Ensaio Crítico sobre Desumanização da Prática Médica José Paranaguá de Santana1 "... tudo o que já foi, é o começo do que vai vir". Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas Introdução A ausência ou descaso com as disciplinas das ciências humanas ou humanidades, que tratam dos aspectos do homem como indivíduo e como ser social, têm sido evocados como explicação ou motivos associados à desatenção com a totalidade do ser humano que se vem observando na prática médica, designada genericamente de desumanização da medicina. Essa situação e a impressão generalizada sobre seu agravamento motivaram o Conselho Federal de Medicina a constituir uma comissão encarregada de promover congressos sobre esse tema. Nos dois primeiro congressos2 tive oportunidade de apresentar algumas reflexões que buscavam ampliar o escopo das discussões sobre esse fenômeno, para além das propostas explicativas e interventivas em torno das falhas do processo educativo formal dos médicos, ou mesmo de esforços adicionais nesse sentido ao longo de suas vidas profissionais. O presente texto sistematiza as reflexões e conjecturas apresentadas nas duas ocasiões, relativizando a introdução ou ênfase dessas disciplinas na educação médica como fator decisivo para o reafloramento das humanidades na medicina. Médico, Doutor em Ciências da Saúde. Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde (Fiocruz/UnB/Opas). Assessor do Centro de Relações Internacionais da Fiocruz — Diretoria de Brasília. Foi consultor da Organização Pan-Americana da Saúde. Titular da Academia de Medicina de Brasília. Recebeu por Decreto 2 7 presidencial (2009) a Medalha do Mérito Oswaldo Cruz (categoria ouro). 2 I e no II Congresso Brasileiro de Humanidades em Medicina, promovidos pelo Conselho Federal de Medicina no Rio de Janeiro (2010) e São Paulo (2012). 1 O argumento inicial buscou correlacionar a desumanização da prática médica à indiferença generalizada diante de situações cruéis que fazem parte das vivências coletivas na modernidade (guerras, violência nas ruas, nos espaços domésticos e institucionais, inclusive nos serviços de saúde), a partir das seguintes questões: A banalização da violência, do sofrimento e até da morte no contexto geral tem a ver com a desumanização da prática médica em particular? A convivência costumeira com atrocidades recorrentes, perpetuadas nos contextos próximos (nossos bairros e cidades) e distantes (em outras cidades, regiões ou países), mas que nos impactam quase ao tempo de suas ocorrências pela celeridade das comunicações, seria uma causa ou teria efeito sinérgico com a alienação da dignidade humana no relacionamento médico-paciente? Essas indagações foram sopesadas levando em conta questões inspiradas na famosa citação de Terêncio: "[...] nada que é humano me é estranho". Se, para os médicos, nada sobre a vida das pessoas lhes deveria ser estranho, por que tanto que a elas interessa lhes seria indiferente? Justificar-se-ia, sob a influência da indiferença em relação a questões gerais (catástrofes e injustiças sociais), a disseminação desse costume na prática médica? A linha de argumentação da apresentação no primeiro congresso prosseguiu reconhecendo que as virtudes da consciência e da justiça que alicerçam a ordem social não são atributos naturais do homem e que a introjeção dessas virtudes é um processo de aprendizado. Contudo, é um processo bem diferente daquele que leva aos saberes e habilidades próprios da medicina. Tal qual não nasce dotado dessas competências para o exercício de sua profissão, o médico não tem os dons inatos de respeito aos demais (consciência) e discernimento entre o certo e o errado (justiça). Do domínio técnico encarrega-se a escola médica, com as limitações que lhe são próprias. Quanto à formação moral, a escola apenas acrescenta sua parte, com limitações ainda maiores que no caso do aprendizado técnico, ao tirocínio que se inicia ainda no "colo materno" e deve prosseguir por toda a vida mediante o convívio entre cidadãos. Essa abordagem inicial se manteve no plano propedêutico, sequer aspirando apontar respostas, apenas como introdução a novas cogitações que vieram a ser apresentadas no segundo congresso, em torno do cenário histórico em que os processos de formação e atuação dos médicos estão inseridos. Nessa trilha, o propósito do presente ensaio é realizar um exercício propedêutico sobre a desumanização da medicina em face do desenvolvimento histórico educação e da prática médica, mediante o seguinte roteiro: • A saúde e os sistemas de saúde. • A articulação ensino-serviço. • O paradoxo da medicina flexneriana. A saúde e os sistemas de saúde A saúde resulta de múltiplos fatores. Crianças famintas são mais vulneráveis às doenças e têm maior probabilidade de morrer em consequência delas. Jovens sem esperança são facilmente levados à prostituição e violência, fatores associados diversas enfermidades. Fontes de água conta minada e ar poluído propagem moléstias. A publicidade sobre fumo e bebi das alcoólicas faz aumentar o número de dependentes e, em decorrência, as enfermidades circulatórias, respiratórias e neoplásicas. A desordenada intensificação do tráfego traduz-se em crescente número de incapacitados. A resistência microbiana é um fenômeno preocupante que, em algumas regiões, ameaça comprometer o controle de doenças como a malária e a tuberculose. A disseminação do H IV e outras doenças emergentes impõem novos desafios aos sistemas de saúde, que se somam ao recrudescimento de velhas endemias. As patologias cardiovasculares e os transtornos mentais ultrapassam as tradicionais causas de morbidade e mortalidade e os acidentes e violências devem encabeçar brevemente a lista de agravos à saúde em todo o mundo. A pobreza persiste como um dos principais fatores de má saúde e os modelos de desenvolvimento com o quais ingressamos neste milênio não apontam para a resolução desse drama. Na travessia do Século XX o paradigma de saúde renovou-se. Já não se pode interpretá-la apenas como a simples ausência de doença, ou mesmo na visão idealista consagrada na Constituição da Organização Mundial da Saúde, como o estado de perfeito bem estar físico, mental e social, também se reconhece a saúde como um ingrediente fundamental do desenvolvimento e da prosperidade dos povos. Significação mais nova a define como resultante de estilos de vida que promovam o bem-estar, bem como do controle que possamos exercer sobre os diferentes fatores de risco. A saúde é ainda uma área de prestação de serviços onde concorrem interesses públicos e privados, constituindo um dos ramos de empreendimentos mais dinâmicos na atualidade. Todas essas acepções suscitam debates éticos relativos aos critérios de equidade e justiça na distribuição dos recursos disponíveis, mormente dos benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico, num contexto de demandas crescentes e disponibilidades escassas. Que papel jogam os sistemas de saúde nesse cenário? Não se deve desprezar o valor intrínseco dos mesmos, que dispõem de ferramentas capazes de influenciar positivamente o bem-estar das populações. Embora as conquistas científicas e tecnológicas superem a capacidade de sua assimilação, as inovações determinam em grande medida o bem-estar da humanidade. A grande questão é como essas inovações serão incorporadas aos programas de saúde pública, pois frequentemente os novos descobrimentos e suas aplicações práticas estão mais orientados por critérios comerciais, deixando de lado o interesse coletivo. A história registra permanentes modificações nos sistemas de prestação de serviços de saúde de todos os países. O fato novo é a velocidade e a dimensão das mudanças, prevendo-se para os próximos anos transformações muito mais acentuadas das que se registraram nas últimas décadas. A natureza dessas mudanças, no caso dos países ricos, deverá sofrer influência cada maior de dois fatores principais que, aparentemente, atuariam em sentidos opostos: a crise do modelo de bem estar social, que aponta para a adoção de novos métodos e instrumentos de contenção de gastos e, em contraposição, o crescimento e a sofisticação das demandas, insufladas pela oferta cada vez maior de serviços gerados pelo desenvolvimento científico e tecnológico. Nos demais países, a determinação das mudanças tem conotações adicionais, relacionadas ao estágio das transições demográfica e epidemiológica vigentes em cada situação, que resulta em demandas outras além daquelas relacionadas a novas e sofisticadas tecnologias. Outro fator importante no cenário futuro dos sistemas de saúde situa-se no boto do processo de globalização, na medida em que muitos países estarão expostos ao que as organizações externas têm a oferecer, como estratégias de sobrevivência à concorrência em seus países de origem. O editor do British Medical Journal3 relatou um interessante exercício sobre cenários futuros para os sistemas serviços de saúde, delineando seis possibilidades. 3 Smith, R. The future of health care systems. BJM. 24 May 1997. O próprio autor pondera que nenhum desses cenários deverá concretizar-se, mas certamente vários de seus componentes estariam presentes nos sistemas de saúde em futuro próximo: • A primeira seria o sistema de assistência socializado, nos moldes do Sistema Nacional de Saúde da Inglaterra, porém com a incorporação progressiva de ferramentas da "atenção gerenciada" (maneged care). • A segunda seria um "sistema gerenciado obrigatório", onde múltiplos seguros de saúde chegariam a acordos entre si em regime de competição, comportando-se ao final como um " único pagador virtual". • O terceiro cenário corresponderia a países que, mesmo detendo elevado produto interno bruto per capita, persistiriam gastando apenas algo em torno de 3% daquele valor com serviços de saúde, graças à progressiva utilização de controles de demanda e de gastos. • O quarto sistema seria composto por estratos de conformação piramidal, onde no ápice estaria o componente privado, na faixa média o componente do seguro saúde com atenção gerenciada e na base o serviço público. • O quinto cenário apresenta um sistema "integrado e virtual", muito diferente dos atuais, posto em funcionamento graças a avançados recursos de tecnologia de informação, onde o consumidor teria papel diferenciado e o governo exerceria funções exclusivamente regulatórias. • O último caso descrito corresponderia a uma versão mais sofisticada, do modelo anterior, o "sistema de cuidados da era da informação" onde os consumidores utilizariam tecnologia de informação para controlar sua própria saúde, consultando muito pouco os especialistas e com reduzida necessidade de consumo de outros benefícios. O Mundo parece viver esse futuro delineado cerca de quinze anos. Veja-se o caso do sistema de serviços de saúde do Brasil, que se organiza na forma de um modelo com três segmentos — o Sistema Único de Saúde, o Sistema de Saúde Suplementar e o Sistema de Desembolso Direto - mas contem ingredientes dos demais cenários. O SUS constitui o sistema público, estruturado pelo conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, pela administração direta e indireta, e fundações mantidas pelo poder público. A iniciativa privada participa do SUS em caráter complementar. É um sistema federativo, com participação colaborativa dos governos municipais, estaduais e federal, mantido o princípio do mando único em cada instancia federativa. Parte dos brasileiros utiliza o Sistema de Saúde Suplementar que, a despeito de ser um sistema privado, recebe subsídios públicos sob a forma de renúncias fiscais e contributivas. Constitui-se de diversas modalidades assistenciais, que apresentam racionalidades organizacionais distintas, clientelas diferenciadas e formas de financiamento diversas. Seu funcionamento iniciou-se nos anos 60 e foi submetido ao controle regulatório da autoridade sanitária nacional a partir de 1998 por intermédio da Lei nº 9.656. No Sistema de Desembolso Direto, ou de medicina liberal, os consumidores arcam diretamente com os gastos com serviços de saúde. Pouco considerado nas análises das políticas de saúde no Brasil, pode ser considerado um “sistema oculto” com fraca regulação estatal. Assim como o Sistema de Atenção Médica Supletiva, é fortemente subsidiado por meio de renúncias fiscais. A segmentação dos sistemas de serviços de saúde é justificada, muitas vezes, como forma de liberar mais recursos para os pobres. Contudo, evidências empíricas não validam essa hipótese. Pesquisas realizadas em diversos países apontam para uma utilização crescente de serviços privados pelos pobres na vigência da segmentação. No Brasil, onde a desigualdade estrutural demarca o desenvolvimento econômico e social, a segmentação da saúde constitui fator agravante de diferenças no acesso aos bens e serviços desse setor, conformando um ciclo vicioso entre desenvolvimento e saúde cuja resultante é negativa para os mais vulneráveis, gerando problemas intoleráveis do ponto de vista dos direitos assegurados na Constituição da República. Um fator decisivo para a moldagem do sistema de saúde no Brasil é a Estratégia de Saúde da Família, pois, mais do que sugere a denominação inicial de "programa" cunhada na sigla PSF, é anunciada como reorganizadora da atenção básica no País e, em última instância, de todo o modelo assistencial. Ademais, seria oportuno reconhecer o PSF como eixo de consolidação, no Brasil, do ideal de AlmaAta, na medida em que a implementação desse programa vem conferindo progressiva dignidade técnica, econômica e política à atenção primária, que então deixou de ser uma prioridade apenas idealizada na história da saúde pública nacional. Uma visão prospectiva do sistema de saúde no Brasil, portanto, terá que considerar os diversos aspectos decorrentes da estratégia de organização de serviços centrada na saúde da família. Além da importância do PSF no contexto do SUS, há que considerar a adoção de esquemas assistenciais que estão sendo adotados pelo Sistema de Saúde Suplementar, incorporando processos assemelhados aos do PSF, em termos de recursos humanos e tecnologia. Um aspecto interessante é a incorporação de tecnologia "miniaturizada", na forma de meios de apoio diagnóstico e terapêutico, no arsenal de recursos tradicionalmente manejados nesse nível de atendimento. Atualmente quando se fala em densidade tecnológica pensa-se logo em unidades de alta complexidade ou centros especializados. Ao se configurar a atenção básica como um mercado potencialmente capaz de consumir tecnologia, certamente o "complexo médicoempresarial" a ofertará, pois ela já existe, na forma de protótipos que vêm sendo desenvolvidos, mormente para uso militar ou em viagens espaciais. Outras dimensões da tecnologia, como a telemedicina e os processos gerenciais e de protocolos de trabalho, incluindo os clínicos, também estão sendo incorporados nos serviços básicos de saúde. Essa análise prospectiva implica uma nova arquitetura organizacional para os níveis de referência do sistema, onde os hospitais e centros especializados passariam funcionar com instâncias "complementares" dos serviços básicos, invertendo-se os valores e as práticas que hoje prevalecem. A imagem de pirâmide que hoje convencionalmente representa o sistema como um todo, denominando a atenção primária como "base" e localizando os serviços especializados no "ápice", passaria a ser de um plano que representa o conjunto do sistema, com "pontos de apoio" (os serviços especializados) inseridos na "malha dos serviços básicos". Articulação ensino-serviço no cenário histórico dos sistemas de saúde4 A formação de profissionais de saúde vem apresentando nos últimos decênios uma evolução numérica expressiva, tomando em consideração o número de egressos anuais ou sua proporção relativa à população. É uma resultante do 4 O texto de referência sobre esse tema foi elaborado em coautoria com Maria Auxiliadora Córdova Christófaro, Articulação Ensino-Serviço na Área de Saúde, para o Curso de Especialização em Políticas de Recursos Humanos para a Gestão do SUS - Eixo Temático Reforma Educacional Brasileira, promovido pela NESP/UnB, março-novembro de 2002. crescimento do sistema educacional, em termos de vagas e alternativas profissionais, correspondente às novas demandas do mercado de trabalho. Contudo, tem sido um processo que não se fez acompanhar de sinais de satisfação da sociedade com a qualidade ou a capacidade de atuação dessa enxurrada de novos profissionais. Pelo contrário, configura-se uma generalizada intolerância com a falta de articulação entre os mundos do trabalho e da formação profissional na área de saúde. Distanciamento que tem sido objeto de preocupações e hipóteses explicativas, predominando o consenso em atribuir essa dissociação ao paradigma flexneriano de organização da prática e do ensino das ciências da saúde, hegemônico no mundo ocidental a partir da reforma da educação médica nos Estados Unidos no início do Século XX. Sem sombra de dúvida, seus princípios parâmetros, inicialmente voltados para a formação do médico, inspiram as diretrizes que até hoje costuram as relações entre ensino e serviços de saúde, orientam as políticas e a operação desses setores de produção social e, afinal, conformam, orientam ou constrangem as próprias demandas sociais: o hospital corno espaço da cura e eixo estruturante dos serviços e da formação; o privilégio da abordagem clínica/individual; a especialização intensiva e extensiva; a ênfase na pesquisa biológica; e a auto-regulação profissional. Se bem que o contínuo desenvolvimento científico e suas aplicações tecnológicas, em termos de possibilidades propedêuticas e terapêuticas centradas no ato do médico, conduziu o modelo flexneriano à glória, contraditoriamente fez emergir crises e críticas no tocante à organização, financiamento e resultados dos serviços de saúde, bem como aos processos de formação profissional, destacadamente do médico. Contudo, vale antecipar a indagação se o modelo flexneriano encontra-se mesmo em crise ou, muito pelo contrário, em pleno apogeu, a despeito dos paradoxos e críticas que tem suscitado. As reações à hegemonia do modelo flexneriano remontam aos anos quarenta do século passado, visando destronar esse paradigma que, àquela altura, já era dominante em todo o continente norte-americano e com forte tendência para disseminar-se em outras partes do mundo. Foram movimentos reformistas cujas mensagens doutrinárias influenciaram sobremaneira o ideário das reformas de saúde e de formação profissional no Brasil: medicina preventiva, medicina integrada, medicina comunitária, integração docente-assistencial. A emergência da reforma preventivista e da medicina integral deu-se no contexto da instalação de políticas de bem estar social nos países europeus, no pós Segunda Guerra. A base doutrinária, convenientemente aceita, era o modelo da "história natural da doença", desenvolvido por Lea-vell & Clark, incluindo no âmbito da ação médica não apenas os doentes, mas toda a população, desse modo beneficiária dos avanços científicos, tecnológicos da medicina. Essa proposta repercutiu nas discussões sobre a reformulação da assistência médica nos Estados Unidos, desencadeando forte oposição da Associação Médica Americana, cujo receio era a hipótese da intervenção do Estado na assistência médica, nos moldes da Inglaterra onde, no mesmo período foi criado o Serviço Nacional de Saúde, sob controle e gestão estatal. A diferença entre as reformas americana e inglesa residia nos aspectos organizacionais do sistema de saúde (políticos, gerenciais e financeiros). O foco educacional dessa reforma incidia sobre o currículo, que deveria desenvolver uma nova consciência e uma nova abordagem dos problemas de saúde; ao ampliar os espaços de domínio da medicina e de visão do médico, modificar-se-ia o quadro sanitário da população. Os movimentos preventivista e da medicina integral, já modulados pela influência americana, disseminaram-se de forma sistemática na América Latina a partir da reunião realizada em Viña dei Mar - Chile em 1956, sob auspícios da Organização Pan-Americana da Saúde. Por vários motivos, em geral relacionados aos processos políticos em curso nos países dessa Região e às condições sociais de suas populações, esse movimento ganhou características próprias, afastando-o da acepção original desenvolvida tanto na Europa quanto no norte das Américas. Entre as heranças similares à experiência norte-americana estão a criação de departamentos de medicina preventiva nas escolas médicas latino-americanas e a cisão entre o saber/fazer preventivo (tido como foco principal da atenção primária de saúde) e curativo (reconhecido como inerente aos serviços hospitalares). Embora a medicina preventiva pretendesse constituir, ao menos para alguns de seus arautos, uma proposta de reforma do modelo flexneriano, o movimento preventivista apenas redirecionou as bases conceituais e operacionais dos processos de formação e de produção de serviços de saúde, constituindo-se, efetivamente, numa prática complementar ao flexnerianismo, articulando a saúde pública com a medicina liberal. Nas décadas de 60-70, contracenando com os movimentos anteriores, ganham espaço dois outros importantes movimentos que também questionavam o status quo e propunham reformas nas políticas, nas estratégias e nos propósitos dos processos educacionais e de produção em saúde: medicina comunitária e integração docenteassistencial. Ambos se propõem responder às limitações de acesso da maioria da população aos serviços de saúde, ante o incremento da "consciência sanitária" e das reivindicações sociais por mais e melhor atendimento, na contracorrente da vocação do modelo vigente voltado para a sofisticação tecnológica e para elitismo de cobertura, fatores associados à elevação de custos. Na prática, a medicina comunitária propugnava o que se convencionou chamar, à época, de "tecnologia apropriada" ou "medicina simplificada", retrocedendo às bases operacionais do período anterior à explosão do consumismo tecnológico, tanto na área de saúde como na sociedade em geral. E propunha ainda a participação comunitária na produção dos serviços, especialmente através do trabalho voluntário. Dessa forma o movimento teve repercussões nos países periféricos, enquanto estratégia que facilitava a inclusão diferenciada de grupos populacionais marginalizados pelo processo de desenvolvimento socialmente excludente. Quanto ao movimento de integração docente assistencial (IDA), cabe destacar suas propostas táticas de resistência e cooptação que propugnavam a introdução dos princípios e métodos da "epidemiologia social" e da concepção do "processo saúde-doença", no ensino de graduação das profissões de saúde. A IDA defendia, com igual ênfase, experiências educacionais e curriculares no contexto da realidade sanitária e dos serviços básicos de saúde com a presença, precoce e oportuna, do aluno; a participação de docentes na prestação de serviços e de profissionais desses serviços na formulação e operação do programa de ensino. A expansão de atividades de IDA ocorre no Brasil a partir da década de setenta, sob a designação de programas de extensão, tanto em áreas Periféricas como urbanas. Entretanto, tais atividades apenas tangenciavam o processo de formação, que persistia centrado no hospital, focalizado na assistência clínicoindividual e devotado às especialidades. É interessante lembrar dois fatores que estão intimamente ligados ao espaço que essas propostas conquistaram nas instituições de ensino superior de saúde do país: a inviabilidade de manter todos os estudantes nos hospitais de ensino, ante o expressivo e abrupto aumento de matrículas, em razão da expansão que se seguiu à aprovação da Lei da Reforma Universitária; e as mudanças de financiamento e clientela desses serviços, que exigiam maior produtividade - em geral incompatível com a presença de estudantes nos serviços hospitalares. O paradigma flexneriano não foi superado, dado que as reações de contrahegemonia não substituíram suas bases conceituais e operacionais nos processos de educação e de produção de serviços de saúde. Mas é indiscutível a importância desses movimentos reformistas. Em âmbito mundial, merecem destaque o pacto de "saúde para todos" e a "estratégia da atenção primária", compromissos dos países integrantes da ONU, em reunião promovida pela OMS e UNICEF na cidade de AlmaAta, em 1978. No Brasil, importantes mudanças verificadas nas últimas décadas se relacionam à acumulação política e técnica propiciada por esses movimentos, tanto no setor saúde (as Ações Integradas de Saúde; o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde e finalmente, o SUS) como na formação e capacitação de seus profissionais. Reforçando a expectativa inicial, quiçá a reflexão sobre esses cenários seja elemento indispensável para a elaboração de alternativas buscadas pelo Conselho Federal de Medicina ao promover os congressos sobre humanidades em medicina. Com essa intenção e na trilha das considerações anteriores, passo à abordagem do terceiro ponto da pauta anteriormente anunciada. O paradoxo da medicina flexneriana5 Trata-se de um fenômeno que se revela, de um lado, pela generalizada atitude de insatisfação e crítica com o processo de formação médica e seus resultados e, de outro, pela persistência e fortalecimento das características desse processo que, entretanto, motivam tais insatisfações e críticas. Paira uma condenação unânime da excessiva tecnologização associada à desumanização que colorem o ato médico. Estamos todos de acordo em que os médicos recém-formados, e os cada vez mais numerosos especialistas, estão progressivamente se distanciando de uma prática profissional que considere, como objetivo ou valor fundamental, as dimensões de integridade individual e social do homem. Os médicos, os professores e os estudantes de medicina, de um modo ou 5 Tema aqui desenvolvido a partir da apresentação do autor no XXXIII Congresso Brasileiro de Educação Médica, 26/10/95, Porto Alegre-RS. de outro, partilham essas impressões. Alguns de forma veemente, outros de modo discreto, elaboram seus discursos de denúncia e intolerância; a maioria, desinteressados das artes da retórica e da eloquência, ou por falta de plateia, exercitam suas críticas no espaço coloquial, ou simplesmente as remoem com seus botões. Críticas sobre a educação médica, a especialização, o predomínio ou o exagero do enfoque dito científico e tecnológico no processo de atendimento, são temas "quentes" na agenda das entidades médicas, bem como dos veículos de comunicação social. A despeito da aparência de satisfação que transmitem os médicos que militam em suas clínicas ou hospitais onde de tudo se faz para demonstrar o sucesso profissional, muitos deles revelam, na intimidade coloquial, suas reservas ou mesmo críticas contundentes ao preparo e à pratica médica corriqueira. Parece existir uma espécie de "crise existencial" dos especialistas, na forma de certa insatisfação com o próprio trabalho, contrastando com a realização profissional, em termos de prestígio ou rendimento econômico. Essas impressões corroboram a hipótese do paradoxo: todos advogam mudanças de comportamento na prática da medicina, o que teria muito a ver com o processo de educação médica, mas, a despeito da unanimidade nas críticas, todos se encontram mergulhados nesses processos, como que contribuindo a contragosto para a perpetuação de resultados que não lhes agradam, reforçando tendências que denunciam. Assim caracteriza-se esse paradoxo que a todos aflige. Como explicá-lo? Por que não se consegue aproximar o que é do que deveria ser? Como trilhar o caminho entre a situação vigente que todos criticam e a situação desejável, intuída dos termos do discurso crítico? A convivência com essa situação paradoxal não passaria pela hipótese da hipocrisia generalizada, onde todos se revelam insatisfeitos, mas continuam participando do jogo. Faz-se mister situar a questão no contexto mais amplo das relações sociais de produção e consumo de bens e serviços nas sociedades complexas e, por essa via, deslindar o enigma contido no paradoxo, vislumbrando equações que aproximem o que é e o que deveria ser o ensino e a prática da medicina. Algumas vertentes do pensamento nos campos da filosofia e da economia política buscam explicar a existência e persistência desses hiatos entre o que são as condições reais e aquelas desejáveis, numa dada sociedade em determinados momentos históricos. Ao abordar esse tema, a intenção é aplicar, no caso da medicina, explicações relativas ao hiato entre o ser e o devenir na história das sociedades. O hiato que separa educação & prática médica da proposta idealizada de atenção "humanizada" à saúde expressa, nesse campo particular, uma questão mais ampla em cujo centro encontra-se a noção de que a sociedade humana busca, permanentemente, alcançar patamares de vida mais satisfatórios, definidos a partir de expectativas que se renovam e se ampliam também permanentemente. Desse modo, muitos dos desafios antepostos à medicina flexneriana talvez escapem ao seu universo de possibilidades. Caberia, portanto, alargar o horizonte da reflexão e do debate para tentar explicar o paradoxo proposto, associando-o à questão da defasagem entre o que são e o que deveriam ser o ensino e a prática médica. Uma hipótese explicativa é a de que esses hiatos decorrem de erros sistêmicos nos campos doutrinários e científicos que, estabelecidos a partir de situações as mais variadas, persistem de modo surpreendente por tanto tempo. Um dos exemplos mais ilustrativos da pertinência dessa teoria explicativa na história da medicina é o caso da úlcera duodenal. Até algumas décadas, tratava-se de uma disfunção orgânica cuja patogênese estava predominantemente associada a fatores psicológicos, cujo tratamento dos casos mais graves implicava em intervenções cirúrgicas. Quantas sessões de psicoterapia e quantas cirurgias teriam sido evitadas, caso se tivesse confirmado há mais tempo que é possível existir vida parasitária num ambiente tão hostil como a mucosa do estômago? O dogma firmado no início do século negando tal possibilidade, e sua persistência prolongada a despeito de ser um erro, resultou no desenvolvimento e consagração de teorias e práticas propedêuticas e terapêuticas destinadas ao alívio do desconforto (tratamento clínico) ou à interrupção de episódios de sangramento digestivo (intervenção cirúrgica). A validade de tudo isso caiu por terra com as investigações sobre a surpreendente adaptação de uma bactéria ao ambiente inundado de suco ácido que é o antro gástrico. Quantos dogmas científicos que o futuro destronará ainda impedem uma melhor utilização da medicina nos dias de hoje? Qualquer que seja a resposta, não parece razoável entender essa danação como um problema particular da medicina, mesmo na sua versão alcunhada de flexneriana. É possível também explicar as defasagens entre o que a sociedade dispõe e o que aspira, a partir de falhas dos sistemas doutrinários que organizam suas práticas sociais. O marxismo, por exemplo, aponta elementos estruturais do capitalismo que impedem a superação do hiato representado pela iniquidade na distribuição dos ônus da produção e dos benefícios no usufruto da riqueza. Outras escolas de economia política buscam explicações no interior da própria concepção capitalista, como é o caso da proposta keynesiana, que postula a superação do hiato a partir da intervenção governamental na economia, através da introdução de mecanismos de regulação que evitariam ou atenuariam os efeitos indesejáveis da "mão invisível" do mercado capitalista. A utilidade desse enfoque explicativo no caso da medicina reside na possibilidade de interpretar as razões de tantas propostas alternativas para a prática hegemônica da medicina, estabelecida a partir da reforma proposta por Flexner no início do Século XX para as escolas norte-americanas. Os paradigmas flexnerianos do ensino e da prática médica tornaram-se universais ao longo daquele século, entretanto, o movimento pela disseminação de medicinas alternativas, antigas e hodiernas, é cada vez mais forte. Do ponto de vista da teoria das falhas dos sistemas doutrinários, essas propostas não devem ser entendidas como modismos ou alternativas fracassadas, mas enquanto práticas sociais cujo surgimento e persistência se dão no contexto de falhas do sistema doutrinário da medicina flexneriana, cujas limitações não mais são toleradas pela sociedade. Além das propostas alternativas que pretendem revisão total da doutrina flexneriana, há outras que anseiam tão somente apensar-lhe enfoques destinados a aperfeiçoá-la, inclusive no sentido de mais humanizada. Um exemplo é a introdução de um novo conceito de qualidade nos serviços de saúde, cujo fulcro de sustentação reside na incorporação do juízo do beneficiário na aferição do que seria a qualidade do serviço. Tal qual a dificuldade historicamente demonstrada de substituição do modelo capitalista pela utopia socialista, poder-se-ia admitir as limitações de uma reviravolta da hegemonia flexneriana e, desse modo, investir em possibilidades de redução dos malefícios decorrentes da prática e da formação dos médicos no escopo do próprio flexnerianismo, nos moldes da opção keinesiana ante a "mão invisível" do capitalismo. Em tal sentido se daria a adoção do conceito subjetivo de qualidade (na visão do sujeito de sua própria saúde) em substituição ao entendimento consagrado de qualidade, decorrente da excelência científica e técnica da formação do profissional e dos equipamentos que ele manipula (sobsumido pelo usuário, mero utilizador passivo dos serviços que lhe são prestados). Uma terceira linha explicativa sobre as diferenças entre as disponibilidades reais e as expectativas sociais, baseia-se na premissa de que os tomadores de decisões envolvendo o bem comum, o fazem sempre em situações de conflito de interesses e agem, quase sempre, de modo mais ou menos comprometido com interesses privados. Ao considerar essa corrente de pensamento, seria razoável admitir que muitas das "consequências indesejáveis” da medicina flexneriana talvez não resultassem apenas de suas próprias falhas doutrinárias. Muitas dessas consequências estariam associadas à própria forma como as sociedades definem as trocas de valores ou o acesso a bens e serviços. Desse modo, os serviços médicos seriam apenas mais um exemplo onde o conflito de interesses se resolve frequentemente com a supremacia do privado sobre o público. E nesse caso, reconhecendo que a medicina não é um valor que se deva trocar no mercado ou consumir sob as mesmas condições de qualquer outro bem ou serviço, o que seria mais prático? Persistir no discurso ideológico do compromisso social (ético) da medicina? Ou, junto com isso, buscar estabelecer regras de jogo que melhorem essa prática social no sentido do interesse coletivo? Será que a própria insistência na abordagem predominante da dimensão ideológica não estaria escamoteando o privilégio do privado ante o público? A resultante das reflexões ora expostas pode ter um significado extremamente prático: não basta questionar apenas a base ética da medicina flexneriana, tentando superar esse problema como se fosse passível de equacionamento no seu próprio contexto doutrinário. É indispensável partir para uma discussão mais ampla das relações éticas na sociedade capitalista para, então, estabelecer regras que assegurem a direcionalidade do trabalho médico em função do interesse público. Outra vertente questionadora da diferença entre o ser e dever ser no campo dos direitos sociais, advoga importância para a disparidade entre as conquistas científico-tecnológicas e econômicas e a estagnação ética na sociedade. Esse descompasso tem sido objeto de atenções filosóficas e políticas desde a antiguidade grega, passando pelo iluminismo europeu até a atualidade. O espetacular desenvolvimento da ciência e da técnica associado ao não menos admirável progresso econômico verificado nesse século que antecedeu o novo milênio, tem evidenciado com cores mais drásticas esse problema na era que se convencionou denominar pós-moderna. Isto se aplica perfeitamente à análise do caso da medicina: o avanço científico e tecnológico realizado nos marcos da concepção flexneriana, especialmente na segunda metade do século passado, é uma evidencia que dispensa detalhamento nos limites desta breve exposição. Por outro lado, e também sobre este aspecto não pairam discordâncias, tem-se observado certa estagnação ou, para os mais críticos, franca deterioração dos padrões éticos no curso da prestação de serviços médicos. As consequências desse enfoque de abordagem do problema vão desde as tentativas românticas (ou absurdas?) de negação da tecnologia (por ser coisa do diabo!), até expectativas tecnicistas (ou enlouquecidas) de que a ciência tem resposta para tudo (aproximando seus praticantes da natureza divina!). Qual a utilidade prática desses vários enfoques explicativos sobre o que é e o que deve ser a medicina ffexneriana? Novamente desconsidero a interpretação da hipocrisia, identificada com a teoria conspiratória do comportamento humano, segundo a qual os médicos estariam a criticar exatamente o que lhes interessa, com o fito traiçoeiro de escamotear suas intenções. E me posiciono para além das explicações circunscritas ou imediatistas, crente na possibilidade de inserir as discussões da ética médica no cenário dos debates sobre a ética nas sociedades complexas, caminho mais adequado para soluções duradouras. O objetivo deste ensaio foi declarado desde o início. Assim, o encerro ciente de que apenas levantei dúvidas e conjecturas, cauteloso ante um tema que remanesce como o desafio da esfinge guardiã da cidade de Tebas, que dizia ameaçadoramente aos estrangeiros: "Decifra-me ou te devoro".