1 A CONCEPÇÃO DE SER HUMANO E EDUCAÇÃO A PARTIR DE UM OLHAR ANTROPOSÓFICO: A PEDAGOGIA WALDORF 1 Harumi Matsumiya Alves Arruda 2 Jullyanna Ellen Ferreira de Andrade 3 Lívia Santos Correia de Melo 4 Vantuil Barroso Filho RESUMO A presente pesquisa uma breve discussão sobre a atual situação da educação no Brasil, tendo como objetivo buscar alternativas que visem à melhoria de sua qualidade. Partindo desse objetivo, buscou-se discutir a relevância de uma formação que admita a integralidade do ser humano como contribuição para o processo de ensino-aprendizagem nas escolas. Para tanto, visitou-se a Escola Municipal Cecília Meireles, localizada na cidade de Nova Friburgo-RJ, que adota a Pedagogia Waldorf em sua proposta educacional. Foram realizadas cinco observações em uma turma de 3º ano do Ensino Fundamental, além de entrevistas semi-estruturadas com sete professores e conversas informais estabelecidas com os demais sujeitos da comunidade escolar. Ao final da pesquisa, constatou-se que propostas inovadoras no âmbito educacional geralmente encontram resistência de aceitação por parte da sociedade, porém, mesmo com todos os entraves encontrados, a eficácia do modelo de educação encontrado em Nova Friburgo nos prova que um outro caminho é possível. Palavras-chave: Antroposofia – Educação – Pedagogia Waldorf Introdução O presente artigo traz reflexões sobre uma proposta alternativa de educação que parece ser condizente às necessidades sociais do mundo atual. A situação na qual se encontra o sistema educacional do país, bem como as vivências durante a graduação em Pedagogia vêm nos mostrando que a maioria dos discentes e docentes envolvidos na área acreditam que o modelo de educação vigente no Estado de Pernambuco e no resto do país não é o modelo de educação que satisfaz as reais necessidades da sociedade. Tem se discutido bastante sobre a insuficiência deste modelo educacional que acaba por reduzir o aluno a um simples futuro candidato a um bom cargo de trabalho. 1 Graduanda em Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco; [email protected] Graduanda em Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco; [email protected] 3 Graduanda em Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco; [email protected] 4 Profº Adjunto do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino - DMTE, do Centro de Educação, da Universidade Federal de Pernambuco; [email protected] 2 2 Porém, mesmo com este debate presente na academia e com o reconhecimento de que algo deve ser mudado, muito pouco se vê avançar na construção ou busca de um novo modelo que possibilite a formação de indivíduos conscientes de seus potenciais e amadurecidos para transformar seus questionamentos em ações de mudança real na sociedade. Assim, esta pesquisa procurou uma alternativa que pudesse ampliar a discussão acerca do processo de educação. A partir do momento que se atribui à educação o papel de transformação da sociedade, numa vertente mais justa, fraterna, crítica e igualitária, é necessário pensar, pesquisar, conhecer, discutir e aplicar outras propostas educativas bem sucedidas dentro dessas expectativas, inclusive nas classes populares, de modo que se combata esse paradigma educacional instalado, subserviente aos ditames da economia. Para tanto, toma-se como objetivo geral desse estudo conhecer e compreender melhor a Pedagogia Waldorf, verificando a sua viabilidade no sistema educacional público. Procurou-se também averiguar se esta proposta pedagógica realmente atende às expectativas de uma nova demanda que busca um sentido mais holístico da educação e construção de um outro modelo de sociedade. A metodologia adotada incluiu pesquisa bibliográfica, no sentido de conhecer a origem e as teorias da Pedagogia Waldorf; visita e observações a partir de uma análise qualitativa de uma turma do 3º ano do Ensino Fundamental, da Escola Municipal Cecília Meireles (Nova Friburgo – RJ); além de entrevistas semi-estruturadas com professores de escolas Waldorf do Recife e do Rio de Janeiro. Devido ao fato de que em Recife exista apenas uma escola Waldorf particular, e que a intenção da pesquisa seria verificar a viabilidade de uma escola Waldorf pública, a Escola Municipal Cecília Meireles foi escolhida por satisfazer aos critérios estabelecidos. Ao todo, foram entrevistados sete professores e realizadas cinco observações que resultaram num material bastante rico, complementando as informações que já haviam sido obtidas no grupo de estudos da Pedagogia Waldorf que existe no Recife. 3 Desta forma, acredita-se que o material resultante desta pesquisa seja um primeiro passo para o conhecimento de modelos educacionais tidos como revolucionários em outras partes do mundo. 1. A concepção de ser humano e de educação de acordo com o modelo educacional vigente no país A discussão sobre a educação no Brasil pode partir de inúmeros aspectos. Uma das linhas de análise dessa questão é fundamentada na relação de domínio estabelecida nas sociedades de um modo geral. Ou seja, a evolução humana pode ser observada a partir das relações entre um grupo dominador e um grupo dominado. Considerando que a história da educação brasileira é a história da educação do colonizador (GADOTTI, 2005), pode-se, a partir disso, refletir sobre a concepção de ser humano e de educação que vigora nas escolas e na sociedade atual. A partir do momento em que se percebe que existe um processo de “colonização” em vários setores da sociedade, evidencia-se uma relação entre colonizadores (minoria) e colonizados (maioria), inclusive na escola. A esses colonizadores, não interessa uma sociedade crítica, consciente da dominação e ávida por mudanças. Segundo Enriquez (2001): As instituições (e os homens que a dirigem) só existem por sua vontade operatória. Se não fizessem nada, elas desapareceriam. É natural, desse modo, pensar que terão como finalidade a dominação de tudo o que é dominável. Se seu domínio se exerceu, inicialmente, sobre as ferramentas, os instrumentos e os animais, as instituições rapidamente encontraram seu alvo mais importante, isto é, o único susceptível de manejar as ditas ferramentas, instrumentos, utensílios e animais: o homem. O controle do ser humano, como ser social, é a preocupação constante dos homens de poder. Dizer controlar é dizer: como impedi-los de perceber o que lhes acontece, como submetê-los tornando satisfeitos em sua submissão, ou pelo menos prontos a aceitá-las. (ENRIQUEZ, 2001, p.68). As reflexões sobre a educação no Brasil passaram por diversas transformações nas últimas décadas e a discussão sobre as relações de domínio, hoje em dia, permeiam para aspectos relacionados ao lucro (escolas privadas) ou relacionadas ao número de alunos matriculados (escolas públicas). 4 Na verdade, o que temos atualmente é uma educação segmentada para classes sociais distintas. De um lado, está a rede privada de escolas, encarregada, muitas vezes, de desenvolver um modelo de educação tecnicista que visa a garantia de mãode-obra para o mercado demasiadamente competitivo; do outro, a rede pública, utilizando a escola como instrumento de dominação das massas, atendendo com afinco aos objetivos do sistema econômico dominante. Sobre isso Gadotti (2005) diz: Dentro dessa concepção de educação, os países periféricos e, portanto, dependentes estão atrasados porque são carentes de tecnologia e não porque são dependentes. Ora, essa carência pode ser suprida através de uma reforma do sistema escolar, voltada para o treinamento, o adestramento do estudante, tornando um dócil servidor do sistema econômico. (GADOTTI, 2005, p. 57). Observa-se que as escolas brasileiras, tanto públicas, quanto privadas, não estão preocupadas com a formação integral do ser humano, sendo esta substituída por uma formação que acaba fomentando o projeto de desenvolvimento de seres submissos às ordens da economia capitalista. Segundo Althusser (1983), que desenvolveu o conceito de “aparelhos ideológicos do Estado”, a escola contribui para a reprodução da sociedade capitalista ao transmitir, através das matérias escolares, as crenças que nos fazem ver os arranjos sociais como bons e desejáveis. Seria, então, uma espécie de instrumento que desapropria o ser humano de sua capacidade crítica e questionadora. Sobre isso, Chomsky (2000), complementa afirmando que o que existe na verdade, hoje, é um modelo de ensino que deseduca, pois este acaba por formar professores preocupados apenas em repassar procedimentos e técnicas, impedindo o pensamento crítico que permite perceber o que está por trás da realidade. Diante disso, o atual modelo de educação preocupa-se em trabalhar apenas a dimensão intelectual do indivíduo (muitas vezes sem sucesso), resumindo-se ao conhecimento superficial e deturpado do conteúdo exigido pelas leis e pelo mercado de trabalho. Observa-se, assim, que mesmo aqueles com maior poder aquisitivo e que se formaram em escolas da rede privada, tidas pela sociedade como de boa qualidade, acabam por se tornar seres que obedecem apenas às normas exigidas pelo mercado de trabalho, mas não conseguem se realizar enquanto seres sociais. 5 A realidade atual é extremamente complexa e envolve questionamentos sobre influência das classes dominantes, discurso da ética na globalização, incapacidade administrativa das instituições de ensino, além de inúmeros outros fatores. A lógica perversa de atendimento ao sistema econômico vigente parece ser extremamente contraditória a uma proposta de formação de seres humanos enquanto indivíduos críticos e transformadores da realidade. Quanto a isso, Freire nos adverte: O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a da ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente, se optamos, na verdade, por um mundo de gente. (FREIRE, 1997, p.127). A sutileza com que os princípios imperialistas do capital adentram a sociedade é preocupante, pois essa dominação é tão mascarada que acaba sendo reproduzida inconscientemente. Como conseqüência disso, os excluídos do sistema acabam sendo levados pelas águas fortes do discurso ideológico que a rege, seguindo um rio pelo qual não há como mudar o seu percurso e que, fatalmente, os direciona a um único caminho: o da aceitação. Este processo é apresentado por Freire quando ele afirma que: Uma das eficácias de sua ideologia fatalista é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo, de que não há nada a fazer, mas seguir a ordem natural dos fatos. Pois é como algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se esforça por nos fazer entender a globalização e não como uma produção histórica. (FREIRE, 1997, p. 127). Torna-se evidente refletir sobre o fato de que os seres humanos não devem ser compreendidos apenas por sua capacidade intelectual; ele deve receber uma formação que busque compreendê-los e desenvolvê-los em suas múltiplas dimensões. 2. A importância de uma formação que busque a integralidade do ser humano O Brasil possui uma esmagadora maioria de instituições de ensino que estão subordinadas às regras da economia mercantilista e que, portanto, compreendê-las para tentar dar um novo direcionamento requer muito mais do que uma simples explanação dos seus problemas. Inúmeras alternativas podem ser viáveis para o 6 sucesso das escolas, tanto públicas quanto particulares, dependendo do contexto social, político, econômico e cultural em que cada uma está inserida. Partindo desse modelo de escola vigente em nosso país, que acaba por reduzir o ser humano a uma dimensão cognitiva (sendo essa trabalhada, muitas vezes, de modo superficial), faz-se necessária uma formação que busque compreendê-lo como um ser composto de várias dimensões, devendo, estas, serem trabalhadas concomitantemente. Sobre essa fragmentação do ensino, Edgar Morin (2000) analisa a importância de não se separar as partes do todo, ou seja, trabalhar a compreensão de mundo admitindo o ser humano como um ser indissociável deste e intrinsecamente relacionado às leis do Universo. Sobre isso o autor afirma: As ciências humanas são elas próprias fragmentadas e compartimentadas. Assim, a complexidade humana torna-se invisível e o homem desvanece “como um rastro na areia”. Além disso, o novo saber, por não ter sido religado, não é assimilado nem integrado. Paradoxalmente, assiste-se ao agravamento da ignorância do todo, enquanto avança o conhecimento das partes. (MORIN, 2000, p. 48). Este detrimento da compreensão do todo em relação à especialização das partes é facilmente percebido nos desafios da sociedade atual onde se observam grandes avanços em determinados setores econômicos, enquanto continuam existindo problemas que vêm desde os tempos mais remotos, como a fome, a violência e as injustiças sociais. Isso vem corroborar a insuficiência educacional que permeia nossa sociedade. Sobre isso, Garcia et al Brandão (2005) diz que, Trata-se de “remar contra a maré”, vale dizer, contra o modelo de sociedade que temos, com a sua ética excludente, competitiva e predatória. Porém, mais do que buscar se opor, perspectiva em que o outro dá as cartas, e nós estamos correndo atrás, trata-se de CONSTRUIR através de processos educativos, e neles mesmos, formas solidárias, igualitárias e plurais de convivência entre os homens. Ter essa postura é se opor, mas se opor na ofensiva de quem deseja CONSTRUIR. (GARCIA et al BRANDÃO, 2005, p. 66/67). Diante deste cenário, são muitos os casos de conflitos sociais, de insatisfação pessoal e são cada vez maiores as diferenças sociais, tornando-se evidente a busca 7 por um outro modelo de educação. Embora nenhum modelo existente seja a garantia de formação de uma sociedade mais justa e feliz, é impossível ignorar a inópia do modelo educacional vigente na grande maioria das escolas do país. Sendo assim, apresenta-se aqui como alternativa, uma linha pedagógica que não ignore as diversas dimensões do ser humano, sejam estas biológicas, afetivas, psíquicas, sociais e racionais (MORIN, 2000). 3. Uma possível alternativa: a Pedagogia Waldorf 3.1. Princípios Gerais da Pedagogia Waldorf A Pedagogia Waldorf foi criada pelo austríaco Rudolf Steiner em meio ao conturbado contexto social vivido na Alemanha após a primeira guerra mundial. Steiner começou a desenvolver, baseado na Antroposofia, ciência espiritual criada por ele, um tipo de escola que seria adequado às necessidades essenciais do homem. Para ele, essa escola deveria buscar a compreensão dos problemas do indivíduo e da sociedade moderna e, por conseqüência, pós-moderna, tratando de trazer soluções à crise política, social e pedagógica (RÖPKE, 1998). No início de 1919, Emil Molt, dono da fábrica de cigarros Waldorf-Astoria e colaborador do movimento de “Trimembração do Organismo Social”, dispôs que Steiner proferisse palestras sobre temas sociais e educativos aos operários de sua fábrica. Em decorrência disso, os funcionários dessa fábrica passaram a desejar uma escola com aquelas aspirações sociais e educativas para os seus filhos. Então, em setembro de 1919 é fundada a 1ª Escola Waldorf do mundo, a “Die Freie Waldorfschule” (Escola Waldorf Livre) em Stuttgart, Alemanha. Rudolf Steiner revalorizou os impulsos da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, como diretrizes máximas das diferentes funções sociais. Concebeu a Liberdade como o princípio básico que deve reger a vida cultural-espiritual; a Igualdade como alicerce fundamental da questão jurídico-legal e a Fraternidade como sustento imprescindível para a atividade econômica. Na educação, isso significa desenvolver na criança as bases para um pensamento claro e preciso, isento de 8 preconceitos e dogmas, o que leva à liberdade; sentimentos autênticos não massificados e que respeitem os demais, num marco de igualdade de direitos e obrigações, e uma capacidade vigorosa de sustentar responsavelmente a fraternidade na vida econômica do futuro. (Proposta Educacional Waldorf, 1998). Segundo Lanz (2005), a Antroposofia, base filosófica da Pedagogia Waldorf, não é uma religião; é uma visão do Universo e do Homem obtida segundo métodos científicos que está relacionada às mais variadas áreas do conhecimento, como: medicina, administração de empresas, agricultura biodinâmica, jardinagem, farmácia, euritmia, arquitetura orgânica, pedagogia social e curativa, terapia artística, dentre outras tantas, enriquecendo, com isso, diferentes áreas da vida humana. Não se leciona Antroposofia enquanto disciplina e, mesmo esta tendo como fundamentos princípios cristãos, a escola Waldorf respeita a diversidade religiosa de seus alunos e de todos os membros da comunidade escolar. A Antroposofia adota uma visão holística do ser humano, defendendo que este não deve ser compreendido apenas em seu aspecto físico, mas em sua integralidade. Steiner considera a organização humana baseada numa quadrimembração: o corpo físico, o qual possibilita o contato do homem com o mundo físico; o corpo etérico, que lhe dá a vida e fornece o instrumento para o pensamento, a memória e outras faculdades; o corpo astral, considerado o veículo não-físico das sensações e sentimentos; por fim, o “Eu”, que introduz as manifestações puramente espirituais, como a individualidade superior, a auto-consciência, a liberdade e a moral. (Lanz, 1990). Nesse contexto, esta linha pedagógica busca uma formação mais integral do ser, compreendendo que esse desenvolvimento depende de outros fatores que vão além da escola. Uma das principais características das escolas que adotam essa pedagogia é a participação de todos os membros da comunidade escolar no processo de gestão. Para tanto, pais e responsáveis, alunos e professores, todos têm, de acordo com a respectiva responsabilidade e tarefas específicas, a obrigação e o direito de participar de toda a estrutura (RITCHER, 1995). Já no âmbito jurídico, a escola funciona a partir 9 de uma associação mantenedora constituída legalmente por membros da sociedade civil que geram os recursos administrativos e financeiros da escola. O princípio da autogestão vai além da escola; isso representa a concretização de uma possível reorganização social defendida por Steiner na qual tem-se a liberdade como um de seus alicerces. Para Steiner, instituições que visam organizar o ensino de modo que se favoreça apenas ao atendimento do mercado de trabalho, seriam vistas como opressoras e facilitadoras de uma constante revolta social. Seria, pois, uma forma de organização social autônoma que garantiria sujeitos ávidos por atuar na sociedade de uma forma mais consciente, e não reproduzindo esta que as autoridades impõem. (STEINER in RICHTER, 1995). 3.2. A proposta educacional da Pedagogia Waldorf A Pedagogia Waldorf é desenvolvida a partir de uma visão holística do ser humano. Sua proposta educacional fundamenta-se no conhecimento íntimo do indivíduo, devendo o ensino ser proporcionado de maneira em que se busque uma formação íntegra do ser. Na prática educacional, Steiner apresenta o desenvolvimento humano em ciclos de sete anos, denominados de setênios, sendo o foco da educação formal os três primeiros. Segundo a Pedagogia Waldorf, em cada um desses períodos o ser humano potencializa suas energias para um determinado aspecto. No primeiro setênio (0-7 anos) a criança concentra suas energias para o desenvolvimento e maturação do corpo físico; nesta fase prevalece o querer. No segundo setênio (7-14 anos), além do contínuo desenvolvimento do corpo físico, começa a desabrochar potencialmente na criança o lado anímico, ou seja, serão os sentimentos e as emoções que permearão todo o seu processo evolutivo. O pensar e o raciocínio estão imbuídos de uma carga emocional; nesta fase predomina o sentir. No terceiro setênio (14-21 anos), o que predomina é o desenvolvimento do raciocínio lógico, analítico e sintético; predomina aqui a fase do pensar (LANZ, 2005). Embora cada fase tenha uma dessas ações como predominante, também entende-se que tudo é trimembrado, ou seja, o processo de passar pelo querer, depois 10 pelo sentir e, enfim, pelo pensar, acontece em todas as fases, durante todo o processo de desenvolvimento. A partir da compreensão desses ciclos, o currículo e a metodologia de ensino estão intrinsecamente ligados às particularidades de cada setênio, buscando, assim, um desenvolvimento que atenda as inquietações humanas que permeiam todas as sociedades existentes no planeta (RÖPKE, 1998). Ao se comprometer com esse desenvolvimento, esta linha pedagógica acredita que: Na própria era da tecnocracia, o ensino criado por esse sistema não é capaz de satisfazer nem as exigências do próprio sistema. Parece evidente haver algo fundamentalmente errado, e esse algo, segundo postula a Pedagogia Waldorf, é o conceito biologista do ser humano e a cosmovisão materialista que dominam a educação. A isso se acresce outro fator: desde o berço, o homem moderno está acostumado a uma completa passividade mental; os meios de massa lhe servem notícias, divertimentos e slogans prontos; ele vive em apartamentos sem personalidade, em meio a móveis e objetos fabricados em série; as imagens que o circulam (graças à publicidade), as opiniões que ouve, tudo isso o transforma num mero consumidor cuja única iniciativa consiste, a rigor, em escolher entre várias opções igualmente prontas. Sendo solicitado só de fora, sem fantasia nem engajamento próprios, com o pensar reduzido a um raciocínio mecanizado (pelo cientificismo que culmina no computador), sua criatividade acaba sendo totalmente atrofiada. (LANZ, 2005, p.78/79). Contrariando essa visão materialista da educação, a Pedagogia Waldorf busca, através do seu currículo, oferecer atividades que trabalhem não apenas a dimensão cognitiva, mas também a capacidade de criação, reflexão, crítica e, sobretudo, a capacidade individual de ação no contexto ambiental no qual está inserido. Ela não tem a intenção de cultivar a preparação da criança através de metodologias que estimulem a competitividade e o isolamento caracterizados pela modernidade, mas sim, levar o ser a buscar uma vida harmoniosa e íntegra, procurando traçar com discernimento o seu próprio caminho. Percebe-se, portanto, que a formação de um professor Waldorf difere totalmente da formação tradicional oferecida a docentes. O curso de formação de professores Waldorf tem duração de quatro anos, divididos em quatro módulos por ano. Nesses módulos não são abordados apenas aspectos referentes às bases teóricas e filosóficas da antroposofia, mas também práticas pedagógicas que buscam, através da arte, promover o autoconhecimento, a autodisciplina, o autodesenvolvimento, entre outros. 11 Ressalta-se aqui a impossibilidade de se aprofundar todos os aspectos que envolvem a formação do professor Waldorf. O próprio Rudolf Steiner considerava a Pedagogia Waldorf um processo de construção contínua, de acordo com a cultura, o ambiente e o tempo em que está inserida. Desta forma, uma proposta educacional que envolva a concepção de uma escola Waldorf, seja esta pública ou privada, vai seguir um caminho único e caracterizado pelas forças e desafios daquele grupo. 3. Análise e discussão dos resultados Partindo da idéia de que toda alternativa que favoreça o crescimento humano deve ser acessível a todas as classes sociais, é importante ressaltar a relevância de se conhecer uma escola Waldorf que atenda às mais diversas classes sociais. A Escola Municipal Cecília Meireles, onde se realizou a pesquisa de campo, foi fundada em 1988 e está localizada na cidade de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro. Instalada num bairro de classe média, esta escola funcionou originalmente como uma instituição privada, passando por um processo de municipalização no ano de 2000. Atualmente, ela atende, em tempo integral, aproximadamente 175 crianças provenientes tanto de classes menos favorecidas quanto oriundas de famílias com situação financeira mais estável. Embora seja uma escola de iniciativa pública municipal (Governo Federal e do Estado, juntamente com a Prefeitura, somam 72% dos recursos financeiros, sendo as demais contribuições advindas do trabalho de captação de recursos da Associação Mantenedora5 da escola), há um movimento de arrecadação de recursos entre os pais que podem contribuir financeiramente com as necessidades da escola. 5 Toda escola Waldorf é mantida, também, por uma associação que é a entidade que possui a personalidade jurídica da escola. Esta é composta, geralmente, do grupo de interessados que a fundou. A Associação de Crianças do Vale de Luz é uma associação civil comunitária sem fins lucrativos que atende na cidade de Nova Friburgo – RJ a Escola Municipal Cecília Meireles e a Escola Comunitária Municipal do Vale de Luz, e que tem por objetivo a arrecadação de doações para um melhor desempenho das escolas. 12 Uma escola Waldorf é diferente das tradicionais em praticamente todos os aspectos, a começar pela própria divisão do espaço físico e pelos demais materiais utilizados tanto pelos professores quanto pelos alunos. Assim, é extremamente importante, neste momento, realizar uma breve descrição do universo físico destas escolas. Vale ressaltar também que buscar compreendê-la em toda sua extensão requer uma maior imersão em sua teoria e uma convivência mais profunda com o ambiente produzido por ela, já que a mesma se difere em muitos aspectos das escolas tradicionais, mesmo aquelas ditas “alternativas” ou “construtivistas”. Cada detalhe inserido no processo de ensino-aprendizagem das escolas Waldorf tem uma razão de ser; tudo tem um porquê e seria impossível aqui relatar ou analisar todas estas relações e imbricações de forma satisfatória. Assim, serão apresentados, aqui, os aspectos que foram considerados mais importantes para efeito da problemática estabelecida nesta pesquisa. Um dos aspectos que chama atenção ao adentrar numa sala de aula Waldorf é a diversidade de instrumentos didáticos feitos de materiais naturais utilizados no processo de aprendizado, como os tipos de brinquedos utilizados6. O uso de imagens é presente em, praticamente, todos os momentos como um auxílio no processo de aprendizagem e perpetuação do belo. Trabalha-se, diariamente, com músicas, poesias, desenhos, contos, pinturas e outros recursos que visam desenvolver nas crianças a dimensão do sentir, favorecendo o estímulo à imaginação e a compreensão do conteúdo que está sendo ministrado antes mesmo de iniciar diretamente as questões mais específicas das disciplinas obrigatórias. Além disso, trabalhando o imaginário e tornando a expressão artística uma prática cotidiana, pode-se perceber que as crianças da escola observada apresentam, em sua grande maioria, uma boa desenvoltura para se comunicar, facilidade para se concentrar e expressar seus sentimentos e ainda refletir sobre os novos conhecimentos que chegam até elas. A curiosidade é instigada de modo sutil e natural, apresentando 6 O ato de brincar, para a pedagogia Waldorf, deve ser sempre acompanhado da fantasia. Por esse motivo os brinquedos são confeccionados artesanalmente, de modo que estimulem a imaginação da criança. As bonecas de pano, por exemplo, muitas vezes não possuem olhos, bocas e nariz, possibilitando que cada criança veja na boneca o rosto que imagina e não algum pré-determinado pelas indústrias e fabricados em massa. 13 bons resultados com relação à qualidade das informações que as crianças acabam buscando sobre os assuntos abordados em sala de aula. Embora a Pedagogia Waldorf admita que o processo de alfabetização inicia-se desde o nascimento, pois o mundo que cerca a criança é um mundo alfabetizado, esta pesquisa não se detém ao processo de alfabetização. Ela abrange, principalmente, as atividades do segundo setênio (7-14 anos), período no qual são desenvolvidas as atividades relacionadas mais diretamente à leitura e escrita. A partir do segundo setênio, a turma é acompanhada pelo mesmo professor durante todo o ensino fundamental. Este é chamado de “professor de classe”, sendo polivalente7 e conhecedor de cada aluno e do ambiente em que este se enontra fora da escola. O professor acompanha seus alunos durante oito anos, de modo que este período permita um conhecimento mais profundo de sua turma e do processo de desenvolvimento pessoal e de aprendizagem. Além disso, ele busca sempre trabalhar as potencialidades de cada aluno ajudando-lhe a vencer seus desafios pessoais. Nas escolas Waldorf dá-se uma grande importância ao fato dos professores conhecerem as casas dos seus alunos, permitindo, assim, uma maior aproximação deste com a realidade de cada um. Isso favorecendo o fortalecimento dos laços de confiança. O educador, segundo a Pedagogia Waldorf, deve ser alguém em que o educando possa confiar. Ele deixa de ser apenas um mero transmissor de conteúdos, para ser um profundo investigador e conhecedor de cada criança. Durante a formação de professores Waldorf preza-se muito pela auto-transformação do próprio professor, não se restringindo a mais uma formação puramente conteudista. Sobre as diferenças entre o curso de formação de professores Waldorf e os demais, o professor 1 diz: [...] O curso de pedagogia Waldorf é que aquilo que deve ser aprendido pelos alunos, primeiro, seja transformado no professor, quer dizer, não se trata de um curso de aquisição de conhecimentos e aplicação de conhecimento. Quem faz esse curso, deveria estar disposto a se transformar através do que o curso propicia, e a partir daí, como uma pessoa transformada, chegar diante dos alunos. 7 Este professor, no ensino fundamental II, irá lecionar todas as matérias, porém poderá convidar um outro profissional, que considere mais apto, a ministrar matérias específicas. 14 A esSe professor é dada a difícil e complexa responsabilidade de educar no sentido de ajudar o aluno a trilhar seu caminho de uma forma saudável e harmoniosa. Sobre ser um professor Waldorf, o professor 5 nos traz a seguinte reflexão: A princípio tem que se ter um interesse pelo mundo real e não pelas especulações ideológicas e filosóficas, porque a gente vive num mundo de fantasia, na verdade. Pessoas que vivem no shopping center, vivem num mundo de ilusão, por exemplo. Aquilo ali não pode ser a realidade. Então a pessoa precisa conhecer a realidade, ver como o mundo funciona e não vê-lo somente sob um ponto de vista. É a mesma coisa que você conhecer uma pessoa e só vê-la de frente; não ver de lado, de costas... Então você não conhece a pessoa, você só conhece a imagem que você tem. Assim, tanto o professor quanto as disciplinas por ele ministradas contemplam a construção de um conhecimento que permita desenvolver o ser humano em suas múltiplas facetas. As matérias e seus conteúdos não têm o objetivo de apenas informar o aluno, mas de fazer-lhe compreender o mundo como um todo e o seu papel dentro desse mundo, como pode ser observado nas reflexões do professor 6: Geralmente as discussões em torno da área da pedagogia ficam em torno, por exemplo, no item questões econômicas: a gente deve educar uma pessoa para trabalhar em uma indústria? A gente deve educar uma pessoa pra um trabalho “x”? E aí, observando por esse viés, a gente vê que a Pedagogia Waldorf não quer educar as crianças para o mundo que está hoje, mas pro mundo que elas querem construir pro futuro, entende um pouco? Então não é assim que a gente fica ensinando aquilo que a gente quer delas pro mundo, mas aquilo que elas querem para o mundo. Então, é assim, a gente fica tentando desenvolver forças novas pro mundo social, né? Por que se eu fico tentando desenvolver nelas aquilo que eu espero do mundo, isso é velho já. Eu espero que elas tragam forças novas pro mundo... Uma renovação. Não que isso seja também cair no vazio, não vou trazer nada, entende? Isso é bastante básico também... Então eu sinto que tem essa questão da maneira como se enxerga o ser humano e desse ponto de vista de que não é trazer o mundo pra sala, mas levar a criança para o mundo. É uma direção oposta do que geralmente a maioria das pedagogias faz. Ainda sobre isso, o professor 5 nos traz: A pedagogia tradicional, o que é que ela faz? Ela foca o desenvolvimento intelectual do aluno. Ela informa e usa o mesmo método em todos os anos. Ela enche o aluno de informação. E a pedagogia Waldorf foca cada ano diferencialmente, dá o alimento que aquela criança precisa, não só intelectual, mas trabalha também através das artes, do que tá no sentimento. A gente trabalha a cabeça da criança, o coração da criança e o pé da criança. 15 A Pedagogia Waldorf quer que o currículo seja um aliado na formação para a vida, trazendo suas matérias não como conteúdos estáticos, sem um real significado para a vida, mas como um currículo vivo integrado com o qual se aprenda na sala de aula e se vivencie isso, também, fora dela. Dessa forma, as crianças precisam experimentar animicamente a essência de cada matéria, não se detendo apenas ao processo de maturação cognitiva. Para tanto, adota-se o ensino em épocas, o qual, segundo a Pedagogia Waldorf, favorecerá que a matéria deixe de ser um conjunto de conhecimentos superficiais para realmente ser compreendida e vivenciada na personalidade do aluno, moldando-o ou transformando-o para seu desempenho futuro. No ensino em Épocas, as matérias principais são português, matemática, história, geografia, ciências e artes. Vale ressaltar que as artes permeiam todas as Épocas e conteúdos, sendo utilizada também para o ensino de todas as disciplinas. O ensino em Épocas, que dura de três a cinco semanas, permite que o conhecimento seja sedimentado nos alunos, já que eles amadurecem cada conhecimento com profundidade durante esse período. Sabe-se que a grande crítica acerca desta metodologia de ensino é que as crianças podem esquecer, no decorrer do ano letivo, as matérias que foram trabalhadas numa determinada época no início do ano. Porém, Lanz (2005) afirma que isso é verdade apenas em parte, pois: Apesar do aprendizado concentrado, os alunos esquecem uma parte; mas esse esquecimento é algo positivo. Enquanto cai dessa forma na inconsciência, a matéria ao mesmo tempo amadurece; e quando volta como assunto de época, basta em geral uma curtíssima recordação para que o conteúdo anterior volte à memória. Por sinal, nas escolas tradicionais, onde a matéria é memorizada apenas para ser reproduzida numa sabatina ou num exame, o esquecimento é ainda maior, mesmo quando o ensino se estende pelo ano todo. (LANZ, 2005, p. 103). Outro forte diferencial das escolas que adotam esta pedagogia é o fato de não serem utilizados livros didáticos. Segundo o coordenador do curso de formação de professores Waldorf, os livros podem ser considerados como os promotores das 16 desabilidades humanas (informação verbal)8. No lugar dos livros didáticos, são utilizados Cadernos de Épocas elaborados pelas próprias crianças, e com o estímulo e orientação dos professores, contendo o conteúdo abordado da época. Estes cadernos, sem pauta, contribuem para uma expressão mais livre do aluno, onde o belo deve permear todo o seu processo de desenvolvimento. Cada produção elaborada pelas crianças nestes cadernos é trabalhada como quadros, produções do belo. Esta percepção é fundamental no momento em que se busca despertar e nutrir no aluno a vontade de aprender e o cuidado com tudo o que se produz. Para a professora 7, “os cadernos são registros do aprendizado individual das crianças, ou seja, nenhum caderno é igual ao outro, cada um possui as características próprias de cada indivíduo”. Isso estimula o aluno a aprender, a cuidar de tudo o que produz e, sobretudo, a zelar e valorizar seu conhecimento, sem que nada disso precise ser verbalizado pelos professores. O ano letivo é marcado por algo que deverá ser desenvolvido como foco daquele aprendizado. Por exemplo, durante a pesquisa de campo, pôde-se acompanhar a turma do terceiro ano do Ensino Fundamental na construção de uma casa de barro, referente à finalização da Época dos “Tipos de Habitações”, que estava inserida dentro dos estudos de história e geografia. Este processo, de acordo com a professora 7: Auxilia no desenvolvimento desta nova fase, que é quando a criança começa a entrar no período de puberdade. Ou seja, no momento em que a criança está reconstruindo seu corpo, ela precisa vivenciar também no exterior a construção de uma estrutura sólida e nova que lhe permita vislumbrar potenciais e limites a partir de uma forte estrutura, oferecendo-lhe segurança para seguir adiante em seus passos. Para ilustrar o modo como as artes estão sempre presentes nas atividades de uma escola Waldorf, seguem os versos apresentados no dia de bazar de Natal, quando foi apresentada aos familiares e ao público em geral a casa construída pelas crianças: 8 Comentário feito pelo coordenador do Curso Brasil (Curso de Formação de Professores Waldorf), no 3º Encontro de Introdução ao Curso de Formação de Professores Waldorf, realizado em novembro de 2007 (Recife – PE). 17 À vocês oferecemos com carinho e com agrado Esta casa que fizemos, do chão até o telhado. Construída com carinho do fundo do coração, Depressa ou devagarzinho, do telhado até o chão. Erguemos paredes retas bem firmes no fundamento, Eis o assoalho e o teto feitos do lado de dentro. Construímos portas e janelas, certinhas nas esquadrilhas, Pois nessa casa singela, brilhará a luz do dia. E outra vez oferecemos, com carinho e com agrado, Esta casa que fizemos, do chão até o telhado. A poesia e os versos são trabalhados pelos professores, também para auxiliar no desenvolvimento de cada indivíduo. Segundo Steiner (2005), todos os anos cada criança recebe no seu boletim um “verso de boletim” que irá guiá-lo durante o ano seguinte. Segundo a professora 2, “Este verso é escrito pelo professor, especialmente para cada aluno, de acordo com suas características próprias”. No caso de um aluno que apresentava como características de sua personalidade a preocupação em ser sempre o primeiro e melhor em tudo, apressandose em terminar logo suas atividades antes dos colegas, a professora 2 escreveu o seguinte verso: Com rapidez e agilidade O coelho segue em frente. Durante toda a corrida Ele não se rende, Mas bate um cansaço E o coelho decide um cochilo tirar. Nem percebe que a tartaruga Logo, logo irá passar Pois devagar se vai ao longe Não importa quem vai ganhar. Estes versos recebidos pelos alunos são recitados uma vez por semana, durante todo o ano letivo. Além destes, são recitados versos no início das atividades da manhã, antes das refeições e em outros momentos, como forma de reverenciar cada experiência e também todos os seres vivos no planeta. A jardinagem é matéria obrigatória em várias séries, pois, para a Pedagogia Waldorf, o desenvolvimento desse tipo de atividade é essencial. Ela considera que, principalmente nos dias atuais, as crianças precisam sentir um maior interesse e sentimento pela natureza, compreendendo a importância de se vivenciar atividades 18 básicas relativas à vida humana, como o ato de plantar, colher e desfrutar do fruto brotado deste trabalho. Toda escola Waldorf procura montar uma horta no seu espaço físico. O cultivo desta horta está inserido no currículo. No terceiro ano, por exemplo, este trabalho se dá com o plantio e cultivo do trigo, passando, posteriormente, pela sua colheita, até o processo de fabricação da farinha para produção do pão que será realizada pelas próprias crianças. Foi observado que os alunos envolvem-se ativamente nestas atividades. Os alimentos colhidos são aproveitados nas refeições oferecidas na escola e, assim, busca-se aprofundar nos alunos a consciência dos ciclos da natureza e de quanto o seu cuidado é importante para a manutenção da vida. Além disso, o espírito de cooperação é trabalhado em situações cotidianas de divisão do trabalho dentro da escola, como por exemplo, em atividades de arrumação do espaço, limpeza dos utensílios utilizados nas refeições e organização dos materiais. Essas tarefas são realizadas num esquema de rodízio, de modo que todas as crianças participem desse processo. Assim, o aluno aprende não só os conteúdos das disciplinas de uma forma diferenciada, mas também desenvolve várias outras habilidades e diversos tipos de trabalhos manuais. Nas escolas Waldorf os alunos não são avaliados por provas, testes ou coisas similares; muito menos lhes são atribuídas notas para averiguação do seu desempenho. Esta se faz através de uma caracterização qualitativa, na qual se procura ressaltar as qualidades, não deixando de lado o julgamento crítico quanto ao que o aluno é capaz de produzir melhor. Segundo Lanz (2005), a avaliação leva em consideração diversos fatores que permitem conhecer a personalidade do aluno, assim como o esforço real que ele dispensou ou não para alcançar determinado resultado, o seu comportamento e o seu espírito social. Uma vez que o professor pode acompanhar uma mesma turma durante anos, torna-se viável a percepção dos avanços e dificuldades de cada um de seus alunos. 5. Desafios da Pedagogia Waldorf 19 Embora seja claro que a proposta educacional das escolas Waldorf atende ao processo de desenvolvimento humano de uma forma consciente, existem alguns pontos que normalmente são questionados por pais e profissionais da área de educação. Um deles diz respeito à capacidade de tornar os alunos aptos a entrarem no mercado de trabalho competitivo e também nas faculdades públicas do país, dada a enorme concorrência dos vestibulares. No entanto, os professores entrevistados argumentam que a capacidade crítica do aluno é construída de forma sólida e, por isso, de uma maneira geral eles não têm dificuldades de concorrer igualmente com outros alunos. Ao contrário disso, no último ano do Ensino Médio, os alunos devem elaborar um trabalho de conclusão de curso, que é apresentado ao público em geral, sobre um tema de livre escolha. A liberdade da escolha do tema resulta, segundo o professor 5, em uma diversidade de assuntos, desde os relacionados às áreas das tecnologias até temas mais subjetivos, como, por exemplo, a solidão, o medo, a violência, o racismo etc. Sobre a preocupação freqüente com o ingresso dos alunos no mercado, os professores entrevistados ainda afirmam que a formação dada a seus alunos consegue não apenas transformá-los em indivíduos aptos aos mais variados campos de atuação, mas também os tornam conscientes da necessidade de mudança que as sociedades modernas precisam atravessar. Essas mudanças devem ter como objetivo a diminuição das diferenças sociais e a transformação das atividades econômicas como ferramentas de um processo de sustentabilidade social e ambiental. Na medida em que os alunos de uma escola Waldorf formam-se num processo onde a curiosidade, a criatividade, a concentração e o estímulo pela pesquisa são constantes, afirma-se que a facilidade de preparo para o estudo dos conteúdos específicos dos vestibulares torna-se maior ou, no mínimo, suficiente para concorrer igualmente com outros alunos. Outro grande desafio enfrentado atualmente por essas escolas é a exigência de se alfabetizar a criança com seis anos de idade, pois o Ensino Fundamental terá agora nove anos, atendendo aos critérios estabelecidos pelo Governo Federal. E já que a proposta educacional Waldorf é a favor do processo de alfabetização apenas a partir 20 dos sete anos, defendendo que antes disso a criança deve estar voltada para outro tipo de desenvolvimento, essa determinação Federal passa a interferir de maneira negativa em seus princípios. Outra questão levantada sobre a viabilidade das escolas Waldorf, enquanto instituições públicas, diz respeito à sua administração. Considerando que, de acordo com seus princípios não se faz necessária a existência de um proprietário, nem de uma figura com cargo de chefia da equipe, as unidades públicas dobram-se ao poder no sentido de ter que apresentar um diretor, mesmo que seja apenas através de uma representação dentro da escola, para exercer as relações burocráticas entre a instituição e o poder público. É sabido que o Brasil ainda dá os primeiros passos com relação à fomentação de uma cultura que permita facilitar o desenvolvimento de organizações nas quais não exista uma hierarquia definida. No âmbito educacional, principalmente, é muito pouco incidente a participação ativa dos pais enquanto sujeitos que se sentem responsáveis pela qualidade do ensino e da manutenção da escola de seus filhos. O formato administrativo de uma escola Waldorf não deixa de ser um grande desafio enfrentado no país e em muitos outros lugares. Apesar de algumas escolas realmente não conseguirem acompanhar as exigências desse tipo de administração, o processo de estruturação e de desenvolvimento destas escolas torna-se, muitas vezes, uma oportunidade bem aproveitada para o amadurecimento e fortalecimento dos grupos envolvidos, estendendo-se até a melhoria de outros aspectos na comunidade onde estão inseridos. Depois dos primeiros desafios vencidos, os grupos tendem a se tornar mais coesos e mais conscientes da importância do seu papel para a melhoria da qualidade de ensino e do quanto o processo de aprendizado está relacionado à melhoria das condições humanas e sociais do ambiente em que as crianças se desenvolvem. Por ser uma pedagogia ainda relativamente nova no Brasil e que necessita de uma formação específica de professores, as escolas que adotam esta proposta enfrentam ainda um outro desafio, que é a carência de professores formados para atuarem nas escolas, além da dificuldade de se custear com recursos próprios esse curso. Soma-se a este fato a própria natureza de uma escola Waldorf (que deve surgir 21 do desejo de uma comunidade). O que acaba acontecendo no Brasil é que as atividades iniciais destas escolas são apenas voltadas para o Jardim e as demais turmas surgem com o tempo, com o amadurecimento dos pais e dos professores enquanto gestores, e a formação de novos professores para serem inseridos no grupo. Observa-se ainda que um grande desafio (talvez o maior deles) da escola pública que adota esta proposta educacional é o fato de necessitar de um maior investimento financeiro por parte dos poderes públicos, uma vez que necessita de professores com formação especial e dedicação exclusiva; de um modelo de autogestão que envolva a participação e responsabilidade de todos os sujeitos inseridos no âmbito escolar, e que, além disso, traz em sua rotina atividades, principalmente as artísticas, que requerem materiais suficientes e de boa qualidade para as crianças. Embora muitas dessas exigências sejam reivindicações históricas dos que fazem a educação, infelizmente, o poder público parece não estar apto a atendê-las. 6. Considerações finais “Ai de nós, educadores, se deixarmos de sonhar sonhos possíveis.” Paulo Freire Sabe-se que nenhuma pedagogia pode ser considerada satisfatória com relação às necessidades que o mundo atual impõe. A formação do ser humano depende de uma série de fatores e de uma rede complexa de fatos e relacionamentos que permeiam a vida de todos. O mundo de hoje, tão confuso e cheio de conflitos, pede sujeitos que sejam ativos de diferentes formas, de modo que esses possam atender a diversidade de carências, sejam estas sociais, econômicas, culturais ou ambientais. Sabe-se, portanto, da imensa dificuldade que as classes oprimidas têm para formar indivíduos críticos, que não estejam dentro da ótica do sistema neoliberal e que sejam capazes de perceber sua real situação para assim transformá-la. A educação, dessa forma, deve estar atenta a isso e atender a estas necessidades. O tipo de metodologia usado pela pedagogia Waldorf, ainda é novo no Brasil e relativamente desconhecido, apesar de já existir um movimento forte no resto do 22 mundo9. A Pedagogia Waldorf não é apenas uma metodologia de ensino: é uma visão de mundo diferente, que inclui a transformação pessoal dos professores, pais e alunos. Vê-se no Brasil, cada vez mais, uma tentativa crescente de homogeneização do ensino, que acaba, muitas vezes, por impossibilitar outras formas de intervenções educacionais que possam também trazer novas contribuições para reflexão no âmbito escolar (SILVA, 1998). Na cidade do Recife-PE, por exemplo, todas as escolas públicas municipais que atendem ao Ensino Fundamental adotam uma única proposta educacional. E, tendo em vista que o Estado de Pernambuco conseguiu recentemente obter um dos piores índices de qualidade de ensino no país (segundo pesquisa encomendada pela UNESCO10 e realizada pelo INEP11 - 2007), torna-se urgente experimentar outras propostas educacionais. A questão não é comprovar se a Pedagogia Waldorf seria a proposta mais satisfatória ou não, pois o próprio Rudolf Steiner, ao ser perguntado se não seria fantástico se no Estado todas as escolas fossem Waldorf, respondeu: Não, por que é melhor ter uma diversidade. E isto é melhor porque tendo esta diversidade, os pais e os alunos têm como escolher em liberdade a educação que é mais adequada e mais voltada para as suas necessidades. (SCHAEFER, 2006, p.6). Assim, espera-se que esta breve apresentação da Pedagogia Waldorf contribua para uma ampliação de horizontes quanto às inúmeras propostas educacionais que existem, ressaltando que a Pedagogia Waldorf ainda tem muitos desafios a vencer ao propor uma experiência de ensino e aprendizado que têm relações profundas com a busca de uma consciência maior de cada indivíduo no planeta. Referências ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983. 9 Segundo dados do Congresso sobre a Governança nas Escolas Waldorf, realizado no mês de abril de 2006 pela Federação das Escolas Waldorf no Brasil, existem aproximadamente mil escolas no mundo que adotam esta pedagogia, sendo este número crescente a cada ano. 10 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. 11 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. 23 ANDRÉ, M. E. D. A. & LÜDKE, M. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. BRANDÃO, Z. (Org.). A crise dos paradigmas e a educação. São Paulo: Cortez, 2005. CHOMSKY,N. Chomsky on Miseducation. New York: Rowman & Littlefield, 2000. ENRIQUEZ, E. Instituições, Poder e “Desconhecimento”. In ARAÚJO, I.N.G e CARRETEIRO, T.C (Org). Cenários Sociais e Abordagem Clínica. SP – Escuta, 2001. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997. GADOTTI, M. 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