Algumas reflexões sobre o outro necessário à escrita Vera Lúcia Colucci Doutoranda em lingüística – Instituto de Estudos da Linguagem – IEL Projeto Sema Soma – coordenação da Prof. Dra. Nina de A. Leite Unicamp - Campinas – SP [email protected] Abstract. During his study of modern Latin poetry, Saussure, the well-known linguist, was intrigued by the phonic composition of verses he came across. Besides the elements present in the rhyme, other theoretical components were also present, namely, anagrams. Saussure wrote to other authors in the hopes of obtaining an answer that would corroborate his hypotheses on the origin of these anagrams. Fragments of these letters are treated in this article as bases for future studies designed to advance our investigation into the other that is necessary for scientific writing. Starobinski's essay on Saussure's study of anagrams, and the psychoanalytic conceptions of body-writing are the sources for the present study. Key words: Scientific writing; anagrams of Saussure; body-writing; the other of writing. Resumo. Saussure, cientista rigoroso, espantou-se com a composição fônica do verso ao proceder a seus estudos sobre a poesia latina moderna: era possível ouvir-se outros elementos teóricos além dos que apareciam na rima. Sabemos que Saussure escreveu a interlocutores com o objetivo de obter uma resposta que corroborasse na sustentação de suas hipóteses sobre a origem dos anagramas. Esses fragmentos de cartas são tomados neste trabalho como base de estudo para avançarmos em nossa indagação sobre o outro necessário à escrita científica. O ensaio de Starobinski sobre o estudo dos anagramas de Saussure e as concepções psicanalíticas de corpo-escrita são as fontes de presente estudo. científica ; Palavras-chave. Escrita corpo-escrita; o outro da escrita. anagramas de Saussure ; Objetivo No conhecido livro de Starobinski As palavras sob as palavras – os anagramas de Ferdinand de Saussure, encontramos vários fragmentos referentes às pesquisas de Saussure, sendo alguns de análise fônica de versos, outros de formulações de hipóteses, arrazoados teóricos e algumas cartas a interlocutores. Essa escrita do linguista Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 345-349, 2005. [ 345 / 349 ] genebrino, recortada por Starobinski, procura dar sentido, no universo da investigação científica, a uma descoberta que aparecia de modo insistente a Saussure: sons que se repetiam de modo abundante e que podiam ser escutados em meio ao poema. Essa questão interessa por que é uma escrita que opera num quadro de passagem dos sons, que Saussure escutou nos poemas, para um dizer científico. Por outro lado, é uma escrita cuja leitura não se faz sem angústia, sem corpo afetado. Introdução Ao proceder a seus estudos sobre a poesia latina moderna, Saussure interessado na versificação latina em geral, espantou-se com a composição fônica do verso: era possível ouvir-se outros elementos além dos que apareciam de imediato – eram os anagramas.1 O lingüista deixava claro que estas formações não diziam respeito à escrita da palavra, mas ao som.2 Saussure insistia em afirmar, em diferentes momentos, que esses fatos sonoros diferiam do trabalho das rimas, da aliteração e da assonância (harmonia fônica): tratava-se da imitação de certas sílabas de uma palavra dada sem que esta fosse reproduzida inteiramente. Tal palavra poderia ser o nome de um deus, de um herói ou de um personagem mítico de importância. Para ele os anagramas não seriam um jogo acessório da versificação, mas a base dela, que se impõem quer o versificador queira quer não.3 A autonomia do significante, enquanto desligado do significado, é o motor originário da referida evocação. Era possível ouvir um nome próprio através das suas letras dispersas no poema, devido à articulação sonora do significante com a expressão gráfica. Às vezes esse nome sequer aparecia inteiro nas letras que o compõem, pois tratava-se de sílabas sonoras. Todavia sua imagem podia ser evocada pelos sentidos, de tal modo que se podia identificar um nome oculto no enunciado manifesto. Mas, é a abundância de ocorrência desses fenômenos que desconcerta Saussure. Como alinhavar essa regularidade a encadeamento que tenha o porte ordenador de uma lei, e que imaginário científico a suporta? A extensa demonstração dos fatos dos anagramas que seus cadernos nos revelam e os argumentos ali expostos não lhe são suficientes para organizar a sua pesquisa em um só dizer: como organizar esses fatos numa escrita científica? Saussure testa suas suposições, argumenta em favor desses fatos. Tece hipóteses e refuta-as ou as mantém em investigação. Mas o pesquisador parece não se aquietar, não se contentar. Inundado pela insistência com que certos sons saltam dos textos, Saussure não se detém no umbigo da pergunta investigativa: qual a origem? Ele pergunta: é casual ou é intencional por parte do poeta? Ele sabe o que faz? Trabalha para isso, ou não? Starobinski, o importante organizador das notas e comentador dos rascunhos, se mostra desconcertado com a persistência do cientista na questão da intencionalidade do poeta e com a exigência de prova externa, e conjectura: Por mais numerosos que fossem os indícios internos da composição hipogramática, Ferdinand de Saussure não se contentava. Continuava preocupado com a prova externa. [...]Importava estabelecer, por testemunhas diretas, a intenção anagramática (Strobinski 1974, p. 104). Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 345-349, 2005. [ 346 / 349 ] Mas, será que é o caso de dar privilégio à prova externa, a qual, necessáriamente, teria que se basear em testemunho, em confissão de intenção do poeta, ou será que se trata de uma operação necessária ao sujeito cognoscente? Se é uma operação necessária ao discernimento da razão, por que Saussure não pode dar por estancada a pergunta respondendo apenas pelo funcionamento da língua, já que ele mesmo sabia ser impossível responder pela origem histórica das línguas? Por que se prende a colocar seu ponto final na resposta desse outro? Qual é o valor que esse outro, externo, assume? Isso que aparece como necessário não será fundamento da constituição do sujeito? Não se trata aí, também, de um intricado pathos da escrita de investigação científica? Em cartas (duas) a um notável colega italiano, Giovani Pascoli, um raro e premiado poeta praticante moderno da versificação latina, Saussure arrisca a fazer algumas indagações que são também apelos. Na carta de 19 de março de 19094 diz: Tendo me ocupado com a poesia latina moderna [...], encontrei-me mais uma vez diante do seguinte problema: certos pormenores técnicos que parecem observados na versificação de alguns modernos são puramente fortuitos ou são desejados e aplicados de maneira consciente? (Starobinski 1974, p.104) Ora, essa não pode ser tomada como uma pergunta qualquer. Fortuitos ou desejados, os anagramas causavam espanto, surpresa, pela maneira consistente com que apareciam (jorram, dizia o genebrino em suas anotações). Não será esse um enigma que só encontra seu ponto de parada se desdobrado no enigma do desejo? Uma resposta dentro da racionalidade parece não poder prescindir dessa indagação. Após apresentar alguns exemplos de anagramas, Saussure continua em outra carta, seguinte a essa, em 6 de abril de 1909, dizendo: Há qualquer coisa decepcionante no problema que [os anagramas] propõem porque o número de exemplos não pode servir para verificar a intenção que pode presidir o fato (ídem, p. 105). O número não serve para verificar a intenção e a decepção que advem daí não foi suficiente para que outro rumo se estabelecesse. Saussure não tem onde se apoiar nos argumentos científicos de que se serve; sequer o cálculo das probabilidades o satisfaz. Para ele o achado não faz um, não cria corpo. Por mais coerentes e consistentes que sejam suas notações, ficam marcadas como rascunhos ou cadernos de pesquisa. Na errância de suas cartas a poetas, na busca por uma palavra do outro que suportasse o impasse que suas perguntas lhe colocavam, é a qualidade de apelo decisório ao outro que me interessa explorar. De que valor se reveste a resposta desse outro para Saussure? Na mesma carta a Pascoli ele justifica-se e revela-nos: Como o cálculo das probabilidades a esse respeito exigiria o talento de um matemático experiente, achei mais direto e mais seguro dirigir-me à pessoa mais indicada para me informar sobre o valor a dar a esses encontros de sons. Graças à promessa tão gentil que o senhor houve por bem me fazer, eu não tardarei a fixar-me, melhor do que por qualquer cálculo, sobre esse ponto (ídem, p. 105). Ao que parece, só ela, “essa pessoa mais indicada”, como se fosse uma esperança relançada, poderia suportar o mistério que a pesquisa visa a decifrar. Pascolini não responde à carta de Saussure e Starobinski acrescenta melancolicamente: Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 345-349, 2005. [ 347 / 349 ] “Como o silêncio do poeta italiano foi interpretado como um sinal de desaprovação, a investigação sobre os anagramas foi interrompida ” (ídem, p. 106). Nessa mesa do projeto Sema-Soma, cujo nome é Corpo e Escrita, tomo o termo corpo em pelo menos duas acepções: o corpo-texto escrito e o corpo-texto lido; embora guardem relações de extrema proximidade, também guardam diferenças. Ainda que não pretenda explorar esses termos em profundidade, vale marcar que, para a psicanálise, o que faz corpo é a condição de fazer ‘um’ no registro imaginário: de partes desarticuladas organiza-se um corpo, seja lendo ou escrevendo. Essa configuração imagética de um corpo consistente advém, na concepção psicanalítica, do olhar do outro que investe o organismo do recém nascido, como um corpo de desejo. Uma escrita que faz corpo é uma escrita que da especularidade com o outro pode ser constituída como uma. A angústia ou o júbilo que afetam o corpo carne estão presentes como possibilidades do real que se articula ao registro do imaginário e do simbólico. Ana Costa (2003), define o que chama de corpolinguagem: Proponho essa junção por se tratar de um campo relacional que não se expressa somente na condição isolada de um indivíduo, mas no momento em que algo da sua captura [pelo olhar do outro] lhe retorna do outro – do semelhante – ou do lugar para onde se dirige sua fala, ou mesmo para onde se dirigem seus atos (Costa 2003, p. 116).5 Esse campo relacional será atravessado pelos investimentos pulsionais de que se reveste a constitução do sujeito psicanalítico, que para Lacan, é o mesmo que o sujeito da ciência. O desenvolvimento dessa idéia tão instigante está, para mim, em andamento. Considerações finais Certa de que o presente texto deixa em aberto inúmeras questões importantes sobre a relação corpo-escrita científica e o outro necessário, ressalto, todavia, a preciosa contribuição do escrito de Starobinski por, justamente, permitir colocar à luz esse corpo fragmentado de rascunhos. Ao mesmo tempo em que esse autor tenta dar-lhe sentidos, expõe a outros também essa possibilidade, coisa que não se faz sem que se seja também afetado pela angústia. Notas 1 Este termo foi objeto de detalhado exame na procura de melhor designação, sendo que Saussure considerou também o nome de hipograma para esses fatos, tendo registrado em seu caderno de pesquisa alguns dos significados possíveis dessa palavra grega, que vale a pena repetir aqui. São eles: reproduzir por escrito como um escrivão, sublinhar os traços do rosto por meio da pintura; sublinhar um nome, uma palavra, “esforçando-se por repetir-lhe as sílabas, e dando-lhe assim uma segunda maneira de ser, fictícia, acrescentada, por assim dizer, à forma original da palavra” (Starobinski 1974, p. 24). Ora, sublinhar um nome, uma palavra, sublinhar os traços do rosto por meio da pintura, dar uma segunda maneira de ser, fictícia ... não são gestos quaisquer para aqueles que se interessam pelos modos de constituição do sujeito psicanalítico. 2 Vale observar que, apesar de Saussure dizer que o anagrama não tem a ver com a escrita da palavra, é sobre os textos escritos que ele se debruça em sua investigação. 3 Saussure aponta que: “ Fazer versos com anagrama é, forçosamente, fazer versos segundo o anagrama sob o domínio do anagrama” (Ms. Fr. 3963. Caderno escolar sem título, em Starobinski1974, p. 230). 4 O estudo dos anagramas ocupou Saussure provavelmente de 1906 até o início de 1909, como nos informa Starobinski. Estão em arquivos distribuídos em cerca de 10.000 páginas, entre folhas e cadernos, nem todos preenchidos completamente. Supõe-se que devem ter sido destruídas pelo autor as possíveis Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 345-349, 2005. [ 348 / 349 ] anotações sobre os cursos ministrados entre os anos 1907 e 1911. Esses cursos geraram a publicação do importante livro Curso de lingüistica geral, em 1916. 5 Vale observar alguns dos sentidos dos termos captura, capturar e captar, recolhidos no Novo dicionário da língua portuguesa. Chamo a atenção para o que eles concernem sobre a relação com o outro. Vejamos: Captura. 2. Escolta destacada a prender condenados foragidos ou indivíduos perigosos sujeitos a medidas de segurança. 3. Processo no qual um sistema nuclear, ou atômico, adquire uma partícula adicional; Captura fluvial. Geogr. Desvio natural das águas de um rio para o leito de outro. Capturar. Prender, deter, aprisionar: capturar foragidos; capturar uma ave. Captar. 1. Atrair, grangear, conquistar, empregando meios capciosos; 2. Atrair, granjear, provocar, suscitar [...]; 4. Apanhar, colher, apreender, compreender [...] Referências Bibliográficas BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, Aurélio. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1a ed. COSTA, Ana. Algumas reflexões sobre a inscrição da letra. Em: LEITE, Nina Virgínia de A. (org). Corpolinguagem - gestos e afetos, Campinas, SP: Mercado das Letras, 2003. SAUSSURE, F. Curso de linguistica geral. São Paulo: Editora Cultrix Ltda 12a ed. STAROBINSKI, J. As palavras sob as palavras, os anagramas de Ferdinand de Saussure. São Paulo: Editora Perspectiva S.A. 1974. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 345-349, 2005. [ 349 / 349 ]