Conflito Social: a importância de uma visão holística
Benedito Paulo Bezerra (UFPA)
Doutor em Medicina e Médico Psiquiatra da UFPA
Tereza Ximenes (UFPA)
Doutora em Sociologia e Professora do Programa de Pós-Graduação Desenvolvimento Sustentável
do Trópico. UFPA/ Núcleo de Altos Estudos Amazônico – NAEA
Resumo
O texto visa mostrar que no processo do conflito social há fatores decorrentes de causas complexas
cuja compreensão requer o conhecimento integrado de diferentes disciplinas. Discute conflitos
sociais decorrentes da atividade pesqueira. Tem como referência empírica comunidades de
pescadores artesanais do município de Vigia, nordeste do estado do Pará.
Palavras-chave:
Conflitos sociais, pescadores artesanais, transtornos mentais e substancias psicoativas.
1
Introdução
Há carência de estudos realizados no Brasil sobre a saúde mental dos pescadores, grupo social
importante na região amazônica que tem como espaço de trabalho o mar, os rios, os lagos, os
paranás, os igarapés, os furos, os manguezais.
A escolha do universo empírico do estudo - Vigia, município do nordeste do estado do Pará
justifica-se por ser a população composta por expressivos grupos de pescadores que praticam
principalmente a pesca artesanal.
Bezerra (2002) realizou uma pesquisa nesse município que visou atingir os seguintes objetivos:
a) determinar a prevalência de transtornos mentais em pescadores artesanais no município de Vigia;
b) comparar a prevalência dos transtornos mentais da população de pescadores com a população de
não pescadores do mesmo município; c) correlacionar as variáveis demográficas com os diferentes
transtornos mentais. Os transtornos mentais foram identificados através do Composite International
Diagnostic Interview (CIDI) aplicado a duas amostras (221 homens pescadores e 230 homens
moradores não pescadores). A estimativa geral de prevalência para as duas amostras foi de 21,7% e
a distribuição das prevalências por diagnóstico da CID 10 apresentou o seguinte quadro: tabagismo
(17,3%), uso abusivo do álcool (9,5%) e dependência do álcool (4,4%), uso abusivo e dependência
de cannabis (1,6%), uso abusivo e dependência de cocaína (0,4%), esquizofrenia (1,6%), transtorno
delirante (1,6%), mania (0,4%), transtorno bipolar (0,4%), distimia (1,6%), agorafobia (2,0%),
ansiedade generalizada (0,4%), somatização (0,2%), transtorno doloroso somático persistente
(4,4%), transtorno motor dissociativo (0,4%), anestesia e perda sensorial dissociativa (0,9%) e
transtorno de estresse pós-traumático (6,4%). Foram encontrados mais diagnósticos na amostra dos
pescadores do que na amostra dos moradores não pescadores tanto “na vida” como no “último ano”
p<0,001. O fator associado mais importante a apresentar um transtorno mental entre o conjunto das
variáveis consideradas foi “ser pescador”.
Constatou-se uma proporção maior de associações entre os diagnósticos identificados na amostra
dos pescadores artesanais e as variáveis demográficas do que entre as patologias encontradas na
amostra dos moradores não pescadores e as variáveis consideradas no estudo. Esses resultados
refletem uma realidade epidemiológica mais grave para os pescadores artesanais, enfatizando a
preocupação central do estudo: a saúde mental dos pescadores artesanais, grupo social de grande
relevância na região.
Continuando o estudo sobre os achados da pesquisa verificamos que muitos conflitos poderiam
ser melhor compreendidos por meio de conhecimento integrado de diferentes disciplinas. Nessa
2
perspectiva apresentamos o presente texto que está divido em duas partes. A primeira tem como
foco central o estudo de prevalências das morbidades psiquiátricas na população estudada. A
segunda parte analisa a complexidade do cotidiano dos pescadores e seus processos conflituosos.
1 - Esrtudo de prevalência das morbidades psiquiátricas nos pescadores em Vigia.
Para o presente estudo, consideramos na revisão da literatura, inicialmente, os dados dos
estudos epidemiológicos que usaram o Composite International Diagnostic Interview (CIDI) como
instrumento de coleta de dados, determinando as taxas de prevalência de diagnósticos, de acordo
com a classificação DSM.III.R.
O CIDI é um questionário totalmente estruturado, desenvolvido para ser aplicado em estudos
epidemiológicos e pesquisa de transtornos mentais na comunidade, embora também tenha sido
utilizado em ensaios clínicos, em atividades clínicas e centros de pesquisa (Cottler et al, 1991;
Wittchen et al, 1991). Fornece diagnósticos psiquiátricos baseados nos critérios da Classificação
Internacional de Doença (CID-10) e do Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Americana
de
Psiquiatria
Versão
4
(DSM
IV).
Esse
instrumento
fornece,
através
de
algoritmos
computadorizados, diagnósticos para na “vida” e nos “últimos 12 meses”.
A prevalência “na vida” corresponde àqueles que relataram terem experimentado um dado
transtorno em algum momento na vida e as prevalências para o último ano e o último mês referem-se
àqueles que tiveram o transtorno em algum momento no último ano ou no mês anterior à entrevista.
Alguns estudos epidemiológicos internacionais utilizaram o CIDI para a identificação dos
transtornos na população adulta: o Netherland Health Survey and Incidence Study (NEMESIS)
desenvolvido na Holanda e o Mental Health Supplement to the Ontario Health Survey (OHS) no
Canadá.
Consideramos para fins de comparação com o estudo de Vigia os resultados referentes aos
indivíduos do sexo masculino para os diagnósticos identificados tanto na amostra dos pescadores
como também na população de não pescadores.
No estudo realizado na Holanda em 1996 foram entrevistados 7.076 indivíduos e a prevalência
para a esquizofrenia foi de 0,4% na vida (0,36% para os homens) menos do que a prevista pelos
pesquisadores, (Bijl, 1998).
No referido estudo, os homens apresentaram taxas 4 vezes mais altas para uso abusivo de
substância psicoativa na vida e nos últimos 12 meses do que os indivíduos do sexo feminino. O uso
abusivo do álcool foi o transtorno mais prevalente, com taxa para os homens 4 ou 5 vezes mais alta
3
do que as observadas entre as mulheres (na vida 19,3% vs 3,9%), seguido de dependência do álcool
(na vida 9,0% vs 1,9%). O uso abusivo e dependência de droga estiveram presentes com taxas na
vida de, respectivamente, 1,6% e 1,8% para toda a amostra.
No estudo conduzido na Holanda os transtornos mentais mostraram-se menos prevalentes
entre os indivíduos empregados. O desemprego e a incapacidade para o trabalho mostraram-se
fortemente associados à morbidade geral e à comorbidade. Outro resultado importante refere-se às
altas taxas de morbidade associada à baixa escolaridade.
No estudo realizado em Ontário (OHS), Offord et al (1996) apresentaram a prevalência para 14
transtornos psiquiátricos numa amostra de 9.953 indivíduos, com idade entre 15 e 64 anos. Para a
coleta de dados foi utilizada a versão da Universidade de Michigan para o CIDI, o UM-CIDI. Os
critérios do DSM III R foram utilizados para definir os transtornos psiquiátricos.
Os resultados do estudo mencionado apresentaram a prevalência dos transtornos psiquiátricos
nos últimos 12 meses por idade e sexo. No tocante os transtornos de ansiedade na população de 15
a 64 anos, a prevalência mostrou-se significativamente mais alta em mulheres do que em homens,
com a taxa mais alta (19,5%) entre a mulheres de 15 a 24 anos. Para ambos os gêneros as taxas
decresceram com a idade.
No estudo de Ontário, Offord et al (1996) constataram uma prevalência de transtornos afetivos
de 4,5%, com freqüência significativamente maior entre as mulheres do que entre os homens (5,9%
vs 3,2%). Os transtornos afetivos também mostraram-se mais comuns em mulheres jovens (15 a 24
anos) para as quais a prevalência (7,1%) foi significativamente mais alta do que a encontrada entre
os homens (4,0%). A taxa geral de prevalência para a depressão revelou que a freqüência entre
mulheres (5,4%) foi quase o dobro da dos homens (2,8%).
O uso abusivo ou dependência de substâncias psicoativas foram mais comuns entre homens do
que em mulheres em todas as faixas etárias. O uso abusivo/dependência de uma ou mais
substâncias mostraram-se quatro vezes mais comuns em homens do que em mulheres (8,2% vs
2,1%). A taxa mais alta para os homens foi identificada no grupo mais jovem no qual a prevalência foi
de 11,8%, semelhante à freqüência no grupo de 25 a 44 anos, 10,0%.
O uso abusivo e dependência do álcool em Ontário referiu o mesmo padrão do uso abusivo e
dependência de substâncias psicoativas. Em todas as faixas etárias, a prevalência entre os homens
foi muito maior do que aquela encontrada entre as mulheres. Considerando-se a amostra total, a
prevalência entre os homens apresentou-se quase quatro vezes maior do que entre as mulheres
(7,1% vs 1,8%). O grupo de 15 a 24 anos teve a taxa mais alta para os homens, 10,4%.
No referido estudo um ou mais componentes antisociais foram seis vezes mais comuns em
homens do que em mulheres, considerando-se a amostra total, 15 a 64 anos (3,9% vs 0,6%).
4
A personalidade antisocial seguiu o mesmo padrão tendo taxa de prevalência para homens e
mulheres de 2,9% e 0,5% respectivamente.
No que se refere às manifestações psicopatológicas da população brasileira, o estudo realizado
por Andreoli (1997) apresenta dados coletados em três cidades brasileiras (Brasília, São Paulo e
Porto Alegre) e se insere no Estudo Multicêntrico de Morbidade Psiquiátrica do Adulto, desenvolvido
por Almeida Filho et al (1997). Tal estudo, o primeiro levantamento populacional realizado no Brasil
analisou as necessidades da saúde mental e estimou a prevalência de morbidade psiquiátrica da
população adulta de três cidades brasileiras.
A prevalência de transtornos psiquiátricos menores, medidos pelo Questionário de Morbidade
Psiquiátrica do Adulto (QMPA), encontrada por Almeida Filho e colaboradores (1992), foi de 11,7%
em Brasília (6,5% nos homens e 16,2% nas mulheres), 18,4% em São Paulo (11,7% nos homens e
24.6% nas mulheres) e 13,3% em Porto Alegre (7,1% nos homens e 18,5% nas mulheres). Além
disso, de acordo com os achados, a prevalência de transtornos psiquiátricos menores aumentou com
a idade nos homens e apresentou um pico na faixa etária entre 35 e 54 anos nas mulheres.
Ao estimarem a prevalência global de transtornos psiquiátricos, Almeida Filho e colaboradores
(1992) chegaram a uma prevalência de 50% em Brasília (47% nos homens e 54% nas mulheres),
31% em São Paulo (33% nos homens e 29% nas mulheres) e 42% em Porto Alegre (35% nos
homens e 50% nas mulheres). Para as prevalências globais por faixa etária foram encontradas
diferenças entre os gêneros e entre as cidades. Registrou-se um pico nas prevalências em torno de
50% nos indivíduos mais jovens do sexo masculino (15 a 24 anos), decrescendo com a idade na
cidade de Brasília; as estimativas variaram entre 30% a 40% na cidade de São Paulo para todas as
faixas etárias e na cidade de Porto Alegre, as taxas mais elevadas foram encontradas na faixa etária
dos adultos jovens (25 a 34 anos) e nos indivíduos acima de 55 anos. Na cidade de Brasília, as
mulheres apresentaram um pico em torno de 80% na faixa etária de 35 a 44 anos; em São Paulo as
estimativas foram menores para os indivíduos mais jovens (22%) e cresceram com a idade e em
Porto Alegre, as taxas permaneceram em torno de 40% com uma tendência a decrescer com a
idade.
Quando se considerou a distribuição por gênero, o diagnóstico mais freqüente entre os homens
foi o alcoolismo, com prevalência de 15% nas três cidades, enquanto que os diagnósticos de
ansiedade, fobias, transtornos somato-dissociativos e depressão mostraram-se mais prevalentes
entre as mulheres.
O desenho em duas etapas do estudo multicêntrico desenvolvido por Andreoli (1997) utilizou os
dados obtidos no Estudo Multicêntrico de Morbidade Psiquiátrica do Adulto (QMPA), tendo sido
aplicado em 6.470 indivíduos acima de 15 anos (46,5% do sexo masculino e 53,5% do sexo
5
feminino), para inicialmente identificar prováveis casos e não casos. Na segunda etapa os prováveis
casos foram submetidos ao inventário de sintomas do DSM.III com vistas à confirmação diagnóstica.
Nesse estudo, Andreoli (1997) analisou as manifestações psicopatológicas da população
brasileira, identificando os seguintes componentes: ansiedade, depressão, doença mental, psicose,
alcoolismo, tratamento, conversão/convulsão, antecedentes familiares e droga adição. Foi realizado,
também o estudo de validação entre o componente ansiedade e o diagnóstico de ansiedade
generalizada, o componente depressão e o diagnóstico de depressão maior e o componente
alcoolismo e os diagnósticos de abuso e dependência do álcool.
Esse estudo revelou os diagnósticos codificados como definitivos na vida que apresentaram as
maiores freqüências na amostra estudada na segunda etapa (n=775): dependência de tabaco
(n=217), fobia simples (n=137), ansiedade generalizada (n=103), transtorno de ajustamento (n=77),
fatores psicológicos que afetam o físico (n=74), abuso do álcool (n=70), depressão (n=69),
dependência do álcool (n=49), outros transtornos de ansiedade (n=45) e transtornos distímicos
(n=39).
Quanto aos transtornos identificados para o último ano, os seguintes diagnósticos
apresentaram as maiores freqüências: dependência de tabaco (n=175), fobia simples (n=114),
ansiedade generalizada (n=85), fatores psicológicos que afetam o físico (n=71), abuso do álcool
(n=51), outros transtornos de ansiedade (n=40), transtornos distímicos (n=36), dependência do álcool
(n=36), somatização (n=33) e agorafobia (n=29). Esses diagnósticos mostraram-se distribuídos entre
os dez mais freqüentes também em cada uma das cidades pesquisadas, exceto para o diagnóstico
de somatização cuja freqüência foi muito baixa em São Paulo (n=4).
O autor analisou também a baixa capacidade de predição dos diagnósticos clínicos
correspondentes aos componentes ansiedade, depressão e alcoolismo, notando um melhor
desempenho ao incluir as variáveis demográficas num modelo de predição. Quando se considerou o
componente alcoolismo, o resultado representou uma exceção, uma vez que ao ser associado às
variáveis sexo masculino, estado civil e idade abaixo de 55 anos, a capacidade de predição foi
excelente para o diagnóstico de abuso do álcool na vida.
A revisão da literatura sobre os estudos epidemiológicos realizados no Brasil e em outros
países norteou a análise dos dados obtidos no nosso estudo. Essa revisão enriqueceu a discussão
sobre a prevalência de morbidade psiquiátrica entre os pescadores artesanais e para a população do
município de Vigia, na perspectiva de contribuir para a definição de políticas públicas para a saúde,
em particular para a saúde mental tendo por base a epidemiologia e as conseqüências econômicas e
sociais da morbidade psiquiátrica.
6
A natureza da morbidade psiquiátrica pode ser cada vez melhor analisada, a partir da
associação entre as variáveis definidas e a demografia, os problemas sociais e a cultura da
população estudada. Além disso, os instrumentos de coleta de dados são cada vez mais precisos na
definição dos diagnósticos. O aperfeiçoamento metodológico na epidemiologia psiquiátrica, portanto,
constitui-se num objetivo a ser permanentemente perseguido.
Os dados da prevalência de transtornos mentais obtidos no estudo realizado no município de
Vigia-PA configuram um quadro da saúde mental de 221 pescadores artesanais e 230
outros
moradores entrevistados através do CIDI.
A aplicação do referido questionário apontou mais diagnósticos na amostra de pescadores do
que entre os moradores não pescadores. Ressalte-se que 31,7% da amostra de pescadores
apresentou pelo menos um diagnóstico na vida comparado com 12,2% da amostra de moradores (x2
= 25,20; gl = 1; p< 0,001) e, nas estimativas feitas para diagnóstico no último ano, a amostra de
pescadores apresentou uma prevalência de 16,7% e a de moradores de 4,8% (x2 = 16,95; gl = 1; p<
0,001).
Em nossa avaliação, uma vida de sobressaltos, na qual o imprevisto é temido, pode favorecer
o desenvolvimento de transtornos mentais pela dificuldade em elaborar emoções por parte daqueles
que se ocupam com a atividade pesqueira e têm como lazer o uso abusivo do álcool.
Um ponto a destacar é a exclusão de mulheres de ambas amostras, pescadores e moradores.
Segundo a cultura da região elas raramente se ocupam da pesca. Acredita-se que possuam um
poder mágico desestabilizador que poderia prejudicar a pescaria. Esse aspecto cultural pode ter
contribuído para um quadro de diagnósticos que diverge dos dados obtidos em estudos
epidemiológicos realizados no Brasil e no exterior.
No Brasil, a prevalência de tabagismo encontrada no estudo realizado por Lollio et al (1993) em
São Paulo, foi alta (45,2% entre adultos do sexo masculino), constatando-se também que as
camadas de baixa renda familiar fumavam mais do que os extratos de renda mais alta.
Corroborando o estudo de Lollio et al, Andreoli (1997) também encontrou a dependência de
tabaco como um dos dez diagnósticos que apresentaram as maiores prevalências “na vida” dos
indivíduos pesquisados nas cidades de Brasília, São Paulo e Porto Alegre: 24%, 22,3% e 23,9%,
respectivamente.
Nosso estudo revelou uma taxa geral de prevalência de tabagismo de 17,3% para as duas
amostras, confirmando o estudo de Andreoli (1997), uma vez que identifica o tabagismo entre os
principais diagnósticos levantados pelo CIDI e um dos diagnósticos comuns às duas amostras. Esse
resultado, porém, difere daquele apresentado por Lollio (1993) que encontrou um índice de fumantes
3 vezes maior em Araraquara-SP.
7
O maior número de fumantes (26,2%) no estudo de Vigia foi identificado entre os pescadores,
parcela da população que parece adoecer mais, do ponto de vista psíquico. A prevalência de
tabagismo entre os moradores não pescadores foi de 8,7%. Ressalta-se que nesse município os
pescadores têm renda mensal mais alta quando se compara as duas amostras.
As discrepâncias entre os resultados dos dois estudos, no que se refere ao tabagismo,
sugerem cautela nas comparações, uma vez que a renda mais alta em Vigia, provavelmente, não
significa o mesmo que aquela encontrada na região sudeste.
Raw e Laranjeira (2001) defendem a prevenção de dependência da nicotina como uma
prioridade de saúde pública. Comentam as tendências de mortalidade pela dependência de nicotina,
constatando que apesar da gravidade do problema, não existem no Brasil dados coletados
sistematicamente sobre a prevalência dessa dependência.
Lasser et al (2000) analisaram através do CIDI a prevalência do tabagismo e a abstinência do
tabaco em 4.411 indivíduos que participaram do National Comorbity Survey (NCS) realizado nos
Estados Unidos de 1991 a 1992 com uma amostra de 8.092 entrevistados. As prevalências de
tabagismo para os indivíduos sem doença mental no presente, sem nenhum transtorno mental na
vida e nos últimos 12 meses foram de 22,5%, 55,3% e 59% respectivamente. Fumantes com algum
histórico de doença mental referiram uma taxa de 37,1% de abstinência e fumantes com transtorno
mental no último ano mês referiram uma taxa de 30,5% de abstinência comparada com fumantes
sem nenhum transtorno mental cuja taxa foi de 42,5%. Os autores concluíram que indivíduos com
transtorno mental têm duas vezes mais possibilidades de fumar e apresentam taxas mais baixas de
abstinência, representando uma parcela significante dos usuários de tabaco.
Os resultados apresentados pelo NCS (Lasser et al, 2000) são consistentes com os estudos
realizados por Hughes et al (1986) que analisaram a prevalência do tabagismo entre pacientes
externos e Glassman et al (1993) que estudaram o tabagismo e as implicações para os transtornos
psiquiátricos.
Para Hughes et al (apud Lasser, 2000) os dados levantados no Epidemiologic Catchment Area
realizado no início da década de 80, mostraram que os indivíduos com depressão maior, distimia,
agorafobia e alcoolismo apresentavam uma probabilidade maior de ter fumado do que os indivíduos
sem nenhum transtorno mental.
Segundo Lasser et al (2000) um estudo realizado por Kelly e Mccreadie, em 1999 na Escócia,
identificou que o tabagismo precedeu o desencadear da esquizofrenia na maioria dos indivíduos
esquizofrênicos que fumavam.
No presente estudo, ressalta-se que a amostra dos pescadores apresentou um número de
diagnósticos maior do que a amostra dos moradores não pescadores na qual não foram encontrados
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os diagnósticos de uso abusivo e dependência de cocaína, somatização, esquizofrenia, transtorno
bipolar, distimia e agorafobia.
No tocante ao uso abusivo e à dependência do álcool, também presentes em ambas as
amostras, com uma prevalência geral de 9,5% para o uso abusivo e 4,4% para dependência, os
resultados corroboram os estudos que constatam a forma de lazer predominante entre os pescadores
da região pesquisada.
O cotidiano de quem vive da pesca inclui a ida aos bares para festejar a volta à terra firme.
Além disso, a ingestão de álcool também faz parte das festas dos santos e é referida por Maués
(1995) quando relata a participação dos pescadores no Círio de Nazaré e em diversos eventos
religiosos.
Na entrevista informal que fizemos com a diretoria da Colônia de Pescadores já havíamos
registrado a informação sobre alcoolismo nesse grupo social, posteriormente confirmado na revisão
da literatura sobre a atividade pesqueira e os pescadores na Amazônia (Penner 1984; Loureiro 1985;
Furtado 1987, 1993; Maués 1995).
O uso abusivo do álcool na vida aparece no estudo de Andreoli (1997) com uma associação
maior com os indivíduos do sexo masculino, que constituíam 46,5% da amostra pesquisada nas
cidades de Brasília, São Paulo e Porto Alegre (odds ratio=10,9; intervalo com 95% de confiança de
5,6-21,9%). E ainda no mesmo estudo, o diagnóstico de dependência do álcool na vida também
apresentou associação maior com os indivíduos do sexo masculino (odds ratio=12,7%; intervalo com
95% de confiança de 5,4-31,6%).
Andreoli (1997) concluiu, no referido estudo, que o componente alcoolismo associado às
variáveis sexo masculino, estado civil casado e idade abaixo de 55 anos apresenta uma capacidade
de predição significante para o diagnóstico de uso abusivo do álcool na vida e, excluindo do modelo a
variável idade, para o diagnóstico de dependência do álcool na vida.
No caso do estudo realizado em Vigia, existe um agravante que é a presença do álcool no
próprio local de trabalho, ou seja, os pescadores bebem durante as pescarias, (Penner, 1994). Nesse
município, a renda mensal está associada ao uso abusivo ou dependência do álcool somente quando
reagrupada em categorias de até dois e mais salários mínimos, ou seja, 18% dos indivíduos com
renda maior de dois salários mínimos apresentaram problemas relacionados ao alcoolismo (uso
abusivo ou dependência do álcool). Esses indivíduos encontram-se entre os pescadores cuja renda é
maior do que a da população de não pescadores, geralmente empregados no setor de serviço.
Com relação ao uso abusivo e dependência de cannabis encontrado na amostra de pescadores
(2,7%), nosso contato com o grupo da Colônia de Pescadores havia criado uma expectativa maior
em relação a esse diagnóstico, uma vez que fomos informados sobre o uso da referida substância
9
como um hábito comum a um grande número de indivíduos. Tal expectativa não se confirmou após a
aplicação do CIDI, registrando-se também a inexistência do uso de crack mencionado na reunião da
qual participamos, ainda na fase de apresentação do projeto. O uso abusivo e dependência de
cocaína diagnosticado apenas na amostra de pescadores com 0,9% a exemplo do uso abusivo e
dependência de cannabis, também não confirmou nossa expectativa levantada na reunião
mencionada acima, onde havíamos registrado a informação da existência de um número significativo
de usuários e dependentes de “drogas ilícitas”.
O uso abusivo de substâncias psicoativas seria aceitável como uma forma de suportar as
dificuldades enfrentadas pela pesca artesanal e um desejo de fuga de todas as adversidades.
Na reunião realizada na colônia e, posteriormente, em todos os contatos informais durante o
trabalho de campo, as informações acerca do uso de “drogas ilícitas” se confirmava. Em nossa
avaliação a descrição e a narrativa dos casos de uso de substâncias psicoativas ocorreu também
dessa forma a fim de garantir, num futuro próximo, atendimento médico àquela população.
Nosso estudo mostra associação entre o uso abusivo e dependência de substâncias psicoativas
com a variável idade categorizada em faixas na qual os indivíduos positivos para estes diagnósticos
estão mais representados entre os mais jovens, com idade entre 15 e 24 anos (x2=9,69; gl=1;
p<0,01).
O diagnóstico que requer uma análise mais aprofundada é o de esquizofrenia, encontrado entre
os pescadores (3,2%), mas não entre os outros moradores. Esse diagnóstico não figura entre os dez
diagnósticos mais freqüentes, no estudo de Almeida Filho (1997). Nas cidades de Brasília, São Paulo
e Porto Alegre avaliadas naquele estudo as amostras pesquisadas não apresentaram tal diagnóstico.
Para Conley e Kelly (2001), a prevalência do referido diagnóstico para a população geral é de
1,0%; portanto, a alta prevalência encontrada no nosso estudo merece e justifica a realização de
outros estudos que possam esclarecer melhor essa realidade.
Os transtornos delirantes foram identificados em 2,3% dos pescadores. Um fator predisponente
que poderia oferecer uma explicação para o desencadear de tais diagnósticos seria a forma de lidar
não só com o estresse como também com o medo do perigo quando enfrentam condições precárias
de trabalho, conforme é referido em alguns estudos sociológicos e antropológicos realizados (Penner,
1984; Loureiro, 1985; Furtado, 1987, 1993, 1994; Maués, 1995).
O transtorno do humor foi identificado, associado à variável número de filhos. Apesar de tal
diagnóstico não causar, com freqüência, desagregação familiar e isolamento social devemos
considerar que os estágios de manias e hipomanias se caracterizam geralmente pela exacerbação
da libido.
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A ansiedade generalizada apresenta no município de Vigia uma prevalência geral de 0,4% para
as duas amostras, muito menor que no estudo de Almeida Filho (1997) onde a prevalência
encontrada entre os indivíduos do sexo masculino foi de 12% “na vida” e 10% para o último ano.
Merece destaque também, a baixa prevalência de distimia entre os pescadores (3,2%) e a total
inexistência dos referidos diagnósticos entre os moradores não pescadores.
A baixa prevalência do diagnóstico de distimia na pesquisa realizada em Vigia imprime
identidade própria ao estudo. A primeira hipótese que se coloca para explicar tal resultado é a
exclusão das mulheres nas duas amostras, uma vez que os estudos epidemiológicos realizados no
Brasil e no exterior de um modo geral identificam uma alta prevalência de distimia entre as mulheres.
No estudo de Almeida Filho (1997) o diagnóstico de depressão na vida apresenta uma
prevalência maior na cidade de Porto Alegre, registrando-se em São Paulo o menor número de casos
e a associação maior de casos positivos com os indivíduos do sexo feminino. O diagnóstico de
depressão no último ano também apresenta uma proporção menor de casos na cidade de São Paulo.
Ao serem analisados os fatores associados ao diagnóstico de depressão no estudo do
Epidemilogic Catchment Area, realizado nos Estados Unidos nos anos 80, a prevalência entre os
homens foi de 1,6% para a população de maiores de 18 anos, considerando-se 18.571 entrevistados
(Burvill apud Menezes e Nascimento, 2000). Já o National Comorbity Survey, desenvolvido na
década de 90 mostrou uma depressão ao longo da vida de 12,7% entre os homens (Kessler apud
Menezes e Nascimento, 2000), tendo sido entrevistados 8.092 indivíduos com a idade entre 15 e 54
anos. No estudo conduzido em Edmonton Canadá a prevalência de depressão maior nos últimos 6
meses foi de 2,5% entre os homens enquanto que a prevalência ao longo da vida foi de 5,9% num
universo de 3.285 adultos não institucionalizados. Em todos os estudos mencionados as prevalências
da depressão maior tanto no último ano como ao longo da vida são maiores nas mulheres do que nos
homens.
Por outro lado, Del Porto (2000) discute o padrão sazonal como fator que acentua ou precipita
algumas formas de depressão especialmente no hemisfério norte onde as estações do ano são bem
marcadas, acrescentando ainda que as depressões desse tipo ocorrem no outono ou no inverno com
fases hipomaníacas na primavera. O DSM IV (APA, 1994) inclui o “padrão sazonal” como um
especificador do tipo de depressão identificada.
A localização geográfica do município de Vigia permite a toda população gozar de alta
temperatura durante o ano todo. Essa região de clima quente úmido alterna períodos de chuva com
meses de estiagem. Esse fator pode representar uma explicação inicial para a baixa prevalência de
depressão encontrada no nosso estudo.
11
A observação que realizamos nos permite interpretar a baixa prevalência de distimia ou a
inexistência de episódios de depressão e depressão recorrente, como resultado do estilo de vida
predominante no município. Tal estilo compreende a valorização do momento presente, a disposição
de aceitar os fatos como desígnio de Deus, a atitude de fé e a confiança na ajuda dos santos, além
da participação em todo calendário de festas do município. Essa interpretação é passível de
confirmação através da realização de outros estudos.
No que se refere ao transtorno doloroso somatoforme persistente, identificado “na vida” de 8,1%
dos pescadores e de 5,9% “no último ano”, a comparação com o resultado encontrado entre os
moradores não pescadores (0,9% “na vida” e 0,4% “no último ano) nos remete mais uma vez às
condições difíceis de trabalho no cotidiano da atividade pesqueira que pode predispor o indivíduo ao
adoecer psíquico.
Com relação ao estresse pós-traumático, a prevalência entre os pescadores foi de 10% “na
vida” e 5,9% “no último ano” enquanto que 3% dos moradores apresentaram o referido diagnóstico
“na vida” e apenas 0,4% “no último ano”. A condição profissional do pescador que inclui o
enfrentamento de intempéries no mar provavelmente o predispõe a essa patologia.
Há poucos pontos a destacar quando se considera a influência das variáveis sóciodemográficas na associação entre o diagnóstico e a população de origem do indivíduo (pescador ou
morador não pescador). O fator associado mais importante entre o conjunto de variáveis foi “ser
pescador”, dado que justifica a realização deste estudo cujo enfoque é o homem que se dedica à
pesca artesanal.
Na análise multivariada o diagnóstico de uso abusivo de substâncias psicoativas aparece
quando associado à escolaridade de 0-4 anos (“odds ratio” igual a 0,11). Esse resultado difere
daquele encontrado no estudo de Bijl et al (1999) no qual os transtornos relacionados ao uso abusivo
de substâncias foram identificados em indivíduos de diferentes níveis educacionais.
Interpretamos como causa provável dessa aparente contradição, o fato de que a alta
prevalência do uso abusivo de substâncias psicoativas foi encontrada entre os pescadores.
No tocante à esquizofrenia e aos transtornos delirantes a condição de não estar empregado
apresentou “odds ratio” igual a 5,64, estatisticamente significante. O desemprego é um problema
comum aos esquizofrênicos por serem indivíduos acometidos com freqüência por sintomas que
dificultam serem contratados ou permanecerem numa determinada ocupação, além de geralmente
apresentarem, dificuldade de viver em sociedade e desenvolver relações interpessoais.
12
2 - A Complexidade do cotidiano dos pescadores e seus processos conflituosos
A complexidade social em que estão inseridos os pescadores artesanais do município de
Vigia/PA e as transformações sócioambientais ocorridas em seu cotidiano tem influência no
adoecimento mental desses trabalhadores.
O adoecimento mental está sendo considerado como a expressão da subjetividade, das
manifestações oriundas de um cotidiano complexo, levando-se em conta todos os aspectos que essa
afirmativa pode conter: pobreza, riscos ambientais, mudança na relação com a natureza, impotência
frente à realidade social, etc.
Referindo-se à saúde mental dos pescadores artesanais em Vigia, Bezerra (2002) afirma: “em
nossa avaliação, uma vida de sobressalto, na qual o imprevisto é temido, pode favorecer o
desenvolvimento de transtornos mentais pela dificuldade em elaborar emoções por parte daqueles
que se ocupam com atividades pesqueira. Esses pescadores ao lidarem com a complexidade do
mundo social, têm sua subjetividade fragmentada e dificuldade em lidar com uma vida de
sobressaltos, na qual o imprevisto é temido. Sentindo-se à margem dos processos sociais e
econômicos e não conseguindo verbalizar suas carências individuais, iniciam um processo de
adoecimento mental: tristezas, isolamentos, uso abusivo de álcool, tabaco e outras drogas utilizadas
a fim de amenizar o sofrimento e as preocupações. Esse processo vem desencadeando problemas
complexos na vida dessa população, atingindo assim suas relações sociais, econômicas e,
sobretudo, familiares”.
Nos últimos anos, a modernização e a expansão do mercado consumidor da pesca
aumentaram a pressão sobre os recursos pesqueiros
disputados por meio de diferentes
embarcações – grandes barcos de empresas voltadas para a pesca comercial e equipadas com
modernos instrumentos que facilitam a captura do pescado, como também dezenas de canoas e
pequenos barcos equipados com instrumentos tradicionais (anzol, remos, e pequenas redes de
pesca) que praticam a pesca artesanal.
Na pesca comercial o processo de trabalho envolve vários indivíduos: o empresário que objetiva
tornar seu empreendimento economicamente viável e comercialmente competitivo. Estabelece
formas contratuais de trabalho com indivíduos que cumprem atividades específicas: dirigir o barco,
praticar a pesca, classificar o tipo de pescado, fiscalizar e tornar viável o processo de trabalho.
Na pesca artesanal o grande compromisso é assegurar o pescado para o consumo familiar e
vender o excedente a fim de garantir a reprodução social do pescador e de sua família e tentar
também assegurar a compra de mercadorias indispensáveis para outras pescarias: alimentação
13
(basicamente carne ou peixes secos e farinha) combustível (querosene para os lampiões), sal e gelo
para a manutenção do pescado. A divisão de trabalho é definida com base na cooperação motivada
por relações familiares, de vizinhança ou de compadrio. O pescador principal e um ajudante (filho,
vizinho ou compadre) executam todas as atividades demandadas pelas atividades pesqueiras.
Nesses diferentes processos há conflitos que decorrem da disputa ou desentendimento
relacionados com o uso ou exploração dos recursos naturais (conflitos ambientais) outros que são
inerentes a uma forma de viver com seus valores e costumes.
3 - Atividade pesqueira e os conflitos ambientais
Acserald (2004) apresenta uma definição de conflitos ambientais:
“(...) aqueles envolvendo grupos sociais com modo diferenciados de apropriação, uso
e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos um dos grupos tem a
continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaças por
impactos indesejáveis – transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos – decorrentes do
exercício das práticas de outros grupos. O conflito pode derivar da disputa por apropriação de
uma mesma base de recursos, ou de bases distintas, mas interconectadas por interações
ecossistêmicas mediadas pela atmosfera, pelo solo e pelas águas etc. Este conflito tem por
arenas unidades territoriais compartilhadas por um conjunto de atividades cujo “acordo
simbólico” é rompido em função da denúncia dos efeitos indesejáveis da atividade de um dos
agentes sobre as condições materiais do exercício das práticas de outros agentes”. (Acserald,
2004:24)
No setor pesqueiro o conflito ambiental resulta, em grande parte, do declínio na produtividade
pesqueira e da falta de credibilidade governamental na regulamentação da pesca. Os principais
atores são, de um lado, os ribeirinhos, pescadores das comunidades locais que reivindicam o direito
de exploração do recurso que tradicionalmente atende às suas necessidade e, de outro,
os
pescadores “de fora” provenientes de outros locais ou grandes barcos de empresas voltadas para a
pesca comercial. Esses conflitos envolvem confrontações verbais, queima de equipamentos,
apreensão de embarcações e outras manifestações de violência.
Esse tipo de conflito pode também ser decorrente de modificações do ecossistema,
conseqüência de intervenções humanas como, por exemplo, a) a construção de hidrelétricas que
alteram o regime de inundações periódicas das várzeas dos rios e impedem as migrações
14
reprodutivas; b) o garimpo que causa o assoremaneto e lança mercúrio nas águas; c) o
desmatamento resultante da comercialização da madeira e dos grandes projetos agropecuários.
Os pescadores artesanais procuram reagir a essas situações por meio de organizações sociais:
associações, sindicatos, cooperativas, conselhos e os acordos comunitários denominados de
“acordos de pesca” que especificam as normas, as regras e as sanções a serem tomadas quando o
que ficou estabelecido não é cumprido.
Na esfera governamental, com a criação do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), as questões ambientais foram internalizadas no
gerenciamento do uso dos recursos naturais. Ao mesmo tempo, passou-se a buscar modelos de
gerenciamento voltados à gestão integrada das várias atividades atuantes sobre determinado
ecossistema. O IBAMA é o órgão executor de gestão dos recursos pesqueiros de águas continentais,
tem como atribuição zelar pela preservação das espécies e do meio ambiente, com competência de
normatizar as condições de uso e sustentabilidade dos recursos pesqueiros.(Rufino,2005).
Nessa perspectiva há
entidades nacionais votadas para o setor pesqueiro como a
Confederação Nacional dos Pescadores (CNP), o Conselho Nacional de Pesca e Aqüicultura
(CONEPE), o Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE). A constituição de um Conselho
Regional da Pesca é feira a partir de uma organização civil, com estatuto social e registro de pessoa
jurídica. Entretanto, como afirma Rufino “as entidades têm dificuldade em representar o universo de
interesse de uma atividade tão cheia de conflitos como a atividade pesqueira”(...) e acrescenta: não
é possível adotar um comportamento linear ou generalista. Para cada tipo de pesca ou para cada
região, a interlocução tem que levar em consideração a história, a herança, a tradição (...) (Rufino,
2005:45 e 46)
Para Barbanti (2005) todo conflito ambiental é um conflito de interesses e seu entendimento
requer a análise dos múltiplos motivos nele envolvidos. Para tanto, devem-se procurar identificar
tanto as características do elemento que faz a intermediação das relações sociais, quanto as
principais dimensões que favorecem o aparecimento e a manutenção do processo conflituoso. Ainda,
segundo o autor, a busca por formas de uso sustentável dos recursos necessariamente enfrenta
barreiras que têm suas raízes em dimensões econômicas, sociais, biológicas, tecnológicas e
culturais.
Essas dimensões foram analisadas em nosso estudo a fim de compreender as situações
complexas das comunidades pesqueiras e como os indivíduos e grupos sociais vêem a si mesmos e
ao mundo.
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4 - Atividade pesqueira e os conflitos relacionados com valores, hábitos e costumes
da população local.
Foi verificado que entre os pescadores artesanais em Vigia a utilização de drogas serve para
ajudá-los a enfrentar as adversidades como o frio no tempo das chuvas, o calor excessivo do verão,
a solidão do alto mar, o medo da morte, a falta da família e a rudeza do trabalho braçal.
Para muitos pescadores da Amazônia os fenômenos da natureza são captados e
reinterpretados sem o rigor do conhecimento explicativo. Eles não têm a teorização da latitude, da
bússola, das cartas náuticas, destituídos desses conhecimentos, estabelecem uma relação entre as
fases da lua, a posição das estrelas, dos ventos, das marés e o melhor caminho e horário para as
viagens.(Ximenes, 1992)
Outro aspecto relevante na forma de viver dos pescadores de Vigia é a sua religiosidade,
estudada por Maués (1995). Essa religiosidade mistura pajés, santos e “encantados” o que não os
impede de participar da grande festa católica do município, o Círio de Nazaré, conforme o autor, é o
momento em que os pescadores que sobreviveram a naufrágios, agradecem à Nossa Senhora de
Nazaré a proteção dispensada nas horas difíceis.
Foi observado que no universo cultural daqueles pescadores o culto aos santos os protegem
durante as viagens. O rio, as águas, as florestas tiveram e ainda têm para alguns indivíduos um
mundo de significados e acreditam em “seres encantados” da mata e dos rios. Temem as reações
das “forças mágicas” que povoam os locais onde vivem e trabalham. Carneiro (1957, apud Ximenes
1992) destaca algumas dessas forças mágicas, personagens míticas: O Curupira e o Anhangá
assombram a floresta afugentando o predador, enquanto o Matinta Perêra e o Pinto Piroca mantêm
os habitantes nos limites de suas povoações, para que não continuem de noite a devastação que
causaram á natureza durante o dia. As mães-do-bicho defendem as empecíeis animais de sua
destruição pelo homem. A cobra grande (boiúna) passeia nos rios à noite como um navio todo
iluminado, garantindo a paz dos peixes. Os botos encantados seduzem as mulheres sob forma
humana, nada têm a temer nas águas em que corcoveiam em liberdade, são considerados “bichos
visagentos”.
No mundo em que vivem há uma luta constante entre as forças do bem, representadas pelos
santos, pelas rezas, pelas benzeções e por Deus e as forças do mal representadas pelas doenças,
pela morte, pelos feitiços, mal-olhados, quebrantos e ação dos seres sobrenaturais como os
encantos, os monstros e as visagens.
16
Os sucessos e insucessos do cotidiano podem também ser atribuídos às plantas e a certos
alimentos. Algumas plantas dentro de casa atraem a boa sorte e impedem os malefícios. Há também
restrições e tabus a alguns alimentos, pessoas com problemas de pele não devem comer
caranguejos, nem peixe de couro. Carne de porco é considerada remosa. Mulheres de resguardo não
devem comer carne de caça e são excluídas em algumas atividades pesqueiras, como no ato da
captura do pescado. Atribui-se à mulher um poder mágico e destruidor, temido pelo homem. Proíbese a ela, menstruada ou grávida passar sobre os instrumentos de pesca o que pode prejudicar a
pescaria.
Outros grandes fatores de crendices e de superstições são os animais tanto domésticos quanto
selvagens, como por exemplo, corujas, em casa, atraem má sorte, macaco guariba faz o homem
perder o caminho, botos possuem poderes mágicos.
A tradição recomenda evitar as mesmas trilhas, variando-se diariamente impede a ação funesta
dos seres protetores da floresta. O mesmo vale para os rios, lagos, e igarapés. Não se deve pescar
sempre no mesmo lugar para não atrair a tristeza das mães d´água. Banhos, infusões e defumações
podem manter o indivíduo a salvo da ação maléfica das entidades da floresta e dos rios. A reza
espanta os maus espíritos que perseguem os que se aventuram nas florestas e nos rios.
A força tradicional das crendices, das superstições e de formas de interpretação divinas,
mágicas e místicas da existência tem reflexos na vida de muitos pescadores que vivem em constante
estado de tensão. Todo o arcabouço cultural aliado aos procedimentos usuais a eles associados,
freqüentemente determina a aceitação ou a rejeição de certas transformações no tipo de captura das
diversas espécies de peixes, moluscos e crustáceos . Para cada espaço de atuação e de espécie, há
uma técnica de captura apropriada. As heranças ancestrais dos elementos formadores de muitas
comunidades influenciam
nas formas de perceber e de interagir com o mundo natural dos
pescadores que vivem nas áreas rurais da Amazônia.
CONCLUSÃO
O pescador em seu trabalho lida com um ser vivo que demonstra possuir reações
instintivas,
não se dobrando facilmente à vontade do pescador. Assim, sua briga com o peixe provoca momentos
de tensão e estresse, muitas vezes amenizados por crendices.
Observamos que o trabalho também desgasta mentalmente o pescador que precisa usar seu
poder cognitivo para agir com agilidade, controle da coordenação motora e conhecimento empírico,
para descobrir a melhor localização do cardume para o sucesso da pesca. É uma atividade que exige
17
equilíbrio emocional constante, pois se realiza num ambiente favorável a situações de riscos e de
inseguranças.
Os indivíduos, quando diante de uma situação de angústia e insatisfação decorrente de seu
trabalho, elaboram estratégias de defesa que acaba por tornar o sofrimento um aspecto velado. O
sofrimento disfarçado encontrará como meio de eclodir uma sintomatologia, a qual às vezes
apresenta-se com certa estrutura própria a cada profissão ou ambiente de trabalho.
Dejours (1987, 1992,1994)) analisando a doença somática e a organização do trabalho
destaca que as doenças somáticas aparecem, sobretudo em indivíduos que apresentam uma
estrutura mental caracterizada pela pobreza ou ineficácia das defesas mentais (...).Para este autor a
psicopatologia tradicional está alicerçada no modelo clássico da fisiopatologia das doenças que
afetam o corpo. Dedica-se, exclusivamente, ao diagnóstico das doenças mentais, dos transtornos
mentais orgânicos, da esquizofrenia, dos transtornos do humor e dos inúmeros transtornos de
personalidade. Afirma também que executar uma tarefa sem envolvimento material ou afetivo exige
esforço de vontade que em outras circunstâncias é suportado pelo jogo da motivação e do desejo. A
vivência depressiva em relação ao trabalho e a si mesmo alimenta-se da sensação de
adormecimento intelectual, de esclerose mental, de paralisia da fantasia e da imaginação; na
verdade, marca de alguma forma o triunfo do condicionamento em relação ao comportamento
produtivo e criativo. Para esse autor na relação do homem com o conteúdo significativo do trabalho, é
possível considerar, esquematicamente, dois componentes: o conteúdo significativo em relação ao
sujeito e o conteúdo significativo em relação ao objeto. Quando o progresso e o avanço dessa
relação são bloqueados por algum motivo ou circunstância, observa-se a incidência do sofrimento.
Não é raro encontrar pessoas que, por uma condição de sua psicodinâmica interna, possuem a
propensão a trabalhar em excesso e a divertir-se muito pouco; outras, pelo contrário, passam os dias a
divertirem-se; outras ainda não conseguem fazer nem uma coisa nem outra. Sabe-se hoje que tanto o
trabalho, quanto à diversão em proporções satisfatórias são critérios para avaliar um funcionamento
psíquico saudável. Assim, o mundo do trabalho torna-se, de forma rápida e surpreendente, um
complexo monstruoso, que se por um lado poderia ajudar auxiliar o homem em sua qualidade de vida,
por outro lado, avassala o homem em todos os seus aspectos.
Esse princípio de realidade adentra e fere o psiquismo humano, fazendo com que as pessoas
sintam-se exigidas; o sentimento de impotência e de desvalorização, que leva as pessoas pouco
resistentes a degenerar-se rapidamente, avilta de si qualquer potencial humano que pudesse se
somar às conquistas da civilização.
O sofrimento, por seu turno, é desdobrado: o ponto de incidência proveniente das ações
mecânicas, conteúdo ergonômico da tarefa, é o corpo e não o aparelho mental; esse último será
18
afetado pela insatisfação propiciada pelo conteúdo significativo da tarefa a ser executada,
transformando em sofrimento bem particular, cujo alvo, antes de tudo, é a subjetividade, ou seja, a
mente.
Esses desdobramentos na evitação do sofrimento por parte do ego podem também ocorrer em
relação ao trabalho, tanto do ponto de vista físico quanto mental. O trabalho, não só como uma
condição externa, pode propiciar sofrimento insuperável para o ego, empobrecendo-o e restringindo
sua ação a mecanismos defensivos repetitivos e ineficazes, não lhe possibilitando aferir, de acordo
com suas atividades, a satisfação de determinadas pulsões, que, não satisfeitas, tencionariam o
aparelho psíquico, gerando angústia, estados depressivos, ansiedade, medos inespecíficos, sintomas
somáticos, como sinais marcantes de sofrimento mental, com o agravante de que um ego debilitado
e frágil não consegue diferenciar, pela sua condição, a origem de seu sofrimento.
O sofrimento psíquico surge no contexto do trabalho de forma bastante sutil e vai gerando
processos conflituosos. Muitos trabalhadores desconhecem e/ou não associam certos tipos de
conflitos e sofrimento ao seu cotidiano e ao seu trabalho, apesar da clara evidência diagnosticada
por meio de suas próprias falas características, comportamentos e sintomas por eles apresentados
no cotidiano.
No caso dos pescadores, esse sofrimento é ocasionado, principalmente, pelas inconstâncias de
suas atividades. Os rios e mares, meio de onde provém o sustento desses trabalhadores e de suas
famílias, são desbravados todos os dias, a cada sopro de vento ou mudança no clima, surge o temor
do desconhecido, ora mares e rios são aliados desses pescadores, ora são terríveis e cruéis
inimigos.
19
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