UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO) ÉRICA DANIELLE SILVA MOVIMENTOS IDENTITÁRIOS E POLÍTICAS DE INCLUSÃO NA MÍDIA: A (D)EFICIÊNCIA EM TELA MARINGÁ - PR 2010 ÉRICA DANIELLE SILVA MOVIMENTOS IDENTITÁRIOS E POLÍTICAS DE INCLUSÃO NA MÍDIA: A (D)EFICIÊNCIA EM TELA Dissertação apresentada à Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras, área de concentração: Estudos Linguísticos. Orientadora: Profa Dra Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso MARINGÁ - PR 2010 Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil) S586m Silva, Érica Danielle Movimentos identitários e políticas de inclusão na mídia: a (d)eficiência em tela. / Érica Danielle Silva. -Maringá, 2010. 183 f. + CD-ROM : il. color., quadros. Orientadora : Prof.ª Dr.ª Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Maringá, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2010. 1. Deficientes - Inclusão social. 2. Deficientes Discurso. 3. Discurso - Dispositivos de normalização e governamentalização. 4. Mídias - Discurso - Deficientes. 5. Políticas inclusivas - Mídia - Deficientes. 6. Deficientes - Identidade e representação. 7. Mídia e deficientes Aspectos sociais. 8. Prática discursiva - Mídia Deficientes. 9. Mídia televisiva - Imagem em movimento Deficientes. I. Tasso, Ismara Eliane Vidal de Souza, orient. II. Universidade Estadual de Maringá. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título. CDD 21.ed. 401.41 ÉRICA DANIELLE SILVA MOVIMENTOS IDENTITÁRIOS E POLÍTICAS DE INCLUSÃO NA MÍDIA: A (D)EFICIÊNCIA EM TELA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras (Mestrado) da Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Estudos Linguísticos. Orientadora: Profa Dra Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso Aprovada em 21 de junho de 2010. BANCA EXAMINADORA Prof.a Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso Universidade Estadual de Maringá – UEM Presidente Prof. Dr. Pedro Luis Navarro Barbosa Universidade Estadual de Maringá – UEM Membro do Corpo Docente Prof.a Dra. Suzy Maria Lagazzi-Rodrigues Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP Membro Convidado -3- Para minha mãe, que me ama e cuida de mim incondicionalmente. AGRADECIMENTOS O desenvolvimento de uma pesquisa requer não só a determinação e dedicação do pesquisador, mas de várias fontes, que de uma forma ou de outra colaboraram para o resultado final. Uma vez reconhecida a importância das diferentes vozes dos sujeitos que (in)diretamente se manifestam neste trabalho, a todas elas agradeço, destacando algumas. Um agradecimento especial à Prof. Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso, professora e orientadora, pela sua dedicação e acolhimento e, sobretudo, por acreditar em mim. Graças a ela, caminhos foram descobertos e possibilidades e alternativas foram lançados na construção do conhecimento. Sempre paciente, foi parâmetro de força e intelectualidade; Ao professor Pedro Navarro e Susy Lagazzi, por aceitarem compor as bancas de qualificação e de defesa pública e pelas valiosas contribuições apresentadas; À Prof. Dra. Maria Adelaide de Freitas pela amizade, dedicação e acompanhamento acadêmico. Sou grata por indicar alguns caminhos e ajudar na construção de outros que acompanharam todo o percurso acadêmico e certamente serão resgatados por toda a vida, tanto pessoal como profissional; À Fundação Araucária pela oportunidade do desenvolvimento do projeto de pesquisa; À turma 2008 da linha de Estudos do Texto e do Discurso, por proporcionar valiosas trocas de conhecimento e por tornarem mais prazeroso o árduo caminho acadêmico; Aos amigos do Grupo de Estudos em Análise do Discurso da UEM pela partilha do saber, pela admiração mútua e pelas amizades construídas; Ao André Lima e Thaís Marconi pela parceria, generosidade e sinceridade; À Raquel Fregadolli, pela ótima companhia nas viagens, pelas palavras de conforto e pelas sábias colocações; À minha amiga Ana Lucia, pelo incentivo, pela companhia, pela torcida constante, mesmo que de longe, pela amizade e pelo respeito ao meu momento; Ao Rodrigo, pelo apoio e ajuda sempre presente; Às amigas e aos amigos que direta ou indiretamente me ajudaram no percurso; A minha família que se manteve firme ao meu lado diante de adversidades; Acima de tudo, a Deus, que nos orienta e nos alimenta com força de vontade e sabedoria para escolher o melhor caminho. Fotografia de Evgen Bavcar, fotógrafo cego nascido na Eslovênia. “Na medida em que seres vivos se afastam do tipo específico serão eles anormais que estão colocando em perigo a forma específica, ou serão inventores a caminho de novas formas?” (Georges Canguilhem, 1995) RESUMO Esta pesquisa privilegia a constituição identitária do sujeito com deficiência nas práticas discursivas midiáticas na contemporaneidade, visto a crescente regularidade na veiculação de produtos cuja temática versam sobre políticas inclusivas de pessoas com deficiência. Nesse campo de batalha entre diferentes posições, esses sujeitos trazem em sua constituição relações sócio-históricas e econômicas que fazem de sua identidade um efeito, uma construção que escapa à mera caracterização biológica. Nas malhas do saber-poder, essas práticas discursivas encontram na mídia condições de possibilidade para serem exercidas, uma vez que os mecanismos e estratégias de identificação podem apagar, transformar e consolidar ideais modelares de sujeitos, possibilitando sua governamentalização. As identidades representadas e veiculadas na mídia por meio da linguagem verbal, visual e sonora se submetem à ordem do discurso, articulando o que pode e deve ser dito no conjunto de condições de seu aparecimento (FOUCAULT, 2007, p. 9). Nesse domínio, a circulação de enunciados na mídia é perpassada por procedimentos de controle, e a deficiência é espetacularizada na medida em que é veiculada, discutida e explicada com frequência. A mídia pode ser considerada, assim, como superfície de emergência de enunciados que retomam, deslocam e ressignificam sentidos sobre o corpo deficiente. Pautados nessas relações, estabelecemos como objetivo compreender como a governamentalidade, inscrita nas práticas discursivas da mídia televisiva, nas relações entre saber-poder e saber, e verdade, possibilita o funcionamento da normalização do deficiente como resistência à exclusão. Sob tal conjuntura, no entrecruzamento da história com a memória, nosso movimento teórico-analítico se alicerça nos estudos da Análise de Discurso de linha francesa. Recorremos também aos princípios da Semiótica peirceana para subsidiar a prática de leitura da linguagem visual e midiática e ainda aos estudos culturais que tratam da identidade. A abordagem arqueogenealógica desenvolvida por Foucault é o guia para nossas análises, que são norteadas pelos seguintes conceitoschaves: governamentalidade, normação/normalização, saber, poder, verdade, arquivo, identidade, enunciado e função enunciativa. Esse aporte teórico permitiu a organização de materialidades midiáticas televisivas, veiculadas entre 2006 a 2009, em um arquivo, sistematizado em três grupos, a partir dos quais é possível compreender o modo como o sujeito deficiente é representado: a) a naturalização da deficiência; b) as resistências à inclusão, pelas práticas de preconceito; e c) a superação das pessoas com deficiência, que vencem barreiras físicas e sociais. Nesse sentido, esperamos que este trabalho possa contribuir com pesquisas, tanto no campo da Análise do Discurso quanto no da Educação, na medida em que aponta caminhos para a desconstrução de evidências de sentido da representação e de práticas inclusivas das pessoas com deficiência. Além disso, acreditamos que este trabalho tenha relevância enquanto subsídio para a leitura de textos imagéticos, dada a escassez de bibliografia específica nessa área de conhecimento. Mediante tais considerações, buscamos, por meio de gestos de leitura, dispensar um olhar ímpar, e, a partir daí, desenvolver um movimento descritivo-interpretativo arqueogenealógico que não tem a pretensão de esgotar as possibilidades de análise, já que, inserido no movimento do discurso, o arquivo permanece para outras abordagens. Palavras-chave: governamentalidade; normação/normalização; saber-poder; mídia; identidade; corpo deficiente. ABSTRACT This research privileges the identity constitution of the people with disabilities in the mediatic discursive practices in the contemporaneity, since the increasing regularity of products whose thematic turns on inclusive politics of people with disabilities. In this battlefield between different positions, these people bring in their constitution social-historical and economic relations that make their identity an effect, a construction that escapes to the mere biological characterization. In the meshes of the knowledge-power, these discursive practices find in the media conditions of possibility to be exerted, since the mechanisms and strategies of identification can erase, transform and consolidate modular ideals of subjects, making possible their governamentability. The identities represented and broadcast in the media by the verbal, visual and sonorous language submit themselves to the order of the discourse, articulating what can and must be said in the set of conditions of their appearance (FOUCAULT, 2007, p. 9). In this domain, the circulation of enunciations in the media is permeated by control procedures, and the disability is spectacularized in the measure where it is broadcast, argued and explained with frequency. The media can be considered, thus, as surface of emergency of enunciations that retake, dislocate and (re)mean the disable body. Based in these relations, we establish as objective to understand how the governamentability, enrolled in the television discursive practice, in the relations between knowledge-power and knowledge and truth, makes possible the functioning of the normalization of the disable subject as resistance to the exclusion. In this conjuncture, in the crisscrossing of history within the memory, our theoretic-analytical movement is based in the studies on Discourse Analysis of French line. We also appeal to the principles of Peirce Semiotics to still subsidize the practice of reading the visual and media language and to the cultural studies that deal with identity. The archeogenealogical method developed by Foucault is the guide for our analyses that are guided by the following concept-keys: governamentability, normalization, knowledge, power, truth, archive, identity, enunciation and enunciative function. This theoretical concepts allowed the organization of television media materialities, broadcast between 2006 and 2009, in an archive, organized in three groups, from which it is possible to understand the way as the disable subject is represented: a) the naturalization of the disability; b) the resistances to the inclusion, through prejudice practices; and c) the overcoming of people with disability, who win physical and social hurdles. In this direction, we hope that this research may contribute with the Discourse Analysis and Education studies, in that it reveals ways to the destroy the evidences meanings of the representation and of the inclusive practices of disable people. Moreover, we believe that this work has relevance in the reading of image texts, due the scarcity of specific bibliography in this area of knowledge. Concerning all these aspects, we aim at, through these reading gestures, excusing an uneven look, and, from then on, to develop an archeogenealogical description-interpretative movement that does not have the pretension to drain all the analysis possibilities, since, it is inserted in the discourse movement, the archive remains for others approaches. Key-words: governamentabily; normalization; knowledge-power; media; identity; disable body. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Família Gonsalvus ............................................................................................... 21 Figura 2 - Irmãos Giacomo e Giovanni Batista Tocci ........................................................... 25 Figura 3 - Irmãos Giacomo e Giovanni Batista Tocci ........................................................... 26 Figura 4 - Vinheta Televisiva (Cena 1) ................................................................................. 43 Figura 5 - Vinheta Televisiva (Cena 2) ................................................................................. 43 Figura 6 - Slogan “Ser diferente é normal” (2003) ................................................................ 45 Figura 7 - Capa da Revista Época, edição 435, de 18 de setembro de 2006 ........................... 46 Figura 8 - Revista Cláudia, de setembro de 2009 .................................................................. 74 Figura 9 - Anúncio veiculado pela AACD ............................................................................ 93 Figura 10 - Símbolo universal da acessibilidade de pessoas com deficiência física ............... 98 Figura 11 - Cena da propaganda “Condição” ........................................................................ 98 Figura 12 - Movimento AVAPE pelo respeito ...................................................................... 98 Figura 13 - Direções visuais básicas ................................................................................... 101 Figura 14 - The Discs in the City, Fernand Léger ............................................................... 101 Figura 15 - Pintura 3D de uma cachoeira no chão ............................................................... 102 Figura 16 - Círculo cromático ............................................................................................ 103 Figura 17 - Bandeira do Brasil ........................................................................................... 104 Figura 18 - Interior de uma casa ......................................................................................... 104 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Quadro teórico analítico ................................................................................... 112 Quadro 2 - Transcrição de propaganda institucional, campanha “Ser diferente é normal” – Menina colorida ............................................................................................... 114 Quadro 3 - Transcrição Vinheta Rede Globo ...................................................................... 119 Quadro 4 - Transcrição da propaganda “Condição” ............................................................ 125 Quadro 5 - Mecanismos e estratégias verbo-visuais na representação da pessoa deficiente - Ser diferente é normal............................................................................................. 128 Quadro 6 - Transcrição propaganda da Semana Nacional do Excepcional (2009) ............... 130 Quadro 7 - Transcrição de reportagem do Jornal Nacional (18/03/2009) ............................ 136 Quadro 8 - Transcrição de propaganda da AVAPE ............................................................. 140 Quadro 9 - Mecanismos e estratégias verbo-visuais na representação da pessoa deficiente - O preconceito ainda existe ..................................................................................... 145 Quadro 10 - Transcrição do encontro de Bruno com um jogador de basquete paraolímpico – Seriado Malhação ............................................................................................ 148 Quadro 11 - Transcrição do documentário exibido para o personagem Bruno – Seriado Malhação ......................................................................................................... 149 Quadro 12 - Transcrição de reportagem do Esporte Espetacular, exibido em 16 de agosto de 2009 ................................................................................................................ 155 Quadro 13 - Transcrição do depoimento de Virginia Diniz Carneiro – Novela Viver a Vida (2009) .............................................................................................................. 157 Quadro 14 - Transcrição do depoimento de Jô Nunes – Novela Viver a Vida (2009) .......... 157 Quadro 15 - Mecanismos e estratégias verbo-visuais na representação da pessoa deficiente – Lição de Vida .................................................................................................. 161 Quadro 16 – Quadro-síntese: a função enunciativa e os mecanismos de governamentalização ........................................................................................................................ 164 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................... 12 1 REGIMES DE (IN)VISIBILIDADE E EFEITOS DE VERDADE EM PRÁTICAS DISCURSIVAS ACERCA DO CORPO DEFICIENTE ................................................. 18 1.1 O CORPO MONSTRUOSO: DO ÍNDIO BRASILEIRO ÀS PRÁTICAS DE EXIBIÇÃO PELO MUNDO ............................................................................................................ 19 1.2.1 O monstro: a curiosidade pelo bizarro ..................................................................... 21 1.3 O CORPO PERIGOSO À SOCIEDADE: DO ESCRAVO BRASILEIRO À ÓTICA UTILITARISTA DO CORPO ....................................................................................... 28 1.4 O CORPO INSTITUCIONALIZADO: DA IRMANDADE ASSISTENCIALISTA DA MISERICÓRDIA À REORGANIZAÇÃO DISCIPLINAR DOS HOSPITAIS.............. 33 1.5 DA MONSTRUOSIDADE À NORMALIZAÇÃO DO CORPO DEFICIENTE: A (DES)CONSTRUÇÃO DOS EFEITOS TERATOLÓGICOS........................................ 39 2 IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO NA MÍDIA TELEVISIVA: POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS EM TELA .............................................................................. 49 2.1 A EMERGÊNCIA DOS DISCURSOS INCLUSIVOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ..................................................................................................................................... 50 2.2 PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO E REPRESENTAÇÃO ....................................... 55 2.3 MÍDIA TELEVISIVA: SUPERFÍCIE DE EMERGÊNCIA DE ENUNCIADOS SOBRE A INCLUSÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA .................................................... 58 2.4 POLÍTICAS PÚBLICAS: JOGO DE FORÇAS E ESTRATÉGIAS PARA A PROMOÇÃO DA (DES)IGUALDADE ....................................................................... 61 2.4.1 Das instâncias governamentais e não-governamentais que promovem a inclusão . 65 3 MÉTODO ARQUEOGENEALÓGICO: CONTRIBUIÇÕES PARA A ANÁLISE DO DISCURSO DA MÍDIA SOBRE AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA .......................... 68 3.1 O OLHAR ARQUEOLÓGICO ...................................................................................... 69 3.2 O OLHAR GENEALÓGICO ......................................................................................... 78 3.2.1 Do suplício à disciplina: tecnologias políticas do corpo ........................................... 81 3.2.2 Biopoder .................................................................................................................... 85 3.2.3 Governamentalidade ................................................................................................. 89 - 11 - 4 DA VISIBILIDADE À INVISIBILIDADE: MECANISMOS E ESTRATÉGIAS DO FUNCIONAMENTO DISCURSIVO DAS IMAGENS FIXAS E EFÊMERAS .............. 92 4.1 A IMAGEM: REPRESENTAÇÃO EM FOCO .............................................................. 93 4.1.1 Dispositivos analíticos da imagem .......................................................................... 100 4.1.2 Das propriedades da imagem em movimento ........................................................ 105 5 (D)EFICIÊNCIA: DISCURSOS SOBRE O MOVIMENTO INCLUSIVO EM TELA .......................................................................................................................................... 109 5.1 (D)EFICIÊNCIA: “SER DIFERENTE É NORMAL”................................................... 113 5.2 (D)EFICIÊNCIA: “O PRECONCEITO E A FALTA DE PREPARO DE ALGUMAS PESSOAS E DE ALGUMAS INSTITUIÇÕES AINDA EXISTEM” .......................... 129 5.3 (D)EFICIÊNCIA: “LIÇÃO DE VIDA” ........................................................................ 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 162 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 165 ANEXOS (PARTE I) ....................................................................................................... 170 ANEXO A RESOLUÇÃO ONU N.º 2.896, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1971 .............. 171 ANEXO B RESOLUÇÃO ONU N.º 3.447, DE 09 DE DEZEMBRO DE 1975 .............. 172 ANEXO C RESOLUÇÃO ONU N.º 45/91, DE 14 DE DEZEMBRO DE 1990 .............. 174 ANEXO D CARTA PARA O TERCEIRO MILÊNIO .................................................... 177 ANEXO E POLÍTICA NACIONAL PARA A INTEGRAÇÃO DA PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA............................................................................. 179 ANEXOS (PARTE II) ...................................................................................................... 182 Conteúdo do CD: 1. (D)eficiência – Lição de Vida 2. (D)eficiência – O preconceito existe 3. (D)eficiência – Ser diferente é Normal. 4. Enunciados Extras (Imagens Efêmeras) 5. Enunciados Extras (Imagens Fixas) CONSIDERAÇÕES INICIAIS Estamos inseguros quanto a como construir os relacionamentos que desejamos. Pior ainda, não estamos seguros quanto ao tipo de relacionamentos que desejamos (BAUMAN, 2005, p. 69). Tendências recentes têm problematizado, com frequência, as mudanças estruturais que estão transformando a sociedade moderna e fragmentando os seguimentos de classe, gênero, sexualidade, raça e nacionalidade. As transformações associadas à modernidade desestabilizaram a concepção de indivíduo, libertando-o dos apoios estáveis nas tradições e fazendo emergir a concepção de sujeito descentralizado de seus lugares sócio-históricos e de si mesmo (HALL, 2006, p.9). Tal realidade social torna o conceito de identidade problemático: o processo de identificação é visto como uma construção mutável, instável, descentralizada e inacabada, que adquire sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos por meio dos quais são representados (WOODWARD, 2000). Esses sistemas atribuem sentido à gama de possibilidades oferecidas pelas relações sociais e, envolvidos em relações de poder, definem quem é incluído e quem é excluído. Logo, a identidade é contestável à medida que é produzida por aqueles que detêm os canais de produção e circulação de sentidos. Nesse domínio de batalha entre diferentes posições, a negociação coletiva polemiza identidades e propicia brechas para o confronto. A identidade traz consigo relações sóciohistóricas, ou seja, o sujeito é identificado pelas relações de saber-poder entre instituições e técnicas de disciplinarização e regulamentação, materializadas em enunciados efetivamente pronunciados em determinada época. São essas práticas discursivas que fazem da identidade um efeito, uma construção que escapa à mera caracterização biológica. Nas malhas do saber-poder, essas práticas discursivas encontram na mídia condições de possibilidade para serem exercidas, uma vez que os mecanismos que sustentam a atuação midiática sobre o sujeito-telespectador podem apagar, transformar e consolidar ideais modelares de sujeitos. As identidades representadas e veiculadas na mídia por meio da linguagem verbal, visual e sonora se submetem à ordem do discurso, articulando o que pode e deve ser dito no conjunto de condições de seu aparecimento (FOUCAULT, 2007c, p. 9). - 13 - Nesse domínio, a circulação de enunciados na mídia é perpassada por procedimentos de controle, e são espetacularizados à medida que são veiculados, discutidos e explicados com frequência. Ao observarmos a importância das práticas midiáticas na constituição das identidades, chamou-nos a atenção a crescente regularidade na veiculação de produtos da mídia televisiva cuja temática versam sobre políticas inclusivas de pessoas com deficiência. Notamos que a identificação da pessoa com uma deficiência, seja ela física, mental ou sensorial, além de ser constituída biologicamente é também construída nas especificidades de outros campos de saber que discursivizam o corpo deficiente, atribuindo-lhe novo estatuto em relação a normalização. Isso significa que a pessoa com deficiência é identificada por suas condições biológicas – físicas ou comportamentais – e pelas complexas relações entre os domínios do saber, do poder e da ética. Por intermédio de mecanismos e estratégias de identificação, propõe-se a atuação desses sujeitos em outras normas que não a sua, possibilitando sua governamentalização. Espetacularizados de forma agradável aos olhos do sujeitotelespectador, esses corpos são autorizados a ocuparem determinados lugares em outros campos sociais, a fim de que a ordem seja mantida. A mídia televisiva pode ser considerada, portanto, como superfície de emergência de enunciados que retomam, deslocam e ressignificam sentidos sobre o corpo deficiente. Toda essa problemática nos leva, enquanto estudiosos da linguagem, à realização deste estudo, instigados por uma inquietação que pode ser assim sintetizada: os mecanismos e estratégias linguístico-discursivos responsáveis pela visibilidade da normalização do deficiente, na mídia televisiva, exercem efeitos conflituosos com as políticas públicas inclusivas, criando condições de possibilidade de intensificar o preconceito, e, por isso, reduzindo as condições de inclusão? A partir do problema levantado, consideramos que: (1) As estratégias discursivas, ancoradas no funcionamento linguístico e imagético, mascaram as dificuldades concretas que podem decorrer da inclusão das pessoas com deficiência e, por isso, atribuem a elas uma identidade fragilizada pelo excesso de atributos afirmativos; (2) Os enunciados articulam elementos discursivos resgatados e ressignificados da memória social, histórica e mítica para compor a normalidade do sujeito com deficiência, exigindo uma transformação global e imediata dos processos de - 14 - socialização, e não mera aceitação de direitos, para que possam desfrutar das condições de cidadania. Para verificar tais considerações, levantamos um amplo quadro representativo de materialidades midiáticas, veiculadas tanto na mídia impressa quanto na televisiva, entre 2003 e 2009. Desse quadro, o recorte para a presente pesquisa contempla as produções do período de 2006 a 2009, as quais discursivizam a representação da identidade da pessoa com deficiência a partir da prescrição de condutas sociais, políticas e éticas a serem vividas no relacionamento entre o normal e o deficiente. Esses produtos formam um conjunto heterogêneo e disperso de enunciados efetivamente pronunciados, na contemporaneidade, sobre a pessoa com deficiência. A partir desse sistema de enunciados é possível se investigarem as condições de emergência dos enunciados sobre as pessoas com deficiência, a coexistência com outros enunciados que podem se configurar como resistência e as relações de saber-poder que permitem o aparecimento ou apagamento desses enunciados (FOUCAULT, 2007a, p. 146147). Para analisarmos esse arquivo, debruçamo-nos sobre as relações possíveis entre os enunciados que formam séries enunciativas em uma relação descritível em que o discurso ganha corpo. Essas séries estão divididas em três grandes grupos: a) a naturalização da deficiência; b) as resistências à inclusão, materializadas em práticas de preconceito; e c) a superação das pessoas com deficiência que vencem barreiras físicas e sociais. Para isso, nosso movimento teórico-analítico se alicerça nos estudos da Análise de Discurso de linha francesa, especialmente nas contribuições de Michel Foucault (doravante Foucault). Pautamo-nos também nos estudos sobre mídia (MACHADO, 1997, KELLNER, 2001; FISCHER, 2001; SARTORI, 2001; SILVERSTONE, 2002; TASSO, 2006), imagem (AUMONT, 1993; MANGUEL, 2001;), identidade (HALL 2000; BAUMAN, 2005) e sobre as pessoas com deficiência (SILVA, 1987; PAN, 2003; FIGUEIRA, 2008). Por intermédio desse embasamento, estabelecemos como objetivo geral compreender como a governamentalidade, inscrita nas práticas discursivas da mídia televisiva, nas relações entre saber-poder e saber, e verdade, possibilita o funcionamento da normalização do deficiente como resistência à exclusão. Os objetivos específicos são: - 15 - (a) Demonstrar quais mecanismos e estratégias linguístico-discursivos, estéticos e tecnológicos são empregados na produção de sentidos, nas materialidades que compõem o corpus da pesquisa; (b) Identificar quais saberes circunscritos na materialidade discursiva selecionada buscam promover e implementar políticas públicas para a inclusão; (c) Reconhecer, no entrecruzamento da memória e da história, dispositivos de ordem moral, educacional e estética que conferem à imagem um jogo de forças que intenta ora absorver discursos, ora silenciar discursos de exclusão; (d) Demonstrar como as categorias nocionais de igualdade, solidariedade e cidadania encontram-se circunscritas em práticas discursivas, na contemporaneidade, bem como identificar suas possíveis relações, a partir das categorias da memória e da história. Estruturalmente, o trabalho está dividido em cinco capítulos. No primeiro buscamos traçar uma breve trajetória dos regimes de visibilidade que criaram condições de possibilidade para o reconhecimento e o tratamento do corpo deficiente na/pela história. Para tanto, sistematizamos três domínios possíveis de análise: (a) a monstruosidade do corpo, (b) o perigo do corpo ocioso e (c) a institucionalização do corpo. No segundo capítulo refletimos sobre alguns princípios teóricos do funcionamento da mídia televisiva enquanto espaço que possibilita apagar, transformar ou promover identidades, especialmente da pessoa com deficiência, delineados pelas políticas públicas de inclusão. No terceiro capítulo abrimos espaço para os apontamentos teórico-metodológicos que sustentam esta pesquisa. Destacam-se os conceitos desenvolvidos por Foucault que subsidiam as reflexões acerca dos modos de subjetivação e objetivação dos sujeitos, em especial os da pessoa com deficiência. No quarto capítulo pontuamos os elementos formais e os efeitos de realismo que possibilitam o trabalho de compreensão da linguagem imagética enquanto portadora de discursos sobre a pessoa com deficiência. Propomos, assim, tomar a materialidade imagética como um lugar privilegiado de análise. A partir das noções teóricas erigidas nos capítulos precedentes estabelecemos, no capítulo 5, um movimento descritivo-interpretativo de nosso arquivo, objetivando responder às questões suscitadas sobre nosso objeto de análise. Pautando-nos na busca de regularidades em materialidades midiáticas que privilegiam o sujeito deficiente foi possível constituir séries enunciativas, sistematizadas em torno do tema proposto: (a) (D)eficiência: “ser diferente é - 16 - normal”, (b) (D)eficiência: “o preconceito e a falta de preparo de algumas pessoas e de algumas instituições ainda existem” e (c) (D)eficiência: “Lição de Vida”. Na sequência do trabalho apresentamos algumas considerações finais, em que os objetivos e as hipóteses que guiaram nossa pesquisa são retomados e discutidos. E, por fim, os anexos disponibilizados em CD apresentam, na íntegra, os vídeos que foram analisados em cada série. A leitura completa do trabalho inclui a apreciação desse material, já que para a análise fez-se necessário o recorte e o congelamento das cenas em composições fixas, cujo movimento descritivo já implica um gesto de interpretação. Ao visualizar os materiais originais, é possível atentar-se também a outros elementos recorrentes e importantes, como o som e o movimento de câmera. 1 O presente trabalho é resultado de um processo paulatino de pesquisas desenvolvidas durante a graduação – Projeto de Iniciação Científica (PIC) e monografia de conclusão de curso2 -, como parte do Projeto de Pesquisa intitulado “Práticas Identitárias na Pósmodernidade: Discurso, sentido e mídia”3, desenvolvido na UEM - Universidade Estadual de Maringá com apoio da Fundação Araucária e vinculado ao GEDUEM – Grupo de Estudos em Análise do Discurso da UEM. Como objeto de estudo para uma dissertação de Mestrado, este trabalho se justifica pelo desejo de desconstruir as evidências de sentido da representação da inclusão das pessoas com deficiência que as materialidades midiáticas têm colocado em circulação, de forma crescente, nos últimos anos, haja vista as relações de saber-poder que estão envolvidas nessas práticas normalizadoras. Embora seja visível o crescimento do número de obras publicadas na área de inclusão social, percebemos que as pesquisas privilegiam a questão no ambiente escolar, explorando pouco a questão discursiva envolvida nas práticas culturais, políticas, sociais e linguísticas. Em síntese, defendemos que nossa pesquisa tem relevância social na 1 2 3 Sugerimos também que a leitura global desse material se estenda aos materiais extras anexados. A diversidade de material midiático sobre a inclusão da pessoa com deficiência revela a importância de tal tema no momento atual e aponta para a possibilidade de inúmeras (re)leituras, dependendo dos objetivos traçados. Tomando como materialidade de análise as vinhetas televisivas, os estudos problematizaram o processo de representação e de constituição identitária das pessoas com deficiência em vinhetas televisivas, tematizando especialmente a inclusão no/pelo esporte e na/pela arte. Respaldados pela linha teórica da Análise de Discurso francesa, essa abordagem está inserida no primeiro item dos trajetos temáticos desenvolvidos pelo projeto de pesquisa: (1) a imagem do cidadão brasileiro marginalizado; (2) a nova imagem do homem contemporâneo; e (3) a presença da mulher na política e na economia do país. Nos trabalhos desenvolvidos, as análises se centraram em vinhetas, e inicialmente aquelas que envolviam a personagem “Cambito”, cuja caracterização repousava na representação de crianças brasileiras marginalizadas, a fim de proporcionar a inclusão digital a partir da identificação das crianças de baixa renda, com um site que mostrasse a sua realidade. A personagem foi criada em 2001, pelo cartunista Otávio Rios, para o Portal Viva Favela, projeto de inclusão social que conta com uma equipe de jornalistas e correspondentes que moram em favelas (Disponível em: <http://www.vivafavela.com.br>). - 17 - medida em que pode apontar caminhos para a compreensão das técnicas disciplinares e regulamentadoras que tornam o projeto inclusivo uma verdade sócio-historicamente construída. Enfim, acreditamos que os questionamentos acerca da representação e da constituição identitária das pessoas com deficiência em práticas discursivas midiáticas constituem um tema interessante, que pode contribuir e enriquecer as pesquisas no campo da Análise do Discurso, principalmente no que concerne à tentativa contemporânea de análise de textos imagéticos. De maneira mais ampla, acreditamos ainda que as contribuições deste trabalho se estendam como subsídios para práticas pedagógicas, sobretudo na leitura de textos imagéticos. 1 REGIMES DE (IN)VISIBILIDADE E EFEITOS DE VERDADE EM PRÁTICAS DISCURSIVAS ACERCA DO CORPO DEFICIENTE O anormal não é aquilo que não é normal, e sim aquilo que é um normal diferente (GEORGES CANGUILHEM, 1995, p. 164). Neste capítulo, pretendemos revelar diferentes condições e regimes de visibilidade e de efeitos de verdade que permitiram o reconhecimento e o tratamento das pessoas com deficiência em determinados dispositivos de ordem política, econômica e cultural, na/pela história. Consideramos que esse é um processo fundamental nesta pesquisa, à medida que torna visível os mecanismos de exclusão/inclusão que possibilitaram o controle da população, devido ao estranhamento causado pelo contado com a diferença física, numa relação tensa, que sempre esteve presente na sociedade, desde a origem da humanidade. Importa destacar que a historicidade da deficiência, exposta neste capítulo, se constitui um saber no tempo. Isso significa que essa memória se inscreve em enunciados atuais e produz efeitos, o que pode auxiliar na discussão sobre a consideração de que os elementos discursivos da memória social, histórica e mítica são resgatados e ressignificados pelos enunciados midiáticos para compor a normalidade dos sujeitos com deficiência a fim de promover políticas inclusivas. Ao tratar dos fatos da história e de como as pessoas com deficiência foram neles inscritos, rompe-se com a cronologia ampla marcada pelas unidades de tempo. Desdobra-se em um espaço de dispersão no qual os esforços se voltam para a percepção e a problematização do aparecimento de positividades, o que possibilitou a sistematização de três domínios possíveis de análise: (a) a monstruosidade do corpo, (b) o perigo do corpo ocioso e (c) a institucionalização do corpo. Essa sistematização aponta para a necessidade de se investigarem as condições de emergência do discurso sobre a inclusão na/pela sociedade na contemporaneidade, sobretudo no início do século XXI. Propomo-nos, assim, a compreender, baseando-nos no questionamento de Foucault (2007a, p. 30), o porquê do aparecimento, cada vez mais frequente, de enunciados sobre a (inclusão da) pessoa com deficiência, e não outros em seu - 19 - lugar. Para tanto, faz-se necessário recuperar alguns movimentos de reconhecimento dos direitos que procuraram favorecer as pessoas com deficiência, durante o século XX. Ao empreender tal recorte, faz-se necessária a desconstituição das verdades do presente para lançar o olhar sobre acontecimentos do passado, isso porque a verdade de uma época, enquanto sistema de exclusão, apoia-se, segundo Foucault (2007c, p. 17), em um suporte institucional; é reconduzida por um conjunto de práticas e pelo “modo como o saber é aplicado a uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído” (FOUCAULT, 2007c, p. 17). Logo, a verdade da atualidade sobre a deficiência tende a exercer um poder de coerção sobre os outros discursos, orientando e fundamentando possíveis julgamentos sobre a vontade de verdade de outras épocas e lugares. Além disso, não é possível traçar uma continuidade evolutiva das práticas relativas à deficiência. As atualizações semânticas das referências terminológicas e as definições que designam as deficiências, por exemplo, não indicam uma evolução no tratamento das pessoas com deficiência de um século para outro, mas adquirem coesão própria e manifestam, de modo positivo, a negatividade das doenças. É preciso considerar que “pode ser que, de um século para outro, não se fale „das mesmas doenças‟ com os mesmos nomes, mas isso é porque, fundamentalmente, não se trata „da mesma doença‟” (FOUCAULT, 1978, p. 237). Cabe, portanto, a este capítulo estabelecer um intercâmbio entre as práticas discursivas que constroem a história da deficiência, seja ela mental, sensorial ou física. Logo, não se tornam relevantes definições de tipos de deficiências, que estão a um clique nos inúmeros sites disponíveis atualmente, ou a alguns passos em uma biblioteca. A partir da obviedade do que está diante dos olhos, pretende-se enxergar aquilo que está na invisibilidade das materialidades discursivas, atribuindo importância, para isso, tanto à língua quanto à iconografia. 1.1 O CORPO MONSTRUOSO: DO ÍNDIO BRASILEIRO ÀS PRÁTICAS DE EXIBIÇÃO PELO MUNDO Acontecimentos trágicos que provocam deficiências existiram em qualquer época da humanidade, como na História do Brasil, desde seus primeiros habitantes, ou entre os negros - 20 - que chegavam ao país em condições sub-humanas em navios ou ainda entre os colonizadores imigrantes de países europeus. No entanto, assim como nos primórdios da humanidade, poucos são os registros específicos sobre as deficiências no período colonial e imperial do Brasil. Silva (1987) e Figueira (2008), estudiosos do tema, explicam que a maior parte das informações sobre deficiências estão diluídas em comentários generalizados sobre doentes e pobres, já que as pessoas com deficiências eram consideradas como parte da categoria mais ampla dos “miseráveis”. No caso específico dos povos indígenas, que primeiro habitaram no Brasil, encontra-se, segundo Figueira (2008, p. 23), uma política de exclusão que consistia na imediata rejeição / eliminação caso a criança nascesse com alguma deformidade física. Isso porque, de acordo com a crença indígena, essa criança poderia trazer maldições para a tribo. O estudioso argumenta que a constituição física robusta, forte e sadia pode ter sido um fator que reforçava a política de exclusão. A partir dos padrões pré-estabelecidos pela comunidade indígena, qualquer anomalia visível justificaria o sacrifício, visto a perspectiva do sofrimento desse sujeito por toda a sua vida. Acrescenta que já nessa época existia o conceito de inferioridade, de estereótipo e de estigma 1. [...] um sujeito com algum tipo de deficiência, na visão pré-concebida de sua tribo, nunca seria um bom caçador, não poderia ir para o campo de batalha, não era digno de uma esposa, nem de gerar novos e bons guerreiros. [...] Surgia o seguinte mecanismo em um círculo vicioso: o preconceito gera um estereótipo, que cristaliza o preconceito, fortalecendo o estereótipo, que atualiza o preconceito. E, nesse círculo vicioso, levado ao infinito, surge o estigma (marca, sinal), colaborando com essa perpetuação (FIGUEIRA, 2008, p. 26). Os colonizadores europeus que chegavam ao Brasil, além de encontrar uma natureza misteriosa e perigosa, também tinham que lidar com a figura selvagem do índio, que se aproximava das fantasias medievais de que poderia existir uma humanidade fisicamente monstruosa no outro lado do mundo. Lobo (2008) comenta que, mesmo com o estranhamento causado nos primeiros contatos com o índio, os relatos de Anchieta, Nóbrega, Gandavo, Brandão, Vasconcellos e Cardim, entre outros, apontam para comentários a favor do povo recém-descoberto. Nos relatos, raras eram as deformidades entre os índios, que apresentavam padrões de higiene e limpeza superiores aos europeus (LOBO, 2008). É possível que a raridade de deformidades entre os índios esteja vinculada à política de exclusão citada 1 É interessante notar que essa prática ainda não havia sofrido a interferência da cultura europeia. - 21 - anteriormente. Uma vez justificada pelos padrões pré-estabelecidos pela tribo, a eliminação dos “defeituosos” produzia um povo forte e sadio fisicamente. Por outro lado, a perspectiva positiva salientada nos relatos não impediu que os índios fossem vistos com desprezo, aversão, ou que fossem escravizados. Prática comum no início do século XVI, o “turismo dos selvagens” fez com que o índio brasileiro se tornasse objeto de curiosidade e de escravização na Europa (LOBO, 2008, p. 36). Os índios que ficavam no Brasil apresentavam aos portugueses condições de semi-humanidade: era um povo sem fé, sem lei, sem rei. Outro fato que horrorizava os colonizadores era o canibalismo. Vários são os relatos que descrevem o medo de os portugueses serem comidos, bem como as técnicas de preparação da carne humana pelos índios. A monstruosidade atribuída aos indígenas aponta para práticas vigentes em outros campos sociais, que expõem aqueles que são considerados monstros a fim de saciar a curiosidade dos “normais”. Na seção a seguir serão apresentadas algumas práticas por meio das quais é possível problematizar o tratamento simbólico de monstruosidade atribuído pelo imaginário social ao corpo enfermo empírico, entre os séculos XVI e meados do século XIX. 1.2.1 O monstro: a curiosidade pelo bizarro Figura 1 - Família Gonsalvus - 22 - Desde o século XVI o registro das “criações defeituosas de Deus” na pintura era uma prática comum entre os cientistas e imperadores da época. A família Gonsalvus é um dos exemplos de horrores da natureza que foram muitas vezes pintadas pelos artistas da época, além de serem solicitados em anfiteatros de anatomistas e em palácios. Seu retrato fazia parte de um catálogo ilustrado de objetos fantásticos e curiosos, que dissipava a melancolia de Rodolfo II, Imperador de Praga (MANGUEL, 2001). Chamamos a atenção para o fato de que a representação da família Gonsalvus permite construir um monstro atraente, isso porque, ao mesmo tempo em que há algo perturbador no físico de parte da família, que atrai e escandaliza o olhar, as vestes são nobres e o retrato representa a composição de família tradicional/normal. Esse estranhamento, causado pela monstruosidade de uma experiência inumana, muitas vezes considerada necessária para compreender o humano, encontra suporte fundamental na pintura e na exibição física. Lobo (2008, p. 38) corrobora com a problemática do tratamento de monstruosidade atribuído ao corpo empírico assinalando que esses monstros, no século XVI, “têm sempre como causa a glória ou a ira de Deus”. Por um lado, são consideradas criações divinas intermediárias que garantem a harmonia entre as coisas. Por outro, são “exemplos da cólera de Deus”, produzindo desordens pela falta ou pelo excesso. A estudiosa argumenta que ao fascínio dos europeus pelo monstro somou-se a figura do selvagem proveniente do descobrimento do novo mundo. Nômades, canibais, carentes de fé e rebeldes pelo desconhecimento da obediência a um poder, os indígenas eram personagens de um espetáculo curioso aos olhos europeus. A curiosidade pelo bizarro, enquanto forma de cultura visual, pode ser considerada uma das formas mais inquietantes e intolerantes de tratamento dos monstros no século XIX. Reservou-se àqueles considerados monstros um regime particular de visibilidade, segundo o qual eram expostos em feiras, circos e parques como forma de divertimento familiar 2. Para ser exposto como monstruosidade o indivíduo deveria ter uma marca física ou um dom incomum: irmãos siameses, homem-tronco, homem tatuado, mulher barbada, gigante, anão, engolidor de espadas e levantador de pesos são alguns exemplos. Entretanto, conforme relata Lobo (2008), além de atrair o público pela característica física, os sentidos da monstruosidade eram construídos por um conjunto de práticas complexas e variadas. Para 2 No Brasil, a exposição de seres humanos como forma de controle e ordem não eram dedicadas apenas às anormalidades físicas, mas, segundo Lobo, “expunham-se a pequenas multidões os penitenciados à execração pública dos autos-de-fé, os escravos supliciados nos pelourinhos, os condenados à forca” (LOBO, 2008, p. 73). - 23 - cada personagem era criada uma história, um cenário, um figurino e até um fundo musical apropriado, atribuindo-lhe uma identidade. Nos entremeios dos campos científico, educativo, da seriedade, da farsa e do humor, os personagens portadores de alguma deficiência física ou mental não eram tratados como doentes, já que até então não eram tomados como objeto pela medicina. Não sendo dignos de piedade, o apresentador raramente apelava para os sentimentos de pena ou simpatia do espectador (LOBO, 2008, p. 72). Nota-se que, nessa prática, a anormalidade se configura como condição de possibilidade para a constituição da normalidade, isso porque, uma vez expostos numa espécie de zoológico humano, os monstros funcionam como dispositivos exóticos que ensinam à civilização os desvios que podem ser prevenidos por práticas higiênicas, ou mostram que existe uma exceção que confirma a regra. Courtine traz uma importante contribuição para essa reflexão. Para ele, esta foi, portanto, uma das formas essenciais da formação do poder de normalização na virada do século: a extensão do domínio da norma se realizou através de um conjunto de dispositivos de exibição do seu contrário, de apresentação da sua imagem invertida. Sem necessidade alguma de meios coercitivos, no entanto, para essa pedagogia de massa, bem o contrário de um espaço panóptico e de uma vigilância de estado: uma rede frouxa e disseminada de estabelecimentos de espetáculo, privados ou públicos, permanentes ou efêmeros, sedentários ou nômades, primícias e, depois, a formação de uma indústria da diversão de massa que distrai e fascina (COURTINE, 2008, p. 261). Essa forma curiosa de olhar o espetáculo das deformidades foi acompanhada por um poderoso meio de disseminação: a fotografia. Courtine (2008) relata que os espectadores levavam de recordação do seu encontro com as aberrações um cartão postal ou um cartão de visita ilustrado, que passaram a ser produzidos em massa, sobretudo com os progressos da tecnologia fotográfica, a partir de 1860. O valor comercial alcançado por esses cartões indica a importância da contemplação de imagens e a exploração de uma cultura visual de massa. Nesse âmbito, a imagem cumpre seu papel de “descoberta visual” (AUMONT, 1993, p. 81), ou seja, sua função é garantir, reforçar, reafirmar e explicitar a relação com o mundo visual/real para que seja aperfeiçoada e mais bem dominada. Essa abordagem está relacionada com a função representativa e simbólica da imagem, compreendida respectivamente como reconhecimento e rememoração, por Aumont (1993, p. 81). Tal dicotomia permite que o - 24 - sujeito reconheça e identifique na imagem o que pode ser visto no real, bem como as possíveis distorções decorrentes de sua representação. Nesse processo, enquanto instrumento de rememoração, a imagem apresenta de forma codificada o saber sobre o real, de forma legível e em constante atualização. As condições de existência da imagem parece encontrar apoio também na perspectiva discutida por Davallon (2007), que trata a imagem como um operador da memória social, revelando que o que nos conduzirá talvez a encarar a imagem sob um prisma particular: menos a nos interessar pelo que a imagem pode representar (os objetos do mundo), ou ainda pela informação que ela pode oferecer, nem mesmo pelo modo como ela efetua um ou outro desses processos, do que a prestar atenção à maneira como certa imagem concreta é uma produção cultural – quer dizer, a levar em consideração sua eficácia simbólica) [...] Esse estado de coisas abre, como aliás insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpretação (o que quer dizer o conteúdo “legível”, ou antes “dizível”, pode variar conforme as leituras); mas o que faz também – e não se poderia esquecer este ponto – com que a imagem comporte um programa de leitura: ela assinala um certo lugar ao espectador e ela pode “rentabilizar” por si mesma a competência semiótica e social desse espectador. Este é um fato bastante conhecido pelos publicitários (DAVALLON, 2007, p. 28-29). Tais proposições realçam a função das imagens veiculadas nos cartões postais e de visitas levados como lembrança do encontro com as aberrações humanas, no século XIX. Que efeitos essas imagens provocavam, a ponto de serem mantidas como recordação em álbuns de famílias? Um dos possíveis efeitos que poderia ser considerado é o registro de elementos visuais que reconstituíam a cena real, o qual, associado à espetacularização do corpo deficiente, reforçava a sensibilidade da época e explicitava a relação dos sujeitos-espectadores com a monstruosidade real. Nas últimas décadas do século XIX e nas duas primeiras do século seguinte, a convenção do retrato de estúdio se tornou frequente na exibição fotográfica dos monstros, configurando-se como “um dos sinais de um desejo de normalização das monstruosidades humanas: fazer a sua inscrição no quadro banal que acolhe na maioria das vezes a imagem dos indivíduos ordinários” (COURTINE, 2008, p. 283). Revela-se aí a paradoxal propriedade do corpo monstruoso: ao se tentar normalizar esse corpo monstruoso em cenários familiares, ele não tornaria estranho tais cenários? - 25 - Veja-se, por exemplo, as imagens dos irmãos Giacomo e Giovanni Batista Tocci, nascidos na Itália, em 1878. Na figura 2, inscreve-se na imagem uma tentativa de naturalização dos gêmeos, materializada no retrato de família, que é, ao mesmo tempo, abalada pela propriedade de um corpo monstruoso. Essa subversão dos contextos de aparição do corpo monstruoso se acentua com a fotografia médica, em que o segundo plano “parece recuar e abstrair-se diante da presença maciça do sintoma teratológico” (COURTINE, 2008, p. 284). A imagem reproduzida na figura 3 confirma que a superexposição do corpo desnudado intensifica a visibilidade dos sinais e revela o que a fotografia anterior apenas insinuava: o sexo de um monstro. Nas palavras de Courtine, o olhar do espectador é, sem demora, conduzido para um outro lugar da representação: esse duplo olhar que o fixa. A batida do olhar ganha então maior intensidade, os olhos percorrem e não conseguem deter-se, esse triângulo que, do olhar de um ao do outro, o leva de volta inexoravelmente ao sexo exposto. E se acontecesse que a curiosidade ficasse cansada, se um repentino pudor ou uma perturbação tardia viesse afastar o olhar saciado, a disposição da imagem logo o levaria de volta para lá: o buquê de flores brandido por cima das cabeças pelos braços interiores dos meninos, simétrico do sexo com relação ao eixo dos olhares, não tem outra função (COURTINE, 2008, p. 285). Nesse espetáculo ambíguo, as flores e o sexo do corpo monstruoso operam como punctum (BARTHES, 1984), ou seja, é o acaso que punge, mortifica e fere o espectador. Ela não é uma fotografia qualquer: a superexposição dos irmãos Tocci, que outrora atraía a curiosidade despreocupada do público à procura de distração, choca a sensibilidade na contemporaneidade, o qual reconhece na imagem a obscenidade inerente à espetacularização do corpo anormal. Figura 2 - Irmãos Giacomo e Giovanni Batista Tocci - 26 - Figura 3 - Irmãos Giacomo e Giovanni Batista Tocci Com efeito, Courtine (2008, p. 288) observa que no século XIX há uma ruptura na concepção de monstruosidade, fundamentada pela “invenção de uma teratologia científica, baseada nos progressos da embriogenia e da anatomia comparada”. A concepção de monstruosidade como manifestação diabólica ou divina se insere em uma ordem igualmente subordinada a leis, assim como a normalidade. Tomado como objeto de estudo pela medicina e pela biologia, o corpo monstruoso é observado racionalmente. Essa racionalização da curiosidade constitui importante fator na mutação da sensibilidade do olhar sobre as deformidades do corpo: o corpo monstruoso é um corpo humano e o seu sofrimento vai despertar compaixão. Courtine (2008) explica que nesse processo o corpo enfermo progressivamente se dissocia da monstruosidade e se torna objeto da ciência, que foca a sua reabilitação. Esse projeto se estende entre o final do século XIX e meados do século XX, contemplando a criação de instituições e técnicas ortopédicas, o que favorecia a reinserção do corpo deficiente na sociedade, por meio do trabalho. O estudioso salienta que a enfermidade foi reconhecida com mais clareza pela sociedade depois da Primeira Guerra Mundial. Os inúmeros soldados mutilados ou com traumas psíquicos que voltavam da guerra, juntamente com os acidentados de trabalho produziram um discurso de assistência, despertando consequentemente a solidariedade coletiva. A sociedade reconhece, assim, num universo de culpa e obrigações morais, sua dívida para com a deficiência corporal. Se o século XIX separou o monstro do enfermo, o período entre as duas guerras substitui o enfermo pelo mutilado. A invalidez, uma vez - 27 - considerada uma falha que pode desaparecer, estende-se a todas as formas de deficiência corporal. Deste modo, teria a ciência restabelecido o monstro em seus direitos à humanidade biológica, o direito o teria acolhido no seio das pessoas jurídicas, e o aumento de um sentimento de compaixão, secundado pelo desenvolvimento de uma medicina restauradora e assistencial, teria levado a cabo a volta à comunidade dos humanos daqueles que haviam sido excluídos tanto tempo dela. Sem dúvida, pode-se aceitar as grandes linhas desta história da humanização dos monstros. Ela foi, no entanto, mais ambígua, muitas vezes mais sombria, às vezes trágica (COURTINE, 2008, p. 306307). É após a Segunda Guerra Mundial que a exibição dos monstros humanos em seus moldes tradicionais desaparece. A percepção do monstro como humano fez com que o espectador reconhecesse não mais a diferença, mas a semelhança na deformidade do corpo. A complexa mudança da ordem do outro para a ordem do idêntico é, segundo Courtine (2008), responsável pelo abandono dos dispositivos tradicionais de exibição do anormal. Dessa forma, por volta de 1931 os zoológicos humanos desaparecem, assim como os espetáculos “entra-e-sai” nos parques e circos. Nestes últimos, os espetáculos passaram a ser problematizados enquanto circulação urbana e caso de saúde pública, e não mais como controle dos olhares. Nesse processo, os monstros reaparecem ressignificados em outros campos visuais. O olhar do público se desperta para a ilusão de ótica, alimentada pela invenção do cinematógrafo, na virada do século. Segundo Courtine (2008, p. 318), “essa transformação dos corpos em signos permite ao parque de diversão e aos museus de curiosidades oferecerem, sob uma forma desmaterializada, ao mesmo tempo distanciada e realista, espetáculos cuja percepção direta e brutal as sensibilidades não suportam mais.” O cinema é, assim, responsável pelo prolongamento e aperfeiçoamento das ilusões visuais dos parques de diversão, nos quais o corpo encontra uma „segunda via‟ que, livres de coerção, veem multiplicar-se nos filmes de terror, gênero próspero na cultura visual nos anos 1920: Frankenstein, Drácula, Freaks e King Kong, entre outros (COURTINE, 2008)3. 3 Courtine (2008, p. 328-329) atribui aos estúdios Disney o mérito de “ter levado à última lógica um comércio monstruoso”. Isso porque a empresa percebeu o lucro comercial que poderia ter ao transformar as ficções monstruosas em artigos de consumo para o público em geral: brinquedos, álbuns de figurinha, lenços, bonés e parques temáticos. Em suas versões mais recentes, nota-se o total rompimento com o choque perceptivo diante da deformidade. Ogros benevolentes e monstros com medo das crianças fazem parte da literatura infantil e do cinema de animação. - 28 - Courtine (2008) sugere que a irrupção da exibição do corpo monstruoso em feiras deu lugar a um fluxo contínuo de signos, o qual acelerou ainda mais com o advento da televisão. Nesse processo, os rituais de catarse se tornam permanentes, embora com o poder de desestabilização do olhar reduzido. “Condenadas a um eterno retorno, as monstruosidades virtuais da tela só inquietam para tranquilizar melhor, sem jamais alcançar dissipar uma impressão persistente de déjà vu.” 1.3 O CORPO PERIGOSO À SOCIEDADE: DO ESCRAVO BRASILEIRO À ÓTICA UTILITARISTA DO CORPO Desde o período Colonial até o final do Império, o sistema de produção no Brasil foi marcado pela escravidão. Tal sistema não era novidade entre os povos indígenas, já que era comum reduzir à escravatura os fugitivos de outra tribo e a posterior troca por mercadorias que chegavam de Portugal. Entretanto, conforme afirmam os historiadores, a resistência dos indígenas dificultava a sua escravização. Logo, a mão de obra foi buscada no continente africano. Já na vinda para o Brasil, as condições desumanas nos navios provocavam doenças que deixavam sequelas e/ou deficiências. Chegando ao país, os escravos mais fortes eram vendidos em praça pública e eram superexplorados pelos seus donos. Muitos deles passaram a portar alguma deficiência provocada pelos castigos ou por desastres nos engenhos. Figueira (2008) chama a atenção para o fato de que para serem bem aceitos no mercado escravagista e para que pudessem desempenhar os trabalhos agrícolas e domésticos, os negros precisavam possuir características físicas perfeitas. Verifica-se mais uma vez o corpo como dispositivo de identificação do normal, do perfeito e do capaz, crença que se aproxima daquela indígena, destacada anteriormente. Uma vez sob o poder dos proprietários, o corpo era tido como lugar de inscrição da lei do poder senhorial. Lobo (2008) compara as cicatrizes, os defeitos físicos e as mutilações a uma “carteira de identidade”. Isso significa que as lesões possibilitavam a identificação dos - 29 - escravos que fugiam ou indicavam desobediências. Ao contrário dos suplícios 4 analisados por Foucault (2005), nos quais eram punidas as infrações consideradas ofensas ao soberano, neste caso os castigos físicos aplicados aos escravos estavam ligados à sua rebeldia contra a condição de exploração do seu corpo para a produção de riquezas. O negro torna-se, assim, “o monstro selvagem e canibal da Colônia, responsável por todo o atraso, por todas as mazelas sociais, reputado o tipo humano mais próximo da bestialidade” (LOBO, 2008, p. 143). Ao proprietário de escravos, por sua vez, mais do que necessidade de mão de obra para o trabalho, a posse de escravos significava status. Isso explica o fato de pessoas pobres e até mesmo negros e (ex)escravos comprarem um ou dois escravos com seus míseros recursos. Em alguns casos, os escravos doentes, cegos ou aleijados poderiam dar lucro maior ao seu proprietário já que explorando a caridade pública aumentavam os rendimentos com as esmolas que ganhavam (LOBO, 2008). A Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em maio de 1888, extinguiu oficialmente a escravidão do Brasil; no entanto, não garantiu a melhoria das condições socioeconômicas dos ex-escravos. Desse corpo domesticável e amansado, derivou-se o corpo descartável, com tendência para o erotismo, a vagabundagem e o crime; logo, um perigo social. Essa situação se agravou devido à crise econômica dos países da Europa Ocidental. Tal fato fez com que muitas colônias se tornassem abrigos daqueles que eram rejeitados: miseráveis, deficientes físicos, enfermos, órfãos e viúvas, entre outros. Lobo (2008) explica que o Brasil, assim como as demais colônias europeias, tornou-se uma espécie de depósito dos indesejáveis. Conseguintemente, a massa rejeitada pelo Reino formava, no Brasil, uma população heterogênea, dispersa e pobre, o que poderia causar problemas de rebeldia e resistência. Era preciso, portanto, estabelecer formas de controle da população. Desse corpo jamais se diria sobre sua eficiência, ineficiência e principalmente deficiência. Esses atributos só surgiriam de outros corpos, sujeitos a outros dispositivos de disciplina e submissão. Deles seria possível dizer, quando fora de uso, além de perigosos, serem fardos sociais, um peso morto nas costas da sociedade, por serem ineficientes (não saberem ou não quererem trabalhar) ou deficientes (impossibilitados temporária ou permanentemente para o trabalho). De qualquer forma, seriam objeto de novas práticas (diagnóstico, recuperação e controle eugênico) e de novas sanções. Tratava-se, portanto, da figura do trabalhador livre burguês, cujo modelo do operário asséptico e disciplinado é bem mais recente no Brasil e 4 Cf. capítulo 3. - 30 - se desenhou gradativamente com o processo de industrialização (LOBO, 2008, p. 143). Considerava-se que a presença do (ex)escravo, da classe dos “rejeitados”, era responsável pela disseminação de doenças, maus hábitos, vícios e perversões sexuais. Comparado a outros temas, o escravo era uma preocupação consideravelmente reduzida no discurso da medicina social no século XIX. Os poucos estudos produzidos pelas faculdades de medicina e revistas médicas possuíam, segundo Lobo (2008), duas vertentes. Na primeira, os estudos tematizavam os males da escravidão doméstica, sobretudo a transmissão, pelo leite das amas-de-leite, de doenças venéreas e hereditárias. O escravo urbano, assim, nunca era considerado, pela medicina social, um trabalhador, por isso era preciso mantê-lo afastado das famílias senhoriais renovadas, mantendo assim o terror da doença, sem a preocupação de higienizá-lo. A outra vertente trata o escravo rural como trabalhador, e defende que ele deveria ser mais bem abrigado, vestido e alimentado. Uma hipótese para a produção (embora pequena) desses trabalhos era a necessidade de preservação dos corpos, necessários à produção das riquezas brasileiras, visto a proibição do tráfico, que estava a caminho (LOBO, 2008). Nota-se que a multidão de escravos libertados e dos “indesejáveis” formava, no início do século XX, as “classes perigosas”. Esse termo era atribuído pelos intelectuais, políticos e administradores da época às pessoas degeneradas pela pobreza, ou seja, pela falta de consciência do dever e da moral há uma degradação física e moral, que instala o perigo constante na sociedade. Segundo Lobo (2008), diante da problemática da relação entre pobreza e criminalidade, coube às autoridades promover medidas de repressão à vadiagem. Em quase todas as regiões do país, a grande questão era: como controlar o tempo do trabalhador livre, em particular da massa de ex-escravos nas lavouras? Como levar essa maior parcela da população ativa a trabalhar, e a trabalhar sempre mais, de maneira que um excedente de seu tempo de trabalho nunca fosse remunerado e contribuísse sempre mais para a acumulação de capital? Como fazê-la acreditar que esse esforço seria fundamental para a riqueza e o progresso da nação? E mais, que estaria fazendo um bem para si e para toda a sociedade, e que toda a sua lida seria, enfim, um dia recompensada? Como limpar o trabalho da conotação aviltante da escravidão? Como convencer o liberto das vantagens civilizatórias do trabalho, sem acender-lhe, contudo, a ambição de um dia tornar-se também proprietário, como seu patrão? (LOBO, 2008, p. 230) - 31 - Na tentativa de sanar tais questões, Lobo cita algumas medidas disciplinares que foram tomadas a fim de ressaltar as virtudes do trabalho e, sobretudo, para controlar os pobres. Uma das formas encontradas para docilizar e domesticar os corpos foi a criação das fábricas, com o objetivo de reunir pessoas em um espaço controlável e impor regras de comportamento para controlar o comparecimento diário do operariado, bem como para regular sua produtividade (LOBO, 2008). Contudo, a exploração dos trabalhadores encontrou resistência da classe operária, que organizava greves, paralisações e sabotagens, apesar do olhar vigilante dos inspetores e fiscais. Logo, novas formas de dominação precisavam ser implantadas. Uma nova fábrica para um novo homem. Um trabalhador moderno para um patrão empreendedor. E a fábrica, o local racional e higiênico de produção e prosperidade. Espaço educativo da construção de uma nova ética de trabalho que procurava juntar numa mesma comunidade de interesses patrões e empregados, lugar de fabricação não apenas de bens materiais, mas dos novos sujeitos para o trabalho. Agente do processo civilizatório do trabalhador, que se impunha até na vida doméstica e nas horas de lazer (LOBO, 2008, p. 235). Esse processo civilizatório do trabalhador foi reforçado pelo saber médico, que no século XX passou a intervir na inspeção sanitária. Assim, a prática disciplinar vigente deveria considerar o saneamento dos trabalhadores, uma vez que, se concebia que devido à classe social destituída de bons hábitos da qual provinham, estariam propensos a enfermidades físicas e/ou mentais (LOBO, 2008). Além disso, a medicina também interferia na higienização do local de trabalho, que, devido a condições precárias, poderia causar acidentes, incapacitando os trabalhadores. O discurso de preservação do corpo alia-se ao discurso liberal de “eficiência” proveniente do sistema industrial de produção. Nessa relação, o corpo, que antes era natural para o trabalho (escravo), passa a ser educado para o trabalho. Tal educação consistia na aquisição de hábitos, e habilidades e fazia com que o trabalhador se tornasse um eterno devedor: deveria pagar com seu trabalho tudo o que tinha direito de receber da sociedade, como atendimento médico, segurança e educação (LOBO, 2008). A problemática da fabricação do corpo trabalhador se aproxima, consequentemente, da classificação conforme os graus de ineficiência, que podem chegar ao máximo negativo, os deficientes. “Não importa para onde aponta essa deficiência (cérebro, movimentos, olhos ou - 32 - ouvidos) – é sempre o corpo ou uma parte dele que não funciona, segundo a ótica utilitarista dos corpos” (LOBO, 2008, p. 239). Corpos considerados anormais, indisciplinados e incapazes para o trabalho ganharam com o sistema de produção industrial nova serventia – fizeram surgir novas técnicas de prevenção, reprodução e recuperação da potência para o trabalho. Afinal, o novo trabalhador não era mais um corpo natural, nascido para o trabalho, como o escravo – era preciso minimamente educá-lo e sempre que possível preservá-lo ou recuperá-lo. [...] Em contrapartida, os anormais foram úteis também como fonte de admoestação para os novos dispositivos de coerção e controle social, que se refinaram a partir desses que eram considerados os refugos da livre concorrência e da seleção do mais forte. Ademais, nem sempre as novas práticas de inclusão institucional, ao lado de suas funções de controle, cumpriam sua missão de conservar, educar e recuperar os corpos para uma multidão de pobres e miseráveis: considerados fardos sociais, são, ainda hoje no Brasil, sob a “proteção” que o biopoder introduziu na racionalidade do Estado moderno, corpos descartáveis (LOBO, 2008, p. 242). Nessa linha de pensamento, a pobreza, ao ganhar um sentido moral, perde seu caráter santificado, o que fazia com que o pobre se tornasse fonte de riqueza espiritual. Segundo Lobo (2008, p. 251) a miséria, uma vez associada à vagabundagem, passou a ser objeto de uma “correção moral dos vícios da ociosidade”. Práticas de caridade de origem religiosa, que ressignificaram aquela praticada na Idade Média foram, portanto, instaladas. Isso significa que a caridade não respeitava mais da mesma forma o pobre, mas passava a assistir a ele a fim de lhe incutir valores morais (Lobo, 2008). Em linhas gerais, a caridade apenas distinguia aqueles que realmente eram inválidos para o trabalho, os indigentes e os vagabundos. Ao contrário dos vagabundos e indigentes, que eram abominados por constituírem perigo para a sociedade, os inválidos sempre recebiam o consentimento da caridade. Entretanto, não houve a preocupação em distinguir os inválidos além da classificação já conhecida: cegos, aleijados, doentes, surdos-mudos, mentecaptos e malucos. A seu modo, a caridade funcionou como outro mecanismo colonial de vigilância sobre os pobres; além de cumprir os preceitos da fé cristã, era em geral levada a efeito por entidades leigas que davam bastante prestígio a quem delas pudesse participar. Tratava-se de uma nata social que constituía as irmandades de brancos, as ordens terceiras e principalmente as Misericórdias, que obedeciam ao estatuto da pureza de sangue e eram objeto de concessões especiais do rei a seus membros, embora não fossem propriamente iniciativa do Estado (LOBO, 2008, p. 259). - 33 - A preocupação do colonizador em manter a ordem no espaço da cidade problematizou um novo objeto de saber: o urbano. Lobo (2008) explica que a cidade se tornou um campo de intervenções disciplinares de um saber científico que impunha uma ordem naturalizada aos espaços institucionais, à arquitetura do meio urbano, aos serviços públicos e à rotina privada das moradias e aos hábitos familiares. Assim, o urbano não era algo natural da cidade, mas correspondia a múltiplas relações de saber-poder nesse espaço. Desse espaço urbano surgiu a medicina do século XIX, que era ao mesmo tempo social e política. Essa prática “preparou a organização de um novo tipo de Estado, forneceulhe nova racionalidade de controle político contínuo, ao mesmo tempo coletivo e individualizado” (LOBO, 2008, p. 303-304), procedimento esse tratado por Foucault como uma atualização, desde o século XVI, com a formação do Estado, dos procedimentos de totalização da tecnologia do poder pastoral originária das instituições cristãs5. Havia, assim, no espaço urbano, a emergência de dispositivos de diferenciação, de uma ordem, com lugares demarcados, para que os sujeitos fossem devidamente distribuídos e identificados. Uma das tentativas, a seguir destacada, foi a iniciativa estatal e privada de criação de instituições de assistência aos pobres e deficientes. 1.4 O CORPO INSTITUCIONALIZADO: DA IRMANDADE ASSISTENCIALISTA DA MISERICÓRDIA À REORGANIZAÇÃO DISCIPLINAR DOS HOSPITAIS No Brasil, o movimento de instalação de instituições voltadas para a educação ou para o tratamento do sujeito deficiente foi um processo lento e em geral marcado pela emergência da divisão de saberes, vinculados por sua vez à ordem econômica, política e religiosa. De acordo com Lobo (2008), só havia correspondência entre a institucionalização dos discursos e as práticas de inclusão institucional em casos extremos. Isso significa que as internações em prisões, reformatórios e hospícios não tinham como objetivo inicial o tratamento e a recuperação efetivos, nos casos encontrados. Silva (1987) relata que antes do século XIX não é possível encontrar algo relevante em relação à assistência à população com algum tipo de deficiência. Era comum essas pessoas 5 Discutido no capítulo 3. - 34 - serem responsabilidade da própria família. Em geral, os sujeitos então denominados loucos, mentecaptos e defeituosos eram confiados à família e podiam andar livremente pelas ruas. Entretanto, se perturbassem a ordem pública eram recolhidos às Santas Casas ou às prisões. As famílias mais abastadas mantinham esses sujeitos dentro de casa, em muitos casos em recintos fechados (LOBO, 2008). As referidas Santas Casas de Misericórdia, de tendência europeia, parecem ter sido, no século XVI, importante contribuição para a concretização e ampliação do atendimento clínico e pedagógico três séculos mais tarde, no Brasil. Lobo (2008) destaca que durante séculos essas casas mantiveram a mesma organização interna e se expandiram por todo o território nacional devido à urgência de controle da população pobre, que se constituía gradativamente como problema social. A estudiosa acrescenta que a caridade exercida pela Irmandade da Misericórdia se caracterizou por um misto de funções “pedagógicas, morais, religiosas, repressivas, médicas e assistenciais”. É verdade que as primeiras irmandades foram muitas vezes fundadas para abrigar marinheiros náufragos e doentes e que certos objetivos de controle não se exerceram desde o início. Mas a constituição de quadros – preenchidos pelas elites -, a proeminência que ostentavam publicamente, o poder que exerciam pela ajuda aos necessitados e a moralização dos costumes, com a construção dos recolhimentos e as doações de dotes para moças órfãs evitando que a pobreza as empurrasse para a prostituição, foram práticas de controle que se disseminaram com a preocupação religiosa de salvação das almas (LOBO, 2008, p. 282). O pertencimento a uma Irmandade de Misericórdia demonstrava, segundo Lobo (2008), alta dignidade. O ingresso à irmandade, que estava condicionado ao estatuto da pureza de sangue (não poderiam ser descendentes de outra raça senão a branca, nem serem judeus ou mouros), garantia-lhes possibilidade de ascensão social, privilégios e, em alguns casos, empréstimos para empreendimentos particulares. Por outro lado, a irmandade, apesar do prestígio de seus participantes, precisava ser pobre para receber esmolas. Nessa lógica, a aparência e a ostentação do poder, em grandes festas religiosas ou em missas especiais da irmandade, tinham como pretexto a salvação das almas, e poderiam ser mais atrativos do que o tratamento dos doentes (Lobo, 2008). Não havia nessa época, portanto, a preocupação com a escolarização ou com o atendimento especializado aos doentes. - 35 - Nessas entidades, foi adotado um sistema de proteção à criança abandonada denominado “Roda dos Expostos”. Figueira (2008) explica que esse dispositivo, copiado da Europa, era utilizado por mães que queriam abandonar seus bebês, provavelmente com algum tipo de deformidade. O sistema giratório instalado no muro ou na janela da instituição impossibilitava a identificação da mãe. As crianças cresciam em orfanatos ou conventos e eram vistas como elementos marginais à sociedade. As Santas Casas de Misericórdia, embora importantes historicamente para impulsionar a formação de instituições de assistência às pessoas com deficiência, não resolvia o problema. Isso porque, conforme relata Lobo (2008), a situação era lastimável. Apoiando-se em teses e documentos, a estudiosa comenta a situação precária do espaço físico dos hospitais, além da exposição dos loucos como objeto de divertimento e alvo de insultos pelos visitantes. Tal fato lembra a situação de exposição dos anormais em feiras e circos, no discurso de monstruosidade do corpo deficiente6. Com a independência do país e o consequente bloqueio da influência científica de Coimbra, o contato dos jovens estudantes ricos com outros países, como França, Alemanha e Áustria provocou avanços na área tecnológica e cultural. Foi nesse período de ânsia de modernização que Silva (1897) destaca a criação de três organizações. A primeira delas, por iniciativa de Dom Pedro II, foi o Imperial Instituto dos Meninos Cegos. Um dos fatos relevantes que envolveu a criação desse instituto é a iniciativa de José Álvares de Azevedo em comunicar aos brasileiros cegos o que aprendera no Institute dês Jeunes Aveugles de Paris. O doutor Xavier Sigaud, médico da família imperial, comentou com o Imperador os progressos de sua filha com os trabalhos de Azevedo. Dom Pedro II, apoiando a causa, mandou organizar o instituto. O Imperador também encomendou os primeiros livros de escrita pelo método Braille, os primeiros em uma língua que não a francesa. Outra organização importante foi o Instituto dos Surdos-Mudos, mais tarde conhecido como Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES. Basicamente, o estabelecimento objetivava a educação literária e o ensino profissionalizante para garotos surdos-mudos. Silva (1987) ressalta que nesse instituto eram admitidos alunos apenas do sexo masculino, entre 7 e 14 anos. Os meninos não pagavam qualquer tipo de contribuição e viviam em regime de internato, sem qualquer distinção de instalação ou de tratamento entre garotos ricos e pobres. 6 Cf. item 1.2.1 deste capítulo. - 36 - A terceira organização relatada por Silva (1987) é o Asilo dos Inválidos da Pátria. Destinado ao abrigo dos soldados brasileiros mutilados em guerra ou em operações militares, a criação dessa organização não só estava ligada ao sentimento de caridade pelos jovens soldados inutilizados mas também poderia garantir ao Brasil indícios de civilização no estilo europeu, já que havia inúmeras organizações similares em outros países. Obrigados a colaborar no aspecto financeiro do Asilo, os soldados, oficiais e cadetes mutilados eram pobres e não tinham chance de receber da sociedade brasileira do final do século XIX mais do que compaixão. Embora pobres e infelizes, à pátria restava recebê-los com solenidade, como heróis, e amenizar seus dias para viverem em paz. Mais tarde, entre a segunda metade do século XIX e meados do século XX, vários hospitais vinculados às comunidades estrangeiras foram criados a fim de resolver a superlotação das Casas de Misericórdia. Entretanto, Figueira (2008) destaca que esses hospitais eram de certa forma elitizados. Logo, as pessoas com deficiência, na sua maioria provenientes das classes pobres, raramente tinham acesso a eles. Assim, a partir desse quadro geral, é possível confirmar a tese de Foucault segundo a qual antes do século XVIII, o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres. Instituição de assistência, como também de separação e exclusão. O pobre como pobre tem necessidade de assistência e, como doente, portador de doença e de possível contágio, é perigoso. Por estas razões, o hospital deve estar presente tanto para recolhê-lo quanto para proteger os outros do perigo que ele encarna. O personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e os últimos sacramentos (FOUCAULT, 2007b, p. 101). Com a abertura dos portos à navegação internacional, em 1808, foi necessário importar a mão de obra do imigrante, fato que colaborou para a chegada de doenças ao país. A fim de resolver a superlotação das Casas de Misericórdia, o Imperador Dom Pedro II mandou construir, em 1841, um hospital na praia de Santa Luzia, que inspirou a criação de vários outros hospitais vinculados a comunidades estrangeiras. Esses hospitais se desenvolveram em maior número em São Paulo e no Sul do país, o que estimulou a vinda de milhares de imigrantes. Entretanto, Figueira explica que, - 37 - de certa forma, eram hospitais elitizados. A população de pessoas com deficiências – na sua maioria oriunda da classe mais pobre -, raramente tinha acesso a eles. Para essa população e para a grande parte da população brasileira, surgiram os hospitais públicos de bom porte, oriundos das grandes campanhas sanitaristas promovidas pelo Estado, principalmente no Rio de Janeiro, a capital (FIGUEIRA, 2008, p. 70). Fato importante, que parece indicar a produção de saberes pelo saber médico em instituições hospitalares no Brasil é a incorporação a elas da Faculdade de Medicina, que transformou as instituições hospitalares em hospitais-escola (FIGUEIRA, 2008). É possível dizer que esses hospitais-escola tiveram grande contribuição para o desenvolvimento de tratamentos e novas técnicas, que visavam principalmente à reabilitação de pessoas com deficiências. Uma das condições de emergência desse discurso no plano governamental pode ser atribuído ao plano econômico, visto o alto custo de manutenção das pessoas com deficiência, que, por se isolarem da sociedade, não podiam oferecer o retorno desse “investimento”. A reabilitação era vista, portanto, como instrumento de equilíbrio social. Segundo Lobo (2008), na esfera discursiva da reabilitação, em meados do século XIX passavam a se entrelaçar saberes médicos e pedagógicos, o que indicava a possibilidade econômica de separar os anormais nas escolas primárias. Um dos argumentos utilizados para tal fim era a racionalização do aproveitamento dos normais. Isso significa que o tempo dispensado àqueles considerados defasados intelectualmente atrasava o rendimento dos que eram capazes de progredir. Outro argumento centrava-se no perigo e no fardo social, já que o anormal representava dependência à família e aos poderes públicos, além de requererem vigilância constante. Em terceiro lugar destaca-se o desperdício econômico, visto os investimentos disciplinares que os governos eram obrigados a oferecer, sem poder esperar retorno, bem como a redução da produção da família do “anormal”, que vivia em sua função, conforme o panorama já explicitado na visão utilitarista do corpo. O crescimento industrial e a reurbanização de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo tornaram mais patente a questão econômica como assunto do Estado e a consequência de sua participação: para quem eram dirigidos os gastos, estes deveriam ser devolvidos com aumento da produção. Seleção e hierarquização de trabalhadores conforme sua eficiência do sistema de ensino. As vertentes da economia dos gastos e dos controles tornaram-se então mais visíveis pela apropriação por parte do Estado dos argumentos de médicos e pedagogos (LOBO, 2008, p. 390).7 7 As práticas de exclusão dos anormais da escola, sejam eles intelectuais ou “completos” (LOBO, 2008, p. 390), na fase de expansão econômica do país, indicam a possibilidade de se questionar o movimento inclusivo escolar na contemporaneidade. Se naquele período as crianças foram retiradas dos bancos escolares, supõe-se - 38 - Lobo comenta que, a partir dessa perspectiva, as separações institucionalizadas deixaram de atuar, pela fixação dos indivíduos em espaços segregados, justificando-se isso pela necessidade de recuperação e a pela integração daqueles caracterizados como anormais à sociedade. Por outro lado, a prática integrativa se deu com mais sucesso no âmbito do discurso, já que sem ter como esses sujeitos pagarem sua dívida social, permaneciam nas instituições, funcionando isso como uma antinorma para a sociedade (LOBO, 2008). Segregados ou não, esses sujeitos, como se fossem bens, habitavam espaços reservados pelos saberes que idealizavam a integração. Portanto, diante do que foi dito sobre os dispositivos institucionais de separação das pessoas com alguma deficiência, Lobo faz uma importante consideração: Num sentido geral, os dispositivos de institucionalização, como práticas discursivas e não-discursivas, funcionam como um mecanismo de separação dos indivíduos, empregando cada um tecnologias próprias de sujeição. Dispositivos discursivos dispõem do conjunto de saberes de uma época que, articulados a objetivos de poder, produzem uma racionalidade aos objetos que constroem. Assim, por exemplo, a psiquiatria, apropriando-se do saber popular, das filosofias do Iluminismo, da medicina clínica e dos conteúdos morais da religião, centrou-se no doente mental, ao mesmo tampo que garantiu a competência exclusiva de poder falar sobre ele – um novo objeto de sujeição para um novo sujeito do saber. Por seu turno, dispositivos nãodiscursivos instrumentam os saberes e seus novos objetos na forma geral das instituições (escola, hospício, prisão etc.), materializadas na fundação dos estabelecimentos com seus regimentos, na distribuição arquitetônica do espaço, na regulação do tempo, dos movimentos, das necessidades de seus habitantes (LOBO, 2008, p. 392). A estudiosa ainda discute que nessas práticas discursivas e não-discursivas é possível se observar a estratégia normalizadora. É a norma que age nos intervalos da lei, de forma a criar padrões, ordenando assim os corpos, ao mesmo tempo em que diversifica comportamentos (LOBO, 2008). É ela que, no desenho histórico de cada época e em circunstâncias pontuais, permite a (in)visibilidade do corpo deficiente em seu processo de institucionalização, o que caracteriza, ao mesmo tempo, mecanismos de disciplinarização – por meio da distribuição dos corpos no espaço físico da instituição – e de regulamentação, uma vez que se apropria de saberes para exercer o poder sobre os sujeitos, a fim de garantir a segurança da população e de quem a governa. que elas já estavam inseridas nesse contexto. Ao tentar incluí-las neste universo novamente, na contemporaneidade, todos os esforços inclusivos não estariam sendo uma regressão? Não se estaria caminhando para/praticando novamente práticas exclusivas? - 39 - Dito isso, aproxima-se a definição do termo “institucionalização” como a produção histórica das instituições, “que, uma vez constituídas, produzem e reproduzem relações de força (dominação, luta e resistência) que as engendram em determinada época e que se instrumentam nos estabelecimentos e nos dispositivos de poder que as mantêm” (LOBO, 2008, p. 345). Fundamentando-se na perspectiva foucaultiana, a estudiosa considera que, nesse caso, o processo de institucionalização é sustentado tanto pelas práticas discursivas de separação quanto pela validação de saberes que promovem o verdadeiro de uma época. 1.5 DA MONSTRUOSIDADE À NORMALIZAÇÃO DO CORPO DEFICIENTE: A (DES)CONSTRUÇÃO DOS EFEITOS TERATOLÓGICOS A tentativa de lançar um olhar arqueogenealógico8 para a história do corpo com deficiência, especialmente do século XVIII ao XX, proporcionou a categorização de três perspectivas: a monstruosidade, o perigo e a instituição. Ao acionarem dispositivos (não)discursivos, tais categorias se entrecruzam, ultrapassam seus limites iniciais, e por meio de suas práticas constituem a identidade / história do sujeito com deficiência. A partir do panorama construído é possível verificar que o saber-poder médico, nos séculos XVIII e XIX, período que privilegiou a anatomia patológica, fundamentou a canalização racional da curiosidade pelo diferente. Marcada pela soberania do olhar, a medicina observou racionalmente o corpo monstruoso, e, tomando-o como objeto da ciência, possibilitou sua humanização. Na perspectiva utilitarista do corpo, que no Brasil esteve associada tanto à naturalização do corpo escravo para o trabalho quanto à posterior necessidade de fabricação de corpos trabalhadores, o saber-poder médico esteve aliado ao discurso de preservação do corpo. A tentativa de higienização do local de trabalho e a consequente preservação do corpo do trabalhador se associaram ao discurso liberal de eficiência, no qual se garantia o potencial produtivo do corpo a fim de retribuir os recursos oferecidos pelo Estado. A lógica dos mecanismos de institucionalização do corpo deficiente, por sua vez, centrou-se, sobretudo na reorganização da instituição-hospital, que, por intermédio da 8 Dispensar um olhar arqueogenealógico significa depreender uma investigação acerca da constituição dos saberes sobre o corpo e suas deficiências, e a importância do(s) poder(es) para tal constituição. Essa estratégia de análise, baseada nos estudos foucaultianos, será mais bem explicitada no capítulo 3. - 40 - tecnologia disciplinar deixou de ser uma simples composição arquitetônica e assistencialista para individualizar, vigiar e registrar o quadro clínico do doente. Aos poucos, a segregação dos sujeitos em instituições passou a buscar, ao menos no nível discursivo, a recuperação e a integração desses corpos à sociedade. Verifica-se que, por suas transformações, o domínio da medicina constitui-se em diferentes tipos históricos, devido às rupturas na relação entre sua linguagem específica e seu objeto. Para que a experiência clínica rompesse com a investigação naturalista da medicina classificatória clássica foram necessários, segundo Foucault (2008a, p. 216), a reorganização do campo hospitalar, um novo estatuto do doente na sociedade, além da adequação da linguagem em um domínio entre o visível e o enunciável. Cronologicamente, foi a medicina classificatória clássica que precedeu o método anatomoclínico e possibilitou sua existência. Nesse domínio, que visou fundamentalmente à organização das doenças para que fossem aprendidas e memorizadas, o olhar médico dirigiuse aos signos que legitimam ou diferenciam uma doença da outra. O corpo concreto do doente é, nesse campo, um fato exterior àquilo que o faz sofrer, o que configura a estranha característica do olhar médico; ele é tomado em uma espiral indefinida: dirige-se ao que há de visível na doença, mas a partir do doente, que oculta este visível, mostrando-o; consequentemente, para conhecer, ele deve reconhecer. E esse olhar, progredindo, recua, visto que só atinge a verdade da doença, deixando-a vencê-lo, esquivando-se e permitindo ao próprio mal realizar, em seus fenômenos, sua natureza (FOUCAULT, 2008a, p. 8-9). No fim do século XVIII, a partir do olhar vigilante provocado pela reclusão, instaurouse uma ruptura no campo médico/hospitalar, com o nascimento da clínica. A ruptura que inaugura a medicina moderna é a mudança das formas de visibilidade do corpo. Isso significa que a medicina moderna, por meio da autópsia, tornou a invisibilidade dos sintomas em visibilidade das alterações nos órgãos humanos afetados por alguma doença (FOUCAULT, 2008a). Passar pela condição de morte foi a condição de existência do discurso médico sobre seu objeto. A partir dessa condição, a medicina envolveria também conhecimentos sobre o homem saudável, não doente, o que produziria uma positividade. Esta longa citação de Foucault resumirá sua exposição sobre o saber médico: - 41 - É importante determinar como e de que maneira as diversas formas do saber médico se referem às noções positivas de “saúde” e de “normalidade”. De um modo geral, pode-se dizer que até o final do século XVIII a medicina referiu-se muito mais à saúde do que à normalidade; não se apoiava na análise de um funcionamento “regular” do organismo para procurar onde se desviou, o que lhe causa distúrbio, como se pode restabelecê-lo; referia-se mais a qualidades de vigor, flexibilidade e fluidez que a doença faria perder e que se deveria restaurar. A prática médica podia, desse modo, conceder grande destaque ao regime, à dialética; em suma, a toda uma regra de vida e de alimentação que o indivíduo se impunha a si mesmo. Nessa relação privilegiada da medicina com a saúde se encontrava inscrita a possibilidade de ser médico de si mesmo. A medicina do século XIX regula-se mais, em compensação, pela normalidade do que pela saúde; é em relação a um tipo de funcionamento ou de estrutura orgânica que ela forma seus conceitos e prescreve suas intervenções; e o conhecimento fisiológico, outrora saber marginal para o médico, e puramente teórico, vai se instalar (Claude Bernard é testemunha) no âmago de toda reflexão médica. Mais ainda: o prestígio das ciências da vida, no século XIX, o papel de modelo que desempenharam, sobretudo nas ciências do homem, está ligado originariamente não ao caráter compreensivo e transferível dos conceitos biológicos, mas ao fato de que esses conceitos estavam dispostos em um espaço cuja estrutura profunda respondia à oposição entre o sadio e o mórbido. Quando se falar da vida dos grupos e das sociedades, da vida da raça, ou mesmo da “vida psicológica”, não se pensará apenas na estrutura interna do ser organizado, mas na bipolaridade médica do normal e do patológico. A consciência vive, na medida em que pode ser alterada, amputada, afastada de seu curso, paralisada; as sociedades vivem, na medida em que existem algumas, doentes, que se estiolam, e outras, sadias, em plena expansão; a raça é um ser vivo que degenera; como também as civilizações, de que tantas vezes se pôde constatar a morte. Se as ciências do homem apareceram no prolongamento das ciências da vida, é talvez porque estavam biologicamente fundadas, mas é também porque o estavam medicamente: sem dúvida por transferência, importação e, muitas vezes, metáfora, as ciências do homem utilizaram conceitos formados pelos biólogos; mas o objeto que eles se davam (o homem, suas condutas, suas realizações individuais e sociais) constituía, portanto, um campo dividido segundo o princípio do normal e do patológico. Daí o caráter singular das ciências do homem, impossíveis de separar da negatividade em que apareceram, mas também ligadas à positividade que situam, implicitamente, como norma (FOUCAULT, 2008a, p.38-39). Faz-se oportuno trazer para esta discussão as reflexões de Georges Canguilhem (1995), que propõem um viés filosófico aos métodos e técnicas da medicina, para que os fenômenos patológicos humanos fossem mais bem compreendidos. Para o estudioso a medicina seria, mais do que uma ciência, uma técnica situada no entrecruzamento de várias ciências. Ocorre com a medicina o mesmo que com todas as técnicas. É uma atividade que tem raízes no esforço espontâneo do ser vivo para dominar o meio e - 42 - organizá-lo segundo seus valores de ser vivo. É nesse esforço espontâneo que a medicina encontra seu sentido, mesmo não tendo encontrado, antes, toda a lucidez crítica que a tornaria infalível. Eis porque, sem ser ela própria uma ciência, a medicina utiliza os resultados de todas as ciências a serviço das normas da vida (CANGUILHEM, 1995, p. 188-189). Em resumo, a vida, nessa concepção, desempenha o papel de norma, visto que para continuar a viver é preciso lutar contra a doença ou contra a anomalia 9. O questionamento proposto por Canguilhem consiste, por outro lado, em considerar que “o patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida”. Isso significa que a anomalia exprime outras normas de vida possíveis. O que determina a patologia é a situação, já que aquilo que é normal em algumas condições pode se tornar patológico em outras. Portanto, devemos dizer que o estado patológico ou anormal não é consequência da ausência de qualquer norma. A doença é ainda uma norma de vida, mas é uma norma inferior, no sentido de que não tolera nenhum desvio das condições em que é válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ser vivo doente está normalizado em condições bem definidas, e perdeu a capacidade normativa, a capacidade de instituir normas diferentes em condições diferentes (CANGUILHEM, 1995, p. 146). A pessoa doente ou portadora de uma anomalia estaria, assim, submetida apenas às situações que sabem dominar, já que admitem apenas uma norma. O doente é considerado anormal não pela ausência de norma, mas por sua incapacidade de ser normativo (CANGUILHEM, 2008). No entanto, se essa questão for transposta para a prática midiática atual, verifica-se que há um deslocamento na posição normativa ocupada pelas pessoas com deficiência, como nas imagens abaixo, que fazem parte de uma sequência narrativa de uma cobrança de tiro penal que compõe uma vinheta televisiva, veiculada na Rede Globo de Televisão em 2007 (Figuras 4 e 5). 9 Para diferenciar esses dois termos considera-se, em linhas gerais, que a doença interrompe algo; logo, a pessoa é doente não só em relação aos outros, mas a si mesma, já que sustenta um sentimento de impotência e de vida contrariada. Já a anomalia é constitucional, ou seja, o portador não pode ser comparado a si mesmo. (CANGUILHEM, 2008, p. 107) - 43 - Figura 4 - Vinheta Televisiva (Cena 1) Figura 5 - Vinheta Televisiva (Cena 2) A primeira cena recortada compõe-se de dois planos. A cabeça de um menino, que está de costas, ocupa o primeiro plano. Como plano de fundo, exibe-se a imagem de uma trave e de um goleiro, que tenta se posicionar para fazer a defesa de um provável lance a gol. A partir da representação desses elementos e de sua articulação com a cena anterior, não explicitada nesse momento, percebe-se que se trata de uma cobrança de tiro penal, conhecido popularmente como pênalti ou penalidade máxima, em um jogo de futebol. A outra cena recortada refere-se ao momento em que a identidade da pessoa com deficiência é revelada, assim que a cobrança é efetuada. O jogo entre anormalidade e normalidade surpreende, na medida em que a memória discursiva10 que constitui esse sujeito não lhe atribui as capacidades de locomoção, agilidade, perspicácia motora, intelectual e força muscular. Tais categorias são ressignificadas, visto que o esperado é que fossem desempenhadas por sujeitos “normais” (aqueles que se enquadram no discurso da saúde). 10 A noção de memória discursiva foi problematizada no campo da Análise do Discurso por Courtine (2009, p. 105). Para o estudioso esse termo corresponde à existência histórica dos enunciados, ou seja, tudo o que já foi dito e esquecido e que sustentam a possibilidade de outras formulações. Este conceito será contemplado no capítulo 3. - 44 - Assim sendo, configura-se nessa cena um exemplo de deslocamento da posição espacial ocupada por pessoas com deficiência. Isso significa que elas parecem estar saindo da posição cômoda da norma de seu grupo para se inserir em outras normas, no caso da propaganda, no campo esportivo. O sujeito com deficiência se torna, nesse momento, capaz de realizar tarefas impostas por outras situações normativas. Uma vez reconhecido que a doença é um tipo de norma biológica, o estado patológico deve ser considerado como anormal apenas em relação a uma situação determinada. Da mesma forma, ser normal e ser sadio não são situações equivalentes, já que o patológico também pode ser considerado normal. “Ser sadio significa não apenas ser normal numa situação determinada, mas ser normativo nessa situação e em outras situações eventuais” (CANGUILHEM, 1995, p. 158). Para Canguilhem (1995), o conceito de “normal” implica uma categoria do imaginário popular que se naturalizou na língua do povo a partir de vocabulários específicos da instituição pedagógica e da instituição sanitária. No que diz respeito à França, o estudioso revela que a reforma dessas duas instituições coincidiram, sob a ação da Revolução Francesa. Normal é o termo pelo qual o século XIX iria designar o protótipo escolar e o estado de saúde orgânica. A reforma da medicina como teoria se baseia, por sua vez, na reforma da medicina como prática: está intimamente ligada, na França, assim como também na Áustria, à reforma hospitalar. Tanto a reforma hospitalar como a reforma pedagógica exprimem uma exigência de racionalização que se manifesta também na política, como se manifesta na economia, sob a influência de um maquinismo industrial nascente que levará, enfim, ao se que chama, desde então, normalização (CANGUILHEM, 1995, p. 209-210). Atualmente o termo “normal” é recorrente em vários enunciados, constituídos pelo slogan “Ser diferente é normal”. Criado pela agência de publicidade GiovanniFCB, passou a ser utilizado com a sua respectiva logomarca (Figura 6) pelo Instituto Meta Social11, em 2003, em várias campanhas veiculadas na mídia. 11 O Instituto MetaSocial é uma instituição sem fins lucrativos, que há mais de 15 anos desenvolve ações junto à mídia a fim de promover a inclusão social (Disponível em: <http://www.metasocial.org.br/index.php>). - 45 - Figura 6 - Slogan “Ser diferente é normal” (2003) A estrutura da frase pode ser assim assimilada: Sujeito Verbo de ligação Predicativo do sujeito Ser diferente é normal Segundo Cunha (2001), o verbo de ligação não traz propriamente uma ideia nova ao sujeito, mas sua função é unir duas palavras ou expressões de caráter nominal: evoca um estado, uma atitude, uma qualidade ou uma condição do sujeito. Logo, o sentido, pela escolha do verbo de ligação ser no enunciado “Ser diferente é normal” é o estado de permanência e estabilidade que possibilita o efeito de normalidade em casos de deficiência, bem como uma relação de igualdade entre os termos. Associada ao plano imagético, o “diferente” é representado pela menina com Síndrome de Down, o que provoca uma ligação direta entre a normalidade e as deficiências mentais, físicas e sensoriais, possibilitando algumas relações parafrásticas 12: 12 As relações parafrásticas estão em consonância com o processo que Pêcheux denomina de Esquecimento n o 2, no qual o sujeito-falante seleciona em uma formação discursiva formas e sequências que se encontram numa relação de paráfrase. Segundo o estudioso, esse processo significa “escolher” “um enunciado, forma ou sequência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulá-lo na formação discursiva considerada” (PÊCHEUX, 1998, p.178, grifo do autor). - 46 - Sujeito Verbo de ligação Predicativo do sujeito Ser diferente é normal O sujeito com Síndrome de Down é é normal O sujeito com deficiência é normal Nesse quadro, é possível destacar que essa condição atribuída aos sujeitos, por meio do verbo de ligação “ser”, carrega uma relação polêmica com o sujeito do discurso. Isso porque há um atravessamento do Outro do discurso, ou seja, aquele que diz que o sujeito com deficiência não é normal. Entretanto, esse Outro está silenciado o que produz um efeito de verdade pautado nos moldes inclusivos veiculados atualmente na contemporaneidade. Na capa da revista Época (Figura 7) é possível observar tanto a desvinculação do enunciado com a logomarca do Instituto quanto sua reformulação no plano linguístico e sua caracterização visual, com o desenho e a coloração das letras. A inversão pode ser assim visualizada: Sujeito Verbo de ligação Predicativo do sujeito Normal é ser diferente O estado “normal” passa a ser o sujeito da frase, e a diferença passa a ser uma condição da normalidade. A organização do enunciado, dessa forma, está inserida no discurso da diversidade humana, que promove o reconhecimento das diferenças inerentes aos seres humanos para que esses possam se valorizar e conviver coletivamente. Figura 7 - Capa da Revista Época, edição 435, de 18 de setembro de 2006 - 47 - Por conseguinte, normalizar é, pois, uma necessidade cultural/social que impõe uma exigência à existência. Segundo Canguilhem (1995), é um termo polêmico que compara o real com valores, qualificando negativamente tudo o que não cabe em sua extensão, embora dependa de sua compreensão. A partir de possibilidade econômica e política vantajosa, campos de saber/poder passaram a dizer “sim” à capacidade das pessoas com deficiência e utilizaram-se do poder jurídico para permitir a participação delas em diversos campos sociais, o que torna essas pessoas penetráveis pelas estratégias disciplinares e regulamentadoras. Tal estratégia movimenta o projeto inclusivo e faz com que os sujeitos que dela participam avaliem a sua capacidade e seu desejo de exercício de poder garantido pela lei. Entretanto, esse mecanismo causa o efeito de ilusão de se ser um sujeito livre, não assujeitado. Nesse processo, é possível afirmar que o sujeito tem acesso a si a partir de saberes que são sustentados por técnicas: o homem produz por meio de técnicas de produção, comunica-se por meio de técnicas do sistema simbólico, conduz o governo de si e dos outros por meio de técnicas de relações de poder e estabelece técnicas para olhar para si mesmo (SARGENTINI, 2004, p. 93). Na contemporaneidade, a ideia de integração e humanização suscitada pelo saber científico manifesta-se no discurso sobre a “inclusão”, termo polêmico e importante para o movimento discursivo em torno da pessoa com deficiência, em todos os campos sociais. A inclusão é entendida como fundamento do modelo social de deficiência que faz parte de um complexo conjunto de condições criadas pelo contexto social. Entende-se que a base do paradigma inclusivista é, portanto, a crença na sociedade para todos; não cabe somente aos indivíduos com deficiência se integrar à sociedade, é preciso que ela também se transforme para acolher todos os seus cidadãos. A inclusão é, portanto, uma proposta de construção de cidadania, e a sociedade inclusiva envolve todos os segmentos sociais, ao transformar um modo de ser, pensar e agir. Fica claro, consequentemente, que a inclusão social é um processo de mão-dupla, ou seja, tanto a pessoa com deficiência como a sociedade precisam se modificar. (BARTALOTTI, 2006, p. 23-24) Nota-se que a atualização semântica confirma a hipótese de Canguilhem (1995), que afirma que a linguagem é a condição do movimento do pensamento científico. A palavra tem o poder de deslocar o conceito de um domínio ao outro, de uma ciência para outra. No - 48 - discurso inclusivo atual, denominar pessoas com deficiência como “inválidos”, “incapacitados” ou “excepcionais” não corresponde à esfera da prática inclusiva vigente nos últimos anos, que prefere o uso da expressão “pessoas com deficiência”. Avançando um pouco mais nessa questão, consideramos que essas expressões já existem na língua; entretanto, são utilizadas em uma determinada condição de produção formando outros sentidos, que participam da tentativa de produzir um efeito de verdade que corresponda aos princípios inclusivos. A emergência do discurso inclusivo, entretanto, pode ser encontrada materializada não só na língua, mas também na imagem fixa ou na efêmera, que surgem problematizando o presente e construindo novos saberes sobre o sujeito com deficiência. Consequentemente, carregam uma memória que afeta o modo como o sujeito constrói as significações em uma determinada situação discursiva e como sua identidade é construída. Nesse processo, a deficiência não é identificada apenas pelo corpo, mas esse sujeito passa a ser identificado por símbolos distribuídos em espaços específicos, que podem, assim, ser ressignificados. O corpo é, portanto, superfície que possibilita o exercício do poder, suporte e produtor de imagens, ou seja, materialidade discursiva que produz identidades. É através dele que se exerce o dispositivo da inclusão. 2 IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO NA MÍDIA TELEVISIVA: POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS EM TELA Você pergunta sobre o papel dos meios de comunicação na produção das identidades atuais. Eu preferiria dizer que a mídia fornece a matéria bruta que seus leitores/espectadores usam para enfrentar a ambivalência de sua posição social (BAUMAN, 2005, p. 104). Conforme exposto no capítulo 1, verdades sobre o corpo deficiente foram construídas a partir de regimes de (in)visibilidade específicos. Motivadas pelo progresso da ciência e pelo engajamento de vários setores da sociedade em prol do bem-estar comum, várias ações mundiais e locais foram desenvolvidas, a fim de promover a inclusão e a acessibilidade das pessoas com deficiência em diversos campos sociais. Tais apontamentos indicam a necessidade de se discutir a existência de novas dinâmicas que influenciaram a arte de governar a população em uma sociedade que reflete sua insegurança, a transitoriedade e a diversidade dos sujeitos e de suas identidades. As rápidas e constantes mudanças nas ordens socioculturais e político-econômicas provocadas pela globalização produzem diferentes posições de sujeito, ou seja, diferentes identidades para os sujeitos (HALL, 2006). Ao assumir essas diferentes identidades, em diferentes circunstâncias, o sujeito se constitui historicamente, e não apenas biologicamente, emergindo assim a concepção social do sujeito. A pluralidade de identidades como uma consequência da globalização provoca inquietações na medida em que é articulada pela mídia, cujos efeitos podem apagar, transformar ou promover tais identidades, especialmente as da pessoa com deficiência. Com base nessas afirmações, objetivamos expor alguns princípios teóricos sobre o funcionamento discursivo da mídia televisiva, articulando-os com os das políticas públicas de inclusão. Essa reflexão complementa a consideração destacada no capítulo anterior de que os enunciados articulam elementos discursivos resgatados e ressignificados da memória social, histórica e mítica para compor a normalidade do sujeito com deficiência, no sentido de que se exige uma transformação global e imediata dos processos de socialização, e não mera aceitação de direitos para que esse sujeito possa desfrutar das condições de cidadania. - 50 - 2.1 A EMERGÊNCIA DOS DISCURSOS INCLUSIVOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Segundo Silva (1987), a ampliação de serviços de assistência à pessoa com deficiência durante o século XX se deve não só ao progresso da ciência e à sua aplicação em diversos campos, mas ao engajamento de vários setores da sociedade em prol do bem-estar comum. O humanismo filosófico e o mundo comercial e industrial são alguns dos dispositivos que chamaram a atenção para o grupo marginalizado das pessoas com deficiência, bem como colaboraram para a implantação de melhores condições de vida para que o homem pudesse progredir. No início do século XX começavam a se firmar empreendimentos voltados para a assistência das pessoas com deficiência, que chegariam ao esquema de reabilitação, sobretudo depois da primeira Grande Guerra1. O período pós-guerra, além de causar mudança de sensibilidade diante do corpo monstruoso, estimulou programas de reabilitação, possibilitando serviços gratuitos para as pessoas que portavam deficiências devido à atividade militar. Silva (1987) cita o exemplo da França, que garantia legalmente para a pessoa “incapacitada” fisicamente a inscrição gratuita em uma escola profissionalizante para que pudesse ser recolocada no mercado de trabalho, além de cuidados médicos, aparelhos ortopédicos e cadeiras de rodas, tudo isso gratuitamente. Silva (1987) ressalta que os estudiosos do movimento de reabilitação provocaram, no início do século XX, “um intercâmbio de informações e de sugestões entre todos os que se interessavam pelo problema, estabelecendo uma espécie de organização internacional de caráter informal.” Havia, assim, a necessidade de organizações não-governamentais voltadas para a problemática da reintegração da pessoa com deficiência na sociedade 2. Em âmbito mundial, apesar das iniciativas de compensação dos trabalhadores, a retração econômica nos Estados Unidos, na década de 1930, constituiu-se num período difícil para as pessoas com deficiência. Silva comenta que nesse período todos os progressos até então feitos para empregar adequadamente as pessoas deficientes acabaram caindo a quase zero. A enorme avalanche de desempregados que não tinham qualquer deficiência, cujas necessidades de 1 2 Cf. Capítulo 1, item 1.2.1 O monstro: a curiosidade pelo bizarro. A mais antiga delas foi criada na Escandinávia, no início do século, a Sociedade Escandinava de Ajuda a Deficientes, que congregava entidades que atendia esse público na Suécia, na Noruega e na Dinamarca. - 51 - emprego pareciam à primeira vista mais urgentes do que aquelas das pessoas deficientes que sempre haviam sido consideradas como objeto de caridade e comiseração e não tanto como potencial humano sério a ser considerado para o mercado de trabalho, fez com que o valor de seu trabalho fosse subestimado (SILVA, 1987, p. 309). Ao ser deflagrada a Segunda Guerra Mundial, as pessoas deficientes, especialmente os soldados vítimas da primeira guerra, atraíram novamente a atenção do mundo. Durante a Guerra, tanto mulheres quanto deficientes ocuparam as vagas, nas indústrias, daqueles que se incorporaram às forças armadas. O movimento de incentivo à reabilitação ganhou força com o fim da II Guerra, e a sua compreensão suscitou a conscientização da necessidade de programas mais amplos, que dessem assistência não só às pessoas com deficiência física mas também sensorial e mental. Silva (1987) enfatiza que um dos fatores mais significativos dessa proposta foi o envolvimento de organizações internacionais, comandadas pela Organização das Nações Unidas, entre elas o Fundo de Emergência das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização das Nações Unidas para Refugiados e a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Tais organizações desenvolveram um contínuo e silencioso trabalho a fim de que a reabilitação chegasse à maioria dos países do mundo. Algumas dessas iniciativas, compreendidas apenas no período de 1964 a 1966, citadas por Silva (1987), são: Envio de técnicos em reabilitação para 22 países em desenvolvimento. Apesar da curta duração, essas missões proporcionaram o desenvolvimento de pesquisas iniciais e instigaram a tomada de posição dos governos em face da problemática das pessoas com deficiência. Concessão de bolsas de treinamento, estudos e participação de profissionais em seminários internacionais. Organização de cursos, viagens de estudos e seminários internacionais, entre eles o Seminário Internacional das Nações Unidas sobre Próteses para Pessoas Deficientes, em Copenhague, em 1964, e o Seminário Internacional das Nações Unidas sobre Administração de Programas e de Importantes Serviços de Reabilitação em países em Desenvolvimento, em Copenhague, em 1966. - 52 - A ONU também tentou transferir a tecnologia de reabilitação dos países mais evoluídos para aqueles menos desenvolvidos, pela preparação e pela distribuição de bibliografia relevante, como relatórios de missões e, sobretudo, estudos especiais. Outra estratégia importante, que contava de modo especial com a participação da própria Organização das Nações Unidas, da Organização Internacional do Trabalho e da Organização Mundial da Saúde foi o estímulo à criação de centros de demonstração de técnicas de reabilitação, que acumularam “a responsabilidade de não só dar atendimento qualificado, mas também de desenvolver cursos para a formação de pessoal básico nessas mesmas técnicas” (SILVA, 1987, p. 319). No Brasil, em 1956 foi criado pelo Governador Jânio Quadros o Instituto Nacional de Reabilitação, na USP, algum tempo depois transformado em Instituto de Reabilitação. Silva (1987) ressalta que o Instituto tornou-se o primeiro centro de reabilitação global do Brasil, um modelo para futuros empreendimentos. Destaca ainda que após diversos anos de funcionamento, contava o Instituto de Reabilitação com uma equipe especializada, tinha um bom número de leitos para casos que precisavam de internação, atendia um bom volume de clientela e dava cursos de preparação dos técnicos em fisioterapia, em terapia ocupacional e no campo de próteses e órteses. Além disso, o Instituto aceitava profissionais formados ou alunos dos últimos anos para estágios de especialização, organizava congressos, seminários e dava uma expressiva cota de contribuição ao desenvolvimento dos ideais de reabilitação em nosso meio. Os problemas internos, seja de ordem financeiro-administrativa, seja de ordem técnica, eram discutidos, e os caminhos eram encontrados. Tratava-se de um centro de reabilitação que era o real detentor de um papel de alta relevância (SILVA, 1987, p. 321). Contudo, os esforços internacionais/nacionais dirigidos para a reabilitação das pessoas com deficiência envolvidas na guerra dispersaram a atenção para os demais tipos de deficiência, de naturezas variadas. Para dar assistência a esse problema social, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração dos Direitos das Pessoas com Retardo Mental, em 1971, e em 1975 a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes3. Em linhas gerais, os documentos definem que o termo “pessoa deficiente” refere-se a “qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou 3 Ambos dão expressão concreta aos princípios contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adaptada e promulgada em 1948. Podem ser lidas na íntegra nos anexos A e B deste trabalho. Disponível em: <http://www.faders.rs.gov.br/portal/index.php?id=legislacao&cat=6>. - 53 - não, em suas capacidades físicas ou mentais”. Proclamam que esse público tem os mesmos direitos civis e políticos de qualquer cidadão, destacando-se o direito à atenção médica, ao tratamento físico, à capacitação profissional e à educação, para que suas habilidades sejam desenvolvidas e possam exercer uma atividade produtiva. Além disso, sempre que possível o deficiente deve residir com sua família e participar de diferentes situações da vida social. Se for preciso frequentar escola especial, o ambiente e as condições desse estabelecimento devem se aproximar ao máximo da vida normal. Em 1976, a Resolução 31/123 da ONU proclamou que 1981 seria o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, com o tema “Participação plena e igualdade”. O objetivo era “dar condições para a implementação das resoluções anteriores, pela conscientização do mundo todo quanto à problemática das pessoas portadoras de deficiências” (SILVA, 1987, p. 329). Importa destacar que, ao estabelecer um “Ano Internacional”, a ONU cria condições de possibilidade de os questionamentos estarem acontecendo somente naquele período. No entanto, Silva lembra que essa ação é importante para que a comunidade internacional tenha reconhecido a existência de um problema que afeta a população, e possa, com isso, encontrar soluções em ações conjuntas de cooperação. “E o problema que estamos analisando é, de fato, o intolerável problema de „meio bilhão de pessoas‟ que se vê à margem de tudo e não desfruta de seus direitos” (SILVA, 1987, p. 329). O Ano Internacional da Pessoa Deficiente foi entendido, assim, como um programa de ação mundial que permitiria a tomada de medidas que visassem à participação plena, das pessoas com deficiência, na vida social. Por um lado, significou um marco na conscientização sobre a problemática das pessoas com deficiência. Ao despertar a atenção para esse grupo marginalizado, várias instituições foram criadas pelo mundo. Por outro lado, a elevação das prioridades governamentais e outras mudanças de atitudes realizadas em um ano não bastaram, evidentemente, para apagar milênios de discriminação e desvalorização (SILVA, 1987). Como ponto culminante desse processo de conscientização, o período de 1983 a 1992 foi declarado como a “Década das Pessoas Portadoras de Deficiência”, e foi instituído um Programa de Ação Mundial4. Alguns de seus propósitos compreenderam a promoção de medidas para a prevenção das incapacidades e a participação plena das pessoas com deficiência na vida social. É um documento de âmbito internacional, bastante detalhista 4 Disponível em: <http://www.cedipod.org.br/w6pam.htm>. - 54 - quanto à problemática desse grupo de sujeitos. Aclamou-se que as pessoas com deficiência deveriam desempenhar suas obrigações como adultos, já que suas atitudes influenciavam na construção da imagem dessas pessoas na sociedade. Estimulou-se a criação de organizações compostas pelas próprias pessoas com deficiência, para que pudessem expressar opiniões no que se refere a prioridades e assim exercer influência sobre as instâncias governamentais responsáveis pelas decisões, bem como sobre todos os setores da sociedade. Para isso se deveria, segundo o programa, fazer com que todos os meios de informação pública cooperassem, apresentando essencialmente a importância da mudança de atitudes ao público, de modo a combater os estereótipos e os preconceitos tradicionais. A fim de efetivar essa última proposta, destaca-se a importância atribuída à representação das pessoas com deficiência veiculadas no rádio, no cinema, na fotografia e na imprensa. Segundo o programa, um elemento fundamental nesse processo seria que as pessoas deficientes tivessem a oportunidade de apresentar elas próprias seus problemas, bem como sugerir formas de resolvê-los. Nota-se, a partir dessa mobilização, que as pessoas com deficiência foram chamadas a cumprir seu direito de participação na sociedade, e ao Estado coube efetivar ações concretas de acessibilidade e igualdade, por meio de políticas públicas. Para que o bem-estar e o direito à cidadania das pessoas com deficiência se concretizassem seria preciso, além de eliminar barreiras arquitetônicas, também eliminar as barreiras sociais, no que diz respeito ao preconceito e à discriminação. Para tanto, estimulou-se, através dos documentos oficiais, o investimento econômico e a sensibilização dos direitos desse grupo para que seu status melhorasse, na sociedade. Conscientes dessa proposta, com o fim da Década da Pessoa Deficiente, em mais uma Assembleia geral da ONU foi exposto o desejo de que as metas do Programa de Ação Mundial se estendessem para além da década estipulada5. Propôs-se concluir com êxito, em 2010, uma sociedade “para todos”, por intermédio de planos estratégicos de prevenção, reabilitação e equiparação de oportunidades. Além disso, destacou-se a preocupação linguística, solicitando-se a revisão de traduções dos termos “impedimento”, “deficiência” e “incapacidade”. Em 1999, em Londres, a Assembleia Governativa da Rehabilitation Internacional aprovou uma carta para o terceiro milênio 6. A carta proclama que os avanços nos ambientes 5 6 Cf. Anexo C. Cf. Anexo D. - 55 - físicos, sociais e culturais desenvolvidos no século XX devem ser estendidos à maioria da população com deficiência, para que a participação comunitária de todos seja possível. Determina que os direitos humanos de cada pessoa, em qualquer sociedade, devem ser reconhecidos e protegidos, e destaca a necessidade da criação de políticas sensíveis, que respeitem a dignidade e a diversidade das pessoas. Incentiva também a criação de programas contínuos e de âmbito nacional para reduzir ou prevenir riscos que possam causar deficiência, além de programas de intervenção precoce para crianças e adultos que se tornam deficientes. Nesse longo processo de luta no campo dos direitos humanos, que apesar das resistências muito avançou, à mídia competiu fornecer subsídios para a veiculação do ideal de inclusão desse grupo. Assim sendo, os discursos sobre a inclusão social encontram na mídia televisiva as condições de possibilidade para serem exercidas, uma vez que imagens, sons e espetáculos nela veiculados “ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade” (KELLNER, 2001, p.9). Tal asserção nos inquieta, na medida em que as produções midiáticas que versam (in)diretamente sobre as políticas de inclusão da pessoa com deficiência podem determinar o verdadeiro de uma época, e, por essa razão, podem desempenhar um papel fundamental na constituição do sujeito pós-moderno. Além disso, discursos alusivos a políticas afirmativas em circulação na mídia televisiva parecem demonstrar a existência de uma prática discursiva regular na atualidade, o que torna relevante compreender os mecanismos e as estratégias linguístico-discursivas empregadas nessas produções. Assim, pautados nas condições de existência dessas materialidades discursivas, propomo-nos, para as próximas seções, expor alguns elementos sobre as transformações vivenciadas pela sociedade inclusiva contemporânea, e verificar como as políticas inclusivas ganham visibilidade na mídia televisiva, pela espetacularização da pessoa com deficiência. 2.2 PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO E REPRESENTAÇÃO Estudos culturais revelam que o mercado global medeia a vida social de forma crescente, e que nesse meio as identidades desvinculam-se umas das outras e se fragmentam. - 56 - Para os seguidores desse descentramento, o movimento de deslocamento dos indivíduos de seu lugar no mundo social representa a chamada “crise de identidade” (HALL, 2006). Aliadas aos avanços tecnológicos e à mídia, as relações entre sujeito-espaço-tempo podem ser percebidas com mais facilidade, criando possibilidades de “identidades partilhadas”. Nas palavras de Hall (2006, p. 74), criam “„consumidores‟ para os mesmos bens, „clientes‟ para os mesmos serviços, „públicos‟ para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes umas das outras no espaço e no tempo”. Essa redução no espaço e no tempo instaura a consciência de que o “pertencimento” ou a “identidade” são negociáveis e revogáveis, e que as decisões tomadas e a maneira como o indivíduo age são fatores fundamentais para esse pertencimento. Para Bauman (2005), essa questão da identidade surgiu com a necessidade de se criar uma nova ordem, haja vista a desintegração da organização da sociedade, em que aqueles que habitavam a margem invadiram as áreas centrais. Logo, o pertencimento foi colocado como um problema e, sobretudo, como uma tarefa. As guerras pelo reconhecimento, quer travadas individual ou coletivamente, em geral se desenrolam em duas frentes, embora tropas e armas se desloquem entre as linhas de fronteira, dependendo da posição conquistada ou atribuída segundo a hierarquia de poder. Numa das frentes, a identidade escolhida e preferida é contraposta, principalmente, às obstinadas sobras das identidades antigas, abandonadas e abominadas, escolhidas ou impostas no passado. Na outra frente, as pressões de outras identidades, maquinadas e impostas (estereótipos, estigmas, rótulos), promovidas por „forças inimigas‟, são enfrentadas e – caso se vença a batalha – repelidas (BAUMAN, 2005, 44-45). Hall (2000) argumenta a favor da necessidade de se examinar a identidade como uma prática discursiva. Isso significa ver a identificação como uma construção, como um processo nunca completado – como algo sempre “em processo”. Ela não é, nunca, completamente determinada – no sentido de que se pode, sempre, ganhá-la ou “perdê-la”; no sentido de que ela pode ser sempre, sustentada ou abandonada. Embora tenha suas condições determinadas de existência, o que inclui os recursos materiais e simbólicos exigidos para sustentá-la, a identificação é, ao fim e ao cabo, condicional; ela está, ao fim e ao cabo, alojada na contingência. Uma vez assegurada, ela não anulará a diferença (HALL, 2000, p. 106). - 57 - Importa destacar que nessa perspectiva não se ignora totalmente a tentativa tradicional/ biológica de fixação de identidades, mas a redescoberta do passado é parte do processo de sua construção. Assim, conforme Hall (2000), as identidades precisam ser compreendidas como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, porque elas são construídas dentro e não fora do discurso. Logo, a questão da representação vem à tona no processo de identificação. Enquanto prática de significação a representação envolve relações de poder, sobretudo o poder que define quem é incluído e quem é excluído. Para Woodward, a representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas, e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar (WOODWARD, 2000, p. 17). Uma vez considerado que as identidades são formadas por meio da diferença, os sistemas simbólicos dão sentido às desigualdades sociais, justificando a exclusão e a estigmatização de alguns grupos (WOODWARD, 2000). A identidade, pois, não é o oposto da diferença, mas depende dela. Isso posto, nota-se que a mídia televisiva, ao recorrer a determinadas práticas discursivas, cria um espaço que possibilita representar, em sua programação, as rupturas com o modelo tradicional de identificação do sujeito. O funcionamento discursivo da mídia constrói representações da pessoa com deficiência, as quais se constituem pelo deslocamento do passado e possibilitam refletir sobre as práticas discursivas atuais, além de se colocarem à disposição de instituições que promovem a circulação de políticas públicas. - 58 - 2.3 MÍDIA TELEVISIVA: SUPERFÍCIE DE EMERGÊNCIA DE ENUNCIADOS SOBRE A INCLUSÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Por estar presente em nossa vida cotidiana, a mídia constitui-se como objeto de estudo para inúmeras áreas do conhecimento, de forma cada vez mais heterogênea e diversificada. Posições díspares acerca da mídia trazem à tona importantes questões que precisam ocupar lugar de destaque em reflexões e discussões para que seu papel na atualidade seja compreendido, sobretudo em sua intervenção na constituição identitária dos sujeitos. Segundo Silverstone, estudamos a mídia porque nos preocupamos com seu poder: nós o tememos, o execramos, o adoramos. O poder de definição, de incitação, de iluminação, de sedução, de julgamento. Estudamos a mídia pela necessidade de compreender quão poderosa ela é em nossa vida cotidiana, na estruturação da experiência, tanto sobre a superfície como nas profundezas. E queremos utilizar esse poder para o bem, não para o mal (SILVERSTONE, 2005, p.264). A análise da mídia também se faz crescente no campo da Análise de Discurso, especialmente no Brasil. A conjunção entre o discurso e a mídia pode estabelecer um diálogo rico, conforme aponta Gregolin (2008, p.7), devido às ferramentas conceituais que a Análise de Discurso pode oferecer para a análise de acontecimentos discursivos, ou seja, análise da “produção de efeitos de sentidos, realizada por sujeitos sociais, que usam as materialidades da linguagem e estão inseridos na História”. As inquietações provocadas pela mídia demandam discutir, ainda que brevemente, sobre estratégias e mecanismos que são empregados na linguagem midiática, em especial a televisiva, por meio dos quais determinados sentidos são produzidos e não outros. Para Tasso, a produção estética televisiva traz, dessa maneira, o mundo até o sujeitotelespectador em imagens articuladas com o verbal e o sonoro. O conjunto dessas três dimensões – visual, verbal e sonora – sistematiza e organiza, por sua vez, fragmentos do universo e os apresenta, com frequência, em forma de espetáculo e de simulacro, ambos efeitos de sentidos construídos na relação dinâmica da imagem-vídeo, com valores de tempo e de espaço relativos, num contínuo jogo de enunciados que se repetem e (res)significam em práticas discursivas (TASSO, 2006, p. 132). - 59 - Nesse processo, duas categorias principais estão envolvidas: o espaço e o tempo. Ambos atribuem singularidade à televisão e estão em consonância com as transformações da percepção do mundo contemporâneo, fenômeno esse decorrente do aceleramento e do consequente afastamento da contemplação das imagens / palavras / sons do cotidiano. O tempo é um ganho proporcionado pela televisão. No entanto, contrapõe-se à atitude de contemplação do espaço. Sobre isso Peixoto esclarece, dizendo que isso ocorre em primeiro lugar porque na TV a imagem nos passa por frações de segundo, sem exigir do espectador a distância que requer um quadro ou uma paisagem. Assistimos à TV com uma atenção dispersa, sem concentração, apenas deixando que aquele fluxo ininterrupto nos atravesse. A televisão é este contínuo de imagens, em que o telejornal se confunde com o anúncio de pasta de dentes, que é semelhante à novela, que se mistura com a transmissão de futebol. Os programas mal se distinguem uns dos outros. O espetáculo consiste na própria sequência, cada vez mais vertiginosa, de imagens (PEIXOTO, 1991, p. 77). Ainda segundo Peixoto (1991) a prática do zapping, que consiste na mudança de canal a qualquer pretexto com o controle-remoto, acentuou a descontinuidade da programação, visto que o programa deixa de ser algo acabado. Para o estudioso, esse “efeito zapping” resulta da impaciência do espectador e por sua busca incessante de surpresas, característica dos sujeitos que habitam na sociedade moderna. A dissolução do interesse pela completude e homogeneidade da programação interfere diretamente na produção dos programas, que passam a mesclar gêneros e formatos. Essa dinamicidade empregada na exibição de imagens, palavras e sons tornam o tempo pouco perceptível durante a programação, o que favorece a dispersão da atenção do sujeito-telespectador. Para Tasso (2006), se por um lado o modo de exibição das imagens confere ao sujeito-telespectador um caráter acrítico, por outro a duração e a frequência na exibição de imagens são estratégias para envolvê-lo e determinar sua permanência em uma programação. Nessa perspectiva, o ritmo de exibição das imagens é considerado elemento determinante para a espetacularização dos fatos. Algo que é veiculado, discutido e explicado inúmeras vezes se torna um espetáculo pelas lentes da mídia. Gregolin (2003, p. 11-12) pontua que é possível pensar essa “produção da cultura do espetáculo” como um fato do discurso. Para tanto se faz necessário “entender as práticas discursivas que a constroem, trabalhar com a regularidade dos enunciados, com o conjunto das condições do seu aparecimento”, isso porque os enunciados veiculados na mídia, - 60 - por meio da língua(gem), estão submetidas à ordem do discurso, articulando o que pode e deve ser dito no jogo de interdições, no momento histórico da produção de sentidos (FOUCAULT, 2007c). Nesse domínio de batalhas entre diferentes posições enunciativas, a circulação de enunciados na mídia televisiva passa por procedimentos de controle, interdição ou segregação, o que caracteriza as relações de poder existentes nessa prática. Ao analisar esse funcionamento discursivo da mídia, é possível entrever também, segundo Gregolin (2003), os movimentos de resgate da memória e o estabelecimento do imaginário de uma identidade social. Pela circulação de representações que constituem o imaginário social e do retorno de figuras, a mídia constrói “uma „história do presente‟, simulando acontecimentos-em-curso que vêm eivados de signos do passado.” Ainda segundo a estudiosa, a aparente instantaneidade da mídia interpela incessantemente o leitor através de textos verbais e não-verbais, compondo o movimento da história presente por meio da re-significação de sentidos enraizados no passado. Por isso, determinadas figuras cristalizadas na memória coletiva estão constantemente sendo recolocadas em circulação, permitindo os movimentos interpretativos, as retomadas de sentidos e seus deslocamentos. Através desses retornos figurativos, a mídia cria representações que se tornam observáveis e tangíveis (GREGOLIN, 2003, p. 105-106). No que tange à relação entre mídia, corpo deficiente e identidade, é possível considerar a mídia como superfície de emergência (FOUCAULT, 2007a), ou seja, é um lugar que pode fazer com que enunciados sobre a inclusão da pessoa com deficiência apareçam em sua singularidade, em uma sociedade e em um momento histórico determinado, e que coexistam com outros enunciados, bem como se transformem e desapareçam. A emergência de uma positividade implica diversas transformações sociais, políticas, econômicas e históricas. Tais transformações estão em constante luta pela fixação de significados, enredadas nas malhas do poder. Logo, o poder é exercido por aqueles que detêm os canais de produção e circulação de sentidos. Pautando-se nas afirmações de Tasso (2006) é possível considerar que, dados os mecanismos que sustentam ou reforçam a presença de atuação da mídia sobre o sujeito-telespectador, a mídia pode apagar, transformar e consolidar ideais de sujeitos com deficiência, delineados pelas propostas inclusivas das políticas públicas. - 61 - Analisar, pois, uma série enunciativa que circunscreve sentidos sobre a inclusão das pessoas com deficiência, em diversos espaços sociais, significa tentar compreender como a mídia ressignifica a memória social, mítica e histórica desses sujeitos, buscando examinar as condições de emergência e de existência desses enunciados. Interrogando o que, como e por que os enunciados dizem o que dizem sobre as pessoas com deficiência será possível identificar uma prática discursiva sobre a identidade desses sujeitos, o que configura um saber sobre uma coletividade, na atualidade. Nessa prática, permeada pelas relações de luta pelo poder, a mídia promove a naturalização da inclusão das pessoas com deficiência por meio de diferentes mecanismos e estratégias que espetacularizam o corpo deficiente, tomando-o como algo agradável, saudável e forte. O saber sobre a deficiência, ao mesmo tempo tomado e produzido pela mídia, constitui-se como uma forma de disciplinamento e governamentalidade do corpo social. Isso significa que a mídia televisiva é um instrumento de normação que objetiva manter a ordem da sociedade e proporcionar a segurança da população e daqueles que a governam, pacificando as diferenças físicas e psíquicas dos sujeitos. 2.4 POLÍTICAS PÚBLICAS: JOGO DE FORÇAS E ESTRATÉGIAS PARA A PROMOÇÃO DA (DES)IGUALDADE As discussões acerca da produção identitária sobreditas, e mais especificamente a identidade das pessoas com deficiência na/pela mídia televisiva envolvem reflexões sobre a elaboração e a operacionalização de políticas públicas no Brasil. As práticas sociais que possibilitam movimentos dessa ordem consolidam-se por meio da interrelação entre a produção econômica e cultural da sociedade civil e os interesses do Estado, a partir da qual verdades relativas se tornam absolutas (BONETTI, 2006). Tais verdades, dadas em um momento sócio-histórico específico, produzem e referenciam ações institucionais e, particularmente, a operacionalização das políticas públicas. A trajetória burocrática que uma política pública percorre consiste em sua submissão a diversas instâncias. A primeira delas, depois de passar pela tutela política do Poder Legislativo é o setor dos burocratas. São os burocratas os responsáveis por transformar as políticas públicas em projetos de intervenção na realidade social. São eles que detêm o poder - 62 - político sobre a definição final das políticas públicas (BONETTI, 2006). Especificamente no Brasil, as políticas públicas guardam uma lógica de partilha dos recursos públicos, ou, quando se destinam apenas a uma intervenção administrativa na realidade social, estas políticas preservam a lógica de beneficiar grupos sociais específicos, regiões, municípios, etc. Neste caso, uma política pública após sair da instância legislativa e passar pelo setor burocrático, segue em direção a sua operacionalidade, sempre comandada por correligionários do partido político que se diz autor do projeto. Assim, mesmo que no âmbito do poder legislativo a correlação de forças que se estabelece sobre a definição de uma política pública não obedeça, necessariamente, a uma lógica de representação de classe, [...] no cômputo geral sempre são beneficiados os segmentos sociais com maior força política no poder Legislativo e, certamente, com maior força financeira nos meandros da sociedade civil (BONETTI, 2006, p. 69). Sobre esse processo, importa destacar que a nova configuração social, econômica e política constituída a partir do movimento de globalização reclama por novos elementos na relação entre Estado e sociedade civil. A elaboração e o estabelecimento das políticas públicas dependem, consequentemente, de interesses da expansão do capitalismo internacional, além daqueles originados no contexto nacional e nos vários segmentos que compõem a sociedade civil. Assim, além de supor o investimento de recursos públicos, as políticas públicas são o resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelece no âmbito das relações de poder, relações essas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e demais organizações da sociedade civil. Tais relações determinam um conjunto de ações atribuídas à instituição estatal, que provocam o direcionamento (e/ou redirecionamento) dos rumos de ações de intervenção administrativa do Estado na realidade social e/ou de investimentos. Nesse caso, pode-se dizer que o Estado se apresenta apenas como um agente repassador à sociedade civil das decisões saídas do âmbito da correlação de forças travada entre os agentes do poder (BONETTI, 2006, p. 74). Nota-se que as políticas públicas não são implementadas somente pelo Estado mas por vários segmentos da sociedade, e se tornam agentes ao se voltar para grupos notoriamente discriminados (pessoas com deficiência, negros, mulheres, homossexuais, etc.). Assim, a necessidade de refletir sobre políticas públicas deve-se não só pela sua importância na sociedade mas também pela sua atuação na constituição das representações e identidades, especialmente a das pessoas com deficiência, em discursos midiáticos. - 63 - Nessa direção, é possível verificar que o processo de exclusão pode ser estabelecido pela “ordem simbólica, configurada por rupturas do imaginário, do valor imaginário do trabalho, da ascensão social, do vestuário, da alimentação” (TASSO, 2006, p. 140). Nesse movimento, o sujeito que se encontra fora dos parâmetros e das normas que regem as relações socioculturais, políticas e econômicas busca o reconhecimento social e uma identidade. No entanto, geralmente os definidores das políticas públicas não consideram o caráter desigual da sociedade, mas entendem que a igualdade pode ser resumida na conquista de interesses específicos de grupos marginalizados, por meio de instâncias jurídicas (BONETTI, 2006). Diferentes conceitos se entrelaçam entre o imaginário e a realidade, na construção da desigualdade e da exclusão. Isso porque, segundo Bonetti (BONETTI, 2006), considerar a desigualdade implica pensar sobre a condição social, que por sua vez aponta para a questão da diferença, que consiste na condição social ou no comportamento que foge do padrão convencional. Para o estudioso, a negatividade imbuída na noção da desigualdade nasce dos parâmetros que se estabelecem para determinar uma condição social julgada „digna‟ para o sujeito social. Neste caso, a desigualdade estaria associada a uma condição social dita inferior, o desigual seria o pobre e não o rico, o diferente seria o pobre e não o rico, mesmo que o pobre caracterize a maioria da população. A diferença entre um e outro acaba sendo associada, tanto pelo imaginário social quanto pelas instituições públicas, com o ser do sujeito em lugar do estar. Isto é, deixa de ser uma condição passageira do sujeito social para se constituir numa condição perene, ou até numa qualidade ou numa racionalidade. Daí que as políticas públicas acabam beneficiando sempre as classes dominantes (BONETTI, 2006, p. 33-34 - grifos do autor). Para consolidar a igualdade, portanto, não basta declara-la por meio de instâncias jurídicas. Esse tipo de igualdade, chamada por alguns estudiosos de “formal”, auxilia na medida em que proíbe qualquer tipo de discriminação. Entretanto, a generalidade das leis pode perpetuar a desigualdade. Já outra concepção de igualdade, chamada de “material”, reconhece as diferenças reais dos cidadãos. A igualdade a que se deveria aspirar não é tanto a puramente formal, que com frequência, em função dos paradoxos da vida e das hipocrisias dos homens, se transforma em fonte de violações dos direitos humanos. O que se deve buscar, portanto, é uma igualdade real, que garanta efetivamente algumas possibilidades de realização da existência de todo ser humano em pé de igualdade com todos os outros, respeitando as particularidades próprias de cada um. Um mundo que afirma ter feito da justiça, da igualdade e da - 64 - solidariedade o eixo central de toda a sua organização não pode contentar-se com essa simples designação, com freqüência mero subterfúgio para tranquilizar a consciência individual e social (PAN, 2003, p.105). É possível localizar, assim, nesse processo, um mecanismo de funcionamento da categoria da igualdade, que parece estar de acordo com uma das considerações levantadas neste trabalho, que consiste no mascaramento das dificuldades concretas da inclusão das pessoas com deficiência pelas estratégias discursivas. Há a tendência em privilegiar uma cultura de acessibilidade e leis que estimulam a promoção de equiparação de oportunidades, perspectiva que indica uma igualdade formal. No entanto, em muitos casos, o respeito às diferenças reais dos cidadãos e a consciência da diversidade do homem não são reconhecidos, condição esta de possibilidade de concessão de uma identidade fragilizada à pessoa com deficiência, perpetuando, por consequência, práticas preconceituosas. Em outras palavras, a questão social não está apenas submissa às regras do Estado, mas, sobretudo, às relações de poder “múltiplas, que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social” (FOUCAULT, 2007b, p. 179). Nesse sentido, uma possível definição de políticas públicas seria aquela destacada por Bonetti: A partir de uma nova dimensão social das últimas décadas e sua repercussão direta na organização social e política da sociedade, é possível compreender como políticas públicas as ações que nascem do contexto social, mas que passam pela esfera estatal como uma decisão de intervenção pública numa realidade social, quer seja para fazer investimentos ou para uma mera regulamentação administrativa. Entende-se por políticas públicas o resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelece no âmbito das relações de poder, relações essas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e demais organizações da sociedade civil. Tais relações determinam um conjunto de ações atribuídas à instituição estatal, que provocam o direcionamento (e/ou redirecionamento) dos rumos de ações de intervenção administrativa do Estado na realidade social e/ou de investimentos. Nesse caso, pode-se dizer que o Estado se apresenta apenas como um agente repassador à sociedade civil das decisões saídas do âmbito da correlação de forças travadas entre os agentes do poder (BONETTI, 2006, p.74). Assim, as políticas sociais, enquanto políticas públicas, originam-se de novas dinâmicas de produção ocorridas nas esferas nacional e global. Permeadas pelas relações de poder, essas dinâmicas impulsionam a redefinição das estratégias econômicas e de políticas sociais do Estado, na contemporaneidade (BONETTI, 2006). Uma das iniciativas que tem ocupado cada vez mais espaço nas políticas públicas brasileiras é a inclusão. Enquanto - 65 - necessidade política, o movimento em prol da inclusão pode ser caracterizado como um fragmento de transformações mais amplas, que encontra na mídia estratégias para o fortalecimento da singularidade e para a valorização da individualidade e da diferença. No que concerne à proposta deste estudo, consideramos que ao ganhar visibilidade na mídia, pela espetacularização do corpo deficiente, as políticas públicas se utilizam de mecanismos que prescrevem à sociedade condutas sociais a serem vividas em seu relacionamento com a pessoa com deficiência, no cotidiano. É na mídia que a política se “cotidianiza”. Na prática cotidiana, a atividade política assume a perspectiva de realizar dimensões humanas mais profundas no relacionamento pessoal, como o respeito à diversidade individual e a crítica a formas predeterminadas de conduta. Sem isto, desvincula-se a realidade do dia-a-dia do espaço de atuação política (MAAR, 2006, p.24). Enfim, verifica-se que esse processo se aproxima do funcionamento da normalização 7, que consiste em fazer com que as diferenças funcionem umas em relação às outras. Logo, aquelas que são mais desfavoráveis se aproximam de um modelo estabelecido a partir do normal, da norma. Trata-se de um operador que potencializa os processos disciplinares e de regulamentação, e que tenta de alguma forma apaziguar o choque provocado pelo contato com a diferença. 2.4.1 Das instâncias governamentais e não-governamentais que promovem a inclusão Na conjuntura atual, vários segmentos da sociedade brasileira têm se mobilizado em decorrência do desenvolvimento de políticas públicas de proteção social destinadas a atender às demandas de vários grupos sociais, dentre eles, as das pessoas com deficiência. Nesse processo de politização da sociedade, o Estado assumiu a responsabilidade cívica e a obrigação ética de promover e desenvolver políticas públicas de proteção a esse segmento social. 7 Cf. capítulo 3, item 3.3.2. - 66 - Importantes segmentos atuantes nesse movimento são os órgãos que compõem a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República: a Coordenadoria nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE – disponível em: <http://www.mj.gov.br/corde/>) e o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (CONADE – disponível em: <http://www.mj.gov.br/conade/default.asp>). O primeiro é um órgão de assessoria responsável pela gestão de políticas públicas em prol da integração da pessoa com deficiência, cujo eixo norteador consiste na defesa dos direitos e na promoção da cidadania desses sujeitos. O CORDE tem como função a atribuição normativa e reguladora das ações da área inclusiva no âmbito federal e também a articulação das políticas existentes, tanto na esfera federal quanto na governamental. Já o CONADE é um órgão superior de deliberação colegiada, criado para acompanhar e avaliar o desenvolvimento da política nacional de inclusão da pessoa com deficiência e das políticas de vários setores urbanos voltados a esse grupo social, dentre eles educação, saúde, trabalho, transporte, cultura, turismo e lazer. Uma ruptura importante promovida por esses órgãos foi conquistada com a promulgação da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (PNIPPD)8, inserida no Decreto no 3298/99, sancionado em 20 de dezembro de 1999. Esse documento consiste em um conjunto de orientações normativas que objetiva assegurar os direitos básicos das pessoas com deficiência, decorrentes da Constituição e das leis, a fim de propiciar seu bem-estar pessoal, social e econômico. Dentre eles, são diretrizes da Política Nacional a ampliação de alternativas para a absorção da pessoa com deficiência em atividades econômicas, além de garantir seu ingresso e permanência em todos os serviços oferecidos à comunidade. Para a efetividade dos programas de prevenção e integração social o documento prevê a articulação de entidades governamentais e não-governamentais em âmbito federal, estadual, do Distrito Federal e municipal. Uma das estratégias desses órgãos é a divulgação da possibilidade de acessibilidade e inclusão das pessoas com deficiência por meio da criação de campanhas de circulação nacional. Tais campanhas são promovidas pela Secretaria de Comunicação Social (SECOM), que coordena um sistema que interliga as assessorias dos ministérios, das empresas públicas e das demais entidades do Poder Executivo Federal. Ao convocar redes de rádio e de televisão, a secretaria garante a disseminação de informações sobre direitos e serviços, além de projetos e políticas de governo (Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/ 8 Cf. Anexo E. - 67 - Subsecretaria/ sobre/o_que_e/>). Importa destacar que a secretaria supervisiona a adequação da publicidade, bem como avalia os resultados. A mídia é, assim, uma estratégia recorrente tanto dos projetos inclusivos do governo quanto de instituições não-governamentais. Uma delas, abordada neste trabalho, é o Instituto Meta Social, que desenvolve ações junto à mídia a fim de promover a inclusão social, por meio da representação positiva das potencialidades das pessoas, independentemente de suas limitações. Essa instituição se destaca, visto as inúmeras propagandas veiculadas na mídia, desde 2003, abordando a questão das deficiências físicas e mentais, em linguagens e mecanismos diversos. 3 MÉTODO ARQUEOGENEALÓGICO: CONTRIBUIÇÕES PARA A ANÁLISE DO DISCURSO DA MÍDIA SOBRE AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Mas gostaria de escrever livros-bombas, quer dizer, livros que sejam úteis precisamente no momento em que alguém os escreve ou os lê. [...] Mais tarde, os historiadores e outros especialistas poderiam dizer que tal ou tal livro foi tão útil quanto uma bomba, e tão belo quanto um fogo de artifício (FOUCAULT, 2006, p. 266). Nesta pesquisa, a Análise de Discurso de linha francesa constitui um dispositivo teórico-analítico de interpretação do corpus selecionado. Em decorrência das especificidades da análise proposta será traçada, neste capítulo, uma breve trajetória teórica em busca dos fios que tecem alguns conceitos desenvolvidos por Foucault, destacando-se aqueles que podem subsidiar uma reflexão acerca dos modos de subjetivação/objetivação dos sujeitos, entre os quais: função enunciativa, saber, poder, governamentalização e normalização. Ao tomar o projeto foucaultiano como método, esta pesquisa lança-se ao desafio de afastar-se da ideia de modelo, de método englobante, que pode ser aplicado a qualquer objeto. Filiar-se a Foucault significa utilizar-se de seus pressupostos para refletir sobre questões atuais e, assim, transpô-los a outros objetos, mantendo, segundo a proposta do próprio filósofo, a liberdade de pensar e problematizar as revoltas concretas e cotidianas. Outro campo de luta também demarcado neste âmbito é a sistematização das teorizações foucaultianas, que não possuem propriedades estáveis e seguras (VEIGA-NETO, 2007) uma vez que foram formuladas a partir de objetos bem demarcados. Conforme a proposição de Foucault (FOUCAULT, 2006), em qualquer iniciativa de análise o sujeito/autor deve ter clareza sobre a maneira como sua análise/teoria pode ser aplicada ou pode se relacionar com aquela fabricada por outros teóricos. Logo, é necessário se ter ciência de que as ferramentas de análise devem ser criadas para um fim específico, mas que também podem ser usadas para outros fins, por outros sujeitos-autores. Dito isso, serão destacados, no entrelaçar das teorizações foucaultianas, alguns dispositivos que forneceram suporte para a interpretação de práticas discursivas alusivas às pessoas com deficiência, na superfície midiática televisiva. - 69 - 3.1 O OLHAR ARQUEOLÓGICO Várias foram as tentativas de se periodizar o pensamento foucaultiano. No entanto, qualquer tentativa de sistematização pode ganhar em termos didáticos, mas nem sempre em rigor (VEIGA-NETO, 2007). A maior parte dos especialistas combina critérios metodológicos e cronológicos, cuja iniciativa resulta em três épocas, que embora pareçam estanques por indicarem predominância de alguns temas, se completam: a arqueologia (ser-saber), a genealogia (ser-poder) e a ética (ser-si). Gregolin (2007) explica que em um primeiro momento o filósofo investigou os saberes que embasam a cultura ocidental por meio da história da loucura, da medicina e de alguns campos de saber que possuem como tema a vida, a linguagem e o trabalho. Em sua segunda “fase” empreendeu uma análise entre os saberes e os poderes sobre o indivíduo, que provocam a sua objetivação. Por fim, orientou suas pesquisas em direção à sexualidade, investigando a subjetivação a partir da governamentalidade e das técnicas de si. A partir desses três domínios, Foucault (2007c) define e descreve a proliferação de acontecimentos, isto é, a emergência dos enunciados, a maneira como se relacionam e produzem sentidos. Nas palavras de Foucault, o acontecimento é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é o ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão material (FOUCAULT, 2007c, p. 57-58). Conforme situa Machado (2006), os estudos históricos acerca da loucura, da clínica médica e dos saberes sobre o homem desenvolvidos por Foucault apontam para o nascimento de um novo tipo de método de investigação, em relação aos métodos da história tradicional. Entretanto, a arqueologia dos saberes sobre o homem desenvolvida em livros como História da Loucura, Nascimento da Clínica e As palavras e as coisas foi muitas vezes ignorada ou até mal interpretada. Sentiu, assim, a necessidade de refletir sobre algumas questões do método utilizado em tais obras. Para, então, precisar suas categorias de análise e propor novas - 70 - direções para seu projeto teórico, Foucault redefine a história arqueológica em A arqueologia do saber. No método arqueológico, descrever a formação dos objetos de um discurso implica, segundo Foucault (2007a, p. 54), afastar-se da pura determinação da organização léxica ou do campo semântico. Nesse movimento procura-se identificar as relações que caracterizam uma prática discursiva. Nesse sentido, o filósofo se esforça para revelar uma tarefa diferente, que consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes, que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os tornam irredutíveis à língua e ao ato de fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever (FOUCAULT, 2007a, p. 55). Nessa perspectiva, a análise de discursos consistirá na análise de uma dispersão a partir da descrição de acontecimentos discursivos, a fim de buscar as unidades que aí se formam. Isso porque para Foucault, a unidade de discursos sobre um objeto não se dá por uma relação descritível e constante de enunciados sobre ele. A unidade do discurso é constituída por enunciados dispersos e heterogêneos, que coexistem, que se supõem, se transformam ou se excluem. a análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semisilenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. A questão pertinente a uma tal análise poderia ser assim formulada: que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte? (FOUCAULT, 2007a, p. 31) O enunciado é, assim, tomado como unidade elementar do discurso. Para caracterizálo, Foucault o define a partir da oposição à estrutura da língua ou a quaisquer objetos apresentados à percepção. O enunciado é uma função de existência dos signos, ou seja, atribui - 71 - a eles um sentido para a sua existência e identifica segundo que regra se sucedem ou se justapõem (FOUCAULT, 2007a). Nas palavras de Foucault, chamaremos enunciado a modalidade de existência própria desse conjunto de signos: modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma série de traços, algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano; modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances verbais, estar dotado, enfim, de uma materialidade repetível (FOUCAULT, 2007a, p.121-122). A fim de caracterizar a forma original da existência dos enunciados, e a relação entre eles, o que significa buscar a regularidade dos enunciados, Foucault explica que o que torna uma frase, uma proposição e um ato de fala em enunciado é a função enunciativa. Ou seja, “o fato de ele ser produzido por um sujeito em um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado” (GREGOLIN, 2007, p. 96). Ao descrever o exercício da função enunciativa, Foucault (FOUCAULT, 2007a, p. 103) fixa em primeiro lugar o espaço de relação entre o enunciado e seu correlato, ou seja, seu referente, o que é entendido como “leis de possibilidade, de regras de existência para os objetos que aí se encontram afirmadas ou negadas.” O referencial é, assim, condição de possibilidade de aparecimento, delimitação, diferenciação e desaparecimento dos objetos, dos sujeitos e das relações que são colocadas em jogo no enunciado. É ele que atribui um sentido à frase e um valor de verdade à proposição. Na sequência, Foucault (2007a) propõe uma relação entre o enunciado e o sujeito, que é o responsável pelo exercício da função enunciativa. O sujeito do enunciado não equivale ao sujeito da gramática, tampouco ao autor da formulação. Sobre isso Foucault esclarece que [o enunciado] é um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes; mas esse lugar, em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter uniforme ao longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia – ou melhor, é variável o bastante para poder continuar, idêntico a si mesmo, através de várias frases, bem como para se modificar a cada uma. Esse lugar é uma dimensão que caracteriza toda formulação enquanto enunciado, constituindo um dos traços que pertencem exclusivamente à função enunciativa e permitem descrevê-la. Se uma proposição, uma frase, um conjunto de signos podem ser considerados “enunciado”, não é porque houve, um dia, alguém para proferi-los ou para depositar, em algum lugar, seu traço provisório; mas sim na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito. Descrever uma formulação - 72 - enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer), mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito (FOUCAULT, 2007a, p. 107-108). Outra característica do modo de existência do enunciado é a exigência de um domínio a ele associado. Ao contrário da frase e da proposição, um enunciado não pode existir isoladamente. De início, desde sua raiz, ele se delineia em um campo enunciativo onde tem lugar e status, que lhe apresenta relações possíveis com o passado e que lhe abre um futuro eventual. Qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja (FOUCAULT, 2007a, p.111-112). Subjacente a essa propriedade do enunciado, faz-se oportuno trazer para a discussão o conceito de memória discursiva, ou interdiscurso, problematizado por Courtine (2009). Esse conceito se distingue da memorização psicológica do sujeito e se aproxima da “existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos”. (COURTINE, 2009, p.5-6, grifo do autor). Orlandi (2005) corrobora com essa questão explicando que o interdiscurso é o conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determinam o que dizemos, sustentando a possibilidade mesma do dizer. Para que nossas palavras tenham sentido é preciso que já tenham sentido. Esse efeito é produzido pela relação com o interdiscurso, a memória discursiva: algo fala antesm em outro lugar, independentemente. (ORLANDI, 2005, p.59). Nesse empreendimento, o analista, frente a um acontecimento, tem como tarefa compreender o enunciado em sua singularidade / repetição, ou em sua dispersão / regularidade. Tal dialética constitui-se, no projeto foucaultiano, como um campo imenso de possibilidades, composto “pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (falados ou escritos) em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um” (GREGOLIN, 2007, p. 94). - 73 - Finalmente, a última condição existencial do enunciado é sua existência material. A materialidade é constitutiva do enunciado: ele precisa “ter uma substância, um suporte, um lugar e uma data” (FOUCAULT, 2007a, p. 114). Entretanto, a questão não é tão simples assim. Diante das múltiplas ocorrências do enunciado, Foucault (2007a, p.114) distingue o enunciado da enunciação. Tem-se uma enunciação cada vez que um conjunto de signos for emitido em uma individualidade espaço-temporal. Logo, “é um acontecimento que não se repete; tem uma singularidade situada e datada que não pode reduzir.” O enunciado, por outro lado, é passível de ressegnificação, dependendo de sua materialidade. Não se trata de materialidade sensível (papel, cor ou som) mas é da ordem da instituição. O regime de materialidade define, segundo Foucault (2007a, p. 116), “antes possibilidades de reinscrição e de transcrição (mas também limiares e limites) do que individualidades limitadas e perecíveis.” No arquivo que circunscreve sentidos sobre a inclusão de pessoas com deficiência, construído para esta pesquisa, foi possível encontrar, a título de exemplificação, uma reportagem veiculada na revista Cláudia 24. Pode-se observar, na composição imagética (Figura 8), a disposição de cadeiras e carteiras, que indica que esse espaço se trata de uma sala de aula. Um efeito de sentido interessante é produzido pela dimensão simbólica por meio da qual a pessoa deficiente é identificada: não pelo seu corpo, mas por um símbolo. O símbolo, nas cores branca e azul, causa estranhamento no espaço escolar, visto que é utilizado como forma de identificação de outros espaços reservados para as pessoas com deficiência, por exemplo em estacionamentos, banheiros públicos, rampas e ônibus. 24 A reportagem é composta por três páginas. A primeira que consta na figura 8 é seguida de outras duas que tratam da inclusão de crianças e adolescentes nas escolas regulares. - 74 - Figura 8 - Revista Cláudia, de setembro de 2009 - 75 - Tem-se como referencial o movimento social em prol da inclusão das pessoas com deficiência na sociedade. A eclosão de saberes colocados em jogo em determinado período provocou a ocorrência de discursos sobre a inclusão e a acessibilidade social em vários documentos e em iniciativas de instituições governamentais e não-governamentais. Esse fato é considerado como a condição de possibilidade para o aparecimento, confronto e desaparecimento de inúmeros enunciados na mídia televisiva sobre a inclusão desses sujeitos. É na correlação dos enunciados com a motivação inclusiva social/política/econômica que os enunciados adquirem sentido na mídia. Para ser sujeito do enunciado em questão é preciso assumir a posição inclusiva desse processo. Tanto o símbolo quanto a imagem, como um todo, não existem isoladamente, livres ou neutros, mas desempenham um papel em um jogo, ou seja, num conjunto de enunciados sobre a inclusão de pessoas com deficiência na sociedade atual. Tratando-se da imagem, notase que ela se apoia em outros campos discursivos/saberes, como o escolar/pedagógico da acessibilidade, iniciativa social fundamental para que o projeto inclusivo seja efetivado. Especificamente, o símbolo de acessibilidade 25 utilizado para demarcar o lugar das pessoas com deficiência, também é um enunciado. Isso porque tem um sentido construído historicamente e é (res)significado em outros discursos. Por conta dessa força, há uma materialidade repetível que aparece, na ordem imagética, no discurso sobre a educação da reportagem da Revista Cláudia. Ao se dispensar um olhar mais atento para o enunciado verbal é possível perceber a relação dele com outros campos do saber, o que torna possível sua existência. Em destaque, o enunciado “Escola para todos” confirma/retoma o espaço escolar representado na imagem. A forma verbal “terão” constrói um sentido de imposição da inclusão das crianças e adolescentes em classes regulares, pelo decreto federal, suavizado logo em seguida pelo enunciado: “pode ser uma boa notícia”. Essas frases tornam-se enunciados à medida que são constituídas pelos campos do saber jurídico e do pedagógico, integrando e retomando um conjunto de outros enunciados já-ditos nesses campos. A memória é um poder que cria condições de possibilidade da formulação desse enunciado sobre a acessibilidade das pessoas com deficiência na educação formal no presente e no futuro pela evocação das condições de visibilidade desses sujeitos no passado. 25 Algumas considerações mais específicas sobre o símbolo em questão serão explicitadas no capítulo 4, seção 4.1. - 76 - 3.1.1 O arquivo Ao visualizar, analiticamente, na dispersão dos enunciados, regularidades de acontecimentos discursivos, é possível, segundo Foucault (2007a), localizar a positividade dos discursos por meio da qual os textos que pertencem a uma formação discursiva se comunicam. Para o filósofo, a função da positividade se define como condição de realidade para os enunciados, ou seja, o conjunto de regras que caracterizam uma prática discursiva em espaço e tempo determinados. Trata-se de [...] isolar as condições de emergência dos enunciados, a lei de sua coexistência com outros, a forma específica de seu modo de ser, os princípios segundo os quais subsistem, se transformam ou desaparecem. [...] Em suma, tem de dar conta do fato de que o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história, e uma história específica, que não reconduz às leis de um devir estranho (FOUCAULT, 2007a, p. 144). Importa destacar que o conceito de prática discursiva é aqui considerado como o “conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2007a) Na complexidade das práticas discursivas, para Foucault o arquivo passa a ser o lugar onde se torna possível pensar as práticas discursivas em uma dada sociedade. O filósofo não entende esse termo como [...] a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como testemunho de sua identidade mantida; não entendo, tampouco, as instituições que, em determinada sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e manter a livre disposição. Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas; mas que tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo; em lugar de serem figuras adventícias e como que inseridas, um pouco ao acaso, em processos mudos, nasçam segundo regularidades específicas; em suma, que se há coisas ditas – e somente estas -, não é preciso perguntar sua razão imediata às coisas que aí se encontram ditas ou aos homens que as disseram, - 77 - mas ao sistema da discursividade, às possibilidades e às impossibilidades enunciativas que ele conduz. O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevem, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas; ele é o que faz com que não recuem no mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito forte como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito longe, quando outras contemporâneas já estão extremamente pálidas” (FOUCAULT, 2007a, p. 146-147). Quanto ao objeto de análise desta pesquisa, compreendemos que o arquivo construído a partir de enunciados que versam sobre a inclusão da pessoa com deficiência é um sistema que permite entrever o processo de formação e transformação desses enunciados a partir de uma diversidade de textos provenientes da mídia, tomados a partir de um tema, no caso a inclusão. A especificidade de cada texto e o que representa no arquivo permitem trazer à tona dispositivos e configurações significantes. Entende-se, assim, que o arquivo formado é um lugar onde se torna possível pensar as práticas discursivas em uma sociedade, cujas regularidades específicas permitem investigar: (1) as condições de emergência dos enunciados sobre a deficiência, na mídia, (2) a lei de sua coexistência com outros enunciados que versam sobre o mesmo objeto, (3) a sua forma específica de ser, e (4) os princípios segundo os quais subsistem, se transformam e desaparecem. Ao observar a proposta arqueológica de Foucault (2007a), nota-se que o filósofo abre um novo caminho para as análises históricas dos saberes. Machado sintetiza, dizendo que seu objetivo não é principalmente analisar as compatibilidades e incompatibilidades entre saberes a partir da configuração de suas positividades; o que pretende, em última análise, é explicar o aparecimento de saberes a partir de condições de possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor, que, imanentes a eles – pois não se trata de considerá-los como efeito ou resultante -, os situam como elementos de um dispositivo de natureza essencialmente política (MACHADO, 2006, p.167). Chega o momento de dispensar atenção especial ao termo nietzschiano utilizado por Foucault, com o propósito de situar, nas pesquisas seguintes à fase arqueológica, a importância do poder para a constituição dos saberes: a genealogia. - 78 - 3.2 O OLHAR GENEALÓGICO Explicita-se, neste ponto, que o sujeito é, em toda a obra de Foucault, seu objeto: de saber, de poder ou de construção identitária. Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos vinte anos. Não foi analisar os fenômenos do poder, nem elaborar os fundamentos de tal análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos. Meu trabalho lidou com três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos. O primeiro é o modo da investigação, que tenta atingir o estatuto de ciência, como, por exemplo, a objetivação do sujeito do discurso na gramaire générale, na filologia e na linguística. Ou, ainda, a objetivação do sujeito produtivo, do sujeito que trabalha, na análise das riquezas e na economia. Ou, um terceiro exemplo, a objetivação do simples fato de estar vivo na história natural ou na biologia. Na segunda parte do meu trabalho, estudei a objetivação do sujeito naquilo que eu chamei de “práticas divisoras”. O sujeito é dividido no seu interior e em relação aos outros. Este processo o objetiva. Exemplos: o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os “bons meninos”. Finalmente, tentei estudar – meu trabalho atual – o modo pelo qual um ser humano tornase um sujeito. Por exemplo, eu escolhi o domínio da sexualidade – como os homens aprenderam a se reconhecer como sujeitos de “sexualidade”. Assim, não é o poder, mas o sujeito, que constitui o tema geral de minha pesquisa (FOUCAULT, 1995, p.231-232). O sujeito, portanto, é para Foucault (1995) uma construção historicamente realizada pelas práticas discursivas. Isso significa que o sujeito não preexiste à sociedade, mas é constituído por uma rede de discursos, estratégias, poderes e práticas. Como explica VeigaNeto (2007, p. 113), uma analítica do sujeito, nessa perspectiva, não deve partir do próprio sujeito, mas dos saberes e das práticas discursivas e não discursivas que o envolvem. As práticas e os saberes, “uma vez descritos e problematizados poderão revelar quem é esse sujeito, como ele chegou a ser o que dizemos que ele é e como se engendrou historicamente tudo o que dizemos dele”. Tendo em vista que o sujeito é significado a partir das práticas discursivas de campos de saberes diversos, é necessário considerar que ele está igualmente colocado como efeito de complexas relações de poder. Nesse sentido, Foucault (2007b, p. 183) argumenta que os sujeitos estão sempre em posição de exercer e sofrer a ação do poder, ou seja, eles são centros - 79 - de transmissão, visto que “aquilo que identifica e constitui corpos, gestos, discursos e desejos como indivíduo é um dos primeiros efeitos de poder.” Cabe a esta pesquisa, portanto, afastar-se das formas jurídicas do exercício do poder, embora sem ignorá-las, e identificar suas formas materializadas em instituições e nas relações que elas estabelecem com a pessoa com deficiência na sociedade atual, produzindo efeitos reais de regulamentação. Dada tal orientação teórica, partimos para alguns apontamentos sobre a questão do poder e seus desdobramentos, na teoria foucaultiana. Entre os limites das regras do direito e os efeitos de verdade, Foucault propõe importantes deslocamentos na análise tradicional dos mecanismos de poder. As múltiplas relações de poder que constituem o corpo social não podem se dissociar de uma produção, acumulação e circulação de discursos. Por um lado somos obrigados, pelo poder, a produzir verdades, e por outro somos continuamente obrigados a desempenhar tarefas em decorrência de discursos verdadeiros. O sistema de direito, por sua vez, não deve ser visto, segundo Foucault, como uma legitimidade a ser respeitada pelos indivíduos, mas como um procedimento de sujeição (FOUCAULT, 2007b). Seguindo tal linha de análise, Foucault (2007b) impõe algumas precauções metodológicas para desenvolver a análise que considera o campo judiciário como um problema de sujeição. A primeira delas refere-se à tentativa de captar o poder em suas extremidades, sob suas formas e instituições mais regionais e locais, o que significa se afastar das formas jurídicas que centralizam formas regulares de poder e perceber como o poder penetra em instituições e se corporifica em técnicas de intervenção. A segunda precaução afasta-se do plano da intenção. Deve-se estudar o poder em suas práticas reais e efetivas. A preocupação não é, portanto, o poder centralizado nas mãos de alguns indivíduos com intenções de dominação, mas “como funcionam as coisas no nível do processo de sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos, etc” (FOUCAULT, 2007b, p. 182). A terceira precaução descentraliza o poder e o analisa como algo que circula, que funciona em cadeia. Como explica Foucault, o poder nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou - 80 - consentido do poder, são sempre centros de transmissão (FOUCAULT, 2007b, p. 182) . A quarta precaução chama a atenção para a necessidade da análise ascendente do poder. Foucault entende que o importante não é verificar o prolongamento do poder do centro para a periferia, mas como os mecanismos de poder se deslocam, se expandem e se modificam nos níveis mais baixos e como são agregados pelos fenômenos globais (FOUCAULT, 2007b). No caso da investigação proposta nesta dissertação, cabe questionar como, em uma conjuntura precisa, as práticas inclusivas das pessoas com deficiência passaram a mostrar lucros econômicos e utilidade política aos mecanismos globais do sistema do Estado. Na relação centro / periferia, seria possível afirmar que o centro abriu espaço para as reivindicações dos grupos marginalizados, entre eles os das pessoas com deficiência, que estão na periferia por haver uma possibilidade econômica e política vantajosa. Por outro lado, se for considerado que as políticas públicas inclusivas são impostas do centro para a periferia, a investigação da emergência das discursividades sobre a deficiência na mídia é visível no entrecruzamento dos dois polos. Assim, lança-se o desafio de perceber como centro e periferia ora se entrecruzam e ora divergem na prática discursiva da inclusão. É preciso relevar que ao mesmo tempo em que o poder dá voz às pessoas com deficiência num movimento ascendente, da periferia para o centro, há também um movimento descendente, em que as estratégias globais de regulação impõem práticas inclusivas, principalmente por meio do direito, o que pode acarretar o apagamento da voz de origem (da periferia). A quinta e última precaução propõe ultrapassar as produções ideológicas que acompanharam as grandes máquinas do poder. O que se forma na base, para Foucault, é a acumulação do poder/saber. “Tudo isso significa que o poder, para exercer-se nestes mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e pôr em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são construções ideológicas” (FOUCAULT, 2007b, p. 186). Percorrendo o domínio das precauções metodológicas propostas por Foucault, deparase com a necessidade de recuperar alguns mecanismos de poder vigentes em diferentes conjunturas históricas / sociais e econômicas que podem ser tomados como condição para que saberes sobre o sujeito / corpo com deficiência fossem formulados. - 81 - 3.2.1 Do suplício à disciplina: tecnologias políticas do corpo Apesar de não ser frequente, o suplício esteve presente consideravelmente nos séculos XVII e meados do século XVIII. Segundo Foucault (2005) faziam parte de seu ritual dois objetivos principais: marcar no corpo da vítima um sinal que guardaria a memória da exposição e manifestar o poder de quem pune. Nesse ritual, sofrimento e confronto estavam interligados a fim de produzir a verdade e, consequentemente, proclamar a vitória do poder soberano. A partir de sua função jurídico-política, o suplício se configurava como manifestação da força temível do soberano, cujo sentido se atribui à presença do povo. Sem este, o exemplo do risco de punição diante da menor infração e o terror do espetáculo não produziriam o mesmo efeito (FOUCAULT, 2005). Devido ao seu caráter vergonhoso e perigoso, a prática do suplício tornou-se motivo de protesto na segunda metade do século XVIII. Reformadores da época defenderam a necessidade de punição, e não mais de vingança, conforme manifestado nos rituais de suplício. O crescimento demográfico, das riquezas e das propriedades teriam provocado, segundo Foucault (2005), a passagem de crimes de sangue para crimes de fraude, fato que pode também ter contribuído para a suavização da penalidade ao longo do século XVIII. Adicionado a isto, houve uma mudança de atitude causada pela percepção da “humanidade” dos criminosos. Foucault explica que esse processo significa [...] um esforço para ajustar os mecanismos de poder que enquadram a existência dos indivíduos: significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade, atividade, gestos aparentemente sem importância; significa uma outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa (FOUCAULT, 2005, p. 66). Um dos objetivos desse esforço seria, assim, o aumento dos efeitos da punição e a diminuição de seu custo econômico. O deslocamento também se dá da vingança do soberano para a defesa da sociedade (FOUCAULT, 2005). Isso significa que o criminoso torna-se um inimigo em comum dos indivíduos de uma sociedade. O castigo imposto deveria visar, portanto, os prejuízos e as desordens que o crime poderia causar ao corpo social. O ajuste da gravidade do crime à penalidade seria correspondente ao ato de punir por seus efeitos, - 82 - impedindo sua repetição futura (FOUCAULT, 2005). O corpo deixa de ser objeto do soberano para tornar-se um “bem-social, objeto de uma apropriação coletiva e útil” (FOUCAULT, 2005, p. 91). A descoberta do corpo como objeto e alvo do poder, no final do século XVIII, provocou sua consequente submissão ao esquema de docilidade, técnica imposta pela sociedade disciplinar. A disciplina pode ser definida como mecanismo que permite o controle minucioso do corpo, que sujeita suas forças e impõe, consequentemente, a relação de docilidade-utilidade, tornado-o tanto mais obediente quanto útil. Forma-se então uma política das coerções, que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita (FOUCAULT, 2005, p. 119). Uma das principais estratégias da disciplina é a distribuição dos indivíduos num espaço determinado, evitando assim as aglomerações inúteis e perigosas, e satisfazendo a necessidade de vigiar, dominar e utilizar os corpos. Um dos mecanismos solidários com os esquemas disciplinares, que proporcionou a criação de espaços úteis foi a organização suscitada pela peste. Para entender essa ramificação do poder disciplinar, é preciso resgatar primeiramente o modelo de exclusão da lepra. Em termos históricos e institucionais, desde a Idade Média sentiu-se necessidade de organizar o corpo urbano de modo homogêneo, dependente de um poder único e regulamentado (FOUCAULT, 2007b). Esse interesse foi motivado por duas razões principais: econômicas e políticas. Era preciso criar mecanismos regulamentadores da produção nas cidades bem como nos grupos de plebeus mais pobres, que provocavam revoltas de subsistência. A situação se agravava pela crescente inquietude político-sanitária devido às - 83 - doenças causadas pela proximidade de cemitérios, que amontoavam cadáveres de pessoas que por suas condições financeiras, não mereciam ou não tinham como pagar por um túmulo. Nesse período, um dos mecanismos de intervenção da burguesia frente aos problemas das doenças decorrentes da falta de estrutura sanitária adequada foi o modelo médico e político da quarentena (FOUCAULT, 2007b). Basicamente, essa estratégia consistia na vigilância e no registro diário dos moradores da cidade. Se houvesse algum doente, ele seria levado para fora da cidade, em enfermaria especial. Isso significa que a exclusão dos doentes / leprosos implicava a desqualificação jurídica, política e moral dos sujeitos (FOUCAULT, 2000). Para Foucault, na Idade Média, o leproso era alguém que, logo que descoberto, era expulso do espaço comum, posto fora dos muros da cidade, exilado em lugar confuso onde ia misturar sua lepra à lepra dos outros. O mecanismo de exclusão era o mecanismo do exílio, da purificação do espaço urbano. Medicalizar alguém era mandá-lo para fora e, por conseguinte, purificar os outros. A medicina era uma medicina de exclusão (FOULCAULT, 2007b, p.88). Outro modelo político-médico de exclusão, aplicado não mais à lepra mas à peste foi o da inclusão no pestífero. Foucault (2000) considera que a substituição da exclusão do leproso pela inclusão do pestífero, enquanto modelo de controle, foi um dos grandes fenômenos do século XVII. Isso porque o poder político da medicina não mais exclui, mas distribui, isola, vigia, inspeciona e registra o indivíduo doente (FOUCAULT, 2007b). Da marcação dos corpos segregados, passa-se para o exame constante de uma regularidade, conferindo se o indivíduo está de acordo com a norma de saúde estabelecida (FOUCAULT, 2007b). No final do século XVII, ao ser declarada a peste em uma cidade acionava-se um policiamento espacial rigoroso para um período de quarentena. Os indivíduos eram proibidos de sair de casa e recebiam alimentação por canais de madeiras que impossibilitavam o contato com os fornecedores. A inspeção dos mortos e dos vivos em cada casa, feita pelos síndicos26, com o auxílio dos soldados para evitar desordens, era constante, bem como o sistema de registro patológico (FOUCAULT, 2005). 26 Cada rua era colocada sob a responsabilidade de um síndico que a vigiava sob pena de morte caso a abandonasse. Era encarregado de fechar as portas de cada casa por fora e levar a chave ao intendente, que supervisionava os atos dos síndicos em alguns quarteirões. (FOUCAULT, 2007b) - 84 - Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à peste; ela tem como função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições. Ela prescreve a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a cada um sua doença e sua morte, a cada um seu bem, por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, o do que lhe acontece (FOUCAULT, 2005, p.163-164). Do ponto de vista médico, atenção especial deve ser dada à reorganização do espaço hospitalar, a partir de uma tecnologia disciplinar. Articulado ao espaço administrativo e político, o espaço terapêutico passa a individualizar corpos, doenças e sintomas, criando, consequentemente, um lugar ambíguo, “de constatação da verdade escondida e de prova para uma verdade a ser produzida” (FOUCAULT, 2007b, p. 118). Ao hospital cabia, então, a função de produzir as verdades sobre as doenças, que até então estavam aprisionadas nos hábitos, mitos e preconceitos. A doença, pela hospitalização, tornava-se real. Qual poderá ser então o papel do asilo neste movimento de volta às condutas regulares? Certamente ele terá de início a função que se confiava aos hospitais no fim do século XVIII. Permitir a descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no meio do doente, possa mascará-la, confundi-la, dar-lhe formas aberrantes, alimentá-la e também estimulá-la. Mais ainda que um lugar de desvelamento, o hospital, cujo modelo foi dado por Esquirol, é um lugar de confronto. A loucura, vontade perturbada, paixão pervertida, deve aí encontrar uma vontade reta e paixões ortodoxas. Este afrontamento, este choque inevitável, e a bem dizer desejável, produzirão dois efeitos: a vontade doente, que podia muito bem permanecer inatingível pois não é expressa em nenhum delírio, revelará abertamente seu mal pela resistência que opõe à vontade reta do médico; e, por outro lado, a luta que a partir daí se instala, se for bem levada deverá conduzir a vontade reta à vitória, e a vontade perturbada à submissão e à renúncia. Um processo de oposição, de luta e de dominação” (FOUCAULT, 2007b, p.121-122). Essa mutação científica pode ser lida como a aparição de novas formas da vontade de verdade (FOUCAULT, 2007c). Importa destacar que a vontade de verdade, enquanto sistema de exclusão27, apoia-se sobre um suporte institucional e também é reconduzida pela forma 27 Outros dois sistemas de exclusão são a palavra proibida e a segregação da loucura (FOUCAULT, 2007c). - 85 - como o saber é aplicado à sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído. Logo, é possível notar como a reorganização do hospital influenciou outros discursos sobre a pessoa doente. Filiando-se a Foucault (2007b), é possível considerar que o doente, ou mais especificamente a pessoa com deficiência é uma realidade fabricada pela tecnologia disciplinar, mecanismo de poder esse que origina conhecimentos e verdades. A positividade do poder repousa no fato de que a partir do acúmulo dos saberes ele “não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (FOUCAULT, 2007b, p. 08). É por causa dessa rede produtiva de saberes que o poder coloca em circulação que ele se mantém e é aceito. 3.2.2 Biopoder Durante a segunda metade do século XVIII, outra estratégia foi mobilizada enquanto tecnologia de poder, para governar a população: o biopoder. Essa tomada de poder, mesmo se considerando a particularidade espacial e temporal de cada indivíduo, tem como objetivo intervir, por meio de mecanismos globais, na vida da coletividade / população, para que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade. Em resumo, leva em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e assegura sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação (FOUCAULT, 1999). A tecnologia disciplinar do corpo e a tecnologia regulamentadora da vida são, segundo Foucault (1999), duas tecnologias de poder introduzidas como formas de acomodação a fim de recuperar os “vazamentos” da soberania. Conforme visto anteriormente, a primeira delas, no século XVII e em meados do século XVIII, foi a disciplina, mecanismo mais cômodo de realizar, que se deu em contextos limitados de instituições (como a escola e o quartel, por exemplo). Manipula o corpo, tornando-o dócil e útil, e produzindo efeitos individualizantes. A regulamentação, por sua vez, introduzida no final do século XVIII, age sobre os fenômenos globais da população. Essa tecnologia é centrada na vida e procura controlar (e modificar eventualmente) os eventos que podem acontecer na massa da população. - 86 - Importa destacar que esses dois mecanismos podem articular-se um ao outro, mesmo não estando no mesmo nível. Se o domínio das deficiências for tomado como exemplo, temse de um lado a necessidade de um controle individual, disciplinar, tal como ocorreu mais profundamente por volta do século XVIII (e continua até hoje), devido à busca da sistematização das doenças. Por outro lado, a deficiência se insere em processos biológicos mais amplos, que não privilegiam apenas o corpo, mas também seus efeitos sobre a população. O corpo deficiente é recolocado em outros processos sociais / discursivos (escola, mercado de trabalho) e se supõe que a acessibilidade aos espaços sociais promova perturbação pelo contato com o diferente. Parece possível dizer, portanto, que a deficiência depende tanto da disciplina quanto da regulamentação. Nesse processo, é possível compreender [...] por que e como um saber técnico como a medicina, ou melhor, o conjunto constituído por medicina e higiene, vai ser no século XIX um elemento, não o mais importante, mas aquele cuja importância será considerável dado o vínculo que estabelece entre as influências científicas sobre os processos biológicos e orgânicos (isto é, sobre a população e sobre o corpo) e, ao mesmo tempo, na medida em que a medicina vai ser uma técnica política de intervenção, com efeitos de poder próprios. A medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores (FOULCAULT, 1999, p.301-302). Em suma, as estratégias para governar as populações, sustentadas pelo biopoder não constituem o desaparecimento do poder disciplinar. Foucault (2008b, p. 59) explica que o primeiro gesto da disciplina é isolar um espaço no qual “seu poder e os mecanismos do seu poder funcionarão, plenamente e sem limites”. Além de tudo, regulamentar, no sistema disciplinar “o que é determinado é o que se deve fazer, por conseguinte todo o resto, sendo indeterminado é proibido” (FOUCAULT, 2008b, p. 61). Por outro lado, os dispositivos de segurança, aqueles que atuam nos efeitos de regulamentação da população, procuram “responder a uma realidade de maneira que essa resposta anule essa realidade a que ela responda – anule, ou limite, ou freie, ou regule” (FOUCAULT, 2008b, 2008, p. 61). Nota-se que embora esses dispositivos se configurem e atuem de formas distintas, eles se complementam e se potencializam. Segundo Foucault (2008b), esse movimento de potencialização mútua ocorre devido a um elemento que permite o funcionamento tanto dos mecanismos disciplinares do corpo quanto dos dispositivos de segurança da população: a norma. - 87 - Os dispositivos disciplinares e de regulamentação, entretanto, concebem a norma de formas distintas. Ao decompor e analisar indivíduos, lugares, tempo e gestos, a disciplina demarca o normal e o anormal. A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo ótimo que é construído em função de certo resultado, e a operação de normalização disciplinar consiste em procurar tornar as pessoas, os gestos, os atos, conformes a esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não é capaz. Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na normalização disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma. Dito de outro modo, há um caráter primitivamente prescritivo da norma, e é em relação a essa norma estabelecida que a determinação e a identificação do normal e do anormal se tornam possíveis. Essa característica primeira da norma em relação ao normal, o fato de que a normalização disciplinar vá da norma à demarcação final do normal e do anormal, é por causa disso que eu preferiria dizer, a propósito do que acontece nas técnicas disciplinares, que se trata muito mais de uma normação do que de uma normalização (FOULCAULT, 2008b, p.74-75). A esse processo de normalização disciplinar Foucault (2008b) prefere tratar como de normação. Em um campo de comparação de atos e desempenhos estabelece-se uma regra a seguir. A partir dessa regra os indivíduos são diferenciados e hierarquizados por intermédio de medidas de sua capacidade. Traça-se, assim, um limite que define a fronteira entre a norma e o diferente (FOUCAULT, 2005). Em suma, parte-se de uma norma para distinguir quem se identifica com ela. Nesse caso, estabelece-se a penalidade da hierarquização e da exclusão, na qual se demarcam status e privilégios, para que a ordenação das multiplicidades humanas seja assegurada. Vê-se aí que o foco do poder disciplinar é o desvio, ou seja, tudo o que escapa à regra, à norma. Nos dispositivos de segurança, por outro lado, identificam-se as diferentes curvas de normalidade. Isso significa que as marcas que significavam privilégios nos dispositivos disciplinares são substituídas ou ampliadas para um conjunto de graus de normalidade, o que segundo Foucault (2005p. 153), corresponde a “sinais de filiação a um corpo social homogêneo”. No entanto, ao mesmo tempo em que tenta homogeneizar, a regulamentação individualiza e permite que as diferenças se tornem úteis e se ajustem umas às outras. Em outras palavras, - 88 - [...] a operação de normalização vai consistir em fazer essas diferentes distribuições de normalidade funcionarem umas em relação às outras e [em] fazer de sorte que as mais desfavoráveis sejam trazidas às que são mais favoráveis. Temos portanto aqui uma coisa que parte do normal e que se serve de certas distribuições consideradas, digamos assim, mais normais que as outras, mais favoráveis em todo caso que as outras. São essas distribuições que vão servir de norma. A norma está em jogo no interior das normalidades diferenciais. O normal é o que é primeiro, e a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório. Logo, eu diria que não se trata mais de uma normação, mas sim, no sentido estrito, de uma normalização (FOULCAULT, 2008b, p. 82-83). Importa destacar que um dos operadores fundamentais para tais mudanças é, para Foucault (2008b), a população. Foi necessário deixá-la circular, mas de modo que os perigos dessa circulação fossem anulados. Assim, não mais a segurança do príncipe e de seu território estaria assegurada, mas a da população e, consequentemente, de quem a governa. Trata-se, de delimitar marcos aceitáveis, em vez de impor-lhes uma lei que diga não (FOUCAULT, 2008b). No caso das doenças ou mesmo das deficiências, a antiga intervenção, que tinha por meta anular e isolar os doentes, passa a analisar estatisticamente o que é “normalmente” esperado em relação a uma doença e à morte que ela pode causar em uma população. Entra em cena a medicina preventiva, a fim de fazer com que a morbidade e a mortalidade desviantes se aproximem da normalidade esperada (FOUCAULT, 2008b). A partir dessa passagem do poder soberano para o disciplinar / biopoder compreendese melhor alguns apontamentos, já expostos neste capítulo, sobre o caráter não-repressivo do poder que circula e produz saberes e discursos. Nota-se a necessidade de ressignificar mecanismos de poder para gerir a população a fim de garantir tanto a sua segurança como a daqueles que a comandam. Se a repressão que diz “não”, própria dos suplícios, continuasse, a incompatibilidade desses discursos com o crescimento da população poderia suscitar resistências e consequentes alterações na configuração daqueles que comandam as estratégias do poder. Um dos principais elementos que movem essas estratégias de gerência da população seria, segundo Foucault (2008b), o desejo. É por meio dele que a população se torna penetrável pelas estratégias do poder. Esse desejo permite a produção de algo interessante e natural para a população, bem como a artificialidade dos meios criados para governá-la. Logo, ao contrário do soberano que dizia “não” aos desejos dos indivíduos, forma-se um - 89 - pensamento econômico-político em que a problemática que se instaura para aqueles que governam é saber como dizer “sim” ao desejo da população. É a partir desses processos que movem a história e constroem discursos sobre os sujeitos (com deficiência) que se faz necessária uma reflexão sobre o domínio do governo dos homens, denominado por Foucault (2008b, 2007b) de governamentalidade. 3.2.3 Governamentalidade Dentre os múltiplos deslocamentos semânticos que o ato de “governar” adquiriu durante a história da humanidade, Foucault (2008b) destaca que não se governa o Estado, o território ou uma estrutura política, mas sim os homens que neles habitam. O filósofo mostra que essa ideia de governo dos homens não é recente, pois as técnicas de individualização e procedimentos de totalização da tecnologia de poder pastoral se originaram das instituições cristãs. A relação pastoral é essencialmente a relação entre Deus e os homens, ou seja, fundamenta-se no poder que Deus exerce sobre os homens (FOUCAULT, 2008b). O poder de um pastor se exerce no movimento de um rebanho e se caracteriza por seu bem-fazer, sua onipotência e capacidade de triunfar sobre os inimigos, derrotando-os e escravizando-os. Além disso, o pastor não manifesta, de início, sua força e superioridade. Pelo contrário, é aquele que zela, que se preocupa com os outros e nunca consigo mesmo, no sentido de vigilância de tudo o que pode acontecer de trágico com o rebanho, e inclusive deve estar preparado para se sacrificar por ele. Por outro lado, ao mesmo tempo em que o pastor atua na coletividade do seu rebanho, esse poder é também individualizante. Foucault chama de paradoxo do pastor: “sacrifício de um pelo todo, sacrifício do todo por um, que vai estar no cerne da problemática cristã do pastorado” (FOUCAULT, 2008b). O poder pastoral se exerce, pois, mais sobre uma multiplicidade do que sobre um território. Além disso, está ligado à produção de verdade e é orientada para a salvação no outro mundo; logo, implica um saber da consciência e a capacidade de dirigi-la (FOUCAULT, 1995). - 90 - No século XVIII o poder pastoral, em sua essência, não desapareceu, porém foi ressignificado com a criação do Estado moderno. Segundo Foucault (1995), essa nova forma de poder pastoral objetiva assegurar a salvação do povo neste mundo. Nesse caso, “salvação” tem como sinônimos a saúde, o bem-estar e a segurança, entre outros. Simultaneamente, a administração do poder foi reforçada pelo aparelho do Estado e por suas ramificações em instituições públicas como a polícia e os hospitais. E, por fim, o poder pastoral, que durante séculos filiou-se à instituição religiosa, ampliou-se por todo um corpo social, empregando um mecanismo individualizante em uma série de instituições, como a família, a medicina, a psiquiatria e a educação. Tem-se, assim, no século XVI a superação da estrutura feudal e a instauração dos Estados territoriais e administrativos. Concomitantemente, a Reforma e a Contra Reforma questionam as formas de se ser dirigido espiritualmente para ser salvo. A partir desses dois movimentos é que se instala a problemática do governo: como ser governando? Por quem? Com que objetivo / método? (FOUCAULT, 2007b) Segundo Foucault (2008b), houve uma ruptura importante na finalidade proposta pela arte de governar. Ao contrário da soberania, que tira seus instrumentos de si mesma sob a forma de leis, a arte de governar se utiliza de táticas a fim de maximizar a produção de riquezas pela população. Para tanto, deve fornecer meios de subsistência para que elas se multipliquem. Entretanto, a arte de governar formulada no século XVI esteve até o século seguinte bloqueada pelo princípio de organização da soberania. Para Foucault (2008b), o mercantilismo teria sido o primeiro esforço de instalação da racionalização do poder como prática de governo, devido à emergência do problema da população. Ela aparece “como consciente, diante do governo, do que ela quer, e também inconsciente do que a fazem fazer” (FOUCAULT, 2008b, p. 140) e, para isso, elimina o modelo de família sustentado até então. Isso significa dizer que até o surgimento da problemática da população, a arte de governar não podia ser pensada senão a partir do modelo da família, a partir da economia entendida como gestão da família. A partir do momento em que, ao contrário, a população vai aparecer como absolutamente irredutível à família, a família passa para o nível inferior em relação à população; aparece como elemento no interior da população. Portanto, ela não é mais um modelo; é um segmento, segmento simplesmente privilegiado porque, quando se quiser obter alguma coisa da população quanto ao comportamento sexual, quanto á demografia, ao número de filhos, quanto ao consumo, é pela - 91 - família que se terá efetivamente de passar. Mas, de modelo, a família vai se tornar instrumento, instrumento privilegiado para o governo das populações e não modelo quimérico para o bom governo (FOUCAULT, 2008b, p. 139). A partir, pois, das múltiplas relações entre população, território e riqueza constitui-se, no século XVII, a ciência denominada “economia política”, e a intervenção do governo passa a ser a economia e a população. Foucault lembra, entretanto, que essa mudança não significou o desaparecimento da soberania nem da disciplina. De sorte que as coisas não devem de forma nenhuma ser compreendidas como a substituição de uma sociedade de soberania por uma sociedade de disciplina, e mais tarde de uma sociedade de disciplina por uma sociedade, digamos, de governo. Temos, de fato, um triângulo – soberania, disciplina e gestão governamental –, uma gestão governamental cujo alvo principal é a população e cujos mecanismos essenciais são os dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2008b, p. 142-143). A esses procedimentos de intervenção político-econômica do Estado sobre a população, que podem ser caracterizados como dispositivos de segurança, Foucault denomina “governamentalidade”. Por esta palavra, „governamentalidade‟, entendo o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por „governamentalidade‟ entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito tempo, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de „governo‟ sobre todos os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por „governamentalidade‟, creio que se deveria entender o processo, ou antes o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco „governamentalizado‟ (FOUCAULT, 2008b, p.143-144). As táticas de governamentalidade é que permitiram a sobrevivência do Estado e definem, até os tempos atuais, o que compete ou não a ele. No âmbito das ações dispensadas pelo governo à população, destacam-se as políticas públicas, responsáveis pelo investimento de recursos públicos no direcionamento de ações na realidade social, as quais são determinadas por diversos grupos políticos, econômicos e organizações da sociedade civil. 4 DA VISIBILIDADE À INVISIBILIDADE: MECANISMOS E ESTRATÉGIAS DO FUNCIONAMENTO DISCURSIVO DAS IMAGENS FIXAS E EFÊMERAS Uma imagem, pintada, esculpida, fotografada, construída e emoldurada é também um palco, um local para representação. O que o artista põe naquele palco e o que o espectador vê nele como representação confere à imagem um teor dramático, como que capaz de prolongar sua existência por meio de uma história cujo começo foi perdido pelo espectador e cujo final o artista não tem como conhecer (MANGUEL, 2001, p.291). A partir do dispositivo teórico exposto, ao empreender uma pesquisa que visa discutir sobre a prática discursiva midiática televisiva sobre as pessoas com deficiência, lança-se um desafio: tomar a materialidade imagética como lugar privilegiado de análise. Para tanto, faz-se necessário refletir sobre as instâncias composicionais dessa materialidade, tanto no plano da visibilidade quanto no da invisibilidade. Os sentidos midiáticos não se dão por acaso. Há um saber técnico que coloca em funcionamento uma linguagem específica para produzir determinados efeitos e não outros. Assim como ocorre com a linguagem verbal, o campo imagético também depende de estratégias e mecanismos próprios a essa linguagem, como cor, perspectiva, textura, tom e movimento. A operacionalização desses elementos, combinada com a dinamicidade empregada na exibição de imagens, palavras e sons, na mídia, produzem sentidos que podem comprovar, sensibilizar ou reforçar uma prática. Nesse sentido, a proposta deste capítulo é reunir alguns princípios que subsidiam teórico-metodologicamente a prática analítica da representação e dos sentidos sobre as pessoas com deficiência, em materialidades midiáticas. Isso porque acreditamos que as estratégias e os mecanismos linguístico-discursivos, estéticos e tecnológicos podem amparar a compreensão do funcionamento discursivo acerca desse sujeito. - 93 - 4.1 A IMAGEM: REPRESENTAÇÃO EM FOCO Figura 9 - Anúncio veiculado pela AACD1 1 A AACD - Associação de Assistência à Criança Deficiente é uma entidade privada, sem fins lucrativos, que trabalha em prol da reinserção das pessoas portadoras de deficiência física na sociedade. - 94 - Comumente, uma imagem não é produzida gratuitamente nem é pura em sua composição, tal como se apresenta a figura 9. Segundo Aumont (1993, p.78), uma das razões essenciais de sua produção é “a que provém da vinculação da imagem em geral com o domínio do simbólico, o que faz com que ela esteja em situação de mediação entre o espectador e a realidade”. A sistematização de seus elementos constitutivos revela, assim, a opacidade da linguagem, distanciando-se da concepção de imagem como espelho da realidade, ancorada na neutralidade e na objetividade (TASSO, 2005). Devido à condição de existência de uma imagem é possível afirmar, segundo Tasso (2005), que os sentidos nela circunscritos se apresentam tanto no plano da visibilidade quanto no da invisibilidade. Dependendo das articulações que se encontram em jogo, podem portar um discurso que evidencia determinados elementos e omitir outros, a fim de produzir sentidos específicos. Para revelar por que e como a imagem porta discursos, Tasso (2005) propõe que ela seja estudada em três níveis, assim denominados: (i) icônico-sensorial; (ii) noemático, e (iii) discursivo 2. O nível icônico-sensorial está relacionado de imediato às emoções que a imagem evoca: tristeza, angústia, espanto, admiração, surpresa, entre outros sentimentos. Busca-se, então, o reconhecimento dos elementos constitutivos do texto, indicando possíveis relações entre o objeto e seu referente. Algumas questões que levariam a essas relações: qual é a proporção da imagem? Apresenta um(a) pessoa/objeto apenas? Reporta a um ambiente interno ou externo? O que ela parece dizer? O nível seguinte, o noemático, compreende o momento em que o sujeito-espectador coloca em ação saberes de ordem política, econômica e sociocultural, os quais permitem esclarecer como o texto diz o que aparenta dizer. Atentando-se à visibilidade do texto levantamos alguns aspectos da produção, como as cores, a perspectiva, a sugestão de algum tipo de movimento e o ambiente representado (público? privado? luxuoso?). A partir das informações resultantes dos questionamentos propostos pelos níveis anteriores, chega-se ao nível discursivo. Nessa etapa, buscam-se os sentidos que se encontram além da visibilidade do texto, na opacidade da linguagem, no domínio do simbólico. Após o desenvolvimento dessas etapas é possível responder à questão: Por que a imagem do jogador Ronaldo (Figura 9) diz o que diz? Trata-se de uma imagem 2 Acreditamos que os três níveis propostos, embora estejam sujeitos a reformulações, podem subsidiar as práticas analíticas a serem desenvolvidas no capítulo 5. - 95 - monocromática, que destaca em primeiro plano a imagem de Ronaldo apoiando-se em muletas, em plano americano (PA)3. O jogador sorri e parece olhar algo/alguém para além da lente fotográfica. Seu gesto parece indicar que ele ocupa um lugar amplo, não registrado no plano e na perspectiva adotados. No segundo plano, a opacidade da imagem permite entrever, embora de forma não nítida, algumas pessoas que parecem estar observando o jogador. Embora o texto não contemple informação sobre o acontecimento esportivo 4, trata-se de um anúncio veiculado pela AACD em agradecimento ao Corinthians pelo espaço cedido para estampar a marca da instituição na camiseta do time, durante um jogo do campeonato paulista, em fevereiro de 2009. Por que, então, utilizar a imagem de Ronaldo para manifestar o agradecimento ao time? É sabido que o jogador é mundialmente conhecido como um “fenômeno” no futebol. Ele é um símbolo de sucesso, de competência e de habilidade no esporte. No entanto, no anúncio passa a pertencer ao grupo daqueles que sofrem restrições na prática esportiva, ou seja, daqueles que possuem uma deficiência física temporária ou permanente e que mesmo que pratiquem um esporte, estão impossibilitados de alcançar o sucesso assim como foi alcançado por Ronaldo. E dessa forma são criadas condições para uma identificação das pessoas que frequentam a instituição com a situação de limitação mostrada pelas muletas. Para que esse efeito de pertencimento seja possível, é preciso que haja um saber partilhado sobre o jogador e a instituição: o sujeito-espectador necessita reconhecer a habilidade do jogador em um esporte específico, além de seu histórico de lesões no joelho sofridas em 2000 e 2008, o que quase causou seu afastamento dos campos de futebol. Assim, produz-se o efeito de sentido de incapacidade que pode ser atribuído tanto para uma fase vivida pelo jogador como para aqueles que frequentam a AACD, por conta de uma deficiência física temporária ou permanente, o que pode, por sua vez, provocar efeitos que evoquem o sentimento de comoção e, ao mesmo tempo, de admiração no sujeito-espectador. A partir das proposições sobreditas é possível recorrer aos apontamentos de Dondis (1991), que considera que as imagens visuais são expressas e recebidas em três domínios: o representacional, o abstrato e o simbólico. A informação representacional é, segundo a 3 Considera-se como plano a perspectiva sob a qual uma imagem é apresentada, empregada para a obtenção de determinados efeitos de sentido. Os mais recorrentes são: Geral (GPG), Geral aberto (PGA), Geral fechado (PGF), Inteiro (PI), Americano (PA), Médio (PM), Próximo (PP), Close (CL), Superclose (SCL), Detalhe (CUT up), Plongée e Contraplongée. (TASSO, 2005, p. 159) 4 Importa destacar que nas reflexões de Benveniste (1902 -1976) acerca da enunciação, o advérbio de tempo hoje seria um debreante enunciativo, visto que a referência é a enunciação. Isso significa que se não há a informação da data em que o jogo ocorreu, não é possível saber, a que a data hoje se refere. - 96 - estudiosa, o nível mais eficaz na comunicação de detalhes visuais e que tem progredido graças às técnicas de fixação e conservação da imagem proporcionadas pela fotografia e pelos meios de comunicação em massa. Por meio do registro fotográfico é possível se atingir a representação de um alto grau de detalhes, o que sugere a presentificação daquilo que foi registrado. No entanto, é preciso levar em conta que os efeitos dessa representação visual dependem das condições de sua produção circunscritas na imagem. Isso significa considerar que a representação visual e discursiva de Ronaldo, no anúncio (Figura 9), não se deve apenas à transposição bidimensional do mundo real5, mas ao modo como o jogador está representado em condições específicas da produção do anúncio, isto é, a emergência de discursos políticos de inclusão dos deficientes criam as condições de possibilidade e de existência desse anúncio publicitário e sua co-existência com campos associados. Ronaldo é representado como um sujeito que “está deficiente”, característica, portanto, sazonal. A imagem, acompanhada de textos verbais, pode manipular o significado e os sentidos possíveis do anúncio. A fotografia de Ronaldo com muletas associada à sequência linguística “a gente”, que se refere àqueles que frequentam a instituição, significa o reconhecimento de que, nessa imagem, ele pertence a esse grupo, ou seja, nesse contexto ele assume essa identidade. Dondis (1991) explica que, com o advento da câmera, qualquer coisa visível aos olhos pode ser relatada com exatidão extraordinária de detalhes. A naturalidade da representação da realidade pela captação das lentes foi, segundo o estudioso, um dos fatores essenciais que determinaram o interesse cada vez maior pelo segundo nível, o abstrato. “[...] o artista e o visualizador podem ter se sentido liberados para assumir uma abordagem mais livre da expressão visual, graças à competência mecânica natural da câmera para a reprodução de uma manifestação visual consumada e definitiva. Por que competir com ela?” (DONDIS, 1991, p. 104) Quanto ao processo de abstração do segundo domínio, o abstrato, Dondis (1991) destaca que “é também um processo de destilação, ou seja, de redução dos fatores visuais múltiplos aos traços mais essenciais e característicos daquilo que está sendo representado”. Essa eliminação dos detalhes para se chegar ao domínio de abstração total pode voltar-se para o simbolismo ou para a abstração pura. Importa destacar que a solução visual abstrata é constitutiva de qualquer artista ou designer. No entanto, o mesmo processo não ocorre com os profissionais que trabalham com 5 Realidade é aqui entendida como existência física de alguma coisa, independente dos significados atribuídos. - 97 - uma câmera, como um fotógrafo ou um cineasta. Isso ocorre porque nesses casos “o trabalho visual básico é dominado pela informação realista detalhada”, visto a eficiência da câmera na captação da realidade6 (DONDIS, 1991, p. 104). O último domínio de informação visual, o simbólico, reduz “o detalhe visual a seu mínimo irredutível. Para ser eficaz, um símbolo não deve apenas ser visto e reconhecido; deve também ser lembrado, e mesmo reproduzido” (DONDIS, 1991, p.91). Enquanto meio de comunicação visual, o símbolo pode ser uma imagem simplificada ou um sistema complexo de signos; por exemplo, a linguagem ou os números. “Em todas as suas formulações, pode reforçar, de muitas maneiras, a mensagem e o significado na comunicação visual” (DONDIS, 1991, p. 105). No corpus de análise desta pesquisa é possível encontrar um símbolo recorrente da deficiência. O objetivo do símbolo branco com fundo azul, representado na figura 10, é identificar edifícios e instalações nos quais pessoas com deficiência podem se locomover com independência (Figura 10). Trata-se de um símbolo que não contém grande quantidade de informações sobre qualidades reais de uma pessoa que utiliza uma cadeira de rodas para se locomover, mas indica, em sua invisibilidade, o direito de ir e vir conquistado por esses sujeitos. Além disso, a eficácia de tal símbolo se dá pelo seu reconhecimento em diversos espaços sociais e até mesmo sua ressignificação em diversas composições midiáticas. Nos exemplos abaixo expostos, verifica-se a presença do símbolo em um ônibus (Figura 11), cena que compõe uma propaganda veiculada na mídia televisiva. Outra estratégia é a utilização do símbolo em uma sala de aula (Figura 8)7, indicando o direito de ocupar um lugar nesse espaço. A figura 12 compreende a utilização e a ressignificação do símbolo em campanhas publicitárias em prol do respeito aos direitos de acessibilidade do cidadão com deficiência. Em todos esses materiais midiáticos o símbolo de acessibilidade pode ser considerado o punctum (Barthes, 1984) da composição imagética, visto que, enquanto enunciado, sua materialidade repetível resgata uma memória discursiva e produz sentidos. 6 7 Esse fato não leva em conta os efeitos de abstração possibilitados pela tecnologia de edição de fotos e filmes. Cf. capítulo 3, seção 3.2. - 98 - Figura 10 - Símbolo universal da acessibilidade de pessoas com deficiência física Figura 11 - Cena da propaganda “Condição” Figura 12 - Movimento AVAPE8 pelo respeito 8 AVAPE - Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência é uma organização filantrópica de assistência social, fundada em 1982, que atua no atendimento e na defesa de direitos, promovendo a inclusão, a - 99 - Qual seria, então, a relação entre os níveis representacional, abstrato e simbólico? Segundo Dondis (1991), cada nível tem características específicas, mas eles não são inteiramente opostos. Os níveis se sobrepõem, se potencializam mutuamente e se ressignificam à medida que a tecnologia de captação e produção de imagens evolui. A chave para a relação desses níveis com a realidade seria, então, o realismo. Para Aumont (1993, p. 105 - grifos do autor), “o realismo é um conjunto de regras sociais, com vistas a gerir a relação entre a representação e o real de modo satisfatório para a sociedade que formula essas regras”. Assim, o realismo é um efeito que medeia a relação entre os três níveis da imagem por meio de dois fenômenos: o efeito de realidade e o efeito do real (AUMONT, 1993, p. 111). O primeiro caso, o efeito de realidade, corresponde ao “efeito produzido no espectador pelo conjunto dos índices de analogia em uma imagem representativa (quadro, foto ou filme, indiferentemente).” Isso significa que a garantia de reconhecimento de uma representação depende da evocação de convenções históricas representacionais. Já no efeito do real, o espectador instiga um julgamento de existência, ou seja, “o espectador acredita, não que o que vê é o real propriamente dito, mas, que o que vê existiu, ou pôde existir, no real” (AUMONT, 1993, p. 111 - grifos do autor). No caso da propaganda da AACD (Figura 9), as muletas são elementos que garantem a representação de pessoas com deficiência, uma vez que são convencionalmente reconhecidas como objetos indispensáveis para aqueles que têm uma deficiência física temporária ou permanente. A partir desse elemento e da imagem de um famoso jogador de futebol há um efeito de real em que a composição indica algo que existe na realidade, cujo efeito se deve às condições de possibilidade proporcionadas pela materialidade fotográfica. Esses efeitos de realidade e de real que sustentam os níveis do modo como as imagens representam aproximam-se da ideia fundamental de que a imagem é sempre modelada por estruturas profundas, ligadas ao exercício de uma linguagem, assim como à vinculação a uma organização simbólica (a uma cultura, a uma sociedade), mas a imagem é também um meio de comunicação e de representação do mundo, que tem seu lugar em todas as sociedades humanas. A imagem é universal, mas sempre particularizada (AUMONT, 1993, p. 131). reabilitação e a capacitação de pessoas com todo tipo de deficiência e também de pessoas em situação de risco social. Disponível em: <http://www.avape.org.br/portal/>. - 100 - O ato de ler uma imagem requer, portanto, a compreensão tanto da ordenação dos elementos visíveis formais que a compõem quanto das relações discursivas que lhe são exteriores, dadas nos níveis icônico-sensorial, noemático e simbólico. Nos planos de visibilidade e invisibilidade, a condição de existência dessa prática imagética apoia-se nas proposições sobre enunciado e função enunciativa que se configuram como dispositivos analíticos dos processos discursivos em imagens; nesta pesquisa, relativas às pessoas com deficiência em circulação nas mídias impressa e televisiva na atualidade. Isso porque “a imagem pode concentrar, num espaço físico do seu suporte, inúmeras formulações inscritas na opacidade ou na transparência de seus enunciados, em geral, visíveis por marcas simbólicas” (TASSO, 2003, p. 60). No caso das pessoas com deficiência, a condição de existência dessas imagens se dá pela ocupação de sujeitos em lugares institucionais e pelas regras sócio-históricas que determinam a inclusão desses sujeitos em diversos campos sociais, na configuração atual. Como essas condições [de existência e de suas possibilidades] se efetivam por práticas discursivas, daí a possibilidade de se determinar que as imagens dessa natureza possuem um conjunto de regras pelas quais um espectador pode estabelecer diferentes níveis de relação entre aquilo que se encontra no domínio da representação visual e o que lhe é exterior. (TASSO, 2003, p. 47) A partir das relações sobreditas, propomo-nos a investigar alguns aspectos formais, levando em conta sua influência nas possibilidades de interpretação de imagens. 4.1.1 Dispositivos analíticos da imagem Considerando a relevância dos elementos visuais na descrição e interpretação de imagens, seja ela pintada, desenhada, construída ou esculpida, Dondis (1991) descreve uma lista daqueles que considera básico. Uma vez que o corpus de análise desta pesquisa é composto por materialidades da mídia em movimento, privilegiamos a exposição dos seguintes elementos: a direção, o tom, a cor, a textura, a dimensão, a escala e o movimento. A direção: as três direções visuais básicas e significativas, compostas pelas formas básicas são: o quadrado, a horizontal, a vertical, o triângulo, a diagonal, e círculo e a curva. (Figura 13) Todas têm um forte significado associativo e são “valiosos - 101 - instrumentos de criação de mensagens visuais.” (Figura 14) A direção horizontalvertical tem a ver com a estabilidade tanto na relação entre o organismo humano e o meio ambiente quanto nas questões visuais. A direção diagonal é a força direcional oposta, ou seja, mais instável e perturbadora, cujo significado é associado “à abrangência, à repetição e à calidez”. Figura 13 - Direções visuais básicas Figura 14 - The Discs in the City, Fernand Léger O tom: a perspectiva é o método para a criação de muitos efeitos visuais na representação tridimensional. Para simular a distância, recorre a artifícios como a massa, o ponto de fuga e o nível do olho, entre outros. Entretanto, mesmo com esses recursos o ponto ou a linha não criará por si só uma ilusão convincente de realidade. Logo, recorre-se ao tom, que é marcado pela presença ou ausência de luz, produzindo efeitos que expressam a ideia de dimensão. Graças a ela vemos o movimento súbito, a profundidade, a distância e outras referências do ambiente. Na figura 15 verifica-se a importância de todos esses elementos para a - 102 - comunicação visual efetiva: se o espectador não se posicinar corretamente, o efeito não se realiza. Figura 15 - Pintura 3D de uma cachoeira no chão A cor: devido à afinidade com as emoções e a quantidade de informações que a compõem, a cor é utilizada com muito proveito para expressar e intensificar a informação visual. Às cores são atribuidos siginificados associativos, compartilhados por todos. Dondis explica que as cores possuem três dimensões: matiz, saturação e acromática. A matiz, ou croma, é a cor em si. Os matizes primários são: o amarelo, cujo significado se aproxima da luz e do calor; o vermelho, que é ativo e emocional; e o azul, que é passivo e suave. A partir das misturas desses matizes surgem as cores secundárias, cujas variações podem ser visualizadas no círculo cromático (Figura 16) A segunda dimensão da cor é a saturação, “que é a pureza relativa de uma cor, do matiz ao cinza” (DONDIS, 1991, p. 66). As cores menos saturadas provocam uma neutralidade cromática ou até mesmo uma ausência de cor. Ao contrário, quanto mais saturada for a coloração de um objeto, mais carregado estará de emoção e expressão. A terceira e última dimensão da cor é a acromática, que consiste no “brilho relativo, do claro ao escuro, das gradações tonais ou de valor” (DONDIS, 1991, p. 66). É preciso observar, no entanto, que sua presença ou ausência não influencia o tom, que é constante. Assim, “a cor não apenas tem um significado universalmente compartilhado através da experiência, como também um valor informativo específico, que se dá através dos significados simbólicos a ela vinculados” (DONDIS, 1991, p. 69). Farina (1986) corrobora tal questão ao ressaltar que o uso - 103 - da cor se tornou, com o advento da televisão, um dos instrumentos mais explorados nos produtos midiáticos, devido ao seu poder sobre a emotividade humana. Assim, a cor estabelece uma conexão direta com aquilo que enuncia e pode captar a atenção dos sujeitos rapidamente. Figura 16 - Círculo cromático Textura: é possível reconhecer a textura tanto pelo tato quanto pela visão, ou pela combinação de ambos. “A textura se relaciona com a composição de uma substância através de variações mínimas na superfície do material” (DONDIS, 1991, p.71). A maior parte das experiências com a textura é ótica e não tátil. Logo, a textura em materiais impressos é apenas aparente (Figura 17). - 104 - Figura 17 - Bandeira do Brasil Escala: usada em projetos e mapas para representar uma medida proporcional real, a medida é sua parte integrante, porém menos importante que a justaposição – o que se encontra ao lado do objeto visual, e em que cenário ele se insere (DONDIS, 1991, p. 73). Dimensão: existe no mundo real, mas nas representações bidimensionais, como a fotografia, o desenho, a pintura, o cinema, e na televisão é apenas implícita. O principal artifício para simulá-la é a perspectiva, cujos efeitos podem ser intensificados pelo tom. “A perspectiva tem fómulas exatas, com regras múltiplas e complexas. Recorre à linha para criar efeitos, mas sua intenção final é produzir uma sensação de realidade” (DONDIS, 1991, p. 75). (Figura 18) Figura 18 - Interior de uma casa - 105 - Movimento: é encontrado explicitamente no cinema e na televisão. Nas artes visuais encontra-se de forma implícita, como no caso da dimensão, associada a detalhes de textura e intensidade de luz e sombra (Figura 17). O movimento em manifestações estáticas é apenas uma ilusão decorrente de um fenômeno fisiológico do olho do espectador, chamado “persistência da visão”. Dondis (1991, p. 80-81) explica que “a película cinematográfica é na verdade uma série de imagens imóveis com ligeiras modificações, as quais, quando vistas pelo homem a intervalos de tempo apropriados, fundem-se mediante um fator remanescente da visão, de tal forma que o movimento parece real”. Esses são, assim, os elementos básicos utilizados para a descrição de composições visuais. Além desses componentes, outras características da ordem formal / funcional podem ser atribuídas à imagem fixa/efêmera. Quanto à imagem fixa, Tasso explica que, apesar do caráter irrevogável de sua imutabilidade, a imagem plástica pode ser alterada em processos de reprodução, por sua condição de ser recriada quando submetida a outros processos, como aqueles relativos à colagem, à justaposição e às adaptações, de acordo com os fins a que se destina. Transformada ou não, essa produção fica disponível, ao espectador, pelo espaço de tempo que o desejar e, a partir disso, empregar os recursos que ele dispõe para a produção de sentidos, em qualquer dos aspectos: formais, simbólicos, discursivos ou estéticos. O que já não ocorre com a imagem efêmera, também conhecida como imagem em movimento (TASSO, 2003, p. 49). Como é a imagem efêmera o foco de atenção nas análises empreendidas neste trabalho, destacaremos algumas especificidades relativas à linguagem videográfica. 4.1.2 Das propriedades da imagem em movimento O estudo de uma possível linguagem da imagem efêmera requer um complexo esforço de compreensão de seus código significantes, haja vista que reprocessa formas de expressão colocadas em circulação por outros meios, atribuindo-lhes novos valores (MACHADO, 1997). Segundo Marie (2006), o vídeo, em princípio, não era dotado de uma linguagem. Era apenas o registro de um espetáculo anterior, ou então a simples reprodução do real. Foi - 106 - porque quis contar histórias e veicular ideias que a imagem em movimento teve de determinar uma série de procedimentos que o termo linguagem inclui. Machado (1997, p. 191) explica que a gramática do vídeo, se existir, não tem o mesmo caráter normativo da gramática das mensagens verbais. Tudo no universo das composições audiovisuais poderia, segundo o estudioso, ser descrito em termos de fenômeno cultural, isto é, “como decorrência de um certo estágio de desenvolvimento das técnicas e dos meios de expressão, das pressões de natureza socioeconômica e também das demandas imaginárias, subjetivas, ou, se preferirem, estéticas, de uma época ou lugar.” Enfim, se há uma linguagem cinematográfica, que linguagem é essa? É evidente que um filme é algo bem diferente de um sistema de signos e de símbolos. Um filme, em primeiro lugar, são imagens e imagens de algo. Um sistema de imagens cujo objeto é descrever, desenvolver, narrar um acontecimento ou uma série de acontecimentos qualquer. Mas essas imagens, dependendo da narração escolhida, organizam-se em um sistema de signos e de símbolos; tornam-se símbolos ou podem também tornar-se símbolos. Não são unicamente signos como palavras, mas, antes de qualquer coisa, objetos, realidade concreta: um objeto que tem (ou ao qual damos) uma significação determinada. É nisso que o cinema é uma linguagem: torna-se linguagem na medida em que é, em primeiro lugar, representação, e por meio dessa representação; é, se quisermos, uma linguagem em segundo grau (Mitry, 1979, apud MARIE, 2006, p. 174). Marie (2006) explica que da mesma forma que a língua é um sistema de códigos organizados interno à linguagem, é possível considerar que existem códigos perceptíveis que fazem com que o espectador compreenda o vídeo. Essas seriam as características que permitiriam utilizar-se o termo “linguagem videográfica”. Em outras palavras, seria essa linguagem videográfica a que organiza elementos significativos, transformando em discurso o que poderia ser apenas um decalque visual da realidade. Esses códigos significantes que organizam a linguagem videográfica devem ser dotados de uma característica essencial: a inteligibilidade. De qualquer forma, se a comunicação se dá em alguma instância, é porque certas estruturas significantes são inteligíveis a todos, sejam eles emissores ou receptores, ou porque todos são sensíveis a elas. Portanto, algo se transmite pelo vídeo, e esse algo só se transmite porque o vídeo deve operar com certas formas e certos modos de articulação que são comuns a todos os implicados no processo de comunicação (MACHADO, 1997, p. 193). - 107 - Uma vez considerado o material de expressão temporalizado que compõe essas materialidades, existiriam assim dois polos: um constituído de códigos totalmente não específicos ao vídeo e outro de códigos específicos, que são em número muito limitado. Entre esses dois polos há uma hierarquia na especificidade, baseada na maior ou menor zona de extensão dos códigos considerados. Alguns deles são: Os códigos de analogia, por exemplo, referem-se a todas as imagens figurativas; só serão fragilmente específicos do cinema ao mesmo tempo que nele desempenham um papel de primeiro plano. Os códigos „fotográficos‟, [...] o das escalas de plano, o da nitidez da imagem referem-se à imagem “mecânica” obtida por uma tecnologia físicoquímica; são, portanto, mais específicos do que os da analogia visual. Todos os códigos que se referem à colocação em seqüência da imagem são ainda mais claramente específicos, embora se refiram também à fotonovela e à história em quadrinhos. Os únicos códigos exclusivamente cinematográficos (e televisuais, mas as duas linguagens são amplamente comuns) estão ligados ao movimento da imagem: códigos de movimento de câmera, por exemplo. [...] Outros códigos muito explorados pelo cinema, mas pouco específicos são as perspectivas plongée e contre-plongée (MARIE, 2006, p. 197-198). Verifica-se que os dispositivos analíticos da imagem fixa, expostos anteriormente, embora não sejam específicos da imagem efêmera, podem subsidiar sua prática analítica. Isso porque, para desenvolver um movimento descritivo-interpretativo de imagens em movimento é preciso congelá-las em uma sequência de imagens fixas. Logo, os elementos que compõem as imagens são significativos na produção de sentidos, como as cores, o tom e a dimensão, entre outros. Machado (1997), ao identificar algumas tendências gerais no universo do vídeo ressalta que as imagens de vídeo não aceitam detalhamentos minuciosos, já que a tela possui dimensões pequenas. Assim, a imagem eletrônica, por sua natureza, tende a se compor sob a figura da sinédoque, em que a parte e o detalhe sugerem o todo, sem que esse todo, entretanto, possa jamais ser revelado de uma só vez. Decorre daí que o recorte mais adequado para ela é o primeiro plano. Assim, por suas próprias condições de produção, o quadro videográfico tende a ser mais estilizado, mais abstrato e, por consequência, bem menos realista do que seus ancestrais, os quadros fotográfico e cinematográfico. O mesmo ocorre com os processos de metonímias e metáforas. É a mesma lógica da língua chinesa, que trabalha basicamente com ideogramas: para anotar o conceito de amizade, por exemplo, esta língua combina pictogramas de “cão” (símbolo de fidelidade) e de “mão direita” (com a qual se - 108 - cumprimenta o amigo. Assim, a imagem do vídeo, estilizada, reduzida ao essencial, pede um tratamento significante no plano sintagmático, pede que se pense a articulação dos planos como um trabalho de escritura, uma escritura de imagens, à maneira do ideograma chinês (MACHADO, 1997, 194-195). Ao reduzir o formato da imagem na televisão, o que interessa é o efeito a ser produzido e não o espaço construído. Por consequência, o vídeo, veiculado em dimensão reduzida, aponta para a síntese da representação. Evoca-se, assim, na linguagem videográfica, a questão, já discutida neste capítulo, sobre o realismo. Enfim, a revisão teórica desenvolvida até então indica caminhos possíveis para se tratar dos discursos midiáticos acerca da inclusão da pessoa com deficiência e seus efeitos de sentido, que subsidiarão a prática analítica a ser desenvolvida no capítulo seguinte. 5 (D)EFICIÊNCIA: DISCURSOS SOBRE O MOVIMENTO INCLUSIVO EM TELA São depoimentos fortes. Um convite à reflexão. (Trecho de reportagem do Esporte Espetacular) Ao longo dos dois primeiros capítulos, foram discutidas as condições de emergência de discursos sobre pessoas com deficiência, em determinadas épocas. Tal revisão teórica possibilitou a definição de conceitos que foram utilizados para o tratamento dos discursos midiáticos e a busca pelos seus efeitos de sentidos, com reflexões que são expostas neste capítulo. Salientamos que os resultados obtidos pelo desenvolvimento da prática analítica desenvolvida não pretendem esgotar as possibilidades de respostas ou encontrar uma verdade evidente, haja vista que isso iria contra os pressupostos da perspectiva teórica escolhida. Tomando como apoio teórico as contribuições arqueogenealógicas foucaultianas, objetiva-se destacar uma possibilidade de interpretação que o corpus oferece, e a partir dela propor reflexões. Além disso, a filiação a esse campo teórico permite considerar a existência ou não de uma regularidade nas posições discursivas assumidas em diferentes materialidades midiáticas. Dados os mecanismos que sustentaram ou reforçaram a monstruosidade e a periculosidade do corpo deficiente nas relações sócio-históricas, verifica-se que, na atualidade, a deficiência ganha outro estatuto. Nesse processo de reatualização da memória constitutiva do corpo deficiente, os enunciados, que além de ressignificar o que já foi dito sobre a deficiência discutem, produzem, apagam ou transformam práticas discursivas, constroem novas redes de enunciados, especialmente na mídia televisiva, em consonância com políticas inclusivas atuais. Essa maneira de discursivizar a pessoa deficiente na atualidade é possível, conforme destacado anteriormente, devido a um longo processo de evolução da ciência e de lutas no campo dos direitos humanos. O intercâmbio de informações e as organizações internacionais em prol da reabilitação desse grupo marginalizado na sociedade concretizaram, ao menos no nível discursivo, por meio da proclamação do Ano Internacional das Pessoas Deficientes, o reconhecimento da existência de um problema que afeta a população. Por dar visibilidade a - 110 - esse grupo de pessoas, esse programa de ação mundial possibilitou uma negociação coletiva que polemizava essa identidade e que propiciava a emergência de outro discurso. A partir desse quadro sócio-histórico, a identidade das pessoas com deficiência emerge na mídia televisiva em práticas discursivas que contemplam os campos do esporte, da medicina, do mercado de trabalho, do direito e da escola. Usando-se de estratégias linguísticas e imagéticas de identificação, legitimadas pelo saber e pelo poder, propõe-se a atuação das pessoas com deficiência em outras normas que não a sua. Esses efeitos de verdade possibilitam a governamentalidade dos corpos pelas ações midiáticas, ou seja, os sujeitos são autorizados a ocupar determinados lugares para que a ordem seja mantida. Para tanto, é preciso que o corpo deficiente seja espetacularizado de forma agradável aos olhos do sujeitotelespectador. A mídia televisiva torna-se, assim, superfície de emergência em que enunciados sobre a inclusão de pessoas com deficiência surjam numa relação de confronto e de polêmica. No plano da visibilidade dessa prática midiática, a imagem da pessoa com deficiência é veiculada por elementos formais que podem ser expressos e recebidos nos níveis representacional, abstrato e simbólico. O efeito de realidade e o de real, provocados por essa representação visual e discursiva, revela a necessidade de compreensão da ordenação dos elementos visíveis formais que a compõem, e das relações discursivas que lhes são exteriores para ler essas imagens. Na prática de leitura imagética, os efeitos construídos pela mídia baseiam-se na reatualização da memória constituinte da identidade da pessoa com deficiência. São provocados então, deslocamentos e ressignificações do que já foi dito sobre esse sujeito. Esses discursos que emergem na mídia televisiva reclamam a consideração da função enunciativa, o que implica operar com os conceitos de posição-sujeito, campo associado, referente e materialidade discursiva. Nesse quadro teórico, a posição que o sujeito-discursivo ocupa é governada pelo discurso de defesa dos direitos humanos, que legitima a normalização da deficiência, cujo efeito possível é a equidade de competências, ou seja, a capacidade de desenvolver ações na mesma intensidade e no mesmo ritmo do não-deficiente. No que tange ao domínio associado, os enunciados produzidos pela mídia televisiva desempenham um papel em uma relação de saber-poder que permeia um conjunto de enunciados sobre inclusão. Além disso, outra condição para a existência desses enunciados é sua materialidade constitutiva: escritas, orais, imagéticas e de diversas mídias. - 111 - A partir dessa “função”, que torna tudo o que foi dito, escrito ou falado na mídia televisiva sobre a pessoa com deficiência um enunciado, objetivamos, nesta análise, compreender como a governamentalidade, nas relações entre saber-poder e saber-verdade, inscreve-se nessa prática discursiva, possibilitando o funcionamento da normalização do deficiente como resistência à exclusão. A série enunciativa recortada para a presente análise contempla composições da mídia televisiva – propagandas, reportagens, fragmentos de séries e novelas que discursivizam a identidade/inclusão da pessoa com deficiência1. Nessa série, problematizamos se as estratégias e os recursos linguístico-discursivos responsáveis pela visibilidade da normalização do deficiente exercem efeitos conflituosos com as políticas públicas inclusivas, criando condições de possibilidade de intensificar o preconceito, e, por isso, reduzindo as condições de inclusão. Isso posto, foi construído um quadro teórico que permitiu a visualização dessas relações arqueogenealógicas discutidas até o momento. 1 Tais enunciados fazem parte de um arquivo que está em constante construção, os quais contemplam a proposta de acessibilidade e inclusão das pessoas deficientes na sociedade, haja vista a abordagem do tema em diversas materialidades, de forma cada vez mais recorrente. Para este trabalho, o arquivo contemplou tanto a mídia impressa quanto a televisiva. Nos capítulos teóricos algumas materialidades impressas foram utilizadas como exemplos, sem a pretensão de esgotar suas possibilidades de interpretação. Já na análise privilegiamos as materialidades da mídia televisiva, a partir das quais foi feito um recorte para desenvolver o movimento descritivo-interpretativo. Importa destacar que ao lançar esse olhar ímpar a essas materialidades, também não pretendemos esgotar as possibilidades de análise. - 112 - Descrição O quê? Plano da Visibilidade Saber Função enunciativa Instância arqueogenealógica Memória discursiva / historicidade Imagem fixa REALISMO Imagem em movimento Movimento de Câmera Campo associado Domínio simbólico Quadro 1 - Quadro teórico analítico Materialidade Governamentalidade Movimento Espaço Referente Biopoder Dimensão Tempo Norma / normação / normalização Cor Escala Posição sujeito abstrato Dispositivos de segurança Elementos composicionais Tom Instância representacional Prática discursiva (midiática) Domínio Poder Mecanismos disciplinares (docilização) Direção Textura Interpretação Por quê? Plano da invisibilidade Como? - 113 - A partir do movimento descritivo-interpretativo do corpus selecionado é possível observar como a linguagem verbo-visual foi utilizada para produzir determinados efeitos de sentido e não outros, o que implica compreender como a pessoa com deficiência é discursivizada na superfície midiática. Devido aos polos de predominância de efeitos de sentidos das materialidades vislumbramos, por uma questão metodológica, a possibilidade de separá-las em grupos que demonstrassem o funcionamento dos discursos, que foram assim sistematizados: (a) a naturalização da deficiência, cuja estratégia consiste na promoção dos aspectos positivos e no apagamento da deficiência pela neutralização dos efeitos negativos; (b) o preconceito, que demonstra a existência de práticas preconceituosas ainda existentes na sociedade, o que seria o inverso dos efeitos produzidos no primeiro grupo; e (c) a superação, que mostra que, apesar do preconceito e das dificuldades, os sujeitos conseguiram vencer os próprios limites. Tal efeito coloca em jogo a emoção e a razão. 5.1 (D)EFICIÊNCIA: “SER DIFERENTE É NORMAL” Na busca por enunciados midiáticos que tratam do corpo deficiente notamos que há recorrência em discursos que naturalizam o processo inclusivo das pessoas com deficiência em diversos campos sociais. Para discutir essa questão, uma das materialidades selecionadas foi uma propaganda institucional divulgada pelo Instituto Meta Social, veiculada na mídia a partir de 2008, ao lançar a campanha “Ser diferente é normal”1. Dando início ao movimento descritivo-interpretativo, algumas imagens foram congeladas, e os enunciados verbais são transcritos a seguir. 1 O VT com a propaganda na íntegra se encontra anexado ao trabalho, assim como as demais materialidades em movimento abordadas neste capítulo. - 114 - Cena 1 Cena 2 No começo eu era azul Uma cor legal, positiva, mas todo mundo achava estranho Cena 3 Cena 4 Aí eu resolvi mudar Fui direto pro vermelho, tipo queimadona de sol Mas todos continuavam me olhando diferente Cena 5 Cena 6 Cena 7 Cena 8 Tentei algumas variações até chegar nessa cor básica Cena 9 Cena 10 E agora ninguém me acha assim tão diferente Quer dizer, tem gente que ainda acha, Mas é só uma questão de tempo Quadro 2 - Transcrição de propaganda institucional, campanha “Ser diferente é normal” – Menina colorida - 115 - Na primeira cena, a protagonista se aproxima de um grupo que joga futebol. Está afastada e observa de longe o movimento dos jogadores. Em seguida a menina ganha destaque pela relação imediata, indicial, que aponta qual das três pessoas ali enfocadas é aquela que fala e de quem se fala. O reconhecimento é dado pela característica singular que lhe é atribuída: ser azul e, por isso, ser diferente das demais, embora essa cor seja considerada “positiva”. Em segundo plano aparecem as outras duas pessoas, uma mulher e um homem que observam a garota, com manifestações sutis de estranhamento. A caracterização do espaço em que a cena se desenvolve permite-nos afirmar que é um elevador. Já na cena 3 selecionada, o que se vê, na perspectiva plongée, é a mesma garota da cena anterior, agora com a pele vermelha, segurando novamente uma bola de futebol. A disposição das linhas que aparecem no chão e a cena anterior indicam que ela está em uma quadra de esportes. Logo em seguida a menina anda por um corredor, segurando um caderno. Ao lançar um olhar mais atento à composição imagética nota-se uma estratégia muito importante na produção de sentidos da propaganda: as cores. Em linhas gerais, Farina (1986, p. 21) explica que desde a antiga Roma até os dias atuais a palavra “cor” (e suas variações em cada língua) é utilizada para “expressar uma sensação visual que nos oferece a natureza através dos raios de luz irradiados em nosso planeta. Acrescenta ainda que a cor é o fundamento da expressão, ou seja, não se configura apenas como um aspecto decorativo ou estético, mas vincula-se a valores sensuais e espirituais, nas artes visuais”. No caso da propaganda em questão, seu uso faz parte de um mecanismo que permite a atualização de uma memória discursiva acerca das pessoas com deficiência, possibilidade de leitura que está discutida com maior riqueza de detalhes depois de conhecida toda a sequência de cenas selecionadas. A dinâmica das cores continua nas cenas seguintes (5 e 6), quando a pele da jovem sofre modificações, alternando as cores para amarelo e roxo. Na cena 7, a adolescente está de cabeça baixa, sentada em uma carteira, em uma sala de aula, e escrevendo. Seu reconhecimento é dado pela disposição espacial e por propriedades dos elementos que compõem a imagem em foco. A cor da pele da protagonista nesse momento é rosa. Por fim, quando a cor da pele da jovem assume a tonalidade natural e característica de pele, no caso, branca (cena 8 e 9), as carteiras, antes vazias, aparecem ocupadas por outros alunos. Como todos têm a cor de pele “normal”, todo e qualquer estranhamento parece dissipado. Nessas imagens, o discurso inclusivo inscreve-se na ordem jurídica e educacional, visto que a imagem de uma pessoa com deficiência em uma sala de aula regular apenas faz - 116 - sentido devido às iniciativas do legislativo, na conjuntura atual. No Brasil, por exemplo, a postura inclusiva começa a atribuir direitos às pessoas com deficiência na Constituição de 1988. A LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) institui o direito à matrícula preferencial dos portadores de necessidades especiais na rede regular de ensino. Já em 2001 foram publicadas diretrizes para a educação especial no âmbito nacional (resolução CNE/CEB n. 02/2001), nas quais se define que o atendimento a pessoas com deficiência deve ser realizado em turmas comuns do ensino regular (GÓES; LAPLANE 2004). Com o intuito de atender à legislação vigente, várias instituições passaram a adotar medidas para concretizar o ideal de igualdade, e as leis passaram a assegurar a inclusão de pessoas com deficiência em vários campos sociais, como, por exemplo, no mercado de trabalho (cotas para empresas) e nas escolas (ensino fundamental e médio e, mais recentemente, em algumas universidades). No que se refere à estratégia das cores, articuladas ao enunciado verbal, considera-se que elas desempenharam um papel fundamental no resgate da historicidade das pessoas com deficiência. As relações entre as cores da pele da adolescente, sua significação e sua relação com as pessoas / sociedade poderiam ser assim traçadas: Azul Legal, positivo Todo mundo achava estranho Vermelho Queimadona de sol Todos continuavam olhando diferente Cor básica Ninguém acha tão diferente Observa-se que a cor vermelha não está relacionada a um valor qualitativo, atribuído pela biofísica e psicologia, assim como o azul (legal, positivo), mas a um julgamento. Cientificamente, é normal para algumas pessoas ficarem com a pele vermelha ao se exporem ao sol por muito tempo. Tal condição, que possibilita a normalização da personagem, indica que ela pode praticar as mesmas ações, ou seja, ser “igual” às adolescentes da mesma idade, consideradas “normais”, e adquirir um tom de pele bronzeado pela exposição ao sol, comportamento comum entre jovens. A identificação da personagem com um grupo é feita pelo corpo. E é por essa identificação que ela se inclui em um grupo social. Apenas quando a personagem adquire a “cor básica” é que as pessoas acham que ela não é “tão diferente”. Esta passagem por várias cores, entretanto, não pode ser interpretada apenas no plano da visibilidade, ou seja, não devemos limitar nosso olhar às cores em si, mas ao que elas - 117 - enunciam, significam. As cores simbolizam relações interdiscursivas que podem ser estabelecidas considerando-se o tratamento dispensado às pessoas deficientes ao longo da história, reconstituída não apenas por fatos cronológicos, mas pelas relações de poder e pelas práticas discursivas e sociais que (re)construíram a identidade da pessoa deficiente: a deficiência em si continua a mesma, mas nossa proposta é problematizar como ela foi e ainda é falada / tratada pelas diversas instituições sociais, em especial a mídia televisiva. A cena 10, última da sequência selecionada, é composta pela garota com Síndrome de Down andando, acompanhada por uma outra menina, que não apresenta traços de deficiência. As duas meninas parecem estar conversando, nos padrões considerados normais e naturais. Integra essa imagem, ocupando espaço central, o enunciado verbal: “Ser diferente é normal”, slogan lançado em 2003 pela mesma instituição, em outra propaganda. Apesar de a composição indicar a naturalidade de uma conversa, a cor continua sendo um aspecto problemático nessa cena. Essa perspectiva se deve ao fato de que a jovem com Síndrome de Down conversa com uma menina negra, que também foi e ainda é vítima de preconceito devido às relações de dominação e exploração que podem ser resgatadas na historicidade dessa raça. Chama a atenção, também, a correção que a personagem faz em sua fala: “Quer dizer, tem gente que ainda acha (que sou diferente), mas é só uma questão de tempo”. Nota-se aqui a questão das diferentes temporalidades existentes em uma sociedade, em uma determinada época. A temporalidade, na proposta de Foucault (2007a), é marcada pela heterogeneidade, por isso a possibilidade de, em um mesmo período histórico, nem todas as pessoas “aceitarem” a inclusão de pessoas com deficiência ou não acreditarem na capacidade delas. Já outras pessoas colocam em prática a inclusão social, movimento percebido pelas práticas discursivas produzidas em diferentes práticas sociais, que poderiam ser observadas ao reunirem enunciados sobre as pessoas com deficiência, em diferentes épocas. Esse conceito de heterogeneidade temporal também se vincula à descontinuidade proposta por Foucault (2007a). Para o filósofo, não há rupturas nem continuidade na história. Quanto às pessoas com deficiência, é possível verificar tal aspecto nos diferentes saberes que constituem a verdade sobre os deficientes: não é somente o saber da medicina que afeta a constituição identitária, mas também os saberes ligados aos campos da psicologia, da religião, da sociologia e do direito, entre outros, conforme abordado nos capítulos anteriores. - 118 - Notamos também que não há, no enunciado verbal, qualquer referência terminológica que designe pessoas com deficiência, sujeitos esses produzidos por meio das imagens. Na era da inclusão não se pode negar que no decorrer da história houve atualizações semânticas que passaram a interditar alguns termos. Por exemplo, denominar pessoas com deficiência como “inválidos”, “incapacitados” ou “excepcionais” não corresponde à esfera da prática inclusiva vigente nos últimos anos, que prefere o uso da expressão “pessoas com deficiência”. Avançando um pouco mais nessa questão, considera-se que esses termos já existem na língua; entretanto, são utilizados em uma determinada condição de produção formando outros sentidos, que participam da tentativa de produzir um efeito de verdade que corresponda aos princípios inclusivos. Na propaganda em questão, a denominação é metaforizada por intermédio das cores. Por isso, considera-se a possibilidade de se estabelecer outra ordem de relações de sentido, servindo-se, para tal, do interdiscurso. Nessa perspectiva, efetuamos as seguintes correlações de sentido: azul – inválido (no início da história); vermelho – incapacitado (século XX até 1960); algumas variações – defeituosos, deficientes, excepcionais, pessoas especiais, pessoas portadoras de deficiência (1960 até hoje); cor básica – pessoas com deficiência (1990 até hoje e além). Enfim, tanto a linguagem verbal quanto a imagética concorrem para a representação de um sujeito que, embora tenha passado por dificuldades de aceitação da sociedade, atualmente participa da vida social assim como qualquer outra pessoa. É representado de maneira que pode frequentar espaços sociais variados, de forma independente, tanto em relação à sua família quanto a seus amigos. Processo similar acontece no próximo enunciado, transcrito no quadro 2. (Cena 1) (Cena 2) (Cena 3) - 119 - (Cena 4) (Cena 5) (Cena 6) (Cena 7) Quadro 3 - Transcrição Vinheta Rede Globo Trata-se do recorte de algumas cenas de uma vinheta televisiva que faz parte de um conjunto de quatro vinhetas veiculadas na abertura e no encerramento de intervalos comerciais e de filmes exibidos na Rede Globo de Televisão, entre 2006 e 2007. Tais vinhetas, desenvolvidas a partir do tema “Esporte: ferramenta de transformação e inclusão social”2, constituíam-se de animação gráfica, estilo charge, que não apresentavam, em geral, a dimensão verbal. Em seu encerramento era contemplada a marca da Rede Globo seguida de seu efeito sonoro (plim-plim), e em alguns casos exibia também logotipos de organizações sociais ou eventos. A duração total da vinheta é de 10 segundos. Para sua análise, subdividimo-la em sete cenas (Quadro 2). A primeira cena corresponde ao momento inicial da vinheta. Em close, ou em primeiríssimo plano, duas mãos aparecem arrumando uma bola na grama. Nessa etapa, a cena apresenta indícios de um jogo de futebol: bola e gramado. Ainda não é possível identificar de quem são as mãos, ou os demais elementos característicos dessa modalidade esportiva. 2 No período assinalado, as vinhetas incorporaram temas de responsabilidade social, saúde, educação, violência, cultura brasileira, além de especificidades como a Copa do Mundo e o projeto Criança Esperança. Atualmente, esse estilo de vinheta não está mais em circulação. Privilegia-se apenas a logomarca e o efeito sonoro da Rede Globo. - 120 - A segunda cena compõe-se de dois planos. A cabeça de um menino, que está de costas, ocupa o primeiro plano. Como plano de fundo, exibe-se a imagem de uma trave e a de um goleiro que tenta se posicionar para fazer a defesa de um provável lance a gol. A partir da representação desses elementos e de sua articulação com a primeira cena percebe-se tratar de uma cobrança de tiro penal, conhecido popularmente como pênalti, ou penalidade máxima, em um jogo de futebol. Esse chute é concedido ao time adversário do jogador que cometer uma falta que o árbitro considerar imprudente ou com uso de força excessiva. Para esta cobrança a bola deve estar imóvel ao ser lançada dentro da área penal, e o executor não poderá voltar a tocar na bola antes que tenha tocado em outro jogador, conforme regras publicadas pela Fédération Internationale de Football Association (FIFA).3 O conjunto dos elementos que constituem a cena, em particular as orelhas do jogador e a posição do goleiro, cria as condições para um efeito de igualdade entre os dois sujeitos envolvidos, excluindo-se qualquer possibilidade de necessidade especial de qualquer um dos dois. Esse efeito de sentido de igualdade refere-se à expectativa de que os parâmetros necessários para a prática desse esporte seriam locomoção, agilidade, perspicácia motora e resistência muscular. Logo, nessa leitura inicial da vinheta é previsível que as pessoas com deficiências físicas não se enquadrariam nessas condições. A imagem presente na cena seguinte da sequência narrativa (Cena 3) é composta novamente do close do rosto de um menino. A expectativa que se estabelece, em decorrência do plano-sequência4 é a de que se trata do rosto do “artilheiro”, ou seja, daquele que irá lançar a bola a gol. Sua expressão facial possui um efeito de sentido de enfrentamento e desafio. Tal estratégia complementa a narrativa, representando sua preparação para o chute. Importa destacar que é nesse momento que o jogador, em instantes, analisa o ponto “fraco” do goleiro e decide qual seria o melhor ângulo para o chute. Do mesmo modo, o goleiro se concentra para seguir a provável direção da bola e impedir que o jogador faça o gol. O momento do chute do jogador é composto por duas cenas, que se complementam. Na cena 4 o foco da imagem se distancia (plano inteiro), mostrando o menino de corpo inteiro. O chute é seguido de um close na bola (Cena 5), cujos efeitos são o da velocidade e o 3 4 Adaptação das regras, disponível em <http://www.portalbrasil.net/regras_do_futebol.htm>. Acessado em: 31 ago. 2007. Segundo Rodrigues (2002, p. 31), o plano-sequência corresponde a toda a sequência rodada em um único plano. - 121 - da sua direção. É despertada, nesse momento, a sensação de grande expectativa, visto que a cobrança de um pênalti é como um duelo entre um jogador e o goleiro. Logo, a marcação do gol é esperada por torcedores e jogadores do time atacante. Até essa cena, simultaneamente à composição visual são executados alguns ruídos, simulando cochichos entre jogadores e torcedores. Esses elementos do plano sonoro enquadram-se no nível icônico sensorial, uma vez que seus efeitos complementam os sentimentos de expectativa e de tensão produzidos pela sequência visual narrativa. A narrativa prossegue (Cena 6) revelando que o goleiro, que se mostrava apreensivo com o chute, é um jovem que possui apenas uma perna; logo, apoia-se em muletas para ficar em pé. Somente nesse momento é revelada a identidade da pessoa com deficiência. Tal estratégia nos surpreende, pois resgatamos a memória das limitações atribuídas aos portadores de necessidades especiais ao longo da história. A pergunta “como ele é capaz de jogar como goleiro sem uma perna?” imediatamente inquieta, assim como também surge a afirmação: “certamente ele não vai conseguir defender”. Tais questionamentos não estão explícitos na composição visual, mas na memória coletiva. Trata-se de possíveis efeitos de sentidos produzidos pelos elementos visuais em seu plano simbólico, os quais resgatam a memória atribuída às pessoas com deficiência. Em outras palavras, o enunciado, centrado em uma narrativa, provoca uma quebra de expectativa, em que o sujeito-leitor é levado a transitar de uma formação discursiva para outra: a de que para jogar futebol é preciso ter habilidades e a de que existe atribuição de qualidades ao sujeito com deficiência. Na cena, entretanto, é evidenciado o potencial que esse jovem possui, o qual representa todas as pessoas com essas características. Percebe-se que o mecanismo empregado nessa materialidade midiática possibilita produzir sentidos que se alternam entre a retomada e o apagamento da condição de incapacidade, mostrando o potencial desses sujeitos bem como sua superação em determinadas modalidades esportivas. Logo, é possível atribuir à memória, entendida como os saberes discursivos que compõem os contextos sócio-histórico e ideológico que possibilitam os dizeres, a função de promover um jogo de esquecimentos e ressignificação das identidades. Tal movimento é contínuo e constituinte dos sentidos e das identidades dos sujeitos ao longo da história; nesse caso, as pessoas com deficiência. Na sétima cena, o goleiro é carregado por outras pessoas, possivelmente os torcedores, que comemoram a defesa. Nesse último momento, no nível sonoro gritos de alegria interrompem os ruídos anteriores, confirmando a euforia de jogadores e torcedores. O - 122 - momento de tensão dá lugar ao sucesso. Por fim, aparecem as marcas da Rede Globo no canto direito e do Pan-americano à esquerda. Assim sendo, é esse movimento dialético de memória e esquecimento que promove a lembrança da deficiência, ou seja, a de que para jogar não se pode ter uma limitação; e o silenciamento desse discurso, o que provoca, consequentemente, a ressignificação da identidade do sujeito com deficiência. A previsibilidade inicial de que em um jogo de futebol é necessário ser um sujeito “normal” é apagada com o efeito de surpresa da capacidade do sujeito analisado, em que a sequência visual narrativa, isto é, o tempo/espaço/memória (re)significam capacidade de locomoção, agilidade, perspicácia motora, intelectual e força muscular de tais sujeitos. As perspectivas que se circunscrevem nessa produção visual e sonora é a de inclusão/exclusão e a de igualdade/diferença. Como essas categorias estão representadas nessa vinheta? Nota-se que somente nas cenas finais a “diferença” que caracteriza o goleiro é percebida. A cena 3, por exemplo, revela que a expressão do jogador não é de descaso pelo fato de o goleiro se apoiar em muletas, o que, na memória coletiva, regataria sua incapacidade, de maneira a facilitar o gol. Entretanto, percebemos que o goleiro é igual a qualquer outro: impõe um desafio ao jogador. São atribuídas a ele as características positivas e únicas, identidade “normal” desejável pelos demais grupos sociais. Transpondo a concepção de normalização para os sujeitos estudados nesta pesquisa, teríamos no primeiro grupo os sujeitos considerados “normais”, e no segundo as pessoas com deficiência. A vinheta trata da reorganização desses dois grupos, pois nela o deficiente físico usa seu instrumento de locomoção para desempenhar uma função que é característica dos sujeitos considerados “normais”. Com isso tem-se a aceitação desse sujeito pelos demais componentes do grupo. Verifica-se, assim, um deslocamento da posição ocupada, pois o sujeito com deficiência sai da posição cômoda da norma de seu grupo para se inserir em outras normas; no caso no campo esportivo. Ao realizar tarefas em outras situações normativas, o sujeito com deficiência participa também de uma outra formação discursiva, ou seja, ele se inscreve em um domínio de relações em que os tipos de enunciação, os conceitos e as escolhas temáticas podem ser definidas em uma regularidade (FOUCAULT, 2007a). Na vinheta constrói-se um efeito de democratização desses grupos (normais / anormais) e de seus espaços. A “diferença”, nesse caso, não foi negada, mas possibilitou, na - 123 - narrativa, que o goleiro cumprisse a sua função. Ao ser revelada, a diferença estabelece um nível de igualdade entre o goleiro, que não possui uma perna, e o jogador, o que provoca a vibração dos torcedores. Isso posto, verifica-se que a cidadania é proclamada pela prática de uma modalidade esportiva. Observa-se que outras características necessárias para a prática dessa modalidade esportiva compensaram a falta de um dos membros inferiores de seu corpo. Por exemplo, por uma lado ele é privado de um dos membros essenciais para a prática desse esporte, mas por outro é dotado de agilidade e precisão, características que permitiram o sucesso da defesa do pênalti. Além disso, destaca-se que o equilíbrio é compensado por um acessório de reabilitação, a muleta. Esse elemento, fundamental para a defesa, revela o discurso científico e tecnológico, haja vista que a partir da prescrição médica e das avançadas técnicas de produção de dispositivos ortopédicos existe a possibilidade de reabilitação e de reinserção dos sujeitos com deficiência em atividades sociais. Percebe-se que a vinheta televisiva analisada se apropria de discursos já cristalizados relativos ao sujeito portador de necessidades especiais e a uma modalidade esportiva que faz parte do dia a dia da maioria dos cidadãos brasileiros. A superação dos limites, a partir de valores positivos, são mecanismos que ratificam o discurso de que a política de inclusão é construída nas relações humanas e não somente com base nas leis. Nessa produção audiovisual, além dos sujeitos, o esporte também é responsável pela inclusão social, já que é uma prática que possibilita a concretização das relações sociais e a manifestação de outras habilidades que podem fazer com que os estereótipos sejam repensados pela sociedade em geral. Na vinheta em questão, os efeitos de sentidos possíveis projetam uma perspectiva de inclusão (não apenas integração) e de igualdade desse sujeito, porque pelo esporte é atribuído um valor positivo à sua diferença, questionando-se as características negativas atribuídas a ele em épocas anteriores. Pela prática do esporte o sujeito reconstrói sua identidade, e nos discursos relacionados a ela se torna um igual, ou seja, tem as mesmas oportunidades e realiza os movimentos requeridos/necessários com perfeição e entusiasmo. O próximo enunciado a ser analisado, transcrito no quadro 3, é composto por imagens congeladas de uma propaganda veiculada em 2009, sob responsabilidade da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SECOM). O filme publicitário consiste em uma campanha nacional intitulada “Iguais na diferença – pela inclusão das pessoas com deficiência” e tem como trilha sonora trechos da música “Condição”, de Lulu Santos, cantada por pessoas - 124 - diferentes. Na versão veiculada na TV aberta, a propaganda conta com dois recursos de acessibilidade: (a) legenda, que aparece de diferentes formas na própria composição imagética e é realçada pelo movimento de câmera, e (b) a língua brasileira de sinais – LIBRAS5. 5 Na versão disponibilizada no site da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE - http://www.mj.gov.br/corde/ ) há ainda uma outra opção para as pessoas com deficiência visual, a audiodescrição, que consiste na descrição dos movimentos que auxiliam na compreensão das cenas. - 125 - Eu não sou diferente de ninguém Eu me viro bem melhor Não quero causar impacto O que eu digo é muito exato Eu não sei viver Quase todo mundo faz assim Quando tá mais pra bom que pra ruim Nem tampouco sensação É o que cabe na canção triste e sozinho É a minha condição. Iguais na diferença. Campanha pela inclusão das pessoas com deficiência. Quadro 4 - Transcrição da propaganda “Condição” - 126 - Em linhas gerais, a propaganda mostra pessoas com deficiência, tanto físicas quanto mentais, participando de várias situações do cotidiano, que podem ser assim assinaladas: 1. Mulher com deficiência visual caminha na rua conduzida por um cão-guia. 2. Cadeirante desce (sozinho) do ônibus, que é acessível. 3. Um deficiente auditivo conversa com um grupo de amigos em língua de sinais. 4. Um rapaz com Síndrome de Down trabalha em uma loja de discos. 5. Um cadeirante trabalha em um escritório. 6. Em uma calçada, todos cantam juntos. No plano imagético, predominam as cores quentes, que, aliadas ao movimento da câmera, produzem um efeito de dinamicidade proveniente dos centros urbanos. A expressão de praticamente todos os sujeitos envolvidos nas situações provoca alegria e constrói o efeito de prazer e de satisfação no relacionamento com outros sujeitos, sejam eles deficientes ou não. Quanto à composição dos espaços físicos mostrados, como os computadores e o ônibus, eles indicam que se trata de um período atual. No plano linguístico, a letra da música que acompanha o movimento sequencial das imagens encontra-se em diferentes materialidades que constroem as cenas. Os elementos que compõem o plano verbal são representados pela linguagem de sinais e pela associação sonora e visual, atribuindo um tom harmônico ao conjunto. Nota-se um jogo entre o conceito e a realização de ações, ou seja, vai do abstrato para o concreto. A partir desse percurso, estabelece-se uma lógica, uma dinâmica de leitura. Ao perceber essa estratégia, utiliza-se esse recurso em todas as cenas, o que pode promover a ampliação dos sentidos a cada exibição da campanha. A letra da música, cantada em primeira pessoa, cria um efeito de um saber sobre si, da própria condição. Além disso, o presente do indicativo habitual expressa uma faculdade do sujeito, mesmo que não esteja sendo exercida no momento em que se fala. Isso significa que essa “condição” de deficiente é atemporal. Em linhas gerais, o modo como a propaganda representa o espaço urbano constrói um efeito de sentido de funcionamento perfeito das relações sociais. Toda a área urbana parece estar estruturada para receber as pessoas com deficiência, que circulam de forma independente. A acessibilidade é algo que funciona em todos os lugares, da mesma forma, o que constrói um efeito de que as adaptações dão conta de promover a inclusão, já que essa - 127 - perfeição também pode ser percebida nas relações entre as pessoas “normais” e aquelas com algum tipo de deficiência. Por ser uma campanha do governo, o Estado assume uma política social para o bemestar de toda a população, independentemente de suas diferenças. No entanto, há um efeito de que a relação entre as pessoas também deve ser de harmonia, o que implica a aceitação por parte dos sujeitos. Com uma convivência pacífica, sem “impactos” diante da diferença, as pessoas com deficiência podem exercer sua cidadania. A análise das três materialidades de significação desse grupo permite confirmar que as estratégias discursivas, ancoradas no funcionamento linguístico e imagético, criam condições de possibilidade de opacidade sobre as dificuldades concretas que podem decorrer da inclusão das pessoas com deficiência. Uma das condições de existência e de delimitação dos enunciados analisados neste grupo é o seu referencial, que consiste na normalização da deficiência, ou seja, a possibilidade de ser normal, e, diante disso, estabelecer um equilíbrio na sociedade, bem como a promoção da cidadania. A posição sujeito desta sequência discursiva é uma posição política favorável à inclusão. Isso significa que, frente a tal fenômeno, esse sujeito discursivo reconhece a existência de sujeitos normais e a necessidade de incluir as pessoas deficientes nos diversos campos sociais. Nota-se também que há o exercício de uma prática inclusiva, cujos sentidos construídos subjetivam as pessoas com deficiência, uma vez que cria a ilusão de que as pessoas com deficiência, ao terem acesso à vida social, estão isentas de sofrerem interdições por mecanismos de poder. Verifica-se também que a existência desses enunciados é possível porque eles se relacionam com outros campos do saber. Três deles se destacam nessas materialidades: o esporte, a educação e a arquitetura. Esses deslocamentos e (re)significações dos enunciados que adotam uma posição de normalidade da deficiência podem ser sistematizados conforme o quadro 5. - 128 - Propaganda: “Iguais na diferença” – SECOM Vinheta da Rede Globo Propaganda do Instituto Meta Social Ser diferente é normal Elementos composicionais Mecanismos e estratégias Plano linguístico Plano imagético Cor no domínio metafórico (representa uma temporalidade). Pretérito perfeito: Marca uma mudança de estado, uma alteração do que ela era e do que e hoje, em busca de uma aceitação. Cores. Espaços sociais/ coletivos; interior / exterior (sala de aula, quadra, elevador, ruas). Primeira pessoa do singular (saber sobre si de sua condição). - Presente do indicativo (presente habitual): expressa uma faculdade do sujeito, ainda que não esteja sendo exercida no momento em que se fala. Adaptação de uma música. Discursivamente, as cores têm uma carga semântica que marca a diferença entre normais e anormais. Funciona como elemento de exclusão. A jovem com Síndrome de Down é representada como completamente independente, tanto em relação à sua família quanto as demais pessoas com quem convive. Busca neutralizar os efeitos negativos e busca promover os aspectos positivos. Uso do close Fundo branco Primeira pessoa do singular (saber sobre si de sua condição). A representação visual foge de um raciocínio lógico. Em um jogo de previsibilidade e surpresa, destaca-se primeiramente a igualdade, para depois mostrar a limitação. As dificuldades são abrandadas. Ressaltam-se outras características, que suprem a falta de um membro, como a agilidade e a perspicácia motora. Espaços urbanos diversificados Símbolo de acessibilidade Expressões de alegria e satisfação Apagamento das limitações; Efeito de que as adaptações dão conta de promover a inclusão; Tanto a estrutura física quanto as relações sociais parecem funcionar perfeitamente. Tudo e todos estão preparados para receber, aceitar e conviver com as pessoas com deficiência, seja ela física ou mental, inclusive em relação à comunicação, que parece ser bem-sucedida, uma vez que as pessoas dominam a língua de sinais; A acessibilidade é algo que funciona em todos os lugares, da mesma forma. Representação visual e discursiva do grupo 1. Que identidade é essa? A pessoa com deficiência é um sujeito competente, aceito e incluso na sociedade; logo, normal. O discurso de naturalização da deficiência funciona apagando-se os efeitos negativos das dificuldades, e promovendo-se os aspectos positivos da inclusão. Quadro 5 - Mecanismos e estratégias verbo-visuais na representação da pessoa deficiente - Ser diferente é normal - 129 - 5.2 (D)EFICIÊNCIA: “O PRECONCEITO E A FALTA DE PREPARO DE ALGUMAS PESSOAS E DE ALGUMAS INSTITUIÇÕES AINDA EXISTEM” Esta seção, para dar continuidade ao movimento descritivo-interpretativo, pauta-se na consideração de que os enunciados articulam elementos discursivos já-ditos e ressignificados da memória social, histórica e mítica para compor a normalidade dos sujeitos com deficiência, que exigem uma transformação global e imediata dos processos de socialização e não a mera aceitação de direitos para que possam usufruir da cidadania. Nessas condições, os enunciados analisados apontam para um discurso de resistência, materializado nas práticas de preconceito. A formação desse grupo se justifica por seus efeitos de sentidos, uma vez que mostram a existência de resistência em relação à prática inclusiva. Isso mostra que, apesar do discurso inclusivo, o preconceito ainda se mantém nas relações sociais, visto as práticas histórico-sociais que constituem sua identidade, o que contraria os efeitos construídos na seção anterior6. Essa reflexão parte da ideia de que essas práticas que constituem a identidade do sujeito com deficiência não se sustentam pelas relações de poder. O poder é aqui considerado a partir da perspectiva foucaultiana, ou seja, é um feixe de relações que funciona como uma rede de mecanismos que produz saberes e efeitos de verdade (FOUCAULT, 2007b). Coexistente com essas relações, há as resistências. Para haver resistência, é preciso que ela seja igual ao poder: “tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de „baixo‟ e se distribua estrategicamente” (FOUCAULT, 2007b, p. 241) Logo, se há relações de poder envolvidas nas práticas inclusivas, criam-se possibilidades de resistência. 6 Importa destacar que, apesar de sistematizados em outro grupo, estes enunciados estão em constante relação com aqueles analisados anteriormente. - 130 - (Cena 1) (Cena 4) (Cena 7) (Cena 10) (Cena 2) (Cena 5) (Cena 8) (Cena 11) (Cena 3) (Cena 6) (Cena 9) (Cena 12) Diariamente milhões de pessoas com deficiência superam limitações, e abrem portas para uma vida melhor. Algumas são mais fáceis de abrir. Outras só podem ser abertas por dentro. Dentro de você. Semana nacional do excepcional. Federação das APAES do Paraná. Quadro 6 - Transcrição propaganda da Semana Nacional do Excepcional (2009) De imediato, no domínio icônico-sensorial é possível reconhecer os elementos constitutivos da sequência de cena, que podem despertar um sentimento de surpresa no sujeito-telespectador. A produção de determinados sentidos e não outros é construída por alguns objetos encontrados na vida cotidiana, dentre eles portas, chaves e semáforo. Esses objetos, o movimento das pessoas e os demais elementos que compõem as cenas apontam para um ambiente externo, mais especificamente o urbano. - 131 - A partir dessa composição visível das cenas verificamos que a porta se sobressai, colocada diante de pessoas comuns de forma a interditar a passagem de um jovem portador da Síndrome de Down. Arquitetonicamente, esse elemento é entendido como uma peça usada em aberturas feitas em paredes, que permite o acesso ou a vedação a um ambiente. Para abri-la ou fechá-la, é preciso virar a maçaneta. Na sequência de cenas o uso desse recurso surpreende, visto que sua função não pode ser exercida, já que se trata de um ambiente externo, ao arlivre. A utilização de portas pode se justificar porque simbolicamente significa oportunidades que podem ser concedidas, quando abertas, ou negadas, quando fechadas. Este tratamento imagético amplo em relação a “oportunidades” produz efeitos específicos nesta materialidade a partir das estratégias linguísticas. Primeiramente, na narração em off, o narrador diz que milhares de pessoas com deficiência “abrem portas para uma vida melhor”. Tal enunciado expressa, por meio do uso do verbo no presente durativo, uma competência do sujeito, ainda que não esteja sendo exercida no momento em que se fala. Tal estratégia pode indicar a luta ininterrupta de pessoas com deficiência para que tenham uma efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais, como a acessibilidade de ir e vir, a educação e o emprego. Para representar esses bens fundamentais, foi utilizado um outro mecanismo linguístico. Cada porta é identificada por um substantivo diferente, respectivamente: educação, trabalho e preconceito. O jovem se aproxima da primeira porta e abre facilmente o obstáculo com a palavra “educação”. A educação, metaforicamente, pode representar a panaceia: o remédio para todos os males, cujo significado remonta a deusa da cura, Panaceia, na mitologia grega. O discurso da educação como panaceia é um discurso consolidado na sociedade que atribui à escola um papel central “no cuidado com a infância, com a transmissão dos saberes considerados socialmente relevantes, com a formação do cidadão e com a qualificação do trabalhador” (LOMBARDI, 2006, p.4)7. No cenário político-econômico brasileiro, o discurso de “educação redentora” não é diferente. Devido ao seu caráter a-hitórico, esse discurso, reaparece com a crise de 1929, com a qual se fortalece, voltando em 1932, com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova; ressurge na Segunda Guerra, na ditadura militar e, mais recentemente, em todo o processo da Constituinte de 1988 e na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996 (LOMBARDI, 2006, p.4). 7 O velho discurso que rege a história da educação. Jornal da Unicamp, Campinas, 21 a 27 ago., ano XX, no. 334, p. 4-5. Disponível em < http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/jornalPDF/ju334.html> - 132 - Os enunciados que constituem a memória coletiva sobre a educação no Brasil podem, segundo Tasso (2008), produzir os seguintes efeitos: (I) a escola é para todos; (II) a educação transforma; (III) a educação é a solução para os problemas sociais e econômicos do país; (IV) o desenvolvimento socioeconômico do país depende da educação; (V) a formação educacional é a principal via de ascensão, prestígio e integração no universo dos estratos dominantes; (VI) a educação é um instrumento de inclusão; (VII) a educação desenvolve o ser humano: aprender a conhecer, a fazer, a viver juntos – a viver com os outros -, a ser. (TASSO, 2008, p.52). Nas condições específicas de produção o jovem com Síndrome de Down não apresenta dificuldades na abertura da porta identificada pelo termo “educação”. Cria-se a possibilidade de os sentidos construírem uma imagem positiva de representação de que a educação é uma oportunidade oferecida para as pessoas exercerem sua cidadania, portanto, instrumento de inclusão. Ao longo da história, a educação das pessoas com deficiência era organizada de modo especializado, a parte do ensino comum, cujas terminologias e modalidades levaram a criação de instituições especializadas, conforme visto nos capítulos 1 e 2. As instituições voltadas para o atendimento educacional das pessoas com deficiência, sobretudo no século XX, fundamentavam-se na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) no. 4.024/61, que apontavam para a preferência da integração dos “excepcionais” ao sistema geral de ensino. Outro marco normativo é assinalado pela “Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva 8”. A Constituição Federal de 1988 define a educação como um direito de todos e garante como dever do Estado, “o acesso aos níveis mais elevados do ensino, bem como a oferta do atendimento educacional especializado”. Outro documento que reforça o dispositivo legal é o Estatuto da Criança e do Adolescente e a LDB no. 9.394/96 que, apesar manter a concepção tradicional de educação (classes, escolas e serviços especializados), define como responsabilidade do poder público a efetivação da matrícula de pessoas com deficiência no sistema regular de ensino e a oferta de serviços de apoio especializados. 8 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Brasília:SEESP, 2008. - 133 - A partir desse movimento social, político e econômico decorrente da democratização da escola, posto, podemos retomar a utilização da porta e do vocábulo “educação” nas cenas da propaganda da APAE. Notamos que, por meio dessa estratégia, a peça publicitária articulou um campo simbólico cultural e socialmente reconhecido (portas) com a história e a memória, atravessado pelo discurso pedagógico. O acesso à educação é uma oportunidade que foi dada graças ao movimento mundial pela inclusão, cuja iniciativa não se deu apenas pelo Estado, mas pela luta das próprias pessoas com deficiência. Nota-se, também, que o vocábulo de identificação da porta não está adjetivado, por exemplo, como “educação especial”. Essa estratégia promove o apagamento de uma memória discursiva de segregação do espaço escolar e proclama o quadro atual de inclusão dos alunos deficientes em escolas regulares. Essa passagem da pessoa com deficiente para outra ordem, a do ensino regular (e não mais o especial), pode também ser entendida a partir do código específico da imagem efêmera: o movimento de câmera que retrata a passagem do jovem com Síndrome de Down de um lado para o outro, ao abrir a porta. Não se trata de uma relação dentro/fora real, já que não existem limites arquitetônicos físicos. O realismo dessa linguagem utilizada repousa em uma organização simbólica que faz sentido a uma dada sociedade; no caso a brasileira. Isso significa que o acesso à educação é representado de modo satisfatório, haja vista que o sujeito-espectador instiga um julgamento de existência na relação exclusão/inclusão na/pela educação. Logo após a passagem do jovem pela porta identificada como “educação”, outro elemento visual que representa a passagem de uma norma para outra é o semáforo, que é um instrumento utilizado para controlar o tráfego de veículos e de pedestres na área urbana. De linguagem simples, permite alternar o direito de passagem em uma zona de conflito. Especificamente na propaganda analisada, o close nesse instrumento atribui a ele outro significado. O semáforo representa, simbolicamente, a permissão concedida às pessoas com deficiência para participarem da vida escolar regular, da qual antes eram excluídos, porque é possível ser retomada uma memória discursiva de que, devido a dispositivos de diversas ordens, em épocas determinadas, as pessoas eram impedidas de participar do sistema formal de educação, ora por vergonha ou por receio da própria família, ora pelo preconceito da sociedade, causado pelo estranhamento frente à diferença, ou ainda pela ausência de investigações científicas. - 134 - Nesse domínio de oportunidades, a segunda porta traz como identificação o termo “trabalho”. Esse enunciado convoca a prática utilitarista do corpo, em que o trabalho se constitui como uma identidade social, ou seja, o trabalho é um dispositivo que possibilita à pessoa com deficiência um espaço de valorização simbólica, consolidado por uma posição social e certa independência, devido ao salário que recebe. No entanto, nas cenas da peça publicitária, a essa porta impõe-se uma dificuldade: ela precisa de uma chave para ser aberta. Um dos possíveis efeitos dessa estratégia está articulado à dificuldade das pessoas com deficiência ao mercado de trabalho, mesmo assegurado por lei. A legislação, implementada em 1999 (art. 93 da Lei nº 8.213/91), prevê uma política de cotas ao estipular pisos percentuais diferenciados de contratação de empregados, dependendo do tamanho da empresa. A dificuldade, representada pela chave, pode ocorrer quando a escolaridade e a preparação para o trabalho são insuficientes ou mesmo se a empresa se limita a cumprir os aspectos legais da contratação sem se preocupar em oferecer condições reais de inclusão no ambiente de trabalho. Na sequência, a última porta, identificada com o termo “preconceito”, está trancada, e o garoto não consegue abri-la sozinho. É preciso que alguém faça isso “por dentro”. Essa estratégia visual e linguística revela que apesar de todas as barreiras superadas, há sistemas de valores presentes na sociedade que impedem a democratização dos espaços sociais fundamentados no respeito das diferenças como constitutiva do ser humano. Assim, o vetor preconceito constrói o efeito de que para que as pessoas com deficiência tenham uma vida melhor e usufruam de seus direitos básicos, é necessário não só interrogar a evolução das políticas afirmativas relativas ao mercado de trabalho ou à educação, mas também as transformações que devem ocorrer na família e na sociedade. É preciso, assim, compreender como o processo inclusivo é produzido nas escolas, nas empresas e na família interrogando quais os valores que estão sendo atribuídos à diferença, a partir das relações humanas. Com base nos elementos composicionais dos planos linguístico e imagético considerados, notamos que o diálogo entre o verbal e o imagético define as estratégias e os mecanismos que conduzem à representação das pessoas com deficiência na peça publicitária em questão. Por um lado, verificamos que as cenas privilegiam a representação da acessibilidade legal a determinados espaços sociais e não a física. O que está em questão são as oportunidades amparadas por lei, que podem garantir uma vida melhor às pessoas com deficiência. Por outro, a prática inclusiva, mesmo garantida por lei, se efetiva apenas quando - 135 - o sujeito “normal”, que passa a conviver com as pessoas com deficiência, superem seus próprios preconceitos e atribuam valores positivos à diferença. Semelhante efeito de sentido pode ser encontrado em uma reportagem da mídia televisiva, no Jornal Nacional, que é “o mais antigo, famoso e criticado noticiário brasileiro” (HERNANES, 2006, p. 119). Veiculada em março de 2009, a reportagem trata de uma criança de 1 ano de idade, com Síndrome de Down, que teve sua matrícula negada por causa da deficiência, em uma escola particular, em Porto Alegre. Vejamos sua transcrição: Jornal Nacional Fátima Bernardes: O Jornal Nacional desta quarta começa com uma notícia muito boa. A brasileira Clara Piantá começou a frequentar uma escola. Willian Boner: Clara não é uma cidadã de 60 anos que só agora tenha conseguido estudar. É uma criança, tem só um ano de idade. E a família dela não é pobre, não. Os pais podem pagar as mensalidades de uma escola particular. Fátima Bernardes: O que faz dessa história uma notícia digna de abrir uma edição do Jornal Nacional é o fato de Clara ser uma menina diferente. E já era tempo de o Brasil todo saber que ser diferente é absolutamente normal. Luciana Kraemer – repórter (Narração em off): Clara está pronta para ir à escola. É uma vitória da família: o primeiro colégio procurado por eles disse que não atenderia a menina. Marília Piantá - Mãe: É um abandono, um desamparo, uma indignação, uma tristeza, uma impotência. Se estão nos dizendo não já agora com um ano, o que vai ser daqui para frente? Luciana Kraemer – repórter: Clara agora está chegando na escola nova. O caminho que a família trilhou até aqui é parte da polêmica que envolve o atendimento a crianças especiais. A legislação prevê que elas estudem em escolas comuns. Mas muitas instituições particulares entendem que não são obrigadas a receber estes alunos. Luciana Kraemer – repórter (Narração em off): É o caso do colégio que negou a matrícula à Clara. Mesmo atendendo outros alunos com necessidades especiais, a direção alega que não está preparada para acolher estudantes com Síndrome de Down. Irmão Celso Schneider – vice-diretor acadêmico:Isso não quer dizer que futuramente a gente não possa se preparar para receber crianças nesta situação. Mas, no momento, nós não podemos aceitá-la, porque não temos a estrutura adequada em termos de profissionais. Luciana Kraemer – repórter (Narração em off): Para o Ministério da Educação, a adaptação deve ser feita com o aluno especial já dentro da escola. - 136 - Cláudia Pereira Dutra - secretária de Educação Especial do MEC: Não pode deixar de efetivar a matrícula. Ela deve buscar os recursos necessários. A família tem direito de buscar esse acesso, pode recorrer ao Ministério Público caso seja negado o direito à educação do seu filho. Luciana Kraemer – repórter (Narração em off): Hoje, no Brasil, mais da metade dos alunos especiais está matriculada em cursos regulares. Mas faltam vagas nas escolas particulares: só no colégio da Clara, a lista de espera é de 78 crianças e adolescentes. Luciana Kraemer – repórter (Narração em off): A estudante Florença Sanfelice enfrentou e venceu estas dificuldades. Há três anos, passou no vestibular de fisioterapia. Mas descobriu que gosta mesmo é das artes. Aos 26 anos, decidiu fazer faculdade de dança. Florença Sanfelice – estudante: Eu queria ser professora de dança. Ensinar as pessoas a dançar. Para chegar até onde eu cheguei, tem que estudar bastante, não desistir. Fátima Bernardes: O Sindicato das Escolas Particulares do Rio Grande do Sul recomenda a inclusão de alunos especiais, mas alega que nem todas as instituições estão preparadas e que a legislação não obriga as escolas a receber alunos com Síndrome de Down. Segundo a lei número 7853, a recusa das escolas em matricular alunos especiais sem justa causa é crime. E a definição de o que é ou não é justa causa cabe à Justiça, que decide se a matrícula deverá ou não ser aceita. Quadro 7 - Transcrição de reportagem do Jornal Nacional (18/03/2009) A organização textual revela unidades que gerenciam diferentes fontes de imagem e som. Estruturalmente, a reportagem compõe-se de cinco partes básicas, conforme aquelas apontadas por Hernandes (2006, p. 125). A primeira delas é a “cabeça”, que corresponde ao texto lido pelo âncora na apresentação da reportagem. Na reportagem em questão, os apresentadores contextualizam a notícia, atribuindo importância à sua veiculação numa edição do jornal televisivo, já que há décadas, seu modelo de telejornalismo tem sido copiado ou desafiado por outras redes de televisão. Este fato deve ser considerado, na medida em que justifica uma história de uma cidadã comum ser “digna de abrir uma edição do Jornal Nacional”, conforme o enunciado proferido pela âncora. Esse enunciado demonstra que a história de uma criança com deficiência mental é valorizada, uma vez que não apenas informa um fato ocorrido mas interpreta um assunto, especificamente o atendimento de pessoas com deficiência na escola regular, descrevendo, explicando, comparando, relatando e apontando possíveis causas ou consequências de um fato, ao sujeito-telespectador. - 137 - Não só a importância do jornal, mas também a emergência de tratar a situação real de inclusão de pessoas com deficiência justificam a relevância do tema da reportagem. Os efeitos construídos revelam o verdadeiro de uma época: a de que hoje, ser diferente é normal. E, por que “já era tempo de o Brasil saber disso”? O sujeito deste enunciado convoca a normalização como forma de governo dos corpos, materializada em discursos de inclusão. Conforme pudemos verificar nas análises do grupo anterior, a naturalização da deficiência é uma das estratégias midiáticas que corroboram com as ações públicas inclusivas, que buscam promover políticas presentes compensatórias em relação às práticas discriminatórias do passado. O enunciado revela que, com todo o movimento em prol da inclusão, fundamentado nos avanços científicos e pedagógicos e consolidado pelas leis, os cidadãos e as instituições brasileiras já deveriam ter assumido uma atitude inclusiva efetiva em relação à diferença constitutiva dos seres humanos. A segunda parte da reportagem seria o “off”, que corresponde à narração do repórter enquanto as imagens são exibidas. Outras duas técnicas de reportagem, o “boletim” – apresentação da notícia pelo repórter – e a “sonora”, que é a fala dos entrevistados na reportagem, compõem a sequência das imagens. A repórter Luciana Kremer narra o que aconteceu com Clara concomitantemente com a exibição das cenas da menina com a família, se preparando para ir à escola. Nas cenas, a criança aparece sorridente e ativa. Logo em seguida, a mãe relata a indignação e o sentimento de impotência. Mostra-se preocupada pelos desafios futuros que serão enfrentados pela criança. Nesse momento, prevalece a imagem da família: mãe, pai e suas duas filhas. Podemos retomar aqui a o retrato de família, já exemplificado neste trabalho 9. A imagem retrata uma família com seus componentes tradicionais que acaba por normalizar o estranhamento causado pela deficiência de Clara. Em outro momento a câmera mostra, em plano geral, a família entrando na escola que aceitou a matrícula de Clara, enquanto a repórter, que os acompanha, contextualiza a polêmica do atendimento a pessoas com deficiência em escolas regulares, cujo procedimento é previsto na legislação brasileira. Em seguida, enquanto a câmera mostra em plano geral a escola que negou a matrícula de Clara. Não mostra apenas um espaço físico, mas possibilita que o sujeito telespectador questione a adequação física da escola para receber alunos com deficiência. Em seguida, em plano próximo, o vice-diretor da escola revela que a escola não está preparada para atender alunos com Síndrome de Down. O argumento logo é questionado pela posição do Ministério da Educação, que defende que a adaptação deve ser feita já com a 9 Cf. capítulo 1 – família Gonçavus e Irmãos Tocci. - 138 - criança na escola. Enquanto estratégia linguística, destaca-se nesse trecho os verbos “dever”, “ter” e “poder”, que intensificam o poder da lei, o que produz um efeito de segurança para os pais, caso o acesso à escola seja negado. O movimento da câmera de um espaço para outro – casa da família, escola – promove uma síntese temporal que possibilita que o espectador tenha uma sequência linear dos acontecimentos. Na edição, as condições da polêmica de um acontecimento factual são pontuadas tanto pela narração da repórter, quanto pela sequência de imagens. Nota-se que a partir dessa estratégia há um fato concreto, ao contrário da linguagem metafórica que sustenta os sentidos na materialidade previamente analisada neste grupo. A reportagem constrói o sentido de que foi necessário um dispositivo de segurança, a lei, para que a inclusão na escola regular se efetivasse. Se na campanha da Federação das APAES do Paraná se estabelece uma dinâmica de leitura por etapas, que promove uma campanha pela mudança de conduta na postura da sociedade em relação à inclusão, a condição de existência da reportagem da menina Clara contempla uma atitude preconceituosa que materializou, numa relação de força, a resistência à inclusão. Na mesma oscilação entre off e boletim, Florença é apresentada aos telespectadores. O relato da superação da estudante funciona como argumento que sustenta a necessidade de acessibilidade das pessoas com deficiência à educação e, sobretudo, o reconhecimento de que elas são capazes de enfrentar o sistema escolar com êxito e que têm habilidades e aptidões para determinadas áreas de conhecimento. Como “pé” da reportagem, são utilizadas a recomendação do Sindicato das Escolas Particulares do Rio Grande do Sul em matricular as pessoas com deficiência no ensino regular e a citação da lei10 que considera a recusa da matrícula como crime. A utilização dessas vozes de autoridade legitima a necessidade de uma mudança na estrutura das instituições e na atitude dos cidadãos, para que as pessoas com deficiência possam ser incluídas de forma adequada. Ao que nos parece, os planos linguístico e imagético constroem um percurso discursivo que pode ser assim sintetizado: o sujeito com deficiência é impotente de exercer sua cidadania, apesar de amparada legalmente, não pela falta de capacidade cognitiva ou 10 Lei no 7853, Artigo 8º. “Constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa: I recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta; (Disponível em < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/dh/volume%20i/deflei7853.htm>) - 139 - física, mas pela ausência de formação profissional adequada ou até mesmo de estrutura física para receber esses sujeitos. Abre-se, assim, a possibilidade de uma discussão acerca da incompletude do movimento inclusivo, ou seja, não basta legislar se a sociedade não estiver preparada. Outro enunciado que reafirma a existência de uma prática social que reclama a necessidade de mudança de atitude dos sujeitos sociais, para que a acessibilidade/inclusão funcione devidamente, está no quadro 8. Trata-se de uma campanha publicitária da AVAPE, com 30 segundos de duração, em que uma cadeirante se esforça para subir o degrau de uma calçada, situação que poderia ser evitada se não houvesse um carro estacionado em frente à rampa destinada à acessibilidade. (Cena 1) (Cena 2) (Cena 3) (Cena 4) (Cena 5) (Cena 6) - 140 - (Cena 7) (Cena 8) (Cena 9) (Cena 10) A falta de respeito é uma deficiência grave. A AVAPE está se multiplicando pelo Brasil para levar mais dignidade às pessoas com deficiência. Quadro 8 - Transcrição de propaganda da AVAPE Em plano geral, a primeira cena apresenta uma jovem em uma cadeira de rodas atravessando a rua, utilizando, para isso, a faixa de pedestre. A perspectiva adotada atribui à cena uma noção de profundidade, ou seja, o sujeito que olha a cena está do outro lado da rua, o que demonstra também que há um tempo para cumprir o percurso, naquele espaço determinado. Apesar de parecer uma ação simples, o tempo se torna menor e o espaço maior, na medida em que é posta em destaque a limitação física do sujeito. A ausência de outras pessoas atravessando a rua na faixa, que é específica para pedestres, indica uma estratégia de mostrar uma pessoa com deficiência física isoladamente, para que o foco seja a sua condição, independente se é uma mulher, um homem ou uma criança. Ainda na cena 1, notamos uma das infrações que o motorista do carro cometeu: estacionar sobre a faixa de pedestre. Essa sinalização gráfica horizontal é um elemento necessário para oferecer ao pedestre, possua ele algum impedimento físico ou não, o máximo de segurança ao atravessar a rua, visto que nessa área ele tem prioridade sobre os veículos. Para que essa função seja exercida, é necessário que a faixa seja respeitada, conforme demonstram os demais carros estacionados na mesma rua. Na sequência (cena 2), a pessoa que está na cadeira de rodas se aproxima da calçada. Já que não há uma rampa disponível para dar condições de possibilidade de acesso, o cadeirante precisa de outra estratégia para vencer esse obstáculo. Nesse momento há um enquadramento em plano próximo (cena 3), que revela a identidade de uma jovem, cuja expressão facial funciona como índice de esforço e dificuldade. - 141 - O deslocamento da câmera para o plano geral (cena 4) mostra a cadeirante tomando distância do degrau para mais uma tentativa. No momento da subida há o enquadramento em close da cadeira e do degrau (cena 5), e ao retornar para o plano geral mostra um homem se dirigindo para o carro que está estacionado (cena 6 e 7) e entrando nele. Assim que o carro se movimenta (cena 8) percebemos que ele estava estacionado em frente a uma rampa de acessibilidade. O homem, além de estacionar sobre a faixa de pedestre, também impediu que a jovem tivesse acesso à rampa, dificultando sua passagem. No momento em que ele passa por ela, percebemos que ele é indiferente à sua condição. A estratégia de não olhar para a cadeirante pode indicar que sua presença é tão normal/natural que o sujeito se torna insensível às suas condições de acessibilidade. Se retomarmos o primeiro grupo de análise, verificamos que a naturalização da pessoa com deficiência em outra norma que não a sua, no caso no espaço urbano, efetivou-se. Entretanto, a adaptação arquitetônica que dá condições de possibilidade de acesso a essa outra norma não é respeitada. Outra possibilidade de leitura das cenas 6, 7 e 8 é o estabelecimento de uma relação hierárquica. Isso significa que a naturalização da presença de um deficiente físico atribui ao dono do carro uma posição de superioridade. Nessa relação, a cadeirante se submete a uma situação imposta pelo motorista. Além desse efeito de verdade, é possível considerar também que o motorista da propaganda representa um grupo de pessoas da sociedade que coadunam com a mesma atitude de desrespeito pela infraestrutura favorável à acessibilidade já existente no meio urbano. Na construção dessa sequência de cenas, o enunciado linguístico “a falta de respeito é uma deficiência grave” é narrada em off quando o homem desliga o alarme e entra no carro. No plano linguístico, o termo “deficiência” é ressignificado a partir da sequência de imagens, uma vez que está relacionado não só ao corpo biologicamente deficiente, mas a uma (falta de) atitude dos sujeitos. Essa estratégia exemplifica a questão da enunciação na perspectiva da Análise do Discurso, conforme visto anteriormente. A estrutura linguística “deficiência” é repetível no plano visível, haja vista que o termo já existe na língua e foi utilizado em inúmeras outras enunciações. No entanto, a emergência desse termo na peça publicitária é outra: ser deficiente não é ser incapaz de andar, mas é não ter o respeito do próximo. Esse sentido depende, assim, no plano da invisibilidade, de condições de emergência e de existência específicas da enunciação, que trata de uma realidade da contemporaneidade, a de que a acessibilidade ainda não é considerada como um compromisso de todos os cidadãos. - 142 - Para que essa dificuldade seja ressaltada, apaga-se o elemento pelo qual a acessibilidade seria possível. É o efeito oposto ao primeiro grupo de materialidades analisadas. Um dos efeitos de sentido possíveis é que, apesar de existirem meios de acessibilidade para eliminar as barreiras arquitetônicas do meio urbano, nem tudo funciona perfeitamente. Para que a pessoa com deficiência possa usufruir de seus direitos básicos, é preciso que os demais cidadãos respeitem e colaborem. Trata-se de um obstáculo que a jovem não conseguiu ultrapassar, como fez com o degrau. A análise desses três enunciados permite que façamos algumas considerações acerca dos efeitos de sentidos produzidos por esse grupo de materialidades. Os signos linguísticos e imagéticos utilizados são considerados como enunciados, ou seja, a eles são atribuídos um sentido, uma função. Para que fossem agrupados neste conjunto de enunciados, a condição existência do preconceito na sociedade atual foi tomada como referente, ou seja, como condição de possibilidade de seu aparecimento em materialidades significantes. A posição do sujeito midiático ocupada pelo enunciador coaduna-se com o discurso de que a acessibilidade aos direitos básicos das pessoas com deficiência é compromisso de todos, e não apenas do próprio deficiente e de mudanças na legislação ou na arquitetura. Esse lugar se aproxima da consideração de que os elementos discursivos que compõem a normalidade do sujeito com deficiência em produtos midiáticos, exigem uma transformação global e imediata dos processos de socialização, e não a mera aceitação de direitos, para que possam desfrutar das condições de cidadania. Isso porque a legalidade é, em si, o reconhecimento do preconceito, ou, em outras palavras, o preconceito é a condição de existência das leis. Logo, a o respeito à acessibilidade depende do Outro para se efetivar. A existência desses enunciados se dá, também, por sua associação a outros domínios, ou seja, o discurso midiático é atravessado pelos valores de verdade de campos sociais. Nesse grupo destacam-se o campo jurídico, o pedagógico e o urbano/arquitetônico. No discurso jurídico, a pessoa com deficiência deve gozar de todos os direitos previstos para qualquer cidadão, prevendo medidas punitivas caso as regras sejam descumpridas. Essa ordem se integra ao campo pedagógico, que por sua vez necessita de qualificação profissional para o acesso das pessoas com deficiência ao sistema regular de ensino. Além disso, o discurso da acessibilidade arquitetônica desempenha seu papel neste jogo de enunciados. Para que a pessoa com deficiência goze de seus direitos de cidadão, é preciso que existam mecanismos que facilitem a locomoção e o acesso aos estabelecimentos do meio urbano e, sobretudo, que os demais cidadãos respeitem essas estratégias. - 143 - Outra condição para a existência desse grupo de enunciados é a materialidade que o constitui. Essa questão evoca tanto sua natureza dinâmica de apresentação, por tratar de produtos midiáticos de pouco tempo de duração, quanto a possibilidade de repetição dos planos linguístico e imagético em outras condições de possibilidade e existência, o que poderia ressignificá-lo e reorganizar os enunciados em outros grupos. As estratégias utilizadas pelos enunciados revelam o exercício de uma linguagem, seja ela verbal ou imagética, vinculado a uma organização simbólica que representa as relações sociais. As peças publicitárias e a reportagem revelam a identidade de um sujeito que é impotente frente ao preconceito e à falta de respeito pela sua condição, apesar de barreiras já vencidas, como as mudanças legais e arquitetônicas no meio urbano. O discurso funciona pelo destaque dado às dificuldades e à necessidade de mudança global da conduta da sociedade para que as pessoas com deficiência possam desfrutar das condições de cidadania. Essa regularidade discursiva de uma conduta social pode ser sintetizada com o seguinte quadro: - 144 - O preconceito e a falta de preparo de algumas pessoas e de algumas instituições ainda existem Elementos composicionais Mecanismos e estratégias Plano linguístico Plano imagético Propaganda da APAE Uso de verbos no presente do indicativo (presente durativo): expressa ações ou estados permanentes, como uma verdade científica (milhares de pessoas com deficiência superam limitações). Uso de verbos no presente do indicativo (presente habitual): Expressa uma faculdade do sujeito, ainda que não esteja sendo exercida no momento em que se fala. Vocábulo “portas” no domínio metafórico (pode representar oportunidades ou dificuldades). De forma semelhante, o termo “educação” metaforicamente representa a panaceia (educação como redentora). O termo “trabalho”, também nesse domínio, constroi um efeito de inclusão no campo social, pela ótica utilitarista do corpo. Enfim, o termo “preconceito” que comporta as noções de exclusão/inclusão solidária. Portas Semáforo Chaves “Autorização” para que o sujeito com deficiência exerça sua cidadania; Privilegia a acessibilidade legal a determinados espaços sociais, e não a física. Para que a prática inclusiva, ou mesmo a lei, se efetive, é necessário que os sujeitos que constituem a “norma” ofereçam oportunidades e superem os próprios preconceitos. Reportagem do Jornal Nacional - 145 - Composta pelas partes básicas de apresentação da reportagem: (a) cabeça, que seria o texto lido pelo apresentador; (b) off, ou a narração do apresentador ou repórter enquanto as imagens são exibidas; (c) boletim, ou seja, a notícia apresentada e sustentada pelo repórter; (d) sonoras, e (e) pé, que é um texto curto, lido no encerramento da reportagem com a função de fechar a matéria e fornecer ao telespectador uma informação complementar. Presente do indicativo (habitual e durativo) Close, em alguns momentos, na criança Criança sorrindo, ativa, com a família Imagens da escola e do diretor Predominância da perspectiva plongée. A história da criança com Síndrome de Down é valorizada por veicular em um jornal “tradicional”, como o Jornal Nacional. Tira-se do Estado a responsabilidade de incluí-las, visto que já foram feitas leis para a garantia desse processo. A responsabilidade recai, então, sobre cidadãos e instituições que constituem a sociedade. Mostra a impotência do sujeito com deficiência em exercer a sua cidadania, apesar de amparado legalmente. Pretérito perfeito Utiliza o discurso jurídico e outros discursos de autoridade para legitimar os efeitos produzidos (de resistência, ou impotência). Propaganda da AVAPE Uso dos verbos dever, ter e poder. “Deficiência” não está ligada a um corpo biologicamente deficiente, mas a uma (falta de) atitude dos sujeitos. Rampa Faixa de pedestre Carro Cadeira de rodas (deficiência física) Meio-fio Perspectiva Planos Ressalta-se a dificuldade com o apagamento do elemento pelo qual a acessibilidade seria possível. Demonstra a indiferença de algumas pessoas aos recursos de acessibilidade oferecidos para aqueles que possuem uma deficiência. Representação visual e discursiva do grupo 2. Que identidade é essa? A pessoa com deficiência é um sujeito impotente frente ao preconceito e à falta de respeito pela sua condição. O discurso funciona pelo destaque dado às dificuldades e à necessidade de mudança global da conduta da sociedade para que as pessoas com deficiência possam desfrutar das condições de cidadania. Quadro 9 - Mecanismos e estratégias verbo-visuais na representação da pessoa deficiente - O preconceito ainda existe - 146 - 5.3 (D)EFICIÊNCIA: “LIÇÃO DE VIDA” Outra estratégia utilizada pela mídia na representação da pessoa com deficiência é o apelo à emoção. Os enunciados selecionados para este grupo privilegiam o “luto” vivenciado por aqueles que se tornam deficientes ou têm um filho com algum tipo de deficiência. Em linhas gerais, no plano imagético, nem sempre o importante é visualizar a deficiência, mas o foco está na história contada ou no apelo ao choro, manifestado como símbolo da emoção e não da tristeza. A composição deste grupo considera que a mídia apresenta o deficiente como competente pelo excesso de atributos afirmativos, atribuindo-lhe, com isso, uma identidade fragilizada. Essa prática parece se aproximar daquela vivenciada nos espetáculos entra-e-sai nos circos e museus do século XIX11, porque, assim como na exibição do monstro, o apelo sentimental em relação à história de vida do deficiente também funciona como condição de possibilidade para a constituição da normalidade. As histórias de superação funcionam como dispositivos de normalização pela exibição do seu contrário. Tal processo pode ser percebido na história de Bruno, protagonista do seriado Malhação12, na temporada de 2008. Bruno é um aluno novo, transferido de outro colégio para o Múltipla Escolha Ernesto Ribeiro, cenário da trama nos últimos anos. O adolescente atrapalha o romance de Angelina e Gustavo, os protagonistas da temporada de 2008. Angelina engravida de Bruno, o que deixa Gustavo desapontado, mas não o faz desistir de lutar para ficar com seu grande amor. Nesse período Bruno sofre um grave acidente e Angelina faz uma promessa: se Bruno sobrevivesse ela ficaria com ele para sempre. Bruno se recupera, mas fica paraplégico. O período de adaptação de Bruno é conturbado. Ele não aceita sua situação e se julga inválido para sempre. Passa por algumas situações ao se locomover, tanto dentro do colégio quanto na rua, as quais mostram a dificuldade em lidar com obstáculos físicos, como os degraus. Entretanto, o tempo todo os amigos, a mãe e a namorada ficam ao seu lado, 11 12 Cf. capítulo 1, item 1.2.1. O seriado estreou na Rede Globo de Televisão em 1995. Uma academia era o cenário para a trama, que contava histórias do dia-a-dia de adolescentes, geralmente da classe média alta. Os conflitos amorosos ocuparam e ainda ocupam, depois de 13 anos no ar, o centro dos enredos. Em suma, a cada temporada há um casal protagonista que deve enfrentar as armações dos antagonistas que, na maioria das vezes, são um casal ou um trio de amigos. A trama se repete ao longo dos anos, apenas com a variação do cenário, que passou a ser uma escola. Sua linguagem é simples e direta, o que se aproxima das revistas para adolescentes. - 147 - encorajando-o a enfrentar as dificuldades e a seguir a fisioterapia, pois havia grandes chances de voltar a andar, com o tratamento. É em meio a esse momento de dificuldade que Angelina dá à luz à Gustavinho. Somente depois de assistir a um documentário produzido por uma colega, Bruno toma consciência de que é preciso ter força de vontade e dedicação para vencer os próprios preconceitos. Passa a se dedicar à fisioterapia e se esforça para realizar algumas atividades sozinho. Vai a shows e festas com os amigos. Bruno, então, pede Angelina em casamento, mas momentos antes de subir ao altar, descobre a promessa de Angelina e se recusa a casar. A partir de então os dois brigam constantemente. Bruno acha que Angelina só continuou namorando com ele, depois do acidente, por pena. Em uma das brigas Bruno sente as mãos de Angelina em seus joelhos e consegue mexer os dedos. A médica diz que ele tem grandes chances de voltar a andar, porém a recuperação pode demorar mais se ficar no Brasil. Por isso, indica um tratamento nos Estados Unidos. Bruno decide viajar para fazer o tratamento, e alguns meses depois volta andando: em um primeiro momento usando uma muleta, para abandoná-la logo em seguida. Dois momentos dessa história são transcritos nos quadros abaixo. Uma delas se refere à tentativa da mãe de Bruno de mostrar que ele faz parte de um grupo que pode realizar atividades de forma independente. Ela, então, pede que um atleta paraolímpico converse com ele. Um jogo de basquete na cadeira de rodas é realizado no colégio, mas Bruno resiste e não manifesta desejo algum de se empenhar na sua recuperação (Quadro 10). Jogador: Com licença, gente. Você que é o Bruno? Bruno: Sou. Jogador: Eu sou Rubens. Sua mãe pediu para encontrar contigo. Sou jogador de basquete. Bruno: Ué, você? Tá fazendo o que nessa cadeira de rodas? Jogador: Eu sou um atleta paraolímpico, cara. Jogo com a cadeira de rodas. Aliás, é por isso que eu vim falar contigo. Eu queria que você visse um pouco do que a gente é capaz de fazer. Bruno: Pra quê? Jogador: Bruno, você ainda está no processo de recuperação. Mas ouvi dizer que você era um cara esportista, que é forte. Quem sabe você se dedica firme ao tratamento de fisioterapia e pode vir a jogar com a gente no time. Gustavo: Aí, Bruno, boa idéia. - 148 - Bruno: É cara, não sei... não sei... Jogador: Bom, eu só queria saber se você tinha disposição de encarar o desafio. Sabe como é, né. Atletas não entregam os pontos tão facilmente. (Jogo de basquete) Quadro 10 - Transcrição do encontro de Bruno com um jogador de basquete paraolímpico – Seriado Malhação Depois de outras tentativas, Domingas, colega de Bruno, produz um documentário com depoimentos de várias pessoas com deficiência física contando sobre as dificuldades que tiveram e como venceram o preconceito e conseguiram ter uma vida independente. Após assistir às histórias exibidas no documentário e perceber que algumas são parecidas com a sua ou piores, Bruno se emociona e promete à namorada que se esforçará para se recuperar o mais rápido possível. Recebe, então, o carinho da namorada e dos amigos (Quadro 11). Importa destacar que a identificação das pessoas com deficiência, que aparecem no documentário, dáse, inicialmente pelos termos médicos de sua lesão. Tal fato recupera a questão do pertencimento biológico, que não se separa da identificação construída sócio-historicamente, relacionada aos efeitos de valores atribuídos a esses sujeitos. O documentário é, nesse caso, um recurso interessante, cujo efeito de realidade repousa na representação de forma objetiva de uma realidade. É uma composição de imagens em movimento utilizada como recurso em outra composição de imagens efêmeras: o seriado. Vanderson Alves da Silva: Tenho 25 anos, aos 15 anos eu sofri um acidente de trem. Antonio Carlos Martins Braga: Meu acidente foi decorrido de um mergulho, em águas rasas, Marcelo Rubens Paiva: E bati a cabeça no fundo do lago. Antonio Carlos Martins Braga: Acabou lesionando a sexta vértebra cervical. Bruno D‟Elia Mastzke: Depois que eu sofri o acidente, passou por um período na minha vida que eu fiquei meio assim desacreditado de tudo Bruno Roberto F. Dutra: Foi complicado porque era o último ano do colégio e eu acabei ficando 4 meses no hospital, devido ao acidente, e quando eu voltei o colégio não era preparado para me receber e tudo mais. Gleber Cândido Alves da Silva: A minha maior dificuldade que tive foi o preconceito. Marcelo Rubens Paiva: É o processo de choque com a família, toda a minha - 149 - vida, os meus amigos, chocados, você sem saber o que fazer, Antonio Carlos Martins Braga : Depois que tudo isso aconteceu eu pude perceber que a gente tem que dar valor pras pequenas coisas da vida. Gabriel Carvalho dos Santos: Bom, o que eu tenho que falar é que o esporte pra mim foi tudo né. Marcelo: E hoje eu vejo que ser tetraplégico ou estar numa cadeira de rodas não tem dificuldade nenhuma. Marcelo Rubens Paiva: E na AACD conheci um mundo que passou a ser o mundo que iria me acompanhar para o resto da minha vida, nesses 30 anos, que é um mundo dos portadores de deficiência. Gabriel Carvalho dos Santos: A minha fisioterapeuta via que eu tinha muito empenho, em aprender as coisas e querer me virar sozinho né, sair da cadeira, voltar pra cadeira sozinho, ter minha independência, ter minha vida normal como eu andava. Marcelo Rubens Paiva: E a luta traz mais vantagens. Você tem melhores resultados com as coisas que você realmente quer. Antonio Carlos Martins Braga: Eu olhava uma pessoa com uma cadeira de rodas eu achava que... não, pô, se um dia eu tiver que ficar assim eu prefiro morrer. Mas não, hoje eu vejo que existe muito mais prazer na vida porque tudo que você conquista você dá muito mais valor do que simplesmente achar que a vida acabou. (Diálogoentre atores)- (Montagem de imagens) Antonio Carlos Martins Braga: Eu acho que Eu olhava uma pessoa com uma cadeira de rodas eu achava que não, “pô”, se um dia eu tiver que ficar assim eu prefiro morrer. Mas não, hoje eu vejo que existe muito mais prazer na vida porque tudo que você conquista você dá muito mais valor do que simplesmente achar que a vida acabou. (Créditos) Angelina: Bruno Bruno: Oi Angelina, Angelina: E aí, como é que você está se sentindo? Não quer falar sobre o filme? Tudo bem, eu vou respeitar. A gente se fala. Bruno: Angelina (chora) Angelina: Ô Bruno, o que foi? Bruno: Como é que pode, heim? Tanta gente aí em situação pior que eu, cheia de vontade de viver, que não deixa baixar a cabeça... Angelina: Tá tudo bem.. você tem os seus medos, suas fraquezas.. isso é normal meu amor. Mas você não pode nunca deixar de acreditar em você, nunca. Bruno: Tá, eu vou me superar, eu vou. Escreve o que eu tô falando. Daqui em diante a minha vida mudou. (Amigos e a namorada o consolam) Quadro 11 - Transcrição do documentário exibido para o personagem Bruno – Seriado Malhação - 150 - Na primeira parte transcrita, Rubens vai ao encontro de Bruno para mostrar um pouco do trabalho desenvolvido em um time de basquete. De imediato percebemos o decentramento desse sujeito, visto que sua identificação se dá por três perspectivas: “Eu sou Rubens”, “Sou jogador de basquete” e “Eu sou um atleta paraolímpico”. Nesses enunciados ele não revela sua lesão, ou não assume “ser uma pessoa com deficiência física”. Essa identidade é entendida pela sua condição de atleta paraolímpico, confirmada pelo plano imagético das cenas. O enquadramento das cenas em plano geral e a posição dos cadeirantes, um de frente para o outro, produzem um efeito de igualdade quanto à condição física dos jovens. A diferença entre os dois repousa no fato de que o atleta aceitou sua situação e encontrou no esporte uma maneira de levar uma vida mais independente e de superar suas limitações. A igualdade também se manifesta no movimento e no jogo de câmera que acompanha o jogo dos atletas paraolímpicos e mostra a animação dos estudantes que assistem. Nessas cenas, no plano sonoro, destacam-se uma música, cujo ritmo cria uma atmosfera dinâmica, gritos e assovios da torcida e o apito do juiz do jogo. Já no documentário, a identificação nos depoimentos, se dá, logo de início, pela descrição das lesões, utilizando-se, para isso, a linguagem técnica, específica da medicina, bem como as causas que ocasionaram as limitações físicas. Neste trecho se sobressai o uso de verbos no pretérito perfeito, por se tratar de um relato de algo que aconteceu no passado com aquelas pessoas. Já quando é abordado o período de transformações e como consideram suas limitações no presente, é utilizado o pretérito imperfeito e o presente simples. O polo de predominância de sentidos indica a superação de preconceitos dos próprios sujeitos que se tornaram deficientes físicos. Mesmo com o choque dos familiares e amigos com as sequelas dos acidentes um dos efeitos que se sobressai é a valorização da vida, o esforço e a persistência das pessoas com deficiência. Um dos dispositivos que auxilia essa perseverança dos cadeirantes é o esporte. Por meio do plano imagético, notamos que a maior parte das pessoas que concedem seu depoimento está ocupando áreas esportivas, representadas pelas pistas de ciclismo e arquibancada. O esporte é, assim, um dispositivo por meio do qual os sujeitos com alguma limitação podem desenvolver suas potencialidades e habilidades. Além disso, a superação de pessoas com deficiência é similar à superação de atletas, que devem agir com determinação, - 151 - disciplina e concentração. Essa atitude enérgica pode ser vista materializada na fala do jogador de basquete do primeiro trecho transcrito: “Bom, eu só queria saber se você tinha disposição de encarar o desafio. Sabe como é, né, Atletas não entregam os pontos tão facilmente”. Assim, os jogadores de basquete ou os deficientes que aparecem no documentário apresentado não estão somente representando deficientes físicos, mas se tornam símbolos de perseverança, luta e persistência. A identidade de uma pessoa com deficiência somente é aceita por Bruno quando ele se percebe como parte de um grupo com as mesmas características, ou até mais agravantes que as suas. Só assim garante forças para lutar (continuar a fisioterapia...) contra os próprios preconceitos – ser um inválido para sempre, ser um peso na vida de todos, o que pode estar relacionado à historicidade dos deficientes, que, antes excluídos e depois visíveis, agora tentam se incluir na sociedade, eliminando os preconceitos e mostrando suas capacidades. É possível identificar também um eventual sentimento de pena, visto que o personagem principal, Bruno, é um jovem ativo, e depois de um acidente fica dependente de uma cadeira de rodas para se locomover. Além disso, um elemento importante é o ato de chorar de Bruno, enquadrado em primeiríssimo plano. Chorar comove, faz parte da emoção humana. Além desse ato, se em toda a sequência o plano fosse geral, as imagens não teriam o mesmo efeito. A exibição do documentário aliado às imagens, em close, de Bruno desperta um sentimento de solidariedade e de reflexão sobre as limitações dos sujeitos-espectadores, que nem sempre são físicas. Por que um deficiente? Por que um jovem fica dependente de cadeira de rodas e não qualquer outro funcionário do colégio? Uma das possibilidades de a deficiência ser abordada estaria ligada às diversas iniciativas de políticas públicas que visam à inclusão do deficiente nos diversos espaços sociais (garantidos por lei ou não) e sua representação na mídia, que é um poderoso meio de comunicação, o qual pela regularidade, produz verdades (de uma época). Por que um jovem? Por que o choque é maior, já que no imaginário social um jovem tem muitos anos de vida pela frente, uma carreira para construir, e geralmente é ativo e independente. Uma cadeira de rodas, no imaginário social, pode impedir ou dificultar a participação ativa dos jovens nos espaços sociais, fato esse que choca com maior intensidade os espectadores. Na maioria das cenas Bruno está cabisbaixo, e sua posição em relação aos amigos indica inferioridade: ele tem de olhar sempre para cima, e seus amigos, na maior parte das - 152 - cenas, não se sentam nem se abaixam para conversar, atitude essa desejada na “vida real” pelos deficientes físicos, para que se sintam “normais”. O atleta paraolímpico vive a mesma situação de Bruno, mas em um estágio que já ultrapassa o da recuperação, segundo ele. Uma vez aceita a sua situação, não há manifestação de desânimo ou sentimento de revolta; ele encontra no esporte uma maneira de levar uma vida mais independente e de superar suas limitações. Nesse caso, ele assume mais uma posição de sujeito: a de atleta. De modo geral, o nível verbal é inseparável das imagens em movimento, visto a materialidade televisiva escolhida poder estabelecer relações com a memória e a história. Por exemplo, denominar pessoas com deficiência como “inválidos”, “incapacitados” ou “excepcionais” não corresponde à esfera da prática inclusiva vigente nos últimos anos, que emprega o uso a expressão “pessoas com deficiência”. Avançando um pouco mais nesta questão, consideramos que essa expressão já existe na língua; entretanto, é utilizada em uma determinada condição de produção, formando outros sentidos, que participam da tentativa de produzir um efeito de verdade que corresponda aos princípios inclusivos. Identifica-se, também, nas cenas um lugar principal, a escola, e nela alguns lugares específicos nos quais as cenas ocorrem: biblioteca, sala de vídeo e a entrada / pátio. Através desses espaços é possível identificar uma realidade mais atual, já que são sempre atrativos, pelas cores e pelo estilo moderno, além do fato de que as condições de produção para a discussão sobre a inclusão são recentes. Percebe-se que não só o movimento da câmera produz sentidos, mas os movimentos aliados ao som e ao verbal produzem efeitos que visam proporcionar aos jovens uma reflexão acerca de muitos atos praticados de forma inconsequente por eles, como no caso de Bruno, que se jogou de uma ponte para se esconder da namorada. Há um efeito de verdade no vídeo que produz / confirma a questão da inclusão e a da força de vontade que a pessoa com deficiência precisa ter para enfrentar os desafios. Os mecanismos empregados mostram uma relação entre a representação dos personagens e movimentos históricos sociais, políticos e econômicos que configuram as iniciativas inclusivas na atualidade. O enunciado seguinte, transcrito no quadro 12, é uma reportagem veiculada no programa Esporte Espetacular, da Rede Globo, em 16 de agosto de 2009, no qual é possível perceber efeitos semelhantes ao enunciado anterior. A reportagem traz em questão alguns - 153 - atletas que, embora possuam limitações físicas, praticam o rugby, esporte concebido inicialmente como uma variação do futebol. Agora, histórias de atletas que servem de exemplo. São depoimentos fortes. Um convite à reflexão. E revelam a força de quem sempre acreditou que poderia superar os próprios limites. Cada um aqui tem uma história que é emocionante. Eu me acidentei em 7 de novembro de 99 num mergulho, num churrasco de formatura. Fui pular do muro na piscina e eu não sou um bom mergulhador. Espero que eu seja melhor um jogador de Rugby. Torci o pescoço e quebrei a 5ª vértebra cervical. Aí eu tenho uma lesão C5. Fiquei tetraplégico. Foi um mergulho. Mergulho em água rasa. ... pulei duma pedra lá e bati a cabeça. E aí daqui pra baixo não tenho sensibilidade. Eram 6 horas da manhã, quarta-feira de cinzas, dia 21 de fevereiro de 2007, um dia antes do meu aniversário de 17 anos. Meu amigo dormiu no volante, perto da (...) o carro bateu num barranco e capotou uma vez e meia. Eu tava dormindo, alcoolizado, não tive reação de proteção. Eu quebrei o pescoço na altura cervical 16 /17 e tive a lesão que me fez ta aqui na cadeira de rodas aos meus 17 anos. 16 pra 17 anos. Pena. Dó. Compaixão. Sentimentos nobres. E eles agradecem. Mas dispensam. Preferem ser conhecidos pelo que conquistaram. Técnica para praticar um esporte complexo, que também exige muito treino, dedicação e coragem. Eu gosto de (...) e é um grande prazer tá aqui dentro da quadra, superando todos os meus limites. É porrada pra tudo que é lado. Não tem essa de passar a mão na cabeça nem de aliviá não. Competição é como se fosse uma competição de pessoas não (...). O bicho pega, é botar pra quebrar. (risos) Tem que botar um fundo do Metállica. Este é o Rugby, em cadeira de rodas. Um esporte para tetraplégicos que tenham no mínimo comprometimento de 3 membros. A pergunta mais comum: “Mas não é muito violento?” Eu gosto até de explicar até o que é, qual é a razão, porque não é a violência, mas a questão do impacto motiva a ... .. Se você for fazer uma enquete com os jogadores, todo mundo gosta é a porrada. As cadeiras se batendo e (...) - 154 - Com uma lesão cervical as pessoas ficam se achando frágeis e tal, e o bom do rugby é isso, é um jogo de pressão e não é violento porque tu não tem contato físico. Essa descarga que você tem, de poder descarregar, cara, como eu fazia esporte antes e descarregava a tensão do dia a dia, essas coisas, é a mesma coisa hoje em dia, entendeu? São 4 jogadores por equipe. E cada um deles recebe uma pontuação de acordo com o grau de deficiência, variando de 0.5 mais comprometido a 3.5 , menos comprometido. Os times não podem somar mais do que 8 pontos. Os jogos são disputados em quadras de basquete. E a bola é semelhante à de vôlei. São 4 tempos de 8 minutos. E o objetivo é ultrapassar ,com a posse da bola, a linha de fundo do adversário. Bom, eu sempre gostei de competir. Esse mundo que a gente vê é um mundo competitivo. Ninguém tá se ajudando como uma equipe. É mais um individualismo. Ninguém para pra ajudar uma pessoa a atravessar a rua ou pergunta se ela tá bem, se ta precisando de uma força e tal, então aqui competindo com o pessoal do Rugby descobri que eu posso tá superando os meus limites. Compreender as regras e aprender a técnica são tarefas que já foram cumpridas pelos guerreiros da inclusão. O primeiro time brasileiro foi criado em 2005. O que me deixa feliz é ver gente aqui que tava há 15 anos em uma cama e mudou a vida porque descobriu que consegue tocar uma cadeira, pegar uma bola e sorrir. Eu acho que sou um vencedor, sabe. É aquele que as pessoas olhavam e achavam que não ia ter jeito e você foi lá e conseguiu dar a volta por cima. Muitas vezes a família superprotege, a família acha que realmente não pode, tem medo de jogar o filho no mundo, pra viver. Então o nosso trabalho é mostrar pra sociedade que nós não somos um ser estranho. Que nós só precisamos descobrir e resgatar a nossa autoestima na nossa vida e conduzir ela por conta própria. O esporte no país cresce aos poucos. São 4 equipes. A seleção com 4 jogadores dos guerreiros vai disputar o pan-americano em outubro na Argentina. O projeto é claro: Conquistar pela primeira vez vaga nas paraolimpíadas . Faltam cadeiras de competição, mais reforçadas e rápidas. Elas chegam a custar 5 mil reais. Só são fabricadas no exterior. Os treinos num ginásio emprestado pelo América no Rio são acompanhados por psicólogos, nutricionistas e médicos, que monitoram o estado físico dos atletas. Para eles é uma família, que vibra com cada conquista. Passei por muitas turbulências, muitas tristezas, agora o sol tá nascendo na minha vida. A luz se reacendeu. Tô feliz, to contente com o que eu sou hoje, sou uma pessoa batalhadora, no esporte. Tenho esperança de vencer. - 155 - Sou uma pessoa, acredito que mais feliz agora do que antes. Fico muito contente, porque a gente batalhava muito pra “ah, eu quero voltar a andar”. Quando a gente tava lá no brasileiro, na competição, a gente ganhou um jogo muito difícil, uma rivalidade muito grande com o outro time, curtindo, e assim, foi uma festa . Quando acabou o jogo, foi muito legal. E a primeira coisa que me veio na cabeça foi “Será que eu quero voltar a andar?” Eu não quero, eu quero estar na cadeira de rodas pra praticar o rugby. Um momento que eu tive com um atleta, eu perguntei pra ele o que seria o rugby na vida dele. E aí ele respondeu: O rugby pra mim é como se eu voltasse a andar . A dimensão disso é... pra quem sabe, pra quem vive, nesse meio, aqui é realmente uma coisa que mexe com a gente. Um prêmio pra você né. É, mais do que um prêmio. É mais do que uma medalha de ouro. É mais... muito mais do que isso tudo que a gente possa pegar, apalpar. Isso vai além disso. Quadro 12 - Transcrição de reportagem do Esporte Espetacular, exibido em 16 de agosto de 2009 A organização verbo-visual da reportagem revela o uso de algumas estratégias que apelam para a emoção, corroborando para a sensibilização e comoção do sujeito-telespectador frente à superação das limitações das pessoas que se tornaram cadeirantes. Um recurso imagético interessante, nesse processo, utilizado logo no início da reportagem é a perspectiva. O jogo entre luz e sombra e o plano geral e o detalhe constroem um efeito de igualdade entre os cadeirantes, enquanto participantes de um time de rugby. A individualidade dos atletas é revelada logo em seguida pelos depoimentos de alguns deles, que, pela nomenclatura empregada no discurso médico, identificam as lesões sofridas, numa relação de causa e efeito. As informações que contextualizam a forma do acidente que ocasionou as lesões, como “um churrasco de formatura” e “dormiu no volante” parecem funcionar como dispositivos que alertam o sujeito-telespectador de que algumas lesões poderiam ser evitadas com ações mais prudentes. Outros enunciados ainda parecem intensificar o sentimento de comoção em relação ao sujeito com deficiência física, como em “um dia antes do meu aniversário de 17 anos”. Promove-se, neste caso, o imaginário social de que um jovem, prestes a conquistar efetivamente sua liberdade, pela maioridade, é interditado de participar ativamente dos espaços a eles destinados e estaria permanentemente dependente de outras pessoas, em outra ordem. - 156 - O efeito de verdade de fragilidade pela provável perda de independência decorrente de uma lesão física é desconstruída logo em seguida pelas características do esporte que os atletas mostrados praticam, o rugby. A agressividade, o impacto e a pressão são características do esporte que motivam os cadeirantes a praticá-lo, já que, conforme o relato de um dos jogadores, eles encontram nessa prática a oportunidade de superar a competição existente de forma semelhante, no dia-a-dia. Um recurso para ressaltar a força desses atletas é o efeito dado pela sonoridade da música de fundo da banda Metallica, sugerida por um dos jogadores, já que a musicalidade contribui para a construção de efeitos que estimulam a agressividade da reportagem: mostrar que pessoas com deficiência física dispensam sentimentos de pena e compaixão e que podem superar situações de pressão e impacto. Na sequência, há o detalhamento da adaptação das regras do rugby para os atletas em questão, que são separados em grupos de acordo com o grau de comprometimento. Destacamse, em seguida, depoimentos que relatam a importância da prática do rugby para a autoestima de algumas pessoas, que perceberam que eram capazes não só de manusear uma bola e ser útil para um time como também vencer suas limitações. Apesar das dificuldades da prática do esporte, que necessita de equipamentos adequados, o time e todos os profissionais envolvidos são tratados como uma família que vibra e se emociona a cada barreira ultrapassada. O ponto alto dos depoimentos se dá pela manifestação dos atletas sobre a força do sentimento de pertencimento ao grupo das pessoas com deficiência. A condição de aceitação no time desperta um saber sobre si mesmo que até então estava apagado. Os jogadores percebem que podem ser competentes individualmente ou em grupo, logo, se sentem melhores. Devido ao seu histórico de vida, a vitória em uma competição esportiva representa uma vitória pessoal, de suas próprias limitações. O time de rugby conta com profissionais não-deficientes que promovem os treinamentos. Esses profissionais se emocionam ao relatar suas experiências. A emoção aflora a tal ponto que um dos treinadores chora ao relatar a satisfação em trabalhar com a equipe. Num jogo entre a razão de um profissional e a emoção de um ser humano ressalta-se um nível de satisfação que faz com que todos se sintam envolvidos com o time. O jogo entre razão e emoção também pode ser visto nos depoimentos de vida veiculados ao final dos capítulos diários da novela Viver a Vida (2009/2010). Os depoimentos contemplam exemplos de superação a partir de situações marginais vivenciadas pelos sujeitos. São histórias de luta contra as drogas, a pobreza, a solidão, e dentre outras situações a superação do próprio preconceito ao se tornar um deficiente físico, o que remete à - 157 - trama principal da novela, que consiste na história de uma modelo que se torna paraplégica depois de um acidente. Tive pólio, que é a paralisia infantil. Fui muito rejeitada, ninguém acreditava em mim. Nessa ocasião a única aleijada que nós conhecíamos era eu. Eu achei que Deus confiara em mim para alguma coisa. E essa certeza não me deixou acreditar nas 3 frases que eu mais escuto na vida: você não pode... Se você não fosse assim...Quando você melhorar. Essa garra fez com que eu não acreditasse na minha mãe quando ela dizia que eu jamais me casaria. Chegaram cartas dos médicos que me acompanhavam Meu pai me mostrou uma das cartas: imagina o coração dela é grande do lado direito, a coluna em forma de interrogação, a bacia é toda torta. Se tentar ter filho vai morrer no parto. Eu casei com Paulo e 6 milagres aconteceram. 6 filhos nasceram. Eu não choro pelas tristezas, eu choro pela emoção. A emoção me faz chorar, a tristeza me faz crescer. Virginia Diniz Carneiro, 85 anos Quadro 13 - Transcrição do depoimento de Virginia Diniz Carneiro – Novela Viver a Vida (2009) Sonhava em ter uma menina, linda e maravilhosa e quando eu descobri que era uma menina foi uma alegria. Quando ela nasceu lá na maternidade eu percebi que ela era diferente. Ela chorava muito, era muito mole. Quantas vezes se recusavam a sentar perto de mim porque eu tava com um bebê estranho, que babava. Quando a Jéssica era pequena ela descia pra brincar e eu ouvia lá de cima falar assim “sai daqui monstro”. Eu só descobri que a Jéssica tinha alguma coisa quando ela tinha 7 anos. Eu estava no corredor de um hospital, passou um médico americano e falou “Sindrome de Williams”. O que eu fiz com ela: eu isolei todas as dificuldades que ela tinha e comecei a trabalhar com as qualidades. E as qualidades dela superaram as dificuldades. Essa é a Jéssica, essa e que é a minha lição de vida, como eu falei. Se hoje eu sou assim uma pessoa que conseguiu pensar em política pública para as pessoas com deficiência.., trabalhar tudo isso, a Jéssica que é culpada de tudo. Essa que é a culpada de tudo. Quadro 14 - Transcrição do depoimento de Jô Nunes – Novela Viver a Vida (2009) - 158 - Nos dois depoimentos transcritos, assim como nas outras materialidades deste grupo, há a identificação da deficiência por meio da nomenclatura empregada no discurso da medicina. Nos depoimentos, trata-se de uma deficiência física decorrente da paralisia infantil e uma rara síndrome de ordem genética, denominada “Síndrome de Willians”. Predomina o uso da primeira pessoa do singular e verbos no pretérito perfeito e imperfeito para o relato da descoberta da doença e o tratamento preconceituoso da própria família e da sociedade para com as pessoas com deficiência. Destaca-se nesse processo a falta de informação sobre a doença, por parte da família, e até dos médicos, devido às condições precárias do saber científico, ora pela época ora talvez pelas condições sociais. Na dimensão imagética, destaca-se o plano americano e o próximo. No primeiro depoimento, o close é utilizado no momento em que Virginia, a senhora que teve paralisia infantil e construiu uma família mesmo sem o apoio dos médicos e de seus pais, fala sobre tristeza e emoção e parece ensaiar algumas lágrimas. O jogo linguístico entre tristeza / emoção e crescimento / choro cria condições que evocam o sentimento de comoção no sujeito-telespectador, que pode fazê-lo também chorar e, ao mesmo tempo, um sentimento de admiração, já que as dificuldades foram vencidas pela persistência de Virginia. No segundo depoimento, destacam-se algumas descrições de Jéssica, a menina com síndrome de Willians, como “diferente”, “mole”, “estranha”, “que babava” e “monstro”. Esses componentes criam um efeito de contraste com a ideia de pureza geralmente associada à crianças. Nota-se como o tratamento simbólico da monstruosidade já-dito sobre o corpo anormal, forma de cultura visual até o século XIX, ganha visibilidade nas práticas cotidianas atuais. Essa memória discursiva de um regime particular de visibilidade é recuperada ao se entrar em contato com uma pessoa que foge dos padrões normais. Esse estranhamento, que a mãe relata, constitui-se de uma estratégia que pode provocar efeitos de emoção e admiração. Nos dois depoimentos, no quadro de representação visual a língua é um componente que contribui para os efeitos já destacados, porque alguns trechos são exibidos em segundo plano13, o que reforça fatos importantes dos depoimentos, como o parecer de médicos, frases ouvidas frequentemente pelas pessoas com deficiência e descrições. Os depoimentos também encontram suporte nas fotos exibidas em segundo plano. São fotografias em preto e branco, com um efeito esfumaçado, que ilustram alguns trechos e 13 Tais trechos aparecem sublinhados na transcrição. - 159 - indicam um efeito de memória. Os momentos retratados se referem ao passado: a infância, os filhos e na maior parte deles, Virginia e Jéssica são mostradas em situações “normais”, muitas vezes ao lado de pessoas da família. O uso dessas fotografias, nesses dois casos específicos, dá visibilidade àquilo que muitas vezes a sociedade não aceita e evoca a felicidade, um efeito de alegria no passado. Jéssica, por exemplo, nas fotos, não parece ser um monstro como as pessoas diziam. Já Virginia aparece no momento mais importante que contrariou a rejeição manifestada pelos médicos e pela família: seu casamento. Nota-se que Virginia e Jô (a mãe de Jéssica), apesar de usarem a primeira pessoa do singular para relatar suas experiências, representam uma coletividade. Como cadeirante ou como mãe de uma criança com deficiência, elas descrevem práticas que acontecem no dia a dia com milhares de pessoas que vivem situações parecidas com as delas. São exemplos para os deficientes e os não-deficientes. Esse fato também indica uma relação com os efeitos construídos pelo segundo grupo de materialidades analisado neste capítulo interpretativoanalítico. Os depoimentos sinalizam práticas preconceituosas que ainda existem na sociedade, como a monstruosidade e a desesperança quanto ao futuro de sucesso de uma pessoa com deficiência, manifestada pela sociedade. Entretanto, importa destacar que a composição linguística e imagética dos relatos provocam um efeito de que as qualidades superaram as dificuldades. Apesar da tristeza diante do desestímulo do outros, a cadeirante e a mãe encontraram mecanismos de defesa para superar as dificuldades e para provar que são capazes de crescerem com a tristeza. Com esses três enunciados, vislumbramos uma regularidade que nos permeia: a pessoa com deficiência é um sujeito que pode superar o (próprio) preconceito e suas limitações, tornando-se uma lição de vida para os sujeitos-telespectadores. Para o agrupamento dos enunciados deste grupo, tomou-se como referente a superação. A posição que o sujeito enunciador assume é a de que a superação é possível, mas depende do próprio deficiente transformar as dificuldades em oportunidades. A existência desses enunciados se associa a dois domínios que se destacam: o esporte e o científico. Na prática de esportes, predomina o discurso de persistência e satisfação com a vitória, domínios esses que se assemelham daquelas necessárias às pessoas com deficiência. Entretanto, para praticar uma atividade física, é preciso considerar o grau de comprometimento e adaptar as regras. Predomina a ideia de que o esporte é um dispositivo que possibilita pessoas com deficiência encontrarem em si mesmos a força de vontade necessária para vencer os desafios não só em um jogo, mas na vida. - 160 - A organização verbo-visual e sonora dos enunciados revelam que o discurso da superação funciona num jogo entre a razão e a emoção. Essa regularidade discursiva de lição de vida para o sujeito telespectador “normal” pode ser sintetizada com o seguinte quadro: Lição de Vida Elementos composicionais Plano linguístico Plano imagético Reportagem do Esporte Espetacular Malhação Uso de verbos no pretérito perfeito e imperfeito: indica passagem, transformação. Linguagem técnica (identificação das lesões pela medicina) Linguagem técnica (identificação das lesões pela medicina) Close no rosto de Bruno, chorando. Imagem em movimento enquanto recurso em uma composição em movimento (documentário dentro do seriado). Gesto de solidariedade (carinho com a mão da cabeça). Mecanismos e estratégias A identificação inicial dos sujeitos com deficiência se dá pela identificação de suas lesões (saber científico). Os próprios sujeitos atribuem mais valor a tudo o que desenvolvem (superação dos próprios preconceitos). O esporte é um dispositivo por meio do qual as pessoas com deficiência podem superar seus limites, visto as competências esperadas dos atletas. Predomina em segundo plano a representação de áreas esportivas (pistas de ciclismo, arquibancada). Os sujeitos deficientes são símbolos de força de vontade, que servem de reflexão para sujeitos-telespectadores que não possuem tal deficiência. Pessoas com deficiência jogando rugby. A identificação inicial dos sujeitos com deficiência se dá pela identificação de suas lesões (saber científico). Close no rosto de um dos técnicos, chorando ao dar seu depoimento. Percepção das pessoas com deficiência que podem contribuir, de alguma forma, com o time. O sentimento de pertencimento ao grupo dos deficientes é tão forte que não mais se identificam com os considerados “normais”. A emoção aflora naqueles que convivem com os atletas, ao contar sobre suas experiências. Promoção das qualidades e capacidades. Depoimentos da novela “Viver a Vida” - 161 - Uso de primeira pessoa do singular. Uso de verbos no pretérito perfeito e imperfeito. Linguagem técnica (identificação das lesões pela medicina). Plano americano Fotografias em preto e branco aparecem em segundo plano, conforme o depoimento (indicam o passado). Close no rosto, ao falar de emoção. Língua como constituinte do plano imagético (reforçam fatos importantes do depoimento). A identificação inicial dos sujeitos com deficiência se dá pela identificação de suas lesões (saber científico), Criam-se condições que evocam o sentimento de comoção e ao mesmo tempo de admiração no sujeitotelespectador, Promoção das qualidades e capacidades. Plano próximo. Representação visual e discursiva do grupo 3. Que identidade é essa? A pessoa com deficiência é um sujeito que, apesar das dificuldades e do (próprio) preconceito, superou suas limitações. O discurso de superação funciona num jogo entre razão e emoção, a partir da transformação das dificuldades em oportunidades. O sujeito com deficiência torna-se útil, e sua história cria condições de comoção no sujeito-telespectador. Quadro 15 - Mecanismos e estratégias verbo-visuais na representação da pessoa deficiente – Lição de Vida CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta pesquisa propusemo-nos compreender como a governamentalidade, inscrita nas práticas discursivas da mídia televisiva, nas relações entre saber-poder e saber e verdade, possibilita o funcionamento da normalização do deficiente como resistência à exclusão. Tal empreendimento foi mobilizado pela crescente veiculação de produtos na mídia televisiva acerca da inclusão dessas pessoas na sociedade, em razão de as mesmas passarem a ocupar espaços até então interditados, dentre os quais, o social, o político, o educacional, o econômico e o religioso. A inquietação instigada pela veiculação de tais materialidades, levou-nos a problematizar se as estratégias e os mecanismos linguístico-discursivos que promovem a visibilidade da pessoa com deficiência na mídia televisiva exercem efeitos conflituosos com o discurso que os orientam, ou seja, se criam condições de possibilidade de intensificar o preconceito. Nessa direção, no início do percurso de produção da dissertação, consideramos que as estratégias discursivas da mídia televisiva mascaram as dificuldades concretas que podem decorrer da inclusão da pessoa com deficiência, o que atribui a esses sujeitos uma identidade fragilizada pelo excesso de atributos afirmativos. O levantamento de um arquivo de enunciados efetivamente ditos sobre as pessoas com deficiência na mídia, possibilitou construir um percurso teórico que reclama a delimitação de alguns conceitos erigidos em vários campos de saber, dentre eles, a Análise de Discurso. A partir dessa linha de pesquisa, estabelecemos uma metodologia de análise que permitiu a construção de um quadro teórico-analítico, a partir do qual buscamos demonstrar a proposta de um movimento possível na prática analítica de discursos imagético-midáticos. Para o desenvolvimento do movimento descritivo-interpretativo, demarcamos nove produtos da mídia televisiva, veiculadas entre 2006 e 2009. Notamos nesse material alguns polos de predominância, o que nos levou a organizá-lo metodologicamente em três grupos: a) (D)eficiência: “Ser diferente é normal”; b) (D)eficiência: “O preconceito e a falta de preparo de algumas pessoas e de algumas instituições ainda existem”; e c) (D)eficiência: “Lição de vida”. No primeiro grupo, o sujeito com deficiência está incluso nos diversos campos sociais. Tanto a infra-estrutura quanto o relacionamento entre os cidadãos são perfeitos, o que indica que o discurso de normalização da deficiência funciona a partir do apagamento das - 163 - dificuldades e da promoção dos aspectos positivos. O segundo grupo agrupa enunciados que destacam a necessidade de mudança da conduta da sociedade em geral, a fim de que o respeito aos mecanismos de acessibilidade promova o efetivo exercício da cidadania. O terceiro grupo, por sua vez, enaltece a superação dos limites, por meio do apelo à emoção decorrente das histórias de vida relatadas pelas pessoas com deficiência e/ou por aqueles que acompanham sua trajetória. Os elementos verbo-visuais composicionais e as estratégias e os mecanismos discursivos utilizados em cada grupo puderam ser mais bem visualizados nos quadros sínteses apresentados ao final do movimento analítico-interpretativo de cada grupo. A fim de descrever o modo do funcionamento da governamentalização dos sujeitos com deficiência, a noção de função enunciativa foi essencial, haja vista a necessidade de precisarmos o funcionamento discursivo acerca do sujeito deficiente em uma diversidade de representações que contemplam a imagem, a língua e a sonoridade. A partir da caracterização do referencial e do sujeito discursivo de enunciados efetivamente ditos, a análise arqueogenealógica encontrou procedimentos encarregados de fixar a identidade de sujeitos com deficiência em função da proposta inclusiva, graças ao domínio e conhecimento de si e do outro. Além disso, entendemos que a formação dos três grupos permitiu a visualização dos três tipos de governo (FOUCAULT, 2008, p. 125): o governo de si mesmo, a arte de governar uma família e a arte de bem governar o estado, que pertence à política. Diante disso, propomos o seguinte quadro- Grupo 1 -“Ser diferente é normal” síntese: Referencial Posição sujeito Normalização da deficiência (possibilidade de equilibrar a sociedade e promover a cidadania). Posição política favorável à inclusão (reconhece a existência de sujeitos normais e a necessidade de incluir as pessoas deficientes nos diversos campos sociais). Forma de governamentalidade Arte de governar o estado – política. Grupo 3 – “Lição de vida” Grupo 2 – “ O preconceito ainda existe” - 164 - Condição de existência do preconceito. A inclusão é possível, mas a sociedade deve permitir (transformação global e imediata dos processos de socialização) Governo do outro. Condição de existência da superação. A inclusão é possível, mas depende da superação do próprio sujeito deficiente (transformação das dificuldades em oportunidades). Governo de si mesmo. Quadro 16 – Quadro-síntese: a função enunciativa e os mecanismos de governamentalização Assim, entendemos que, a partir do quadro teórico metodológico construido, foi possível empreender um gesto de leitura que cumpriu o objetivo inicial, descrevendo o modo como a governamentalidade possibilita o funcionamento da normalização do deficiente como resistência à exclusão. Considerando que o poder disciplinar centra-se no corpo por estratégias de individualização do indivíduo e que o biopoder se exerce sobre a população, a inclusão é, pois, um modelo para a prática de governo dos sujeitos, a partir do corpo populacional. A articulação dos discursos midiáticos forma dispositivos de governo dos outros que coadunam com a política inclusiva, enquanto efeito de verdade da atualidade. Por fim, as reflexões contempladas no decorrer deste trabalho dissertativo, indicam que empreender uma pesquisa em Análise do Discurso é arriscar-se na ordem do discurso, que, em sua continuidade, é (re)conduzido em sua presença ausente, o que torna a análise um tanto fascinante. Ao se propor a problematizar a esfera discursiva midiática, em específico a televisiva, enfrentam-se desafios ainda maiores, visto que o analista deve se situar ao mesmo tempo dentro e fora de uma perspectiva linguística, cujas escolhas conceituais e metodológicas possibilitam fazer “escutas discursivas” de seu objeto. Dito isso, encerramos formalmente este trabalho dissertativo cientes de que o arquivo formado permanece aberto para novas metodologias, que poderão gerar descrições e interpretações diversas e complementares. - 165 - REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. A imagem. Tradução Estela dos Santos Abreu e Cláudio C. Santoro. Campinas: Papirus, 1993 (Coleção Ofício de Arte e Forma). BARTALOTTI, Celina Camargo. 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ARTIGO 4 Sempre que possível o deficiente mental deve residir com sua família, ou em um lar que substitua o seu, e participar das diferentes formas de vida da sociedade. O lar em que vive deve receber assistência. Se for necessário interná-lo em estabelecimento especializado, o ambiente e as condições de vida nesse estabelecimento devem se assemelhar ao máximo aos da vida normal. ARTIGO 5 O deficiente mental deve e poder contar com a atenção de um tutor qualificado quando isso se torne indispensável à proteção de sua pessoa e de seus bens. ARTIGO 6 (primeira parte) O deficiente mental deve ser protegido de toda exploração e de todo abuso ou tratamento degradante. ARTIGO 6 (segunda parte) No caso de ser um deficiente objeto de ação judicial ele deve ser submetido a um processo justo, em que seja levado em plena conta seu grau de responsabilidade, de acordo com suas faculdades mentais. ARTIGO 7 Se alguns deficientes mentais não são capazes, devido à gravidade de suas limitações, de exercer afetivamente todos os seus direitos, ou se se tornar necessário limitar ou até suspender tais direitos, o processo empregado para esses fins deverá incluir salvaguardas jurídicas que protejam o deficiente contra qualquer abuso. Esse procedimento deverá basear-se numa avaliação da capacidade social do deficiente por peritos qualificados. Mesmo assim, tal limitação ou suspensão ficará sujeita a revisões periódicas e reconhecerá o direito de apelação para autoridades superiores. - 172 - ANEXO B RESOLUÇÃO ONU N.º 3.447, DE 09 DE DEZEMBRO DE 1975 Resolução aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 09/12/75. A Assembléia Geral Consciente da promessa feita pelos Estados Membros na Carta das Nações Unidas no sentido de desenvolver ação conjunta e separada, em cooperação com a Organização, para promover padrões mais altos de vida, pleno emprego e condições de desenvolvimento e progresso econômico e social, Reafirmando, sua fé nos direitos humanos, nas liberdades fundamentais e nos princípios de paz, de dignidade e valor da pessoa humana e de justiça social proclamada na carta, Recordando os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, dos Acordos Internacionais dos Direitos Humanos, da Declaração dos Direitos da Criança e da Declaração dos Direitos das Pessoas Mentalmente Retardadas, bem como os padrões já estabelecidos para o progresso social nas constituições, convenções, recomendações e resoluções da Organização Internacional do Trabalho, da Organização Educacional, Científica e Cultural das Nações Unidas, do Fundo da Criança das Nações Unidas e outras organizações afins. Lembrando também a resolução 1921 (LVIII) de 6 de maio de 1975, do Conselho Econômico e Social, sobre prevenção da deficiência e reabilitação de pessoas deficientes, Enfatizando que a Declaração sobre o Desenvolvimento e Progresso Social proclamou a necessidade de proteger os direitos e assegurar o bem-estar e reabilitação daqueles que estão em desvantagem física ou mental, Tendo em vista a necessidade de prevenir deficiências físicas e mentais e de prestar assistência às pessoas deficientes para que elas possam desenvolver suas habilidades nos mais variados campos de atividades e para promover portanto quanto possível, sua integração na vida normal, Consciente de que determinados países, em seus atual estágio de desenvolvimento, podem, desenvolver apenas limitados esforços para este fim. PROCLAMA esta Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes e apela à ação nacional e internacional para assegurar que ela seja utilizada como base comum de referência para a proteção destes direitos: 1 - O termo “pessoas deficientes” refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais. 2 - As pessoas deficientes gozarão de todos os diretos estabelecidos a seguir nesta Declaração. Estes direitos serão garantidos a todas as pessoas deficientes sem nenhuma exceção e sem qualquer distinção ou discriminação com base em raça, cor, sexo, língua, religião, opiniões políticas ou outras, origem social ou nacional, estado de saúde, nascimento ou qualquer outra situação que diga respeito ao próprio deficiente ou a sua família. 3 - As pessoas deficientes têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana. As pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto possível. - 173 - 4 - As pessoas deficientes têm os mesmos direitos civis e políticos que outros seres humanos:o parágrafo 7 da Declaração dos Direitos das Pessoas Mentalmente Retardadas (*) aplica-se a qualquer possível limitação ou supressão destes direitos para as pessoas mentalmente deficientes. 5 - As pessoas deficientes têm direito a medidas que visem capacitá-las a tornarem-se tão autoconfiantes quanto possível. 6 - As pessoas deficientes têm direito a tratamento médico, psicológico e funcional, incluindo-se aí aparelhos protéticos e ortóticos, à reabilitação médica e social, educação, treinamento vocacional e reabilitação, assistência, aconselhamento, serviços de colocação e outros serviços que lhes possibilitem o máximo desenvolvimento de sua capacidade e habilidades e que acelerem o processo de sua integração social. 7 - As pessoas deficientes têm direito à segurança econômica e social e a um nível de vida decente e, de acordo com suas capacidades, a obter e manter um emprego ou desenvolver atividades úteis, produtivas e remuneradas e a participar dos sindicatos. 8 - As pessoas deficientes têm direito de ter suas necessidade especiais levadas em consideração em todos os estágios de planejamento econômico e social. 9 - As pessoas deficientes têm direito de viver com suas famílias ou com pais adotivos e de participar de todas as atividades sociais, criativas e recreativas. Nenhuma pessoa deficiente será submetida, em sua residência, a tratamento diferencial, além daquele requerido por sua condição ou necessidade de recuperação. Se a permanência de uma pessoa deficiente em um estabelecimento especializado for indispensável, o ambiente e as condições de vida nesse lugar devem ser, tanto quanto possível, próximos da vida normal de pessoas de sua idade. 10 - As pessoas deficientes deverão ser protegidas contra toda exploração, todos os regulamentos e tratamentos de natureza discriminatória, abusiva ou degradante. 11 - As pessoas deficientes deverão poder valer-se de assistência legal qualificada quando tal assistência for indispensável para a proteção de suas pessoas e propriedades. Se forem instituídas medidas judiciais contra elas, o procedimento legal aplicado deverá levar em consideração sua condição física e mental. 12 - As organizações de pessoas deficientes poderão ser consultadas com proveito em todos os assuntos referentes aos direitos de pessoas deficientes. 13 - As pessoas deficientes, suas famílias e comunidades deverão ser plenamente informadas por todos os meios apropriados, sobre os direitos contidos nesta Declaração. Resolução adotada pela Assembléia Geral da Nações Unidas 9 de dezembro de 1975 Comitê Social Humanitário e Cultural. (*)O parágrafo 7 da Declaração dos Direitos das Pessoas Mentalmente Retardadas estabelece: “Sempre que pessoas mentalmente retardadas forem incapazes devido à gravidade de sua deficiência de exercer todos os seus direitos de um modo significativo ou que se torne necessário restringir ou denegar alguns ou todos estes direitos, o procedimento usado para tal restrição ou denegação de direitos deve conter salvaguardas legais adequadas contra qualquer forma de abuso. Este procedimento deve ser baseado em uma avaliação da capacidade social da pessoa mentalmente retardada, por parte de especialistas e deve ser submetido à revisão periódicas e ao direito de apelo a autoridades superiores”. - 174 - ANEXO C RESOLUÇÃO ONU N.º 45/91, DE 14 DE DEZEMBRO DE 1990 Assembléia Geral das Nações Unidas - 1990 O item 1 desta resolução destaca o termo “uma sociedade para todos” e o item 4 estabelece o ano de 2010 como meta para se concluir uma sociedade para todos. (N.T.) Tradução de Romeu Kazumi Sassaki A Assembléia Geral, Recordando todas as suas relevantes resoluções como um plano de ação de longo prazo, por exemplo a resolução 37/52 de 3 de dezembro de 1982, pela qual ela adotou o Programa Mundial de Ação relativo a Pessoas com Deficiência, e a resolução 37/53 de 3 de dezembro de 1982, na qual, inter alia, ela proclamou o período de 1983-1992 como a Década das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas; Recordando também a sua resolução 43/98 de 8 de dezembro de 1988, na qual ela instou os Países Membros, as organizações intergovernamentais e as não-governamentais pertinentes a passarem para a ação, em todos os níveis apropriados, as prioridades dos programas e atividades mundiais durante a segunda metade da Década, a exemplo daqueles estabelecidos no anexo a esta resolução; Recordando, além disso, a solicitação ao Secretário-Geral feita em sua resolução 43/98 para que seja conduzido um estudo de viabilidade das implicações financeiras e administrativas substantivas dos meios para marcar o fim da Década em 1992, estudo esse que incluiria uma revisão do progresso mundial alcançado e os obstáculos encontrados durante a Década e ofereceria um mecanismo para preparar as ações necessárias até 2000 e após esse ano; Recordando a resolução 1989/52 do Conselho Econômico e Social de 24 de maio de 1989, em particular o parágrafo 9, no qual o Conselho convida o Secretário-Geral a convocar, em conexão com a preparação do estudo de viabilidade, uma reunião de peritos em 1990 para aconselhar sobre os melhores meios possíveis para marcar o fim da Década; Tendo considerado com interesse e reconhecimento o relatório do Secretário-Geral sobre o estudo de viabilidade dos meios alternativos para marcar o fim da Década, o qual foi baseado nos resultados de uma reunião de peritos realizada in Jarvenpaa, Finlândia, nos dias 7 a 11 de maio de 1990, a convite generoso e com apoio financeiro do Governo da Finlândia; Registrando a sugestão contida no relatório do Secretário-Geral que considera a proposta de uma conferência ministerial mundial para marcar o fim da Década; Tendo em mente a resolução 1990/26 do Conselho Econômico e Social de 24 de maio de 1990 sobre a equiparação de oportunidades para pessoas com deficiência, na qual o Conselho autorizou a Comissão de Desenvolvimento Social a considerar, em sua 32ª sessão plenária, o estabelecimento de um grupo de trabalho ad hoc aberto, constituído de peritos governamentais e financiado por contribuições voluntárias, o qual terá por objetivo elaborar as normas sobre a equiparação de oportunidades para crianças, jovens e adultos com deficiência; Observando com satisfação que a Década de 80, durante a qual tiveram observância o Ano Internacional das Pessoas Deficientes e a Década das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas, foi um período de esforços mundiais de sensibilização e conscientização em relação aos direitos e necessidades das pessoas com deficiência; Convencida da necessidade de transformar esta consciência em ações; Observando com preocupação a situação econômica e social deteriorada em alguns países em desenvolvimento, a qual afeta adversamente os grupos vulneráveis, inclusive pessoas com deficiência; Cônscia da necessidade de esforços novos e combinados, de ações mais vigorosas e amplas e de medidas em todos os níveis para atingir os objetivos da Década; - 175 - Expressando seu reconhecimento pelos esforços de vários Países Membros durante a Década para melhorar as condições e o bem-estar das pessoas com deficiência e o desejo daqueles países em envolver pessoas com deficiência e suas organizações em todos os assuntos que lhes digam respeito; Cônscia do problema que surge em alguns países em relação à tradução dos termos “impedimento”, “deficiência”, “incapacidade” e “pessoas deficientes” utilizados no Programa Mundial de Ação; Observando com gratidão o generoso apoio, ao Fundo Voluntário da Década das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas, oferecido por alguns Governos através de contribuições voluntárias; Cônscia do importante papel desempenhado por comitês nacionais em promover a implementação do Programa Mundial de Ação; Incentivada pelo surgimento de organizações de pessoas com deficiência em algumas partes do mundo e pela sua influência positiva sobre a imagem e as condições das pessoas com deficiência; Reconhecendo como atividades importantes para marcar o fim da Década o Congresso Mundial da Rehabilitation International, o Congresso Mundial da Disabled Peoples‟ International, a Assembléia Geral da União Mundial de Cegos, o Independence 92 e outros relevantes eventos que acontecerão em 1992; Observando a importante contribuição que está sendo feita por outras organizações nãogovernamentais para melhorar o status das pessoas com deficiência: Desejosa de incentivar a implementação contínua do Programa Mundial de Ação para além da Década: 1. Enfatiza a necessidade de atingir os objetivos estabelecidos na agenda de ações até o fim da Década das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas e além da Década, bem como o esboço preliminar de uma estratégia de longo prazo até 2000 e além desse ano: uma sociedade para todos, conforme consta no relatório do Secretário-Geral sobre o estudo de viabilidade dos meios alternativos para marcar o fim da Década; 2. Convida os Países Membros, as agências especializadas e outros órgãos e organizações do sistema das Nações Unidas e as organizações intergovernamentais e as não-governamentais a implementarem a agenda de ações e o esboço preliminar, bem como a utilizarem esses documentos como diretrizes e estímulos para a preparação de: (a) Agendas de ações nacionais, regionais e internacionais voltadas à montagem de bem focalizadas atividades em todos os níveis para beneficiar pessoas com deficiência, de tal forma que as agendas estejam em conformidade com a cultura, os costumes, as tradições, o nível de desenvolvimento socioeconômico e as restrições de recursos de cada país; (b) Planos estratégicos de longo prazo com precisos alvos a serem atingidos nas áreas de prevenção, reabilitação e equiparação de oportunidades por volta do ano 2000; 3. Afirma que, na implementação da agenda de ações, é necessário ser dada atenção especial às pessoas com deficiência de países em desenvolvimento; 4. Solicita ao Secretário-Geral uma mudança no foco do programa das Nações Unidas sobre deficiência, passando da conscientização para a ação, com o propósito de se concluir com êxito uma sociedade para todos por volta do ano 2010 e de responder mais adequadamente às muitas solicitações de serviços de assistência e consultoria; 5. Enfatiza a necessidade de prioridades a serem dadas, dentro dos recursos existentes, aos programas de ação que irão renovar o consenso internacional a respeito do compromisso político dos Países - 176 - Membros para com a implementação do Programa Mundial de Ação para além da Década e que irão assegurar a melhoria contínua da situação das pessoas com deficiência; 6. Solicita ao Secretário-Geral para que ajude os Países Membros no estabelecimento e fortalecimento dos comitês nacionais sobre assuntos de deficiência e dos órgãos coordenadores semelhantes e que promova e apóie a criação de organizações eficazes de pessoas com deficiência, incluindo organizações representativas superiores; 7. Solicita também ao Secretário-Geral que reveja a tradução, para os idiomas oficiais das Nações Unidas, dos termos “impedimento”, “deficiência”, “incapacidade” e “pessoas deficientes” utilizados no Programa Mundial de Ação; 8. Enfatiza a necessidade de identificar medidas específicas para fortalecer a Unidade de Pessoas Deficientes do Centro de Desenvolvimento Social e Assuntos Humanitários, do Secretariado das Nações Unidas, a fim de torná-la capaz de implementar os objetivos da Década dentro dos recursos existentes; 9. Acolhe o apoio já oferecido por alguns Governos ao Fundo Voluntário da Década das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas e solicita mais contribuições voluntárias a fim de fortalecer a Unidade de Pessoas Deficientes para torná-la capaz de desempenhar suas funções essenciais; 10. Reafirma que os recursos do Fundo Voluntário devem ser utilizados para apoiar atividades catalizadoras e inovadoras a fim de implementar mais ainda os objetivos do Programa Mundial de Ação dentro da estrutura da Década, com prioridade dada, se adequada, aos programas e projetos dos países menos desenvolvidos; 11. Convida Governos e organizações não-governamentais a continuarem dando suas contribuições ao Fundo Voluntário e pede aos Governos e organizações não-governamentais que ainda não fizeram isso para que considerem contribuir para o Fundo Voluntário, permitindo assim que este responda eficazmente à crescente demanda por assistência; 12. Convida também os Países Membros a submeterem ao Secretário-Geral relatórios nacionais atualizados sobre a implementação da agenda de ações; 13. Solicita ao Secretário-Geral que relate sobre a implementação da presente resolução à Assembléia Geral em sua 46ª sessão plenária; 14. Decide incluir na agenda provisória da sua 46ª sessão plenária o item intitulado “Implementação do Programa Mundial de Ação relativo a Pessoas com Deficiência e a Década das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas”. Assembléia Geral das Nações Unidas, 68a Sessão Plenária. Nova York, 14 de dezembro de 1990 - 177 - ANEXO D CARTA PARA O TERCEIRO MILÊNIO A tradução foi feita do original em inglês pelo consultor de inclusão Romeu Kazumi Sassaki Nós entramos no Terceiro Milênio determinados a que os direitos humanos de cada pessoa em qualquer sociedade devam ser reconhecidos e protegidos. Esta Carta é proclamada para transformar esta visão em realidade. Os direitos humanos básicos são ainda rotineiramente negados a segmentos inteiros da população mundial, nos quais se encontram muitos dos 600 milhões de crianças, mulheres e homens que têm deficiência. Nós buscamos um mundo onde as oportunidades iguais para pessoas com deficiência se tornem uma consequência natural de políticas e leis sábias que apóiem o acesso a, e a plena inclusão, em todos os aspectos da sociedade. O progresso científico e social no século 20 aumentou a compreensão sobre o valor único e inviolável de cada vida. Contudo, a ignorância, o preconceito, a superstição e o medo ainda dominam grande parte das respostas da sociedade à deficiência. No Terceiro Milênio, nós precisamos aceitar a deficiência como uma parte comum da variada condição humana. Estatisticamente, pelo menos 10% de qualquer sociedade nascem com ou adquirem uma deficiência; e aproximadamente uma em cada quatro famílias possui uma pessoa com deficiência. Nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, nos hemisférios norte e sul do planeta, a segregação e a marginalização têm colocado pessoas com deficiência no nível mais baixo da escala sócioeconômica. No século 21, nós precisamos insistir nos mesmos direitos humanos e civis tanto para pessoas com deficiência como para quaisquer outras pessoas. O século 20 demonstrou que, com inventividade e engenhosidade, é possível estender o acesso a todos os recursos da comunidade ambientes físicos, sociais e culturais, transporte, informação, tecnologia, meios de comunicação, educação, justiça, serviço público, emprego, esporte e recreação, votação e oração. No século 21, nós precisamos estender este acesso que poucos têm para muitos, eliminando todas as barreiras ambientais, eletrônicas e atitudinais que se anteponham à plena inclusão deles na vida comunitária. Com este acesso poderão advir o estímulo à participação e à liderança, o calor da amizade, as glórias da afeição compartilhada e as belezas da Terra e do Universo. A cada minuto, diariamente, mais e mais crianças e adultos estão sendo acrescentados ao número de pessoas cujas deficiências resultam do fracasso na prevenção das doenças evitáveis e do fracasso no tratamento das condições tratáveis. A imunização global e as outras estratégias de prevenção não mais são aspirações; elas são possibilidades práticas e economicamente viáveis. O que é necessário é a vontade política, principalmente de governos, para acabarmos com esta afronta à humanidade. Os avanços tecnológicos estão teoricamente colocando, sob o controle humano, a manipulação dos componentes genéticos da vida. Isto apresenta novas dimensões éticas ao diálogo internacional sobre a prevenção de deficiências. No Terceiro Milênio, nós precisamos criar políticas sensíveis que respeitem tanto a dignidade de todas as pessoas como os inerentes benefícios e harmonia derivados da ampla diversidade existente entre elas. Programas internacionais de assistência ao desenvolvimento econômico e social devem exigir padrões mínimos de acessibilidade em todos os projetos de infra-estrutura, inclusive de tecnologia e comunicações, a fim de assegurarem que as pessoas com deficiência sejam plenamente incluídas na vida de suas comunidades. - 178 - Todas as nações devem ter programas contínuos e de âmbito nacional para reduzir ou prevenir qualquer risco que possa causar impedimento, deficiência ou incapacidade, bem como programas de intervenção precoce para crianças e adultos que se tornarem deficientes. Todas as pessoas com deficiência devem ter acesso ao tratamento, à informação sobre técnicas de auto-ajuda e, se necessário, à provisão de tecnologias assistivas e apropriadas. Cada pessoa com deficiência e cada família que tenha uma pessoa deficiente devem receber os serviços de reabilitação necessários à otimização do seu bem-estar mental, físico e funcional, assim assegurando a capacidade dessas pessoas para administrarem sua vida com independência, como o fazem quaisquer outros cidadãos. Pessoas com deficiência devem ter um papel central no planejamento de programas de apoio à sua reabilitação; e as organizações de pessoas com deficiência devem ser empoderadas com os recursos necessários para compartilhar a responsabilidade no planejamento nacional voltado à reabilitação e à vida independente. A reabilitação baseada na comunidade deve ser amplamente promovida nos níveis nacional e internacional como uma forma viável e sustentável de prover serviços. Cada nação precisa desenvolver, com a participação de organizações de e para pessoas com deficiência, um plano abrangente que tenha metas e cronogramas claramente definidos para fins de implementação dos objetivos expressos nesta Carta. Esta Carta apela aos Países-Membros para que apóiem a promulgação de uma Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência como uma estratégia-chave para o atingimento destes objetivos. No Terceiro Milênio, a meta de todas as nações precisa ser a de evoluírem para sociedades que protejam os direitos das pessoas com deficiência mediante o apoio ao pleno empoderamento e inclusão delas em todos os aspectos da vida. Por estas razões, a CARTA PARA O TERCEIRO MILÊNIO é proclamada para que toda a humanidade entre em ação, na convicção de que a implementação destes objetivos constitui uma responsabilidade primordial de cada governo e de todas as organizações nãogovernamentais e internacionais relevantes. http://www.cedipod.org.br/carta3m.htm - 179 - ANEXO E POLÍTICA NACIONAL PARA A INTEGRAÇÃO DA PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA Presidência da República Subchefia para Assuntos Jurídicos DECRETO Nº 914, DE 6 DE SETEMBRO DE 1993. Institui a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA , no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto na Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, alterada pela Lei nº 8.028, de 12 de abril de 1990, DECRETA: CAPÍTULO I Das Disposições Iniciais Art. 1º A Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência é o conjunto de orientações normativas, que objetivam assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência. Art. 2º A Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, seus princípios, diretrizes e objetivos obedecerão ao disposto na Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, e ao que estabelece este decreto. Art. 3º Considera-se pessoa portadora de deficiência aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidades de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano. CAPÍTULO II Dos Princípios Art. 4º A Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência nortear-se-á pelos seguintes princípios: I - desenvolvimento de ação conjunta do Estado e da sociedade civil, de modo a assegurar a plena integração da pessoa portadora de deficiência no contexto sócio-econômico e cultural; II - estabelecimento de mecanismos e instrumentos legais e operacionais, que assegurem às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciam o seu bem-estar pessoal, social e econômico; - 180 - III - respeito às pessoas portadoras de deficiência, que devem receber igualdade de oportunidades na sociedade por reconhecimento dos direitos que lhes são assegurados, sem privilégios ou paternalismos. CAPÍTULO III Das Diretrizes Art. 5º São diretrizes da Policia Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência: I - estabelecer mecanismos que acelerem e favoreçam o desenvolvimento das pessoas portadoras de deficiência; II - adotar estratégias de articulação com órgãos públicos e entidades privadas, bem como com organismos internacionais e estrangeiros para a implantação desta política; III - incluir a pessoa portadora de deficiência, respeitadas, as suas peculiaridades, em todas as iniciativas governamentais relacionadas à educação, saúde, trabalho, à edificação pública, seguridade social, transporte, habitação, cultura, esporte e lazer; IV - viabilizar a participação das pessoas portadoras de deficiência em todas as fases de implementação desta política, por intermédio de suas entidades representativas; V - ampliar as alternativas de absorção econômica das pessoas portadoras de deficiência; VI - garantir o efetivo atendimento à pessoa portadora de deficiência, sem o indesejável cunho de assistência protecionista; VII - promover medidas visando à criação de emprego, que privilegiem atividades econômicas de absorção de mão-de-obra de pessoas portadoras de deficiência; VIII - proporcionar ao portador de deficiência qualificação profissional e incorporação no mercado de trabalho. CAPÍTULO IV Dos Objetivos Art. 6º São objetivos da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência: I - o acesso, o ingresso e a permanência da pessoa portadora de deficiência em todos os serviços oferecidos à comunidade; II integração das ações dos órgãos públicos e entidades privadas nas áreas de saúde, educação, trabalho, transporte e assistência social, visando à prevenção das deficiências e à eliminação de suas múltiplas causas; III - desenvolvimento de programas setoriais destinados ao atendimento das necessidades especiais das pessoas portadoras de deficiência; IV - apoio à formação de recursos humanos para atendimento da pessoa portadora de deficiência; V - articulação de entidades governamentais e não-governamentais, em nível Federal, Estadual, do Distrito Federal e Municipal, visando garantir efetividade aos programas de prevenção, de atendimento especializado e de integração social. CAPÍTULO V - 181 - Dos Instrumentos Art. 7º São instrumentos da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência: I - a articulação entre instituições governamentais e não-governamentais que tenham responsabilidades quanto ao atendimento das pessoas com deficiência, em todos os níveis, visando garantir a efetividade dos programas de prevenção, de atendimento especializado e de integração social, bem como a qualidade do serviço ofertado, evitando ações paralelas e dispersão de esforços e recursos; II - o fomento à formação de recursos humanos para adequado e eficiente atendimento das pessoas portadoras de deficiência; III - a aplicação da legislação específica que disciplina a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da administração pública e do setor privado, e que regulamenta a organização de oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho, e a situação, nelas, das pessoas portadoras de deficiência; IV - o fomento ao aperfeiçoamento da tecnologia dos equipamentos de auxílio utilizados por pessoas portadoras de deficiência, bem como a criação de dispositivos que facilitem a importação de equipamentos; V - a fiscalização do cumprimento da legislação pertinente às pessoas portadoras de deficiência. CAPÍTULO VI Das Disposições Finais Art. 8º O Ministério do Bem-Estar Social, por intermédio da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), providenciará a ampla divulgação desta política, objetivando a conscientização da sociedade brasileira. Art. 9º Os Ministros de Estado aprovarão os planos, programas e projetos de suas respectivas áreas, em consonância com a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, estabelecida por este decreto. Art. 10. Caberá à Corde a coordenação superior de todos os assuntos, ações governamentais e medidas referentes à política voltada para as pessoas portadoras de deficiência, em articulação com os órgãos da Administração Pública Federal. Art. 11. Este decreto entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 6 de setembro de 1993; 172º da Independência e 105º da República. ITAMAR FRANCO Jutahy Magalhães Júnior http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0914.htm ANEXOS (PARTE II) - 183 -