passa anos para terminar um poema, pois, como ela própria afirma em um ensaio (Writing poetry is an unnatural act), essa é uma das características mais importantes em poesia: “[...] as três qualidades que eu mais admiro em poesia e que eu mais gosto são: Precisão, Espontaneidade, Mistério” (BISHOP, 2008, p. 703, tradução nossa). Seus manuscritos atestam a busca por imagens que retratam a realidade de forma mais exata e o ensejo de encontrar o tom apropriado para expressar o real em palavras. Quando não alcança o tom almejado, a autora desiste da escrita e, assim, abandona muitos de seus poemas, não os submetendo à publicação. Sobre o modo de lidar com a própria escritura, ela afirma: “Nunca tentei publicar nada sem antes trabalhar o material da melhor maneira possível, não importando quantos anos levasse – se não estivesse plenamente satisfeita, talvez nem chegasse mesmo a publicá-lo” (BISHOP apud ANASTÁCIO, 1999, p. 73). Dessa forma, observamos como a busca pelo tom ideal caracteriza-se como a transmutação da realidade em imagem literária. Como a própria Bishop revela, o real é a grande matriz de sua inspiração. A ideia vai então se ajustando ao novo formato, que, por vezes, exige alguns ajustes: Eu sempre digo a verdade em meus poemas. Com The Fish, foi exatamente como aconteceu. […] Oh, mas eu mudei uma coisa: o poema diz que ele tinha cinco anzóis pendurados na boca, mas, na realidade, só tinha três. […] Mas eu sempre tento me aproximar o máximo possível do que realmente aconteceu quando descrevo algo em um poema (BISHOP apud MONTEIRO, 1996, p. 42, tradução nossa). Em se tratando de um livro de viagens com sua assinatura, certamente Bishop torna-se mais exigente em relação às verdades veiculadas. Requer, então, que a realidade seja retratada de forma mais fidedigna possível. É assim que os manuscritos de correção revelam um embate da autora com os editores em busca de um texto que, a seu ver, seria mais próximo da realidade. No livro Brazil, por exemplo, há uma referência à obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, que aparece sem a informação da data de publicação. Bishop solicita então que seja especificado o momento de publicação do livro em inglês. Requisita que a informação apareça em parênteses para indicar a não simultaneidade, ou ainda que, textualmente, seja mencionada a sucessividade das edições: Page 104, Col 1 – paragraph 3. "Os Sertões (published in English as…) etc. – has to be in parenthesis, or else some phrase like "40 years later, published in English as…" Either one or the other will do, but as it stands now it implies the Portuguese & English appeared simultaneously. I corrected all this in N.Y. 40 (Box 47.1, #25)13. A orientação de Bishop, no entanto, é ignorada pelos editores: “The other greater writer, Euclides da Cunha, was the author of one of the world’s strangest books, Os Sertões, which was published in English as Rebellion in the Backlands (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 104) 14. Outro traço constante em Bishop é a busca por uma escrita que evite generalizações, como podemos observar nos seguintes trechos: Most of this tragic waste of life is due to malnutrition, which weakens a person’s resistance to disease. But often the malnutrition is due not so much to actual lack of food as to ignorance, a vicious circle in which poverty creates ignorance which then creates more poverty. In Rio, for example, there are many good free clinics. But fine doctors have been known to resign after working in them for years; they can no longer endure seeing the same children brought in time after time, sicker, weaker and finally dying because the parents are too ignorant, or too superstitious, to follow a few simple instructions (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 11, grifos nossos)15. Section 1, par. 11, line 8: “But the doctors have been known”, etc. OMIT the “the.” Should read, “But doctors have been known” – Your are implying all the doctors. Same sentence, OMIT “a few” (Box 47.1, #23)16. Quando Bishop requisita que o artigo the seja eliminado, tem a intenção de não generalizar, deixando claro que alguns médicos – e não todos – pedem demissão porque não suportavam ver a ignorância dos pais, os quais, não intencionalmente, acabavam prejudicando a saúde dos próprios filhos. No texto publicado, os editores incluem o adjetivo fine, o que sugere que apenas os bons médicos se demitiam. Bishop esforça-se para evitar palavras generalizadoras, tais como all, most e the, como se pode observar em: page 117 Col 2 – please change to “lose their sense of team play” – “all sense ” seems unnecessarily unkind (Box 47.1, #26)17. 13 Página 104, Col 1 – parágrafo 3. "Os Sertões (publicado em inglês como…) etc. – tem que estar em parêntesis, ou ainda acompanhado por alguma frase como "40 anos depois, publicado em inglês como...". Tanto faz de uma forma ou de outra, mas como está agora dá a entender que as versões em português & inglês apareceram simultaneamente. Eu corrigi isso tudo em N.Y. 14 Um outro grande escritor, Euclides da Cunha, foi autor de um dos livros mais estranhos do mundo, Os Sertões, publicado em inglês como Rebellion in the Backlands. 15 A maior parte dessa trágica perda de vidas é decorrente da má nutrição que enfraquece a resistência de uma pessoa, fazendo-a adoecer. Mas, normalmente, a má nutrição não é muito devido à real falta de comida, mas à ignorância, um círculo vicioso no qual a pobreza cria ignorância, que gera mais pobreza. No Rio, por exemplo, existem muitas clínicas gratuitas e boas. Mas se sabe que bons médicos demitem-se depois de trabalhar nestes locais por anos; eles não conseguem suportar ver a mesma criança trazida de tempos em tempos, mais doentes, mais fracas e, finalmente, morrendo porque os pais são muito ignorantes, ou muito supersticiosos para seguir umas poucas e simples instruções. 16 Seção 1, par. 11, linha 8: “Mas se sabe que os médicos”, etc. OMITA “os”. Deve-se ler, “Mas sabe-se que médicos” – Vocês estão sugerindo que todos os médicos. Na mesma frase, OMITA “umas poucas”. 41 […] each time a crucial match came up, the players seemed to lose all sense of team play (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 117)18. Em carta aos amigos Ilse e Kit Barker, Bishop critica o uso inapropriado de advérbios pelos editores: [...] você ficaria assombrada... com tantos ‘poréns’, ‘entretantos’, e ‘mas’ – particularmente os ‘mas’ – a Time-Life os adora e aparentemente acha que nada significam – espalhados pelo texto, dando ao que resta dele um falso ar de ponderação e lógica, de equilibrar uma coisa em relação a outra, etc. Também há centenas de ‘quases’, ‘provavelmentes’, ‘alguns dos’ – mas nenhuma dessas palavras aparece onde devia (BISHOP apud PRZYBYCIEN, 1993, p. 715). Bishop frequentemente corrige o que considera equívoco dos editores, além de eliminar informações incorretas. Nos manuscritos referentes ao último capítulo, ao tratar dos acontecimentos mais recentes no país, chama a atenção para o que não foi escrito por ela, pedindo, mais uma vez, que seja retomada a forma original de seu texto. Page 146 Col 1 2nd paragraph: “the way of life seems more democratic…” I NEVER SAID THAT. Change to “the atmosphere of Brazil seems more democratic…” Or, “the manners and atmosphere of” Brazil seem very democratic.” STOP. and leave off the meaningless “than that of any other countries” (Box 47.1, #27)19. As argumentações usadas para convencer os editores são variadas, e Bishop chega a citar suas fontes de pesquisa para comprovar a veracidade das informações utilizadas por ela. O nome evidenciado é o do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon (com erro de grafia no manuscrito), considerado o maior especialista em economia latino-americana (informação divulgada pela revista Time no texto The Americas: The Orphan Policy, publicado em 26 de maio de 1961). O rigor de seu método de pesquisa transparece no cuidado em listar todas as fontes de pesquisa, que incluem estudiosos americanos e brasileiros: Page 132, Col 1 Bottom of page. “Inflation… now increased at nightmare rate…” [Di not] Do not say [i] “in part as a result of the rapid industrialization.” Please omit. IT is true, according to Gudin and other economists that industrialization may account for a very small part of inflation, but your implication here is out of proportion completely with the scale of the inflation in Brazil. Also according to all best estimates here Brasilia has cost at 17 página 117 Col 2 – favor trocar para ‘perdem o senso de time’ – ‘todo o senso’ soa desnecessariamente grosseiro. 18 […] cada vez que uma partida crucial acontecia, os jogadores pareciam perder todo o senso de time. 19 Página 146 Col 1 2º parágrafo: ‘o modo de vida parece mais democrático…’ EU NUNCA DISSE ISTO. Mude para ‘a atmosfera do Brasil parece mais democrática…’ Ou, ‘os modos e a atmosfera do Brasil parece muito democrática.’ PARE. e retire a frase sem sentido “que a de qualquer outro país”. 42 least one billion dollars. Where did you get 600 million and why should you be any more right than Brazilian economists about this necessarily rough estimate? (Box 47.1, #26)20. […] Inflation, which had begun in the days of Vargas, now increased at nightmare rates – in part as a result of the rapid industrialization. It was estimated that Kubitschek spent $600 million on Brasília (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 132)21. A autora volta, mais uma vez, a usar o tom irônico: “[...] por que vocês estariam mais corretos que os economistas brasileiros nessa estimativa grosseira?” (Box 47.1, #26, tradução nossa). Sobre os gastos referentes à construção de Brasília, Bishop intenta sugerir um valor mais próximo ao estimado por Gordon, 1,6 bilhões de dólares. Ela demonstra muita insatisfação com a forma usada pelos editores para transmitir as informações, buscando eliminar expressões irônicas em relação ao brasileiro e à sua história, o que figura como uma das principais preocupações registradas nas folhas de correções. No capítulo dois, por exemplo, os editores voltam a usar clichês que causam aborrecimento à autora: " 28, Col. 1. – 3rd. paragraph: please don’t put in that cliché about “abounds in fascinating personalities” – I never said that! Can be omitted – (Box 47.1, #49)22. Early Brazilian history abounds in fascinating personalities: condemned convicts, devout Jesuit missionaries (St. Ignatius Loyola’s order was found in 1540) and Portuguese noblemen, often younger sons, who became the “great captains” appointed by the crown and given almost kingly powers. But this oddly assorted crew had found no gold; there were no cities to ransack, and for the first quarter of the century Brazil was left almost untouched (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 28)23. Há, por parte da autora, a tentativa de limpar do texto as imagens de Brasil construídas de modo mais estigmatizado. Seu modo de retratar o Outro parece mais afeito ao uso de uma 20 Página 132, Col 1 Fim da página. “A inflação… agora aumentou para uma taxa assustadora…” [Não] Não diga [i] “em parte como um resultado da rápida industrialização”. Por favor, omita. ISTO é verdade, de acordo com Gudin e outros economistas que a industrialização pode influenciar em uma parte muito pequena da inflação, mas o que você sugere aqui está completamente fora de proporção, assim como a escala da inflação no Brasil. Também de acordo com todas as melhores estimativas aqui, Brasília custou, pelo menos, um bilhão de dólares. Onde vocês encontraram 600 milhões e por que vocês deveriam estar mais corretos que os economistas brasileiros acerca desta estimativa grosseira? 21 […] A inflação, iniciada nos tempos de Vargas, agora aumentou para taxas assustadoras – em parte, como resultado da industrialização rápida. Estima-se que Kubitschek gastou $600 milhões em Brasília. 22 " 28, Col. 1. – 3o. parágrafo: por favor, não use este clichê “abunda em personalidades fascinantes” – Eu nunca disse isto! Pode ser omitido – 23 A história colonial do Brasil abunda em personalidades fascinantes: condenados convictos, missionários jesuítas devotos, (a ordem de Santo Inácio de Loyola foi fundada em 1540) e nobres portugueses, geralmente os filhos mais novos, que se tornaram os “grandes capitães” apontados pela coroa, e a quem eram dados poderes quase que imperiais. Mas essa tripulação estranhamente variada não encontrou ouro; não haviam cidades para pilhar, e no primeiro quarto de século, o Brasil esteve quase que intocado. 43 crítica mais sutil e discreta, buscando aproximar-se, tanto quanto possível, da realidade a qual tem acesso. De modo contrário, os editores parecem mais interessados na divulgação de um discurso ideológico norte-americano que, nos tempos da Guerra Fria24, imbui-se da missão de combater o comunismo. Page 133, Col 1, top of the page. “He made increasing overtues to the extreme left, and there was [il] violent public reaction when he awarded the Order of the Southern Cross… etc to … the communist Minister of Finance of Cuba.” If you are afraid to use the word communist, just say “to the Cuban Minister of Finance.” DO NOT SAY COMUNIST LEANING, FOR HEAVEN’S SAKE! – I discussed all this many times in N.Y. Why not tell the truth? (Box 47.1, #27)25. […] Goulart was, however, regarded as demagogic opportunistic, leftist and a political uncertainty. He had, in fact, just left Communist China, where he had been negotiating a trade pact. Not surprisingly, he was unacceptable to the heads of the armed forces, who announced that he would be arrested if he returned to the country. Eventually, however, they agreed to let Goulart take office, but only after Congress had passed a constitutional amendment limiting his power by switching Brazil from a presidential to a parliament form of government. This arrangement once again demonstrated Brazil’s renowned talent for “compromise.” But like many compromises, ir solved nothing: a plebiscite held at Goulart’s insistence a few months later overwhelmingly supported presidentialism, and by January 1963, Goulart had all his power back (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, 132-133)26. A Time-Life, principal revista norte-americana da época, se encarrega da missão de divulgar a ideologia estadunidense, assim como podemos observar em um dos pronunciamentos do proprietário Henry Luce: “Deus fundou os Estados Unidos para servirem de farol mundial da liberdade” (LUCE apud BIAGI, 2001, p. 80). Estas palavras apontam 24 A Guerra Fria é iniciada no final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e tem duração de 40 anos. De cunho econômico, diplomático e ideológico, o período é marcado pelas diversas disputas e confrontos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética, o que divide o mundo em blocos de influência liderados pelas duas superpotências. 25 Página 133, Col 1, topo da página. “Ele fez aberturas incríveis para a extrema esquerda, e houve [il] uma reação pública violenta quando premiou a Ordem do Cruzeiro do Sul … etc. para … o ministro as finanças comunistas de Cuba”. Se vocês estão com medo de usar a palavra comunista, digam apenas “para o ministro de finanças cubano”. NÃO DIGAM DE INCLINAÇÃO COMUNISTA, PELO AMOR DE DEUS! – Eu discuti tudo isso muitas vezes em N.Y. Por que não dizer a verdade? 26 […] Goulart era, no entanto, visto como um oportunista demagogo, esquerdista, e uma incerteza política. Ele, na realidade, tinha acabado de deixar a China comunista, onde ele esteve negociando um pacto comercial. Não é de surpreender que não fosse aceito entre os líderes das forças armadas, que anunciaram que ele seria preso se ele retornasse ao país. Eventualmente, entretanto, eles concordaram em deixar Goulart assumir, mas apenas depois que o congresso tivesse criado uma emenda constitucional que limitasse seus poderes, com a troca da forma de governo do Brasil de presidencialismo para parlamentarismo. Este arranjo, mais uma vez, demonstra o conhecido talento do Brasil para o “compromisso”. Mas, assim como muitos outros compromissos, não se resolveu nada: diante da insistência de Goulart, um plebiscito manteve, por mais alguns meses, o sistema presidencialista, o que foi apoiado esmagadoramente, e em janeiro de 1963, Goulart teve todo o seu poder de volta. 44 para a posição ideológica que as equipes editoriais da revista deveriam então assumir em relação ao resto do mundo. Considerando essa questão, a revista figura como instrumento de combate na luta da democracia contra o comunismo. Sobre esses dois sistemas de governo, o historiador Rezink (2004, p. 19) afirma: [...] para o mundo ocidental, os conceitos democracia e comunismo foram carregados de significados opostos: o primeiro era sinônimo de capitalismo, e o último, de totalitarismo, ausência de liberdade política de expressão e participação. Forças antagônicas que dificilmente conviveriam num mesmo espaço físico-social. Bishop não assume explicitamente ter consciência da trama política que se esconde por trás da linguagem. Luta pela manutenção de seu texto sempre usando justificativas que privilegiam um ponto de vista estético e ético (pois, dessa forma, o estilo de escrita e a veracidade das informações tornam-se fatores que devem ser levados em conta). Last word of section 1 – I didn’t say “housecleaning” and would Prefer the original word, whatever it was (Box 47.1, #23)27. The same contrasts even appear in Brazilian history, periods of waste and corruption alternating with periods of reform and housecleaning (BISHOP BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, 11-12)28. Ao tentar recuperar um pouco do seu texto, Bishop vai eliminando principalmente as palavras que ostentam um tom pejorativo. Como sinaliza em vários dos manuscritos, alguns pontos já corrigidos não são considerados pelos editores. Bishop se vê diante da situação em que o interesse comercial é privilegiado em detrimento da arte, e isto a aborrece de forma tal que passa a fazer uso da ironia no diálogo com os editores: Page 104, col. 2 – six lines from the end. Please omit "facile". Just "Journalism" – or perhaps "all-pervading journalism", or if that’s too long, "mediocre journalism." (Box 47.1, #25)29. Although Brazilian writers and artists are spared the abrupt and cruel fluctuations of reputation that artists experience elsewhere, they probably suffer from lack of competition and serious criticism even more than from the relatively limited audience for Portuguese literature or from the deadening effects of facile journalism (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 104)30. 27 Última palavra da seção 1 – eu não disse “limpeza” e prefiro a palavra original, qualquer que tenha sido. 28 Os mesmos contrastes também aparecem na história brasileira, períodos de desperdício e corrupção alternando com períodos de reforma e limpeza. 29 Página 104, col. 2 – seis linhas a partir do final. Por favor, omitam "simplista". Apenas "Journalism" – ou talvez "jornalismo invasivo", ou, se estiver muito longo, "jornalismo medíocre". 30 Embora os escritores e artistas brasileiros estejam sujeitos às flutuações abruptas e cruéis de reputação que os artistas experimentam em qualquer lugar, eles provavelmente sofrem por falta de competição e de uma crítica séria, mais do que de um público relativamente limitado da literatura portuguesa ou dos efeitos mortais do jornalismo simplista. 45 Percebendo a inutilidade de seus esforços, Bishop passa a expressar o próprio aborrecimento de forma mais explícita. Na correção acima, ela solicita que os editores expressem o que pensam sobre o jornalismo brasileiro de modo mais direto e, ironicamente, sugere o adjetivo medíocre. Em contrapartida, quando os editores substituem a palavra fauna por criaturas, a autora retoma o tom sério, chamando atenção para o uso de palavras muito pesadas: Page 103, Col 1, 3d paragraph. I said "fauna", not "creatures". Surely that’s not too hard a word? (Box 47.1, #25)31. The poets of the Inconfidência Mineira sang of such un-Brazilian creatures as cupids and swans (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 103)32. Ainda lutando pela manutenção de um estilo menos agressivo, Bishop insiste no uso de um vocabulário que, em sua concepção, fosse menos vulgar: <DO NOT USE WORD TEENAGE. WHY BE VULGAR?> page 117 col 1, top of page. [I HATE THE WORD TEENAGE]. I said “young girl.” (#26)33. Page 132, Col 2; - bottom of the Page. Do NOT SAY “STEP UP EDUCATION” – Why BE VULGAR? [“He announ “he announced] “HE SPOKE OF A SCOOLBUILDING PROGRAM THAT WOULD INCREASE LITERACY…” etc. (Box 47.1, #27)34. Constantemente encontramos nos rascunhos a tentativa de eliminar palavras que denotam o tom pejorativo dos editores. Em relação à política, destacamos algumas correções: Page 130, Col 2, bottom of page. You have changed this again, and as it stands now it is completely untrue. What I said was “At the start of World War II Vargas did not conceal his sympathies with the Axis powers, and the first Nazi victories lent support to his attitude.” This is the simple truth. Why do you insist on whitewashing dictators? (Box 47.1, #26)35. 31 Página 103, Col. 1, 3º parágrafo. Eu disse "fauna", e não "criaturas". Vocês estão certos de que esta não é uma palavra muito dura? 32 Os poetas da Inconfidência Mineira falam de criaturas não-brasileiras como cupidos e cisnes. 33 <NÃO USE A PALAVRA TEENAGE. POR QUE SER VULGAR?> página 117 col. 1, topo da página. [EU ODEIO A PALAVRA TEENAGE]. Eu disse “jovem garota”. 34 Página 132, Col. 2; - fim da página. NÃO DIGAM “AUMENTAR A EDUCAÇÃO” – Por que SER VULGAR? [“Ele anunciou] “ELE FALOU DE UMA ESCOLA – CONSTRUÇÃO DE UM PROGRAMA QUE AUMENTARIA A ALFABETIZAÇÃO…”. 35 Página 130, Col. 2, fim da página. Vocês alteraram isso de novo, e como está agora, fica completamente falso. O que eu disse foi “No começo da II Guerra Mundial, Vargas não oculta suas simpatias com os poderes 46 A informação sobre a simpatia que Vargas nutria pelas potências do eixo36 é eliminada, pois, como se sabe, os editores têm um formato bem definido, ao qual os países subdesenvolvidos deveriam ajustar-se. Bishop, mais uma vez, se expressa em protestos que, na concepção de Fortuny (2003, p. 70, tradução nossa) “[...] atestam que a estética não só contribui para o interesse público, mas também que a história política se beneficia mais quando ela se torna, simultaneamente, um assunto de arte”. Isso porque a criação artística, sustentando-se em bases bem distintas da história, torna-se capaz de revelar verdades encobertas pelas ideologias. Ainda de acordo com Fortuny (2003), o fato de Bishop ter evitado um explícito ativismo público na vida e na poesia não significa que esse ativismo não existisse. Ele percebe nos conflitos com a Time-Life um reflexo da insatisfação da autora com a ideia de que os editores tinham do que seria a representação de uma cultura estrangeira. A Time-Life estava, na realidade, interessada em atender aos gostos de um público de classe média. O crítico afirma que, do ponto de vista dos editores, a reação de Bishop poderia ser facilmente interpretada como capricho por ter seu ego ferido (FORTUNY, 2003). Ainda sobre o aborrecimento de Bishop com as alterações em seu texto, Gary Fountain (2003) aponta uma personalidade política que leva a crer que, para a autora, a perspicácia política e a integridade retórica não podem estar separadas, pois aparecem interligadas, de forma que, em seu projeto artístico, tais elementos mantêm uma relação de dependência. Parece que a vida no Brasil e o contato com amigos da alta sociedade brasileira envolvidos em política trazem essa temática para o rol de seus interesses. Em 1966, anuncia seu posicionamento em relação à política, o qual vai mudando com o passar do tempo: “I was always opposed to political thinking as such for writers. What good writing came out of that period, really? [...] I’m much more interested in social problems and politics now than I was in the 30’s” (ESTESS; SCHWARTZ, 1999, 293)37. No Brasil, se torna amiga de Carlos Lacerda e acompanha de perto o envolvimento de Lota com a construção do Aterro do Flamengo. O interesse pela política e por problemas sociais vai ganhando um destaque cada vez maior em suas cartas. {países} do Eixo, e os primeiros vitoriosos nazistas enviou suporte para sua atitude”. Esta é a simples verdade. Por que vocês insistem em encobrir os ditadores? 36 As Potências do Eixo são compostas por três países principais: Alemanha, Itália e Japão. Foram um dos contendores da Segunda Guerra Mundial, tendo como inimigos o grupo de países denominados de Aliados. 37 Eu sempre me opunha ao pensamento político no trabalho dos escritores. Que boa escrita veio deste período, realmente? [...] Eu me interesso muito mais por problemas sociais e pela política agora do que nos anos 30. 47 O novo território é capaz de operar mudanças, no sentido de formatar ideias e conceitos. Nesse sentido, a viagem funciona não só como deslocamento no espaço e no tempo; modifica o observador na medida em que ele pode perceber mais aspectos da cultura com a qual entra em contato. Ao mesmo tempo em que percebe mais, é capaz de modificar-se, criando para si identificações não previstas antes da viagem. É por isso que as percepções registradas por Bishop, em diferentes momentos, atestam que a experiência da viagem somente pode revelar verdades de si e do Outro de forma parcial. 3 REPRESENTAÇÕES DA ALTERIDADE Of course I may be remembering it all wrong É claro que eu posso estar lembrando tudo errado After, after – how many years? Depois, depois de quanto tempo mesmo? That golden evening I really wanted go no farther; Naquela noite dourada, eu não queria ir a lugar algum; More than anything else I wanted to stay awhile […]Mais do que tudo, queria ficar mais um pouquinho […] (BISHOP, Poems, prose and letters). As questões de viagem marcam, de forma decisiva, a vida de Elizabeth Bishop. Os lugares visitados, as pessoas observadas, as notícias lidas em jornais e as estórias contadas por amigos compõem a matéria que alimenta seu ato criativo. Quando trabalha com poesia, o conhecimento sobre o Outro se mostra, muitas vezes, mascarado por imagens metafóricas. O campo artístico, caracterizado pela liberdade de criação, possibilita o emprego da fantasia mesclada à realidade. Entretanto, Brazil – livro de viagens com linguagem predominantemente jornalística – pode revelar, de forma mais realística, os posicionamentos de Bishop em relação à cultura brasileira. A contraposição dos manuscritos com o livro publicado (com modificações dos editores) pode revelar que, independentemente do modo de veiculação do conhecimento, existe sempre por trás de sua elaboração ecos que remontam à visão coletiva de um grupo. O conceito de representação mais apropriado para os propósitos desta pesquisa está vinculado à área da psicologia social, explicado por Serge Moscovici como um modo de produção e interpretação do conhecimento. O interesse das representações sociais é promover a percepção de como a novidade e a mudança integram-se à vida social, bem como a conservação e preservação dessas transformações (MOSCOVICI, 2003 p. 15). As representações atuam como realidades partilhadas por um grupo. É por isso que possibilitam a análise da cristalização de imagens que se apresentam como novas, mas que, no entanto, mantêm raízes profundas em imagens pré-existentes. Ao observar o processo de recriação do Outro por um estrangeiro, intentamos compreender como a representação do conhecimento presente no imaginário de um povo é articulada às noções assimiladas com as experiências na nova terra. Nesta seção, buscaremos entender de que modo Elizabeth Bishop, depois de aproximadamente dez anos no Brasil, exerce a função de mediadora cultural e que tipo de representação ela privilegia para divulgar a cultura brasileira nos Estados Unidos. 49 3.1 Visitando lugares imaginados Para entender as questões editoriais que envolvem Brazil e o que move Elizabeth Bishop a empreender olhares que imitam os modelos de outros livros de viagens, faz-se necessário esboçar o contexto no qual este tipo de literatura se insere. Em seus primórdios, os livros de viagem são associados a uma necessidade prática, pois funcionam como guia para um deslocamento mais preciso em terras estrangeiras. Assim surgem os diários de bordo, roteiros e documentações técnicas para orientação náutica. Aos poucos, os materiais incorporam descrições que interligam o sujeito da percepção ao novo espaço explorado. É quando os olhos do viajante começam a funcionar como câmera, movidos pela finalidade de reportar novidades de espaços distantes para aqueles que permanecem na terra. O interesse pela viagem vai se tornando maior à medida que as pessoas não se satisfazem mais com o simples ouvir. A necessidade de experimentar o mundo através da visão faz surgir novas possibilidades de deslocamento, o que leva o sujeito a locomover-se cada vez mais pelo globo. Os primeiros livros de viagem caracterizam-se por apresentar uma escrita mais espontânea (século XV). No entanto, a partir do século XIX, passam a ser submetidos a revisões que dão margem a mudanças dos conteúdos originais. Tais alterações subordinam-se às demandas de um mercado editorial, mas, principalmente, sujeitam-se às pretensões dos próprios autores em modificar o texto com intenções que, muitas vezes, são definidas antes da viagem (LEITE, 1996). Nascido com a pretensão de servir apenas como um roteiro, o livro de viagem transforma-se, à proporção que vai incorporando elementos descritivos que demonstram uma relação mais próxima entre o sujeito e o espaço explorado. O grande interesse por conhecer o Outro parece intensificar-se no momento em que há necessidade de reconhecimento identitário. Segundo Ilka Boaventura Leite (1996), o entendimento do Outro se efetiva a partir de critérios tanto de superioridade como de inferioridade, os quais adotam como parâmetro a cultura de origem. O viajante, não podendo acessar os mesmos significados culturais compartilhados pelos membros do grupo nativo, recorre frequentemente a um esquema de valoração identificado com o olhar estrangeiro e, como tal, impregnado de valores colonialistas e etnocêntricos. Nesse sentido, a pesquisadora afirma: As representações sobre o outro nascem de um processo de comparação, classificação e ordenação dessas experiências. A imagem do Outro dependeu invariavelmente de hierarquização, estando, portanto, diretamente vinculada ao referencial teórico disponível (LEITE, 1996, p. 38). 50 Ainda segundo Ilka Boaventura Leite, nos séculos XIX e XX, há um grande número de estudos sobre o Brasil, em decorrência principalmente do imperialismo inglês e norteamericano. Esses estudos, no geral, são patrocinados por alguma instituição, assim como Brazil. Projeto da Time-Life, este livro deve seguir um padrão – a construção de uma visão panorâmica que focalize diferentes temáticas, como as geográficas, históricas e culturais. Sempre que possível Bishop busca adequar o que idealizara como o seu livro de viagens com o que lhe é imposto pelos editores. Parece que a autora está mais inclinada a seguir padrões fundamentados nas propostas de viajantes que a antecederam. Encontramos nas referências bibliográficas dos manuscritos nomes de autores da literatura de viagem usados como modelo: Richard Francis Burton, Maria Graham (Journal of a Voyage to Brazil), Charles Darwin (Voyage de Beagle); de antropólogos, como Claude Levi-Strauss (Triste Tropiques); e ainda, alguns críticos de livros de viagem, como Konrad Guenther (A naturalist in Brazil), Cabral’s Voyage to Brazil & Índia (W. B. Greenlee), entre outros. Ao escrever Brazil, Bishop acaba sendo mediada por diversos textos anteriores, privilegiando uma autoridade discursiva consolidada sobre temáticas brasileiras. Como afirma Alexsander Gebara (2006, p. 14): “[...] não é preciso que todas as representações concordem para que se constitua um discurso, mas que exerçam influência umas nas outras, mesmo que pela negação ou diferenciação”. Embora Bishop se preocupe com a interpretação que os brasileiros fariam de seu texto, não era esse seu público alvo. Como se observa através de cartas, a autora constantemente reforça que sua escrita se direciona para leitores norte-americanos. Tal posicionamento se identifica com o que diz Boaventura Leite (1996) no que concerne ao viajante atuar como um tradutor que tem em vista um leitor posicionado no lugar de sua procedência. Nos manuscritos, notamos como a linguagem guarda vestígios da postura adotada por Bishop como escritora que se direciona para um grupo específico, o de origem. Armando Olivetti Ferreira (2008), em sua tese de doutorado intitulada Recortes na paisagem: uma leitura de Brazil e outros textos de Elizabeth Bishop, afirma que há, por parte dos editores, a eliminação da marca de grupo nós. O pesquisador exemplifica que, no capítulo sete, Bishop se refere a “nossos artistas”, “nosso Henry James”, “nossos diferentes pontos de vista”, “nosso país industrializado e de classe média”; no capítulo dez, “nossa cultura” e “nossos problemas raciais”. No livro publicado, são suprimidas as referências especificas aos Estados Unidos, bem como a marca que caracteriza a escritura como voltada para o leitor norte-americano, como no fragmento eliminado pelos editores em que Bishop compara os hippies americanos aos brasileiros: 51 […] The “ippies”; they almost pronounce it “wrippies” … or “whippies” – although there really aren’t so many of them, and they are rather different from the U S ones. Here they are rich children, not middle class (Box 47.1, #54)38. A comparação é um recurso constantemente usado por Bishop, e através dela são criadas categorias que equivalem a estabelecer uma relação de positividade ou negatividade, a partir de um paradigma arquivado na memória. É por isso que, muitas vezes, as convenções compartilhadas “[...] parecem ditar a direção e o expediente iniciais, com os quais o grupo tenta se acertar com o não-familiar” (MOSCOVICI, 2003, p. 57). Uma das maneiras de fortalecer o pensamento eurocêntrico é quando se estabelecem comparações entre culturas, ou quando a cultura do Outro é lida, compreendida e representada através de textos que a retratam de forma estigmatizante. Encontramos frequentemente nos manuscritos de Bishop referências textuais de autores da literatura de viagem, como Maria Graham. Supomos que fosse sua intenção reproduzir no livro tais trechos destacados em seus rascunhos: “the women, are less pure here than in Europe “The family attachments here are quite beautiful; they are as close and intimate as those of clanship in Scotland: but they have their their inconveniences in the constant intermarriages between near relations, as uncles with their nieces, aunts with their nephews, etc; […] Makes gentle fun of the odd carriages displayed – “a curious collection for a museum in London or Paris” Some were the indescribable sort of caleche used here; (BOX 47.1, #38, grifos nossos)39. O modelo usado como parâmetro por Maria Graham é a cultura européia; a autora percebe na mulher brasileira certa impureza, se comparadas às mulheres nórdicas. Admira a beleza das uniões familiares assemelhadas aos clãs escoceses, mas que, no entanto, mantêm inconveniências, como os casamentos entre parentes próximos. A comparação parece ser um recurso quase que inevitável quando se descreve a cultura do Outro. De maneira semelhante, Bishop acionará o mesmo dispositivo imagético para estabelecer uma relação de sentido entre culturas. 38 […] Os “ippies”; eles quase pronunciam “wrippies” … ou “whippies” – embora realmente não haja muitos deles, são bastante diferentes dos hippies dos EUA. Aqui eles são crianças ricas, e não de classe média. 39 “as mulheres são menos puras aqui do que na Europa “Os laços familiares aqui são bem bonitos; eles são tão próximos e íntimos como aqueles clãs na Escócia: mas eles têm as suas inconveniências nas constantes interrelações matrimoniais entre parentes próximos, como tios com suas sobrinhas, tias com seus sobrinhos, etc.; […] Gentilmente fazem graça das estranhas carroças expostas – “uma coleção curiosa para um museu como o de Londres ou de Paris”. Alguns tinham um tipo indescritível de coberturas {das carroças} usadas aqui; 52 Em relação à localização espacial, Maria Graham usa o advérbio de lugar aqui, palavra que indica proximidade do sujeito ao objeto representado. Igualmente, a palavra here (aqui) aparece no texto de Bishop como uma referência que a posiciona no espaço do Outro. Friends of mine were here on a Sunday and went home again, to the next nearest large city. In their Volkswagon they had a tape-recorder, and they were z searched at the barreira, and their Volkswagon they had a tape-recorder. They were imprisioned in the little building of the police for almost five hours. The police played the tape recording over and over and found nothing but music finding nothing but music, fortunately (Box 47.1, #53, grifos nossos)40. A influência que o imaginário coletivo do grupo de origem exerce sobre Bishop faz com que, mesmo com a permanência no Brasil, ela seja capaz de continuar mantendo o olhar de quem observa de longe. No entanto, o emprego do advérbio de lugar – here – funciona como estratégia linguística que realça sua presença no país, o que acaba dotando o texto de credibilidade (já que o fato de estar próxima sugere maior conhecimento do objeto representado). Se fisicamente Bishop está inserida no espaço brasileiro, o mesmo não acontece no campo simbólico. Alguns dos temas são desenvolvidos com base no que outros autores da literatura de viagem dizem. A beleza da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, é reforçada por citações dos escritos de Darwin e Maria Graham, que são usados como parâmetro. Bishop cita textualmente um trecho retirado do Journal of a Voyage to Brazil (Diário de uma viagem ao Brasil) da escritora britânica Maria Graham (1785-0842): Maria Graham: Rio de Janeiro, Saturday, December 15th, 1821 (p. 150) “Nothing that I have ever seen is comparable in beauty to this bay. Naples, the Firth of Forth, Bombay Harbour and Trincomalee, each if which I thought perfect in their beauty, all must yield to this, which surpasses each in its different way. Lofty mountains, rocks of clustered columns, luxuriant wood, bright flowery islands, green bacnks. all mixed with white buildings; each little eminence or crowded with its church or fort; ships at anchor or in motion; and innumerable boats flitting about in such a delicious climate, - combine torender Rio de Janeiro the most enchanting scene that imagination can conceive. We anchored first close to a small island, called Villgagnon, about two miles from the entrance of the harbour . (Box 47.1, #37)41. 40 Meus amigos estavam aqui num domingo e foram embora de novo, para a cidade grande mais próxima. No Volkswagen deles, tinha um gravador de fitas, e eles foram parados pela barreira, e no Volkswagen eles tinham um gravador de fitas. Eles ficaram presos no prediozinho da polícia por quase cinco horas. A polícia ouviu a gravação da fita repetidas vezes e não encontrou nada, somente música, felizmente. 41 Maria Graham: Rio de Janeiro, Sábado, 15 de dezembro, 1821 (p. 150) ‘Nada do que eu já vi pode ser comparado em beleza a essa baía. Nápoles, o Fiordo de Forth {nome de um rio da Escócia}, Porto de Bombai e Trincomalee, cada uma das quais eu achava perfeita em suas belezas, todas devem se render a esta, pois supera cada uma em sua maneira diferente. Montanhas majestosas, rochas de colunas apinhadas, bosques suntuosos, ilhas floridas iluminadas, margens verdes. Tudo misturado com construções brancas; cada pequena eminência está povoada com igrejas ou fortes; barcos ancorados ou em movimento; e inumeráveis barcos 53 Transcreve, em seguida, um trecho de Darwin (1809-1882), The voyage of the Beagle: Darwin’s “The voyage of the Beagle” – Rio, april 4th to July 5th, 1832 p 28 (also look up that book of LETTERS???) “Everyone has heard of y e beauty of the scenery near Botafogo. The house in which I lived was seated close beneath the well-known mountain of the Corcovado. It has been remarked, with much truth, that abruptly conical hills are characteristic of the formation which Humboldt designates as gneiss-granite. Nothing can be more striking than the effect of these huge rounded masses of naked rock rising out of the most luxuriant vegetation. ‘I was often interested in watching the clouds, which, rolling in form seaward, formed a bank just beneath the highest point of the Corcovado. This mt. when like most others, when thus partly veiled, appeared to rise to a far prouder elevation than its real height of 2300 feet. (quote this – p 28 about clouds??)’ (Box 47.1, #39)42. As ideias contidas na literatura de viagem influenciam o modo de Bishop ver o país e, consequentemente, sua escritura sobre este espaço. Em busca de uma investigação dos mecanismos usados na escolha do que deve ser representado, observamos que há ênfase nos aspectos culturais e no modo de pensar do brasileiro. Os manuscritos constroem uma narrativa que intenta apresentar-se como objetiva, mas que, muitas vezes, expõem a forte presença da figura da autora com marcas de experiências pessoais. Por destoarem do modelo proposto, a imagem geradora dos textos é possivelmente experimentada com certo estranhamento, como podemos notar quando Bishop trata do modo como o brasileiro lida com o poder: the average man feels – wrongly perhaps – remoted from the president – and powerless – here any member of the “intellectuals” lawyer or doctor etc – can do something if he wants to – or think he could – and the result is chaotic – newspapers can call people lairs, report wild […] – There are good papers – BUT – (Box 47.1, #8)43. flutuando em um clima tão delicioso, - combinação que presenteia o Rio de Janeiro com a mais encantadora cena que a imaginação pode conceber. Primeiro, nós ancoramos perto de um pequena ilha, chamada Villegagnon, aproximadamente duas milhas da entrada do porto’. 42 O livro “Viagem do Beagle” de Darwin – Rio, 4 de abril a 5 de julho de 1832 p 28 (também olhar aquele livro de CARTAS???) “Todos já ouviram falar da beleza do cenário próximo a Botafogo. A casa em que eu vivi ficava perto da famosa montanha do Corcovado. Foi bastante ressaltado, e é verdade, que as montanhas abruptamente cônicas são uma característica da formação a qual Humboldt designa de granito gnaisses. Nada pode ser mais notável que o efeito dessas enormes massas redondas de rochas que afloram da vegetação mais densa. ‘Eu sempre estive interessado em observar as nuvens que, movendo-se em direção ao mar, se aglomeram logo abaixo do ponto mais alto do Corcovado. Essa montanha, assim como muitas outras, quando está parcialmente escondida, parece muito mais alta que seu tamanho real de 710 metros. (citar isto – p 28 sobre nuvens??)’. 43 o homem médio se sente – de forma errada, talvez – afastado do presidente – e sem poderes – aqui qualquer membro dos “intelectuais” advogado ou médico etc. – pode fazer algo se quiser – ou pensa que pode – e o resultado é caótico – os jornais podem referir-se às pessoas como mentirosas, reportar o selvagem […] – Existem bons jornais – MAS – 54 Enquanto o homem médio sente-se distanciado do poder (que é, no texto, representado pela figura do presidente) e pensa que não pode fazer muito para modificar o status quo, os intelectuais assumem a postura de quem detêm poderes suficientes para tomar qualquer atitude. Os hábitos, pensamentos e costumes locais ganham destaque à medida que Bishop os vivencia como choques culturais. Parece necessário que a alteridade seja representada para que a constituição do sujeito se efetive. Segundo Bakhtin, “[...] o homem não pode juntar a si mesmo num todo exterior relativamente concluído, porque vive a sua vida na categoria de seu eu [...]. É nesse sentido que o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, da sua visão e da sua memória” (BAKHTIN, 1997, p. 55). A representação do outro funciona como um mecanismo que permite à autora definir, por oposição, o próprio acabamento externo. Dessa forma, a diferença propicia a definição de uma imagem de si mesma. A busca pelo diferente faz com que Bishop desenvolva preferência por imagens do pobre e de seus problemas sociais. Em Brazil, faz considerações acerca da pobreza, imaginando explicações que poderiam ser elucidadas pelos campos político e científico, assim como indicia o fragmento: Ch VII – […] Although perhaps tampered with for political ends – nevertheless – a grim document of what life is like for millions here – food, food food – a little love – and atteptx at cleanliness – that personal cleanliness love of children – etc – A lack of feeling, or just embarrassment? It is best to go slow, to ask why, to ask CAN’T this again be explained poverty by a lightly guilty co science – by But it she be requires reading one feels – and yet – if it doesn’t work (Cruelty) –‘ (Box 47.1, #6)44. Bishop demonstra certo incômodo em relação ao pouco entendimento acerca dos modos de viver e de pensar do brasileiro. Aponta para a necessidade de abordagem do tema pelo viés social e político. Quando sente dificuldade de explicar um fenômeno considerado tão complexo, alerta o leitor para não tirar conclusões precipitadas (to go slow), e assim, procura entender a temática através de abordagens diversas, inclusive a científica. Somente é possível para Bishop construir imagens de Brasil na medida em que é capaz de acionar um sistema de representações já arraigado em sua mente. Parece que a sensibilidade artística se aguça mais ao observar o que salta aos olhos como novidade, em oposição ao familiar. O Outro se apresenta como esteticamente necessário, na medida em que 44 Ch VII – […] Embora talvez alterado por motivos políticos – no entanto – um / documento deprimente do que é a vida para milhões aqui – alimento, alimento, alimento – / um pouco de amor – e tentativas de limpeza – / aquela limpeza pessoal e amor às crianças – etc. – Uma falta de sentimento, ou apenas vergonha? / É melhor ir devagar, perguntar porquê, perguntar {por que} isso NÃO PODE de novo ser explicado / pobreza por uma cociência claramente culpada – Mas por isso ela requer / leitura – e ainda – se isso não funcionar (Crueldade) –‘. 55 desperta o interesse da observadora para uma vida que lhe é inacessível. Segundo Bakhtin (1997), o observador só pode entrar em contato com as fronteiras do outro. Nesse sentido, podemos imaginar que Bishop intenta captar imagens da diferença a partir de múltiplas perspectivas: ao mesmo tempo em que se posiciona como sujeito que direciona o discurso para norte-americanos (e, neste momento, aciona imagens mentais presentes na memória coletiva de seu grupo), marca também sua localização espacial em território brasileiro, o que acaba lhe conferindo autoridade para atuar como porta-voz dessa cultura e desse povo em seu país de origem. 3.2 Rabiscando Brazil Passada a insatisfação com a publicação do livro Brazil pela Time-Life, Bishop mantém desejo de escrever o livro que se intitularia Black Beans and Diamonds (Feijão Preto e Diamantes, título previamente idealizado para a tradução de O diário de Helena Morley) ou Brazil-Brasil: a Scrapbook (Brazil-Brasil: um álbum de recortes). A ideia era montá-lo com fotografias tiradas pela própria autora, memórias, estórias de vida, contos, lugares, música popular, aspectos que preencheriam aproximadamente 400 ou 500 páginas. Os textos da viagem à Amazônia e ao Rio São Francisco, no início da década de 1960, assim como os contos To the Botequim & Back (Ida e volta ao botequim) e A Trip to Vigia (Uma viagem à Vigia) seriam também acrescentados. A ideia era escrever algo diferente e original, como menciona ao amigo Robert Lowell, em 1965: Se você puder – eu sei que você está em Maine – você poderia dizer que EU QUERO UMA [bolsa] (desesperadamente, mas não mencione isso!). Isto se encaixa muito bem em um esquema no qual tenho trabalhado ultimamente – eu não tenho tempo de entrar em detalhes agora, mas eu quero juntar os textos em um livro – fragmentos de prosa sobre o Brasil – e para isso eu tenho que fazer muitas viagens de avião e barco que são bastante caras. Eu penso em escrever sobre a América do Sul – e o Brasil – prática que tem tristemente declinado desde os tempos dos grandes naturalistas […] eu já tenho três partes mais ou menos prontas – comecei antes mesmo de saber [da bolsa] dos Rockefellers. – Minha ideia é misturar lugares, umas poucas estórias de vida, contos mais ou menos, provavelmente uma parte sobre Aleijadinho – talvez música popular, etc. – e os lugares serão aqueles aonde os jornalistas não vão, ou vão raramente – onde a vida é praticamente inalterada, mas que certamente mudará muito rápido em breve. Eu devo tentar fazer tudo isso, é claro, na mais bela prosa imaginável – e com fotografias – e para isso terei que comprar uma nova câmera; - & os filmes estão muito caros agora, etc. […] até então eu estou usando o [...] título antigo que eu queria antes: FEIJÃO PRETO E DIAMANTES; (provisoriamente). (BISHOP apud PROSSER, 2005, p. 143-144, tradução nossa). 56 Como ressalta a própria autora, ela não estava escrevendo o texto especificamente para os Rockefellers, já que vinha trabalhando no projeto mesmo antes de ter conhecimento sobre a bolsa. Seu interesse era revelar um Brasil ainda não conhecido, retratando os lugares mais remotos, “[...] aonde os jornalistas não vão, ou vão raramente – onde a vida é praticamente inalterada, mas que certamente mudará muito rápido em breve”. Para Bishop, escrever um livro de viagens sobre o Brasil é uma forma de agradecer a hospitalidade do povo brasileiro. Trata-se de um registro de experiências de viagem no qual a relação intersubjetiva da autora com o texto fica explícita desde a nota de introdução, onde descreve o primeiro contato com a nova terra e expõe suas primeiras impressões: Introductory note I arrived in Brazil in late November, 1951. I came on a Norwegian freighter, 14 days out of Brooklyn and [arri] reached Santos late one night. The Capitan had told me that would smell coffee twenty miles out at sea, and he was right; we smelled it all the afternoon before we entered the harbor. There were twenty six freighters waiting there to be loaded with coffee beans. [That whole fir] Almost the whole or that first night I sat up on the [deck] top deck watching the motions of freighters, the play of lights, sweeping search-lights, ships’ lights going to and fro, large and small craft of all sorts. It was a kind of water-ballet mysterious and [rather] beautiful, because nothing could be made out distinctly. In the morning light I was surprised by the comparative meanness and simplicity of the scene that had appeared so wild and strange at midnight. I went on to Sao Paulo where I spent two or three lost and lonely days in a constant rainstorm, and then on by train to Rio, as I tell in the first chapter of this book. I was visiting friends in Rio de J and Petropolis, and so that I stayed on for sixteen or seventeen years. This [collection] random collection of stories (true stories, mostly travel sketches, essays, poems, and a selection [of the] selections from the hundreds of newspaper clippings I saved over [il] years, is [il] a thank-you note for the hospitality I enjoyed, to the friends I made and lost made To me, it was and is an endlessly fascinating country, like none other on the globe, and I was lucky to spend most of these years in the company of Brazilians and to see society from a double point of view – perhaps in that way [with more three dimensionally] than a traveler or tourist would have seen it, or the Brazilians themselves. People, people, including the magnificently [interes] interesting servants; pets, exotic or as familiar as the canary – & lived on roast bife sandwiches, coffee, and Coca Cola, the only things I could pronounce the names of intelligibly – (Box 47.1, #65)45. 45 Introductory note Eu cheguei ao Brasil no fim de novembro de 1951. Eu vim em um cargueiro norueguês. 14 dias depois da saída de Brooklyn, cheguei a Santos tarde da noite. O capitão havia me falado que sentiríamos o cheio de café a vinte milhas do mar, e ele estava certo; nós cheiramos café a tarde toda antes de entrar no porto. Havia vinte e seis cargueiros esperando para serem abastecidos com os grãos de café. [Todo aquele [il]] Quase toda ou aquela primeira noite eu sentei no [convés] convés superior {e fiquei} observando o movimento dos cargueiros, o jogo de luzes, luzes que varriam o mar, as luzes do navio de lá pra cá, barcos grandes e pequenos de todos os tipos. Era um tipo de balé aquático misterioso e [um tanto] belo, porque nada poderia destacar-se tão distintamente. Na luz da manhã eu me surpreendi com uma cena um tanto comum e simples, que me pareceu tão selvagem e estranha à meia-noite. Eu fui para São Paulo onde passei dois ou três dias perdidos e solitários; estava chovendo muito, e então fui de trem para o Rio, assim como conto no primeiro capítulo deste livro. Eu estava visitando amigos no Rio de J. e 57 Ainda na nota de introdução, menciona que a primeira coisa com a qual entra em contato, mesmo antes de pisar em terra firme, é com o cheiro forte do café. Essa imagem vai acompanhá-la sempre que se predispuser a falar de Brasil. Trata-se de uma imagem usada em um poema não publicado, possivelmente escrito em decorrência do suicídio da companheira brasileira Lota de Macedo Soares, acontecimento que leva a autora a se afastar do Brasil e abandonar o projeto de escritura do tão sonhado livro de viagens. Perhaps for the tenth time [today] already and still early morning I wake up it’s like waking wake and go under the black wave of [your death] …………….. the smell of the earth, the smell of the black-roasted coffee as fine as fine humus as black no coffee can wake you no coffee can wake you no coffee can wake you. (BISHOP apud PROSSER, 2005, p. 159)46. O café, com cheiro forte e agradável, ativa-lhe o olfato como uma espécie de boas vindas na chegada ao espaço brasileiro. O canal olfativo será novamente acionado no momento de dizer adeus. Com os sentidos sempre alerta, Bishop está pronta para experimentar as novas sensações que o ambiente exótico pode lhe proporcionar. Animais (The armadillo), comunidade ribeirinha (The riverman), filhos de posseiros (Squatter’s childrren), servos (Manuelzinho), modos de vida de comunidades diferentes da sua de origem (Under the window: Ouro Prêto), violência (The burglar of Babylon e Pink dog) e história (Brazil, January 1, 1502) são alguns temas brasileiros presentes nas poesias, os quais, repetidamente, se apresentam em cartas e na prosa. Seu Black Beans and Diamonds Petrópolis, e acabei permanecendo aqui por dezesseis ou dezessete anos. Essa [coleção] coleção fortuita de estórias (sic) (estórias verdadeiras, a maioria esboços de viagem, ensaios, poemas, e uma seleção [de] seleções de centenas de recortes de jornais que eu guardei por [il] anos, é [il] uma nota de muito-obrigada pela hospitalidade da qual desfrutei, aos amigos que fiz e perdi fiz Para mim, foi e ainda é um país interminavelmente fascinante, como nenhum outro no globo, e eu tive sorte de passar a maioria destes anos na companhia de brasileiros e de ver a sociedade de um duplo ponto de vista – talvez daquele jeito [mais tridimensional] que um viajante ou um turista o teria visto, ou os próprios brasileiros. Pessoas, pessoas, incluindo os [interessantes] servos magnificamente interessantes; animais de estimação, exóticos ou tão familiares como o canário – & vivi à base de sanduíches de bife assado, café, e Coca Cola, as únicas coisas que eu conseguia pronunciar os nomes inteligivelmente – 46 Talvez já pela décima vez [hoje] e ainda cedo, de manhã eu acordo. É como acordar acordar e ficar em baixo da chuva negra de [sua morte] …………….. o cheiro da terra, o cheiro do café preto torrado tão excelente quanto o húmus excelente quanto preto nenhum café pode te acordar nenhum café pode te acordar nenhum café pode te acordar. 58 seria uma representação de Brasil onde poderia reunir as imagens ‘coletadas’ ao longo dos anos de vivência em terras brasileiras. Em seu projeto de escritura, deparamo-nos também com recortes de jornais brasileiros. A autora acredita que, com o uso das próprias estórias e notícias brasileiras, seria capaz de apresentar um retrato mais legítimo do país. Encontramos trechos de O Globo, que são possivelmente usados com o intuito de reforçar a imagem dos Estados Unidos como país que desempenha papel protecionista em relação ao Brasil. CAMDE DISTRIBUTES COOKIES AND TEA (NORTH AMERICAN COOKIES AND TEA) IN THE SCHOOL OF ST; THOMAS AQUINAS (again in Old men’s home) (footnote about tea… in Brasil) (& how much do they export, etc..) To the delight of those who are only accustomed to having food alimento for food their school – lunches, CAMDE distributed yesterday in the School of St. Thomas Aquinas, in Copacabana, 159 packages of cookies and 200 bottles of instant tea, as part of the pêrto de Mão campaign, annually undertaken annually throughout the world by the U S. Navy. (??) Later this week innumerable institutions public and private institutions in Guanabara will be benefited by the north American donation, which will continue until July 23rd when two more ships of the U S Navy will arrive, bringing further donations, this time of medicines & clothes. Poverty The School of St. Thomas Aquinas, in Leme, is one of the few official establishments that bring together a great number of favelados, principally from the Hills of Chapéu-Mangueira (Hat-mango Tree?) and Babylon. The school has 959 students pupils in the primary course primary grade pupils and a great number of them have the school lunch as their only alimentation, they are so poor. Such is the state of poverty in which they find themselves.. The distribution of the donation of the U S N was noisy and very lively, the direct participation of some of the teachers being noticed, drawn by the flavor (sabor?) of the cookies, different in form and taste from those existing in Brasil. Part of the donation consisted, as well, of 30 boxes of chewing-gum, which will only be distributed on the occasion of children’s parties. While many schools forbid the pupils to chew chicles in the classrooms, to avoid that the naughtier ones stick gum to their note in their notebooks and carteiras and on the chairs where their colleagues will later sit down, those of the Navy were N A N were well-received by the school directors because they contain no sugar (?) and are recommended for the development of the arcada dentária. OTHERS BENEFITED Others Benefited Next to be benefited by the donation will be the Hospital of St. Zacharias, in Botafogo; the Immaculate Conception Orphanage, in Méier, and the Home for Minors St. Luis Gonzaga, in Campo Grande. This campaign is annually undertaken by the throughout the world by the U S N an was begun in 1964, when some N A officials suggested to their superiors that the products not used by the factories of their country (???) e given to underdeveloped and developing countries. 59 The idea was accepted without difficulty and has already been in practice four years. In Rio, the food stuffs are received by the Union Church, CMA A CAMDE undertaking the distribution to needy institutions (Box 47.1, #68)47. A atitude de puxar a brasa para os americanos e de ressaltar os benefícios que seu país poderia oferecer ao Brasil remonta a um imaginário de grupo, o qual reflete a ideologia norte-americana iniciada em começos do século XX com a política do big stick que, em 1933, com Franklin D. Roosevelt, transmuta-se na Política da Boa Vizinhança. Trata-se de estratégias políticas que visam manter a liderança norte-americana sobre as Américas com a minimização da influência européia, o que tornaria possível a estabilidade política do continente. As intervenções políticas estadunidenses naquele momento eram viabilizadas pela justificativa de que os países latino-americanos possuíam governos incapazes de manter a ordem, e dessa maneira necessitavam da ajuda de um país civilizado (MOURA, 1984). Quando Bishop diz no livro e também nos manuscritos frases como “[O Brasil] raramente quis mais terras, já que ele tem mais do que sabe o que fazer com elas” (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 15, tradução nossa), acaba revelando um eu nórdico, imperialista e colonizador que se revela sempre que o imaginário é acionado para falar do brasileiro. 47 CAMDE {Centro Acadêmico de Medicina Daniel Egg} DISTRIBUI BISCOITOS E CHÁ (BISCOITOS E CHÁ NORTE-AMERICANOS) NA ESCOLA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO (de novo na casa do senhor idoso) (nota de rodapé sobre o chá… no Brasil) (& quanto eles exportam, etc..) Para o gosto daqueles que estão apenas acostumados a ter comida alimento para suas escolas – lanches, CAMDE distribuiu ontem na Escola São Tomás de Aquino, em Copacabana, 159 pacotes de biscoitos e 200 garrafas de chá instantâneo, como parte da campanha Aperto de Mão, empreendida anualmente em todo o mundo pela marinha americana. (??) No final desta semana inúmeras instituições públicas e privadas na Guanabara serão beneficiadas pela doação norte-americana, que continuará até 23 de julho, quando mais dois navios da marinha americana chegarão, trazendo mais doações, desta vez com medicamentos & roupas. Pobreza A Escola São Tomás de Aquino, no Leme, é uma dos poucos estabelecimentos oficiais que reúne um grande número de favelados, principalmente dos morros do Chapéu-Mangueira e Babilônia. A escola tem 959 alunos no curso primário e um grande número deles tem o lanche da escola como única alimentação, eles são muito pobres. Tal é o estado de pobreza no qual eles se encontram. A distribuição da doação da marinha norte-americana foi barulhenta e muito animada; foi notável a participação direta de alguns dos professores, atraídos pelo sabor dos biscoitos que diferem na forma e no gosto daqueles existentes no Brasil. Parte da doação consistiu, também, de 30 caixas de chicletes, que apenas será distribuído na ocasião das festas das crianças. Enquanto que muitas escolas proíbem os alunos de mascar chicletes nas salas de aula, para evitar que os mais travessos colem o chiclete às suas notas nos cadernos e carteiras e nas cadeiras onde seus colegas irão depois sentar, os da marinha foram [il] bem recebidos pelos diretores da escola porque eles não contém açúcar (?) e são recomendados para o desenvolvimento da arcada dentária. OUTROS BENEFICIADOS Outros beneficiados O próximo a ser beneficiado com doações será o Hospital de São Zacharias, em Botafogo; O Orfanato da Imaculada Conceição, no Méier, e Lar dos Menores São Luis Gonzaga, no Campo Grande. Essa campanha é anualmente empreendida por todo o mundo pela marinha americana e começou em 1964, quando alguns oficiais sugeriram a seus superiores que os produtos não usados pelas fábricas de seu país (???) seja dado aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. A ideia foi aceita sem dificuldade e já está sendo prática há quatro anos. No Rio, o alimento é recebido por um grupo da igreja, CAMDE, que se responsabiliza por distribuí-la para instituições necessitadas. 60 Ainda impregnada por essa ideologia, Bishop, por vezes, deixa escapar a postura de quem incorpora o mesmo papel protetor assumido pelos Estados Unidos, e acaba adotando a postura re-colonizadora. Como afirma Homi Bhabha (2007), a identidade colonial surge através do contato entre colonizador e colonizado. Impregnada de sentimentos ambivalentes, a imagem estereotipada carrega em si tanto o desprezo quanto o desejo, negação e identificação com o Outro. Quando o colonizado é retratado como um ‘desajustado’, o colonizador assume uma posição de superioridade, atitude que revela um afastamento estratégico, talvez um temor de se tornar nativo. Pavor e desejo aparecem como pares inseparáveis porque o colonizador deseja ver-se a partir do lugar do colonizado; é através do olhar do Outro que sua superioridade é assegurada. Esta duplicidade faz com que colonizador e colonizado estejam enredados nessa ambivalência, um misto de temor e desejo, agressividade e narcisismo. Para Bhabha, o discurso colonial produz conhecimentos sobre os dois sujeitos coloniais. Os estereótipos teriam então sua eficácia através de outro conceito usado pelo autor, o da fixação. Nessa perspectiva, o Outro se apresenta como imutável e conhecido, imobilizado nas redes do estereótipo, que regido pela ansiedade e contradição, constitui-se em artifício para controlar o ambiente, fazendo com que o colonizador experimente de novo a sensação de poder e controle. A ambivalência confere ao estereótipo o poder de circulação, pois não podendo ser provado ou demonstrado, é um discurso que deve ser repetido continuamente. Sua legitimação se dá através da repetição. Nos manuscritos do livro Brazil, encontramos alguns textos que apontam para a ideia que a autora tem de Brasil, um país subdesenvolvido, violento, corrupto. Trata-se de mais uma tradução de recorte de jornal que aborda fatos isolados sobre os quais, novamente, Bishop generaliza e apresenta como a realidade brasileira: PM MILITARY POLICE SHOOTS COLONEL IN MACEIO The soldier Everaldo Borges Jr. yesterday hit with two shots of his gun the commandant of the M P of Alagoas. colonel Adauto Gomes Barbosa, who was hospitalized in a grave state, while the criminal was taken prisioner by Colonel Floriano Guedes, at 500 meters from the scene of the crime. On entering the barracks of the MP. colonel A G B noticed that the sentinel, the soldier E B Jr, was wearing “Hawian” slippers. * Reprimanding him severely, he ordered that he hin to go put on his coturnos (?) The soldier went to his dormitory and on the return he shot at the commandant three times, only two of the bullets finding their mark. * Rubber sandals of rubber, flat soles and two rubber thongs, that have almost taken over as the solde footwear of the p lower classes. The thongs wear out before the 61 soles, and bunches of them tied together with a string, usually in pale blue, can be seen at any market (Box 47.1, #64)48. Ao reportar acontecimentos situados em um contexto militar, a ênfase recai na indisciplina e na subversão. Lê-se a imagem não apenas como um relato, mas como testemunho da outridade e da diferença. O ato de interpretar, assim como afirma Hall (2003), constitui uma preocupação constante para os etnicamente diferentes. O trecho acima acaba realçando estereótipos que reforçam a ideia primeira de Bishop – retratar o Brasil através de seus paradoxos: povo pacífico e ingênuo, mas que pode tornar-se rebelde e oportunista. Suas representações, no geral, oscilam entre pólos opostos; no entanto, quando volta à terra natal, a visão que leva do brasileiro está totalmente dominada pela negatividade. O Brasil torna-se um lugar impossível para uma pessoa honesta viver (BISHOP, 1995), assim como menciona em diversas cartas a amigos, no momento em que decide voltar ao país de origem. O olhar de Bishop orienta-se para ver o que outros viram em um contexto diferente. Para Hall (1997), esse modo de representação reforça a imagem do exótico. O teórico chama atenção para o fato de que as imagens não significam por si próprias. Elas vão acumulando significados. Ao tratar da representação da diferença, ele aponta para a repetição de figuras e práticas representativas que não se alteram, mas que ganham variações. Assim, a construção de imagens aparentemente novas fortalece o sentido compartilhado por um grupo, pois é montada com base em uma técnica chamada por Hall de intertextualidade. Essa estratégia é capaz de fazer acumular significados, os quais também servirão de parâmetro para a maneira como o brasileiro representa a si próprio. Sobre isso, Ettore Finazzi-Agrò (1991, p. 55) afirma: [...] quando a classe intelectual brasileira tenta se descrever, faz isso ficando inscrita, durante séculos, em uma perspectiva alheia, sem conseguir sair daquela diferença imposta do exterior e dentro da qual fracassam todas as tentativas de transformar em positivo o que se dá, naturalmente, como negatividade em ato. 48 POLÍCIA MILITAR PM ATIRA EM CORONEL EM MACEIÓ Ontem o soldado Everaldo Borges Jr. acertou com dois tiros o comandante da PM de Alagoas. O coronel Adauto Gomes Barbosa ficou hospitalizado em estado grave e o criminoso foi preso pelo Coronel Floriano Guedes, a 500 metros da cena do crime. Ao adentrar o quartel da PM, o coronel A. G. B. notou que o sentinela, o soldado E. B. Jr., estava usando sandálias “Havaianas”. * Reprimindo-o severamente, ordenou que ele fosse colocar seus coturnos (?). O soldado foi ao dormitório e, na volta, atirou no comandante três vezes, mas apenas duas das balas acertou o alvo. * Sandálias de borracha, sola plana e duas alças de borracha, que foi quase assumida como o calçado das classes baixas. As alças desgastam antes dos solados, e muitas delas, penduradas em uma corda, geralmente de cor azul claro, podem ser vistas em qualquer mercado. 62 Segundo a pesquisadora, o modo dos intelectuais brasileiros acessarem sua especificidade se dá a partir da imaginação alheia. Talvez seja mais uma das razões pelas quais o brasileiro se sinta um tanto incomodado com a forma como ele é representado pelo estrangeiro. Para analisar a representação elaborada por Elizabeth Bishop, destacamos nas seguintes subseções algumas observações de textos que versam sobre o povo e o espaço do Outro (focalizando o que se apresenta como diferenças marcantes para a autora). Estes dois elementos nos chamam a atenção, pois em seus escritos, a classe alta brasileira é representada com certa antipatia, enquanto que as classes populares são exploradas a partir de uma suposta proximidade com o natural, o que faz a autora despertar interesse maior por expressões culturais a eles relacionadas. Partindo dos rascunhos de Brazil, observamos que o modo de olhar a cultura do Outro pode, muitas vezes, revelar imagens de si, pois como nos alerta Clifford e Marcus (1986, p. 24-25), “[...] os temas explorados em relação à cultura também refletem na exploração do eu, pois em cada versão do Outro há uma construção de si mesmo”. 3.2.1 O Outro A noção de povo está associada de maneira muito próxima aos conceitos de nação e nacionalidade. O grupo de pessoas que se reconhece como pertencente a um mesmo território mantém ligação não somente promovida pelo compartilhamento do território, mas também pela circulação de discursos de nação presentes nas mais diversas manifestações culturais. A temática da identidade evoca, inevitavelmente, a ideia de chão e terra, mas também de textos, imagens e discursos. Daí Benedict Anderson (2005, p. 25) propor o conceito de comunidade imaginada: “É imaginada porque até os membros da mais pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem da sua comunhão”. Torna-se relevante recuperar a noção de comunidade imaginada no contexto desta pesquisa porque, ao estudarmos a representação de Brasil elaborada por uma poeta norteamericana, identificamos uma indecisão na maneira de representar o povo, o que a faz recorrer ao imaginário formatado pela cultura de origem. O quadro referencial que conforma o pensamento de Bishop está nitidamente sintonizado com os modos e vida do hemisfério norte. Nas palavras de Todorov (1993, p. 21), 63 [...] o eurocêntrico é, por assim dizer, a caricatura natural do universalista: este, em sua aspiração ao universal, parte de um particular que se empenha em generalizar; e tal particular deve forçosamente lhe ser familiar, quer dizer, na prática, encontrar-se em sua cultura [...] O eurocêntrico segue a linha do menor esforço e procede de maneira não crítica: crê que seus valores são os valores e isso lhe basta; nunca busca verdadeiramente prová-lo. O privilégio concedido às culturas do norte está presente em várias passagens do livro Brazil, principalmente quando a autora aciona estratégias de comparação. Implicitamente, o eurocentrismo de Bishop revela-se sempre que a cultura do Outro é pensada a partir de um modelo. Nessa direção, Patrícia Dwyer afirma: Na publicação Brazil, da Time/Life, Bishop claramente se coloca distanciada da cultura brasileira que ela descreve: seu capítulo de abertura intitulado This warm and reasonable people implicitamente compara o Brasil ao mundo europeu ou estadunidense. Às vezes, Bishop descreve o Brasil como um país atrasado onde grandes recursos são desperdiçados. [...] Enquanto é verdade que Bishop despreza o projeto da Time Life, professando que ‘o que os editores sabiam sobre o Brasil caberia na cabeça de um alfinete’, suas próprias cartas expressam algumas das tendências de compartimentalizar e estabelecer hierarquias, nas quais a Europa ou América representam normas consideradas mais aceitáveis (DWYER, 2002, p. 75, tradução nossa). A classe alta brasileira, representante de uma cultura mais próxima da conhecida por Bishop, é retratada em Brazil em comparação à cultura européia e norte-americana. No que diz respeito ao modo de construção do texto, notamos uma imagem geradora materializada em um amontoado de ideias que refletem momentos nos quais flashes das informações chegam à mente da autora. Os vetores de sentido fazem com que cada uma das ideias fragmentadas seja expandida, obedecendo à coerência de ordenação do texto. Forma e sequência lógica despontam do aparente caos inerente ao satus nascendi, como destacamos a seguir: Ch 8 – Women – some aren’t very nice t their servants to this day – incredible old-fashioned frivolity and futility of the gran finos who live for clothes, the “ten best dressed women” (and man) the new social columnists – and the new cafe society – the dreary night clubs – And the ignorance of those who know only Rio or São Paulo, Paris London & N Y – which is a recent addiction, as well – But they are the same everywhere more or less – Comeback saying “this is no country for civilized people to live in” etc etc etc – […] (Box 47.1, #4)49. facts – no partial knowledge – the name of things, how-to-do things – 49 Ch 8 – Mulheres – algumas não são muito boas com seus servos atualmente – inacreditável frivolidade e futilidade fora de moda dos granfinos que vivem para comprar roupas, as ‘dez mulheres mais bem-vestidas’ (e homem) os novos colunistas sociais – e a nova sociedade do café – os night clubs deprimentes – E a ignorância daqueles que conhecem apenas o Rio ou São Paulo, Paris, Londres & Nova Iorque – que é uma mania recente, também – eles são o mesmo em qualquer lugar mais ou menos – Voltam dizendo ‘isso não é país para gente civilizada viver’ etc. etc. etc. – […] 64 know-how- the helplessness of those who have never carried a bg bag, cooked a meal, been without – polished their own shoes – they make fun of the US system of having even “ruch boys” take jobs girls working etc – and yet – and yet – There are great expectations of course – but one feel so much waste – among women – educated boys – no skill no hobbies no obsessions – and yet exceptions – but one feels a strange lack of observation – the close observation that leads to art – (Box 47.1, #7)50. Parece que as versões iniciais carregam em cada fragmento a energia condensada em uma frase, para depois ser expandida com o desenvolvimento da escrita. A autora trata, nesse fragmento, sobre os conhecimentos parciais dos brasileiros e a inércia dos que têm aversão ao trabalho (principalmente ao trabalho com as próprias mãos). Retrata a mulher de classe alta e as crianças que não incorporam habilidades (o que Bishop justifica como consequência da total inatividade das mesmas). Essas temáticas vão ser desmembradas, aparecendo na versão publicada da seguinte maneira: Some of them insist that they are happier than North American women – but that is usually after they have visited the United States and seen how American women do so much of their own work without servants, take care of their own children, support themselves, or are otherwise rushed and harassed (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 117)51. Ao comparar a mulher norte-americana com a brasileira, mais uma vez remete à questão da preguiça, estereótipo difundido pelos primeiros viajantes no Brasil para caracterização dos negros escravizados – visão que ainda permanece nos dias atuais, tanto no âmbito nacional, como internacionalmente. Bishop mostra que a mulher brasileira, depois de visitar os Estados Unidos, se julga mais feliz que a americana por não precisar realizar trabalhos domésticos, os quais, em sua concepção, seriam a ela designados. A preguiça aparece em muitos escritos como um traço marcadamente brasileiro, e no livro Brazil, manifesta-se como aversão ao trabalho. A isto, a autora contrapõe a disposição americana para a atividade, mais uma vez aludindo ao par dicotômico progresso e subdesenvolvimento: The upper-class Brazilian who visits the bustling North American continent cannot understand why there is so much eagerness for work. A rich boy mowing the lawn? 50 fatos – nenhum conhecimento parcial – o nome das coisas, como fazer coisas – conhecimento – a inutilidade daqueles que nunca carregaram uma sacola, cozinharam uma refeição, estiveram sem – poliram seus próprios sapatos – eles fazem gozação do sistema americano em que mesmo os ‘garotos ricos’ trabalham garotas trabalhando etc. – e ainda –Existem grandes expectativas, é claro, – mas se sente tanto desperdício – entre mulheres – garotos educados – nenhuma habilidade, nenhum hobbie, nenhuma obsessão – e ainda exceções – mas se sente uma estranha falta de observação – a observação cuidada que conduz à arte –. 51 Algumas delas {mulheres brasileiras} insistem que são mais felizes que as mulheres norte americanas – mas isso frequentemente acontece depois que elas visitam os Estados Unidos e vêem como as mulheres americanas realizam muito de seus próprios trabalhos sem servos, cuidam de seus próprios filhos, se sustentam, ou são, sob outros aspectos, apressadas ou preocupadas. 65 More romanticism! A lifetime government job, white-colar work, or preferably no work at all, is the poor man’s dream. A shabby, sickly Bill collector, Who can barely support his wife and six children, but Who proudly carries a brief case and wears two fountain pens in his pocket, Will tremble with rage IF his position in society is misunderstood: ‘I? – Everyone knows I have never worked with my hands in my life!’ (Box 47.1, #12) (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 14)52. O Outro é caracterizado por meio de traços negativos, o que gera um retrato estigmatizante e estereotipado. Na contemporaneidade, pesquisadores da cultura classificam tais imagens como mitos. Por isso, a preguiça deve ser lida como estereótipo submetido a um lento processo de construção a serviço dos interesses dominantes. Trata-se de um rótulo empregado para classificar primeiramente o trabalhador nativo, depois o negro escravizado, e que, com o passar dos anos, é redirecionado para algumas regiões brasileiras ou ainda, no âmbito internacional, para o país inteiro (Costa, 2005, p. 1-2) Esses mitos provindos de uma tradição ibérica chegam ao Brasil e se fortalecem principalmente porque os próprios sujeitos que sofrem a discriminação acabam por aceitá-los; nesse processo, as imagens preconceituosas servem de elemento de identificação. São construções que funcionam como estratégias discursivas a serviço de um grupo dominante, com objetivo de excluir o Outro – sujeito que incomoda e ameaça – tanto no plano material como no simbólico (COSTA, 2005). Bishop lê Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e indica o livro em uma lista bibliográfica, onde reúne os títulos estudados. Ao discorrer sobre o legado cultural do período colonial no Brasil, o historiador revela que o modo brasileiro de relacionar-se com o trabalho é mais uma das tantas heranças ibéricas. Evidencia que “[...] o trabalho mental, que não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efeito, uma ocupação em todos os sentidos digna de antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros” (HOLANDA, 2003, p. 83). A longa permanência do sistema escravocrata no Brasil é o principal fator que faz disseminar a noção de trabalho pesado como tarefa a ser realizada por escravos. Uma concepção difunda e enraizada por mais de três séculos e que, com o fim da escravidão, não é imediatamente erradicada. Trata-se, como nos lembra Holanda, de um sistema cultural transplantado para o Brasil, que embora tenha se aclimatado ao novo espaço, preservou muitos traços da cultura ibérica. O percurso histórico de cada território influencia, de certa 52 Os brasileiros de classe média que visitam o apressado continente norte americano não conseguem entender porque há tanta ânsia pelo trabalho. Um garoto rico cortando a grama? Mais romantismo! Um emprego governamental perene, trabalho de colarinho-branco, ou preferencialmente nenhum trabalho, é o sonho do homem pobre. Um carteiro doente e mal vestido que mal pode sustentar sua esposa e os seis filhos, mas que orgulhosamente carrega consigo uma pasta e usa duas canetas fountain no bolso, irá morrer de raiva se interpretarem mal sua posição na sociedade: ‘Eu? todos sabem que eu nunca trabalhei com minhas mãos na vida!’ 66 forma, no modo de ser, pensar e agir de um povo. O Brasil, marcado por um longo período de escravidão, caracterizou-se como colônia de exploração (diferentemente dos Estados Unidos, colônia de povoamento). Isso constitui um fator decisivo no modo de lidar com o trabalho que exige esforço físico. Retomando as concepções elaboradas por Ângela Arruda, o traço ressaltado no Outro pode, por vezes, espelhar algo desagradável presente no próprio sujeito, de difícil aceitação ou superação. É assim que, ao recuperar a relação de Bishop com o trabalho, percebemos que sua trajetória está permeada por períodos de atividade e inatividade, assim como relata em carta aos amigos Kit e Ilse Barker, em outubro de 1952: [...] Para minha grande surpresa – acho que há uns dez anos que eu não conseguia terminar um conto –, de repente comecei a escrever vários, já acabei três – e dois estão por terminar [...] O livro de poemas, A cold spring, deve sair mesmo na próxima primavera. Mas é uma maravilha a gente conseguir trabalhar, não é? Porque há muitos anos que eu não conseguia [...] (BISHOP, 1995, p. 10). A diferença apontada no Outro se traduz, muitas vezes, como aspectos do próprio sujeito que representa. Parece que a projeção de si no Outro gera uma representação que adquire proporções maiores que as reais, as quais tendem a incorporar um caráter de fixidez (BHABHA, 2007). A representação se efetiva com a eliminação de certas características em benefício de outras, sendo esse desenho o espaço em que é possível o estabelecimento uma nova geografia simbólica, através da qual despontem os perfis dos personagens em presença. Em Brazil, o pobre é retratado como um preguiçoso que não desejaria trabalhar nunca na vida; em contrapartida, Bishop recorre ao texto do capitão Joshua Slocum, quem se refere aos marinheiros brasileiros como “my sober Brazilian sailors” (meus marinheiros brasileiros sóbrios): Brazilians are a remarkably sober people. Two or three cafezinhos provide enough fuel for them to talk and argue on all night long. The late 19th Century sailor-author Captain Joshua Slocum (Sailing Alone Around the World) was, in his earlier days, in command of a ship on the South American Coast. He speaks more than once of ‘my sober Brazilian sailors’ who, unlike the sailors of other nationalities, always turned up again after a night in port with no hang-overs (Box 47.2, #13) (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p.14)53. 53 Os brasileiros são notavelmente pessoas sóbrias. Dois ou três cafezinhos fornecem a eles energia suficiente para conversar e debater por toda a noite. O capitão-autor Joshua Slocum do século 19 (Sozinho ao redor do mundo) esteve, nos seus primeiros anos, no comando de um navio na costa sul-americana. Ele fala mais de uma vez em ‘meus marinheiros brasileiros sóbrios’ que, diferentemente dos marinheiros de outras nacionalidades, sempre retornavam depois de uma noite ao porto sem ressacas. 67 Sabe-se que a sobriedade é uma qualidade que Bishop sempre almejou. Em diversas cartas, principalmente as direcionadas à doutora Anny Bauman, relata os momentos nos quais não podia controlar o alcoolismo, demonstrando vontade de abandonar o vício: [...] bebi como um gambá por umas três semanas mais ou menos, parei por uns tempos e depois recomecei. Depois de passar mal no ano novo, tomei outras decisões – e quase imediatamente a coisa se repetiu mais uma vez. Quando fui passar cinco dias no hospital, eu não estava bebendo muito, mas estava com medo de voltar a beber, e, além disso, eu queria ficar algum tempo num lugar onde eu não conhecesse ninguém; fiquei bem uns dez dias [sem beber], mas depois, três dias atrás, tomei um porre feio. Realmente, parece ser mais uma espécie de distúrbio emocional do que qualquer outra coisa, e não consigo entender o que é (BISHOP, 1995, p. 221). O Outro, de algum modo, serve de parâmetro para a reelaboração da própria identidade. Às vezes, Bishop se vê refletida em uma diferença que a incomoda e, em outras ocasiões, visualiza neste mesmo Outro algumas características desejáveis, as quais ela persegue ao longo da vida. Trata-se de uma representação cheia de ambiguidades em que os sentimentos de admiração e desprezo parecem harmonizar-se em um retrato que padroniza e esquematiza a pluralidade e a diversidade brasileiras: Brazilians are in many ways quick, but they can also be woefully slow. The same mistress who scolds her cook for flirting will complain about the meals always being late. Yet if anyone asks naively, ‘But why not have lunch at one o’clock every day?’ she will reply, ‘Oh, well – this isn’t a factory.’ (Box 47.2, #12) (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p.14)54. Para retratar o Outro, Bishop demonstra certa indecisão. Sua representação se fundamenta em um desenho que evidencia as características opostas do brasileiro, o que mais uma vez remete a uma organização dialética das ideias. O brasileiro é retratado como preguiçoso, mas que, em alguns momentos, pode se apresentar como prestativo e rápido. O constante uso de comparações acaba propiciando a hierarquização de culturas (que tem o ponto de vista anglo-saxão como referência), assim como podemos observar no trecho que complementa o acima citado: “[...] the cook’s excuse will be frank, half humorous, possibly even indecent from the Anglo-Saxon point of view” (Box 47.2, #11) (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 14)55. 54 Os brasileiros são em muitos sentidos rápidos, mas podem também ser depressivamente vagarosos. A mesma senhora que ralha com a cozinheira por paquerar irá reclamar das refeições serem servidas sempre em atraso. Ainda se alguém perguntar ingenuamente, ‘Mas por que não ter o almoço uma hora todos os dias?’ ela {a mesma senhora} irá responder, ‘Oh, bem – isto não é uma fábrica’. 55 [...] a desculpa da cozinheira será franca, em parte humorística, possivelmente até mesmo indecente do ponto de vista anglo-saxão. 68 Convivendo de perto com a elite brasileira, Bishop critica o mesmo grupo do qual faz parte. Beneficia-se do status que ocupa, mas não consegue ver com bons olhos as práticas de sua classe social. Em carta a Alfred Kazin de dezembro de 1951, comenta estar desfrutando de uma situação com a qual não estava acostumada nos Estados Unidos: “[...] o apartamento deles [de Victor e Pearl Kazin] não é nada mau – meus padrões aqui estão meio confusos, por causa do luxo em que estou vivendo” (BISHOP, 1995, p. 231). Como ressalta Jodelet (2002, p. 54, grifos da autora), “[...] o sujeito remete ao ‘outro-semelhante’, que lhe é exterior, uma parte do que reside nele próprio, através de uma operação metafórica de transferência, que consiste em atribuir ao outro algo que dê sentido ao que é ressentido sem ser percebido”. Da mesma forma, Patrícia Dwyer (2002), em um estudo da escritura de Bishop a partir de espaços marginais, fundamenta-se em Clifford para demonstrar que, quando um autor se reporta a uma cultura, os temas trabalhados refletem uma exploração de si. Assim, pode-se dizer que o Eu se constrói a partir das versões que elabora do Outro. Na mesma página manuscrita, Bishop faz anotações sobre o arquiteto que não sabe projetar cozinhas por nunca ter estado em uma, além de alguns objetos que não funcionam bem. Menciona também a ignorância do brasileiro em relação à fauna e flora, o desprezo dos homens em relação às mulheres e a educação deficiente das crianças, principalmente a dos garotos. the architects – being of the upper crust cannot design a good kitchen – rarely having been in one – the housewifes the same way – the discomfort of lives – that could be easily altered – pans that won’t pur – pour – lamps that burn off the paint – matches that break – things that don’t work – IGNORANCE of the simplest plants, insects, animals – or needs for children – a cheap Spcok to convince – anti US carried as far as to say orange juice is bad etc! – and ignorant babas handing on fears – badly behaved children – spoiled boys and nervous girls – spoiled boys particularly – man’s country but surely both sexes suffer from this – constant libertinism and indulg indulgence? Men despise women – and women end by despising men – A woman still can to be a witness – go out and drag three bums in From the nearest bar sign one s will – (Box 47.1, #7)56. 56 os arquitetos – pertencentes às altas classes, não podem projetar uma boa cozinha – raramente estiveram em uma – as donas-de-casa igualmente – o desconforto das vidas – isto poderia ser facilmente alterado – panelas que não servirão– servirão – lâmpadas que queimam a pintura – fósforos que quebram – coisas que não funcionam – IGNORÂNCIA das plantas mais simples, insetos, animais – ou das necessidades das crianças – um Spcok barato para convencer – anti EUA carregou tanto para se dizer que o suco de laranja é ruim etc.! – e babás ignorantes morrendo de medo – crianças mal-comportadas – garotos mimados e garotas nervosas – garotos mimados particularmente – país de homens, mas certamente ambos os sexos sofrem disso – constante libertinismo e indulgência? Os homens desprezam as mulheres – e as mulheres acabam por desprezar os homens – Uma mulher ainda pode ser uma testemunha – saem e arrastam três vagabundos em De uma placa de bar mais próxima–. 69 Esta passagem faz ecoar o primeiro poema escrito no Brasil, Arrival at Santos, no qual Bishop igualmente destaca as coisas que não funcionam ou que funcionam mal: Cuidado, moço, com esse gancho! Ah! não é que ele fisgou a saia de Miss Breen, coitada! [...] Na alfândega deve haver quem fale inglês e não implique com nosso estoque de Bourbon e cigarros. Os portos são necessários, como os selos e o sabão, e nem ligam para a impressão que causam. Daí as cores mortas dos sabonetes e selos – aqueles desmancham aos poucos, e estes desgrudam de nossos cartões-postais antes que possam lê-los nossos destinatários, ou porque a cola daqui é muito ordinária, ou então por causa do calor (BISHOP, 1999, p. 63). As impressões primeiras se repetem quando a autora salienta o mau jeito ou a incompetência dos profissionais no Brasil, ou ainda, quando insiste em falar sobre objetos que não têm funcionalidade. Ao perceber que, para ocupar um cargo profissional, o indivíduo não necessita de formação profissional, Bishop logo estabelece relação com o modelo que conhece de perto – o norte-americano. É assim que estranha o fato de que qualquer profissional possa escrever e que sua pedicura atue como banqueira de apostas. Power of the students – cha IX – danger - <il> - special passe to movies – oddness of seeing them get in cut-rate to see such things as “Streets of Sin” etc in the early afternoon – How Ma (that spaniard) – has commented on the varying careers in SA and the danger they do – the doctor write poetry, the engineer becomes a banker and then [il] they all write – Our pedicure is a bookie. Even a rather fashionable pedicure may be a bookie, for both ladies and glentman – (Box 47.1, #2)57. O texto registra as experiências na nova terra como choque cultural. É como se a mente estrangeira imaginasse o mundo a partir de círculos espirais que colocam a terra natal em contato com o novo lar. É por isso que escrever sobre a diferença se configura como um processo duplo de domesticação e estrangeirização. A domesticação, método que se realiza como redução de um sistema cultural distinto em valores da língua materna, é capaz de 57 Poder dos estudantes – ch IX – perigo- <il> – passe especial dos cinemas – estranheza de vê-los entrarem em liquidação para exibir filmes como “A rua do pecado” etc. no início da tarde – Como Ma (aquele espanhol) – comentou nas carreiras variantes na AS {América do Sul} e o perigo que oferecem – o doutor escreve poesia, o engenheiro se torna banqueiro e então [il] eles todos escrevem – Nossa pedicura é banqueira de apostas. Mesmo uma pedicura que anda na moda pode atuar como banqueira de apostas, tanto para senhoras como senhores – 70 reconduzir a autora de volta à sua terra natal. Por outro lado, a estrangeirização configura-se como uma pressão etnográfica desses mesmos valores, a fim de que sejam registradas as diferenças linguísticas e culturais do texto estrangeiro, o que remete o leitor a terras longínquas (VENUTI apud DUNCAN; GREGORY, 1999). É importante ressaltar essa via dupla na qual a representação se insere; no entanto, nos fixaremos em processos de domesticação com intuito de dar relevo ao fato de que o Outro é também formatado por valores culturais próprios do sujeito que o representa. A domesticação é, segundo Duncan e Gregory, um traço inerente dos textos de viagem, quais mantêm cumplicidade com o jogo do poder colonizador. Esse poder se utiliza de estratégias capazes de engessar a imagem do Outro, através da reprodução do já dito. É o que acontece quando Bishop recorre a conhecimentos sobre o Brasil produzidos por viajantes anteriores a ela para reforçar, por exemplo, a incompetência no desempenho de prestação de serviços, assim como observamos em fragmento no qual reproduz texto de Maria Graham: I am amused at the apparent apathy of the Brazilian shopkeepers, if they are engaged, as now is not infrequently the case, in talking politics, or reading a newspaper, or perhaps only enjoying a cool seating the back of the shp shop, they will often say they have not the article enquired for, rather than rise to fetch it; and if the customer persists and points is out in the shop, he is coolly desired to get it for himself, and lay down the money. (Box 47.1, #37)58. Com um pensamento bastante similar, Bishop apresenta sua visão sobre os trabalhadores do comércio brasileiro: No salesmanship – it is a relief, bur. One asks in a shop in Rio or Sao Paulo * Do you have anything new today? The clerk looks dreamy, smiles, and says “No.o.. I don’t think so. Nothing.” Or “The senhora wouldn’t like that. It’s not very good…” A nursery <il> [woner] says – “They sent these plants up from the baixada. But don’t buy them – they won’t do well here…” […] “Is this material color fast?” No – senhora – you know the only Industtria Brasileira that’s color-fast is the Negro…” (and that isn’t exactly true, either) (Box 47.1, #30)59. 58 Eu fico perplexa com a aparente apatia dos vendedores brasileiros quando estão ocupados em conversas sobre política, como agora, que não é um caso infrequente, ou lendo um jornal, ou talvez apenas descansando em um assento no fundo da loja. Eles frequentemente dirão que não têm o artigo requisitado em vez de levantar-se para buscá-lo; e se o cliente persistir e apontar para o produto na loja, é preferível que ele mesmo o pegue e deixe o dinheiro. 59 Não há técnicas de vendas – e isso é um alívio, mas. Alguém pergunta em uma loja no Rio ou São Paulo * Você tem algo novo hoje? O atendente olha distraído, sorri e diz: ‘Não. Eu acho que não. Nada’. Ou ‘A senhora não vai gostar disso. Não é muito bom…’. Num viveiro de plantas, <il> [mulher] diz – ‘Eles mandaram essas plantas da Baixada. Mas não as compre – elas não se adaptam bem aqui’ [...] ‘Esse material desbota?’ Sim – senhora – você sabe que a única Industria Brasileira que não desbota é o negro …” (e isso não é exatamente a verdade, também). 71 Através da reunião de enunciados que convergem para um mesmo sentido, Bishop acaba por fortalecer o estereótipo veiculado anteriormente. Resgata a expressão burros sem rabos para tratar de um período no Brasil em que os imigrantes chegavam com o objetivo de trabalhar e prosperavam, enquanto que os brasileiros mantinham aversão por tudo que os remetesse ao trabalho escravo. Stream of Portuguese – many form the islands – burro<s> sem rabos – and they prosper – Italians in the south – Germans – own c schools, etc until ? Bur why so little? Argentina had 20,000 – Brazil 2,000 (CHECK) after the war – Pride? Fear? What – climate, too – (Box 47.1, #5)60. Uma estratégia usada por Bishop para a construção de Brazil é a incorporação das singularidades dos hábitos e costumes do brasileiro, o que daria a impressão de um conhecimento mais aprofundado da cultura do povo retratado. Porém, observamos que a partir de um evento singular, a autora generaliza atitudes e modos de pensar, criando imagens esquemáticas que, como tais, não podem ser fiéis à diversidade de uma cultura. Sobre as relações entre etnias distintas, evidencia-se que os brasileiros mantêm um modo menos preconceituoso de sociabilidade entre si: A rich man will shake hands with and embrace a poor man and also give him Money, try to find him a job and pay his wife’s doctor’s bills, because they grew up in the same fazenda, or country estate, made their first communion together and perhaps are even ‘brothers of creation’, a system of partial adoption that dates from slavery days (Box 47.2, #8) (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 12)61. Trata-se de um costume brasileiro que merece destaque, pois se distingue dos hábitos de sua terra. No entanto, verá algo de negativo nesse modo de relacionar-se e a interação entre ricos e pobres será interpretada como parasitária: Sometimes Brazilians seem to confuse familiarity with democracy, although the attitude seems rather to be a hold-over from the Roman Empire, when every rich man had his set o poor relations and parasites (Box 47.2, #9) (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 13)62. 60 Torrente de portugueses – muitos formam as ilhas – burro<s> sem rabos {em português} – e eles prosperam – italianos no sul – alemães – escolas próprias, etc. até? Mas por que tão poucas? A Argentina tinha 20,000 – O Brasil 2,000 (CHECAR) depois da guerra – Orgulho? Medo? O quê?– clima, também – 61 Um homem rico apertará as mãos e abraçará um homem pobre e também dará dinheiro a ele, tentará encontrar um trabalho para ele e pagará as contas do médico de sua esposa apenas porque eles cresceram na mesma fazenda ou interior, fizeram a primeira comunhão juntos e, às vezes, porque são ‘irmãos de criação’, um sistema de adoção parcial que data dos tempos da escravidão. 62 Às vezes, os brasileiros parecem confundir familiaridade com democracia, embora a atitude pareça ser mais uma influência do período da escravidão, ou do feudalismo, ou mesmo do império romano, quando cada homem rico tinha, em seu círculo de relacionamentos, pobres e parasitas. 72 Em um passado não muito distante, agregar-se a uma família rica era uma das poucas opções de sobrevivência para o pobre brasileiro. Na realidade, ele vivia sob os auspícios do rico e em troca prestava-lhe serviços, situação que faz o mundo do trabalho confundir-se com a relação de amizade e intimidade. Isso porque a herança colonial brasileira mantém raízes rurais e a intromissão do privado no âmbito do público faz predominar o quadro familiar (HOLANDA, 2003). Na concepção de Bishop, há um desequilíbrio na relação em que o rico sempre é prejudicado. A autora faz um retrato do subalterno, recorrendo frequentemente a palavras como parasita ou imprestável, ao mesmo tempo em que, parecendo reconhecer o valor de tais pessoas, emprega aqui ou ali um elogio, traçando uma escrita marcada pela justaposição de ideias contrárias. Um exemplo bem claro é o poema Manuelzinho: You helpless, foolish man, I love you all I can, I think. Or do I? I take off my hat, unpainted and figurative, to you,. <<Again I<< [and] promise to try (Box 57.10, #3)63. O texto acaba evidenciando uma confusão de sentimentos, o que faz perder a nitidez do que pretende expressar. O modo de vida mais flexível e maleável em que as pessoas têm mais liberdade de relações, e, até mesmo, possibilidades de inverterem seus papéis, parece chamar a atenção da autora. Entretanto, por não pertencer e não se aprofundar na cultura brasileira, lhe faltam os paradigmas “ideais” para entender determinadas relações; de fato, ela não pode acessar muitos dos parâmetros estabelecidos na cultura brasileira, sendo então obrigada a justapor sistemas culturais díspares para realizar julgamento de valor. As associações que um olhar estrangeiro pode estabelecer são as mais diversas. Ainda no primeiro capítulo de Brazil, Bishop apropria-se de uma das frutas mais abundantes do país – a banana –, estabelecendo uma relação de sentido com o crescimento populacional: […] the population of Brazil is increasing rapidly. Life expectancy has gone up considerably in the last few decades. The indomitable and apparently increasing vitality of Brazil shines through the grimmest death toll statistics. It is like the banana tree that grows everywhere in the country. Cut it back to a stump above ground, and in a matter of days it sends up a new shoot and starts unfolding new green leaves (Box 47.2, #4) (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 11)64. 63 Seu bobo imprestável, / Eu amo você à minha maneira, / Eu acho. Será? / Eu tiro pra você o meu chapéu figurado e sem tinta. / <<Novamente eu<< [e] prometo tentar. 64 [...] a população do Brasil está crescendo rápido. A expectativa de vida aumentou consideravelmente nas últimas décadas. O evidente aumento descontrolado da vitalidade do Brasil contrasta com os mais deprimentes dados estatísticos. É como a bananeira que cresce em todos os lugares no país. Corte-a rente ao toco, e em uma questão de dias ela brota um novo ramo e começa a desdobrar-se novas folhas verdes. 73 O olhar etnocêntrico logo se apropria de imagens, conceitos (e também preconceitos). No fragmento acima, induz-se o leitor a pensar o Brasil através de dados estatísticos que registram elevado índice de óbitos, contrapostos ao aumento descontrolado de nascimentos. Comparando os nascimentos ao crescimento rápido da bananeira, apropria-se de um símbolo nacional para associá-lo a uma ideia que somente um olhar de fora seria capaz de observar. Na mesma página, Bishop usa novamente a imagem da banana, transformando-a em metonímia que reflete a situação brasileira de desperdício das riquezas materiais: Indeed, the banana tree is a fairly good symbol for the country itself and for what has happened and is still happening to it. Brazil struck all the early explorers as a ‘natural paradise,’ a ‘garden,’ and at its best moments it still gives that impression = a garden neglected, abused and still mostly uncultivated, but growing vigorously nevertheless… But it is the mismanagement and waste of both human and material wealth along the way that shocks the foreigner as well as the educated, sensitive Brazilian (Box 47.2, #5) (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 11)65. […]Brazil struck all the early explorers as a “natural paradise,” a “garden,” and at its best moments it still gives that impression = a garden neglected, abused and still mostly uncultivated, but growing vigorously nevertheless (Box 47.2, #5)66. A visão do Brasil como um jardim negligenciado fortalece a ideia da necessidade de ajuda externa, o que justificaria o papel protecionista dos Estados Unidos em relação aos países latino-americanos. Bishop não assume que sua atuação no Brasil tenha sido patrocinada pelos agentes culturais financiados pelo governo norte-americano (FERREIRA, 2008). Entretanto, o modo de retratar o Brasil parece estar em consonância com a postura adotada por seu país de origem. Ao representar o brasileiro como o Outro, a autora destaca, no fragmento acima, um pequeno grupo que poderia fazer parte do “nós”. Aqui, adotamos a perspectiva elaborada por Todorov (1993, p. 25) em Nós e os outros, e repetimos sua indagação: estes Outros (os brasileiros) não estão sendo elogiados apenas porque sabem raciocinar como nós (os norte65 De fato, a bananeira é um bom símbolo para o próprio país e para o que tem acontecido e ainda está acontecendo com ele. O Brasil impressionou os primeiros exploradores como um ‘paraíso natural’, um ‘jardim’, e em seus melhores momentos ele ainda dá esta impressão = um jardim negligenciado, maltratado e ainda não cultivado, mas que, no entanto, cresce vigorosamente... Mas é a má administração e o desperdício das riquezas tanto materiais como humanas ao longo do caminho que choca o estrangeiro, assim como o brasileiro educado e sensível. 66 O Brasil impressionou os primeiros exploradores como um ‘paraíso natural’, um ‘jardim’, e em seus melhores momentos ele ainda dá essa impressão = um jardim negligenciado, maltratado e ainda não cultivado, mas que, no entanto, cresce vigorosamente. 74 americanos)? Através desse discurso, qualidades como ‘educação’, ‘civilização’ e ‘sensibilidade’ são colocadas como distanciadas do que se pode esperar de um brasileiro comum. ... Mas vivo há dez anos num país atrasado e corrupto, e tal como a Lota anseio por civilização... (1995, p. 459) ... Mas a ignorância das pessoas com menos de cinqüenta anos é mesmo geral [...] (BISHOP, 1995, p. 719) Vez ou outra Bishop ressalta a inteligência de alguns brasileiros, retratando-os como exceções. Carlos Lacerda e Aloysio Magalhães são elogiados como homens com os quais ela poderia conversar como se estivesse em Nova Iorque: [...] o Aloysio [Magalhães] é uma das poucas pessoas realmente inteligentes que conheço, com quem a gente pode conversar como se estivesse em N. Y. De modo geral, a coisa é bem difícil, como creio que você vai constatar. Você gosta de Neruda? Gosto, sim. Você gosta de René Char? Não, não gosto, não (BISHOP, 1995, p. 719). [...] Ele se chama Carlos Lacerda. Tem 41 anos, é um homem brilhante, completamente honesto, quer ser ‘democrático’, sem dúvida (BISHOP, 1995, 326). Quando são ressaltadas as características positivas, geralmente vêm acompanhadas de restrições, como no caso da inteligência que é, segundo Bishop, um traço inerente a poucos brasileiros. O paradoxo, instaurado no próprio discurso da autora, constrói-se por ideias formadas com base em imagens contrárias, uma técnica de criação classificada por Anastácio (1999) como o eixo do pensamento dialético. O Brasil faz despertar imagens contraditórias que são habilmente registradas nos textos literários da autora. O brasileiro aparece como povo atrasado, o que se delineia em um discurso que evidencia repetidamente as diferenças entre latinos e anglo-saxões. Conhecimentos parciais são suficientes para que Bishop trace um perfil de brasilidade. Para Bhabha (BHABHA, 1998, p. 117), o estereótipo é uma simplificação não por representar falsamente, mas por ser uma forma fixa de representação. A fixidez é vista por Bhabha como um problema para a representação do sujeito, principalmente quando se trata de significações de relações psíquicas e sociais. Esse modo de representar oferece distinções que se fundamentam em fatores cognitivos e normativos, os quais estabelecem um sistema dicotômico, de onde despontam noções como certo e errado, bom e mau, belo e feio. O valor dessas construções depende das possíveis negociações sociais travadas no sentido de estabelecer uma rede de relações semânticas (OLINTO, 2008). 75 Não podendo representar isoladamente, o indivíduo lança mão de outras representações já existentes. A força que essas imagens exercem reside principalmente em seu poder de circulação, pois são capazes de atrair ou repelir outras imagens. Faz surgir novas representações ou fortalece as antigas. Na perspectiva de Moscovici (2003, p. 40), as representações funcionam como “criaturas do pensamento” que, quando compartilhadas, é como se ganhassem vida própria, incorporando uma materialidade subsidiada pelo “peso de sua história, costumes e conteúdo cumulativo”. Isso talvez invista a representação de uma resistência ainda maior que a de um objeto material, pois, como afirma esse teórico, “[...] o que é invisível é inevitavelmente mais difícil de superar do que o que é visível”. 3.2.2 O espaço do Outro A condição de expatriada assumida por Bishop de forma voluntária faz com que questões territoriais ganhem centralidade em sua obra. Parece que uma das soluções encontradas para os problemas decorrentes dos constantes deslocamentos é a apropriação simbólica do espaço do Outro. Bishop está sempre em posição geográfica privilegiada, o que lhe permite observar tudo a seu redor: a fazenda Samambaia, no alto de uma serra em Petrópolis, é um lugar propício para contemplar a natureza e que lhe permite até vivenciar certa intimidade com as nuvens. Em carta a Marianne Moore, de fevereiro de 1952, ela relata: “[...] essa intimidade com as nuvens também não deve me fazer bem, mas gosto tanto que não quero me mudar” (BISHOP, 1995, p. 244). Ainda sobre a casa em que vive, escreve uma carta a Lowell, em março de 1952, na qual reforça o contato com as nuvens: [...] uma casa ultramoderna no alto de uma montanha de granito preto, com uma cachoeira de um lado, nuvens entrando na sala no meio da conversa, etc. A casa ainda não está terminada e estamos usando lamparinas; não há assoalho – apenas cimento coberto por pegadas de cachorros (BISHOP apud GOLDENSOHN, 1992, p. 12, tradução nossa). Os fatos relatados em cartas frequentemente revelam-se imagens geradoras de poemas. A vida no alto da montanha e a consequente proximidade com a natureza aparecem incorporadas no poema Questions of Travel (Questões de Viagem, 1965): Here there [is] <are> a crowd<s> of streams [and] [h]<H>osts of waterfalls hurry to rapidly down to the sea<s> >>the press>> <<those the<< [the] [il] <a> pressure of many clouds on the mountains spill[ing]<s> over the [glinting] sides in the slow-motion, 76 turning to water-falls before our eyes (Box 73.2, #5)67. A outra casa, o apartamento do Leme, Rio de Janeiro, é o lugar de onde Bishop pode observar as favelas que circundam a região, o que também se transforma no poema The Burglar of Babylon (O Ladrão da Babilônia, 1968): Rich people in apartments Watched through binoculars As long as daylight lasted. And all night, under the stars, […] The rich with their binoculars Were back again, and many Were standing on the rooftops, Among T.V. antennae. (Box 58.6, #6)68. A proximidade dos apartamentos com os morros é enfatizada em uma anedota que muito agradava a Bishop. Em um depoimento para o livro Elizabeth Bishop: an Oral Biography (BRAZEAU, 1994), David Weimer observa que essa foi uma das primeiras estórias contadas por Bishop, que integra também o livro Brazil: One story that sounds apocryphal but is sworn to be true is that one c one couple returning to their 8th floor apartment at night heard strange crashes and bumps within, and thought, of course burglars. But, in their sala, was a wild eyed and panicky horse who had had somehow or other fallen onto their terrace from his higher close higher slum-side bit of pasture Perhaps apocryphal but it would perfectly well be true. Rio is like that (Box 47.1, #32)69. Segundo Weimer, através da piada Bishop intenciona sugerir que a sociedade brasileira pode ser moderna, avançada, civilizada, mas apresenta também um mundo natural extravagante. A proximidade dos prédios em relação aos morros é o que permite um intercâmbio entre mundos distintos – o civilizado e o primitivo –, o que aparece de forma exagerada na anedota. Ao analisar a própria situação de observadora, Bishop considera-se em posição privilegiada para falar do Brasil, pois o pouco envolvimento com os problemas sociais a faria perceber melhor os fatos a partir do lugar externo no qual se coloca. 67 Aqui tem muitos córregos [e] um monte de cachoeiras / correndo em direção ao mar >>a pressão>> / <<aquelas<< [a] [il] <uma> pressão de muitas nuvens nas montanhas / transbordando pelos [reluzentes] morros abaixo, em câmera lenta, / e se transformando em cachoeiras diante de nossos olhos. 68 Os ricos nos apartamentos / Observaram com binóculos / Enquanto durou a luz do dia. / E toda a noite, sob as estrelas, / […] / Os ricos com seus binóculos / Retornaram de novo, e muitos / Estavam nos telhados, / Entre as antenas de TV. 69 Uma estória (sic) que parece apócrifa, mas que juram ser verdadeira, é a de um casal que voltava para seu apartamento no 8º andar, à noite. Escutaram barulhos e estrondos estranhos, e obviamente pensaram que eram ladrões. Mas, na sala deles, estava um cavalo de olhos selvagens em pânico que, de alguma forma, havia caído no terraço pela parte mais alta da favela, um terreno que usavam como pasto. Talvez apócrifa, mas poderia perfeitamente ser verdade. O Rio é assim. 77 Frente ao exposto, intentaremos refletir sobre representação construída por Bishop das favelas brasileiras na década de 1960, buscando relacionar a imagem criada no livro Brazil com outras que permeiam seu projeto artístico. Alguns críticos têm observado que os melhores poemas da autora versam sobre a pobreza, mas que, no entanto, seus trabalhos abordam a temática de modo distanciado. Nesse sentido, a crítica Lorrie Goldensohn (1992, p. 208) menciona que o poeta inglês Tomlinson se reporta à representação do pobre feita por Bishop com certa irritação. Ainda sobre o olhar de da autora em relação aos pobres, Regina Przybycien (2002, p. 67) acrescenta: “Bishop sonhara em escrever sobre os brasileiros humildes de modo similar à escrita de Checov sobre os moradores dos vilarejos russos”. Sobre o escritor russo, encontramos uma anotação no manuscrito de Brazil: “A. Tchekov – who is so close to Brazil in many ways” (Box 47.1, #7)70. No entanto, Przybycien ressalta que Checov conhecia muito bem o universo por ele retratado, enquanto que Bishop experimentava uma situação de distanciamento dupla: a própria classe social e o fato de ser estrangeira eram condições que se interpunham diante da realidade observada. Com muita propriedade, Przybycien (2002, p. 68) alerta para os riscos de uma observação distanciada, pois o observador pode estar sujeito ao estranhamento e à alienação. Nossa análise sobre a representação da favela no livro Brazil leva em consideração as leituras dos críticos da obra da autora sobre temáticas similares nas poesias. Intentamos montar um diálogo com textos que tratam do olhar de Bishop em relação ao espaço do Outro, em especial, aqueles relacionados a uma maior carência material. Dessa forma, é importante ressaltar que se trata de uma escritora estrangeira que nunca pisou em uma favela. As notícias são acessadas por intermédio de jornais e de observações pessoais feitas a partir de seu apartamento do Leme, com o auxílio de binóculos. Portanto, sempre mediadas. The Burglar of Babylon (O ladrão da Babilônia) é um poema que recupera a imagem da favela e seu processo de formação. Construído em forma de balada, incorpora tema e musicalidade capazes de transmitir um tom popular próximo da literatura de cordel tão apreciada por Bishop (ANASTÁCIO; BARBOSA, 2002, s.p.). On the fair green hills of Rio There grows a fearful stain, The poor who came to Rio And can’t go home again. [The fair green hills of Rio] [And there]<On them> a million of people, Like a million sparrows, nest; Like a confused migration That’s had to light and rest. 70 Anton Chekov – que é tão próximo do Brasil, em muitos aspectos. 78 They make their nests, or houses, Out of nothing at all, or air, >>You’d think a <breath> [il] would end them,>> They perch so lightly there. [Old bags, old boards, old billboards] And a million of birds in cages Built almost like their own. […] - [They come and come and come] >>and the [il] come & come>> <<In<< the hill of Kerosene, <<In<< the hill of Skeleton, The hill of Astonishment, And the hill of Babylon (Box 58.6, # 7)71. O pobre, comparado à ave de arribação, é retratado como uma mancha social que se multiplica feito líquen. As formas da natureza, principalmente as dos animais, são frequentemente acionadas quando Bishop retrata as classes populares brasileiras. O poema apresenta a perseguição de um marginal chamado Micuçú em um dos morros do Rio de Janeiro, o da Babilônia. Sobre este nome, é interessante notar a inscrição que aparece na segunda versão dos manuscritos, “Micoçú means wild animal”? (Mucoçú significa animal selvagem?) (BOX 58.6). Bishop demonstra não saber o que a palavra realmente significa, expressando dúvidas através da indagação acima. The Burglar of Babylon 1st 2 or 3 stanzas – “Micuçú means [Micuçú was a burglar etc] born and raised up on the hill of Babylon (Box 58.6, #2)72. “wild animal”?? favela >>on the hills - >> Na sexta versão, a autora muda a definição do nome do marginal, >>Micoçú (Me-cosoo), a nickname; “Dirty Marmoset>> (>>Micoçú (Me-co-soo), um apelido; “Macaco sujo”>>), que é alterada no livro publicado para “Micuçú (me-coo-soo) is the folk name of a 71 Nos verdes morros do Rio [Nos verdes morros do Rio] / cresce uma mancha medonha, / O pobre que vem pro Rio / e não pode retornar. // [E lá]<Nelas> um milhão de pessoas, / Como um milhão de pardais, se aninham; / Como uma migração confusa / Que tem que descansar. // Eles constroem seus ninhos, ou casas, / De nada, ou de ar, / >>Você teria a impressão que um <sopro> [il] as faria voar,>> / Eles se empoleiram às pressas lá. [Sacolas velhas, taboas velhas, painéis velhos] // E um milhão de pássaros em gaiolas / Construídas quase como eles próprios // [...] / - [Vao chegando mais e mais] >>e o [il] vão chegando & vão chegando>> // <<No<< morro da Querosene, / <<No<< morro do Esqueleto, / O Morro do Pasmado, / E o morro da Babilônia. 72 O Ladrão da Babilônia / 1ª 2 ou 3 estrofes – “Micuçú significa “animal selvagem”?? favela / [Micuçú era um ladrão] >>no morro - >> / nascido e criado / no morro da Babilônia. 79 deadly snake, in the North” (Micuçú é o nome popular de uma cobra venenosa na região Norte). Lançado no volume Questions of Travel, em 1965, recebe posteriormente uma nota explicativa do nome Micuçú, em 1968. Introdução a The Burglar of Babylon A estória de Micuçú é verdadeira. Aconteceu no Rio de Janeiro há alguns anos. Eu alterei apenas um ou dois detalhes mínimos e, é claro, traduzi os nomes das favelas. Eu acho que, de fato, o Morro do Querosene tinha sido destruído um pouco antes da morte de Micuçú, mas eu gostei da palavra, então a acrescentei. Eu era uma daquelas pessoas que assistia a perseguição com binóculos, embora nós realmente pudéssemos ver muito pouco: apenas a silhueta de alguns dos soldados no horizonte do Morro da Babilônia. O resto da estória (sic) foi, em boa parte, tirada, palavra por palavra, dos jornais, e o resto são coisas que eu fiquei sabendo do lugar e das pessoas. Na época, as pessoas diziam que o nome Micuçú era uma redução de Mico Sujo, ou Dirty Marmoset, mas finalmente foi decidido que estava errado e que é o nome popular de uma cobra extremamente venenosa, do norte do Brasil. Um jovem que quer ser um verdadeiro gangster, como nos filmes, certamente iria preferir ser chamado pelo nome de uma cobra venenosa. Também os pobres que vivem nas favelas do Rio geralmente chegam do norte ou nordeste do Brasil e seus apelidos tendem a ser palavras indígenas, ou mesmo os nomes comuns (frequentemente derivados do indígena) usados para denominar coisas ou criaturas naquelas regiões distantes (BISHOP, 2008, p. 718-719, tradução nossa). Uma metáfora que pode ser usada para marcar o distanciamento é o uso de binóculos. Tal instrumento certamente ajuda Bishop a ver melhor e, ao mesmo tempo, manter certa distância física do objeto observado. Olhar de longe é mais um dos aspectos que nos leva a acreditar que a representação do brasileiro está marcada por traços que evidenciam o distanciamento cultural e não uma imersão, como alguns autores postulam (KALSTONE, 1989; MARTINS, 1992; TRAVISANO, 1989). Sobre o gosto por binóculos, destacamos uma carta de fevereiro de 1965, endereçada à doutora Anny Baumann: “Estou encantada com a possibilidade de ver mais coisas e quero ver todos os dias [...]. Nem sei como posso lhe agradecer por providenciar isso para mim” (BISHOP apud ANASTÁCIO, 1999, p. 61). Parece que há dificuldade – ou até mesmo impossibilidade – de o estrangeiro integrarse totalmente a uma cultura diversa. Isso porque o ser humano é influenciado por condicionamentos anteriores difíceis de serem minimizados ou eliminados, assim como explica Moscovici (2003, p. 35): Nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura. Nós pensamos através de uma linguagem; nós organizamos nossos pensamentos, de acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura. Nós vemos apenas o que as convenções subjacentes nos permitem ver e nós permanecemos inconscientes dessas convenções. 80 Parece que há uma preocupação da autora em combater o próprio modo preconceituoso com que vê o Outro. Bishop se esmera para produzir poemas e textos mais universais, e assim, busca imagens que devem mais sugerir que dizer. Como observamos na explicação da própria autora, existem dois modos de pensar a palavra Micuçú. O manuscrito revela que a autora tinha em mente a ideia de um macaco sujo, porém, mais tarde, esclarece e apresenta uma introdução explicativa de tal termo, livre de vestígios que indiciem suas ideias preconceituosas sobre o Outro. No livro Brazil, o mundo animal é também convocado para ilustrar a paisagem brasileira: the word bicho. snakes – legends of the boto – opossums – Bem-te-vi that hangs around the cities – tiny swallows – and tico ticos – Man of war birds – and always the buzzards – scavengers – the doleful sight out at the eddge of the favelas – (the [il] fight [il] the Black Widow spider right in Rio – (Box 47.1, #2)73. Bishop demonstra grande interesse na fauna e flora, o que talvez tenha sido intensificado com as leituras que realiza dos naturalistas que viajaram pelo Brasil. O espaço da favela vai ser explorado, tanto quanto possível, a partir de uma abordagem biológica do termo. Nesse sentido, animais e homens se assemelham, pois ambos se ambientam nos limites da favela e, por vezes, trocam de papel. Em um primeiro rascunho, a autora relaciona o espaço da favela a animais que lá habitam ou ainda aqueles identificados com os mitos do norte ou nordeste, locais de onde provém a maioria da população descrita. Os urubus, que pairam sobre o espaço, são logo associados à palavra scavengers, termo que pode se referir ao animal (comedor de carniça) ou ao próprio homem (aquele que revira lixo). A condição precária de moradia e as constantes migrações fazem surgir uma imagem de homem que se assemelha a aves, como o urubu (que estaria associado à necessidade de revirar o que outros jogam fora) ou os pardais (que representariam o próprio ato de migrar e de viver em bandos). No texto publicado, os animais desaparecem, restando apenas o urubu. Os editores da TimeLife privilegiam a imagem da vida sacrificada dos que vivem na favela, expondo suas maiores dificuldades: a falta de saneamento, as doenças e o crime, como se pode observar no fragmento seguinte: 73 a palavra bicho. / cobras – lendas do boto – gambás – Bem-ti-vi que paira / pela cidade – andorinhas minúsculas – e tico-ticos – Homem de guerra pássaros – / e sempre os urubus – catadores de lixo – a vista penosa de fora / das favelas – a [il] luta [il] a aranha Viúva Negra exatamente / no Rio –. 81 The thousands upon thousands of shacks pile up against the hills, or stretch out to the North over the filled land to the city’s dumps. Urubus, or vultures, their only scavengers, hover over them. The shacks have no sanitation or running water; all day the women and children stand in line at the few spigots provided, to fill old oil cans with city water – which at that often fails. The favelas are natural breeding grounds for disease, crime and social unrest. Nevertheless, as soon as a housing project draws a thousand or so favela dwellers to better quarters, the same number of immigrants from the northeast mysteriously appears, ready to move into the vacated shacks. (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 56)74. Esses espaços destoantes do resto da cidade vão ser olhados por Bishop de forma paradoxal. Ao mesmo tempo em que percebe o sofrimento e a dor dos moradores do morro, consegue captar a beleza e a singularidade do espaço com seu olhar artístico. Cria, dessa forma, uma favela poetizada: Even the hillside favelas of Rio and other cities have a delicate if melancholy beauty. Built of old boards, tin cans, bamboo, sacks or any other material at hand, they are light and graceful, piled up against the slopes like birds’ nests, painted in faded colors and festooned with steps, ladders, potted plants and bird cages (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 99)75. A ideia de contrastes vai ser novamente aplicada às imagens que representam particularidades brasileiras, o que dá força à representação de Brasil que a autora pretende reelaborar a partir da visão recorrente de outros autores. Um dos últimos poemas, Pink dog (1979), revela que a imagem de país de contrastes ainda permanece viva na mente da autora. O início do poema retrata a geografia privilegiada da cidade do Rio de Janeiro; logo entra em cena a protagonista, uma cadela sarnenta (moradora de uma das favelas) que se torna vítima da ação de uma quadrilha intitulada “esquadrão da morte”, responsável por centenas de assassinatos de mendigos, os quais são atirados ao Rio da Guarda: >>[because] In what slum have you hidden them, [while have you] poor bitch?>> <you are,> poor bitch, a nursing mother, by those hanging teats – Didn't you know? It's been in all the papers. To solve this problem, how they deal with beggars? 74 Milhões e milhões de barracos se empilham nas encostas, ou estendem-se para o norte sobre os aterros e depósitos de lixo. Os urubus, únicos carniceiros, pairam sobre eles. Os barracos não têm infra-estrutura sanitária nem água corrente; durante todo o dia, mulheres e crianças fazem fila junto às poucas torneiras disponíveis, para encher velhas latas com água canalizada – pois, nesses lugares, costuma faltar. As favelas são criadouros naturais de doenças, crime e agitação social. No entanto, quando um projeto habitacional transfere os milhares de favelados para bairros melhores, o mesmo número de migrantes nordestinos aparece misteriosamente, pronto para ocupar os barracos vazios. 75 Mesmo os morros das favelas do Rio e de outras cidades têm uma beleza delicada, senão melancólica. Construída de taboas velhas, latas, bambu, sacos e qualquer outro material à mão, elas são leves e graciosos, empilhadas nas ladeiras como ninhos de pássaros, pintadas em cores desbotadas e decoradas com degraus, escadas, plantas em potes e gaiolas de pássaros. 82 -They take and throw them in the tidal rivers (Box 60.6)76. Na primeira versão do poema, são registradas ideias que reforçam a fragilidade da protagonista: trata-se de um animal do gênero feminino, puérpera com suas tetas pesadas, cheias de leite e filhotes para proteger. A difícil situação se delineia no momento de festejos e alegria do carnaval brasileiro. Pink dog é capaz de demonstrar, ironicamente, que o sofrimento dos desabrigados em um país como o Brasil pode ser ofuscado por celebrações carnavalescas para onde as atenções estão voltadas, tanto da população quanto da imprensa. A alegria carnavalesca funciona como a ponte que conduz ao lúdico. A autora seleciona as palavras máscara e fantasia, por meio das quais consegue acionar um mundo mágico em que os problemas brasileiros podem ser solucionados: solution is to wear a fantasía. * Tonight you simply can’t afford to be a<n> <<an<< (‘n eyesore.) But no one will [never] see a <<in<< dog in [costume at] <máscara> this time of year. ?>> Ash Wednesday’s coming; Carnival is here. Which samba will you dance? What will you wear? (Box 60.6)77. >>ever>> >>máscara >>disgrace>> Em Brazil, Bishop tenta, de alguma forma, explicar o crescimento do Rio de Janeiro e das favelas. Compara a expansão da cidade com os dedos de uma mão que adentram os picos e morros. Quando elogiada pelo uso da metáfora, a autora diz: “Não me elogie por comparar o Rio a dedos – quem disse isso for a Rachel de Queiroz!” (BISHOP, 1995, p. 714). Habilmente incorpora a imagem dos dedos a seu texto para apresentar a topografia como um dos fatores que dificultam um melhor planejamento da cidade: The Topography of Rio is fantastically beautiful, but it defies any kind of systematic city planning. The city has penetrated like the fingers of a hand between the granite peaks and the precipitous conical hills. Although poor people have always lived on the morros, it is only during the last 20 years or so that these hills have become covered with the groups of shacks called favelas, most of which are inhabited by immigrants from the northeast of Brazil. It is roughly estimated that one million of 76 >>[por que] Em que favela você os escondeu, / [enquanto você] pobre cadela?>> / <você está,> pobre cadela, pelas tetas pesadas de leite, é uma recém-parida – / Você não sabia? Tem saído em todos os jornais. / Para resolver este problema, como eles lidam com os pedintes? / - Eles os jogam em canais. 77 a solução é usar uma fantasia. * / Hoje à noite você simplesmente não pode ter uma / <<uma<< (aparência ruim.) Mas Ninguém jamais verá >>jamais>> / <<em<< cachorro em [roupas no] <máscara> neste período do ano. >>máscara?>> / Quarta feira de cinzas está chegando/ O Carnaval está aqui. / Que samba você vai dançar? O que você vai usar? >>infortúnio>> 83 Rio’s four million inhabitants now live in these slums, thereby creating the worst of the city’s many problems (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 55-6)78. Aqui e ali, Bishop incorpora recursos linguísticos que se aproximam de uma linguagem mais literária. As informações acabam ganhando um aspecto híbrido pois, em meio à objetividade pretendida pelos editores, a escritura ganha traços de poeticidade. A precisão dos fatos, associada a um auto-esquecimento que resulta em uma escrita mais espontânea, são as qualidades apreciadas por Bishop. Esses traços, encontradas também nos textos de Darwin, fazem com que ela admire o naturalista e inicie dois poemas sobre ele. Aprecia a observação científica minuciosa associada ao poder de criação do naturalista, assim como menciona em carta: [...] e eu admiro Darwin! – ao ler Darwin, admiro o belo argumento sólido sendo construído a partir de suas intermináveis observações históricas, quase inconscientes ou automáticas – e então, um relaxamento repentino, uma etapa inesquecível, e sinto a estranheza de seu empreendimento; vejo o jovem solitário, seus olhos fixos em fatos e em detalhes minuciosos, mergulhando ou deslizando vertiginosamente no desconhecido. O que se parece querer na arte, ao experimentá-la, é o mesmo que se faz necessário para sua criação: um auto-esquecimento, uma concentração extremamente inútil (BISHOP apud MILLIER, 1993, p. 346, tradução nossa). A leitura de Voyage of the Beagle e também de outros naturalistas acaba influenciando a maneira de representar o Brasil. Bishop (1995, p. 609) diz em carta “[...] realmente, ele [Darwin] é uma das pessoas de quem mais gosto no mundo”. Interessa-se por concepções biológicas construídas não só por Darwin, mas também por Euclides da Cunha em Os Sertões, obra lida e recomendada aos amigos em cartas (BISHOP, 1995, p. 725). A palavra favela aparece pela primeira vez na obra Os Sertões de Euclides da Cunha, para se referir ao arbusto que floresce no morro de mesmo nome, o da Favella. Em Euclides, lemos: “[...] as favelas, anônimas ainda na ciência – ignoradas dos sábios, conhecidas demais dos tabaréus – talvez um futuro gênero cauterium das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e defesa” (CUNHA, 1984, p. 25). Além da acepção botânica, Euclides ainda vai mostrar que se pode atribuir ao termo uma conotação geográfica, tão apreciada por Bishop: 78 A topografia do Rio é fantasticamente bela, mas ela desafia qualquer tipo de planejamento urbano sistemático. A cidade se espalhou como os dedos de uma mão entre os picos de granito e os morros íngremes. Apesar das pessoas pobres sempre terem vivido nos morros, foi durante os últimos vinte anos mais ou menos que estes morros ficaram cobertos por grupos de barracos chamados favelas, muitos dos quais são habitados por migrantes do Nordeste do Brasil. Estima-se que um milhão dos quatro milhões de habitantes do Rio vive hoje nessas favelas, criando o pior dos muitos problemas da cidade. 84 Todas traçam, afinal, elíptica curva, fechada ao sul por um morro, o da favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de canudos – e daí, para o norte, de novo se dispersam e decaem até acabarem em chapadas altas à borda do São Francisco (CUNHA, 1984, p. 14). O interesse de Bishop pela favela surge na medida em que é possível relacioná-la ao mundo natural. No Rio de Janeiro, o Morro da Providência passa a ser igualmente chamado de Morro da Favela pois, além de possuir vegetação semelhante, também abriga os combatentes da guerra de Canudos (MAGALHÃES, 2009, s.p.). Posteriormente, a palavra favela passa a referir-se a qualquer morro nos quais se situem casas humildes, assim como está definido no livro Um século de favela, na introdução de Alba Zaluar e Marcos Alvito (2003, p. 17): “[...] área de habitação irregularmente construída, sem arruamentos, sem plano urbano, sem esgoto, sem água, sem luz”. Como ressaltam os autores, as favelas passam a carregar a marca da desordem e são, dessa maneira, associadas a vários problemas da cidade. A ideia da favela como um ‘foco’ suscita problemas e preocupações que teriam como solução as ‘limpezas’ constantemente mencionadas pelos gestores da cidade. Trata-se de uma retórica que se utiliza de concepções ligadas à ideia de patologia social (2003, p. 10), o que enquadra o morador da favela como um desajustado social. Lícia do Prado Valladares (2008, p. 14), em A invenção da Favela, afirma: Cheguei ao Rio em 1964, ano do golpe militar. O Governador Carlos Lacerda, do recém-criado Estado da Guanabara, virava a cidade de cabeça para baixo, no intuito de mostrar que a Cidade maravilhosa, apesar de haver perdido o posto de capital federal, não deveria deixar de se modernizar, nem de assumir ares de grande metrópole. As obras do Aterro do Flamengo custavam terríveis engarrafamentos, e nos meus primeiros meses de PUC, no trajeto diário do Bairro de Fátima até a Gávea, assisti durante vários dias à Favela do Pasmado sendo removida, imagens que me marcariam para sempre. Tratores avançando e destruindo os barracos enquanto famílias eram colocadas às pressas, em caminhões, ao mesmo tempo em que vigiavam seus poucos pertences. A ocupação das favelas, desde a sua origem (e talvez ainda nos dias de hoje), foi quase sempre abordada através da ótica da selvageria, colocando em segundo plano a carência das pessoas que, em sua maioria, vivem sem recursos básicos que lhes garantam a dignidade humana. A apropriação de terrenos por pessoas que se deslocam para as grandes cidades e buscam uma vida melhor configura-se como tentativa de territorializar-se, mesmo que de forma frágil e precária. Sobre isso, Haesbaert (2007) ressalta que não são dadas a todos as possibilidades múltiplas da territorialização; a algumas pessoas não é possível o acesso a uma rede de territórios interconectados. A questão das favelas e de seus habitantes pode ser abordada através da noção de mobilidade dos espaços, desenvolvida por Rogério Haesbaert (2007). Quando as pessoas 85 saem de seus locais de origem, sem perspectivas reais de habitação, há um processo de desterritorialização. Para explicá-lo, o autor recorre à concepção naturalista, esclarecendo que o ser humano, assim como o animal, tem necessidade de demarcar um território e de abrigarse. Isso pressupõe que a desterritorialização é logo seguida por um processo de reterritorialização. Os morros figuram como reais possibilidades de refúgio e vão sendo, aos poucos, ressignificados – um estratégia que promove a auto-identificação daqueles que os habitam. As casas, construídas com os materiais acessíveis, denotam e até mesmo podem servir de metáfora da fragilidade da relação do morador da favela com o novo território. No texto Estética das favelas, Paola Berenstein Jacques (2001, s.p.) lembra que tais amontoados de casas funcionam mais como abrigo, ressaltando as diferenças entre esse termo e o seu correlato, habitar: O primeiro objetivo do construtor, que é quase sempre o próprio morador com a ajuda de amigos e dos vizinhos (princípio do mutirão), é de se abrigar ou de abrigar a sua família. Esse primeiro abrigo é quase sempre precário, mas já forma a base para uma futura evolução. A partir do momento em que o morador encontra ou compra materiais adequados, ele substitui os antigos e começa a aumentar o barraco. Nunca existe um projeto preestabelecido para a construção de um barraco, os materiais encontrados formam a base da construção que vai depender do acaso e da necessidade de se achar novos materiais ou de se poder comprá-los. O barraco evolui constantemente, até chegar à casa em alvenaria, mas mesmo assim a construção não acaba nunca, as casas estão constantemente em obras. Mesmo menos fragmentadas formalmente do que os barracos de madeira, as novas casas em alvenaria são fragmentárias pois se transformam de uma forma contínua. São territórios que, antes de tudo, funcionam como espaços de luta por uma vida melhor, capazes de refletir o sofrimento daqueles que buscam um lugar no mundo. Além da necessidade de um chão, Bishop busca explicar o fenômeno das migrações para as capitais a partir dos atrativos que uma cidade grande pode oferecer: For there is no denying the attractions which city life, even at it worst, holds for these people. In the small towns or villages of the interior there is the same poverty, plus boredom and isolation. In the city there are the bright lights, radio and television (it is surprising how many antennas appear above the favela shacks), futebol (soccer football), the lotteries, the constant excitement and the sense of participation – even if only on the lowest level – in the life of a great city. All this offsets the misery and filth, the standing in line for water and the frequent visits of the police (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 56)79. 79 Não se pode negar que a vida na cidade, mesmo com seus aspectos negativos, atrai estas pessoas. Nas pequenas cidades e vilas do interior existe a mesma pobreza, mas associada ao tédio e ao isolamento. Na cidade existem as luzes brilhantes, o rádio e a televisão (é surpreendente a quantidade de antenas que aparecem nos telhados dos barracos), o futebol, as loterias, a constante animação e o sentido de comunidade – mesmo que apenas no pior nível – da vida de uma cidade grande. Tudo isso compensa a miséria e a sujeira, as filas à espera de água e as visitas frequentes da polícia. 86 Nos manuscritos, observamos que a atração exercida pelas atividades de lazer oferecidas pela cidade ganham destaque. Entretanto, a busca por uma melhoria de vida proporcionada pelo emprego não é mencionada. Ao retratar as favelas, Bishop usa o recurso da miniaturização, deslocando a imagem de sofrimento em privilégio de uma abordagem poetizada. VII – also a literay tendceny – because the “little man” is appearing -t to make things cute, to sentimentalize – sentimentalize and find picturesque – and the favellas themselves – strange to say no Cha VII – kst part – even the favellas architecture is hauntingly beautiful – horror an delicacy – colors – the oriental pilling up use of bamboo – little flask, wooden lace etc – like birds next on a cliff – swallow or weaver birds on their cliffs – waver birds – oven birds on their cliffs – the horror concealed lightly decorated (Box 47.1, #6)80. PUBLICADO Indeed, Brazilians in general seem to have an instinct for creating beauty out of the humblest of materials. Mud-and-twig houses with their thatches of staw or Grass, little stores and bars with their whitewash or pink- or blue-wash walls and their heavy shutters and half doors – all have a highly pleasing effect. Along the Amazon the houses are more likely to be woven of palm leaves, Indian-style, so that they resemble beautiful basketwork. Even the hilldside favelas of Rio and other cities have a delicate if melancholy beauty (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 99)81. Mais uma vez, podemos observar o uso de signos que refletem um pensamento organizado em forma binária. Dotada de uma beleza assustadora, a favela inspira, ao mesmo tempo, horror e delicadeza. A descrição das cores, dos materiais diversificados e a falta de ordenação acionam o que Goldenshon (1992, p. 6, tradução nossa) chama de olhar infantil em Bishop. Segundo a crítica, embora a perspectiva infantil esteja relacionada ao “[...] desejo de experimentar diferentes emoções e especificidades”, a linguagem usada pela autora aparece “[...] filtrada por uma sensibilidade estética de longo alcance que responde, primeiro, aos 80 VII – também uma tendência literária – porque o “homenzinho” está aparecendo – para fazer as coisas belas, para sentimentalizar – sentimentalizar e encontrar o pitoresco – e as próprias favelas – estranho dizer no Cha VII – kst parte– mesmo a arquitetura das favelas é assustadoramente bela – horror e delicadeza – cores – o costume oriental de empilhar os bambus – pequenos frascos, laços de madeira etc. – como pássaros próximos a um penhasco – andorinha ou quaisquer outros pássaros em seus penhascos – qualquer pássaro– acima os pássaros sobre seus penhascos – o horror dissimulado claramente decorado. 81 De fato, os brasileiros no geral parecem ter um instinto de extrair beleza dos materiais mais humildes. Casas de taipa com seus telhados de sapé, pequenas lojas e bares caiados ou em rosa – ou pintadas em azul e suas pesadas janelas e meias portas – tudo tem um efeito muito agradável. Ao longo do Amazonas as casas parecem tecidas com folhas de palmeira, num estilo indígena, e assim relembram lindos cestos. Mesmo as favelas nos morros do Rio e de outras cidades têm uma beleza delicada, se não melancólica. Construídas de taboas velhas, latas, bambu, sacos ou qualquer outro material à mão, elas são leves e graciosas, empilhadas nas ladeiras como ninhos de pássaros, pintadas em cores desbotadas e enfeitadas com degraus, escadas, plantas em potes, e gaiolas de pássaros. 87 estímulos da paisagem, com destaque para a fauna e a flora”. Em relação à perspectiva infantil, Goldenshon aponta como novidade o fato de haver um “[...] diálogo incômodo entre o olhar imperial que traduz o estrangeiro como animal e um outro olhar, aquele capaz de colocar o brasileiro em pé de igualdade com o observador” (isto é, como Outro de si mesmo). A presença do Outro parece ser experimentada de modo dúbio, talvez porque, no Brasil, Bishop encontre uma família, o que contribui para que sua mente acione memórias da infância e assim, sua escritura volte-se para a temática (ou se revista de um tom) infantil. A vida no Brasil quebra a linearidade de sua existência como uma expatriada e assim, o novo espaço (com toda a carga de primitivismo percebida pela autora), acaba sendo associado com a própria família, o que a faz recordar dos tempos felizes na Nova Escócia. Em algum momento, as lembranças da vida ao lado dos avôs maternos se fundem com o presente brasileiro, o que faz surgir uma narrativa dupla: ao mesmo tempo que o Brasil é o lar e faz parte da vida da autora, podemos também flagrar em sua escritura um Brasil que é a terra do Outro. Goldenshon propõe argumentos que apontam para a complexidade da vida e para o modo como Bishop lida com a nova realidade. Concordamos com Moscovici (2003, p. 60) quando, ao analisar as representações sobre o espaço do Outro, afirma não ser “[...] fácil transformar palavras não-familiares, ideias ou seres, em palavras usuais, próximas e atuais. É necessário, para dar-lhes uma feição familiar, pôr em funcionamento os dois mecanismos de um processo de pensamento baseado na memória e em conclusões passadas”. Devemos levar em consideração que as representações são montadas por interpretações que funcionam como mediadoras de nossa relação com o mundo. Elas organizam e direcionam a maneira de ver e de lidar com o Outro; influencia, portanto, os processos de construções identitárias. 4 CAMINHOS ENTRECRUZADOS: SEGUINDO AS PISTAS DE ELIZABETH BISHOP But I felt: you are an I, Mas eu senti que você é um eu, you are an Elizabeth, você é uma Elizabeth, you are one of them. você é uma delas. Why should you be one, too? Por que você tem que ser uma, também? I scarcely dared to look Eu mal ousava olhar to see what it was I was. para ver o que eu era. […] Why should I be my aunt, Por que devo ser minha tia, or me, or anyone? ou eu, ou alguém? What similarities Quais as similaraidades entre boots, hands, the family voice botas, mãos, a voz familiar’ I felt in my throat, or even que senti em minha garganta, ou, até mesmo, the National Geographic a revista National Geographic and those awful hanging breasts e aqueles peitos horríveis held us all together que nos acolheu todos juntos, or made us all just one? ou fez de nós apenas um? (BISHOP, Poems, prose and letters). No estudo dos textos de Elizabeth Bishop que versam sobre o brasileiro e sua cultura, elegemos a teoria das representações sociais de Moscovici para repensar a trajetória da autora no Brasil. Essa teoria postula que representar o Outro é buscar nos arquivos mentais um referencial capaz de acomodar e ajustar imagens novas, que misturadas a outras imagens internas, transforma o desconhecido em familiar. A familiarização acontece por meio de uma dinâmica de relações nas quais “a memória prevalece sobre a dedução, o passado sobre o presente, a resposta sobre o estímulo e as imagens sobre a ‘realidade’” (MOSCOVICI, 2003, p. 55). Ao refletir sobre o modo como a memória se organiza, Bishop recorre a metáforas como as “galerias sussurrantes” e “os espelhos e seus reflexos”, mostrando metaforicamente como acontece o ajuste entre o presente e o passado, em um ensaio intitulado Dimensions for a Novel. Habitamos grandes galerias sussurrantes, constantemente vibrando e zunindo. Ou andamos por salões alinhados de espelhos, com reflexos ilimitados entre as suas paredes estreitas, sendo que cada momento presente atinge imediata e diretamente os momentos passados, alterando ambos (BISHOP apud ANASTÁCIO, 1999, p. 191). Em consonância com o processo de familiarização proposto por Serge Moscovici, Bishop caracteriza o presente como algo que modifica as imagens do passado, ao mesmo tempo em que é moldado por elas. Passado e presente se redefinem através de negociações que determinam para a memória uma mobilidade marcada por um constante reajustar-se. Essa plasticidade faz com que as imagens não-familiares se apresentem através de uma dualidade de sentimentos – ao mesmo tempo em que atrai, também alarma, incomoda e 89 assume uma feição de ameaça. O indivíduo, em busca de eliminar os sentimentos negativos acionados pela não-familiaridade, acaba absorvendo a nova realidade ao nível da aparência: “[...] algo parece ser visível, sem o ser: ser semelhante, embora sendo diferente, ser acessível e, no entanto ser inacessível” (MOSCOVICI, 2003, p. 56). Observar o modo como o mundo é compreendido pelo artista torna-se também uma maneira de entender o jogo entre o imaginário e os movimentos criadores. O termo imaginário, na acepção proposta por Lucrecia Ferrara (1998, p. 45), corresponde à prática social de atribuir significados em um processo de acúmulo de imagens e de instauração de sentidos; nessa direção, o termo em foco é constituído por representações autônomas que desconhecem a prática social que lhes deu origem. O pensamento, alimentado por ideias préexistentes, constrói-se através do contato com o diverso e da busca por uma classificação do novo. Essa concepção nos leva a entender que o sentido depende das inter-relações sociais, as quais interferem na configuração da realidade. Para elaborar imagens de Brasil, Bishop acessa as representações absorvidas antes de chegar ao país, e sua permanência nesse espaço lhe fornece uma série de outras imagens, o que a obriga a redefinir antigas representações que, na maioria das vezes, mantêm raízes profundas no imaginário europeu e norte-americano. 4.1 Manipulando espelhos Olhar a diferença funciona, muitas vezes, como um modo de ver a si mesmo, assim como a elaboração de imagens do Outro se torna um mecanismo capaz de engendrar subjetividades, tanto a do sujeito como a do objeto da representação. Parte-se então do pressuposto de que o livro Brazil, agregando uma multiplicidade de imagens do Outro, pode revelar mais sobre a própria autora em dois níveis distintos: 1. uma imagem consonante com a imagem que Bishop faz de si mesma; 2. uma imagem de Elizabeth Bishop não prevista por ela, que se mistura e se confunde na figura do Outro, pois como lembra Arruda (2002, p. 17), O desenho do outro, mais que um retrato, talvez seja um holograma: uma projeção em movimento, e como tal também um pedaço de mim, prestes a esvaecer. A representação aplaca instantaneamente o conteúdo perturbador do outro, retrabalhando-o. Torna-se, assim, a diferença incorporada, dando forma ao holograma. Nesse sentido, a diferença que incomoda pode ser uma projeção. Na escritura de Brazil, traços de um país paradoxal são destacados, assim como observamos no primeiro capítulo. Através do título (Paradoxes and Ironies), Bishop sintetiza o modo como pretende 90 retratar o brasileiro, apresentando em seu conteúdo uma exposição de muitos aspectos de brasilidade nos quais ideias contrárias são evidenciadas. O capítulo é centrado na estória de um bebê sequestrado, imagem que funciona como eixo condutor das informações coletadas a respeito do povo. O sequestro mobiliza toda a sociedade, o que leva Bishop a concluir que o amor do brasileiro pelas crianças é exagerado. Sobre a repercussão do sequestro de Conceiçãozinha, Bishop questiona a grande preocupação dispensada pelos brasileiros a esse caso, já que o país registra altas taxas de mortalidade infantil: “Why all this sentimental, almost hysterical, concern over one small baby, when the infant mortality rate in Brazil is still one of the highest in the world?” (Box 47.2, #3) (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 10)82. Bishop de certa forma copia o tipo de representação que se configura desde o primeiro contato estrangeiro, no qual o Brasil é retratado como um país de contrastes. O paradoxo será usado como um eixo norteador para a leitura de Brazil e, para isso, a autora propõe que se pense nos detalhes da estória de Conceiçãozinha como um paradigma de outros problemas brasileiros: Exploding birth rate and high infant mortality rate, great wealth and degrading poverty – these are the two big paradoxes. But along with them come many smaller ones repeating the pattern, overlapping and interacting: passionate and touching patriotism combined with constant self-criticism and denigration; luxury and idleness (or admiration of them) combined with bursts of energy; extravagance and pride, with sobriety and humility. The same contrasts even appear in Brazilian history, periods of waste and corruption alternating with periods of reform and housecleaning (Box 47.2, #5) (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 11-12)83. The details of Conceiçaozinha’s story are worth examining not only for the interesting light they throw on that contradictory thing, the Brazilian character, but also because the tragic, unresolved problem they present is almost a paradigm of a good many other Brazilian problems, big and small (Box 47.2, #3)84. 82 Por que toda essa preocupação sentimental, quase histérica em relação a um bebezinho, quando a taxa de mortalidade infantil no Brasil ainda é uma das mais altas no mundo? 83 Taxas explosivas de nascimento e altas taxas de mortalidade infantil, muita riqueza e uma pobreza degradante – esses são os dois grandes paradoxos. Mas, juntamente com eles, existem muitos outros menores, repetindo esse padrão, sobrepondo (ou coincidindo) e interagindo: patriotismo apaixonado e comovente combinado com uma constante autocrítica e denegrimento; luxo e ociosidade (ou a admiração de ambos) combinada com explosões de energia; extravagância e orgulho, com sobriedade e humildade. O mesmo contraste aparece até mesmo na história brasileira, períodos de desperdício e corrupção alternando com períodos de reforma e limpeza. 84 Vale à pena examinar os detalhes da estória de Conceiçãozinha não apenas pelo destaque interessante que eles lançam sobre a contradição da personalidade brasileira, mas também porque o trágico e não resolvido problema que eles apresentam é quase um paradigma de muitos outros problemas brasileiros, grandes e pequenos. 91 Trata-se de um recurso que, aparentemente, daria conta da multiplicidade cultural brasileira, mas que, ao contrário, reforça uma imagem já muito difundida – a construída pelos primeiros viajantes. Eleger a história de Conceiçãozinha para iniciar o livro nos remete ao período da infância da autora. Perdendo os pais muito cedo, Bishop vê-se obrigada a mudar constantemente de residência; vive sob a responsabilidade ora de parentes maternos, ora paternos. Isso talvez a tenha feito perder o sentido de lar em seu país de origem, o que será, de algum modo, restabelecido no Brasil, lugar onde recebe a afetividade que pouco tivera enquanto criança. Quando fica doente no Brasil (fator decisivo para a sua permanência pelo longo período de vinte anos), experimenta a sensação de tomar remédio em português com grande interesse. Segundo Bishop, sua fragilidade é que faz com que os brasileiros a sua volta se mantenham mais próximos, dispensando-lhe maior cuidado e atenção. É o que se constata na carta à doutora Anny Baumman: [...] de repente, comecei a ter uma reação alérgica... Durante mais de uma semana fiquei sem enxergar nada... Seja como for, é muito interessante adoecer e tomar remédio em português, e os brasileiros ficam na maior animação quando tem alguém doente – acho que minha doença fez com que eles se afeiçoassem a mim [...] Fora a cara inchada e a asma, estou me sentindo bem, e embora saiba que dizer isso é provocar a Providência divina, há dez anos que não me sinto tão feliz (BISHOP, 1995, p. 235-237). O sentimentalismo manifestado em relação a quem se encontra fragilizado – o amor exacerbado à criança e o cuidado excessivo ao doente – juntamente com a atmosfera de hospitalidade inerente ao brasileiro, fazem com que Bishop crie vínculos com a nova terra. No momento em que decide fixar-se no Brasil, deixa de pertencer à categoria de viajante, passando à condição de estrangeira. Georg Simmel (1983), ao tratar dos dilemas da condição social do estrangeiro, define os termos estrangeiro e viajante. Enquanto este permanece na terra por um curto espaço de tempo, aquele se estabelece indefinidamente. Os deslocamentos empreendidos pelo sujeito acabam fazendo com que suas relações espaciais estejam necessariamente associadas às relações humanas. Em uma leitura simbólica, Julia Kristeva (1994, p. 9) define a condição do estrangeiro: Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter que detestá-lo em si mesmo. Sintoma que torna o ‘nós’ precisamente problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina 92 quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades. Elizabeth Bishop parece ocupar a posição de estrangeira tanto no nível material (na condição de pessoa deslocada da terra de origem) quanto no nível simbólico (como alguém que apresenta dificuldades de aceitar e definir a própria identidade). Sua trajetória nos permite observar que, desde a infância, ela se situa como sujeito deslocado. Há indícios de que a face oculta da identidade, mencionada por Kristeva, não pôde ser revelada no país de origem. O espaço do Outro faz com que Bishop comece a questionar a própria identidade e a buscar entendimento acerca da posição de expatriada. Em terras brasileiras, se pergunta: “[...] mas este aqui não é o meu mundo. Ou é?” (BISHOP, 2005. p. 743). Tal questionamento nos faz a pensar a identidade com base em dois aspectos: por um lado, ela é autora de discursos que refletem o processo de moldagem de si própria como sujeito social; por outro lado, tais enunciados nos permitem entrever a construção de uma subjetividade, processo que se dá, muitas vezes, de forma inconsciente. O sujeito constrói-se, portanto, por intermédio de práticas discursivas e, por isso, devemos levar em conta a transitoriedade de tais posicionamentos (HALL, 1997). No momento em que questiona o seu lugar no mundo, Bishop aponta para processos de construções identitárias, pois pertencer a algum lugar, mesmo que provisoriamente, é também um modo de definir-se em relação ao Outro. A autora segue um caminho que permite entrever o embate da territorialização material (ocupação de terras brasileiras) com a simbólica (sentimento de nacionalidade e de “pertença” ao grupo de origem). Isso acontece sempre que elementos da cultura norte-americana são acionados em comparações que intentam explicar e contextualizar a realidade brasileira, assim como atesta o fragmento: for Ch VII – in English we say ‘he has made his bed; let him lie on it.’ But in Portuguese they say: ‘Make your bed – and then you don’t have to get up again.’ (Box 47.1, #3)85. No texto publicado, a comparação entre os ditados é eliminada pelos editores, restando, no entanto, uma forte referência a eles: “A favorite way for Brazilian writers to have their pictures taken is plesantly supine, in a fringed hammock. Too many genuine Brazilian talents seem to take to their beds too early – or to their hammocks” (BISHOP, 1967, p. 104)86. 85 para o Ch VII – em inglês nós dizemos ‘ele fez sua cama; deixe-o deitar-se nela’. Mas em português, dizem: ‘Faça sua cama – e então você não terá que se levantar novamente’. 86 A maneira predileta dos escritores brasileiros serem fotografados é prazerosamente deitados em uma rede bordada. Muitos talentos genuinamente brasileiros parecem ir para a cama muito cedo – ou para suas redes. 93 Um trecho similar é escrito muito tempo antes da escritura de Brazil, em carta a Pearl Kazin de fevereiro de 1954, o que nos leva a concluir que Bishop compartilha da mesma ideia preconceituosa dos editores: “Manuel Bandeira enviou-me uma rede como presente de natal – e, desde então, eu tenho visto fotos dele escrevendo deitado em uma, de modo que passei a achar que este é o espírito literário brasileiro” (BISHOP, 2008, p. 800, tradução nossa). A imagem da rede, explorada como símbolo da preguiça brasileira vai, ao longo do tempo, agregando uma gama de significações que perpassam o olhar carregado de exotismo e atração por este local de dormir. O lado exótico da cultura brasileira aparece como um mundo de regras invertidas, ao qual Bishop se mostra disposta a entender através de comparações com a cultura de origem, de modo que acaba por indicar a existência de um modelo cultural mais aceitável. A constante busca por padrões denota, por vezes, uma necessidade de apresentar-se como diferente em relação aos costumes do país subdesenvolvido. Como resultado, tem-se o resgate do imaginário norte-americano que atua como quadro referencial e, ao mesmo tempo, funciona como mecanismo viabilizador de uma crítica sutil que estabelece um sistema de valor para as culturas. As culturas, não mais fixadas a um território, agregam mobilidade e circularidade. O ato de viajar mobiliza culturas tanto quanto a escritura que se tece com base em experiências, leituras e pesquisas. Cria-se, desse modo, espaços discursivos que espelham o novo território. Os discursos apresentados por Bishop se revestem de uma hibridez que mesclam, de maneira curiosa, fato e ficção. No livro Brazil, uma variedade de ditos populares é valorizada, incluindo as anedotas e piadas. Ela acredita que, ao relatar aspectos da cultura popular, estaria, de fato, se aproximando de uma realidade brasileira. No entanto, trata-se de expressões fictícias, predominantemente humorísticas e generalizadoras. Por outro lado, no trabalho literário (espaço típico da ficção), Bishop se inspira em acontecimentos reais que presencia, em leituras de jornais e revistas, em estudos de livros de antropologia ou de história, etc. Podemos então inferir que fato e ficção surgem imbricados na escrita da autora. Consciente do modo como desenvolve seus textos, ela alerta, em um dos manuscritos, quanto ao cuidado que se deve ter com a mistura de verdade e imaginação, pois, em proporções desconhecidas, podem de causar dano ao objeto ou à pessoa representada: What should certainly be protested against, where in cases where there is no authorization, is the mixing of fact and fiction in unknown proportions. Infinite mischief would lie in that. If any statements in the dress of fiction are covertly hinted to be fact, all must be fact, and nothing else but fact, for obvious reasons. The 94 power of getting lies believed about people through that channel after they are dead, by stirring in a few truths, is a horror to contemplate.’ Hardy- letter written in 1911-12 – - Referring to ‘an abuse which was said to have occurred – that of publishing details of a lately deceased man’s life under the guise of a novel, which assurances of truth scattered in the newspapers (Box 47.1, #61)87. Notamos uma preocupação insistente em apontar os fatos narrados na poesia como verdades, assim como também observamos que, em Brazil, muito do que consideramos ficção – a exemplo das anedotas que circulam pelo país – é tratado como verdade. Interessando-se pelo humor das classes populares, busca recuperar as anedotas, piadas, frases de pára-choque de caminhão, letras de sambas e a literatura de cordel. Em sua concepção, as piadas são capazes de revelar muito sobre o brasileiro, como observamos a seguir: Jokes even tell more. There is an old favorite, perhaps not even Brazilian originally, about a man walking down the street with a friend. He is grossly insulted by a stranger, and says nothing. The friend tries to rouse his fighting instincts, “didn’t you hear what he called you? Are you going to take that? Are you a man, or aren’t you?” The man replies, “Yes, I’m a man. But nor fanatically.” This is the true Brazilian temper (BISHOP, 1967, p. 15)88. Sobre as piadas, especialmente as relacionadas com o machismo no Brasil, Regina Przbycyen relata a Lorrie Goldensohn em correspondência pessoal, maio, 1990: Eu acho que são só piadas, e devem ser consideradas como tais. As realidades política e social são muito mais complexas e dramáticas. Por exemplo, a última ‘revolução sem sangue’ (1964) custou ao Brasil 25 anos de ditadura militar, com muita repressão. Milhares foram torturados, mortos ou ‘desapareceram’. A toda uma geração de brasileiros não foi ensinado o pensamento crítico, porque as escolas eram consideradas lugares geradores de ideias subversivas, e eram, portanto, um dos principais alvos de repressão. É verdade que Bishop (assim como muitos brasileiros naquela época) minimizou o golpe e até mesmo deu boas-vindas, mas isso foi um triste engano. Meu ponto de vista é que as piadas não revelam nada sobre o temperamento brasileiro, assim como piadas polonesas não revelam nada sobre poloneses, etc. (PRZBYCYEN apud GOLDENSOHN, 1992, p. 206-207, tradução nossa). 87 Contra o que certamente devemos protestar, em casos onde não haja autorização, é a mistura de fatos e ficção em proporções desconhecidas. Danos infinitos podem advir disso. Se alguma declaração no corpo da ficção estiver encoberta e indiciar ser fato, tudo deve ser fato, e nada mais que fato, por razões óbvias. O poder de fazer com que se acredite em mentiras sobre as pessoas, depois de mortas, através daquele canal, ao mencionar umas poucas verdades, é um horror de se contemplar’. Hardy- carta escrita em 1911-12 – - Referindo-se ao ‘abuso que disseram acontecer – o de publicar detalhes da vida de um homem falecido recentemente, sob o pretexto de romance, com garantias de verdade dispersas em jornais. 88 As piadas contam ainda mais. Tem uma antiga que é a favorita, talvez nem seja originalmente brasileira, de um homem descendo a rua com um amigo. Ele é grosseiramente insultado por um estranho, e não diz nada. O amigo tenta lhe incitar à briga, “você não ouviu do que ele te chamou? Você vai deixar isso barato? Você é um homem ou não é?” O homem responde, “Sim, eu sou um homem. Mas não fanaticamente”. Esse é o verdadeiro temperamento brasileiro. 95 Por vezes, o olhar equivocado não permite que Bishop perceba a realidade através de uma perspectiva mais ampla. Acaba usando os estereótipos que circulam no país como a verdade sobre o Brasil, principalmente aqueles reproduzidos pelas classes populares. Isso se torna mais problemático quando sabemos que o convívio de Bishop com os setores populares é reduzido; os conhece somente através dos empregados ou quando viaja pelo Brasil, quando tem oportunidade de observar, de forma distanciada, os costumes das regiões visitadas. Habilmente ela é capaz de incorporar em seu discurso os estereótipos criados pelo próprio povo brasileiro. Essa técnica acaba concedendo mais força a tais estereótipos, pois nascem a partir do objeto observado, o que reivindica o status de verdade e credibilidade da informação. Destacamos, a seguir, um trecho que reproduz os estereótipos circulantes no Brasil sobre o povo de três cidades brasileiras: They work in Sao Paulo, in Sao Paulo they work. in Belo Horizonte they pray; in Rio they talk – (Box 47.1, #39)89. A complexidade cultural de cada cidade fica comprometida quando se busca aprisionar a representação em estereótipos que, se assemelhando a tendências gerais, esquematizam e simplificam uma imagem do povo brasileiro. Segundo Paulo Henriques Britto (1999, p. 26), Bishop “[...] não desenvolveu nenhum projeto de apreender a realidade brasileira em sua complexidade – o que é compreensível, pois sua visão era sempre atraída pelo local, pelo detalhe; as totalidades e abstrações nunca a interessavam”. Ressalta que, quando se trata de detalhes, Bishop é bastante criteriosa; não consegue, porém, a mesma clareza quando necessita ter uma visão de conjunto. Em Brazil, o humor das camadas populares parece ser explorado com o intuito de criar uma atmosfera mais descontraída, e ao mesmo tempo, apresentar expressões consideradas pela autora como mais autênticas. Uma das anedotas resgatadas por Bishop é a estória do amigo da onça, criada pelo cartunista pernambucano Péricles de Andrade Maranhão em 1943: A hunter was speaking of his adventures to a friend – he had got without roalixing it into a place – hunting rabbits – where there were on ocas oncas (ocelots?) But what would have happened if you’d seen one suddenly? Oh – I wouldn’t have been frightened. I would have shot him. But you wouldn’t have had time – they’re too quick for that. Then I’d have run away as soon as I saw him. But the onça runs much faster than you could – she’s catch you Immediately – True – but I’d have climbed a tree – But oncas can climb trees, too Listen, man! – After all – are you my friend or the onça’s friend? 89 As pessoas trabalham em São Paulo, em São Paulo, as pessoas trabalham. Em Belo Horizonte, elas rezam; No Rio, elas conversam – 96 The expression friend of the onça – makes fun both of the theoretical nature – the satisfaction with the subjunctive, perhaps – and the quicknes to argue when there is no reason for argument – no apparent reason the love of arguing for arguing sakes – Also the quickness to criticize the lack of patience and quick disillusionment with public figures, perhaps – Anyway – “the friend of the onça” is used constantly – the demand for total sympathy, easily frustrate – wycik suspicion, etc – In which the possible suddenly becomes real – at least emotional Jokes and sayings? (Box 47.1, #3)90. Esta foi uma das estórias eliminadas pelos editores da revista. Bishop queixa-se a um casal de amigos, Kit e Ilse Barker, em carta de 02 de fevereiro de 1962: “[...] A maior parte das minhas melhores piadas foi cortada porque ninguém na Life as entendia” (BISHOP apud PRZYBYCIEN, 1993, p. 85). No processo de elaboração do livro Brazil, os editores funcionam como o terceiro elemento, que têm o papel de julgar e selecionar as piadas suscetíveis de despertar o interesse em um público norte-americano. Isto porque o receptor necessita conhecer o código a partir do qual a piada é montada. Alguns códigos dominados por Bishop certamente não poderiam ser assimilados por seus leitores norte-americanos, e os editores certamente sabiam estar diante de uma construção que não surtiria o efeito desejado. As imagens, reais ou ficcionais, aparecem ordenadas de modo que a autora seja percebida como espectadora dos fatos narrados. Dessa forma, seus textos tendem a guardar vestígios de sua presença – I have seen it over and over (eu tenho visto isso repetidas vezes). Os acontecimentos são recriados e experimentados nos textos com vistas a transmitir ao leitor 90 Um caçador estava falando de suas aventuras para um amigo – ele contou a estória sem a situá-la num lugar específico – hábitos de caçador – onde havia onças. Mas o que teria acontecido se você visse uma de repente? Oh – Eu não temeria. Eu atiraria nela. Mas você não teria tempo – elas são muito rápidas. Eu correria tão logo a visse. Mas a onça corre mais rápido do que você – ela te pegaria imediatamente Verdade – mas eu subiria numa árvore – Mas onças também podem subir em árvores Escute homem! – Antes de mais nada – você é meu amigo ou amigo da onça? A expressão amigo da onça – Ridiculariza tanto a natureza teórica – a satisfação com o subjuntivo, talvez – e a ânsia de discutir quando não há razão para argumentações – sem razões aparentes, o amor de argumentar pelo interesse na argumentação – Também a fraqueza de criticar a falta de paciência e rápida desilusão como as figuras públicas, talvez - De qualquer forma – “o amigo da onça” é usado constantemente – a exigência por uma total solidariedade, facilmente frustrada - – uma fraca suspeita, etc. – Em que o possível de repente se torna real – pelo menos emocionalmente Piadas e ditados? 97 a “[...] ilusão de testemunho através de uma teatralização sedutora de um evento” (DORESKI, 2003, p. 4). Doreski (2003, p. 16) percebe, na produção artística de Bishop, a recorrência de imagens de superfícies bi-dimensionais como mapas, espelhos e pinturas; tais elementos mantêm “[...] uma relação problemática com o mundo real [e] desafia as definições de fato e ficção” (Doreski, 2003, p 16, tradução nossa), pois, ao mesmo tempo em que estão ligados a uma realidade, podem também apresentá-la com distorções e, ainda assim, serem consideradas verdadeiras pelo observador. Igualmente, a linguagem literária possui limitações e possibilidades. Bishop habilmente convence o leitor de que é possuidora de vasto conhecimento do mundo representado. Conhecimento e linguagem são, assim, manipulados em um jogo no qual a estética surge como intermediária que ajusta o conteúdo à forma. Tal preocupação fica explícita em Poem. Nesse trabalho, Bishop brinca com as palavras looks (olhares) e visions (visões), expondo um metadiscurso no qual o poema serve como palco para reflexões sobre as palavras mais apropriadas para escrever poesia e com o status da arte em relação à vida. Our visions coincided – ‘visions’ is too serious a word – our looks, two looks: art “copying from life” and life itself, life and the memory of it so compressed they’ve turned into each other. Which is which? Life and the memory of it cramped, dim, on a piece of Bristol board, dim. But how live, how touching in detail - the little that we get for free, the little of our earthly trust (BISHOP, 2008, p. 166)91. Apresentando preferência por looks, Bishop explica que visions seria uma palavra muito séria. Deixa transparecer dificuldade de separar fato e ficção, ao se perguntar which is which? (qual é qual?). A imaginação – fenômeno que tem início a partir de imagens que se fixam nas mentes criativas (KAST, 1997) –, permeará toda a criação de Bishop, inclusive a de Brazil. Os manuscritos registram o fluxo do seu pensamento criativo e, assim, permitem entrever um pouco do modo como as identidades se estabelecem nas representações elaboradas pela autora. 91 Nossas visões coincidiam – ‘visões’ é / uma palavra muito séria – nossos olhares, dois olhares: / arte ‘copiando a vida’ e a própria vida, / a vida e sua memória estão tão comprimidas / que elas se transformaram uma na outra. Qual é qual? / A vida e sua memória estão tão confinadas, / sombrias, em um pedaço de um quadro de Bristol, / sombrias. Mas como vivem, como se tocam em detalhes / – o pouco que nós temos de graça, / o pouco de nossa verdade terrena. 98 No processo de descobrir-se, Bishop vai concomitantemente experimentando sentimentos diversos em relação à terra brasileira, de apego, posse e afetividade, mas também de distanciamento e até mesmo de aversão. A vida no novo território promove a instabilidade dos espaços idealizados e a imaginação atua no sentido de elaborar imagens que buscam elucidar o traço ambíguo da viagem (uma forma de descobrir tanto o eu como o Outro, ou ainda de dissolver limites geográficos, como de recriá-los). Pensando a viagem como metáfora, Octávio Ianni (2000) a concebe como um movimento que possibilita ao sujeito a ultrapassagem de fronteiras, caracterizada como um deslocamento espacial ou mental em relação ao Outro e ao seu espaço. Dessa forma, há a possibilidade de viajar através do ato de ouvir estórias, da leitura ou ainda da observação de signos pertencentes a outras comunidades. Ao trilhar um percurso de perdas e encontros, o sujeito pode transmutar-se em outro de si mesmo (IANNI, 2000, p. 26-27). A viagem talvez tenha funcionado para Bishop como instrumento de autoconhecimento e também como um recurso que a faz encarar novamente o próprio passado. No momento em que se fixa no território brasileiro, opta por abandonar a condição de viajante para assumir a posição de estrangeira – um sujeito que se reconhece diferente em relação aos habitantes daquele espaço. A posição de estrangeira oferece-lhe uma atmosfera mais aprazível pois, no país de origem, de maneira mais incômoda, sentia-se também excluída do grupo. Nesse sentido, podemos dizer que a viagem, como forma de desenvolvimento do eu, acelera um processo de reencontro do sujeito consigo mesmo, o que revela a existência de um ser que é, ao mesmo tempo, idêntico e transfigurado. Sobre sua permanência no Brasil, envia carta ao amigo Robert Lowell: Eu não me sinto “fora de contato” ou “expatriada” ou algo assim, ou sinto falta da vida intelectual, etc. – eu sempre fui muito tímida para ter muita “intercomunicação” em Nova York. De qualquer forma, eu me sentia miseravelmente solitária lá a maior parte do tempo – aqui eu estou extremamente feliz, pela primeira vez na minha vida. Vivo em um lugar muito lindo; temos entre nós em torno de 3.000 livros agora; eu já conheço, através de Lota, a maioria dos “intelectuais” brasileiros e acho as pessoas francas, – é assombroso até você se acostumar com o vocabulário da língua portuguesa – extremamente afetuoso – uma atmosfera prazerosa – não, eu acho que eu queria dizer que me sinto relaxada – depois daquele inverno péssimo em Yaddo, quando eu pensava que meus dias estavam contados e que não havia nada a fazer (BISHOP apud TRAVISANO, 1989, p. 133-134, tradução nossa). Tendo passado uma infância de carência afetiva, na fase adulta, Bishop se torna extremamente tímida, condição que impulsiona o afastamento do lugar no qual se sentia inferior, o que a remete a um espaço que lhe proporciona a reestruturação da auto-estima. O passar do tempo faz com que ela perceba as vantagens oferecidas pelo novo espaço: um lugar 99 bonito, afetividade e recursos financeiros suficientes para manter-se interconectada com os Estados Unidos. Deslocando-se mais desembaraçadamente no novo território, Bishop é incorporada à alta elite brasileira – classe que domina a língua inglesa e, por esse motivo, possibilita que ela continue se expressando no idioma materno. O fato de não falar a língua portuguesa revela, de alguma forma, a relutância em se identificar com a cultura brasileira ou em incorporá-la a seu universo (ÁVILA, 2002). Em carta, Bishop demonstra preocupação com as influências que a cultura latino-americana poderiam exercer sobre seus textos: Mas eu me preocupo muito com o que fazer com todo esse acúmulo de detalhes charmosos ou pitorescos ou exóticos, e eu não quero me tornar uma poeta que só pode escrever sobre a América do Sul, etc. – esta é uma das minhas maiores preocupações agora – como aproveitar tudo isso e ainda continuar morando aqui, a maior parte do tempo, provavelmente – e continuar sendo uma New Englanderherring-choker-bluenoser92 ao mesmo tempo (BISHOP apud GOLDENSOHN, 1992, p. 17, tradução nossa). Ao ponderar sobre sua origem e o espaço geográfico agora ocupado, Bishop aponta para a identidade como algo instável, preocupação que a remete a reflexões ligadas à manutenção de suas raízes culturais. Uma das indagações de Goldenshon (1992) volta-se para o fato de Bishop escolher viver em um país cujas diferenças culturais são vistas como elementos estranhos, que levam a pobreza e a dor a assumirem proporções ainda maiores. No entanto, a vida em um país subdesenvolvido tem vantagens que são mencionadas por Bishop em carta a Robert Lowell: “[...] eu não poderia me sustentar com meu próprio dinheiro nos States –acho que, pelas estatísticas da revista The New Republic, lá eu estaria, de fato, na classe ‘desprivilegiada’” (1992, p. 17, tradução nossa). Goldenshon ainda usa outra justificativa encontrada em carta de Bishop de 1957: O que me faz sentir tão sem esperanças em relação a meu próprio país é algo como falta de vitalidade em mim mesma… e sinto o mesmo em relação ao Brasil […] mas realmente não posso suportar muito a vida americana atual – é claro que nenhum país nunca foi tão obscenamente rico e, ao mesmo tempo, tão horrendamente desconfortável (BISHOP apud GOLDENSHON, 1992, p. 17, tradução nossa). O Brasil, por reunir os requisitos habitacionais e afetivos de que Bishop necessita, torna-se a terra em que decide viver. A permanência estende-se por aproximadamente duas décadas. O Brasil torna-se o espaço que lhe fornece subsídios para a escritura e, assim, se vê 92 Em uma tentativa de se definir, Bishop reúne signos que produzem identificação com os lares do Norte: New Englander (nascido na Nova Inglaterra, região situada no nordeste dos Estados Unidos); herring-choker (pessoa proveniente das províncias marítimas canadenses, ou Nova Escócia) (CASSIDY; HALL, 1991, p. 980); bluenoser (nativo do leste do Canadá, particularmente da Nova Escócia, New Brunswick ou Ilha Prince Edward) (CASSIDY; HALL, 1985, p. 307). 100 capaz de renovar sua percepção da realidade. Diz então encontrar no Brasil um lar. A casa, segundo Bachelard (2008, p. 24), é o nosso “canto do mundo”. Espaço que atua como “verdadeiros pontos de partida da imagem”, os quais podem revelar os valores do espaço habitado. A imaginação possibilita vivenciar o lar em realidade e virtualidade através de pensamentos e sonhos nos quais os sujeitos constroem “‘paredes’ com sombras impalpáveis e [reconfortam-se] com ilusões de proteção – ou, inversamente, treme atrás de grossos muros, duvida das mais sólidas muralhas” (BACHELARD, 2008, p. 25). Levando-se em conta o que diz Bachelard, podemos supor que, no Brasil, Bishop encontra um espaço propício para que rememore ou reviva as experiências de antigos lares. Os pontos de partida de suas imagens parecem estar localizados em algum lugar nórdico, pois é a partir dessa região que os elementos imagéticos de Brasil vão ser formatados. É como se o espaço real fosse lido a partir das referências primeiras construídas nos lares do norte e como se o novo lugar fosse capaz de conviver virtualmente com outro, o que lhe concede a sensação de bem-estar que um ambiente familiar pode proporcionar. Lares reais e virtuais podem ser visualizados no projeto artístico de Elizabeth Bishop. No Brasil, é capaz de rememorar os lares do passado que se avivam no pensamento como lugares ideais. Espaços que antes figuravam como imagens internas reprimidas são agora exteriorizadas para servirem de referência para a compreensão do Brasil. É ainda Bachelard (2008, p. 50) quem afirma: “[...] toda grande imagem tem um fundo onírico insondável e é sobre esse fundo onírico que o passado pessoal coloca cores particulares”. Um colorido que marca com traços pessoais e culturais as representações que Bishop realiza do espaço do Outro. Parece que a adaptação ao novo lar só pode realizar-se nesse nível: a sensação de bemestar é despertada não somente pela materialidade da casa, mas também pela relação de amizade e trabalho que pode continuar mantendo com os norte-americanos. As representações de alguns espaços estão marcadas como não familiares, especialmente os locais brasileiros externos ao ‘lar’. Notamos, nesses casos, que as imagens de Brasil vão sendo pintadas com cores de exotismo, a exemplo do fragmento em que Bishop propõe a seu leitor um esforço imaginativo para reviver as mesmas sensações que tiveram os primeiros viajantes: But [the first But skip the cities for a moment,] and with a slight effort of the imagination and a shift in the angle of vision and you can relieve the sensations of those Portuguese voyagers in 1500 when they saw [this] you can try to imagine the se sensations of those Portuguese explorers in the year 1500 when they saw the almost incredible strange shaped peaks crowding to the coast; the hung with floating sips wisps of cloud, forming and re-forming, the magnificent endless scallops 101 of the magnificent endless beaches, the spume and mist of breakers along them, the grennes, bright but thin, the rocks the queer red soil, the whole world that looked brand new […] (Box 47.1, #32)93. A exuberância da natureza brasileira permite que tempos distintos sejam sobrepostos, pois o Brasil propicia à autora uma viagem ao passado. A justaposição e manipulação de tempos e espaços conferem maior liberdade imaginativa e oferecem possibilidades diversas de identificação. Revela, portanto, um pouco do modo como são observados. A sugestão de reviver a chegada dos portugueses caracteriza-se como uma proposta de apresentar o Brasil a partir da ótica dos dominadores. Supomos que o posicionamento assumido diante do que vê, às vezes, pode se transfigurar em elementos de aproximação e, outras vezes, promover a não-identificação com o Outro, o que frequentemente se desenha através da manipulação de imagens que refletem aspectos negativos do país. Parece que a sensação de estar em casa se confunde com o sentimento de superioridade, na medida em que o lar pode ser remanejado e adaptado pela imaginação da autora. A ordenação de um mundo ao qual não se pertence é efetivada, muitas vezes, por meio de um processo inconsciente em que sistemas culturais distintos surgem imbricados para que o universo do Outro seja apresentado de forma mais inteligível. Isso porque a imagem – não sendo algo fora do sujeito que olha e vê – é capturada pela mente do observador e se mistura com suas imagens interiores, de todas as naturezas. O ponto referencial se desloca da materialidade do objeto à frente, promovendo um trânsito entre o interior e o exterior. Um processo que, nas palavras de Hissa (2006, p. 116), pode ser traduzido por um movimento no qual o “olhar se afasta dos olhos”. 4.2 Encontrando um canto no mundo O mundo só tem sentido porque pode ser representado através de práticas de significação e de sistemas simbólicos partilhados. Novos significados são capazes de produzir 93 Mas [o primeiro Mas esqueça as cidades por um momento,] e com um mínimo esforço de imaginação e uma mudança ponto de vista você pode reviver as sensações daqueles viajantes portugueses em 1500 quando eles viram [esta] você pode tentar imaginar as sensações daqueles exploradores portugueses no ano de 1500 quando eles viram os picos quase inacreditáveis de formatos estranhos povoando a costa; tufos de nuvens com pingos flutuantes pendurados, se fazendo e refazendo, as magníficas ondulações sem fim das magníficas praias sem fim, a espuma e névoa das ondas se quebrando ao longo delas, a verdura, brilhante, porém escassa, as pedras o estranho solo vermelho, o mundo inteiro que parecia novo em folha. 102 modificações na sociedade e, desse modo, transformam as identidades pessoais. A estrutura social contemporânea impossibilita a ideia do sujeito integrado, dando lugar à perda do “sentido de si”. Ocorre então um deslocamento duplo: os sujeitos se vêem descentrados de suas posições sociais e culturais, assim como de si mesmos – processo definido por Stuart Hall (2000) como crise identitária. As identidades, não mais pensadas como fixas, se formam no decurso de toda uma vida e, assim, vão sendo fragmentadas com os diversos significados construídos pelo sujeito, os quais, não raro, se apresentam como contraditórios. A linguagem, nesse contexto, é utilizada como ferramenta discursiva definidora da constituição da subjetividade. Transforma-se, continuamente, sob a influência da cultura, o que possibilita que a identidade assuma um caráter de mobilidade. São moldadas pelo trânsito em espaços diversos e, por isso, podem ser desestabilizadas, mas também desestabilizadoras. Antes de fixar-se no Brasil, Bishop mora em diversos lugares (Nova Escócia, Boston, Worcester, França, Vassar, Key West). O contato com culturas diversas contribui para que ocorra uma maior instabilidade identitária, promovendo e facilitando a constante ressiginificação de si e do Outro. O contato com novas paisagens, gentes e culturas funciona como uma forma simbólica de poder, pois conhecer se torna, também, um modo de dominar. É um mecanismo utilizado no sentido de agregar mais imagens internas, alimentando o potencial criativo da autora e, ao mesmo tempo, expandindo seu território ficcional. Caracterizada pela maioria dos teóricos de sua obra como uma viajante (ANASTÁCIO, 1999; MARTINS, 1992; MCCORKLE, 1989; PRZYBYCIEN, 1993; TRAVISANO, 1989), Elizabeth Bishop sofre mais incisivamente os processos de desterritorialização e reterritorialização. São movimentos conjuntos, quase que simultâneos, aos quais Haesbaert designa sob o termo multiterritorialidade (HAESBAERT, 2007). Em uma concepção mais idealista que envolve a questão da identidade, podemos dizer que Bishop passa por processos de reterritorialização através de sua criação que tem o novo espaço como foco. As geografias imaginárias (SAID, 1996) atuam como práticas de fazer o espaço cotidiano e ao mesmo tempo, de constituir-se como sujeito, o que pode ser depreendido da observação de representações que registram a permeabilidade entre memória, fantasia e linguagem. Bishop se apropria de tudo o que se interpõe diante dos olhos, reelaborando as imagens do Brasil e do brasileiro em um processo que é, também, uma forma simbólica de apossar-se da terra. A multiterritorialidade vivenciada e transposta para os textos acaba por funcionar, de certa forma, como uma ação re-colonizadora, pois a possibilidade de viver em um lugar periférico faz com que a autora lance um olhar semelhante ao dos antigos 103 colonizadores em direção à alteridade. Nesse sentido PRZYBYCIEN (1993, p. 42-44) salienta que [...] a visão de Elizabeth Bishop do Brasil aproxima-se dos viajantes estrangeiros, sobretudo dos naturalistas e etnógrafos... {Darwin, Wallace, Bruce}. O estrangeiro, ao chegar, traz consigo a expectativa de encontrar uma paisagem exuberante que corresponde a essa imagem, tecida ao longo dos séculos [...] Bishop lera várias dessas narrativas antes e depois de se estabelecer no Brasil, de sorte que sua visão do país em parte é mediada por essa literatura. A vivência no Brasil não é capaz de eliminar do imaginário de Bishop a força de certas imagens antigas, pois fortalecidas pela estratégia da repetição, vão se firmando como verdades indestrutíveis. Quando Bishop lida com o campo ficcional, acaba quase sempre retomando elementos do imaginário que passam por ajustes e transformações; entretanto, tais imagens não são modificadas em sua estrutura mais profunda. Os manuscritos de Brazil, assim como os comentários tecidos em cartas, revelam que a literatura de viagem influencia de maneira decisiva a compreensão de Bishop acerca da cultura brasileira. Sobre suas leituras, comenta: Estou adorando o diário de Darwin a bordo do Beagle – você ia gostar também. Diz ele, em 1832: “Caminhei até o Rio (ele morava em Botafogo [sic]); dia desagradável, desperdiçado em compras”. “Fui à cidade fazer compras. Nada é mais desagradável do que fazer compras aqui. O tempo que os brasileiros nos fazem perder” etc. etc. Tem um trecho maravilhoso em que um brasileiro reclama que não consegue entender as leis britânicas – as pessoas ricas e respeitáveis não levam nenhuma vantagem em relação aos pobres! Isso me lembra uma história que a Lota me contou sobre um parente dela, um juiz, que dizia sempre: “Para os amigos, bolo! Para os inimigos, justiça!” (BISHOP, 1995, p. 262). Em um estudo sobre a viagem, Ilka Boaventura Leite (1996) analisa as representações contidas nos livros de viajantes sobre o Brasil no século XIX, apontando como uma das características principais a variabilidade temática. A maioria dos viajantes se interessa pela natureza e, por isso, acabam fornecendo um panorama dos locais visitados. Seus textos costumam focalizar os diversos aspectos da região, descrevendo “[...] o clima, os recursos naturais, as vias de comunicação e transporte, a origem e a organização de sua população, os hábitos, costumes, habitação, vestuário, alimentação, formas de subsistência, festas, religião, organização política etc.” (LEITE, 1996, p. 91). Aproximadamente um século depois, Bishop ainda sente necessidade de repetir o mesmo tipo de temática, com rigor semelhante ao da antiga literatura de viagem. Coloca-se em posição de uma descobridora que tem necessidade de informar sobre as novas aventuras. Como lembra Ilka Leite, os locais visitados e a cultura são entendidos a partir dos referenciais dos locais originários. O ato de ver, como uma atividade mediada pela lente da cultura, faz 104 com que o olhar do viajante seja, inevitavelmente, contaminado pelo etnocentrismo. As tentativas de entender a cultura brasileira se efetuarão, tanto quanto possível, a partir de associações ao já visto. A autora parece predisposta a compartilhar signos que se assemelham a um modelo de primitivismo, como no trecho destacado: - curtains hanging outside the windows or looped knotted and looped exactly as in primitive Italian paintings – people learning outside staring – “What is this world if full full of care? we have no time to stop and stare?” QUOTE – (47.1, #2)94. Alguns costumes, percebidos como exóticos são, na maioria das vezes, apresentados de forma simpática. O distanciamento aqui se caracteriza a partir da instância temporal, a qual Bishop pôde conhecer somente através dos quadros primitivos italianos. Octávio Ianni, em estudo sobre o viajante, se refere a ele como não apenas um “‘eu’ em busca do ‘outro’. Com frequência é um ‘nós’ em busca dos ‘outros’. Há sempre algo de coletivo no movimento da travessia, nas inquietações, descobertas e frustrações dos que se encontram, conflitam, mesclam ou dissolvem (IANNI, 2000, p. 28). Muitas das considerações tecidas por Bishop sobre o Outro são, na realidade, as mesmas que muitos americanos teceriam ao olhar a cultura brasileira. O etnocentrismo, por vezes, faz ecoar a voz do grupo através do texto, o que se configura como um mecanismo capaz de fazer com que o indivíduo deslocado experimente de novo a sensação de pertença. Haesbaert (2007, p. 341) afirma que “[...] no caso de um indivíduo e/ou grupo social mais coeso, podemos dizer que eles constroem seus (multi)territórios integrando num mesmo conjunto, sua experiência cultural, econômica e política em relação ao espaço”. Quando justapõe diversos territórios (materiais, simbólicos, ideais), Bishop reúne em um só espaço tipos territoriais distintos, o que Haesbaert traduz como “múltiplos territórios”. Nos termos propostos por Stuart Hall, poder-se-ia dizer que os textos analisados promovem uma sutura do sujeito com as estruturas de significação formatadas tanto pelos territórios habitados como pelos discursos construídos. O lugar do Outro propicia a manipulação do território no interior do discurso, o que permite que o sujeito assuma posições identitárias relacionadas a prévias representações que se constroem a partir da falta. Surpreendentemente, a carência afetiva experimentada pela autora em seu país de origem será suprida no Brasil. Bishop, admirada, faz comentário sobre o tratamento que os 94 – as cortinas penduradas pelo lado de fora das janelas ou amarradas com um nó exatamente como nas pinturas italianas primitivas – as pessoas debruçadas para o lado de fora, observando – “De que vale a vida se temos tantas preocupações? não temos tempo de parar e olhar?” CITAÇÃO – 105 empregados lhe dispensam, os quais se referem a ela ao mesmo tempo com carinho e respeito: “[...] sob certos aspectos, este país é mesmo maravilhoso. Aqui você chega e o zelador, o porteiro, a cozinheira abraçam você com carinho e a chamam de ‘senhora’ e ‘minha filha’ ao mesmo tempo” (BISHOP, 1995, p.248). Em um dos manuscritos de 1970, a autora conta a experiência de ter sido abraçada por um motorista de taxi. O jovem motorista, dirigindo um taxi velho, teve que abastecer o veículo e pediu a Bishop uma parte do pagamento adiantado. Depois disso, no caminho, o veículo deu defeito duas ou três vezes, o que o obrigou a parar e fazer reparos. E, então, houve necessidade de mais uma parada, dessa vez para uma revista policial, chamada por Bishop de “barreira”. Aparentemente, a licença dele para dirigir estava vencida. O motorista, obviamente, prosseguiu muito nervoso e Bishop pensou que nunca fosse chegar em casa. Quando finalmente chega, recebe um abraço: When I did get home I paid him, with a large tip, and went into my room with my bags. The maid came in and said that my chauffeur wanted to say good-bye, and before I could go out to see him in the sala he come into the bedroom and given me a fond abraço – the first time I have been hugged by a taxi-driver – (Box 47.1, #53)95. O Brasil é retratado como um lugar de surpresas, onde os sonhos se realizam depressa demais. Em carta à doutora Anny Baumann, em julho de 1952, Bishop menciona: [...] o comerciante de animais [...] foi logo me perguntando: ‘Ah – a senhora gostaria de ter um casal de siameses? Estou importando duzentos’. Pelo visto, logo vou conseguir realizar meu desejo – nesta terra os desejos se realizam tão depressa que a gente quase chega a ter medo de desejar alguma coisa (BISHOP, 1995, p. 247). Retoma uma imagem ainda hoje corrente e explorada pelo campo do turismo, a de Brasil como terra da felicidade. É como se estivesse em um lugar mágico, em que a facilidade de realizar seus desejos a prendessem cada vez mais à terra. Em 1952, ganha de presente de aniversário um tucano. Eufórica com o presente, ela comenta: Meu Deus – ontem foi meu aniversário e estou gostando cada vez mais dos brasileiros. Uns amigos da Lota vieram e me trouxeram um bolo grande [...] E depois uma vizinha que mal conheço – entre outras coisas, porque uma não fala a língua da outra – me deu de presente o sonho da minha vida – um TUCANO. [...] Resolvi chamá-lo de Tio Sam, ou Sammy. [...] Eu não pretendia falar tanto sobre o tucano, mas vocês são as primeiras pessoas a quem eu estou contando essas coisas, e como dá pra ver eu ainda estou tão excitada que nem consigo datilografar direito. Seja como for, vou limpar o Sammy um pouco e mandar umas fotos dele, e vou cobrar do Kit uma pintura imediatamente (BISHOP, 1995. p. 239). 95 Quando eu cheguei em casa, paguei a ele uma boa gorjeta, e fui para meu quarto com as malas. A empregada entrou e disse que o chofer queria dizer adeus, e antes que eu saísse para vê-lo na sala, ele entrou em meu quarto e me deu um abraço carinhoso – a primeira vez que eu fui abraçada por um motorista de taxi – 106 O tucano Tio Sam funciona como o ponto de sutura entre culturas: originalmente é sul-americano, mas, simbolicamente, representa a própria personificação da nacionalidade estadunidense. Bishop expressa contentamento por ter em seu poder elementos que, a nosso ver, ajudam-na a reorganizar o seu mundo e a reelaborar a própria identidade: “[...] foi o melhor presente que já ganhei, e o nome dele é Tio Sam”. (BISHOP, 1995, p. 242). A adaptação no Brasil é possível na medida em que pode recuperar os signos que a remetem à terra natal. A cultura de origem serve de elemento mediador para a compreensão do novo. As representações em Brazil registram observações de práticas sociais e culturais percebidas, selecionadas e organizadas através de um imaginário já povoado de tantas outras imagens. As representações vão sendo negociadas, prevalecendo ou ganhando maior força aquelas proferidas por um sujeito que mantém autoridade suficiente para assegurar a circulação de seu discurso. Em terras brasileiras, Bishop busca certa imparcialidade discursiva; todavia, sugere uma imagem do Brasil como país-amigo dos Estados Unidos ou representa o brasileiro como povo que, de algum modo, depende da proteção norte-americana. Trata-se de uma postura identificada com as questões políticas assumidas pelo país de origem num momento em que se colocavam contra a União Soviética, dividindo o mundo por causa de conflitos decorrentes do período da Guerra Fria. A seguir, lê-se um trecho no qual a autora menciona um fato conhecido entre os brasileiros – a visita de um dos inconfidentes a Thomas Jefferson –, acontecimento que indicia fortes laços entre o Brasil e os Estado Unidos e que, no entanto, os americanos desconhecem: Samuel Putnam, in his book about Brazilian literature called Marvelous Journey, says, ‘… this event, although most North Americans have never heard of it, has since become for Brazilians one of the strongest of bonds between their democracy and our own’ (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 31)96. É como se o brasileiro tivesse a necessidade de se aproximar do país desenvolvido, enquanto que tal imagem, muito representativa para os brasileiros, ironicamente fosse minimizada por aqueles que detêm o poder. Há uma ênfase nos benefícios que o Brasil pode usufruir com a manutenção de laços que poderiam ser estabelecidos com a adoção de uma postura democrática que tem Thomas Jefferson como símbolo. 96 Samuel Putnam, em seu livro sobre a literatura brasileira chamado Marvelous Journey {Jornada Maravilhosa}, diz, ‘… esse evento, apesar de os norte-americanos nunca terem ouvido, tem desde então se tornado para os brasileiros um dos mais fortes laços entre a democracia deles e a nossa própria’. 107 Situando o Brasil como o país mais importante da América do Sul, Bishop demonstra preocupação com a postura adotada por muitos americanos, ao passarem por este país: Undoubtedly the most important country in SA and the most important for us to deal with. Scholarship – it is easy to win people over to susceptible sensitive people over to being pro – US – and we have been failing miserably. We should stop regarding Brazil as a third or 4th rate or whatever it is country diplomatically speaking – stop letting crooks go there – export good things less of a bauty contests, fads, a cheap edition of Dr. Spock, for example – good TV or movies shorts – classes – education – Point 4 did some good? Teams of workers engineers – utcut out all the boasting on BOTH sides – too often we get into boasting competitions, like those with Russia – who ahs the biggest country or the most ore – or the best “culture” -! these absurd and puely imaginary problems sidetrack a little more dignity, respect and sense of history all around. Remember – Lincoln, ‘Washington, etc are still big figures in Brazil Franklin – Wilson – translations, scholar ships – a little more education on our part – we know so little about it Sensitive, touchy, vain, suspicious – (47.1, #8)97. A autora critica o olhar que ressalta a condição do Brasil como país de terceiro ou quarto mundo e, ao mesmo tempo, alerta para a facilidade com que os brasileiros adotam posição a favor dos Estados Unidos; no entanto, chama atenção para o fato de que os intelectuais americanos, na passagem pelo país, cometem falhas em suas missões. Bishop mostra indignação diante da prática de comercialização de produtos ruins mandados para o Brasil, chegando mesmo a qualificar tais comerciantes de trapaceiros. Segundo Débora Cohn (2006), vários autores norte-americanos, incluindo Bishop, foram patrocinados para desenvolver trabalhos na América Latina entre 1950 e 1960, engajados em uma campanha promovida, principalmente, pela administração de Eisenhower (1953-1961) e Kennedy (1961-1963). Tais presidentes tinham pretensão de melhorar as relações com os países da região e promover o imperialismo cultural. O objetivo era desenvolver a boa vontade dos latino-americanos em relação aos Estados Unidos através de canais culturais que possibilitassem a neutralização do profundo sentimento antiamericano. Mesmo se colocando como alheia ao mecanismo de poder engendrado por trás das bolsas e 97 Sem dúvida, é o país mais importante da América do Sul e o mais importante para nós lidarmos. Bolsas {de estudo} – é fácil convencer as pessoas sensíveis e suscetíveis a se tornarem pro – EUA – e nós temos miseravelmente falhado. Nós deveríamos parar de olhar o Brasil como de terceiro ou 4º mundo ou {de analisar} diplomaticamente falando, o quanto ele é um país – parar de permitir que os trapaceiros vão lá – exportar coisas boas menos que um concurso de beleza, modas, uma edição barata do Dr. Spock, por exemplo – boa TV ou filmes curtos – classes – educação – Pontuação 4 fez algum bem? Times de engenheiros – eliminar toda a ostentação e, AMBOS os lados – muito frequentemente, nós acabamos ostentando competições, como aquelas com a Rússia – quem é o maior país ou o mais ou – ou a melhor “cultura” -! Esses absurdos e problemas puramente imaginativos tiram um pouco mais da dignidade, do respeito e do senso de história. Lembre – Lincoln, ‘Washington, etc. ainda são grandes figuras no Brasil Franklin – Wilson – traduções, bolsas – um pouco mais de educação de nossa parte – nós sabemos tão pouco sobre isso. Sensível, emocionante, inútil, suspeito – 108 prêmios recebidos, Bishop acaba sendo impulsionada por motivações políticas. Era de interesse do Departamento de Estado norte-americano não só empreender a promoção e divulgação da ideologia norte-americana, como também erradicar o comunismo da América Latina. Uma das principais queixas de Bishop em relação aos brasileiros se relaciona ao fato de adotarem uma postura antiamericana, aspecto que provoca na autora certa irritação e antipatia. Segundo ela própria, “[...] os intelectuais tendem a ser anti-[americanos], é claro, se bem que comigo eles têm muito tato [...] – são tão provincianos, os jovens saem pela tangente e fazem redescobertas inúteis – e os velhos se acomodam com muita facilidade” (BISHOP, 1995, p. 719). Em 1957, escreve à amiga May Swenson lamentando o pouco conhecimento dos brasileiros em relação à poesia norte-americana e à influência que a literatura francesa ainda exercia naquela época: [...] não conhecem nossos críticos em absoluto, limitam-se a repetir as idéias de um punhado de franceses católicos antiamericanos, que também não sabem muita coisa sobre os Estados Unidos e os escritores americanos – ou só conhecem muito poucos (BISHOP, 1995, p.356). A preponderância cultural francesa é um dos motivos que fazem Bishop perceber a literatura brasileira como não autônoma. Isso se dá no momento em que a influência e o poder dos Estados Unidos estão sendo ampliados no mundo inteiro, visando, através de políticas de aproximação das Américas, a divulgação da própria ideologia. Alguns anos depois, em carta endereçada a Robert Lowell, admite não se relacionar com muitos escritores brasileiros: “[...] não conheço quase ninguém do meio literário, e quase ninguém me conhece – e acho que eles pensam que se eu fosse boa mesmo eu estaria no meu país!” (BISHOP, 1995, p 719). O pouco conhecimento, entretanto, não impede que a autora teça generalizações e antecipe para Robert Lowell o que encontraria no ambiente literário brasileiro, em relação ao que as pessoas conhecem da literatura norte-americana. Realmente não sei o que eles conhecem de poesia americana ou inglesa – acho que bem pouco. [...] De modo geral eles conhecem Frost e [Edna St. Vincent] Millay e E[mily] Dickinson – Pound, Cummings. E Eliot. [...] Wallace Stevens conhecem vagamente, e da Marianne [Moore] nunca ouviram falar (BISHOP, 1995, p.718). [...] Eles parecem estar muito interessados em Faulkner no momento, e alguns livros dele saíram em português. Mas, tal como acontece com o Dylan Thomas, tenho a impressão de que eles não o compreendem nem um pouco – eu, pelo menos, não tive sorte nas minhas tentativas de fazer as pessoas lerem os melhores contos dele. Tudo que já saiu em francês as pessoas conhecem [...] (BISHOP, 1995, p. 720). 109 E quanto à poesia – a meu ver você tem de ser bem elementar, mesmo. – Ninguém aqui já ouviu falar de [Allen] Tate ou [John Crowe] Ranson ou Randall [Jarrell] ou [Theodore] Roethke – do Hart Crane alguns ouviram falar vagamente. [...] Henry Miller – no que tem mais de antiamericano, é claro! Todo o Hemingway já foi traduzido, naturalmente [...] Mas o Cummings, por incrível que pareça, é o mais conhecido, creio eu – mas talvez não seja tão estranho – aquele lado sentimental do Cummings, amor e “comentário social” é mais ou menos o estágio em que todos estão aqui – Bandeira e Drummond – ah, todos eles praticamente – (exceto Cabral) [...] (BISHOP, 1995, p. 720). Quanto à literatura brasileira, Bishop a concebe como uma cópia atrasada do modelo francês: “[...] vão lhe mostrar uma coisa horrível chamada neoconcretismo – puro Paris anos 20” (BISHOP, 1995, p.719). Críticas à intelectualidade brasileira aparecem nas cartas, e, às vezes, é mesmo colocada em um patamar inferior. No entanto, a própria autora reconhece que a falta de familiaridade com tal meio decorre do fato de não frequentá-lo: Conheço e aprecio tão poucos ‘intelectuais’ daqui que gosto de conhecer pessoas novas – e a Lota também gosta dela [Clarice Lispector], tanto quanto eu, e chegou até mesmo a ler alguns dos contos e concordou comigo que são bons. (A Lota não lê nada em português além dos jornais, e agora relatórios governamentais). Na verdade, eu a acho melhor que J. L. Borges – que é bom, mas também não é essas coisas, não! Em matéria de América do Sul, a única coisa que eu realmente gosto de ler são livros de antropologia e os cronistas antigos – e talvez Pablo Neruda, quando o antiamericanismo dele não se torna violento demais (BISHOP, 1995, p. 125-126, grifo nosso). O tipo de leitura que mais lhe desperta interesse é a que se aproxima de uma abordagem antropológica. Talvez seja por este motivo que um dos escritores brasileiros mais apreciados seja Euclides as Cunha. Já a maioria dos escritores afiliados ao modernismo brasileiro será retratada com certa antipatia: Writing: - brief outline – the romantics – Indians – slavery – saiddade (poetry because they were homesick) Easier to be a romantic poet – and again, 50 years late – Novels – Machado Assis – the greatest yet, the freak genius – Os Sertoes – a wonderful book hard hard going but a great bursting kind of book – Some of the best has been slight, humorous, local stuff – (Box 47.1, #6)98. Não sei que romancista brasileiro o K[it]. pode ter encontrado – mas a impressão que tenho é que só os piores já foram traduzidos – Jorge Amado e [Érico] Veríssimo – são chatos, chatos. Mas recomendo qualquer livro de Machado de Assis que vocês encontrarem – ele é o clássico – e um livro realmente maravilhoso, cujo nome em inglês é Rebellion in the backlands [Os sertões] – leiam se encontrarem (BISHOP, 1995, p. 725). 98 Escrita: - breve esquema – os românticos – índios – escravidão – saudade (poesia porque eles estavam sentindo falta do lar) Mais fácil ser um poeta romântico – e, novamente, 50 anos depois – Romances – Machado de Assis – o melhor ainda, o excêntrico gênio – Os Sertões – um livro maravilhoso bem difícil, mas um tipo de livro grandioso – Algum dos melhores são pequenos, humorísticos, com assuntos locais – 110 O desprivilégio dado à literatura brasileira está, de alguma forma, relacionado com o status atribuído à língua portuguesa que, para Bishop, preserva formas arcaicas do latim e, por isso, seria uma língua mais antiga, se comparada ao espanhol (BISHOP, 2008). Em relação ao estilo, afirma que pontos já fixados no inglês ainda não se estabeleceram na língua portuguesa falada no Brasil e, assim, posiciona o português em um estágio mais atrasado no que concerne ao desenvolvimento linguístico. Ressalta que há carência de originalidade nas poesias e enfatiza, mais uma vez, o uso de modelos franceses: Aparentemente, os poetas são influenciados ou simplesmente copiam o uso francês: não há pontuação, exceto um ponto no fim do poema; muitos travessões onde na poesia inglesa deve-se usar vírgulas ou ponto e vírgula; travessões no lugar de aspas, e por aí vai. De fato, qualquer pessoa, lendo o português brasileiro, prosa ou verso, logo se conscientiza da imperturbada inconsistência tanto na pontuação como na ortografia; pontos do estilo que já se fixaram no inglês ainda não se firmaram no Brasil. Se assemelha a nossa própria língua, nos primeiros tempos em que era mais livre (BISHOP, 2008, p. 723, tradução nossa). A autora ressalta a falta de consistência da pontuação usada na prosa e na poesia, um formato que mais se aproximaria do inglês antigo. No livro Brazil, a crítica direciona-se à língua portuguesa como uma barreira que impede o acesso do público internacional à literatura deste país. Dentre os poetas modernos, Bishop destaca a importância de muito poucos. A seleção é feita com base em seu gosto pessoal (João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade), ou pelo prestígio nacional alcançado através das obras: Language is, of course, a barrier between Brazilian writers and the international audience they deserve. More translation can remedy this situation for prose, but poetry is fairly impervious to successful translation, and it is a pity that most of the world remains totally ignorant of such fine contemporary poets as the late Cecília Meireles and Jorge Lima as well as Manuel Bandera (the father-figure of 20th Century Brazilian poetry), Carlos Drummond de Andrade and João Cabral de Melo Neto, who is probably the best of the present generation. Vinícius de Morais, another fine poet, is also the author of the play on which was based the movie Black Orpheus, best known of the recent series of Brazilian films which have won international renown for the country’s moviemakers (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 102-103)99. No que diz respeito à prosa, propõe a tradução como alternativa às dificuldades enfrentadas pelos leitores internacionais para acessar a literatura brasileira. Lamenta, no 99 A língua é, obviamente, uma barreira entre os escritores brasileiros e o público internacional que eles merecem. Um maior número de traduções pode remediar essa situação no caso da prosa, mas a poesia é bastante impermeável à tradução bem sucedida, e é uma pena que boa parte do mundo continue totalmente ignorante de poetas contemporâneos excelentes como Cecília Meireles e Jorge Lima, bem como Manuel Bandera (a figura-pai da poesia brasileira do século XX), Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, que é provavelmente o melhor da geração atual. Vinícius de Morais, outro poeta excelente, é também o autor da peça na qual foi baseado o Orfeu Negro, o filme brasileiro recente mais conhecido e que ganhou fama internacional entre os cineastas do país. 111 entanto, que quase todo o mundo continue privado da leitura de poemas, uma vez que a versão em outras línguas quase nunca é bem sucedida. Buscando contribuir com a divulgação da literatura brasileira, Bishop traduz alguns textos para o inglês. No entanto, em sua atuação como tradutora, é criticada pelos estudiosos de sua obra (BRITTO, 1999; BURNS, 2002), principalmente no que concerne ao conhecimento dos recursos linguísticos do português. Paulo Henriques Britto (1999) afirma que a pouca qualidade das traduções se dá por conta da dificuldade em reproduzir os efeitos métricos, e conclui que sua limitação principal está, sem dúvida, no conhecimento deficiente da língua portuguesa. A resistência em falar o português talvez esteja associada ao fato de o exilado estar suscetível de enrijecer a língua materna ao fazer uso de outro idioma. Regina Przybycien (2002) rememora a observação de Ernst Weiss, que acredita ser um dos males do exílio o congelamento da língua nativa. O poeta alemão afirma ainda que, “[...] no melhor dos casos, ela pode apenas ser preservada, e isso é uma tragédia para um poeta que, por necessidade, constantemente amplia o uso de sua linguagem” (PRZYBYCIEN, 2002, p. 70, tradução nossa). Através das inúmeras cartas que envia aos contatos americanos, Bishop exercita o uso da língua inglesa. Em agosto de 1963, inicia uma carta a Lowell com uma citação de Virgil Thompson sobre a escritura epistolográfica: “Vou começar uma carta pra você, e Deus sabe quando vou terminá-la. Diz Virgil Thomson: ‘Uma das coisas estranhas a respeito dos poetas é que eles se mantêm aquecidos escrevendo um para o outro, por todo o mundo afora’” (BISHOP, 1995, p. 456). O pouco conhecimento do português leva Bishop a desenvolver um preconceito linguístico que é certamente originário do fato de não ter proficiência nessa língua, o que faz com que não compreenda muito bem a literatura brasileira. Desse modo, demonstra maior interesse por poesia, provavelmente por ser um texto mais curto: “[...] acho a poesia brasileira maravilhosa, muito melhor, na verdade, do que a prosa” (BISHOP apud MONTEIRO, 1996, p.79, tradução nossa). Em relação às artes, vê com certa desconfiança o fato de o brasileiro apreciá-las, assim como atesta em Brazil: Brazil’s veneration for the arts is due not only to European tradition but also to the fact that upper-class Brazil is one big family. In spite of examples of the democracy of the arts – Aleijadinho, Machado de Assis, Mário de Andrade, all mulattoes; and Portinari, the child of poor Italian immigrants – many of the writers and artists do come from the educated and interrelated upper class, in various degrees they are all cousins, and a mutual admiration society is likely to result. It is easy to establish a reputation at an early age. But minor literary quarrels can turn into family quarrels; 112 first names are used, even in serious articles, and everything is taken personally (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 104)100. Recupera, mais uma vez, as ideias de Sérgio Buarque de Holanda (2003), segundo quem a confusão entre familiaridade e democracia funda-se em um passado histórico que influencia o modo de pensar e agir da população. O quadro familiar torna-se uma estrutura que penetra até mesmo os espaços públicos, fazendo sobressair os laços afetivos em qualquer tipo de relação social. Trata-se de elementos que permanecem no imaginário brasileiro e que, a partir de novas representações (e também das desconstruções daquelas já existentes), poderão ser, aos poucos, adaptados ou substituídos. Bishop se apropria da concepção das relações familiares desenvolvida pelo sociólogo, percebendo aí a razão de não haver competitividade no país, o que prejudica o espírito artístico. Tais justificativas se apóiam novamente na leitura de Raízes do Brasil. Essa obra influenciará a autora a pensar que os artistas integram uma grande família. Ela percebe que há admiração mútua entre eles, o que coloca a qualidade da arte em segundo plano e, por isso, passa a considerar a arte brasileira como inferior, pois a ausência de uma crítica cuidadosa resulta em uma menor seriedade dos artistas, se comparados aos americanos. No trecho seguinte, a autora comenta: Although Brazilian writers and artists are spared the abrupt and cruel fluctuations of reputation that artists experience elsewhere, they probably suffer from lack of competition and serious criticism even more than from the relatively limited audience for Portuguese literature or from the deadening effects of facile journalism (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 104)101. Tal pensamento advém da observação de que, no Brasil, o escritor não consegue manter-se financeiramente apenas com a escrita literária. Aponta então ser necessário o exercício de outros tipos de atividades: “[...] the writer in Brazil has to be a doctor, lawyer, engineer or journalist. There are few good magazines and reviews”102 (BISHOP & The Editors 100 A veneração do Brasil pelas artes não é apenas devido à tradição européia, mas também ao fato de que a alta classe brasileira forma uma grande família. Apesar dos exemplos de democracia nas artes – Aleijadinho, Machado de Assis, Mário de Andrade, todos mulatos; e Portinari, o filho de imigrantes italianos pobres – muitos dos escritores e artistas vêm de uma classe alta educada e bem relacionada, em diferentes graus eles são todos primos, resultando em admiração mútua. É fácil ficar famoso ainda jovem. Mas certas discussões literárias menos importantes podem se tornar discussões familiares; assinam com o primeiro nome, mesmo em documentos de valor, e levam tudo para o lado pessoal. 101 Apesar dos escritores e artistas brasileiros estarem sujeitos às mudanças cruéis e repentinas de reputação que os artistas experimentam em todos os lugares, eles provavelmente sofrem de falta de competição e de uma crítica séria e, ainda mais, de um público limitado da literatura portuguesa ou dos efeitos mortais de um jornalismo simplista. 102 [...] o escritor no Brasil tem que ser médico, advogado ou jornalista. Existem poucas revistas e críticas. 113 of LIFE, 1967, p.102). Ainda em relação às dificuldades e privilégios encontrados pelos escritores brasileiros, a autora reitera: But in spite of this fondness for the idea of the poet as a man of special charm and privilege, writers in Brazil, unless they are employed in some government department, have professionally an even harder time of it than they would in the United States. Writing is very poorly paid and there are few fellowships and prizes. There is a mere handful of academic jobs, compared to the thousands that provide a regular income for both poets and prose writers in the United States (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 102)103. Bishop ressalta que os poetas ocupam importantes cargos políticos e o homem de letras ganha um status especial. Nesse contexto, a escrita poética é percebida como uma atividade mais comum no Brasil que nos EUA, pois qualquer homem escolarizado seria capaz de produzir poesia, o que certamente torna-se indício da falta de qualidade desses textos: The poet is a special figure in Brazil, not at all like the figures who goes by the same name in the United States. There has long been a tradition in Latin countries, both European and American, of poets serving as vice consuls, consuls or ambassadors. In Brazil the word “poet” is actually a term of endearment. A man will fondly address a friend who may be an engineer or a politician as “my poet.” Perhaps the custom is a relic of the days when all educated men wrote poetry; certainly the writing of poetry is commoner among Brazilians than among North Americans (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, 102)104. Enquanto a literatura e a língua portuguesa são retratadas como expressões atrasadas e retrógradas, o mesmo não acontece com a arquitetura. Parece que, nesse ponto, a influência exercida por Lota de Macedo Soares teria sido de vital importância. Segundo Bishop (2005, p. 726), Lota não lê nada em português além de jornais (não podendo, dessa forma, atuar como mediadora de leituras). Por outro lado, seu grande interesse em arquitetura leva Bishop a apreciar a produção brasileira nessa área: This extraordinary artistic achievement, Brazil’s greatest, is due almost entirely to a group of imaginative, energetic, sophisticated and daring architects, most of them 103 Mas apesar desse apreço pela ideia do poeta ser um homem de charme especial e ter certo privilégio, os escritores no Brasil passam profissionalmente por mais dificuldades do que se estivessem nos Estados Unidos, a menos que estejam empregados em algum departamento governamental. O trabalho da escrita é muito mal pago e existem poucas bolsas e prêmios. Há um punhado de trabalhos acadêmicos se comparado aos milhares que garantem uma renda regular para poetas e escritores de prosa nos Estados Unidos. 104 O poeta é uma figura especial no Brasil e, definitivamente, não são como as figuras que recebem o mesmo designativo nos Estados Unidos. Por muito tempo, existiu uma tradição nos países latinos – que é também européia e americana – de poetas servindo como vice cônsules, cônsules ou embaixadores. No Brasil, a palavra ‘poeta’ é, na realidade, uma expressão de afeto. Um homem irá carinhosamente se referir a um amigo que pode ser um engenheiro ou um político como ‘meu poeta’. Talvez o costume seja uma relíquia dos dias em que todos os homens educados escreviam poesia; certamente, a tarefa de escrever poesia é mais comum entre os brasileiros do que entre os norte-americanos. 114 still quite young. But Brazilians in general – educated ones, that is – are remarkably architecture-conscious (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 97)105. É importante ressaltar que essa imagem mais positiva da arquitetura é entremeada, às vezes, por críticas já mencionadas em relação ao saber profissional no Brasil. A despeito das críticas, notamos que a influência de Lota foi de extrema importância para desfazer ou fortalecer algumas imagens negativas desenvolvidas por Bishop. Muitos dos preconceitos permanecem, assim como o olhar lançado para artes eruditas, as quais são consideradas, na sua maioria, como imitações de um modelo europeu. Por outro lado, as artes populares serão celebradas, pois Bishop as percebe como expressões artísticas genuinamente brasileiras. A teoria das representações sociais (MOSCOVICI, 2003) aponta para a importância de se ter em mente que os preconceitos, como um tipo de representação, não podem ser totalmente eliminados. Isso porque eles constituem-se como um tipo de realidade. 4.3 Fissurando diques simbólicos As expressões populares sempre despertaram a atenção de Elizabeth Bishop. Esses elementos aparecem na escritura, mas tornam-se, muitas vezes, objetos de sua coleção particular. O crítico Gary Fountain (2002) chama atenção para o fato de que as casas habitadas por Bishop tenham sido ou se transformaram em espaços de exibição. A casa em Petrópolis (a 75 km do Rio), projetada pelo arquiteto Sergio Bernardes, é premiada na II Bienal de São Paulo, em 1954. Sobre ela, Bishop diz: “[...] é a melhor casa moderna do Brasil, terminada ou não, e quem disse isso foi Henry-Russell Hitchcock [...] – quando ele nos visitou, lamentou não poder colocar a casa na exposição que está agora no Museum of Modern Art, por ela não estar terminada” (BISHOP, 1995, p. 334). Para Fountain (2002), possuir uma casa ultramoderna e cheia de objeto de arte funciona para Bishop e Lota como um meio de obter prestígio. Colecionar, nesse sentido, estaria diretamente relacionado ao poder econômico e social. O casarão em Ouro Preto, adquirido em 1965, é nomeado por Bishop de Casa Mariana, em homenagem à amiga e poeta Marianne Moore, e por ficar na estrada que leva à 105 Essa extraordinária realização artística, a maior do Brasil, é devida quase que inteiramente a um grupo de arquitetos imaginativos, cheios de energia, sofisticados e queridos, muitos deles bastante jovens. Mas os brasileiros no geral – os educados – têm uma incrível consciência da importância da arquitetura. 115 cidade de Mariana. Apaixonada pela nova residência e pela cidade, adquire mobiliário do século XVIII e início do XIX. Nesse período, suas cartas abundam de descrições que, por vezes, contêm também desenhos: [...] entrei numa lojinha simpática que faz placas de esmalte para médicos, prefeituras e coisas assim. Estou mandando em anexo o desenho da placa que estão fazendo para mim, a qual vai ser pregada no alizar, bem no alto. O alizar é azul, e a porta é amarela. É uma porta antiga, enorme, de uma igreja abandonada – acho que vou mandar um desenho da porta também. A plaquinha é de esmalte branco com letras azuis. (BISHOP, 1995, p. 566). Depois da morte de Lota de Macedo Soares, Bishop tenta viver em Ouro Preto, mas logo desiste de seu sonho. A autora vive um período conturbado e, sem a mediação da amiga brasileira, passa por dificuldades em lidar diretamente com o povo e a cultura, o que a faz tomar a decisão de ir embora. Menciona, em várias cartas, o modo como ela e sua nova companheira são agredidas. Ainda assim, Bishop comenta: “[...] continuo achando a minha casa a mais bonita do mundo, e a cidade é linda também, do ponto de vista arquitetônico – mas isso não basta [...]. Quando eu for embora, vou levar minha placa de esmalte como souvenir (BISHOP, 1995, p. 569-570). Sua última casa, localizada em Lewis Wharf, Boston, assemelha-se a uma espécie de galeria de arte, na qual a poeta organiza as peças adquiridas ao longo da vida. Gary Fountain (2002) menciona um relato feito por uma professora de literatura, Helen Muchnic. Ao entrar no apartamento, seu olhar detém-se em um objeto oval que pende do teto. Fica surpreendida ao perceber que se trata de um ovo de avestruz. Encontra também outros objetos incomuns dividindo espaço com trabalhos assinados por artistas amigos da autora. Fountain analisa o hábito de colecionar de um ponto de vista etnográfico. Fundamentado nos estudos de James Clifford, ele destaca a complexidade do fenômeno de 116 coligir, principalmente quando se trata de objetos primitivos ou populares. Em um mundo no qual o tempo é pensado a partir de sua linearidade e irreversibilidade, o ato de colecionar traduz-se como uma tentativa de paralisar a instância temporal, pois a reunião de tais objetos funciona como metonímias de culturas perdidas. Colecionar então pode ser explicado como um modo de dar “[...] forma, estrutura e continuidade ao mundo” (CLIFFORD apud FOUNTAIN, 2002, p. 261, tradução nossa). Dessa maneira, quando o colecionador manipula o passado, ele pode lhe impor uma ordem e um significado. O impulso de preservação vem acompanhado da vontade de controlar e dominar. Para Clifford, colecionar é um ato ligado, de alguma forma, à obsessão, pois acaba sendo, também, um exercício de possuir o mundo. No momento em que Lota e Bishop decidem comprar uma casa velha para restaurar, elas têm como opção primeira o litoral e, por isso, visitam o município de Parati. O espaço é descrito como: [...] um pequeno porto que praticamente não mudou nada nos últimos duzentos anos, mais ou menos. [...] Lá dá para comprar uma casa imensa, totalmente século XVIII – três andares, vigas de mais de meio metro de espessura etc. – por cerca de dois mil dólares – com um jardim enorme com palmeiras e tudo. Eu tinha vontade de comprar a cidade inteira, só para preservá-la (BISHOP, 1995, p. 421, grifo nosso). Bishop demonstra grande interesse por objetos antigos e pela arte primitiva. No Brasil, interessa-se por construções antigas, pela vida nas cidades pequenas, pela literatura de cordel e por objetos produzidos pela população local. O gosto pelo primitivo e pelo exótico faz com que manifeste necessidade de registrar a cultura considerada por ela genuína (pois, conforme anotado nos rascunhos, essa cultura corre o risco de logo se extinguir em face dos avanços da contemporaneidade). Ela coleta até mesmo frases de pára-choque de caminhão, as quais possivelmente seriam acrescentadas ao livro Brazil. Um dos manuscritos apresenta frases já traduzidas para o inglês, enquanto que o outro registra uma lista a ser ainda traduzida. TRUCK-BUMPERS WOMEN – HERE I COME! NO PASSENGERS – Without tight skirts WOMAN * STILL THE BEST BRAZILIAN PRODUCT IT DOESN’T PAY BUT IT’S AMUSING (on a beaten up old truck) LOVE WAS MY RUIN OUT OF THE WINDOW, NO SEY GOD GUIDES, I STEER WHO HITS FROM BEHIND IS A COWARD DON’T CRY – I’LL SOON BE BACK (Box 47.1, #21)106. 106 PÁRA-CHOQUES DE CAMINHÃO MULHERES – AQUI VOU EU! / SEM PASSAGEIROS – Sem saias curtas MULHER* AINDA O MELHOR PRODUTO BRASILEIRO 117 Minha mãe quer uma nora Amar foi a minha ruína (num caminhão todo arrebentado) Fé em Deus e pé na tábua Não chora que eu volto já Deus é o dono da estrada e o diabo é dos buracos Você sobe, mas o anjo da guarda não Subir é fácil descer só com o papai Gazolina só fede depois que vira fumaça Carreto pago levo até defunto O carro é a frete mas o dono é forro Morena vai [colo] no colo barbado no liquidificador Deus me guia e o diabo me defende Buraco é meu brinquedo e lama meu travesseiro Pneu e mulher recauchutou estragou De pneu velho e moça donzela livrai-nos senhor Coragem sem cautela é motor sem freio Coragem ao homem e freio ao motorista (Box 47.1, #22) Habilmente, Bishop capta o humor contido nas referidas frases. O senso de humor de seus textos é atribuído por Laura Jehn Menides (2002) a influências de outros autores. Menides destaca o gosto de Bishop pela comédia literária e pelo humor dos poetas metafísicos, pelo conhecimento do trabalho de Freud relacionado ao humor, além do próprio sentido de perspectiva e ironia presentes nos trabalhos da autora. Interessa-se pela arte popular e, por isso, desenvolve o hábito de colecionar objetos feitos por artesões locais. Em carta à Doutora Anny Baumann, em 1952, Bishop faz comentários sobre uma cozinheira pintora que tem um estilo primitivo e que chama bastante a sua atenção. Compara tais trabalhos aos de Portinari, concluindo que os da cozinheira são bem melhores. Enquanto estávamos viajando, a cozinheira começou a pintar – o que prova que a arte só floresce no ócio, creio eu – e revelou-se uma pintora primitiva maravilhosa, de modo que daqui a mais algum tempo vamos estar vendendo os quadros dela na 57th Street e vamos todas ficar ricas. Encontramos uma pintura grande que ela fez numa pedra – um pássaro – aproveitando um líquen grande como parte do corpo. Não comentamos muito, com medo de ela acabar pintando as paredes. Lota pediu a ela que por favor limpasse a lata de lixo – ela é meio selvagem e muito suja, embora excelente cozinheira – e dez minutos depois encontramos a lata pintada em tons violentos de vermelho, rosa e preto. A Lota tem uns vasos que Portinari fez para ela, e somos obrigadas a reconhecer que os da cozinheira são muito melhores (BISHOP, 1995, p. 247) NÃO PAGA MAS É DIVERTIDO (em um caminhão velho e batido) O AMOR FOI MINHA RUÍNA FORA DA JANELA, SEM SEXO DEUS GUIA, EU DIRIJO QUEM BATE POR TRÁS É UM COVARDE NÃO CHORE – EU LOGO RETORNAREI. 118 Outro elemento cultural que desperta o interesse da autora é o carnaval e as letras de samba. Nos manuscritos de Brazil, encontramos traduções das canções, as quais reforçam a ideia da exuberância da mulher brasileira. < what a lovely girl > The girl in the monoquini [what a lovely girl] went to the beach without confetti Wearing only a serpentine Mr judg, oh oh Let the girl go pretty who went to the beach in a serpentine If she were ugly it would be indecent But being pretty she's innocent [il] ! (league and a half o naked women) etc - […] Oh oh oh oh this here gives me the idea of the last days of Pompeii A woman drinking a woman smoking I’m seeing things I never saw Oh is all the world crazy or has Nero baixou here – (#35) I have a neurosis about women I can’t see a woman samba Nervousness goes to my head And I want to seize her – clasp her – I have a strong desire to cling – (Box 47.1, #35)107. A representação da mulher como sensual nas letras de samba reafirma, mais uma vez, dois símbolos brasileiros que povoam o imaginário estrangeiro. Evoca, dessa maneira, mitos relacionados à personalidade do povo brasileiro, como a alegria e a sensualidade. Nesse 107 <que garota amável> A garota de monoquini [que garota amável] foi à praia sem confeti Usando apenas uma serpentina Sr. juiz, oh oh Deixa a garota ir bela que foi à praia de serpentina Se ela fosse feia seria indecente Mas sendo bonita ela é inocente [il]! (légua e meia ou mulher nua) etc. […] Oh oh oh oh isso aqui me lembra dos últimos dias de Pompéia Uma mulher bebendo uma mulher fumando Eu estou vendo coisas que nunca vi Oh todo o mundo está maluco ou Nero baixou aqui – Eu tenho uma neurose por mulher Eu não posso ver uma mulher sambar O nervosismo sobe à cabeça Eu quero agarrá-la – abraçá-la – Eu tenho um forte desejo de abraçar – 119 contexto, a construção de sentidos acaba sendo alimentada por imagens aparentemente elaboradas pelos próprios brasileiros, os quais, desde os tempos da colônia, aprenderam a se definir a partir do olhar estrangeiro. Trata-se de uma identidade que só pode ser delineada em relação ao exterior, pois, como aponta Renato Ortiz (1994), tais inquietações surgem da condição de país de Terceiro Mundo que o Brasil ocupa no panorama internacional. Repetidamente, o Brasil tem sido apresentado como o país do café, do samba, das praias, das mulheres exuberantes, do carnaval e também da violência, da corrupção, da inflação e da ditadura. (DAMATTA, 1996). No imaginário estrangeiro, o Brasil é caracterizado como um país contraditório e polarizado; por um lado, o espaço brasileiro é apresentado como um paraíso terrestre. Por outro, é ressaltado o seu lado escuro, relacionado aos problemas decorrentes do subdesenvolvimento. Uma polaridade que aponta para o mito do Brasil como um país de contrastes. O gosto pela expressão popular faz com que Bishop dedique o capítulo seis de Brazil às artes populares, o qual intitula The unselfconscious arts (As artes espontâneas). Ao contrário da visão mais preconceituosa dos editores, para quem a arte popular é uma habilidade – Graceful and popular skills (Graciosas habilidades populares), – a autora valoriza o popular, dando-lhe status equiparado ao erudito, com o cuidado de criar títulos que levem em conta uma equivalência entre os dois tipos de arte. Em Brazil, as artes populares ganham centralidade e importância, o que nos faz observar que tais expressões, excluídas durante muito tempo, são percebidas agora como algo à parte do mercado dos bens simbólicos legítimos (CANCLINI, 2003, p. 205), estando sujeitas a constantes renovações. No entanto, a representação que Bishop faz do popular está ainda atrelada ao pré-moderno e ao subsidiário: But the poor people of Brazil, the rural people of the coast or the interior, have almost no cash income and can buy almost nothing. They still make many of the things they wear or use, and these articles are often of very high artistic value. Since the poor man also has no entertainment (or had not until the advent of the radio) he produces his own: songs, ballads, dances and traditional, sometimes elaborate folk plays, which appear according to the saint’s days and the seasons (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, 83)108. O popular aparece aqui relacionado à pobreza e ao primitivo. Bishop aprecia a capacidade de criação a partir da total falta de recursos, uma arte surgida da necessidade de sobrevivência. De fato, a autora pertence a uma elite que busca as expressões híbridas, a 108 Mas as pessoas pobres do Brasil, as pessoas da zona rural costeira ou do interior não têm quase nenhuma renda e não podem comprar quase nada. Elas ainda fazem muitas das coisas que vestem ou usam, e esses artigos são geralmente de um valor artístico muito alto. Desde que o pobre também não tem nenhum entretenimento, (ou não tinha até o advento do rádio) ele produz seu próprio entretenimento: músicas, baladas, danças e, às vezes, elaboram peças folclóricas tradicionais que surgem em função do dia do santo e da estação. 120 exemplo da cultura popular que passa a funcionar como elemento simbólico de distinção. Serge Gruzinskyi (2001, p. 40) diz que: Por trás de seu caráter aproximativo, esse discurso, que vai se banalizando não é tão neutro nem tão espontâneo como parece. Nele é possível enxergar a linguagem de identificação das novas elites internacionais, que, desenraizadas, cosmopolitas e ecléticas, apelam para todo o tipo de empréstimo às ‘culturas do mundo’. Tal linguagem corresponderia a um fenômeno social e a uma tomada de consciência desses ambientes acostumados a consumir tudo o que o globo lhes oferece [...]. Uma nova maneira [...] de se distanciar do meio de origem e de se distinguir do resto da população. Elizabeth Bishop mostra-se, em vários momentos, interessada na cultura produzida pelo povo. Demonstra preocupação com os contatos globais que uma cidade pequena pode estabelecer, interessando-se pela preservação das tradições (assim como relata em carta ao amigo Robert Lowell). Deixa expresso aí o sentimento em relação à transformação de culturas locais: [...] a extinção de culturas locais é a meu ver uma das maiores tragédias do nosso século – e creio que isso está acontecendo no mundo todo – pelo menos no Brasil está. Antigamente havia cidades pequenas ribeirinhas que eram verdadeiros centros; nelas havia professores de música, de dança, de línguas – faziam-se móveis lindos e igrejas magníficas. E agora são todas cidades mortas, aonde chegam caminhões desconjuntados trazendo leite em pó, bijuterias japonesas e a revista Time. (BISHOP, 1995, p. 446, grifo nosso). Naquele momento, Bishop não percebe que os processos globais fazem romper o isolamento das comunidades locais e que as “bordas das novas diferenças” já não podem ser simplesmente soldadas, porque além do processo de “balcanização” sofrido pela cultura e da erosão da memória, existe ainda o que é caracterizado por Beatriz Sarlo (2000) como um ácido mais corrosivo – os meios de comunicação de massa. Há, então, uma circularidade das culturas, que podem ser tanto veiculadas através dos media quanto levadas no imaginário do imigrante. Com a perda do caráter territorial, as comunidades deslocam-se e misturam-se, produzindo uma identificação com o novo. A transformação é, para a cultura popular, uma questão de permanência. Trata-se de expressões que se versatilizam no momento em que se chocam com modelos distintos e, assim, garantem sua continuidade. A cultura popular, com sua natureza dinâmica, só pode carregar a marca da mestiçagem, como Bishop (1967, 83-84) reconhece ao contemplá-la: The richness and variety of these native arts owe much to the fact that, like the Brazilian people themselves, they are culturally mixed: they were inherited from the Portuguese and Moors and influences by the Indians and by African slaves. Occasionally now, in the southern part of the country, influences of German, Italian, 121 Japanese and Polish immigrants can be noticed as well (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 83-84)109. Ao tratar da riqueza e variedade como inerentes à cultura popular brasileira, Bishop, de certa forma, antecipa o conceito de mistura cultural. Para Gruzinski (2001, p. 42), a mestiçagem relaciona-se a palavras como “misturar, mesclar, amalgamar, cruzar, interpenetrar, superpor, justapor, interpor, imbricar, colar, fundir” etc. A mestiçagem é capaz de gerar novas ideias que povoam os locais denominados por Homi Bhabha (2007) de espaços “in between” – lugares onde as diferenças culturais podem ser articuladas. É o espaço de fronteira que tem como características a porosidade, a permeabilidade e a flexibilidade. Por isso, as expressões nascidas no espaço da mestiçagem oscilam em busca de novas configurações. O carnaval brasileiro, passando por reconfigurações, é descrito como uma manifestação que está sendo destruída por conta da influência dos acontecimentos globais. […] carnival is one of the greatest folk spectacles left on earth. Or perhaps one should say that it was, because in the big cities, at least, Carnival unfortunately is rapidly being spoiled. Commercialism and a false idea of what appeals to the tourist are partly to blame. Hollywood has had its dire effect, too. For example, a few years ago Carnival seemed to have turned into a movie nightmare. A Biblical epic had recently been popular, and thousands of Davids and Bathshebas samba-ed in the streets in monotonous and unoriginal getups (BISHOP & The Editors of LIFE, 1967, p. 88)110. Elementos díspares são incorporados obedecendo à lógica que Martín-Barbero (2003) diz ser captada pelo circo: a lógica dos contrastes que, ao incluir personagens bíblicos a uma festa profana (por influência do cinema hollywoodiano), faz, na realidade, uma seleção crítica e uma assimilação do estrangeiro, sem haver, necessariamente, a descaracterização do carnaval. Os setores populares buscam a modernidade, misturando-a com suas tradições. Há então um movimento constante de reestruturação dos pares moderno/tradicional e culto/popular. Assim, o popular se torna, cada vez mais, uma teatralização construída como algo que pertence a uma tradição atemporal. Quando Bishop rememora os formatos mais 109 A riqueza e a variedade dessas artes nativas estão relacionadas ao fato de que, assim como os próprios brasileiros, elas são culturalmente misturadas: foram herdadas dos portugueses e mouros, e influenciada pelos indígenas e pelos escravos africanos. Ocasionalmente agora, na parte sul do país, influências de imigrantes alemães, italianos, japoneses e poloneses podem ser notadas também. 110 O carnaval é um dos maiores espetáculos populares que restaram sobre a terra. Ou talvez deveríamos dizer que ele foi, porque nas grandes cidades, pelo menos, o carnaval infelizmente está sendo arruinado. O comercialismo e a falsa ideia que se passa ao turista são parcialmente culpados. Hollywood também tem causado um efeito terrível sobre ele, também. Por exemplo, há poucos anos, o carnaval parecia ter se transformado em um filme de terror: recentemente um épico bíblico ficou popular [no cinema] e milhares de Davids e Betsabás sambavam nas ruas em trajes monótonos e sem originalidade. 122 antigos do carnaval como expressões genuínas e ideais, certamente não tem em vista a circularidade como uma característica inerente a qualquer sistema cultural. Para representar o Outro, por vezes, Bishop recupera a representação feita pelos brasileiros, acreditando que, através de imagens construídas pelo próprio sujeito representado, estaria resgatando a genuinidade cultural. Nos manuscritos, encontramos diversas piadas, as quais, não diferentes das representações feitas por outros viajantes, acabam engessando a imagem do Brasil, a partir de traços esquemáticos. A caricatura, palavra que vem do italiano caricare e do francês charger traz o sentido de carregar ou sobrecarregar (Kris, 1968, p.133). Pensando na imagem gráfica, o psicólogo e historiador da arte Ernst Kris revela que a caricatura é um mecanismo psicológico com finalidade de ridicularizar a vítima através da deformação do modelo, o que faz surgir algo semelhante a uma careta. Trata-se de um tipo de desenho, que tem origens similares à da palavra (trocadilhos e piadas ou charadas) e mantém correspondência com o sonho; são expressões manifestadas por meio de uma linguagem capaz de acionar o inconsciente (KRIS, 1968, p.134). Essa perspectiva nos leva a pensar na imagem como dotada de um poder mágico, de natureza enigmática; somos de alguma maneira, “[...] forçados a adivinhar suas associações e alusões”. É quando a caricatura se torna uma charada. Nesse sentido, Bishop também desenvolve o próprio conceito de charada: Charadas. Um enigma verbal ou encenado, que se baseia numa palavra com duas ou mais partes significantes [...], podendo se conjecturar os significados de cada uma dessas partes, como também da própria palavra em si, através de suas representações. [...] O poema inclui, no nível do significado, [...] uma charada que convoca o sonho e a sua interpretação (BISHOP apud ANASTÁCIO, 1999, p. 78). O aspecto lúdico do trabalho com as palavras parece encantar Bishop. Lorrie Goldensohn (1992) afirma que a autora se compraz em manipular formas infantis através da linguagem, o que pode ser depreendido de alguns escritos. Questiona o que faz Bishop sentirse atraída pelo Brasil e qual o motivo de sua permanência por tanto tempo. Trata-se de um modo de ver que se compraz em descrever as paisagens brasileiras através de mecanismos como o distanciamento e a miniaturização. Em um dos manuscritos de Brazil, Bishop reporta que, ao visitar um amigo internado em um hospital, ele descreve a vista da janela como algo que se assemelha a um cenário aprazível para um garoto de oito anos. E Bishop complementa: […] And it did look like a child’s drawing: Four or five unreal peaks; two cable cars dangling on wires; planes landing and taking off; lights coming on all round the bay and huge signboard giving the hours and the news. … Goats lounging on a little footbridge, looking down enthralled by the hour of the “roosh” – all the elements 123 were there to delight the heart of a child – and yet altogether a delicate and slightly mad beauty (Box 47.1, #32)111. Essa percepção se reveste de traços que se aproximam do infantil que, associada à simplicidade do estilo de Bishop, parece pôr um mundo mágico em movimento. A escritura é então capaz de fazer a autora retornar ao universo infantil, egocêntrico e centralizador que, como tal, cede espaço ao olhar imperialista. Indícios desse modo de retratar o brasileiro se expressam quando Bishop o compara a animais ou o qualifica como um deles: Last paragraph: What I said was ‘the round, almost conical green hills, the Negro women carrying white bundles on their heads, like ants with their eggs, the children playing futebol, the dry, broken graveyards – even details like kites, balloons, and the way the ever-present umbrella is worn hanging from the back of the collar…’ (Box 47.1, #24)112. As imagens culturais são reelaboradas a partir do lúdico, o que reflete o distanciamento de quem vê objetos a partir de um referencial externo. Quando a figura humana é comparada à imagem minúscula de um inseto, a representação sugere o distanciamento – tanto no nível físico quanto cultural – além de mostrar-se como uma estratégia simbólica de dominação. A miniaturização é um mecanismo usado para distanciarse do observado que, como um brinquedo, torna-se objeto possuído e manipulável, portanto, passível de dominação. Deparamo-nos, por vezes, com algumas imagens exageradas, retratadas por meio da estratégia caricatural. Isso faz com que elas apresentem-se carregadas de traços artificiais, pois sua montagem está estruturada em um esquema simples de representação, o que faz ecoar estigmas anteriormente construídos. O que mais atrai Bishop ao espaço brasileiro é sua curiosidade pela natureza. Paulo Henriques Britto (1999, p. 26), tradutor e crítico da obra da autora no Brasil, atesta que ela nutria uma curiosidade distanciada pelos costumes da gente simples. E se, diante da cultura brasileira, os criados chamavam mais a sua atenção do que os literatos, seria “[...] porque aqueles poderiam, mais facilmente, ser assimilados ao mundo natural”. 111 […] E parecia um desenho infantil: Quatro ou cinco picos irreais; dois teleféricos pendurados em fios; aviões pousando e decolando; luzes indo para todas as partes da baía e uma grande placa informando as horas e as notícias. … Cabras preguiçando em uma pequena ponte, indiferentes e encantadas com a hora do ‘rush’ – todos os elementos estavam lá para deleitar o coração de uma criança – e ainda uma delicada e ligeira beleza selvagem. 112 Último parágrafo: o que eu disse foi ‘nas verdes montanhas arredondadas, quase cônicas, mulheres negras carregam trouxas brancas na cabeça, como formigas com seus ovos, as crianças jogando futebol, os cemitérios secos e quebrados – mesmo alguns detalhes como pipas, balões e a forma como cada sombrinha está pendurada por trás do colarinho…’ 124 Enquanto o natural e o popular ganham uma centralidade cada vez maior em sua obra, a alta cultura se torna assunto de pouco interesse. Sobre o grande interesse de Bishop pelo livro Minha vida de menina, Paulo Henriques Britto (1999, p. 26-7) comenta: “[...] é sintomático que o livro brasileiro que mais a entusiasmou seja não um romance ou um livro de poesia, e sim o diário de uma adolescente do interior”. Compreender mais profundamente a literatura brasileira exigiria da autora uma imersão na cultura brasileira. A não disposição de apreender a nova cultura se liga ao fato de percebê-la como inferior, bem como ao status primitivo que é atrelado à língua portuguesa falada no Brasil. Bishop, consciente de sua deficiência em assuntos brasileiros, menciona, em carta a Robert Lowell (no momento em que está empenhada em escrever a introdução para sua antologia de poemas brasileiros): “[...] é terrível pensar que provavelmente vou ser considerada uma espécie de autoridade sobre o Brasil pelo resto da vida” (BRITTO, 1999, p. 26-7). Considerada por alguns como a poeta da pobreza, tal tema lhe traz bons rendimentos, o que faz com que se sinta, em alguns momentos, culpada. Comenta com os Barkers, em junho de 1956, sobre o poema Manuelzinho: “[...] Eu ganhei tanto dinheiro com o pobrezinho que agora eu me sinto culpada toda vez que ele vem para a cozinha com um maço de rabanetes monstruosos” (BISHOP apud ÁVILA, 2002, p. 252, tradução nossa). Eliana Ávila diz que há, nos textos de Bishop, a necessidade de firmar uma centralidade cultural, o que se traduz, embora de forma conflituosa, em uma prática de exotizar o Outro. A cultura original da americana, nesse contexto, lhe serve de paradigma para dar conta da realidade intercultural que deseja estabelecer. A condição de desterrada é acompanhada da necessidade de controlar e se apropriar do espaço não somente na esfera física, mas também através do campo simbólico e ficcional. Ao re-significar e se apropriar simbolicamente do novo espaço, Bishop busca ajustar as novas possibilidades encontradas no trânsito entre perspectivas culturais distintas. Na análise de Brazil, debruçamo-nos sobre representações que se formam através das geografias imaginárias da autora, para quem a construção do significado de brasilidade fundamenta-se em um cotejo com outras imagens trazidas em sua “bagagem”; assim, pode-se inferir que a cultura com a qual ela se depara é submetida a um sistema de valoração que traz, em um dos pratos da balança, representações pertencentes a outros sistemas culturais. A capacidade de circulação do sujeito foi, até um passado muito próximo, interpretada por teóricos como desterritorialização, alguns chegando até mesmo a anunciar o fim dos territórios. Apoiado nos estudos de Deleuze, Haesbaert dirá que não existe desterritorialização sem uma reterritorialização subsequente. Oportunamente adverte-nos para a impossibilidade 125 de se pensar em um território no singular, mas aponta para a existência de multiterritórios, pois tendem a se apresentar de forma “[...] complexa, em rede e com fortes conotações rizomáticas, ou seja, não-hierárquicas” (HAESBAERT, 2004, p. 343). A territorialização, associada às relações de domínio e apropriação do espaço, está também mediada pelo poder – em sentido amplo – que, segundo o geógrafo, estende-se do mais concreto ao mais simbólico. 4.4 Trilhando o caminho de casa O percurso seguido por Elizabeth Bishop indicia que, desde muito jovem, ela anseia por encontrar um lar. Diz encontrá-lo no Brasil. No entanto, é interessante notar que seu Brasil ideal é a casa de Petrópolis, local em que pode permanecer isolada em uma fazenda no alto de uma serra, ou ainda Ouro Preto, cidade pequena do interior, na qual se preserva a vida simples. Encantada por Ouro Preto, a autora menciona: “[...] as pessoas nos lugarejos pobres são absolutamente naturais, e de uma polidez e de educação extraordinárias” (BISHOP, 1995, 476), e “[...] gosto de Ouro Preto porque lá tudo foi feito ali mesmo, à mão, com pedra, ferro, cobre e madeira. Tiveram que inventar muita coisa – e tudo está em perfeito estado há quase trezentos anos [...]” (BISHOP, 1995, p. 484). Parece que há uma fuga dos locais onde a intelectualidade ou a vida urbana se constituem. Bishop opta pelo isolamento parcial, que lhe permite manter relações com o país de origem. De fato, ela tinha a própria definição do que viria a ser seu lar: “[...] Eu nunca me senti particularmente em casa. Eu acho que essa seja uma boa descrição do senso de lar de um poeta. Ele o carrega consigo” (BISHOP apud TRAVISANO, 1989, p. 131, tradução nossa). O estrangeiro acaba se impregnando de sentimentos ambíguos que não são resolvidos internamente e, por isso, acabam sendo projetados na imagem do Outro. Isso faz surgir uma criação permeada por dúvidas e incertezas. São reflexos que se traduzem como contradições no processo de criação, geradas a partir do embate com o Outro. Ilka Boaventura Leite afirma que na diferença, o conhecimento do ‘Outro’, enquanto tentativa de conhecer-se a si mesmo, era o primeiro passo na busca da própria identidade. Mas o que seria o ‘Outro’ senão uma demarcação para a própria conformação do Eu? Neste jogo de contrastes, algumas ferramentas de tradução da diferença: o ‘tempo’, segundo a procedência, foi a semelhança que introduziu a diferença. Para os viajantes, o Brasil constitui um referencial para pensar a semelhança na diferença. A identidade, produzida nessa contraposição, torna-se então inclusiva (LEITE, 1996, p. 98). 126 Conhecer o Outro funciona, para Bishop, como um modo de reelaborar a imagem que tem de si própria. Ao passo que vai conhecendo o Outro, vai também deixando pistas de sua vontade de não ser integralmente incorporada ao espaço e cultura brasileiros; torna-se então capaz de novamente identificar-se com o grupo de origem. Para Bishop, isso se estabelece somente a partir do contato com terras distantes. Indícios dessa identificação podem ser atestados através de um dos últimos poemas não-publicados: Dear, my compass still points North to wodden houses and blue eyes, fairy-tales where flaxen-headed younger sons bring home the goose, love in the hay-lofts, Protestants, and heavy drinkers… Springs are backward, but crab-apples ripen to rubies, cranberries to drops of blood, and swans can paddle icy water, so hot the blood in those webbed feet. Cold as it is, we’d go to bed, dear, early, but never to keep warm (REVISTA BRAVO, 1998, p. 70)113. Possivelmente escrito depois da morte de Lota, esse poema revela o desejo de retornar ao território de origem. Conforme Haesbaert, [...] o poder do laço territorial revela que o espaço está investido de valores não apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos. É assim que o território cultural precede o território político e com ainda mais razão precede o espaço econômico” (BONNEMAISON e CAMBRÈZY apud HAESBAERT, 2007, p. 72). 113 Meu bem, minha bússola / ainda aponta para o norte / para casas de madeira / e olhos azuis, como nos contos de fada / em que os caçulas / de cabelos louros / trazem os gansos para casa, e no palheiro, o amor. / Protestantes e / beberrões... / A primavera já passou mas as maçãs silvestres / continuam maduras como rubis / e as amoras / parecem gotas de sangue, e os cisnes remam / na água gelada, / com pezinhos entrelaçados / e o sangue, tão quente... Frio como está, meu bem / iríamos para a cama cedo, / mas não / para se aquecer. 127 Assumir os papéis de viajante e de estrangeira se torna, para Bishop, o caminho para a busca de si mesma. Através da imagem do Outro, ela é capaz de descobrir aspectos do eu ainda não revelados. Alguns vestígios ficam registrados em seus escritos, conforme procura uma identidade para si. Thomas Travisano (1989) irá dizer que o importante para Bishop será sempre o objeto que se encontra diante dos olhos. Por isso, cada lugar será considerado como lar. Trata-se de uma trajetória de descobertas tanto de si, quanto do Outro, pois buscar o entendimento do mundo do Outro acaba sendo, também, um modo de abordar o mundo esteticamente. Assim, torna-se possível “sentir-se em casa no mundo dos outros” (BAKHTIN, 1997, p. 126). O sentimento de estar em um lar verdadeiro se relaciona com a atuação de Lota de Macedo Soares como protetora, uma característica bem típica do papel de mãe. Depois da morte da companheira brasileira, Bishop se vê sem a figura responsável pela relevante mediação cultural, o que certamente influencia sua vida no Brasil. Ela passa a não suportar o relacionamento direto com os brasileiros, fato muito importante na decisão de retornar aos Estados Unidos. Em carta ao amigo Robert Lowell, em dezembro de 1969, confessa: Você me animou muito ao dizer que sou ‘amada e admirada’. Aqui, sem dúvida alguma não sou nem uma coisa nem outra, e fico mesmo me perguntando que diabo estou fazendo aqui, e bem que gostaria de poder ir embora DEPRESSA. Mas antes tenho muita coisa pra fazer. [...] Estou ficando totalmente paranóica – mas é verdade – a cidade inteira está tentando nos tosquiar, até mesmo vendedores de bananas de oito anos de idade etc. E a nossa empregada, infelizmente, não é o que parecia, apesar de a gente lhe pagar um tratamento dentário completo no Natal e dar uma fortuna em vitaminas, sapatos e não sei mais, para ela e a filhinha dela. Fico até com medo de viajar para ‘descansar’ agora. Não ouso deixar a casa nas mãos dela. Meu Deus, isso aqui é um antro de ladrões. Me desculpe: a coisa está mesmo me abalando [...] Estes últimos meses tem sido uma perda de tempo total – e os meses antes destes também. Pode ser que depois eu até ache graça nisso tudo, algum dia, mas se eu estivesse ficado em N. Y. ou S. F. acho que eu poderia ter trabalhado no livro sobre o Brasil e até mesmo conseguido dizer algumas coisas simpáticas. Agora esqueci que coisas eram essas! Acho que foi porque durante muito tempo a Lota era minha intermediária, ao menos em Petrópolis, e lá fui feliz de verdade por muitos anos. Agora fico achando que foi o país dela que a matou – e é capaz de matar qualquer um que seja honesto e tenha padrões de exigência elevados e queira fazer alguma coisa boa – e meu único desejo é sair daqui. Mas viver de quê? (BISHOP, 1995, p. 568, grifo nosso) O embate com a cultura do Outro é capaz de fazer com que o sujeito comece a problematizar a própria identidade; parece que, para Bishop, o choque funciona como um motor que acelera os processos de construções identitárias. Talvez a distância tenha sido necessária para que ela melhor pudesse organizar as imagens adquiridas ao longo da vida. Dois anos antes de sua morte, em 1977, é entrevistada por George Monetiro e, quando perguntada de suas impressões sobre o Brasil, ela responde: 128 Ao contrário de muitas pessoas, eu não tenho teorias sobre o Brasil. Imediatamente após minha chegada, eu tinha teorias e elas eram perspicazes [...]. Aos poucos, essas teorias evaporaram. O Brasil tornou-se meu lar (BISHOP apud MONTEIRO, 1996, p. 80, tradução nossa). O sujeito constrói representações porque sente profunda necessidade de entender e responder aos “[...] enigmas que o ocupam e preocupam desde o berço e dos quais ele nunca para de falar” (MOSCOVICI, 2003, p. 42). Tal inquietação desencadeia a necessidade de construção de referências interligadas com sentimentos de continuidade, indícios de uma lógica linear na experimentação do tempo. O encontro com o Outro desorganiza a suposta ideia de linearidade das representações, ruptura que se apresenta como ameaça à ordem supostamente estabelecida. O modo de Bishop ajustar-se à novidade em meio a signos antigos se torna uma tentativa de transformar o estranho em familiar, por meio da incorporação das novas imagens, pois re-apresentar é [...] um meio de transferir o que nos perturba, o que ameaça nosso universo, do exterior para o interior, do longínquo para o próximo. A transferência é efetivada pela separação de conceitos e percepções normalmente interligados e pela sua colocação em um contexto onde o incomum se torna comum, onde o desconhecido pode ser incluído em uma categoria conhecida (MOSCOVICI, 2003, p. 56-57). A vida de Bishop parece ter se desenvolvido como uma trajetória de experimentações. A falta de um senso de lar lhe impulsiona, de maneira mais intensa, a partir em busca de imagens. Imagens que alimentam seu projeto artístico. Imagens que ajudam a traçar uma rota que vai se definindo em meio a inúmeras viagens e que se revelam como um caminho de descobertas. Bishop desvela o Outro para poder compreender um pouco de si. Para, no fim da vida, voltar ao ponto de origem. Trilhar o caminho de casa. CONCLUSÃO Qualquer lugar não é do jeito que você imaginou, o que não significa que seja de modo algum inferior. A imaginação tem a sua própria geografia. (BISHOP, Box 90.1). Os discursos que Elizabeth Bishop faz circular, sejam epistolares ou artísticos, são caracterizados por uma mobilidade presente no modo de lidar com o imaginário e a realidade, traduzindo-se como categorias oscilantes em seu projeto artístico. Há uma dupla alimentação das representações. Nesse processo, ganha vulto a novidade que se apresenta aos olhos de Bishop, assim como a influência de outras imagens que ela traz na bagagem. Intermediações de pessoas, livros ou instrumentos de aproximação visual (como os binóculos) se tornam os meios necessários para o acesso à cultura brasileira. Nesse sentido, consideramos que as representações em Brazil apresentam um sujeito posicionado a certa distância da realidade apreendida. Bishop recorre frequentemente a seus arquivos mentais, o que nos faz deduzir que o Outro, em seu livro de viagens, encontra-se distorcido por aquelas imagens que inevitavelmente se antepõem ao objeto observado. Trata-se de um processo que acaba borrando os contornos de uma representação que se pretende fidedigna. Sobre a produção do referido livro, observamos que, ao contratar Bishop, o interesse da Time-Life não era o de conciliar arte e mass media. A autora então se mostra indignada por lhe ser podada a capacidade imaginativa e eliminadas as características que tanto preza na escritura (exatidão, precisão, espontaneidade, mistério), assim como a liberdade de produzir obras organizadas em conformidade com os campos ético e estético. Diante das interferências dos editores no texto final, Bishop manifesta insatisfação e resistência ante discursos hegemônicos que se concretizam tanto na atuação daqueles profissionais, como nas interferências textuais. A escritura de um trabalho tão longo em prosa funcionou para a norte-americana como a saída de um território seguro e confortável – o espaço lúdico da literatura com o qual Bishop estava acostumada. Quando percebe que seu diálogo com os editores não surtia o efeito desejado, ela se aborrece com a responsabilidade de uma obra que acaba revelando os pensamentos de seu grupo de origem sobre o Brasil. 130 Habitar o espaço brasileiro coloca Bishop na condição de “ser traduzido”114, uma vez que transita entre as culturas americana e brasileira. Esboça-se uma posição de entre-lugar, aqui entendido como espaço posicionado entre os limites e as fronteiras construídos pela própria autora. Trata-se de um lugar que possibilita certas negociações a partir de interações com culturas distintas. Partindo do pressuposto de que um “homem traduzido” pertença a mundos diferentes, foi possível observar ambiguidades nas atitudes de Bishop, no que diz respeito à imersão na cultura brasileira. Sua atuação como mediadora cultural se concretiza por meio de procedimentos que permitem visualizar na representação do Outro o compromisso de transformar a alteridade em signo para consumo americano. Como se sabe, o ser humano é, antes de tudo, cultural. Suas ideologias e crenças atuam como realidades altamente influenciadoras e direcionadoras do novo conhecimento ao qual se tem acesso. Assim, podemos dizer que a cultura de origem se interpõe como um filtro entre o observador e a cultura observada. As representações geradas no interior das culturas formam sujeitos que, inconscientemente, guardam e seguem modelos de realidades (saber coletivo partilhado), que têm o poder de diferenciar os indivíduos em grupos que se agregam a partir, também, de fatores cognitivos e normativos essenciais. São sistemas que dependem de negociações entre os membros dos grupos. O imaginário – alimentado por experiências de viagem, diáspora e deslocamentos – influencia na compreensão que Bishop desenvolve da cultura brasileira. A diferença, realidade posicionada além das nossas fronteiras perceptivas, inevitavelmente incorpora características imaginárias, o que confere ao livro Brazil, de certa forma, uma ligação com o campo ficcional. O Outro, ao mesmo tempo igual e diferente de nós, tem o poder de desestabilizar a identidade, fazendo com que o sujeito sinta necessidade de uma constante reelaboração de si. O encontro com a diferença torna-se importante para que a autora reformule a própria identidade. Quando busca entender quem é, acaba revisitando a infância e a origem. Nesta pesquisa, nos interessamos em compreender o modo como as representações são formuladas e, principalmente, como nós, brasileiros, temos sido representados, pois essas imagens afetam a forma como olhamos para nós próprios. As teorias e os conceitos que direcionaram a pesquisa nos fazem supor que o olhar estrangeiro está sempre mediado pela cultura de origem, o que nos permite concluir que um 114 Termo utilizado por Salman Rushdie (1991) originário do latim e que significa transferir, transportar entre fronteiras... Eles são o produto das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais". 131 sujeito deslocado só possa criar imagens esquemáticas do Outro (mesmo porque as representações, independente do sujeito que as elabora, não podem dar conta da complexidade e dinamicidade inerentes aos sistemas culturais). Há uma tendência de as representações apresentarem-se como fixas, o que induz o indivíduo a fazer ecoar a voz de grupo através das imagens da sua comunidade de origem. Diante da diferença, há um acionamento desse imaginário, o que leva o sujeito a estabelecer um sistema de valores que hierarquiza as culturas em presença. A esquematização faz parte de uma tendência espontânea do ser humano, que se traduz também como tentativa de controlar o ambiente. São imagens que se caracterizam por serem avaliativas, simplificadoras e rígidas. Representar o Outro funciona como uma forma simbólica de dominação. Bishop assume postura imperialista, visualizada não somente nos resultados de suas representações, mas também no modo como tais recriações são construídas. No momento em que os sujeitos tendem a se deslocar da periferia para o centro a fim de que suas vozes sejam ouvidas e, consequentemente, mostrar que outras imagens dos países periféricos são possíveis, é interessante observar a produção de uma poeta de destaque na literatura norte-americana que traça movimento contrário. Em sua produção, a autora dá destaque a imagens de brasilidade, montando um discurso que aparenta ser diverso, mas que se articula por meio da repetição e, por isso, acaba fortalecendo uma visão estereotipada do Brasil. A partir do estudo dos documentos de processo, pudemos observar um pouco o modo como a autora organiza as ideias do Outro e como sua mente tende a trabalhar em um duplo movimento de “objetivação” e “ancoragem”: ao mesmo tempo em que pretende encontrar no real os elementos presentes em seu imaginário, ela busca a familiarização do que lhe é estranho. A novidade é, quase sempre, experimentada como choque cultural. Esses embates se reapresentam no momento da criação, pois espacialmente deslocada, empreende movimentos no sentido de reterritorializar-se (mas também de desterritorializar-se) tanto em espaços reais, como ficcionais. Esse trânsito lhe instiga a moldagem de uma escritura que intenta, de algum modo, comunicar a multiplicidade da diferença, mas que, como um ciclo tautológico, volta a reinventar um Brasil que ganha, mais uma vez, uma feição de fixidez. Repensar a trajetória de Bishop a partir de um olhar crítico, com o suporte das teorias culturalistas, é operar mecanismos de desconstrução das representações criadas por sujeitos que dispõem de referências diferenciadas daquelas localizadas abaixo da linha do Equador. A percepção de Bishop sobre o Brasil se aproxima um tanto do olhar empreendido pelos 132 colonizadores em livros de viagem. Observamos que as imagens em Brazil brotam de esquemas de representação já arraigados sobre países periféricos. A busca por informações mais exatas não suprime da obra traços estereotipados, pois compreender um sistema cultural diferente só é possível através de mediação dupla: a cultura do Outro é lida a partir de significações culturais próprias e de mediações efetivadas por literaturas de viagens e textos históricos ou literários; esses materiais interferem na interpretação que se pode ter de uma cultura da qual não se partilha. Assim, ao falar da cultura brasileira, a precisão almejada por Bishop se desenvolve somente por intermédio de outros olhares. Isso nos leva a acreditar que as imagens reportadas guardam traços reveladores de uma visão caricatural. Observamos também como as diferenças culturais foram articuladas e como foi possível que, desse encontro, se criasse um espaço para a elaboração de estratégias de subjetivação. Para tanto, foi necessário que o Outro passasse por uma espécie de tradução cultural, processo capaz de renovar as imagens do passado. As analogias feitas por Bishop para a elaboração de Brazil se fundamentam em fatos históricos e resgatam imagens simbólicas difundidas no país. Ao eleger discursos produzidos pelo povo brasileiro, temos a impressão de estar diante de expressões mais autênticas; no entanto, devemos levar em consideração que muitas das imagens que nós, brasileiros construímos de nós mesmos, e que hoje, circulam no país, são elaboradas a partir das percepções dos estrangeiros que primeiro nos representaram. Nesse contexto, a cultura deve ser percebida como um mundo em construção, o qual se modifica tanto através dos objetos vislumbrados, quanto do observador que re-atualiza as representações; por isso, elas podem ter o conteúdo alterado, a depender das formas e perspectivas do olhar. As representações da diferença são elaboradas com o intuito de criar uma atmosfera de familiaridade e, dessa forma, possibilitar um ajuste a uma realidade prévia. As intenções envolvidas nesse processo nem sempre são conscientes; isso porque a compreensão do novo se faz por ideias que remetem o sujeito, novamente, ao que ele já conhecia. Esta pesquisa se delineou a partir da ideia de que somos o tempo todo observadores, como também observados. A reflexividade que impusemos sobre a criação do livro Brazil mostra Bishop como criadora de representações que muitas vezes incomoda o brasileiro; isso acontece porque esse povo, também impelido pelo poder das imagens, aprendeu a se representar através de modelos disponíveis, aqueles que tanto destacamos como esquemáticos e caricaturais. Demonstra também que o sujeito que sempre representou, mas que nunca foi representado, acaba se tornando uma estrutura frágil quando invertemos os papéis e o 133 colocamos na condição de objeto da observação. Isso porque, como reforçamos ao longo do texto, por mais que intencionemos apresentar nossos objetos como dinâmicos e captá-los em sua mobilidade, estamos sempre a reinscrevê-los nas molduras esquemáticas da representação. 134 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Sandra Regina; GONÇALVES, Glaucia. REIS, Eliana (orgs.). The art of Elizabeth Bishop. Belo Horizonte: UFMG, 2002. ANASTÁCIO, Silvia Maria Guerra. O Jogo das Imagens no Universo da Criação de Elisabeth Bishop. São Paulo: Annablume, 1999. ______. Momentos Brasileiros no Processo de Criação de Elizabeth Bishop. SOLETRAS (UERJ), Rio de Janeiro, v. 3, p. 65-74, 2002. ANASTÁCIO, Silvia; BARBOSA, Elisabete. Marginalização Social nas Manchetes do Rio de Janeiro. O Ladrão da Babilônia, Elizabeth Bishop. In: XVII Encontro Nacional da ANPOLL, 2002, Gramado/RS. XVII Encontro Nacional da ANPOLL, 2002. v. 31. p. 65-66. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2008. ARRUDA, Ângela (org.). Representando a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2002. AVILA, Eliana. Transit between cultures: “Pink dog”, veil and vessel. In: ALMEIDA, Sandra Regina; GONÇALVES, Glaucia. REIS, Eliana (orgs.). The art of Elizabeth Bishop. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 229-255 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BARBOSA, Elisabete. A viagem e o encontro como um modo de produção de identidades: O livro Brazil, de Elizabeth Bishop. ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Disponível em: <http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19462.pdf>. Acesso em: 29 out. 2009. BARDONNÈCHE, Dominique de. Espécies de espaço. In: DOMINGUES, Diana (org.). A arte no século XXI. A humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP, 1997, p. 195-200. 135 BELLEMIN-NÖEL, Jean. Reproduzir o manuscrito, apresentar os rascunhos, estabelecer um prototexto. Manuscrítica: Revista de Crítica Genética, São Paulo, n. 4, p.127-161, 1993. BHABHA, Homi. A outra questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso do colonialismo. In: O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. BISHOP, Elizabeth. Drafts of published poetry. Elizabeth Bishop Collection, Vassar College, Special Collections, Poughkeepsie, N. York, 1956, Box 57.10. ______. Drafts of published poetry. Elizabeth Bishop Collection, Vassar College, Special Collections, Poughkeepsie, N. York, 1965, Box 58.6. ______. Drafts of published poetry. Elizabeth Bishop Collection, Vassar College, Special Collections, Poughkeepsie, N. York, 1979, Box 60.6. ______. Interviews with Elizabeth Bishop. The Home Forum. Artist and their inspiration: Elizabeth Bishop and the geography of the imagination. March 23, 1978, Elizabeth Bishop Collection, Vassar College, Special Collections, Poughkeepsie, N. York, Box 90.1. ______. Poemas do Brasil. Trad. e org. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das letras, 1995. ______. Poems, prose, and letters. Org. Robert Giroux. New York: Literary Classics of the United Stated, 2008. ______. Published Prose. Brazil. Elizabeth Bishop Collection, Vassar College, Special Collections, Poughkeepsie, N. York, s.d., Box 47. ______. Uma arte: as cartas de Elizabeth Bishop. Trad. e org. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das letras, 1995. BISHOP, Elizabeth & The Editors of LIFE. Brazil. New York: Time Incorporated, 1967. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das letras, 2005. 136 ______. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu, coleção grandes cientistas sociais. N. 39, São Paulo: Ática, 1983. BRAZEAU, Peter, FOUNTAIN, Gary. Elizabeth Bishop: An Oral Biography. Amherst: University of Massachusetts Press, 1994. BRITTO, Paulo Henriques. Bishop no Brasil. In: BISHOP, Elizabeth. Poemas do Brasil. Trad. e org. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das letras, 1999, p. 9-54. BURNS, Tom. Bishop, translator of Drummond. In: ALMEIDA, Sandra; GOLÇALVES, Glaucia; REIS, Eliana (orgs.). The art of Elizabeth Bishop. The art of Elizabeth Bishop. Belo Horizonte: UFMG, 2002. BIAGI, Orivaldo Leme. O imaginário da guerra fria. Revista de História Regional, Vol. 6, No 1. p. 61-111, 2001. CANCLINI, Néstor García. A encenação do Popular. In: Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 2003, p. 205-254. ______. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1998. CASSIDY, Frederic; HALL, Joan. Dictionary of American Regional English. Cambridge, Ma: Belknap Press of Harvard University Press, 1985. (V. 1: Introduction and A-C). ______. Dictionary of American Regional English. Cambridge, Ma: Belknap Press of Harvard University Press, 1985. (V. 2: D-H). CLIFFORD, James. Introduction: Partial Truths. In: CLIFFORD, James; MARCUS, George. Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986. p. 1-26 COHN, Deborah. Combatting anti-Americanism during the Cold War: Faulkner, the State Department, and Latin America. Disponível em: <http://findarticles.com/p/articles/mi_hb3524/is_3-4_59/ai_n29414584/>. Acesso em: 09 nov. 2006. 137 COSTA, Cristiane. Fronteiras cruzadas: A ficção no jornalismo e a reportagem na literatura. Z Cultural: Revista virtual do Programa de Avançado de Cultura Contemporânea, Rio de Janeiro, ano V, v. 3, 2010. Disponível em: <www.pacc.ufrj.br/z/ano5/3/cristiane.php>. Acesso em: 23 fev. 2010. COSTA, E. S. Cigarras e formigas: trabalho e a identidade nos contos populares. In: História: guerra e paz, anais suplementar Encontro Intermediário do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL- XXIII ANPUH, 2005, Londrina. XXIII ANPUH UEL, 2005. COSTA, Helouise; RENATO Rodrigues da Silva. Fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 97-111. COSTELLO, Bonnie. Elizabeth Bishop: Questions of Mastery. Cambridge: Harvard University Press, 1991. CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984. DAMATTA, Roberto. Torre de Babel: ensaios, crônicas, críticas, interpretações e fantasias. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002. DORESKI, Carole. Elizabeth Bishop: the restraints of language. New York: Oxford University Press, 2003. DUNKAN, James; GREGORY, Derek (orgs.). Introduction. In: ______. Writes of passage. Reading travel writing. New York: Routledge, 1999, p. 1-13. DWYER, Patrícia. Border-crossing and Brazil. Elizabeth Bishop’s exploration of the interior. In: ALMEIDA, Sandra Regina; GONÇALVES, Glaucia. REIS, Eliana (orgs.). The art of Elizabeth Bishop. Belo Horizonte: UFMG, 2002. p. 74-83. EAGLETON, Terry. Da Polis ao Pós-modernismo. In: ______. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 138 FERRARA, Lucrecia D’Alessio. Do mundo como imagem à imagem do mundo. In: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia; SILVEIRA,Maria Laura (orgs.). Território: globalização e Fragmentação. São Paulo: HUCITEC, 1998, pg. 45-50. FERREIRA, Armando Olivetti. Recortes na paisagem: uma leitura de Brazil e outros textos de Elizabeth Bishop. 2 v. Tese (Doutorado) - Curso de Teoria Literária e Literatura Comparada, Usp, São Paulo, 2008. FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O duplo e a falta: construção do outro e identidade nacional na Literatura Brasileira. Abralic: Revista brasileira de literatura comparada, Niterói, n. 1, p.1-2, 1991. FORTUNY, Kim. Elizabeth Bishop. The art of travel. Colorado: University Press of Colorado, 2003. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. ______. O que é um autor? São Paulo: Passagens, 1992. FOUNTAIN, Gary. Elizabeth Bishop’s “idea of the place”. Collecting, Culture, and the Aesthetics of National Identity. In: ALMEIDA, Sandra Regina; GONÇALVES, Glaucia. REIS, Eliana (orgs.). The art of Elizabeth Bishop. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 259-271 FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 2006. GEBARA, Alexsander Lemos de Almeida. Edward Said e uma perspectiva para a literatura de viagens no Brasil. ComCiência: Revista brasileira de literatura comparada, São Paulo, n. 77, p.1-2, 10 jun. 2006. Disponível em: <http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=14&id=123>. Acesso em: 10 abr. 2009. GOLDENSOHN, Lorrie. Elizabeth Bishop: The Biography of a Poetry. New York: Columbia University Press, 1992. GRUZINSKI, Serge. Misturas e mestiçagens. In: O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das letras, 2001. 139 GUARESCHI, Pedrinho, JOVCHELOVITCH, Sandra. Textos em Representações sociais. Petrópolis: Vozes, 2002. HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização. Do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. ______. Da diáspora. Belo Horizonte: UFMG, 2003. ______. The spectacle of the “Other”. In: TAYLOR, Stephanie; WETHERELL, Margaret; YATES, Simeon (orgs.). Discourse, theory and practice: a reader. London: Sage publications, 2003. p.324-344. HAY, Louis. O texto não existe: reflexões sobre a crítica genética. In: Criação em processo: ensaios de crítica genética. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 29-44. HISSA, Cássio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. LACERDA, Aline Lopes de. A ‘obra getuliana’ ou como as imagens comemoram o regime. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 14, p. 241-263, 1994. LEGG, Michael. Time-Life Library: A compendium of Time-Life Books information. Disponível em: <http://www.volumelists.com/detail.php?ser=Life%20World%20Library>. Acesso em: 30 mar. 2009. LEVIN, Gerald. Values for the Digital Age: The Legacy of Henry Luce. Washington: The Aspen Institute, 2000. IANNI, Octavio. A metáfora da viagem. In: Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 140 JABLONSKI, Bernardo; RANGÉ, Bernard Pimentel. Humor é só Riso? Algumas Considerações sobre o Humor. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v.36, n.3, p.136-140, 1984. JACQUES, Paola Berenstein. Estética das favelas. Texto Especial 078. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp078.asp revista arquitextos 013>. Acesso em: 06 jun. 2009. JODELET, Denise. A alteridade como produto e processo psicossocial. In: ARRUDA, Ângela (org.). Representando a alteridade. Petrópolis: Vozes. 2002, pg. 47-67. KALSTONE, David. Becoming a poet: Elizabeth Bishop with Marianne Moore and Robert Lowell. New York: Noonday, 1989. KRIS, Ernst. Psicanálise da arte. São Paulo: Brasiliense, 1968. LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem. Escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: UFMG, 1996. LIMA, Francisco Ferreira. A alteridade na peregrinação. In: O outro livro das maravilhas: a peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p. 59-122. LIMA, Sônia M. van Dijck. Gênese de uma poética da transtextualidade. João Pessoa, 1993. LIMA, Luis Costa. Persona e sujeito ficcional. In: Anais do 2º Congresso ABRALIC. Belo Horizonte: ABRALIC, 1990. Vol I. MAGALHÃES, Carlos Augusto. Espaço, Território e Poder: Uma leitura de “O Rappa”. In: MARÇALO, Maria João et al. Panorâmica de Linguística, Literatura e Cultura do II Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa. Évora: Universidade de Évora, 2009. v. 1, CD-ROM. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Os métodos: dos meios às mediações. In: Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003, p. 271277. 141 MARTINS, Maria Lúcia Milléo. Brazil in the poetry of Elizabeth Bishop: a dazzling dialectic. 1992. 1 v. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1992. MCCABE, Susan. Elizabeth Bishop: her poetic of loss. Pennsylvania: Pennsylvania University Press, 1994. MCCORKLE, James. The Still Performance. Charlottesville: University Press of Virginia, 1989. MENIDES, Laura Jehn. Elizabeth Bishop’s comedy, wit, and extencial happiness. In ALMEIDA, Sandra Regina; GONÇALVES, Glaucia. REIS, Eliana (orgs.). The art of Elizabeth Bishop. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 192-200. MILLIER, Brett C. Elizabeth Bishop: Life and the Memory of It. University of California Press, California, 1993. MONTEIRO, George (ed.). Conversations with Elizabeth Bishop. Jackson: University Press of Mississipi, 1996. MORIN, Edgar. Para o pensamento complexo. In: Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 175-342. MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003. MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil. A penetração cultural americana. São Paulo: Brasiliense, 1984. OLINTO, Heidrun Krieger. Literatura/cultura/ficções reais. In: Olinto, Heidrun Krieger; Schøllhammer, Karl Erik. Literatura e Cultura. Rio de Janeiro: Editora PUC/Rio, 2008. p. 7286. OLIVEIRA, Carmen. A poeta do desterro. Bravo!, São Paulo, n. 6, p.66-70, 01 mar. 1998. ORNELLAS, Maria de Lourdes Soares. Imagem do Outro (e) ou imagem de si? Bello Monte vista por adolescentes de Canudos. Salvador: Portfolium, 2001. 142 PAZ, Octavio. Elizabeth Bishop, or the power of reticence. In: SCHWARTZ, Lloyd; ESTESS, Sybil P; SCHWARTZ, Lloyd. Elizabeth Bishop and her art. Michigan: University of Michigan Press, 1999. PINO, Claudia Amigo. Da crítica do processo à crítica ao processo. Manuscrítica: revista de crítica genética, São Paulo, n. 13, p.41-71, 2005. PROP, Vladmír. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992. PROSSER, Jay. Elizabeth Bishop’s art of losing. In: Light in the dark room: photography and loss. Minneapolis: University of Minnesota, 2005, p. 123-162. PRZYBYCIEN, Regina M. Feijão Preto e Diamantes: O Brasil na Obra de Elizabeth Bishop. 2003. 1 v. Tese (Doutorado) - Curso de Letras, UFMG, Belo Horizonte, 2003. ______. Elizabeth Bishop in Brazil: traveler, ethnographer, and castaway. In: ALMEIDA, Sandra Regina; GONÇALVES, Glaucia. REIS, Eliana (orgs.). The art of Elizabeth Bishop. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 62-83. RUSHDIE, Salman. Imaginary Homelands. London: Granta Books, 1991. SAID, Edward. A geografia imaginativa e suas representações: orientalizar o oriental. In: Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 60-81. ______. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das letras, 1999. ______. Cultura e Resistência. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. ______. Representações do Intelectual. Lisboa: Colibri, 2000. ______. Trabalho Intelectual e Crítica Social. São Paulo: Casa Amarela, 2005. 143 SALLES, Cecília. Crítica Genética Uma introdução. São Paulo, EDUC, 1992. ______. Gesto Inacabado: Processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 2000. SARLO, Beatriz. Culturas populares, velhas e novas. In: Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000, p. 99-122. SILVA, Tomaz Tadeu (org). Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. ______. O que é, afinal, estudos culturais? Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. SIQUEIRA, E. D. O turista, o estrangeiro e o viajante: notas para uma sociologia do turismo e da viagem. In: XXX - INTERCOM - Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Anais do XXX - INTERCOM - Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos: INTERCOM, 2007. v. 1. p. 01-15. TAVARES, Fátima Regina Gomes. Schutz e Simmel: sobre os dilemas da condição social do “estrangeiro”. In: Comum. Rio de Janeiro, v. 6, n. 17, p. 78-90, jul./dez. 2001. SIMMEL, Georg. O estrangeiro. In: MORAES FILHO, Evaristo de (org.). Simmel – Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 34. p.182-188. TIME. The Americas: The Orphan Policy. Time, Tampa, 26 maio 1961. Disponível em: <http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,872464-2,00.html#ixzz0fKZL4xaQ>. Acesso em: 29 nov. 2009. TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros. A reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. TRAVISANO, Thomas J. Elizabeth Bishop: Her artistic development. Charlottesville: University Press of Virginia, 1989. VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005. 144 ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. Introdução. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 7-24. 145 APÊNDICE Para dar ao leitor uma visão geral da obra trabalhada, apresentamos uma sinopse de Brazil, publicado e editado pela Time-Life. O livro é dividido em dez capítulos, cada um tratando de um tema específico. Nos manuscritos, encontramos um esquema de escritura elaborado por Bishop, o qual incorporamos a esta sinopse. Ao longo do texto, usamos o nome Elizabeth Bishop como autora, já que ela figura como principal responsável pela obra. Pensamos na autoria aqui nos termos propostos por Foucault (1992), como um nome capaz de reunir, classificar e dar unidade ao texto. INTRODUÇÃO A introdução é redigida pelo embaixador americano John Moors Cabot. O Brasil é apresentado como um país exótico e “amigo tradicional dos Estados Unidos”. Faz um panorama sobre a Amazônia, a Bahia, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Chama atenção para a plenitude de um Brasil que contrasta com as favelas, ou a sofisticação das grandes cidades com o primitivismo do índio. Ressalta o fato de diferentes raças no Brasil terem aprendido a viver em harmonia, assim como celebra o orgulho do brasileiro em contribuir com os ideais interamericanos. Há uma qualificação do texto de Bishop como brilhante, e se refere ao Brasil como república-irmã. CAPÍTULO 1 – UM POVO CALOROSO E SENSATO Chapter 1. Paradoxes [and ironies.] The [glaring] paradox that illustrate the general [contradictoriness] Of Brazil: [the] population explosion versus [the] high infant mortality [rates]. Wide variety of paradoxes great and small: vast sources of wealth; appalling poverty; luxury; asceticism; snobbery; “familiarity”; pride; national inferiority complex; (vitality; “laziness;”) <etc.> <the biggest paradox> And [the] alteration<s> of corrupt & extravagant regimes with occasional <the Brazil paradox> puritanical reform regimes. 115 <humor> 115 Capítulo 1. Paradoxos [e ironias] O [visível] paradoxo que ilustra a [contraditoriedade] geral Do Brasil: [a] explosão populacional versus [a] alta mortalidade infantil [taxas]. Ampla variedade de paradoxos grandes e pequenos: vastas fontes de riqueza; pobreza alarmante; luxo; ascetismo; esnobismo; “familiaridade”; orgulho; complexo de inferioridade nacional; (vitalidade; “preguiça;”) <etc.> <o maior paradoxo > E [as] alteração<s> de regimes corruptos & extravagantes com ocasionais <o paradoxo do Brasil> regimes de reformas puritanas. <humor> 146 É considerado o capítulo mais autêntico de toda a obra, pois praticamente não há alterações, exceto do título Paradoxes and Ironies (Paradoxos e Ironias), publicado como A Warm and Reasonable People (Um Povo Caloroso e Sensato). Em 2008, o texto é incluído em uma compilação organizada e editada por Robert Giroux e Lloyd Schwartz. Bishop conta a estória de Conceiçãozinha, criança sequestrada na maternidade por uma das enfermeiras do hospital (sobre a qual se enfatiza a cor da pele, uma mulata). O amante branco, proprietário de uma mercearia, havia lhe prometido uma casa na condição de ela ter um bebê. A estória funciona como a espinha dorsal do capítulo, que serve de eixo para a demonstração dos paradoxos e ironias brasileiras. A partir do nome Conceiçãozinha, Bishop chama a atenção para o modo como os brasileiros se referem às pessoas afetivamente, no diminutivo. O povo é retratado como altamente emocional. De modo similar, o amor por crianças é qualificado como exagero, traço representado pelas quantias desproporcionais que um trabalhador pobre empregará em um vestido de batismo. Bishop ironiza o fato de até mesmo o futebol ser colocado em segundo plano diante do sequestro. O aspecto religioso é apresentado através das inúmeras promessas feitas pelo pai da criança, o que é igualmente ironizado pela autora: “Eles são católicos romanos, pelo menos aparentemente” (p. 10). A partir do panorama inicial, considera a reação dos brasileiros ao sequestro de Conceiçãozinha como um contraste em face aos problemas de mortalidade infantil. Ressalta que no Brasil não há divórcios nem controle de nascimentos legalizado, e isso faz com que as famílias sejam muito grandes, com média de cinco ou seis crianças. Segundo a autora, a desnutrição é ocasionada mais por ignorância dos pais do que por falta de dinheiro, situação associada a uma atitude supersticiosa. Da falta de controle de nascimentos, surge a comparação com a banana, pois assim como ela, há um descontrole no crescimento populacional. O amor, como emoção mais importante, será um elemento sempre presente em estórias e conversas familiares. Por outro lado, há falta de sentimentalismo em relação ao casamento, sobre o qual Bishop percebe um emocionalismo superficial, o que a autora diz justificar-se por uma lógica latina (p. 14). O brasileiro é comparado aos heróis de Homero, no que se refere à demonstração de sentimentos sem constrangimento algum. Os jogadores de futebol são usados como exemplo, pois constantemente se abraçam e choram. A simpatia aparece como um traço percebido rapidamente, e que, por esse motivo, a primeira palavra que se aprende no Brasil é coitado. 147 Ainda sobre afetividade, Bishop se surpreende sempre com o costume brasileiro de abraçar. Outro termo que ganha destaque é a palavra criado e suas derivações: irmãos de criação e filha de criação. O costume de preservar agregados na família é caracterizado como costume que data do período da escravidão, do feudalismo ou ainda do império romano. O modo brasileiro de inter-relacionamento leva Bishop a perceber que há no Brasil a confusão entre familiaridade e democracia (ideias que parecem ter sido desenvolvidas com a influência da leitura de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (2003). A autora está sempre a buscar valores antigos para visualizá-los no Brasil. Ela diz: “Os valores são simples e realistas no Brasil. Fora dos ciclos de moda, o pobre é magro e o rico é gordo, e gordura é signo de beleza, como tem sido desde os antigos” (p. 14). Em relação ao trabalho, é ressaltada a negligência dos profissionais, e assim, a autora destaca frases como: “[...] isto não é uma fábrica” ou “uma coisa de cada vez”. Em relação ao trabalho intelectual, percebe indolência por parte dos escritores e afirma que eles vão pra cama, ou para suas redes, muito cedo. A língua é caracterizada como uniforme, porém há descuido com a gramática. Bishop afirma que é uma língua charmosa quando falada por mulheres. Compara ainda o português com o russo, no que tange aos pronomes de tratamento e ao uso de diminutivos. Relaciona a escravidão negra e indígena no Brasil ao desdém que o brasileiro desenvolve pelo trabalho físico, e dessa forma, nutre admiração pela vida fácil que contrasta com a indiferença ao conforto físico. Exemplifica com o fato de não haver aquecedores; no frio, ricos e pobres colocam mais roupas e bebem cafezinhos. Sobre os pobres, Bishop acrescenta: “Os pobres, enquanto isso, bebem os mesmos cafézinhos, empilham todas as roupas sobre si e vão para a cama cedo” (p. 14). O café ainda aparece como combustível que permite ao brasileiro passar uma noite conversando sobriamente. O povo será retratado como indiferente tanto ao conforto físico quanto à alimentação, qualificada como péssima. “A dieta principal é arroz, carne seca e feijão preto, cozido com uma grande quantidade de gordura e alho e servido com farinha de mandioca polvilhada sobre o feijão. No entanto, existem muitos pratos muito refinados que usam 20 ou 30 ingredientes, e sobremesas maravilhosas com nomes ainda mais maravilhosos, como Baba de Moça, Travesseiro de Noiva e Mãe-Benta (bolinhos) (p. 15). Bishop ressalta que os brasileiros se orgulham de sua lógica latina e, numa proporção menor, da reputação de “loucura”. “Traços familiares são valorizados, como algumas famílias que são famosas pelo mau temperamento ou pela obstinação, ou ainda pelos olhos verdes – porque a aparência, também, é muito importante” (p. 15). Segundo Bishop, a preocupação 148 com a aparência pode vir do fato de que muitas das famílias antigas têm algum sangue negro: “Existe uma noção popular que as belezas famosas devem ter uma gota ou duas desse sangue em suas veias; supõe-se que isso as tornam mais vivazes” (p. 15). Diante disso, Bishop percebe uma contradição, a de que todos querem ser o mais claro possível. A crítica ao país e ao governo aparece como passatempo predileto dos brasileiros, que são caracterizados como voláteis; Bishop afirma ser difícil reconhecer se eles estão “zangados ou emocionados, tolerantes ou intolerantes, ingênuos ou extremamente sofisticados” (p. 15). Em relação ao humor, o brasileiro é comparado aos romanos: “Frequentemente encontramos entre os intelectuais um brasileiro do tipo Hamlet, incapaz de um trabalho ou ação séria, que parece estar escondendo uma profunda ansiedade com palavras, palavras, palavras, uma loucura fingida, um extravagante humor deliberado que não é frivolidade, embora aparente ser. O humor natural / grosseiro do pobre, os cartuns brutais nos jornais e revistas, os garotos de rua que riem dos aleijados ou de mulheres feias – isto está diretamente alinhado com o humor dos romanos; mas o humor dos intelectuais é muito diferente, irônico, gentil e um pouco selvagem” (p. 15). Ironiza as revoluções brasileiras, por terem sido implementadas sem derramamento de sangue. A seção é finalizada com uma piada sobre o temperamento brasileiro. CAPÍTULO 2 – A LENDÁRIA TERRA SUBDESENVOLVIDA Chapter 2. The Land of Dye-Wood. The appeal to the imagination of the legendary Brazil. Early discoverers and <their> accounts. The Indians. The extravagant [flora] physical beauty of the country; [Its] [il] exotic flora and fauna, and some naturalists. The Portuguese and the first two centuries. [First slaves] 116 <Iconography – Jesuits . / & slaves> O título original The Land of Dye-Wood (A Terra do Pau-Brasil) é alterado pelos editores para Underdeveloped Land of Legend (Terra Lendária Subdesenvolvida). Nesse capítulo, Bishop explica a origem do pau-brasil (bresilium), tipo de árvore que dá nome ao país. Inicia com a descoberta do Brasil, ressaltando o papel de Pedro Álvares Cabral e apresentando a dúvida de que a descoberta tenha sido acidental. Menciona o fato de o Brasil ter sido visto como uma lenda na Europa (até o início do século XIX). Sobre Pero Vaz de Caminha, o escriba, tece elogios, caracterizando-o como um bom repórter. Menciona os 116 Capítulo 2. A Terra do Pau-Brasil. O apelo à imaginação do Brasil lendário. Primeiros descobrimentos e <suas> descrições. Os índios. A extravagante [flora] beleza física do país; [Sua] [il] flora e fauna exóticas, e alguns naturalistas. Os portugueses e os primeiros dois séculos. [Primeiros escravos] <Iconografia – Jesuitas . / & escravos> 149 nomes primeiros do Brasil: Monte Pascoal, Terra de Vera Cruz (Land of the True Cross) e Terra de Santa Cruz, que mais tarde é novamente alterado para Brasil. Nos primeiros mapas, encontram-se as nomeações Brasil ou Terra dos Papagaios (com ilustração na página 27). Sobre o caldeamento racial, Bishop afirma que “ [...] os portugueses sempre foram romanticamente atraídos por mulheres de raças mais escuras” (p. 28), e usa trecho da carta de Caminha para corroborar a afirmativa. O Brasil é apresentado, sob a perspectiva dos colonizadores, como uma terra fértil, e Bishop problematiza a expressão “em se plantando, tudo dá” (p. 28). É também explorada a temática da preguiça do brasileiro – explicada mais como consequência de uma saúde debilitada, alimentação ruim e tédio que do clima (p. 28). Sobre o subdesenvolvimento do país, a autora atribuirá a responsabilidade, em parte, ao que ela chama de geographical handicaps (desvantagens geográficas) (p. 29), como exemplo da falta de rios navegáveis. Outro fator associado ao subdesenvolvimento do país é a falta de estradas de ferro que dificulta o acesso às localidades do Norte e Centro-Oeste do país. A vegetação brasileira e os produtos e recursos minerais são algumas das riquezas naturais que os exploradores do século XVI não exploraram. O surgimento das primeiras cidades do Brasil, São Vicente e Olinda, é outro ponto abordado pela autora. Sobre a chegada dos escravos, Bishop traz citação de Lévi-Strauss: “O mundo, empanturrado de ouro, começou a ansiar por açúcar; e o açúcar exigiu muitos escravos” (p. 29). A partir daí trata do processo de escravização do índio e do negro. Outros fatos históricos evidenciados são a expulsão dos franceses do Rio; a explicação do nome da cidade; o comércio brasileiro explorado exclusivamente por Portugal; os jesuítas e a catequização dos índios; as doenças trazidas pelos europeus, às quais os índios não resistiam; expulsão dos protestantes holandeses; atuação dos bandeirantes e os minerais por eles encontrados. Sobre Minas Gerais, discorre sobre a Inconfidência Mineira, movimento que tem como inspiração a revolução americana. Destaca que o grupo mineiro se correspondia com Thomas Jefferson, havendo até um encontro que Bishop recupera do livro Marvelous Journey, de Samuel Putnam. Sobre a literatura em Minas Gerais, destaca o Arcadismo como imitação das academias do Rio e Bahia, as quais seguiam os modelos do renascimento italiano. A “escola literária” é aniquilada, juntamente com o movimento de independência. Tiradentes se torna herói nacional. Os inconfidentes são comparados aos fazendeiros americanos de 1776. Finaliza dizendo que a independência brasileira só ocorreria de forma pacífica, em 1822. 150 CAPÍTULO 3 – SÉCULO DE ORGULHO E HONRA Chapter 3. The only Western Empire. Arrival of Dom João I; Dom Pedro I and independence from Portugal. The 40-year reign of Dom Pedro II, “the nation’s schoolmaster.” Republican ideas at work. Emancipation of the slaves. Abdication. Problems of the new republic, - some [still unsolved.] <of these are still 117 unsolved> O título The Only Western Empire (Único Império Ocidental), é alterado para Century of Honor and Pride (Século de Orgulho e Honra). Bishop compara a história da América do Sul no século XIX às cenas de batalhas de Shakespeare (p. 41). O Brasil é retratado como país diferente do resto do continente por não ter guerra da independência, e depois de tornar-se independente, permanecer unido politicamente, apesar das guerras civis menores. Recupera informações referentes a um período de relativa estabilidade, governado pela dinastia de Bragança, de 1822 a 1889. Um período que traz vantagens para o Brasil, tais como, o sentimento de unidade nacional e quase um século de história do qual o país se orgulha. O século XIX é um período marcado por revoluções ocasionadas pela crescente força das ideias do liberalismo, como a igualdade, o que leva o Brasil a adotar o sistema republicano de governo. Diante do exposto, Bishop comenta: “Assim como a forma paradoxal que as coisas sempre acontecem no Brasil, o que trouxe ao país uma eventual independência política de Portugal foi a chegada da família real portuguesa” (p. 42). A família real chega à Bahia. Depois de um mês, vai para o Rio, período em que D. João abre as portas do Brasil para nações amigas, isto é, para a Inglaterra. Estabelece a imprensa no Brasil, inicia a indústria de ferro, expande a indústria têxtil e encoraja as artes e ciências. Sobre isso é comentado que o país sentia as transformações de uma colônia de exploração que ia, dia a dia, se tornando um poder independente (p. 42). Assim como muitos historiadores, Bishop retrata D. Pedro I como uma figura superior. Dom Pedro II é destacado como um homem notável para um membro da linha bragantina, porém não chega a ser gênio. É o membro da família real mais popular na Europa. Por ser habilidoso com as línguas, Victor Hugo refere-se a ele como “um neto de Marco Aurélio” (p. 117 Capítulo 3. O Único Império Occidental. Chegada de Dom João I; Dom Pedro I e a independência de Portugal. Os 40 anos de reinado de Dom Pedro II, “o mestre da nação.” Ideias republicanas em andamento. Emancipação dos escravos. Abdicação. Problemas da nova república, - alguns [ainda não resolvidos.] <deles ainda estão sem resolução > 151 44). Segundo Bishop, “[...] o Brasil raramente teve um homem de tal calibre na gestão pública desde então”. Em seu governo, há garantia de liberdade religiosa; os tributos passam a ser cobrados de acordo com a riqueza possuída; o poder moderador é implantado; há a minimização de interesses comerciais e o favorecimento da aristocracia rural. Aborda a situação dos bancos, assim como do capital estrangeiro, da construção de ferrovias, da iluminação a gás no Rio, do problema do transporte, tudo isso caracterizado em relação a um lento progresso. A população é formada predominantemente por artesãos. Uma figura que merece destaque no capítulo é Irineu Evangelista de Sousa (Barão de Mauá), quem Bishop diz ter sido o J. P. Morgan (renomado banqueiro americano) do Brasil; sua carreira é destacada como uma transição entre a economia agricultural e o mundo moderno em que reina o sistema capitalista. A escravidão é apontada como o maior problema no reinado de D. Pedro, que por não gostar de tal sistema, liberta seus escravos herdados. Em 1887, ele viaja e deixa Isabel como regente. A princesa era abolicionista, e em 13 de maio de 1888, assina a lei que liberta os escravos em definitivo. Os proprietários se voltam contra a monarquia e se juntam ao movimento republicano em crescimento. Sobre a resolução da princesa, Bishop relata que se deu aos poucos: a lei do Ventre Livre e a imigração eram tentativas de encorajamento. Depois desse acontecimento, a monarquia tem um fim repentino. Em 15 de novembro de 1889, Benjamin Constant, Marechal Floriano Peixoto e Marechal Deodoro da Fonseca organizaram uma revolta militar que desencadeou na Proclamação da República. Apesar de ter realizado apenas uma pequena parte de seus sonhos em relação ao Brasil, ele implantou o estágio para o nascimento de uma nação moderna. CAPÍTULO 4 – MUDANÇAS NOS CENTROS DE GOVERNO Chapter 4. Three Capitals, [and other places.] <il> Bahia until . Rio de Janeiro until 1960. Brasília. City life and small town life, old and modern. The “moving on” spirit, and the 118 “hollow frontier.” São Paulo. <il> O título Three Capitals (Três Capitais) é alterado para Shifting Centers for Government (Mudanças nos Centros de Governo). Aborda as mudanças de capitais do país 118 Capítulo 4. Três Capitais, [e outros lugares.] <il> Bahia até . Rio de Janeiro até 1960. Brasília. A vida na cidade grande e pequena, antiga e moderna. O espírito “de prosseguimento”, e a “fronteira vazia”. São Paulo. <il> 152 (Bahia, Rio de Janeiro e Brasília), que acompanham as transformações históricas e econômicas. Brasília surge como um gesto de esperança e reação a uma necessidade. Tomé de Souza chega em 1549 a Salvador a mando do rei para a formação de um novo país. A cidade, com sua geografia acidentada, mais se assemelha a um forte. Peculiaridades geográficas e que influem no desenvolvimento da cidade (alta e baixa) são enfatizadas. Nos séculos XVII e XVIII, o açúcar figura como a riqueza principal. A mão de obra utilizada, como já ressaltada, era a escrava. Os negros escravizados eram provenientes de variadas regiões africanas, assim como era também variado o nível de cultura. Bishop enfatiza que alguns deles eram mulçumanos educados. Esses homens escravizados também ensinavam seus ‘mestres’ a ler e a escrever. Eram ainda habilidosos na decoração em ferro, música, culinária, além da criação de gado e cultivo da banana e palmeira. Nos tempos antigos, acessórios de ouro nas vestimentas dos negros refletia a riqueza de seu dono. Em 1763, a capital é transferida para o Rio. A Bahia mantém suas características coloniais, mesmo com o processo de modernização por que passa. Bishop ressalta o orgulho que os baianos têm de sua cidade, sobre o que o carioca cria piada. Na Bahia, apontada como a cidade tipicamente brasileira, encontra-se a melhor arte popular. A culinária baiana tem forte influência africana, caracterizada pelo uso de ingredientes exóticos. Outro aspecto que merece atenção é as vestimentas das negras e mulatas, que seguem um estilo colonial. São chamadas de Baianas as vendedoras de rua que podem ser encontradas também no Rio, em São Paulo e em outras cidades. Menciona a festa do Senhor do Bonfim, da qual não participam somente negros e pobres. Podem ser encontrados políticos, generais e milionários. As principais importações africanas que florescem na Bahia são o Candomblé (também chamado de macumba em outras cidades) e a capoeira (descrita como a combinação de luta e jujitsu, pois usa somente os pés). A mudança de capital para o Rio foi ao acaso. Em 1555, é formada a primeira colônia na Baía de Guanabara pelos franceses. Chamavam-na de França Antártica. Nicolas Durand de Villegaignon era o líder tirano que sonhou em fundar a utopia em terras brasileiras. Para tanto, os franceses se aliaram aos índios. Numa tentativa de expulsar os franceses, Estácio de Sá é morto, e torna-se posteriormente patrono da cidade. O agrupamento se estabelece no Morro do Castelo, ponto inicial para a expansão da cidade. Em 1808, a corte portuguesa chega ao Rio. As condições da cidade que nascia eram precárias e, por isso, foram requisitadas as melhores casas para a corte. O feitor dava ordem de despejo às famílias, marcando as portas das casas requisitadas com as letras PR. Bishop rememora a tradução dos cariocas “Ponha-se na rua” (p. 55). O período imperial traz progresso ao Rio, porém o maior progresso deu-se no 153 período da república. A feição atual da cidade se concretizou num período anterior a I Guerra Mundial, quando os prefeitos destruíram ruas e prédios antigos insubstituíveis, praças e fontes para a abertura das avenidas. Menciona o período que aparecem os teleféricos no Rio, assim como a abertura da estrada que leva ao corcovado, momento em que se comemora o primeiro centenário da independência. A cidade é presenteada com o Cristo Redentor, obra do escultor francês Paulo Landowski. Os problemas habitacionais e de trânsito do Rio são qualificado em Brazil como formidáveis. As estradas têm que passar por túneis sob as montanhas ou pela costa, em partes aterradas. Muitas das praças eram originalmente lagoas, que passaram igualmente pelo processo de aterro. A topografia do Rio é então caracterizada como desafiante a qualquer tipo de planejamento sistemático de cidade. Os morros começam a ser habitados por migrantes do norte e nordeste, espaços qualificados como focos de doenças, crimes e distúrbios sociais. Através da anedota de um cavalo que aparece na varanda de um apartamento, Bishop aponta para a proximidade dos morros e dos prédios habitados pela classe alta. Destaca a forte atração que a vida urbana exerce sobre essas pessoas. Sobre os projetos de urbanização da cidade, lamenta a destruição de prédios antigos. Em 1956, a capital começa a ser transferida para o interior, o que é lido como “repetição romântica das longas marchas dos bandeirantes para as terras desertas, trazendo civilização para as áreas remotas” (p. 56). O sonho de uma capital central foi idealizado muito antes, em 1820, por José Bonifácio, conselheiro de Dom Pedro I. Ele é responsável pelo nome Brasília. Em meados do século XIX, Varnhagen pensa em uma capital imaginária que se localizaria em um ponto de encontro dos principais sistemas de drenagem do país – do rio Amazonas, Paraná e São Francisco. Depois da ditadura de Vargas, uma nova constituição solicitava a transferência da capital para uma cidade situada em ponto conveniente, no estado de Goiás. Em 1956, Juscelino Kubitschek, desejando realizar um trabalho público inesquecível, inicia a construção de Brasília. Uma comissão se forma para preparar a mudança e tem como responsável o arquiteto Oscar Niemeyer. As dificuldades do empreendimento foram imensas, a começar pela falta de estradas que ligassem a capital a ser construída com o resto do país. Muito do material teve que ser transportado por via aérea, com custos assombrosos. Em abril de 1960, a nova capital estava instalada. Estima-se que Brasília custou aproximadamente um bilhão de dólares, e ainda não está terminada. No entanto, está começando a mostrar efeitos benéficos na economia, previstos pelos proponentes da nova capital. Goiânia e Uberlândia, cidades entre Brasília e São Paulo, estão florescendo. Também Belo Horizonte, entre Brasília e o Rio, está sendo 154 beneficiada com novos investimentos. Brasília se torna uma ligação importante entre o sul e a remota bacia amazônica ao norte. Em Manaus e Belém, são visíveis os benefícios da construção da nova capital. Depois da era Kubitschek, Brasília parou. Mais de metade dos empregados federais brasileiros ficaram sem residência, e mais que a metade dos 60.000 homens que trabalharam na construção estavam desempregados. Em 1964, as construções recomeçam nos subúrbios. O dono do Hotel Nacional José Tjurs investe na construção de um shopping; surgem vários clubes; cresce o turismo. No entanto, Brasília permanece inconveniente em muitos aspectos. A comunicação ainda é primitiva com o resto do Brasil. As atividades de lazer e os restaurantes são limitados. A moradia dos pobres da Cidade Livre ainda estava muito precária. Muitos dos negócios do governo ainda se realizavam no Rio. Muitos políticos continuavam morando na antiga capital e se deslocavam “diariamente” para Brasília. Ainda era difícil saber onde encontrar os governantes, além da falta de circulação de jornal grande. Os habitantes reclamavam que a cidade era sem alma, mas que, no entanto, eles e o país estão presos a ela. Com o tempo, mais e mais pessoas estão começando a gostar do clima e das condições de trabalho. Brasília parece estar “destinada a se tornar uma cidade, em todos os sentidos” (p. 57). Bishop finaliza o capítulo retomando a cidade do Rio de Janeiro e questionando sobre o seu futuro. Apresenta a visão dos pessimistas e dos otimistas, concluindo que a cidade continua a mais amada. CAPÍTULO 5 – O LENTO DESPERTAR DE UM GIGANTE Chapter 5. Vegetable, Mineral, and Animal. Sugar, heyday and decline. Coffee, the “one crop.” Gold, jewls,. ores; untouched mineral wealth. Cattle raisingin the south. Difficulties of transportation. The types: Bahiana [and old-time fazendeira] Cangaceiro, [Grimoeiro], [il] Gaúcho. 119 <Garimpeiro> <Bandeirante> <Bahianinha> O título Vegetable, Mineral, and Animal (Vegetal, Mineral e Animal) é alterado para The Slow Awakening of a Giant (O Lento Despertar de um Gigante). Bishop começa 119 Capítulo 5. Vegetal, Mineral, e Animal. Açúcar, auge e declínio. Café, a “única colheita”. Ouro, jóias,. minérios; riqueza mineral intocada. Criação de gado no sul. Dificuldades de transporte. Os tipos: Baiana [e a fazendeira dos velhos tempos] Cangaceiro, [Garimpeiro], [il] Gaúcho. <Garimpeiro> <Bandeirante> <Baianinha> 155 mencionando o verso do hino nacional brasileiro, “deitado eternamente em berço esplendido”, situação que a autora diz ser verdadeira até pouco tempo. “Mas agora há sinais óbvios de que, lentamente, o gigante está pelo menos acordando, apesar dos grandes problemas e milhares de dificuldades” (p. 69). O Brasil permanece um país agrícola (representando 30% da renda nacional), ramo que emprega mais que metade da população. No entanto, o crescimento industrial vai tomando espaço maior. A autora discorre sobre as produções de veículos, aço e eletrodomésticos. Menciona os recursos, os quais ela denomina “amplos”, como a hidrelétrica brasileira, que detém o maior potencial do mundo. “É dito que os brasileiros ‘colhem a fruta sem plantar a árvore’, pois eles têm uma forte inclinação de ter lucros rápidos ao invés de implementar os fundamentos para um sólido ganho no futuro” (p. 69-70). Ao mencionar outros produtos – açúcar, ouro e café – diz que a história da economia brasileira poderia ser quase contada em sua longa sucessão de booms espetaculares. Há no Brasil pouca devoção a outros produtos. Agora há tentativas de diversificar. A criação de gado é uma atividade recente. Os portugueses, surpresos ao constatar que os índios não possuíam animais domésticos úteis (apenas os de estimação), trazem o gado para a Bahia em meados do século XVI. Os colonizadores que seguiram os bandeirantes levaram vacas, cavalos, porcos e cabra. Em busca de pastos, os vaqueiros começavam a se deslocar para o interior do nordeste. A pecuária se torna, assim, uma atividade independente, gerando uma “civilização do couro” (p. 70). Também é trazido o cavalo, animal indispensável à criação de gado e inseparável do gaúcho dos pampas e do vaqueiro do nordeste. Sobre a criação bovina no Nordeste, enfatiza-se que embora o gado dê pouco leite, estes animais são resistentes (são resultado do cruzamento com o zebu ou Brahman da Índia, produzindo um animal resistente ao clima quente, à seca e à escassez de pastagem). No século XX, os zebus são importados de Minas Gerais. A região do Triângulo Mineiro passa a ser o centro da indústria de gado. Ter zebus se torna uma paixão, e os preços chegam a $ 7.500. Minas é também responsável pela produção do queijo que é vendido em todos os lugares. A criação de gado foi sendo aos poucos transferida para Goiás e Pantanal, onde as condições são mais favoráveis, além da localização mais próxima ao maior consumidor de bife, São Paulo. No Pará, especialmente na Ilha de Marajó, foi introduzido o búfalo indiano, com boa adaptação. Pelo fato de no país haver poucos refrigeradores, inicia-se a indústria do charque no nordeste, que é também levada para o Rio Grande do Sul, terceiro maior produtor de gado do mundo. A maior produção de lã também é rio-grandense, e o algodão tem sido um importante produto de exportação. É fornecedor de material para a indústria têxtil doméstica, que tem crescido bastante, desde 1950. 156 A atividade da pesca é ainda subdesenvolvida. A autora faz analogia com o tamanho da costa brasileira e diz que, devido a esse fator, o ramo deveria ser mais desenvolvido. No Pará e Amazonas, pode-se encontrar o pirarucu, importante item na dieta dos ribeirinhos. Sobre as jangadas usadas, Bishop recupera um dizer da época, de que o melhor lugar para elas é o museu folclórico, pois a quantidade de peixe trazida pelos pescadores em suas jangadas é muito pequena. A lei de 1966 favorece o investimento na pesca, e alguma modernização foi implementada nesse sentido. Houve a aquisição de frotas japonesas motorizadas no sul, apropriadas para a pesca de atum e baleia. Também foi modernizada a pesca da baleia em Cabo Frio, e a de lagosta e camarão no norte e nordeste. O café sofre altos e baixos, assim como todo o recurso brasileiro. Trata-se do produto brasileiro mais conhecido por anos. Em 1960, sua produção chega a um terço do café de todo o mundo. Bishop conta a origem modesta do café: no início do século XVIII, foi roubado da Guiana Francesa e trazido para o Pará, e depois distribuído para todo o país. O século XIX foi sua primeira grande fase no Rio e em Minas. Seu cultivo dependeu do trabalho escravo, fazendo a fortuna dos barões do Rio. Em 1888, com a abolição dos escravos, houve também a falência dos barões. São Paulo não tinha muito trabalho escravo, pois era a cidade que mais recebia os trabalhadores imigrantes, principalmente portugueses e italianos. O cultivo do café era beneficiado pela terra roxa, pensada pelos paulistas como criada por Deus “especialmente para o cultivo do café”. Mais tarde, houve exaustão desse solo fértil. Também no Rio a produção declinou, e o café continuou sua marcha do sul para o oeste. Nas sombras dos cafezais, novas cidades iam nascendo, a exemplo de Londrina. Na década de 1960, o produto começa a penetrar o estado do Mato Grosso, passando por várias crises que ameaçam a vida nacional. As crises do café apontavam para a necessidade de diversificação agrícola. O Brasil começou a expansão das exportações de açúcar, tabaco e frutas, assim como o estímulo da industrialização em São Paulo, que se tornou produtor de mais ferramentas, papéis, têxteis e mais produtos químicos que todo o resto do país junto. Há grande crescimento populacional na cidade, o que gera problemas de trânsito comparados aos de Nova Iorque. Menciona a modernização dessa cidade, e diz que, apesar dos brancos arranha-céus modernos, de atmosfera cosmopolita e parques, São Paulo continua intensamente brasileira. Enquanto o sul prosperava, as cidades do nordeste permaneciam agriculturais. O açúcar era ainda a base da economia. Ao lado disso, cresceu o cultivo do algodão e cacau. Os métodos de cultivo eram ainda primitivos, quase semi-feudais. Os trabalhadores do açúcar são retratados como os mais pobres e os mais sofredores dos brasileiros. Há um forte movimento para a reforma da situação agrária. Trata-se de “uma área altamente explosiva, amadurecida 157 pela exploração comunista” (p. 74). A aguardente (também cachaça ou pinga) é um produto da cana de açúcar, que funciona como “o conhaque do pobre” (p. 74). Bishop diz tratar-se de um produto envolvido por folclore, celebrado pelos músicos e alcunhado de diversos apelidos. Ao beber, o homem cospe o primeiro gole para o santo. É agora um produto de exportação. A borracha também já foi um produto importante, que declinou em 1910. As cidades prósperas do vale do Amazonas logo se transformaram em cidades mortas ou agonizantes. Manaus foi a capital da borracha, até o colapso do mercado. Rica, tinha uma grande casa de ópera que importava tropas de cantores e dançarinos, e um porto regular para grandes navios. No leste de Manaus, Henry Ford estabeleceu plantações experimentais – Fordlândia e Belterra – nos fins da década de 1920 e início de 1930. O projeto foi abandonado pela falta de rentabilidade. Hoje pertence ao governo e produz alguma borracha. Durante a II Guerra, houve uma ressurreição da borracha amazônica. Nos anos recentes, há tentativas de diversificação do mercado, com a produção de castanhas brasileiras, juta, madeira, cana, óleos vegetais e manganês. A madeira também ascendeu por um período, principalmente na Amazônia, onde há cinco trilhões cúbicos de madeira, além das vastas florestas do sul. Destacam-se nas paisagens brasileiras as araucárias, os “pinheiros brasileiros” (p. 74), principalmente no Paraná e Santa Catarina. Além de bonitas, são também úteis. Sua madeira constitui a principal riqueza da região em que cresce. A lei 1945 proibiu o corte excessivo e incentivou o replantio. Há mais de 600 variedades conhecidas de palmeiras, que são fontes de fibras, óleos e combustível. Das folhas da carnaúba, extrai-se a cera de carnaúba, usada na manufatura de gravação fonográfica, ceras e vernizes. A carnaúba é um dos principais suportes econômicos do Ceará, Piauí e Maranhão. As pessoas do sertão dizem que é uma compensação dada por Deus pelo flagelo da seca. O tabaco é cultivado em quase todo o Brasil, e foi importante para os comerciantes de escravos. Desenvolveu-se na Bahia, produzindo cigarros famosos, até mesmo comparados em qualidade ao de Cuba. No Rio Grande do Sul está o maior número de fábricas de cigarro. Ainda sobre a economia desse estado, destaca-se a uva européia, trazida pelos imigrantes italianos, e a indústria de vinho, champagnes e conhaques. “Nos últimos anos, o Brasil tem exportado vinho até mesmo para a França” (p. 75). Outra produção importante é a de trigo, mas que, no entanto, a produção não é suficiente para o próprio país. Outros produtos como milho, feijão e arroz são produzidos o suficiente para o consumo interno. Recentemente, há muito interesse no uso das frutas brasileiras para exportação ou enlatamento (laranja, banana, castanha e goiaba). 158 O maior recurso mineral é o ferro, tendo Minas como fonte principal. O Brasil possui 35% da reserva mundial total. O carvão de Santa Catarina, apesar de inferior, foi energicamente explorado, e tem como resultado as siderúrgicas de Volta Redonda, construídas em 1942 com a ajuda dos EUA. As indústrias de ferro e aço são as maiores da América Latina. Os minérios estão começando a ser explorados. Existem depósitos de cada mineral espalhados pelo país, incluindo pedras preciosas e semipreciosas. Há grandes extensões de reservas petrolíferas. Devido à falta de interesse do capital estrangeiro, a exploração e produção de óleo foram postas, em 1953, nas mãos de um monopólio do governo, a Petrobrás. Os poços na Bahia produzem praticamente todos os 30% totais que são empregados no consumo interno. Existem reservas extensivas na Amazônia, porém foram identificados problemas geológicos. O transporte é um dos problemas básicos. O capítulo é finalizado com a frase: “O gigante está movendo-se, mas antes que ele possa exercitar sua força, o Brasil terá que tomar medidas desejadas por seu povo há muito tempo” (p. 75). CAPÍTULO 6 – HABILIDADES POPULARES GRACIOSAS Chapter 6. The Unselfconscious Arts. Carnival. Folk art and festivals: Bumba meu boi, Reizados, Maritimas, Iemanjá, etc. The church. São João, São Pedro and São Jorge. 120 Development of the samba, Popular songs, HUMOR. <il> O título Unselfconscious Arts (As Artes Espontâneas) é alterado para Graceful and Popular Skills (Habilidades Populares Graciosas). Trata do florescimento do artesanato e das artes populares no Brasil nas zonas rurais. Nas cidades, encontram-se também as artes sofisticadas, produtos manufaturados bons e ruins que o homem faz para satisfazer as suas manias estéticas, ao invés de fazer ele mesmo as coisas como antigamente. Sobre as pessoas pobres do interior, afirma que elas têm pouco dinheiro e por isso não podem comprar quase nada. Elas fazem muitas das coisas que usam, e esses artigos são quase sempre de alto valor artístico. Enfatiza a criatividade do pobre, que, sem opções, cria os seus próprios entretenimentos: músicas, baladas, danças e os repentes que aparecem nos dias dos santos. Eles ainda tecem algodão, fazem tranças de palha, cerâmica e entalham madeira e pedra. Toda essa riqueza é atribuída por Bishop à mistura cultural: herança dos portugueses e mouros, com 120 Capítulo 6. As Artes Espontâneas. Carnaval. Folclore e os festivais: Bumba meu boi, Reizados, Marítimas, Iemanjá, etc. A igreja. São João, São Pedro e São Jorge. Desenvolvimento do samba, músicas populares, HUMOR. <il> 159 influência indígena e africana. No sul, influências dos imigrantes alemães, italianos, japoneses e poloneses são notadas. Especificamente, trata das técnicas de cerâmicas utilizadas no Brasil como prática herdada dos indígenas, distinguindo-a do modo de fazer português. Os potes de uso prático são somente feitos por mulheres, o que é uma convenção indígena. Fazem também brinquedos e eventualmente algumas esculturas. Os homens geralmente constroem as estatuetas de barro, figuras que descrevem os tipo e atividades da sociedade rural, como vaqueiros, soldados, padres, caçadores, casamentos, funerais e caçadas a jaguares. Ressalta as particularidades da cerâmica feita pelas mulheres do ceará: potes em miniatura e pratos, mobília e animais de brinquedo semelhantes aos brinquedos romanos e gregos que sobrevivem nos museus. Os artigos manufaturados caros são copiados em barro. Nas regiões de criação de gado no Nordeste, são desenvolvidas técnicas no trabalho em couro. As roupas de vaqueiro são muito similares às armaduras medievais: “calças, que têm a mesma finalidade que a polaina do cowboy americano, mais ajustada e se estendendo sobre os pés; um avental; um protetor para do tórax; e por cima, um gibão de couro com mangas longas sobrepostas por luvas também de couro. Na cabeça, ele usa chapéu de couro com um ornamento de mesmo material” (p. 48). A habilidade com o trabalho em palha é herdada dos índios (cestos, peneiras, e tapetes). No Pará, móveis de bambu são feitos em casa para comercialização. No rio Amazonas, os viajantes podem ver cadeiras de balanço, cadeiras infantis ou sofás se aproximarem pela água, em uma canoa quase invisível. Uma das mais bonitas e características artes da região é a tecelagem de redes decoradas, que não são de dormir. Estas são mais simples, brancas ou xadrezes. O uso das redes na casa grande seve para atestar a riqueza de seu proprietário. Outra influencia indígena é o modo de decorar cuias. São esmaltadas, uma técnica que é segredo passado de geração em geração. As rendas são herança portuguesa. Os fios são feitos das fibras da folha de bananeira. Também são destacadas as artes dos ourives de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Os trabalhos na Bahia são em ouro, prata, marfim e coral, especialmente em formas de amuletos da sorte, coma a figa. Também se produz os balagandãs que emprega, entre outros elementos, os símbolos usados na macumba. Outros artigos relacionados ao sincretismo são diabos em ferro. O candomblé da Bahia é retratado como uma religião altamente desenvolvida, que lembra o vodu caribenho. Os membros são possuídos por deuses, e há a prática de magia branca e negra. Há sacrifício de animais, e as oferendas podem ser vistas nas praias e nas ruas, o que é caracterizado como devoção supersticiosa. 160 No nordeste, ainda se produz punhais, facas e imagens de santos em madeira. Bishop menciona que, no século XVIII, os santos eram construídos com o interior oco, daí a expressão corrente “santo do pau oco”. Lamenta a troca do trabalho em madeira pelos modernos santos de gesso. Sobre os santuários, compara-os a verdadeiros museus de arte popular, onde partes do corpo em cera ou madeira atestam curas milagrosas. Há também estátuas de animais domésticos curados. Em relação à escultura popular, o que Bishop considera que há de melhor é a carranca usada nos barcos no rio São Francisco, e lamenta o menor uso dessas esculturas nos dias atuais. Sobre as festas populares do sertão, ressalta a atividade dos cantadores como pessoas privilegiadas na comunidade. Os versos são improvisações em formato muito antigo, cantados com acompanhamento de seus próprios violões. Os repentistas aparecem nas festas rurais, e suas atuações tomam forma de duelos que, às vezes, podem durar mais que um dia inteiro. Com o rádio, os repentistas passam a ser os jornais dos sertões, pois cantam e escrevem seus poemas com temas atuais e os vendem nas feiras livres. Os que não sabem escrever solicitam a alguém que o faça. Outra arte popular muito viva no Brasil é o drama. As festas de natal, ano novo e de santos são celebradas com danças ou peças que variam de acordo com o grupo racial e a tradição local, a exemplo do bumba-meu-boi. Nessa manifestação popular, as mulheres não atuam, assim como foi no teatro elizabetano. Nas regiões costeiras, as pessoas do interior dançam ao modo dos antigos fandangos portugueses e cheganças. Onde o negro predomina, a dança é o congo. Os festejos de natal, em muitas partes do Brasil, são comemorados com apresentações de peças sobre os pastores. Bishop diz ter muito mais festas, e dá destaque às musicas e danças do carnaval, tradição herdada dos portugueses. Considerado por ela como um dos maiores espetáculos populares da terra, lamenta que, nas grandes cidades, ele esteja se perdendo. Culpa o comercialismo, a falsa ideia criada sobre ele para atrair turistas e a influência exercida por Hollywood. Considera que foi estragado também pela atitude do governo de proibir que os músicos populares incluam nas canções suas críticas a políticos, igreja e militares. O rádio e os alto-falantes são apontados como os produtores de um estrago ainda maior. A virtude do carnaval sempre foi a espontaneidade, com música e dança vindas diretamente do povo. Quando os compositores profissionais começaram a escrever as canções e essas músicas passaram a ser transmitidas e exploradas bem antes do carnaval, todo o charme se perdeu. As propagandas veiculadas por auto-falantes que interrompem a dança é também outro fator de desgaste do encanto exercido pelo carnaval em suas formas mais antigas. Outra interferência 161 que quebra a naturalidade dos dançarinos é a atividade de fotógrafos na tentativa de conseguir boas fotos. Nas cidades pequenas, o carnaval ainda tem sabor folclórico. Destaca o frevo (dançado com sombrinhas), e as escolas de samba do Rio, muitas das quais ainda não foram contaminadas pelo comercialismo. Explica que não são exatamente escolas, mas clubes em que os membros (quase inteiramente formado por negros pobres da favela) se encontram durante o ano para aprender as músicas e danças para o carnaval. Muito dinheiro e tempo são devotados a essas escolas. As músicas são realmente populares. Os temas são relacionados ao amor (o mais importante), ou à critica social (o governo, o custo de vida e os políticos). CAPÍTULO 7 – RESPEITO MERECIDO PELAS ARTES Chapter 7. The Selfconscious Arts. Contemporary Brazilian architecture most important. Foreign influences in the past and present. A few landmarks of Brazilian writing. Journalism. The importance of “poets” in Latin America. Serious music. 121 Portinari, and some younger artists; work in black & white. [Difficulties.] O capítulo The Selfconscious Arts (As Artes Sofisticadas) tem seu título alterado para A Merited Respect for the Arts (Respeito Merecido pelas Artes). Bishop inicia dizendo que poucos países demonstram tanto respeito pelas artes e cultura como o Brasil, um respeito que é merecido. A arquitetura brasileira ganha destaque, quando comparada com qualquer outro país em desenvolvimento. O grupo de bons arquitetos é qualificado como imaginativo, energético, sofisticado e ousado; muitos deles são bastante jovens. Os brasileiros no geral – os educados – têm consciência arquitetural. O Brasil se destaca como um dos poucos países onde a arquitetura contemporânea é incentivada, até mesmo pelo governo. Dá como exemplo o prédio do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, considerado como exemplo de arquitetura contemporânea em todo o mundo. Os jovens que colaboraram para esta construção foram influenciados por Le Corbusier, que na época visitava o país. O grupo incluía Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Jorge M. Moreira. Outros trabalhos de destaque são o de Affonso Eduardo Reidy, interessado no aspecto sociológico da arquitetura, e de Sergio Bernardes, considerado o mais imaginativo de todos. 121 Capítulo 7. As Artes Sofisticadas. A mais importante arquitetura brasileira contemporânea. Influências estrangeiras no passado e presente. Alguns marcos da escrita brasileira. Jornalismo. A importância dos “poetas” na América Latina. Música séria. Portinari e alguns artistas mais jovens; trabalho em preto & branco. [Dificuldades.] 162 Como grupo, os arquitetos parecem ser as pessoas mais livres, felizes e menos provincianas do país. Os materiais são de baixa qualidade, e a autora acrescenta: “O que um crítico arquitetural famoso chamou de ‘inacreditável negligência na manutenção de prédios públicos no Brasil’ é, na realidade, uma combinação da falta de durabilidade dos materiais associado à falta de dinheiro do governo para manutenção, em vez de indiferença à aparência” (p. 98). As construções no Brasil têm uma vantagem que beneficia a tradição de construções sólidas e bonitas. Ela é simplificada em vários sentidos: não há terremotos ou furacões. São vantagens naturais mal aproveitadas. O paisagista Roberto Burle Marx é elogiado e Bishop diz que, como muitos especialistas brasileiros, ele é mais conhecido fora do país. Depois de ressaltar a criatividade de Burle Marx, diz que o brasileiro no geral parece ter um instinto para extrair beleza dos materiais mais simples. Fala da construção de casas de taipa e teto de palha que causa um efeito agradável. As casas ao longo do rio Amazonas lembram belos cestos. Até mesmo as casas das favelas do Rio e de outras cidades têm uma beleza melancólica. Bishop destaca também as casas das fazendas construídas em fins do século XVI e das casas antigas da cidade, que são mais estreitas e compridas que as da fazenda. O costume de usar pedras nas construções vem de Portugal. Enfatiza o estilo jesuíta como uma forma do barroco que floresceu em fins do século XVII e início do XVIII, quando centenas de igrejas, tanto as modestas quanto as magníficas, apareceram em Belém, Recife, Olinda, Bahia, Rio, e um pouco depois, em Minas Gerais. O uso dos azulejos azuis e brancos na fachada é retomado no Brasil, mas com uma diversificação de cores. Bishop diz que embora não seja usado com bom gosto, trata-se de um excelente acabamento em países de clima tropicais. Muitos dos artistas e arquitetos do século XVII e XVIII são anônimos no Brasil (assim como foi na Idade Média européia), exceto dois deles, ambos mulatos: Mestre Valentim da Fonseca e Silva e Antônio Francisco Lisboa, conhecido como Aleijadinho. O material preferido de Aleijadinho era a pedra sabão. O trabalho mais famoso são as estátuas dos 12 profetas. Durante o século XIX, a arquitetura era imitativa, principalmente de um modelo francês. No fim do século, as construções deterioraram em imitações ecléticas e de mau gosto, segundo modelos de todo o mundo. O Brasil começa a apreciar sua herança arquitetural tardiamente. A década de 1930, com a revolução arquitetural moderna, foi um período drástico de demolições, mas também foi o período no qual se estabeleceu o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ou SPHAN, que foi feito para salvar as construções históricas, dirigido por Rodrigo de Mello Franco de Andrade. Bishop vai dizer que, enquanto as construções no Brasil foram primorosas desde o início, o mesmo não vai acontecer com a pintura, pelo menos até o século XX. Destaca 163 Cândido Portinari, Lasar Segall, Emiliano di Cavalcanti, e os abstracionistas Aloísio Magalhães, Iberê Camargo e Manabu Mabe. O melhor trabalho é em preto e branco dos gravuristas como Fayga Ostrower, Roberto de Lamonica, Edith Behring, Anna Letycia Quadros e Maria Bonomi. Um grande estímulo para a pintura foi a bienal de São Paulo, iniciada em 1951 promovida por Francisco Matarazzo. Sobre a música, Bishop diz que o desenvolvimento foi lento, com pouca produção. Há influências indígenas, africanas e portuguesas. A chegada da família portuguesa em 1808 é reconhecida como um estimulo à musica. Menciona uma coleção de música barroca descoberta em Minas que esta sendo transcrita e gravada, o que preencherá o longo silêncio na história da música brasileira. Um dos grandes nomes do século XIX é Carlos Gomez. É considerado o primeiro músico do novo mundo aceito pela Europa como compositor amadurecido. Por outro lado, Heitor Villa-Lobos é destacado como o mais reconhecido e sério compositor brasileiro. Sua criação faz uso das tradições portuguesa, africana, indígena, folclórica e popular. Outros famosos são Camargo Guarnieri e Francisco Mignote. Sobre as contribuições americanas, ressalta a influência do jazz americano na criação da bossa nova. O poeta aparece como figura considerada especial no Brasil que também desempenha papel político, como o de cônsul ou embaixador. Trata-se de um costume das tradições de países latinos, mas também da Europa e Estados Unidos. O mau pagamento da escrita no Brasil e os poucos prêmios e bolsas concedidos fazem com que o escritor ainda hoje necessite desempenhar outras tarefas. As pouquíssimas boas revistas são os veículos nos quais se devem procurar as novidades literárias, embora apareçam perdidas em meio aos “ensaios políticos e teoria econômica, teológica e discussões infindáveis dos poetas franceses Charles Baudelaire ou Paul Valéry, o filosofo São Tomás de Aquino, o ensaísta G. K. Chesterton ou as estórias de William Faulkner” (p. 102). A língua é vista como barreira entre os escritores brasileiros e o público estrangeiro, principalmente no que diz respeito à poesia. No entanto, a autora afirma que a prosa pode ser remediada. “É uma pena que boa parte do mundo permaneça ignorante de poetas como Cecília Meireles e Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Morais” (p. 103). Na literatura, Bishop menciona duas correntes de pensamento: uma voltada para a valorização de modelos europeus, e outra que incluía em suas representações a figura do índio e elementos do regional. No arcadismo, destaca a atuação de poetas da inconfidência mineira, em especial, Tomás Antônio Gonzaga. No romantismo, enfatiza que a saudade e os sentimentos antiescravagistas figuravam como elementos presentes nas poesias do século XIX. Os autores de destaque são Gonçalves Dias (Canção do exílio) e Castro Alves, com a 164 poesia abolicionista. Bishop demonstra surpresa ao constatar que as grandes personalidades da literatura são escritores de prosa e não poetas, apesar da eminência da poesia brasileira. Diz que talvez Machado de Assis seja o melhor do continente sul-americano. Chega a ser considerado por alguns críticos como o melhor escritor das duas Américas, até mesmo superando Henry James. Outro grande escritor é Euclides da Cunha. Na década de 30, aponta o surgimento de outros escritores de destaque, como Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, Jorge Amado e Rachel de Queiroz. Mário de Andrade é apontado como uma das grandes forças no renascimento artístico do Brasil. Fundador do modernismo, ele se interessava também por música, poesia, prosa e arte popular. Quase tudo na vida artística brasileira se beneficia ainda de sua influência. Bishop diz haver veneração pelas artes no Brasil, e atribui essa prática não somente a uma tradição européia, mas ao fato de que, no país, a classe alta é uma grande família: “Apesar dos exemplos de democracia das artes – Aleijadinho, Machado de Assis, Mário de Andrade, todos mulatos; e Portinari, filho de imigrantes pobres italianos – muitos dos escritores e artistas vêm da classe alta educada e inter-relacionada. Em vários graus, eles são todos primos, e uma sociedade de admiração mútua emerge como resultado, tornando-se fácil estabelecer uma reputação desde jovem. As discussões literárias menores podem se transformar em discussões familiares; os primeiros nomes são usados, mesmo em artigos sérios, e tudo é tomado pessoalmente” (p. 104). Conclui que os escritores brasileiros sofrem de falta de competição, fazendo analogia dessa facilidade com o discurso de que os talentos brasileiros gostam de ser fotografados em redes, e que eles têm hábito de se retirarem para suas camas ou redes muito cedo. CAPÍTULO 8 – UMA CENA SOCIAL EM MUDANÇA Chapter 8. Individuas and Groups. Race relations. Negroes, Indians, Portuguese; immigrants. General Rondon and Villas Boas. [Santos Dumont.] Women. Santos Dumont. Sports 122 and changing society – futebol. 122 Capítulo 8. Indivíduos e Grupos. Relações de raça. Negros, índios, portugueses; imigrantes. General Rondon e Villas Boas. [Santos Dumont.] Mulheres. Santos Dumont. Esportes e mudança da sociedade – futebol. 165 Inicialmente Individuals and Groups (Indivíduos e Grupos), é alterado para A Changing Social Scene (Uma Cena Social em Mudança). O texto começa com uma anedota sobre o fato de os brasileiros nunca se cansarem de ilustrar o modo como lidam com as relações raciais. Bishop menciona carta de Dom Pedro, na qual encontra-se a informação que André Rebouças, um mulato, dançou com a princesa Isabel. D Pedro II empregou negros e mulatos em altas posições, estória que não prova a tolerância racial. Bishop sugere uma estória melhor: relata o episódio ocorrido com a dançarina Katherine Dunham, recusada em um grande hotel de São Paulo, o que se traduz em uma demonstração de falta de respeito à clientela norte-americana. Ressalta que na constituição brasileira havia uma cláusula que tornava tal discriminação uma ofensa civil. Diante do escândalo, o governo reage rapidamente, implementando uma lei que tornava a atitude de discriminação racial como ofensa criminosa, o que revela muito sobre a atitude do Brasil em relação ao negro. Segundo Bishop, a discriminação no Brasil se dará mais por razões econômica, social ou educacional do que propriamente racial. Diz que apesar de os negros e mulatos não ocuparem importantes cargos e serem pobres, eles têm as mesmas oportunidades. Usa os exemplos de Aleijadinho, Machado de Assis e Mário de Andrade. Revela que, por muito tempo, a velha classe alta se ressentiu com a nova, formada por imigrantes que fizeram fortuna com negócios e indústria. Os brasileiros desprezavam o que consideravam falta de educação, assim como as graças do novo rico. Ressentem-se também da formação de um novo segmento – a junção dos novos ricos com a classe média, que também tenta emergir socialmente. Percebe dubiedade no relacionamento de ricos e pobres brancos, negros e mulatos, pois são tratados com intimidade por um lado, e de forma autocrática de outro. O negro ou o mulato no Brasil é retratado como um cidadão de segunda classe, quase sempre pobre. No entanto, a maioria da população compartilha com eles das mesmas privações, o que leva a autora a concluir que o sofrimento do negro não o marca como diferente. Segundo Bishop, o negro tem oportunidades iguais e educação, mesmo que isso não signifique muito ainda. Diz que não há discriminação nas artes, e menciona os exemplos dos já citados Aleijadinho, Mário de Andrade e Machado de Assis. Bishop se surpreende ao perceber que, no Brasil, a negra cozinheira chama sua senhora de minha negrinha. Tudo isso leva a autora a perceber que o Brasil está passando por uma conscientização de sua história de assimilação racial como uma das grandes qualidades do país. Bishop menciona as misturas raciais e constata o aumento da população branca a cada ano. Os portugueses constituem o maior número de imigrantes. Ainda chegam, e tornam-se trabalhadores, fazendeiros, serventes ou jardineiros. Possuem negócios também nas cidades antigas. Empurram fretes em carros-de- 166 mão, e por causa do trabalho exaustivo são chamados no Brasil de burros sem rabos. Bishop destaca a beleza dos portugueses em relação à feiúra dos brasileiros. Outros imigrantes que chegaram depois da abolição foram os alemães, italianos, e mais tarde, japoneses. Ao grupo minoritário dos tupinambás, Bishop se refere como fascinante. Enfatiza a atuação de Marechal Rondon junto a esses grupos tribais. Ele se torna fundador do Serviço de Proteção ao Índio. Tendo Roosevelt o acompanhado a uma de suas expedições, recebe homenagem, servindo seu nome para designar um dos 15 rios descobertos por Rondon. Orlando Villas Boas, como herdeiro de Rondon, dedica sua vida a pessoas da selva. Preferia viver com índios a exercer a tarefa de administrador. Bishop revela que os índios continuam a ser um problema, quase sem solução. Inúmeras tribos estão sendo descobertas, e os que as encontram, estão sendo mortos. Ressalta que os exploradores são constantemente pressionados para falar sobre o corpo de um explorador inglês encontrado morto por flechas indígenas. Também os seringueiros e o criador de gado do Pará e do Mato Grosso sofrem ameaças. Eles devem temer mais as flechas do que as bombas, apesar de viver numa era nuclear. Sobre o universo feminino, relata o encontro com uma jovem doutora em um barco que navegava o Amazonas, mulher destacada como moderna em país machista. Não perdendo a oportunidade de ressaltar as relações entre seu país e o Brasil, menciona que a doutora trabalhava para o Serviço Especial de Saúde Pública, fundado com a colaboração dos Estados Unidos, em 1942. Aponta que nesse mundo masculino, a importância principal das mulheres é a de serem as mães dos filhos dos homens ou “portadoras de seus nomes”. Talvez por esse comportamento é que os garotos cresçam mimados. Nos primeiros anos, a mulher brasileira tinha vida reclusa. Nos últimos cem anos, ela passa a receber educação formal. O tratamento que elas dão aos empregados ou aos inferiores é comparado aos costumes do século XVIII, o que é também repetido pelas crianças. Como a maioria das mulheres era analfabeta, quase não há escritoras. A visão feminina a qual se tem acesso é a reportada por estrangeiras, como exemplo da visitante inglesa Maria Graham (século XIX) e também a partir de cartas de governantas estrangeiras empregadas por brasileiros ricos. Menciona o Diário de Helena Morley, autora de talento desperdiçado, e cita outras mulheres proeminentes: Cecília Meireles, Clarice Lispector e Rachel de Queiroz, esta última convidada em 1961 para ocupar cargo de ministra da educação no governo de Jânio Quadros. Recusou, porém foi a primeira vez no Brasil que uma mulher foi tão honrada. Existem agora mulheres no governo e no congresso; há advogadas, médicas, psicanalistas e engenheiras. 167 Aponta que houve avanços femininos, no entanto, as mulheres não alcançaram status como em outros países. O casamento ainda é uma segurança para ela e para os filhos. Em 1932, passa a ter direito de voto, mas ainda não exerce plenamente seus direitos legais. São geralmente influenciadas pelos maridos, e aceitam a infidelidade. Finalmente, menciona que a mulher brasileira, depois de visitar os Estados Unidos, passa a se considerar mais feliz que as americanas, por conta das inúmeras atividades assumidas por estas. Bishop finaliza o capítulo com o futebol, esporte mais popular no Brasil. Os jornais, ao noticiar as partidas, demonstram uma excitação que beira a euforia. Cria imagem poetizada do futebol. CAPÍTULO 9 – O ESFORÇO POR UMA DEMOCRACIA ESTÁVEL Chapter 9. The New Republic. The legacy, good and bad, of 30 years of Vargas. Communications, Migrating workers, crowded cities, illiteracy and sanitation, etc. [labor] 123 Elections. Power., irrigation, [health] [il] (<il>) O titulo original The New Republic (A Nova República) é alterado pelos editores para The Struggle for a Stable Democracy (O Esforço por uma Democracia Estável). Inicia o capítulo falando sobre a ânsia do povo brasileiro pela democracia: “As pessoas dos Estados Unidos do Brasil por muito tempo quiseram uma democracia. Mas muitos fatores têm impedido o país de alcançar um governo estável e democrático. Democracia no mundo contemporâneo requer, entre outras coisas, um povo educado e informado” (p. 127). O analfabetismo, a falta de comunicações, as lutas e a consequente falta de consciência têm tornado possível que um determinado grupo de homens controle o país sem o consentimento geral, ou mesmo o conhecimento do povo brasileiro como um todo. Em 1954, Getúlio Vargas governa o país como presidente, ditador ou as duas coisas. Bishop lista as reformas implementadas por Vargas, das quais o Brasil necessitava há muito tempo. No entanto, ele parou o relógio em relação ao desenvolvimento de uma democracia responsável no Brasil, o que gera crises na década seguinte. Depois de sua morte, o país se afundou em confusão política e econômica. Com Jânio Quadros, as esperanças aumentaram, no entanto, ele renunciou quatro meses depois. Após de um período de lutas internas, um comparsa de Vargas, João Goulart, emergiu como presidente. Durante os 31 meses de 123 Capítulo 9. A Nova República. O legado, bom e ruim, de 30 anos de Vargas. Comunicações, Trabalhadores migrantes, cidades super povoadas, analfabetismo e saneamento, etc. [trabalho] Eleições. Poder., irrigação, [saúde] [il] (<il>) 168 governo, a inflação subiu, houve quebra dos serviços básicos e as agitações esquerdistas aumentaram. O Brasil parecia liderado pelo colapso, talvez por causa da revolução comunista. Em março de 1964, as forças armadas do Brasil impediram essa possibilidade. Goulart foi deposto e Castelo Branco tomou o poder. Tomando medidas emergenciais para frear a inflação, ele evitou um caos econômico iminente. Entretanto, para restaurar a ordem política e a eficiência administrativa e colocar o Brasil no caminho da prosperidade em definitivo, levaria muitos anos. A partir dessas observações gerais, Bishop vai tratar dos detalhes desse período turbulento no Brasil, buscando entender as situações que levaram ao regime de Vargas e à atmosfera política contemporânea. O capítulo trata, no geral, de fatos históricos ocorridos desde o início da república, até o governo Costa e Silva. Na página 132, consta um trecho da carta de Vargas escrita antes do suicídio, qualificada como extraordinária. Juscelino Kubitschek, ex-governador de Minas e também homem aliado à Vargas, torna-se presidente em 1956, na eleição seguinte. A vitória, embora legal, foi questionada por um grupo de líderes militares que tomaram o poder com um golpe preventivo, declarando o país em estado de sitio, e assim, garantiram que Kubitschek assumisse o poder. O novo presidente era otimista, hiperativo e ambicioso – tinha como slogan “50 anos em 5”. Seu grande trabalho foi a construção de Brasília. As exportações de ferro dobraram e a indústria automobilística foi iniciada. Implementou programas de abertura de estradas e construiu grandes barragens para aumentar o fornecimento de energia no país. Alguns brasileiros acreditavam que a corrupção naquele momento superava até mesmo a do governo de Vargas. O controle do país ainda continuava nas mãos de poucos grupos poderosos política e economicamente. Enquanto que o sul continuava rico e próspero, o nordeste era extremamente pobre. A inflação começada com Vargas aumenta absurdamente, em parte como resultado da rápida industrialização. Estima-se que Kubitschek gastou $600 milhões em Brasília. Os problemas econômicos do país permaneciam não resolvidos. Ainda assim, o programa de Kubitschek de desenvolvimento colocou o Brasil em um curso que poderia trazer melhorias para todos os cidadãos. O candidato do ainda forte grupo getulista, em 1960, foi o general Henrique Lott. Em oposição a Lott, estava Jânio Quadros, um professor aposentado que teve um governo bem sucedido em São Paulo. Em sua campanha, dizia que era a “nova vassoura” que varreria para sempre a corrupção das eras Vargas e Kubitschek. Quadros renuncia e João Goulart, como vice-presidente, o substitui, num momento em que o governo muda do sistema presidencialista para o parlamentarista, sobre o que se diz em Brazil: “Esse arranjo [mudança de sistema governamental] mais uma vez demonstra o renovado talento 169 brasileiro para o ‘compromisso’. Assim como muitos [outros] compromissos, isso não resolveu nada”. Continua então falando sobre o plebiscito que faz voltar o presidencialismo. O novo presidente é qualificado em Brazil como demagógico, oportunista, esquerdista e uma incerteza política. Em 13 de março de 1964, há um golpe de estado que leva Castello Branco à presidência. A eleição presidencial livre foi substituída pela indireta. Como resultado dessas manobras, Marechal Costa e Silva, anterior ministro de Guerra de Castello Branco, se tornou candidato à presidência sem oposições, tomando o poder em 1967. Outros pontos abordados são as medidas sanitárias, campanhas de vacinação para acabar com a varíola, migração do nordeste para as cidades do sul, em especial, para o Rio, o que causa um superpovoamento da cidade e o consequente surgimento das inúmeras favelas, e o projeto de civilizar o Rio, com a demolição de prédios antigos para abertura das avenidas. CAPÍTULO 10 – UMA NAÇÃO PERPLEXA E INCERTA Chapter 10. []A new [il] K and the inflation, Problems presented by Brasilia. The “opposition” in power [at last]. The new State of Guanabara. Quadros – (São Paulo) 124 again the “schoolmaster of the nation”? <il> Para este capítulo, Bishop não apresenta alternativa de mudança de título. Começa com o governo de João Goulart e o golpe militar de 1964 que posiciona Castelo Branco como presidente. Era visto na época como homem público capaz de disciplinar e tornar o Brasil mais honesto. Como objetivos desse governo, Bishop aponta: restaurar a confiança dos investidores estrangeiros, reorganizar toda a estrutura fiscal e tributária e aumentar a eficiência dos administradores do Estado. Castelo Branco incumbe-se da tarefa de extirpar a subversão e corrupção do Brasil e reduzir a fraude eleitoral e o mandonismo regional, assim como desfazer o sistema político personalista. As melhorias feitas na administração pública resultam em aumento lento da produtividade, ajudado pelo influxo do capital estrangeiro público e privado, levando o país a um desenvolvimento mais equilibrado. Trata-se de uma era de pós-revolução marcada pela repressão. A ditadura tomou seu aspecto mais severo com Castelo Branco, com regras arbitrárias para manter o controle revolucionário no Brasil até 1971. O país estava mais calmo e mais estável que o período de 124 Capítulo10. [] Um novo [il] K e a inflação, Problemas apresentados por Brasília. A “oposição” no poder [finalmente]. O novo estado da Guanabara. Quadros – (São Paulo) novamente o “mestre da nação”? <il> 170 Goulart. No entanto, houve censura, que aborrecia os intelectuais, ataque à igreja católica e repressão. Alguns brasileiros se desencantaram com o novo regime, a exemplo de Carlos Lacerda, que buscou coligir em uma união antigovernamental os elementos da oposição. Em fins da década de 1960, o Brasil passou por problemas não políticos, como a agricultura que, ignorada pelo processo de industrialização da década anterior, mantinha seu estágio ainda primitivo. Os fazendeiros continuavam sem crédito suficiente ou assistência técnica e o sistema de suprimento alimentar era tão antiquado que um terço de toda a produção apodrecia antes de chegar ao mercado. Houve esforço contínuo de industrializar o nordeste, em um programa que obviamente não podia mostrar resultados reais de imediato. Houve grande migração do nordeste para as regiões centro-oeste e sudeste. São Paulo e Rio de Janeiro tornam-se cidades superpovoadas. O crescimento populacional foi de 5% ao ano. Um quarto da população do Rio habitava as favelas. As cidades grandes brasileiras enfrentavam problemas de moradia, transporte, trânsito, comunicação, educação e segurança pública. “Os brasileiros logo perceberam que a melhor forma de contornar a crise urbana seria acelerando o desenvolvimento da fronteira vazia” (p. 147). Por isso, Brasília foi construída. Em meados da década de 1960, o Brasil começa a apresentar resultados. “Novas estradas e projetos de colonização foram gradualmente abrindo os territórios que antes eram inacessíveis. Mas muitos brasileiros ainda preferiam apinhar-se perto da costa; é obvio que o empreendimento de finalmente mudar o centro de gravidade do país para o continente levaria tempo, imaginação e uma massiva infusão de capital” (p. 147). A educação nacional era mal equipada, e alguns interiores não tinham escolas primárias. Nas cidades grandes, havia altos índices de desistências dos estudos e também ausências na sala de aula. A educação não era uma necessidade urgente. Eram problemas resultantes de anos de negligência de governos ineficientes, além de outros problemas, tais como, “[...] falta de um núcleo treinado de homens e mulheres capazes de administrar essa assombrosa tarefa de desenvolvimento nacional” (p. 147). Havia também falta de fundos disponíveis para os governos brasileiros levarem adiante seus planos. A autora não deixa de enumerar os pontos fortes: “O povo brasileiro tem um gênio para as relações humanas. As tensões sociais e raciais que foram deixadas de lado desde os dias da escravidão estão sendo resolvidas mais graciosamente, e com menos sofrimento no Brasil que em qualquer outra parte do mundo” (p. 147). E mais adiante continua: “O país está enfrentando os problemas com os índios tão bem quanto, senão melhor, qualquer outro país com proporções similares de aborígenes” (p. 147). 171 Até muito recentemente, o Brasil não tinha uma classe média representativa, o que é considerado um pré-requisito para a estabilidade nacional. A distância entre ricos e pobres continua muito grande. As características enfatizadas dos brasileiros são: “falta de agressividade, disposição ao compromisso de viver e deixar viver, de amar e deixar amar, um agudo senso de ridículo e pretensão na vida pública e privada – são qualidades das quais o mundo deveria se apropriar mais” (p. 147). A capacidade de aproveitar a vida é ressaltada como qualidade não estragada pela loucura de fazer dinheiro. Uma das noções presentes no capítulo é a de que o Brasil provavelmente não se tornará tão competitivo como os países capitalistas mais altamente desenvolvidos (p. 148). Em muitos aspectos, é um país da moderação, pois não tem pena de morte nem inimigos reais e nunca conduziu uma guerra objetivando grandes conquistas. Sobre o presidente, diz que se ele é pouco democrático, também não implementa uma ditadura pura. Existem poucos prisioneiros políticos. Ao invés de matá-los como muitos ditadores o fariam, Castelo Branco apenas cancela os direitos políticos por 10 anos e, em muitos casos, não chega nem a isso. Os extremismos não são populares no Brasil. Os integralistas (partido pseudo-fascista) existiu por curto período, há mais de 20 anos. O partido comunista tornou-se ilegal em 1947. Embora o núcleo comunista tenha persistido, sua fraqueza foi manifestada pela facilidade da vitória militar em 1964, quando o exército começou a se movimentar e o suporte dado à Goulart pela extrema esquerda desapareceu. Houve uma permanência de uma forte corrente de pensamento marxista e comunista (estudantes e círculos intelectuais). O “nacionalismo extremo – um tipo de xenofobia que poderia impedir o país de experimentar o desenvolvimento econômico e político de que precisava – também parece ser uma força crescente” (p. 148). Sobre a pobreza, ressalta que não há melhoria à vista. A grande necessidade do Brasil é um governo estável, responsável e receptivo. É claro que um bom governo não resolveria o problema do Brasil da noite para o dia. Ele não poderia, por exemplo, trazer alfabetização de um só golpe para todas as pessoas da nação, nem poderia conferir a todo o eleitorado a satisfação política que é essencial ao processo democrático. Entretanto, durante um período estendido de administração sólida, se estabeleceria, sem dúvida, o progresso industrial, agricultural e material, pois muitos dos ingredientes essenciais já estavam presentes. Mesmo sem bom governo, o Brasil tem alcançado muito. “Progresso” nem sempre coincide com “civilização”, e muitos países têm mantido alto padrão de desempenho artístico e social sem os benefícios do governo bom. O Brasil tem uma quantidade impressionante de artes e letras sofisticadas e também uma cultura popular próspera (ou em desenvolvimento). “Ele tem 172 muitas qualidades de caráter e sociabilidade que são características apenas das altas civilizações” (p. 148). O Brasil, com seus amplos recursos materiais, irá ser atraído e atrair a industrialização. Não há dúvida que um dia desponte como potência mundial. As questões lançadas por Bishop são: que tipo de homem estará administrando o país então, e que tipo de país será esse? O Brasil pode, com efeito, bater o recorde – as reformas políticas e sociais serão concluídas rapidamente e melhoras econômicas serão introduzidas efetivamente, ou as exigências das pessoas por uma vida melhor acarretará em uma revolução social? “O que quer que o futuro traga, é de se esperar que os problemas da nação serão resolvidos com a característica moderação e humanidade brasileira. Por ora, pelo menos, o Brasil continua um país em que o homem social é ainda considerado mais importante que o homem produtor, ou o homem consumista, ou ainda, o homem político”. (p. 148).