Disciplina: Sociedade e Território
Professor: Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Seminário VII: Sociedade como psicogênese e Sociogênese.
Responsáveis: Carla Hirt, Fernanda Ferreira, Luis Fernando Novoa Garzón e Raquel Giffoni Pinto
Textos base:
ELIAS, N. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1993, Volume II, pp. 193-274
______. Mozart: a sociologia de um gênio: Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1995.
O Processo Civilizador
A análise da obra fulcral de Norbert Elias, que é “O Processo Civilizador”, convida a um
breve exercício de sócio-gênese e de psicogênese de seu singular processo de elaboração. O livro
foi concebido por Elias como instrumento para postulação de carreira acadêmica na Inglaterra. Em
1934, um auxílio fornecido a emigrados judeus proporcionou viabilidade mínima ao propósito. A
primeira e quase inédita edição seria publicada, em alemão, na Suíça, país neutro, em 1939, ano em
que irrompe a 2ª Guerra Mundial. Sua aparição praticamente não foi notada, exceto por Raimond
Aron, que alguns anos depois chamaria a atenção para a originalidade de seu argumento principal. A
racionalidade cortesã seria matricial em relação à racionalidade burguesa, a sociedade de corte
serviu de arquetípico da sociedade burguesa, apropriando-se e aquilatando sua sociabilidade
distintiva.
Talvez só um judeu alemão, e depois um judeu foragido na Inglaterra, pudesse caracterizar
tão bem paralelismos e interpenetrações entre duas possibilidades de mirada da civilização, ou do
que possa merecer a alcunha de civilizado. O romancista Thomas Mann, frente ao botim material e
simbólico de era vítima a Alemanha no acerto inter-imperialista do pós-Guerra, firmado
emblematicamente em Versailles (Tratado de Versailles, 1918), produziu no mesmo ano um texto
em que se conferiu à francofobia fundas raízes (Confissões de um Apolítico, 1918). Elias,
compartilhará de tal diagnóstico e partir dele irá calibrar seu ponto de observação. A dualidade ali
exposta - na disputa, na guerra e no ajuste de contas - era entre uma Zivilisation (primeiro francesa,
depois potencialmente anglo-saxã) e uma Kultur (originalmente prussiana, com extensos ecos ao
leste). As revoluções burguesas originárias contaram com espaços e mecanismos de representação e
reprodução presentes e operativos nas sociedades. Na França, tal fenômeno seria realçado pelo fato
de ser herdeira de língua (latim e derivações) e regras (direito romano) já prontas, e com literatos e
tribunos/advogados/representantes estabelecendo configurações significativas com muita
maleabilidade. Na Alemanha, sem tal herança -ao contrário, o antigo Império romano-germânico
era caracterizado por sua dinâmica centrífuga - a centralização política só foi viável tardiamente, no
segundo ciclo de industrialização no século XIX, e sob comando aristocrático-militar fortemente
imbuído do sentimento de uma essência coletiva original que precisa ser sempre colocada à prova.
Enquanto que na Zivilisation predominariam o instrumentalismo e o pragmatismo, na Kultur
retroalimentava-se a memória, o ser e o estar no tempo juntos, e toda a sentimentalidade daí
decorrente.
Escrito nos anos 30, na mão inversa de qualquer ganho civilizatório em abstrato, “O
processo Civilizador”, ao reconstruir a gênese da civilização ocidental, procura de certo modo
reafirmar a positividade do projeto civilizatório. Uma revanche teórica e narrativa, que recoloca a
ordem necessária em um mundo entregue a um franco processo descivilizador. Tal qual um método
psicanalítico, é preciso voltar à infância, aos primórdios da civilização, no caso os regimes
absolutistas, em especial o francês, para reintegrar o que está cindido, explicitando-se o processo, o
processo civilizador como foi, vem sendo e será, em aposta implícita. Cadeias de interdependência
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que vão se entrelaçando tanto mais se diferenciam e especializam as tarefas e funções, o que deve
significar ao final maior capacidade de autocontrole e de tolerância.
1. Do controle Social ao Autocontrole
O processo civilizatório não resulta de uma idéia central concebida a séculos por pessoas
isoladas. Tomada como um todo, a mudanças históricas não foram “racionalmente” planejadas, mas
tampouco se reduziu ao aparecimento e desaparecimento aleatórios de modelos desordenados.
Os planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se
entrelaçam de modo amistoso e hostil.
A civilização é posta em movimento pela dinâmica autônoma de uma rede de
relacionamentos, por mudanças nas maneiras como as pessoas se vêem obrigadas a viver, não sendo
racional nem irracional.
À medida que as pessoas sintonizavam sua conduta com a de outras, a teia de ações teria que
se organizar de forma sempre mais rigorosa e precisa, a fim de que cada ação individual
desempenhasse uma função social. O indivíduo era compelido a regular a conduta de maneira mais
diferenciada, uniforme e estável. Isso não exige uma regulação consciente. Assim se dá a sociedade
dos indivíduos.
O controle mais complexo e estável da conduta passou a ser cada vez mais instilado no
indivíduo desde seus primeiros anos, como uma espécie de automatismo, uma autocompulsão à
qual ele não poderia resistir. A teia de ações tornou-se tão complexa e extensa, o esforço necessário
para comportar-se “corretamente” dentro dela ficou tão grande que, além do autocontrole
consciente do indivíduo, um cego aparelho automático de autocontrole foi firmemente estabelecido.
A constituição do homem “civilizado”, seu autocontrole constante e diferenciado, vincula-se
à crescente diferenciação e estabilização das funções sociais e à multiplicidade e variedade cada vez
maiores de atividades que ininterruptamente tem que se sincronizar. Quanto mais intrincado o
tecido social, mais o autocontrole aumenta.
Só com a formação de monopólios da força física é que as sociedades adquirem realmente
as características de “civilizadas”, em decorrência das quais os indivíduos que as compõe
sintonizam-se, desde a infância, com um padrão altamente regulado e diferenciado de autocontrole;
só em combinação com tais monopólios é que esse tipo de autolimitação requer um grau mais
elevado de automatismo, e se torna, por assim dizer, uma “segunda natureza”.
As sociedades sem um monopólio estável da força são sempre aquelas em que a divisão de
funções é relativamente pequena, e relativamente curtas as cadeias de ações que ligam os indivíduos
entre si. As sociedades com monopólio mais estável da força são as que as divisões de funções
encontram-se mais ou menos avançada, nas quais as cadeias de ações que ligam os indivíduos são
mais longas e maior também é a dependência funcional entre as pessoas. Nelas, o indivíduo é
protegido contra os ataques súbitos, contra a irrupção de violência física em sua vida, mas ao
mesmo tempo é forçado a reprimir em si mesmo qualquer impulso emocional para atacar
fisicamente outra pessoa.
Quanto mais apertada se torna a teia de interdependência em que o indivíduo está
emaranhado, com o aumento da divisão de funções, maiores são os espaços sociais por onde se
estende essa rede, e mais fortemente cada indivíduo é controlado, desde tenra idade, para levar em
conta os efeitos de suas ações ou de outras pessoas sobre uma série inteira de elos na cadeia social.
A espontaneidade diminui, e os comportamentos são mais estáveis.
Sem o monopólio da força, a alegria e a dor eram liberadas mais aberta e livremente. Mas o
indivíduo tornava-se uma presa, jogado de um lado para o outro tanto por seus sentimentos quanto
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pelas forças da natureza. Atualmente, a vida tornou-se menos perigosa, mas também menos
emocional ou agradável, pelo menos n que diz respeito á satisfação direta do prazer.
Ao se formar um monopólio da força cria-se espaços sociais pacificados, que normalmente
estão livres de atos de violência. As pressões que atuam sobre as pessoas nesses espaços são
diferentes das que haviam antes. Assim, o monopólio da força leva à proteção do indivíduo
contra os arroubos dos demais indivíduos, mas também leva a repressão, não pela violência
física necessariamente, mas pelo autocontrole.
O que se estabelece com a monopolização da violência física nos espaços sociais pacificados
é um autocontrole mais desapaixonado. Essas autolimitações assumem a forma de um autocontrole
consciente e, em parte, a de um hábito automatizado. Tendem a uma moderação mais uniforme, a
uma limitação mais contínua, a um controle mais exato das paixões e sentimentos, de acordo como
padrão mais diferenciado do entrelaçamento social. A organização monopolista da violência
física geralmente não controla o indivíduo por ameaça direta. A pressão é exercida de várias
maneiras e constantemente aplicada sobre o indivíduo. Em grau considerável, elas operam
tendo por meio as reflexões dele próprio, pelo autocontrole imposto.
Os adultos induzem, em parte
automaticamente e até certo ponto
através da conduta e dos hábitos,
modelos
de
comportamento
correspondentes nas crianças. Desde o
começo da mocidade, o indivíduo é
treinado no autocontrole e no espírito
de previsão dos resultados de suas
ações, que precisará para desempenhar
funções adultas. Este autocontrole é
instilado tão profundamente deste tenra
idade que, como se fosse uma estação
de retransmissão de padrões sociais,
desenvolve-se
nele
uma
autosupervisão automática de paixões, um
“superego” mais diferenciado e
estável, e uma parte dos impulsos
emocionais e inclinações afetivas sai
por completo do alcance direto do
nível de consciência.
A modelação social de indivíduos na
estrutura do processo civilizador
ocidental atual é muito difícil e
concluí-se,
via
de
regra,
na
constituição psicológica do adulto.
Em aula discutimos a interpretação
desta charge do Quino. Da forma como
está colocado, entende-as uma interpretação mais durkheiniana, na qual o processo de socialização
tem haver com a autoridade moral do pai frente aos outros. O pai é a expressão da moralidade social
e este com a autoridade que possui a repassa para o filho, desde pequeninho, as regras de
moralidade. O filho adulto seria o produto da sociedade sobre ele. Essa ideia está presente também
no Elias, mas com uma diferença fundamental: a adesão daquele que está sendo moralizado por
conta da relação de interdependência. Quer dizer, não é apenas a autoridade moral do pai que
submete o filho, internalizando nele as regras. O individuo adere a essas regras porque faz parte de
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uma configuração e para fazer o jogo da configuração ele tem que aderir as regras que prevalecem
naquela configuração. Então, a ideia da configuração passa a ter uma importância central. A eficácia
normativa não está no poder de um indivíduo inculcar o outro, mas o fato do indivíduo querer
pertencer àquela configuração social.
À aprendizagem dos autocontroles, chama-se a eles de “razão”, “consciência”, “ego”, ou
“superego”, e a conseqüente moderação dos impulsos e emoções mais animalescas - a civilização
do ser humano jovem - jamais é um processo inteiramente indolor, e sempre deixa cicatrizes.
No primeiro caso, o resultado é um indivíduo satisfeito com sua condição: depois de todas
as dores e conflitos do processo são finalmente estabelecidos um padrão de conduta bem adaptado
ao contexto das funções sociais adultas, um conjunto de hábitos de funcionamento satisfatório e
simultaneamente, um balanço positivo de prazer.
No segundo, o autocontrole socialmente necessário é repetidamente comprado a um alto
custo de satisfação pessoal, por um grande esforço para superar energias opostas da libido, ou o
controle dessas energias, à renúncia a sua satisfação, não se alcança em absoluto.
Em jovens, esses traumas podem se manifestar através de medos/fobias automatizados;
ações compulsivas, energias liberadas de forma indesejada como rodeios, apegos, formas de
repulsão excêntricas, predileções por esta ou aquela fantasia extravagante. As feridas do processo
civilizatório não cicatrizam por completo no indivíduo e, mesmo na vida adulta, os traumas antigos
se manifestam nos relacionamentos adultos.
Na realidade, a maioria das pessoas civilizadas vive um meio-termo entre os dois extremos.
O que determina a natureza e grau dos surtos civilizadores é sempre a extensão das
interdependências, o nível da divisão de funções e estrutura interna das próprias funções.
2. Difusão da Pressão pela previdência e Autocontroles
No processo civilizador ocidental a divisão de funções atingiu um nível sem igual na história
mundial: a solidez dos monopólios da força e a tributação, a extensão, tanto em termos de espaço
físico quanto do número de pessoas envolvidas, da interdependência e da competição. Surgiram
necessidades de sincronização da conduta humana em territórios mais amplos e um espírito de
previsão no tocante das cadeias mais longas de ações como jamais haviam existido.
A divisão social do trabalho é um elemento importante nesse processo de autocontrole e de
inter-relação entre as funções sociais. Violências e pressões que não são mais físicas e sim sociais
na medida em que o individuo deve se podar e se controlar cada vez mais. Os próprios medos
mudam. Deixam de ser físicos para se relacionarem as pressões sociais. Na sociedade de corte o
medo maior era de se subir ou se descer de acordo com a opinião nutrida pelos outros. Repressões
são assumidas pelo individuo como se fossem parte de sua personalidade. A criatividade e a
espontaneidade desaparecem na margem do crescimento do autocontrole.
Outra característica desse processo é o que denominamos de “ritmo” do nosso tempo. Esse
“ritmo” é a manifestação do grande número de cadeias entrelaçadas de interdependência,
abrangendo todas as funções sociais que os indivíduos tem que desempenhar e a pressão
competitiva que satura essa rede densamente povoada e que afeta, direta ou indiretamente, cada ato
isolado da pessoa
A direção geral da mudança na conduta, a “tendência” do movimento de civilização é em
toda a parte a mesma. Ela se orienta sempre para um autocontrole mais ou menos automatizado,
para subordinação de impulsos de curto prazo aos comandos de uma enraizada visão de longo
prazo, para a formação de um “superego”, mais complexo e seguro.
O mecanismo social altamente diferenciado tornou-se tão complexo, e em alguns aspectos,
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tão vulnerável, que perturbações num só ponto das cadeias de interdependência, que articulam
todas as posições sociais, inevitavelmente afetam muitas outras, desta maneira ameaçando
todo o tecido social. Os grupos estabelecidos que competem entre si são, assim, compelidos a
levar em consideração as exigências da grande massa de outsiders. Como dessa forma as
funções sociais e o poder das massas assumem maior importância, tais funções exigem e permitem
maior previsibilidade em seu desempenho. É comum que sob uma forte pressão social, membros
dos estrados mais baixos se acostumarem a controlar suas emoções de forma momentânea e
disciplinar com base numa compreensão mais profunda da sociedade e de sua posição nela
É como se os interesses dos estratos mais baixos se identificassem com os do grupo mais
poderoso, mesmo que estejam de lados opostos, e as conseqüências não beneficiassem ambas
as partes.
3. Diminuição dos contrastes, aumento das variedades
Os contrastes de conduta entre os grupos superior e inferior são reduzidos com a
disseminação da civilização, ao mesmo tempo em que aumentam as variedades, ou nuanças, de
conduta da civilização, ao passo em que ocorre a incorporação de outros grupos sociais, com
costumes distintos, aos padrões ocidentais, com o contínuo movimento civilizador que vimos
observando.
As características das classes baixas difundem-se por todas as outras. Um exemplo disso é o
trabalho, que antes era característica somente das classes mais baixas, e hoje espera-se que todas as
pessoas ganhem a vida por meio dele – independente da classe social. A conversão de restrições
sociais impostas “de fora” em autorestrições, numa autoregulação individual que se torna um hábito
– possivelmente só para pessoas protegidas de ameaças físicas externas ou da fome – está ocorrendo
entre as grandes massas do ocidente.
A “difusão da civilização”, isto é, a difusão de nossas instituições e padrões de conduta além
do Ocidente ocorreu por meio de assentamentos de ocidentais ou da assimilação pelos estratos mais
altos de outras nações. A tecnologia (e a educação) não é a causa desta disseminação, mas apenas
um dos símbolos, uma das manifestações desse constante espírito de previsão imposto pela
formação de cadeias de ações e de competição cada vez mais amplas.
4. Transformação de guerreiros em cortesãos
A maneira como ocorreu a transição de guerreiros para cortesãos é, resumidamente,
explicada da seguinte forma.
Nos princípios da Idade Média, o localismo predominava em toda a Europa. Inicialmente,
era o localismo da tribo e da propriedade rural, transformando-se mais tarde nas unidades feudais e
senhoriais sobre as quais repousou a sociedade medieval. Politicamente e socialmente estas
unidades eram quase independentes, sendo mínimas as trocas de produtos e ideias. Em seguida, as
residências transformaram-se, como resultado da maior confluência de bens que a elas chegavam,
em “lar” de um maior número de pessoas, em “cortes”. O tecido social se complexificou no espaço,
os contatos e as relações de interdependência aumentaram. Mesmo neste contexto, num circulo
ainda pequeno em comparação com as futuras cortes absolutistas, a coexistência de certo número de
pessoas cujas ações constantemente se entrelaçavam, compelia mesmo os guerreiros, que
descobriram estar em uma situação de interdependência mais forte, a observar algum grau de
consideração e espírito de previsão, um controle mais rigoroso da conduta e – acima de tudo, no
tocante à senhora da casa, de quem dependiam – um maior domínio das emoções, uma
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transformação na economia das pulsões. No ponto de partida desse movimento civilizatório, os
guerreiros viviam a sua vida, e os burgueses e camponeses a sua. Mesmo havendo proximidade
espacial, era profundo o abismo entre os estados: costumes, gestos, vestuários e divertimentos eram
diferentes, mesmo que não estivessem de todo ausentes influências mútuas. O contraste social era
acentuado. A classe alta, a nobreza, ainda não sentia qualquer pressão social vinda de baixo; os
próprios burgueses quase nunca lhes contestavam a função e o prestígio. Ela tinha suas terras e sua
espada: o perigo principal para cada guerreiro era outro guerreiro.
Foram processos que se desenvolveram na mesma direção durante séculos: a perda da
autosuficiência militar e econômica por todos os guerreiros e a conversão de parte deles em
cortesãos quando os domínios territoriais foram consolidados e certo número de indivíduos se viram
obrigados a procurar cortes mais ou menos importantes à procura de serviço.
A diferenciação de funções, a crescente interdependência e a integração de áreas e classes
cada vez maiores se nota com especial clareza na evolução de um instrumento social cujo emprego
e mudanças indicam com máxima exatidão o grau de divisão de funções, bem como a extensão e
natureza de interdependência social: o avanço da moeda. O volume de moeda cresceu mais
rapidamente e, na mesma medida, caiu seu valor ou poder aquisitivo. O que parecia ser uma
mudança quantitativa, visto mais de perto se revelou uma manifestação de mudanças qualitativas,
de transformações na estrutura das relações humanas na sociedade.
Numa estrutura de poder bastante centralizada a etiqueta adquire um papel de arma. Com a
centralização do uso da violência e da capacidade de arrecadar tributos, essa corte centralizada
passa a se reunir. Nela havia uma série de habitus que correspondiam a posição de cada um dentro
da estrutura de poder. Antes o jogo social não era jogado numa configuração em que as pessoas não
estavam concentradas territorialmente. Esse jogo social dependia da capacidade do indivíduo fazer
o outro olhá-lo da forma que achava que era o seu lugar na estrutura de poder.
A medida que a corte se adensava e criava-se o sistema de interdependência, a etiqueta
passou a ser uma manifestação do lugar do indivíduo na sociedade. Isto ocorreu numa dupla
perspectiva. Primeiro, da relação de cada indivíduo com o rei e com as hierarquias intermediárias
(barões, condes etc.). Segundo, na das relações com aqueles que não pertenciam a corte (outsiders).
Em ambos os casos, a etiqueta passou a ser fundamental para confirmar o lugar do indivíduo na
sociedade. Isso vai repercutir na própria necessidade deste indivíduo conter suas pulsões e suas
emoções para poder seguir fielmente as regras que confirmam o seu lugar na sociedade. Assim,
pode se dizer que as transformações que ocorrem constantemente nas estruturas das
sociedades (sociogênese), especialmente nas relações sociais produzem alterações nas
estruturas da personalidade dos indivíduos que a compõem (psicogênese).
5. O abrandamento das pulsões: psicologizaçao e racionalização.
De conformidade com as transformações da sociedade, são também reconstruídas as
relações interpessoais, a constituição afetiva do indivíduo: à medida que aumentam a série de ações
e o número de pessoas de quem dependem o indivíduo e seus atos, torna-se mais firme o hábito de
prever consequências em longo prazo. E na mesma proporção em que mudam o comportamento e a
estrutura da personalidade do indivíduo, muda também sua maneira de encarar os demais. A
imagem que ele forma dos outros se torna mais rica de nuanças, mais isenta de emoções
espontâneas – ela é “psicologizada”.
A “psicologização” das regras de conduta, sua maior impregnação pela observação e a
experiência, constitui uma manifestação da acelerada transformação da classe alta em cortesã, e da
integração mais estreita em todas as partes da sociedade neste período. O homem não podia se
expressar mais tão livremente, sem autocontrole, e passa então a ser interpretado pelos demais.
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Muito do que se diz a respeito da “psicologização” aplica-se também à “racionalização”, que
vai ser tornando lentamente perceptível a partir do séc. XVI, nos aspectos mais variados da
sociedade. O que mudou foi a maneira como as pessoas se ligavam umas às outras. Por isso, mudou
o comportamento. Por isso também mudaram a consciência e a economia de paixões, e a própria
estrutura com o todo. As mudanças que ocorrem nas atitudes humanas de modo algum se
limitam ao que diferenciamos como “psicológico” e “fisiológico”, o físico também está
indissoluvelmente ligado ao que chamamos de “psíquico”, modelando-se de forma variada no
curso da história de acordo com as cadeias de dependências que se estendem ao longo da vida
humana (psicogênese e sociogênese).
Todas as diferenças entre grupos sociais (de racionalidade, padrões de sentimentos, de autoimagem) tem, subjacentes, as mesmas regularidades humanas e sociais. As diferenças individuais
dentro destes grupos, são meramente nuanças num contexto de formas históricas muito específicas,
diferenciações às quais a sociedade oferece maior ou menor oportunidade de expressão,
dependendo de sua estrutura. Uma real compreensão, mesmo de mudanças de ideias e formas de
cognição, só será possível se levarmos em conta, também, as mudanças na interdependência
humana em conjunto com a estrutura da conduta e, na verdade, todo o tecido da personalidade do
homem (indivíduo e a sociedade são dias instâncias sem prevalência uma sobre a outra, elas
ocorrem simultaneamente). Decisivos para a pessoa não são o “id”, o “ego” ou o “superego”
apenas, mas sempre a relação entre esses vários conjuntos de funções psicológicas, parcialmente
conflitantes e cooperativas, na maneira como o indivíduo dirige a sua conduta. São as relações
dentro do homem com suas paixões e sentimentos controlados e as agencias controladoras
construídas, cuja estrutura muda no curso do processo civilizador, de acordo com a estrutura
mutável dos relacionamentos entre seres humanos individuais na sociedade em geral, que tem
importância.
A fim de compreender e explicar os processos civilizadores precisamos investigar a
transformação da estrutura da personalidade e da estrutura social, esse trabalho exige, dentro de um
raio menor a análise das transformações psicogenéticas com o objetivo de apreender o campo das
energias psicológicas individuais, a estrutura e a forma tanto das funções mais elementares quanto
as mais orientadoras da conduta do indivíduo. Num raio mais amplo, o estudo dos processos
civilizadores requer uma perspectiva de longo prazo, investigações sociogenéticas da estrutura
total, não só de um único Estado-Sociedade, mas do campo social formado por um grupo específico
de sociedades interdependentes, e da ordem sequencial de sua evolução.
6. Vergonha e repugnância
A vergonha domina mais na medida em que são pacificadas áreas maiores e aumenta a
importância, na modelação da pessoa, das limitações mais comuns que sobem a primeiro plano na
sociedade quando os representantes do monopólio da força física passam a exercer regularmente
seu controle como se estivessem nos bastidores – na medida em que progride a civilização da
conduta. O conflito expressado no par vergonha-medo não é apenas um choque do indivíduo com a
opinião social prevalecente: seu próprio comportamento colocou-se em conflito com parte de si
mesmo que representa essa opinião. É um conflito dentro da sua própria personalidade. Ele mesmo
se reconhece como inferior.
Só podemos falar em vergonha conjugando-a com a sua sociogênese. A racionalização e
o avanço dos patamares da vergonha e da repugnância expressam uma diminuição do medo físico
direto a outras pessoas, e uma consolidação das ansiedades interiores automatizadas, das
compulsões que o indivíduo agora exerce sobre si mesmo. Em ambas, são igualmente manifestadas
a capacidade de previsão maior e mais diferenciada e a visão em longo prazo que se torna
diferenciada, a fim de que grupos de pessoas cada vez maiores possam preservar a sua existência
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social numa sociedade crescentemente diferenciada. Quanto mais avança essa diferenciação na
autoorientação do indivíduo, mais claramente assume uma função dupla: aquele setor das funções
controladoras que, em sentido amplo, é chamado de “ego” e, num sentido mais estreito, é chamado
de “superego”.
O embaraço é o desagrado ou a ansiedade que surgem quando outra pessoa ameaça ignorar,
ou ignora, proibições da sociedade representadas pelo próprio superego da pessoa. Com a
dependência mútua, as pessoas passaram a se observar mais, as sensibilidades e as proibições
tornaram-se mais diferenciadas e, igualmente, tornaram-se mais sutis e diversificadas as razões para
a vergonha e o embaraço provocadas por outras pessoas. Na esteira da pacificação, mudou também
a sensibilidade das pessoas à conduta social. Os medos interiores crescem na medida em que
diminuem os exteriores.
7. Restrições crescentes à classe alta: pressões crescentes a partir de baixo.
Dado o aumento da estrutura de autodependências, a tensão social produzia uma forte tensão
interna dos membros da classe alta ameaçada. Esses anseios mergulhavam em parte nas zonas
inconscientes da personalidade, delas emergindo apenas de forma modificada, como automatismos
específicos de autocontrole.
A pressão constante exercida a partir de baixo e o medo que induzia em cima foram
algumas das mais fortes forças propulsoras do refinamento especificamente civilizado que
distinguiu os membros dessa classe superior das outras e, finalmente, para eles se tornou como uma
segunda natureza. Repetidamente, costumes antes considerados “refinados” tornavam-se
“vulgares”. As maneiras eram polidas incessantemente e o patamar do embaraço avançava sem
cessar, até que com a queda da corte absolutista com a Revolução Francesa, esse movimento em
espiral chegou ao fim, ou, pelo menos, perdeu força. A força motriz que na fase corte impelia a
transformação civilizadora da nobreza – e com ela a fronteira da vergonha e da repugnância – era
acionada pela maior competição pelos favores do indivíduo mais poderoso dentro do próprio estado
da corte e pela constante pressão que vinha de baixo. Com a revolução Francesa, as profissões e o
dinheiro passaram a ser as principais fontes de prestígio; e a arte, o refinamento, a conduta
social deixaram de ter para a reputação e o sucesso do indivíduo a importância decisiva que
possuía na sociedade da corte.
De modo geral, em todas as sociedades do Ocidente, com o declínio da aristocracia mais
pura, quando e como quer que isso tenha acontecido, os modos de conduta e formas de afetividade
que se desenvolveram foram os necessários ao desempenho de funções produtoras de renda e à
execução de um trabalho precisamente regulado. E o motivo porque a sociedade burguesa assumiu,
em tudo o que dizia respeito à conduta social, o ritual da sociedade de corte, mas sem desenvolvê-lo
com a mesma intensidade. E foi também o motivo por que o modelo de controle de emoções
avançou nessa esfera apenas lentamente com a ascensão da burguesia profissional.
O comedimento e o autocontrole característicos de todas as fases da civilização resultaram
até agora não apenas da necessidade de cada indivíduo cooperar incessantemente com muitos
outros, mas também, da divisão da sociedade em classes superiores e inferiores. A formação do ego
e do superego dessas pessoas refletiu simultaneamente em competição dentro da sua própria classe
e as pressões constantes que vinham de baixo, produzidas pela divisão de funções, que avançava.
A construção do superego de acordo com modelos da classe superior, geral além de
tentativas fracassadas de imitação de modelos importados, na classe em ascensão, uma forma
específica de vergonha e embaraço , mas que é muito diferente das sensibilidades do grupo inferior
que não tem probabilidade de ascensão. O comportamento deles pode ser mais tosco, mas é mais
uniforme e inteiriço. Vivem mais vigorosamente, plenamente no seu próprio mundo, de acordo com
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suas maneiras e costumes. eles tem em sua consciência claramente definidas as suas posições. Em
contraste, pessoas que se identificam com a classe superior não são capazes de adotar as normas e
maneiras da classe superior com facilidade e naturalidade.
No próprio Ocidente, não foi possível governar as pessoas exclusivamente pela força.
Assim, tornou-se necessário governar as pessoas, em parte, a partir de si mesmas, por meio da
modelação do seu superego.
À medida que crescia o poder da burguesia, desaparecia a zombaria de nobres e até mesmo
de burgueses contra outros burgueses que tentavam, sem sucesso, agir de forma “refinada” ou
cortesã.
Cedo ou tarde, todas as características da segunda fase da elevação social passaram a
primeiro plano. Grupos burgueses enfatizavam cada vez mais sua autoimagem especificamente
burguesa: opunham, com autoconfiança crescente, seus códigos de maneira aos aristocratas de
corte.
Conclusão
Neste trecho o autor faz um apanhado geral das conclusões que desenhou ao longo do texto,
relacionando com algumas inquietações atuais.
Para ele, hoje, tanto quanto antes, não são apenas as metas e pressões econômicas, nem
tampouco, motivos políticos, que constituem as principais forças motrizes das mudanças. Nem a
aquisição de mais dinheiro ou poder é a meta real da rivalidade entre Estados ou da ampliação do
âmbito do Estado, nem a aquisição de maior poder político ou militar constitui simplesmente uma
máscara, um meio para atingir a meta econômica. Os monopólios da violência física e dos meios
econômicos de consumo e produção estão inseparavelmente interligados, sem que um deles seja
simplesmente a base real e o outro a “superestrutura”. Juntos eles geram tensões específicas em
pontos particulares no desenvolvimento da estrutura social, que pressionam no sentido de sua
transformação. Juntos, formam um cadeado que liga a corrente que agrilhoa homens entre si (p.
264). Numerosas pessoas podem querer dar fim ao movimento em espiral que surge da
competitividade e interdependência entre os Estados, contudo, no curso da história humana as
limitações impostas pela aglutinação de seres humanos em longo prazo sempre foram mais fortes
do que esse desejo.
Só uma coisa é certa: a direção para a qual tende a integração do mundo moderno. A
tensão competitiva entre Estados, dadas as pressões que nossa estrutura atual encerra, só
pode ser resolvida após uma longa série de provas de força, violentas ou não-violentas, ter
estabelecido monopólios de força e organizações centrais em domínios mais vastos, dentro dos
quais muitos menores, os “Estados”, possam crescer juntos numa unidade mais equilibrada.
Lembramos que este texto foi originalmente publicado em 1939 e ignorado até sua republicação em
1969, quando o primeiro volume foi traduzido ao inglês. Aqui, o autor já fazia uma alusão ao que
hoje entendemos como blocos econômicos e instituições supranacionais.
Os padrões de comportamento de nossa sociedade, gravados no indivíduo desde a mais tenra
infância como uma espécie de segunda natureza e mantidos em estado de alerta por um controle
social poderoso e cada vez mais rigorosamente organizado, precisam ser explicados, não em termos
de finalidades humanas gerais, a - históricas, mas como algo que evolui da totalidade da história do
ocidente , das formas específicas de comportamento que se desenvolveram durante seu curso e de
forças de integração que as transformaram e propagaram. Esses padrões, tal como o controle de
nosso comportamento, como a estrutura de nossas funções psicológicas em geral, possuem muitas
camadas: em sua formação e reprodução, impulsos emocionais desempenham papel não menos
importante que os racionais, as pulsões e sentimentos não menos que as funções do ego. A
9
racionalização é apenas um lado de uma transformação que afetou toda a personalidade. A força
motriz dessa mudança de autoorientação individual foi fornecida por pressões surgidas do
entrelaçamento em muitas esferas de atividades humanas, pressões que atuaram numa
direção dada, ocasionando mudanças na forma dos relacionamentos em todo o tecido social.
No presente, estamos acostumados à existência dos monopólios mais estáveis de força e da
maior previsibilidade da violência deles resultante, que mal nos damos conta de sua importância
para a estrutura de nossa conduta e personalidade. Mal compreendemos com que rapidez o que
denominamos de nossa “razão” desmoronaria ou entraria em colapso se as tensões que induzem
ansiedade em nós e em volta de nós mudassem, se os medos que nos afetam a vida de repente se
tornassem muito mais fortes ou fracos ou, como em muitas sociedades mais simples, as duas coisas
sucedessem, ao mesmo tempo ora mais fortes, ora mais fracos.
A fim de compreender o controle da conduta que a sociedade impõe a seus membros, não
basta conhecer as metas racionais que podem ser referidas para explicar seus comandos e
proibições. Temos que explorar até sua origem os medos que induzem os membros desta
sociedade e, acima de tudo, os guardiões de seus preceitos, a controlar a conduta dessa
maneira. Temos que compreender, então, a que estão ligados estes medos construídos. A
estrutura dos medos e ansiedade nada mais é que a contrapartida psicológica das restrições
que as pessoas exercem umas sobre as outras através do estreitamento de suas atividades. Isso
é determinado, em última análise, pela história e estrutura real de suas relações com outras pessoas,
pela estrutura da sociedade, e mudam com ela. São induzidos, de forma não necessariamente
racional, por outras pessoas.
Para o autor, só quando as tensões entre e dentro do Estado forem dominadas é que haverá
possibilidade de que a regulação das paixões e conduta do homem em suas relações recíprocas seja
limitada àquelas instruções e proibições que são necessárias para manter o alto nível de
diferenciação e interdependência funcional, sem o qual, mesmo os atuais níveis de conduta
civilizada na coexistência humana não poderiam ser mantidos, e ainda menos superados. Só então
haverá a possibilidade de que o padrão comum de autocontrole esperado do homem possa ser
limitado àquelas restrições que são necessárias a fim de que possa viver com os demais e consigo
mesmo com uma alta probabilidade de prazer e com baixa probabilidade de medo – seja dos outros,
seja de si mesmo. Só com a eliminação das tensões e conflitos entre os homens é que esses mesmos
tensões e conflitos que operam dentro dele podem tornar mais brandos e menos nocivos às suas
possibilidades de desfrute da vida. Só assim alcançaria um equilíbrio maus durável , uma sintonia
mais fina, entre as exigências gerais da existência social do homem, e suas necessidades e
inclinações pessoais, só assim, poderão dizer os seres humanos, que são civilizados. Até então,
estarão no máximo, em meio ao processo de se tornarem civilizados.
Mozart: a sociologia de um gênio
A obra de Norbert Elias caracteriza-se pelo esforço analítico em desarticular antinomias
cristalizadas nas ciências humanas: indivíduo e sociedade; aspectos psicológicos e sociológicos;
estrutura e agente. O autor deixa claro que esse esquema de pensamento dicotômico não dá conta de
explicar a complexidade do real. Aqueles que crêem que os fenômenos sociais só podem ser
explicados por ações planejadas e criadas por indivíduos isolados e os que crêem nas forças supraindividuais anônimas não compreendem como os atos e os objetivos dos indivíduos compõem a
formação social e como esta formação influencia tais atos e objetivos.
Nos seus escritos sobre Mozart, Elias, ao remontar a trajetória da vida deste compositor,
mostra que a sua experiência individual está organicamente relacionada com o mundo social ao qual
pertencia. O autor dedica-se a elaboração de um modelo teórico verificável da relação entre o
10
individuo e a configuração social1 no qual se inscreve. As biografias de Mozart, que insistiam em
separar a vida pessoal do gênio de sua existência social são os principais alvos da crítica de Elias
porque, segundo o autor, não é possível realizar um estudo sobre a personalidade de um individuo
desconsiderando as pressões sociais que agiam sobre ele.
A vida de Mozart representa um caso emblemático da dinâmica do conflito entre valores e
ideais das classes aristocráticas da corte e os estratos burgueses que se manifestava no campo social
e também repercutia no interior de muitos indivíduos. A vida do compositor ilustra a situação de
burgueses outsiders em uma sociedade dominada pela aristocracia de corte. Mozart se inscreve
neste contexto de conflitos de padrões entre a conduta cortesã e grupos burgueses. Neste conflito, a
estrutura da sociedade européia e o caráter social dos dois grupos foram se modificando , gerando
processos de assimilação e fusão dos valores entre essas classes. Entretanto, tais modificações nesta
configuração social foram concretizadas após Mozart. Sua tragédia, diz-nos Elias, foi romper as
barreiras da estrutura social de poder em um período em que a estrutura tradicional da sociedade de
corte estava, ainda, “virtualmente intacta” (ELIAS, 1995, p. 20).
1. Músicos Burgueses na Sociedade de Corte
O gosto da nobreza de corte estabelecia um padrão para os artistas. Os músicos eram
dependentes dos círculos aristocráticos e aqueles que queriam ser reconhecidos como artistas sérios
assim como se manter economicamente, deveriam conseguir um posto fixo nas cortes principescas
e/ou em suas ramificações. Na corte, os músicos eram tão indispensáveis como os cozinheiros e
normalmente possuíam o mesmo status na hierarquia de corte. Eram denominados criados de libré.
A maior parte dos indivíduos que seguiam uma carreira musical era de origem burguesa e
para serem aceitos nos círculos nobres, era necessário que adotassem padrões cortesãos de
comportamento e de sentimento, tanto no que se refere à imaginação e a consciência musical,
quanto ao modo de falar, de se vestir etc. Esperava-se que os empregados da corte, e os músicos não
eram mais do que isso, submetessem-se ao seu soberano, atendendo seus caprichos sempre que
solicitados.
Entretanto, alguns músicos de talentos especiais agradavam tanto o público da corte que a
fama não mais se restringia a corte local, onde estavam empregados e alcançava os mais altos níveis
da sociedade. Reis e imperadores manifestavam grande admiração pela realização destes artistas e,
nestes casos específicos, os músicos eram tratados como igual pelos nobres e lhes era permitido ter
acesso aos círculos mais restritos da nobreza de corte.
Portanto era usual que o artista burguês que se destacava, vivesse situado entre dois mundos:
a sociedade de corte e os círculos burgueses. A vida de Mozart assevera Elias, foi marcada por essa
cisão. Se possuía o gosto musical próprio da sociedade de corte, seu comportamento não era
conformado aos padrões da nobreza. Mozart era espontâneo e franco e não suportava qualquer
relação humana que exigisse dele bajulações e demasiada diplomacia, era, em síntese,
extremamente rude em sua conduta pessoal. O seu descortês habitus colocava-se em uma situação
paradoxal com a sua obra e tal paradoxo contribuiu em grande medida para o seu fracasso social em
vida.
1
Ao constituir a configuração como instrumento de análise Elias pretende escapar da armadilha de uma
polaridade conceitual entre indivíduo ou da sociedade. Elias vê essa questão como um falso problema
porque defende que se os indivíduos existem em configurações toda investigação sociológica deve ter
como ponto de parida a pluralidade de indivíduos, que sempre são interdependentes. “O conceito de
configuração foi introduzido exatamente porque expressa mais clara e inequivocadamente o que chamamos
de ‘sociedade’ que os atuais instrumentos conceituais da sociologia, não sendo nem uma abstração de
atributos de indivíduos que existem sem uma sociedade, nem um ‘sistema’ ou ‘totalidade’ para além dos
indivíduos, mas a rede de interdependência por eles formada” (ELIAS, 1990, p. 249).
11
Faltava-lhe quase por inteiro aquele conhecimento específico das pessoas, que permitia aos
cortesãos identificar imediatamente os que por seus critérios pertenciam ou não ao seu
circulo, e a ajustar em função disso seu comportamento em relação a ele (ELIAS, p.26).
É claro que tinha consciência de que a polidez cortesã lhe granjearia oportunidades maiores,
entretanto sabia também que possuía um extraordinário talento musical que o levava a se sentir
igual, quando não superior, aos aristocratas de corte. Possuía o profundo desejo de ser respeitado e
dignificado pelo seu talento e este desejo não parecia conciliar-se com submissão e humilhações a
que empregados de corte eram submetidos. É provável que existisse em Mozart uma falta de
vontade articulada com uma incapacidade de assimilar o padrão de sentimento e de comportamento
da aristocracia de corte.
Mozart viveu a ambivalência fundamental do artista burguês na sociedade de corte, que
pode ser resumida na seguinte dicotomia: identificação com a nobreza da corte e seu gosto;
ressentimento pela humilhação que ela lhe impunha (ELIAS, 1995, p.24).
2. Um gênio antes da época dos gênios
Segundo Elias, no século XVIII ainda não havia um lugar social legítimo para um artista de
gênio altamente individualizado. Vale a pena aqui fazer uma breve digressão à gênese social do
conceito de gênio para entender a posição outsider de Mozart. A interpretação do conceito de gênio
como um dom natural, próprio do individuo nasce com a concepção iluminista. É o que Elias chama
de conceito romântico de gênio. Até o início do século XIX, todavia, a genialidade enquanto uma
característica peculiar do indivíduo ainda não estava colocada:
Era quase como se o dom possuísse o indivíduo, a saber, havia um “gênio” que
caprichosamente tomava o indivíduo, que se encarnava nele, instrumentalizava-o a serviço
da natureza, da razão, da arte e – é bom lembrar – de um patrono. Nesse sentido, no limite,
o que havia eram indivíduos de “gênio”, indivíduos que serviam ao “gênio” (BARIANI,
2005).
É no fim do século XVIII e início do XIX, que o gênio torna-se sinônimo de um indivíduo
espetacular, que exercita livremente e conscientemente o seu talento. A visão romântica do gênio é
aquela em que este indivíduo sui generis questiona a ordem estabelecida através de seu talento
especial e transforma profundamente o seu tempo. Ao contrário de Mozart, Elias menciona que
Beethoven encontrou, na sua maturidade, outro ambiente cultural para a expressão de sua arte. Este
ambiente cultural diverso ensejou a oportunidade para a seguinte resposta de Beethoven ao Príncipe
Lichnóvski, quando questionado sobre sua obra:
Príncipe, o que sois viestes a ser pelo acaso do nascimento. O que sou, sou por mim
mesmo. Príncipes existem e ainda existirá aos milhares, Beethoven, só existe um (apud
HENRY, 2001: 148 in GARRIGOU e LACROIX, 2001).
Esta resposta seria improvável na configuração social ao qual Mozart pertencia em que a
inferioridade dos não-nobres era naturalizada, ainda que possuíssem dons extraordinários, e a
dependência dos músicos à corte era extrema.
12
3. A arte de artesão e a arte de artista
Mozart ao se decidir abandonar seu trabalho na corte de Salzburg e seguir sua carreira nos
círculos da corte Vienense agiu de forma incomum para um músico naquela época. Ele antecipou,
conforme os termos de Elias, as atitudes e os sentimentos de um tipo posterior de artista. A situação
predominante em sua época era a do artista assalariado oficial, mas a estrutura da sua personalidade,
seus desejos e anseios, eram próprios de um indivíduo que almejava seguir, acima de tudo, sua
imaginação. Ele representava a figura de um artista livre em uma figuração social em que a
composição e a execução de peças musicais eram realizadas sob circunstâncias restritivas,
encomendadas pelas cortes ou pela igreja, em resumo as condições de produção desta arte eram
ditadas externamente.
Por alguns anos Mozart obteve sucesso compondo óperas e lecionando em Viena, mas
mesmo como um artista “autônomo”, ele era dependente de um circulo restrito de clientes
aristocratas. Caso algum nobre de posição elevada tivesse divergências com ele, logo a “boa
sociedade” afastava-se2.
O fato de Mozart depender materialmente da aristocracia da corte, quando ele já tinha se
constituído como artista autônomo que primariamente buscava seguir o fluxo de sua própria
imaginação e os ditames de sua própria consciência artística, foi à principal razão de sua
tragédia (ELIAS, 1995, p.136).
A existência social de Mozart mostra a virada da arte de artesão para a criação artística
autônoma e livre. Esta virada não foi repentina, resultou, ao contrário, de um longo processo com
muitos estágios intermediários. A vida de Mozart pode ser interpretada como um microprocesso do
período principal da transformação deste macroprocesso3. A revolta de Mozart representou, na
esfera das artes- notadamente da música-, um grande passo na transição do artista empregado para o
artista livre. Elias nos convida a pensar na metáfora da balança para entender que a relação entre
consumidores e produtores da música implica em um equilíbrio específico de forças. Em uma
configuração social que predomine a arte de artesão, o prato dos consumidores está mais pesado e
em uma configuração que privilegia a arte de artista o equilíbrio de forças desta balança se altera,
pendendo para o lado dos artistas.
A igreja, a corte monárquica e o palácio do aristocrata perdem a função de mecenas que
encomenda obras ao artista. No século XIX, o compositor enfrenta o público, isto é, uma
massa de desconhecidos, pessoas que não encomendaram nada: esperam, apenas, algo de
novo. Ao anonimato dos ouvintes corresponde o subjetivismo romântico do compositor.
Esse novo público é, evidentemente, a burguesia (CARPEAUX, 1995: 154, apud
BARIANI, 2005).
Essa mudança certamente não é uma mudança isolada dos processos sociais. Ela decorre da
crescente diferenciação e individualização de muitas outras funções sociais e do processo de
emergência dos profissionais burgueses, enquanto classe superior em detrimento da nobreza de
corte.
2
Marco fundamental foi a composição da ópera as Bodas de Fígaro, interpretada como politicamente
suspeita por alguns nobres.
3
Importante mencionar que, segundo Elias, à medida que a relação entre os que produzem arte e os que
precisam dela e a compram modifica , transforma-se também a estrutura da arte, mas não o seu valor.
13
Arte de Artesão
Arte de Artista
Base para criação
artística
Gosto da aristocracia de corte.
Maior autonomia da
imaginação do artista.
Relação com o Público
Dependência e inferioridade.
Relação de igualdade, em
muitos casos, mais poderosos.
Mercado
Praticamente inexistente.
Consumo restrito as cortes
principescas.
Livre e público anônimo.
4. Os anos de formação de um gênio e a juventude de Mozart
É comum a idéia de que a formação de um “gênio” é um processo autônomo, interior e que
se desenvolve independente da experiência social do indivíduo. Muitos biógrafos utilizam
expressões como “propensão inata” ou “capacidade congênita para compor”, que se baseiam
somente no aspecto biológico e não conseguem explicar algo tão artificial como a música de
Mozart.
Leopold Mozart, pai de Wolfgang Amadeus Mozart, era músico talentoso da corte do
príncipe-arcebispo de Salzburgo e desde que Wolfgang tinha três anos, iniciou uma educação
musical muito disciplinada e rígida. Leopold levava o filho para inúmeras excursões pela Europa, e
o músico desde muito cedo pôde ter contato com as produções musicais de diversas partes do
mundo. Mozart foi exposto, e isso era muito raro à época- a uma grande diversidade de experiências
musicais, fato este que explica, em grande parte, a riqueza de sua obra.
A facilidade com que Mozart compunha explica-se menos por uma naturalidade do que por
um aprendizado e um grande controle das emoções. Ele conseguia transformar energias instintivas
por meio de um processo que Elias denomina de sublimação. Utilizando uma gramática
predominantemente psicanalítica, Elias explica que Mozart conseguiu fundir a esponteneidade e a
inventividade do “fluxo-fantasia libidinal” com o conhecimento artesanal das regularidades do
material (instrumentos, timbres etc.) e com o julgamento da consciência do artista.
Sem esforço, nenhum artista é um criador de obras de arte- nem mesmo Mozart. O
altíssimo grau de fusão entre seu fluxo fantasia e a dinÂmica imanete de seu material, a
espnatosa facilidade com que longas sequencias de figuras sonoras vem a sua consciencia,
sua inventividade que se mistura , como se por vontade própria, com a ordenação imanente
de sua estrutura sequencial, de maneira alguma da tarefa de trabalhar o material sob o
exame de consciência (ELIAS, 1995, p.65).
Devido à educação dada pelo pai, Mozart absorveu, em alguma medida – e principalmente
no que tange a percepção musical, o padrão de comportamento da classe dominante. Sua
imaginação musical estava impregnada pelo modo tradicional de compor da aristocracia de corte.
Mozart, embora tenha ousado em suas composições, desenvolveu suas possibilidades individuais
nos marcos dos padrões do gosto de classe da corte. Ele compunha exatamente o tipo de música
característico da sociedade de corte. Norbert Elias assevera que a relação de Mozart com a
sociedade de corte não pode ser analisada sempre do ponto de vista negativo. O ressentimento e
mesmo a revolta pelo desprezo ao qual ele e sua música eram tratados é apenas uma face da moeda.
Ele almejava o reconhecimento desta sociedade, desejava profundamente ser visto e tratado como
homem de igual valor por suas realizações artísticas. Daí a ambivalência desta relação. Mozart
14
estava convencido dos problemas e das injustiças presentes na sociedade de corte, mas enquanto
outsider-establishment o que Mozart mais aspirava era a estima e o reconhecimento como igual por
aqueles que o tratavam, permanentemente e abertamente, como inferior.
A curiosa fixação dos desejos dos outsiders pelo reconhecimento e aceitação do
establishment faz com que tal objetivo se transforme no foco de todos os seus atos e
desejos, sua fonte de significado. Para eles, nenhuma outra estima nenhum outro sucesso,
tem tanto peso quanto a estima do círculo que são vistos como outsiders inferiores (ELIAS,
1995, p.39).
Elias mostra-nos que durante a juventude de Mozart o poder dos monarcas absolutos e da
aristocracia de corte ainda estava completamente intacto. Durante toda a sua vida, o establishment
cortesão conservava sua posição no nível mais elevado da hierarquia social. Este domínio no
império de Habsburgo (e também em muitas regiões da Itália e da Alemanha) foi relativamente
intocado, nas palavras de Elias, pela Revolução Francesa e apenas se arrefeceu a partir do século
XIX e início do século XX.
5. A Revolta de Mozart
Conforme Elias, nos países europeus que foram centralizados mais cedo, como França e
Inglaterra, havia, desde o século XVII, uma corte que reinava soberana. Diferentemente, na Itália e
na Alemanha havia uma infinidade de cortes e em muitos destes territórios os governantes possuíam
uma orquestra permanente e remunerada para o prestígio de sua corte. Nestas regiões, os músicos
possuíam uma autonomia relativamente maior em para se mover entre as cortes procurando
melhores condições de trabalho. Diz-nos Elias que essa multiplicidade caracteriza o aspecto
distintivo da paisagem musical na Alemanha e na Itália, revelando também importantes diferenças
de estrutura de poder na sociedade de corte.
O pedido de demissão da corte de Salzburg encontra aqui uma explicação sociológica,
porque é bem provável que Mozart tenha percebido importantes mudanças advindas dos protestos
burgueses, notadamente na França ou em algumas cidades alemãs. Se na geração de seu pai,
Leopold Mozart, não havia escolhas aos músicos a não ser curvar-se aos aristocratas da corte na
qual trabalhavam, na geração de Mozart uma esperança de autonomia era nutrida, tendo em vista o
aumento das oportunidades para artistas autônomos nas cortes maiores. No entanto, vale lembrar
que essa liberdade ainda era restrita, tendo em vista que o público ainda era majoritariamente
aristocrata-cortesão.
A decisão de seguir a carreira musical mais autônoma foi de Mozart, mas explicá-la somente
a partir do indivíduo é não perceber os processos sociais que impeliram Mozart nesta direção. Por
meio do conflito entre Mozart e o arcebispo de Salzburg no microcosmo da corte, vemos
representados os conflitos que ocorriam no macrocosmo da sociedade naquele contexto.
Bibliografia:
BARIANI, E. Indivíduo, Sociedade e Genialidade: Norbert Elias e o caso Mozart. Revista
Urutagua, nº 8, 2005. Disponível em: <http://www.urutagua.uem.br/008/08soc_bariani.htm>
DUNNING, E.; MENNELL, S. Balanço das tendências civilizadoras e descivilizadoras. Revista
Crítica de Ciências Sociais, nº 45, Coimbra, maio de 1996,
ELIAS, N. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
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______. Mozart. A sociologia de um gênio. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1995.
______. O Processo Civilizador. Volume II. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1993.
______. O Processo Civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1990.
HENRY, C. Elementos para uma teoria da individualização; quando Mozart se achava um livre
artista. In: GARRIGOU, Alain & LACROIX, Bernard (Orgs.). Norbert Elias: a política e a
história. São Paulo: Perspectiva, 2001.
MENDES DE ALMEIDA, A. Classe e nação: estilos de pensar e de sentir. Estudos Sociedade e
Agricultura, 12, Rio de Janeiro, abril 1999.
16
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Seminário VII – Sociedade como psicogênese e Sociogênese