MARIA TERESA COSTA SOARES
DEGRADAÇÃO SÓCIO - AMBIENTAL: A CRISE DA ATIVIDADE
PESQUEIRA EM JURUJUBA - NITERÓI/RJ
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Sistemas de Gestão da
Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre em Sistemas de Gestão. Área de
Concentração: Sistemas de Gestão do Meio
Ambiente.
Orientador:
Prof. Gilson Brito Alves Lima, D.Sc.
Niterói
2003
S676
Soares, Maria Teresa Costa
Degradação sócio-ambiental: a crise da atividade pesqueira
em Jurujuba – Niterói/RJ / Maria Teresa Costa Soares – Niterói:
UFF, 2003.
147 f.
Dissertação (Mestrado em Sistemas
Universidade Federal Fluminense, 2003.
de
Gestão)
–
Orientador: Prof. Gilson Brito Alves Lima.
1. Degradação ambiental. 2. Responsabilidade por danos
ambientais. 3. Pescadores – Niterói (RJ) – Condições sociais. 4.
Pesca – Niterói (RJ). I. Título.
CDD 364.28
MARIA TERESA COSTA SOARES
DEGRADAÇÃO SÓCIO - AMBIENTAL: A CRISE DA ATIVIDADE
PESQUEIRA EM JURUJUBA - NITERÓI/RJ
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Sistemas de Gestão da
Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre em Sistemas de Gestão. Área de
Concentração: Sistemas de Gestão do Meio
Ambiente.
Aprovada em 29 de dezembro de 2003.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Gilson Brito Alves Lima, D.Sc.
Universidade Federal Fluminense – UFF
Prof. André Augusto Pereira Brandão, D.Sc.
Universidade Federal Fluminense – UFF
Prof. Fernando Toledo Ferraz, D.Sc.
Universidade Federal Fluminense – UFF
Prof. Reginaldo Vello Loureiro, D.Sc.
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
Niterói
2003
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais por todo o apoio, dedicação e amor.
À minha família e amigos por todo o incentivo.
À Ana Maria, minha irmã, que mesmo de longe, muito contribuiu com o seu
conhecimento na língua inglesa.
Aos amigos da Pró-Reitoria de Extensão da UFF que me apoiaram na realização
do Curso.
À amiga Luzia Helena de Resende sempre me assessorando nas questões da
Computação. Obrigada por toda a sua ajuda, inclusive na formatação da
dissertação.
À amiga Jamaci A. M. C. Lima que muito me incentivou a realizar o Curso, e com
quem pude contar, principalmente, durante os momentos difíceis de minha
convalescença.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Gilson Brito Alves Lima, pelo seu grande apoio e
estímulo.
Ao Prof. Dr. André Augusto Pereira Brandão por toda a sua experiência e
conhecimento transmitidos na área das Ciências Sociais. Obrigada pela força, pelo
incentivo e pela sua rica contribuição à dissertação.
Ao Prof. Licínio Esmeraldo da Silva pelo seu empenho, consideração e relevante
colaboração na área da Estatística.
Ao Prof. Dr. Osvaldo Luiz Gonçalves Quelhas pela sensibilidade e compreensão
que muito me animou a prosseguir.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO p. 12
CAPÍTULO 1 - REVISÃO DA LITERATURA p. 17
1.1 UMA BREVE INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA PESCA NO BRASIL p. 17
1.2 A ATIVIDADE PESQUEIRA DESENVOLVIDA DENTRO DO QUADRO DE
PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL DOS PESCADORES ARTESANAIS - A
PESCA NAS CANOAS p. 24
1.2.1 A PRODUÇÃO p 25
1.2.1.1 Os Fatores de Produção p. 25
1.2.1.2 Os Processos de Produção p. 31
1.2.2 AS OPERAÇÕES DE REPARTIÇÃO p. 34
1.2.3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL p. 41
1.3 A ATIVIDADE PESQUEIRA DESENVOLVIDA DENTRO DO QUADRO DE
PRODUÇÃO CAPITALISTA DOS ARMADORES DE PESCA E EMBARCADOS - A
PESCA NAS TRAINEIRAS p. 42
1.3.1 CANOAS E TRAINEIRAS: A TRANSIÇÃO NA PESCA p. 42
1.3.2 O PROCESSO DE TRABALHO p. 55
1.3.3 A REMUNERAÇÃO E OS DIREITOS p. 60
1.3.4 A QUALIFICAÇÃO p. 65
1.3.5 A COOPERAÇÃO NO TRABALHO p. 68
1.4 A BAÍA DE GUANABARA E O PROGRAMA DE DESPOLUIÇÃO DE SUAS
ÁGUAS p. 68
1.5 CULTURA E IDENTIDADE p. 76
CAPÍTULO 2 - CARACTERIZAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA DA COMUNIDADE DE
JURUJUBA p. 84
CAPÍTULO 3 -VOZES DA PESCA DE JURUJUBA p. 97
CAPÍTULO 4 - CONCLUSÃO p. 140
REFERÊNCIAS p. 145
APÊNDICES p. 148
RESUMO
A dissertação aqui desenvolvida apresenta uma pesquisa na comunidade pesqueira de
Jurujuba. Neste locus, a pesca era realizada pelos pequenos pescadores locais através de
know-how tradicional passado de pai para filho, conhecimento este de grande importância
para a coleta de forma sustentável dos recursos naturais. Assim, os pescadores de Jurujuba
tinham a sustentação de sua identidade baseada na utilização do meio, a Baía de Guanabara,
ou seja, sua identidade se estruturava no próprio meio de produção econômica e reprodução
da vida material e social. Hoje, frente às mudanças ocorridas na pesca, esses pescadores
passam a buscar outras ocupações que não a atividade pesqueira, visando a sua subsistência.
O corpo teórico deste trabalho passa por aspectos relacionados à atividade pesqueira:
apresenta uma breve introdução à história da pesca no Brasil; detém-se um pouco mais na
forma como se desenvolve a pesca dentro do quadro da pequena produção mercantil dos
pescadores artesanais - a pesca nas canoas - e explora também a literatura acerca da atividade
pesqueira desenvolvida dentro dos moldes da produção capitalista dos armadores e
embarcados - a pesca nas traineiras. Busca ainda, apreender as questões relativas à Baía de
Guanabara e ao Programa de despoluição de suas águas, além de fazer uma discussão teórica
acerca do binômio cultura e identidade. A partir da análise dos dados quantitativos e
qualitativos obtidos através da pesquisa de campo foi possível compreender o processo de
dissolução da identidade social do grupo em função das transformações que se deram na
atividade pesqueira.
ABSTRACT
This dissertation presents a research done in the fishing community of Jurujuba. In
that locus, fishing used to be carried out by the local fishermen based on the know-how passed
from father to son, which was extremely important in order to sustain the natural resources.
Thus, the identity of the fishermen of Jurujuba was built based on their own production
environment - the Baía de Guanabara. Nowadays, due to changes in the fishing activity, those
fishermen are pursuing different occupations in order to maintain their subsistence level. The
theoretical part of this work covers aspects related to the fishing activity: it presents a brief
introduction to the history of fishing in Brazil, expands a bit further on the way that the
fishing activity is carried out in the scenario of the small production by the local fishermen
and also explores the literature around the fishing activity carried out under the capitalist
production model. Furthermore, it seeks to understand the questions related to the Baía de
Guanabara and the program to clean its waters, and promotes a theoretical discussion around
culture and identity. Based on the analysis of the qualitative and quantitative data obtained
through the field survey, it was possible to understand the process of dissolution of the group
social identity as a result of the changes in the fishing activity.
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Jurujuba - Idade dos chefes de família pescadores - 2002, f. 87
Gráfico 2 - Jurujuba - Idade dos filhos pescadores - 2002, f. 88
Gráfico 3 - Jurujuba - Idade dos pescadores - 2002, f. 89
Gráfico 4 -Jurujuba - Rendimento dos pescadores que declararam não ter segunda fonte
de renda - 2002, f. 91
Gráfico 5 - Jurujuba - Rendimento dos pescadores que têm renda proveniente de uma
segunda ocupação - 2002, f. 92
Gráfico 6 - Jurujuba - Rendimento dos não-pescadores - 2002, f. 93
Gráfico 7 - Jurujuba - Relação entre a renda da pesca e a renda adicional dos pescadores com
uma segunda ocupação - 2002, f. 94
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 - Jurujuba - Número de indivíduos, segundo a
econômica - 2002, f. 85
inserção em
atividade
TABELA 2 - Jurujuba - Número de pescadores no total da PEA identificados na amostra 2002, f. 86
TABELA 3 - Jurujuba - Pescadores segundo a tipificação de membro da família - 2002, f. 87
TABELA 4 - Jurujuba - Chefes de família, segundo o sexo - 2002, f. 89
TABELA 5 - Jurujuba - Chefes de família, segundo a ocupação com a pesca - 2002, f. 90
TABELA 6 - Jurujuba - Chefes de família pescadores, conforme a existência de uma
segunda ocupação - 2002, f. 90
TABELA 7 - Jurujuba - Escolaridade dos pescadores - 2002, f. 94
TABELA 8 - Jurujuba - Escolaridade dos chefes de família pescadores - 2002, f. 95
TABELA 9 - Jurujuba - Escolaridade dos chefes de família não-pescadores - 2002, f. 95
TABELA 10 -Jurujuba - Distribuição
localidade - 2002, f. 96
dos chefes de família pescadores, segundo a
LISTA DE SIGLAS
CCO
Centro de Controle Operacional
CEDAE
Companhia Estadual de Águas e Esgotos
CERJ
Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro
CIBG
Centro de Informações da Baía de Guanabara
CIDE
Fundação Centro de Informações e Dados do Rio de Janeiro
CLT
Consolidação das Leis Trabalhistas
CONERJ
Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro
DBO
Demanda Bioquímica de Oxigênio
ETAG
Estação de Tratamento de Água do Guandu
ETEs
Estações de Tratamento de Esgotos
FAMNIT
Federação das Associações de Moradores do Município de Niterói
FEEMA
Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente
IBAMA
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IEF
Instituto Estadual de Florestas
INCRA
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INSS
Instituto Nacional do Seguro Social
ONG
Organização Não-Governamental
PDBG
Programa de Despoluição da Baía de Guanabara
PEA
População Economicamente Ativa
PET
Polietileno Tereftalato
PSF
Programa Saúde da Família
RTM
Regulamento do Tráfego Marítimo
SEDUR-RJ
Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Regional do Rio de
Janeiro
SEMA
Secretaria de Estado do Meio Ambiente
SEMADS
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
SERLA
Superintendência Estadual de Rios e Lagoas
SOSP
Secretaria de Obras e Serviços Públicos
SPSS
Statistical Package for Social Sciences
SUDEPE
Superintendência do Desenvolvimento da Pesca
UCNs
Unidades de Conservação da Natureza
UFF
Universidade Federal Fluminense
INTRODUÇÃO
A dissertação aqui desenvolvida, que toma a comunidade pesqueira de Jurujuba como
alvo, parte da constatação de que neste locus, a pesca, de um modo geral, era circunscrita à
comunidade local dos pequenos pescadores; ou seja, não se fazia uso de mão-de-obra
assalariada. E desta forma, a pesca como meio de subsistência constituía o objetivo
fundamental das atividades pesqueiras locais. (DIEGUES, 1983)
A comunidade de Jurujuba, que do ponto de vista histórico, possuía traços semelhantes
aos das “comunidades tradicionais” (DIEGUES, 1994), baseava-se economicamente no uso
dos recursos naturais renováveis da Baía de Guanabara, através da pesca artesanal. Esta
atividade era desenvolvida através de know-how tradicional transmitido, de geração em
geração; conhecimento este de grande importância para a coleta, de forma sustentável, desses
recursos naturais.
Hoje, frente ao desequilíbrio ecológico para o qual colaborou não só a sobrepesca
como também a poluição proveniente dos dejetos urbano-industriais, esses pescadores que
tinham na exploração do ecossistema aquático local a sua fonte de renda passam a buscar
novas formas de relação com o trabalho, no sentido de viabilizar sua reprodução familiar.
Não fosse a degradação de seus recursos naturais, a Baía de Guanabara continuaria
possibilitando a pesca como atividade econômica de subsistência da comunidade local de
Jurujuba, e viabilizando perspectivas de capitalização e desenvolvimento da atividade.
Da mesma forma, a inserção de meios de pesca mais poderosos e mecanizados, tanto
para os fins de navegação quanto para a captura do pescado, contribui aqui para o afastamento
do pequeno pescador dos seus instrumentos de trabalho, de sua experiência, conhecimento, e
do domínio sobre o processo de trabalho (DIEGUES, 1983), na medida em que este não
possuía a disponibilidade de capital necessária para a aquisição desses meios de pesca mais
caros.
13
A caracterização atual da comunidade de Jurujuba frente aos impactos ambientais que
levaram à exaustão das suas unidades de recurso na Baía de Guanabara é, portanto, objeto
desta pesquisa.
Este estudo constitui um escopo importante para políticas públicas e privadas que
venham a trabalhar com a relação entre a manutenção de unidades de recursos ambientais e
formas locais de geração de renda.
1 - Formulação da Situação-Problema
Os pescadores artesanais se identificam como um grupo que possui profissão,
entendida aqui como o domínio de um conjunto de conhecimentos e técnicas que permitem ao
produtor subsistir e se reproduzir enquanto pescador. (DIEGUES, 1983)
Da mesma forma, a comunidade pesqueira de Jurujuba tinha a sustentação de sua
identidade calcada na utilização do meio, a Baía de Guanabara: sua identidade, portanto se
estruturava no próprio meio de produção econômica e reprodução da vida material e social. O
desenvolvimento da pesca neste "território"1 ou locus, possibilitava ao pescador não somente
viver da pesca, mas sobretudo apropriar-se dos meios de produção e ter "o controle de como
pescar e do que pescar, em suma, o controle da arte da pesca." (DIEGUES, 1983)
Hoje, frente a impactação da Baía de Guanabara, este cenário se modifica, acarretando
impactos sociais na comunidade, ou seja, na história da reprodução sócio-cultural de um
grupo que tem uma base econômica ligada ao meio e cujo locus de reprodução não mais
possibilita a sua atividade econômica como meio de subsistência.
Portanto, a pesquisa aqui proposta focaliza, também, a dissolução da identidade de um
grupo social que garantia a sua reprodução econômica e sócio-cultural de forma autônoma.
Atualmente, esta comunidade não mais obtém da pesca artesanal, os seus meios de
subsistência o que leva boa parte dos moradores a buscarem outras formas de sobrevivência.
Seja trabalhando em traineiras, ou até mesmo abandonando a profissão; alimentando
conseqüentemente, as franjas mais pauperizadas do emprego urbano e do desemprego.
A comunidade de Jurujuba, portanto, constitui um locus interessante para um estudo
que se proponha a colaborar com a compreensão de processos dinâmicos de inter-relação
entre: meio ambiente e economia, meio ambiente e relações de trabalho e meio ambiente e
reprodução social de comunidades pesqueiras.
1
Espaço determinado pelo meio físico explorado e pelas relações sociais e econômicas nele existentes.
14
2 - Objetivos, Delimitação e Importância do Estudo
Objetivo Geral:
Contribuir com o conhecimento acerca dos processos adaptativos (sociais,
econômicos e técnicos) da comunidade pesqueira de Jurujuba frente à degradação
de seus recursos naturais.
Objetivos Específicos:
Compreender na história social do grupo, as técnicas e as relações de trabalho no
que tange à atividade pesqueira e às mudanças nestas, frente à impactação da Baía
de Guanabara.
Compreender as mudanças nos processos identitários da comunidade pesqueira de
Jurujuba.
Delimitação do Estudo
Este estudo estará delimitado na comunidade pesqueira de Jurujuba e sua relação com
o meio de subsistência próximo. Não serão aqui avaliadas as características biológicas do
impacto da Baía pela poluição e pela sobrepesca. Não estarão aqui igualmente, sendo tomadas
como objeto as fontes de tal impacto. Outrossim, a preocupação está na forma como a
comunidade sentiu e se adaptou a esta degradação ambiental.
Importância do Estudo
A importância desta pesquisa está configurada em dois pontos principais: a) a
identificação de como o impacto ambiental desestrutura formas consolidadas de reprodução
econômica e impede o possível desenvolvimento destas; e b) o mapeamento de como as
populações atingidas reagem e constroem novas estratégias de sobrevivência.
Acredita-se que é fundamental demonstrar o custo social conseqüente dos efeitos da
inexistência, ou ineficiência de uma política ambiental atuante. Acredita-se também que é
importante demonstrar que caso houvesse uma perspectiva de equilíbrio ambiental, haveria
15
possibilidade de reprodução econômica e desenvolvimento sustentável de pequenos
aglomerados populacionais. Ambos aspectos constituem pontos que podem ser utilizados em
futuras atividades de formulação e gestão de políticas públicas e privadas.
3 - Referencial Teórico
O corpo teórico que sustenta esta pesquisa será discutido no Capítulo de Revisão da
Literatura e conta com um grande número de aportes: a) a questão da caracterização dos tipos
de pesca (Diegues, 1983; Duarte, 1978; Kant de Lima, 1997); b) a questão do meio ambiente
como unidade de recurso para reprodução de comunidades pesqueiras (Diegues, 1994 e
1983); c) o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (Santos Neto, 2002); e d) a
questão da cultura e da identidade como elemento de pertencimento grupal e formação de
aproximações subjetivas entre indivíduos (Bosi, 1998; Hall, 2001; 2000 e 1987; Latour, 1996;
Sahlins, 1997; Silva, 2000; Woodward, 2000).
4 - Questões e/ou Hipóteses
Esta pesquisa visa o estudo das novas relações de trabalho que vão sendo
implementadas pela comunidade pesqueira de Jurujuba, e o mapeamento das modificações
técnicas que foram realizadas. Ambas as mudanças estariam, em conjunto, determinando a
formatação de novas estratégias de sobrevivência frente ao impacto ambiental de suas
unidades tradicionais de reprodução econômica, bem como formatando novos elementos
identitários.
Ao procurarem atender as suas necessidades básicas bem como as de seus familiares,
os pescadores migraram para um novo contexto técnico e de relações de trabalho em que são
utilizados novos instrumentos e cuja forma de acumulação e transmissão de capital diferem ao
extremo da forma tradicional com que vinham sendo praticados pela população local. Muitos
deles ficam sujeitos a abandonar a profissão sendo inseridos no contexto do mercado de
trabalho urbano e do desemprego. Além disto, pressupõe-se que há uma perda de identidade
social da comunidade, na medida em que se reduz o peso da atividade pesqueira na
reprodução sócio-econômica do grupo.
16
5 - A Estrutura do Trabalho
O Capítulo 1, a partir do corpo teórico que sustenta essa pesquisa, permite que se faça
uma breve introdução à história da pesca no Brasil. Busca uma maior compreensão acerca da
forma como se desenvolve a pesca nos quadros da pequena produção mercantil dos
pescadores artesanais (a pesca nas canoas) e o modo como se dá a atividade pesqueira
desenvolvida nos moldes da produção capitalista dos armadores de pesca e embarcados (a
pesca nas traineiras).
Buscou-se ainda, apreender as questões relativas à Baía de Guanabara e ao Programa
de despoluição de suas águas, além de fazer também uma discussão teórica sobre o binômio
cultura e identidade.
O Capítulo 2 apresenta e analisa os dados quantitativos resultantes da aplicação dos
questionários sócio-econômicos fechados, além de expor a metodologia utilizada para a
obtenção desses dados. Buscou-se elaborar uma caracterização da população, principalmente
no que diz respeito aos aspectos econômicos de trabalho e renda, além de aspectos tais como
nível de escolaridade, faixa etária e outros.
O Capítulo 3 apresenta as análises das entrevistas abertas realizadas, além de expor a
metodologia utilizada. Através de perspectivas metodológicas qualitativas, buscou-se
caracterizar as formas subjetivas através das quais o grupo percebe a crise na pesca e o
próprio processo de dissolução identitária do grupo.
O Capítulo 4 é conclusivo. Nele discutiu-se os resultados do trabalho de análise de
dados quantitativos e qualitativos. Tais resultados apontam para um reduzido número de
moradores que ainda trabalha na pesca em Jurujuba, e permitem a compreensão do processo
de dissolução da identidade social dessa comunidade na medida em que se reduz o peso da
atividade pesqueira na reprodução sócio-econômica do grupo. Além disto, verificou-se como
o grupo identifica na poluição e na sobrepesca os determinantes da crise atual da atividade.
CAPÍTULO 1 - REVISÃO DA LITERATURA
1.1 UMA BREVE INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA PESCA NO BRASIL
Ao longo do século XX, constata-se que as transformações técnicas que se deram tanto
na captura do pescado quanto na sua industrialização, ocorreram a partir de um processo de
concentração de capital e acarretaram um aumento do poder predatório dos equipamentos de
produção utilizados na pesca.
Neste sentido, as técnicas cada vez mais predatórias, em conjunto com a introdução do
maquinismo, produziram uma situação de sobrepesca. A captura indiscriminada e em larga
escala, por sua vez, somada a problemas decorrentes da poluição urbano-industrial, implicou
no desaparecimento de um grande número de espécies de pescado em todo o País.
(DIEGUES, 1983)
Sabe-se que dentro de um ecossistema, as diversas espécies que aí convivem, atuam
dentro de uma cadeia trófica. Porém, quando esses processos não são levados em
consideração, devido, principalmente, à sobrepesca, instaura-se a desorganização desse
equilíbrio instável, levando, muitas vezes, ao desaparecimento de várias espécies marinhas, já
que esses organismos ficam impossibilitados de se reproduzirem.
É importante ressaltar que a natureza dos recursos a serem explorados na pesca é que
irá caracterizar os processos de produção nesta atividade. Inúmeras espécies de pescado com
valor comercial, só podem ser exploradas em determinadas épocas do ano, após passarem por
várias fases, até alcançarem a maturidade, ou seja, são cíclicas. São também móveis, pois não
possuem um nicho ecológico fixo. Muitas vezes chegam a ultrapassar fronteiras marítimas de
países ou vão de um oceano a outro. Observa-se que essas migrações ocorrem devido a vários
fatores tais como o deslocamento da massa alimentar que serve de nutrição para certas
espécies (como fitoplâncton), as alterações de temperatura e salinidade etc. (DIEGUES, 1983)
18
Ao considerar o desenvolvimento da atividade pesqueira no Brasil, mais
especificamente no litoral Sudeste brasileiro, Diegues (1983) observa algumas formas de
organização da produção da pesca. Dentre elas, destaca a presença da traineira tradicional de
propriedade de um armador, ou seja, daquele que é dono das traineiras onde trabalham os
pescadores embarcados. E ressalta a pequena produção desenvolvida por meio de uma
pequena embarcação motorizada, a baleeira, pertencente a um produtor artesanal que costuma
pescar sozinho ou acompanhado de mais um outro pescador. O autor ainda constata o
desaparecimento gradativo do sistema de companhas, ou seja, daquele em que o proprietário
do barco e dos equipamentos de pesca participa desta com vizinhos e familiares, de forma
igualitária e cuja remuneração do trabalho se dá pelo regime de partilha.
Segundo a literatura, as diferentes unidades de produção, ou seja, os quadros
específicos em que se dá a pesca, apontam para formas de produção distintas, e referem-se a
diferentes momentos históricos. Existe, no entanto, uma articulação entre as diversas formas
de organização da pesca. Esta articulação é que norteará a reprodução da força de trabalho,
dos instrumentos de produção e das relações sociais de produção específicas de cada forma
produtiva.
Na medida em que o modo como se explora a natureza depende de cada forma
específica da produção, os pequenos pescadores, diferentemente daqueles que atuam na
produção pesqueira capitalizada, para obterem os seus meios de subsistência na pesca,
utilizam embarcações de pequena autonomia, equipamentos de baixo poder predatório e
fazem uso de conhecimentos acumulados, de forma hereditária. E são justamente esses
pequenos produtores, os mais atingidos com a destruição da natureza em ecossistemas
aquáticos, como os existentes nas baías e águas costeiras.
A atividade pesqueira se dá, portanto, diferentemente de outros setores da divisão
social da produção. Na pesca empresarial capitalista, por exemplo, é comum ocorrer o
desaparecimento de cardumes, já que este é explorado até que o lucro médio seja
inviabilizado. Esta forma de produção também sofre com a limitação dos estoques, embora
não dependa tanto das forças da natureza para reproduzir. Ou seja, após explorar
concomitantemente vários ecossistemas marinhos, a limitação da predação virá com a
exaustão dos recursos naturais. Outras formas de organização social, no entanto, apresentam
um rationale diferente. É possível, portanto, assegurar a manutenção dos recursos, a partir de
grupos sociais que tenham a sua reprodução social calcada no respeito à capacidade limitada
da reprodução biológica dos recursos renováveis. (DIEGUES, 1983)
Segundo Diegues (1983), entre grupos de pescadores com baixo desenvolvimento
19
tecnológico, há uma dinâmica que consiste em descobrir e ao mesmo tempo manter o controle
sobre os pontos ótimos para a pesca. O pescador adquire prestígio à medida que ele consegue
descobrir um maior número de pontos sem deixar que estes sejam localizados por seus
concorrentes. Ele deverá guardar esta descoberta para si e sua família, ou seja, mantê-la na
unidade de produção. À medida que forem surgindo outros pontos melhores, aqueles poderão
deixar de ser explorados e esse conhecimento será sempre passado de pai para filho, através
do mestre.
O autor sustenta que as diferentes formas de produção, nas quais se atualiza a pesca,
apontam para racionalidades específicas. Dois pescadores podem ter visões distintas a
respeito do meio ambiente, as quais serão retratadas na forma como se relacionam com a
natureza. Assim sendo, "cada forma de produção social apresenta, portanto, uma
racionalidade própria, indicada pelos objetivos mais gerais de sua reprodução social ao longo
da história" (DIEGUES, 1983, p. 84). É neste sentido que para o pescador, o mar não é uma
"infinita" massa de água, mas sim, um espaço racionalmente apreendido.
Ainda segundo o autor, o que ocorre na pesca é que a formação do sobretrabalho não
se dá exclusivamente em função do distanciamento do trabalhador das forças produtivas
naturais, uma vez que o espaço marinho é disponível a todos, mas sim pelo fato do produtor
direto não possuir os instrumentos de captura e, ainda ser impedido de utilizar os
conhecimentos acumulados, uma vez que não dispõe de barco e redes para explorar novos
espaços marinhos à procura dos peixes oriundos de locais onde as condições naturais foram
profundamente abaladas.
Ou seja, “à medida que o capital técnico (equipamentos de pesca e navegação) se torna
cada vez mais poderoso e o acesso à sua propriedade mais limitado, surge a possibilidade
histórica de o seu proprietário se apropriar do sobretrabalho dos outros pescadores”.
(DIEGUES, 1983, p. 96)
O surgimento de formas capitalistas de produção na atividade pesqueira representou
não apenas o distanciamento do trabalhador direto dos instrumentos de trabalho, implicando
na remuneração sob a forma de salário, como também acarretou o afastamento gradativo de
seu know-how profissional, conhecimento este que caracteriza o bom pescador. Na pesca
industrial, com a utilização dos equipamentos modernos e eletrônicos, o conhecimento
passado de geração em geração é totalmente dispensável. Embora estes tenham diminuído a
instabilidade na pesca e aumentado o domínio sobre as variáveis naturais, a pesca continua
sendo uma atividade arriscada e que depende da sorte.
Assim, quando a produção empresarial-capitalista se vê impossibilitada da produção
20
em larga escala devido à diversidade das condições naturais, o pequeno pescador pode atuar
com a mão-de-obra familiar, usando o seu conhecimento acumulado de nichos ecológicos
específicos e instrumentos de captura apropriados.
A inserção do maquinismo, além de acarretar o afastamento do know-how tradicional
dos pescadores, modificou também o modo como eles percebiam o ecossistema marinho. Não
somente os poderosos barcos de pesca industrial exploraram exaustivamente os cardumes
implicando na própria impossibilidade das espécies marinhas se reproduzirem, como também
a poluição urbano-industrial ocasionou alterações nas propriedades relacionadas à
constituição das águas com conseqüências diretas sobre o modo de agir e reagir das espécies.
Ainda segundo a literatura, no litoral Sudeste-Sul as condições naturais e históricas aí
existentes propiciaram uma maior acumulação de capital no setor pesqueiro. A partir da
década de 60, havendo uma maior concentração dos meios de produção, surge uma nova
forma de organização social, a pesca embarcada, realizada por armadores ou por empresas de
pesca. No entanto, constata-se ainda, a existência da pequena pesca, desenvolvida dentro do
quadro de pequena produção mercantil, porém, muitas vezes já subordinada à pesca
empresarial-capitalista.
O que se percebe é que essas formas de organização da produção não existem de
maneira estanque. Há entre elas uma forte relação.
O surgimento das traineiras na Região Sudeste e o início da pesca embarcada no Brasil
se deram concomitantemente, levando a uma ruptura gradativa com a pequena pesca. Esta
ruptura ficou mais acentuada quando as traineiras passaram a fornecer sardinhas para as
indústrias de conserva. Isto se deu na década de 30.
Diferentemente das canoas da pequena pesca, as traineiras, unidades de produção de
alto custo, alcançam mares mais distantes. Apresentam uma maior divisão do trabalho e os
instrumentos de pesca utilizados são mais poderosos, o que facilita a captura do pescado em
maior volume.
Bernardes (1958) e Brito Soeiro (1960), discutem as condições em que a traineira foi
introduzida no Brasil. A partir do final do século XIX, pescadores imigrantes portugueses e
espanhóis, se fixaram no Rio de Janeiro e trouxeram com eles três formas de pesca, cuja arte
foi de suma importância para a evolução da pesca no Brasil.
Segundo esses autores, com o fim da pesca tradicional na Póvoa de Varzim, aldeia de
pescadores em Portugal, os poveiros, seus habitantes, vieram para o Brasil trazendo
equipamentos de pesca e introduziram no sul da Bahia a “pesca de linha de fundo com
caíques”, atividade considerada bastante arriscada, porém de grande retorno econômico.
21
Pouco depois, em 1900, uma outra forma de pesca foi introduzida pelos pescadores
portugueses e espanhóis do bairro do Caju: a “pesca do camarão com arrasto de porta”. Esta
arte de pesca consistia na utilização de redes cada vez mais aperfeiçoadas e se realizava no
interior da Baía de Guanabara, favorecendo que migrantes agricultores portugueses se
tornassem pequenos pescadores.
E em torno de 1910 os pescadores espanhóis trouxeram a traina, uma rede de cerco
grande, que quando fechada, concentra a sardinha numa espécie de saco. Até então, a pesca da
sardinha não era valorizada na Região Sudeste, sendo inicialmente realizada dentro do sistema
de companhas. A partir de 1930, com a introdução do motor, a pesca da sardinha passa a ser
realizada pelas traineiras e conta com a tripulação do barco e a tripulação da rede.
Segundo ainda a literatura, com a abertura de indústrias de enlatamento de sardinhas, o
mercado foi ampliando-se e tornando-se mais estável. A partir da criação do Entreposto de
Pesca, em 1934, a pesca das traineiras deu um grande salto.
Surge assim a figura do armador proprietário de várias traineiras onde parentes,
vizinhos ou conhecidos são postos para atuar como mestres.
Com o conhecimento da existência de grandes cardumes de sardinha no litoral Sul e da
possibilidade de pescadores constituírem a tripulação, deu-se que as traineiras do Rio de
Janeiro e de Santos começaram a marcar presença em Santa Catarina.
Com Lago e Gouveia (1968), retoma-se a história e percebe-se que a atividade
pesqueira era ali realizada pelos descendentes dos açorianos, e era praticada nos moldes da
pesca de companha.
Assim, segundo a literatura abordada, no século XIX os migrantes açorianos chegaram
no litoral de Santa Catarina. Eles eram agricultores e realizavam a pequena pesca
sazonalmente. Com a venda do produto eles obtinham o dinheiro para comprar os bens que
não eram produzidos diretamente por eles.
Nas décadas de 40-50, devido às baixas rendas obtidas na atividade agrícola houve
uma grande evasão dos agricultores para a atividade pesqueira.
Para a desestruturação da pequena agricultura litorânea contribuiu não só os problemas
com o solo como também a competição com produtos agrícolas oriundos de outros lugares.
Os inúmeros ex-agricultores-pescadores que passaram a viver somente da pesca
acabaram por afetar a organização das companhas. Estas não mais constituíam as sociedades
tradicionais, mas sim representavam a união de duas ou mais companhas.
O grande aumento de companhas não só causou a predação dos recursos pesqueiros
dos mares catarinenses como também favoreceu o surgimento dos pescadores migrantes ou
22
andorinhas. Estes pescadores iam de caminhão para as praias do Rio Grande do Sul atuando
como camaradas em companhas de barcos de proprietários locais.
Seguindo a literatura, a partir deste quadro de desestruturação de uma organização da
produção que não comportava a mão-de-obra excedente, que apareceram as embarcações do
tipo traineira em Santos e Rio de Janeiro, cuja estrutura acolhia esta mão-de-obra.
O objetivo do pescador-andorinha e do embarcado na traineira de fora, era juntar
dinheiro para adquirir equipamentos de pesca que possibilitassem a sua condição de dono de
meios de produção mais possantes. Diante dessa impossibilidade, esses pescadores eram
forçados a residir nos porões das traineiras nas condições ditadas pelo embarque.
A desorganização da pequena agricultura e pesca em Santa Catarina, acarretou um
excedente populacional marginalizado e necessitado que, visando a subsistência, migrava
sazonalmente para as praias de outros Estados. Instaura-se, desta forma, um processo de
acumulação que possibilitou aos armadores de Santos e do Rio de Janeiro dispor de uma mãode-obra barata para trabalhar nas traineiras.
O aparecimento das traineiras, nas primeiras décadas do século XX, trouxe consigo o
início da concentração dos meios de produção e da força de trabalho na atividade pesqueira.
Como o proprietário da traineira era o mestre ou patrão de pesca e atuava junto com os
embarcados no processo de trabalho, esta forma de organização não se constituía ainda numa
organização empresarial-capitalista.
A partir do momento que os proprietários de traineiras acumulam algum capital e
compram outras embarcações, eles vão se distanciando do processo de trabalho direto,
atuando como administrador e vendedor do produto que é desembarcado pelos seus
representantes ou mestres. Conforme já mencionado anteriormente, denomina-se armador, o
proprietário de várias traineiras onde trabalham os pescadores embarcados.
A forma de organização implícita na prática desses armadores, não poderia, no
entanto, ser entendida como uma pesca empresarial já que esta implicaria numa integração de
setores de captura e industrialização, o que só ocorre tempos depois.
Com Diegues (1983), constata-se que a pesca no Brasil, até a década de 60,
compreendia a pesca artesanal e a produção dos armadores nas traineiras. Havia um número
muito reduzido de empresas de pesca que atuava somente na produção do pescado para ser
consumido fresco ou para seu enlatamento. No Nordeste, porém, havia algumas empresas que
exportavam a lagosta.
A sardinha e os peixes de fundo, encontrados em grande quantidade no litoral SudesteSul, eram importantes para o trabalho dos armadores de traineiras e barcos linheiros que
23
comercializavam a produção nos centros urbanos. No entanto, essa concentração dos meios de
produção ainda não era o bastante para a construção da indústria estável, em que o lucro
pudesse ser reinvestido na atividade pesqueira.
No litoral Sul onde a demanda é maior para peixes finos, constata-se uma grande
concentração de sardinha, pescado de custo baixo. Assim, o peixe salgado ou enlatado é
transportado do Sul para o Nordeste do Brasil a alto preço e através de um grande sistema de
transporte.
Visando acabar com esse problema da baixa produtividade e custo elevado, em 1967 o
Governo brasileiro criou um programa de incentivos fiscais que incrementava os
investimentos privados na pesca, acarretando o aumento de produção de pescado. Em
conseqüência, a organização da pesca no Brasil sofreu modificações e atingiu objetivos
inesperados. As novas empresas, começaram a construir e importar barcos, equipamentos e
infraestrutura de terra que seriam viáveis para uma pesca costeira tendo como limite de
atuação a plataforma continental.
Observa-se, portanto, que houve uma maior concentração dos meios de produção nas
regiões Sudeste e Sul, em especial, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul, já que a maior parte das empresas favorecidas aí se localizava.
Porém em conseqüência dos incentivos fiscais, as empresas visavam o retorno do
investimento feito nos meios de produção e para tanto as espécies mais valorizadas no
mercado sofreram maior predação e foram vendidas no mercado externo.
Entre 1967 e 1972 em função da sobrepesca ocorrida, os estoques de camarão, espécie
de alto valor comercial, ficaram reduzidos no litoral Sul, fato que em conjunto com a alta do
preço do combustível gerou uma crise em grande parte das empresas.
Como no Norte do país ainda existiam grandes estoques, a solução foi as empresas do
Sul mandarem vários barcos para lá. Estas empresas, também passaram a comprar a produção
dos pescadores artesanais especialmente do Amazonas e Pará. Assim o ecossistema se
desestruturou em função dessa corrida para a captura de camarões e similares.
Visando atender à demanda das empresas, os estoques foram explorados de forma
predatória, fato que levou, os pequenos pescadores a esgotarem os seus meios de subsistência,
favorecendo o quadro de pobreza social. Com o desaparecimento do camarão, as empresas
iam procurar outros locais para estabelecer seus postos de compra, recomeçando assim um
novo ciclo.
Além dos barcos brasileiros, barcos americanos a partir de 1972 conseguiram, através
de um tratado bilateral, autorização para pescar nesta área mediante o pagamento de uma
24
pequena taxa por temporada.
A atividade pesqueira vai se desnacionalizando a medida que multinacionais compram
fábricas de enlatamento do pescado e ainda devido à política de joint-ventures, ou seja,
aquela onde empresas brasileiras se associam às estrangeiras para explorar os recursos
pesqueiros.
1.2 A ATIVIDADE PESQUEIRA DESENVOLVIDA DENTRO DO QUADRO DE
PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL DOS PESCADORES ARTESANAIS - A PESCA
NAS CANOAS.
Nesta parte, busca-se uma maior compreensão acerca da forma como se desenvolve a
pesca no âmbito da pequena produção mercantil, ou seja, a pesca realizada em canoas. Para
tanto, muito contribuirá a pesquisa realizada por Kant de Lima (1997), a respeito dos
pescadores de Itaipu - Niterói/RJ.
A pescaria constitui-se da atividade de pesca, e implica na organização de grupos de
pesca que façam uso de aparelhos tecnológicos para a captura das espécies, de acordo com o
conhecimento naturalístico acumulado por quem a realiza. Ela segue regras sociais
estabelecidas para a apropriação do produto, e estratégias para apropriação da natureza. Estas
estratégias são geradas a partir do conhecimento técnico e naturalístico, cuja socialização se
dá no interior das companhas. Ele é passado hereditariamente e mantido em sigilo. Um outro
aspecto importante é a habilidade do pescador demonstrada na sua manipulação. Esta é
reconhecida por todos, e estabelece uma hierarquia, a qual estrutura o grupo durante a
atividade de pesca. (KANT DE LIMA, 1997)
O objetivo maior da pesca encontra-se, portanto, nessa previsibilidade de resultados
decorrente do conhecimento de classificação da natureza, já que a atividade pesqueira,
conforme visto, depende das populações naturais, as quais não permitem o controle dos ciclos
reprodutivos e migratórios dos estoques.
Para que se possa entender melhor a pesca artesanal da pequena produção mercantil,
segue-se Kant de Lima (1997) nas considerações acerca da pescaria de "canoas pequenas" e
dá-se maior destaque, juntamente com este autor, aos aspectos concernentes à produção e
repartição do produto da pescaria de "canoas grandes" ou "de arrasto", como também é
chamada.
25
1.2.1 A PRODUÇÃO
Inicia-se a discussão com a definição de Kant de Lima (1997, p.99) acerca da
produção. Segundo este autor, a produção constitui-se do "conjunto de operações destinadas a
fornecer os meios materiais de existência a um grupo social (...)."
Godelier (s.d., p.327-328), contribui para essa discussão, afirmando que a produção
tem por fim a obtenção de um produto de uso social. Para tanto, ela segue determinadas regras
técnicas, as quais combinam os fatores de produção, a saber: recursos, instrumentos de
trabalho e homens. É claro, porém, que as formas como se ligam esses fatores de produção
podem variar no interior de um mesmo grupo ou de um grupo para outro. Para Godelier (s.d.,
p. 328), não há "recursos em si, mas possibilidades de recursos oferecidas pela natureza no
quadro de uma dada sociedade num determinado momento de sua evolução". Aparece aí, a
importância do saber naturalístico (LÉVI-STRAUSS, 1970, 1975) na exploração dos recursos
naturais. Ou melhor, a importância de se conhecer as características particulares e a forma
como se comportam as espécies nas diferentes condições em que se encontram.
1.2.1.1 Os fatores de produção
Para Kant de Lima (1997), o saber "naturalístico" seria o primeiro e mais fundamental.
A partir deste, as classificações utilizadas pelo grupo de pesca servem de "representações que
orientam a produção". Assim sendo, o pescador acumula empiricamente e de forma
hereditária o conhecimento de variáveis naturais, tais como, posição da lua, marés, migração
de pescado etc. A avaliação desses fatores naturais que antecedem o ato de lançar uma rede é
o que caracteriza a qualidade do pescador. (DIEGUES, 1983)
O Conhecimento técnico é o segundo fator de produção apontado por Kant de Lima
(1997). Ao analisar-se as técnicas e os instrumentos utilizados no âmbito da pequena pesca,
parte-se da pressuposição de Godelier:
Todo processo de produção constitui, (...), uma seqüência ordenada de
operações cuja natureza e encadeamento se fundam nas condições às quais se
submetem para obter o produto final esperado. Essas operações se
desenrolam, portanto, na base de um meio natural e de realidades sociais
dadas que constituem as restrições às quais está submetido o sistema
tecnológico de produção, restrições que "limitam" e determinam as
"possibilidades" do sistema, sua eficácia. (GODELIER, s.d., p. 329)
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Kant de Lima (1997), corrobora essa idéia, ao constatar que na pesca em Itaipu existe
uma eficácia dos meios de produção empregados na captura do pescado. Estes meios de
produção permitem uma exploração do local de forma econômica e não acarretam a exaustão
dos recursos naturais aí existentes. Além disso, eles combinam um saber naturalístico com um
conhecimento técnico que se ajustam, portanto, às condições de produção local. A sua
eficácia pode ser confirmada, na medida em que a reprodução dos pescadores de Itaipu é
mantida até os dias de hoje.
Constata-se, a partir do exposto, a importância de uma adequação da utilização e da
combinação dos diferentes fatores de produção dentro dos quadros específicos em que se
realiza a atividade pesqueira.
O autor informa que dentro do quadro de pequena produção mercantil dos pescadores
artesanais, a pescaria se constitui basicamente de canoas e redes, incluindo aí as técnicas para
sua utilização e manutenção. Quanto às canoas, estas podem ser "canoas pequenas" ou
"canoas grandes". Ambas são produções artesanais. São feitas de tronco cavado de madeira de
lei, e em seguida dá-se a sua armação, ou seja, a colocação de seus acessórios pelo artesão.
Esta última deverá se adequar às condições naturais do local.
As canoas pequenas podem ser "menores", quase sempre propulsadas a remo, ou
"maiores", as quais utilizam-se de motor, para se deslocar. Nas canoas pequenas, utiliza-se o
sistema de "palamenta". Este, constitui-se da colocação de dois remos em direções opostas,
nos dois lados da canoa. O pescador pode guiá-la sozinho, fazendo uso dos dois remos
simultaneamente. Estes remos denominam-se palamentos, e além deles existe um outro
separado.
As pescarias "de canoas grandes", também chamadas "de arrasto" ou "de arrastão",
apresentam dois importantes processos de produção: o "lanço à sorte" e o "cerco". São de
grande importância para a atividade de captura e comercialização das espécies. Além de
requisitarem mais pescadores em sua companha, elas também requerem maiores
investimentos que as pescarias de canoas pequenas. Com elas, os seus proprietários
conseguem maiores ganhos econômicos e maior respeitabilidade, interna e externamente ao
grupo, inclusive representando-o em determinadas situações de suas relações sociais. (KANT
DE LIMA, 1997, p.99)
Prosseguindo com a literatura, constata-se que as canoas grandes utilizam-se de quatro
remos compridos e um menor denominado "timão". Os bancos colocados na direção popaproa, bem como seus ocupantes são chamados de "ré", "meio", "contra-meio" e "proa". Dois
outros bancos restringem o local da rede. Na popa, parte situada para além do banco de ré, o
27
mestre viaja de pé.
Segundo ainda o autor, depois de colocados os remos e demais acessórios necessários,
por último, dá-se a pintura da canoa, inclusive com o nome e o número de matrícula na
Capitania dos Portos. Estes últimos deverão ser registrados com o nome do proprietário na
Capitania, na Colônia de Pesca e na SUDEPE (Superintendência do Desenvolvimento da
Pesca).
Todos os dias em que a canoa é usada ou exposta ao sol, ela é lavada com a água do
mar, visando a sua conservação. E aqueles que atuam na pescaria, farão a troca de alguns
acessórios quando estes estiverem gastos ou forem perdidos durante a atividade de pesca. Os
consertos são realizados dentro de um certo intervalo de tempo. À medida que o casco se
danifica, as partes prejudicadas vão sendo substituídas por pedaços de madeira.
As canoas grandes transportam a rede de arrasto e seus cabos. Elas se movimentam em
terra e no mar. O deslocamento das canoas da areia até a água é denominado "desencalhar" e
no sentido contrário, "encalhar". A operação de "encalhar" pode ser realizada por qualquer
pessoa na praia, além dos participantes da pescaria. Os pescadores, quando solicitados, caso
não aceitem colaborar, também não receberão ajuda quando precisarem, já que o esperado é a
troca de serviços mútua.
No mar, os remadores cuidam do deslocamento da canoa, sempre orientados pelo
mestre. Remar requer, além de força, muita habilidade. Nas "canoas grandes", cada remador
utiliza um remo. O mestre, com a ajuda do timão, direciona a canoa, contando com a
colaboração dos remadores. Terminado o "lanço" ou "cerco", quando a canoa volta para a
praia, os remos são guardados dentro dela.
Prosseguindo com o autor, percebe-se que as redes de canoas grandes podem ser
"redes de lanço", ou "cata-cata", além das "redes de tainha", "redes de parati" e "redes de
sardinha".
O tamanho das "redes de cerco" e "de lanço", variam em função não só da condição
econômica de seus proprietários, como também do tamanho das canoas que farão o seu
transporte. Quanto às redes de canoas pequenas, a curvineira tem 1,5 a 2 braças de altura,
lembrando que 1 braça corresponde a 2,20m, e equivale à extensão medida entre um dedo
médio e outro de um homem com os braços abertos em cruz. O comprimento mede 150
braças aproximadamente. Esta rede é utilizada para a captura de espécies que se deslocam
muito próximo ao fundo. Este tipo de rede necessita de, pelo menos, dois homens para sua
utilização. É indicada para a captura de corvina e de cação sendo mais utilizada nos meses de
abril a outubro, período em que o mar está revolto e venta mais. Ao passo que a "rede alta" é
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utilizada nas canoas "maiores", e é própria para a captura de espécies que se deslocam
próximo à superfície, tais como o robalo e a enchova. Ela pode medir de 6 a 8 braças de altura
e aproximadamente 300 braças de comprimento. São necessários dois homens para remar e
dois para colocar a rede n'água e depois recolhê-la com o pescado capturado. (KANT DE
LIMA, 1997, p. 84-86)
As redes das canoas grandes são, em geral, feitas de panos. Estes panos constituem-se
de pedaços de malha que são mais largos em ambas as extremidades ou "mangas" e mais
estreitas no centro, formando um saco, ou "cópio". As redes de arrasto são confeccionadas
com fio de náilon. Enquanto na parte de cima da rede, ao ser lançada no mar, são atadas
cortiças, ou bóias, do outro lado, na parte de baixo, são presos "chumbos", ou pesos.
"Entralhar" é o nome dado a toda a montagem da rede. E "atar" é como chamam o ato
de remendar as malhas.
Seguindo a literatura, verifica-se que na pescaria de arrasto, a operação de "embarcar"
a rede, consiste em trazê-la para o interior da canoa, após o seu uso durante a pesca. Para a
sua execução são necessários quatro homens. A pescaria "de cerco" e "de lanço", processos
de trabalho realizados no âmbito da pescaria de arrasto, cada uma delas, apresenta uma forma
diferente de "embarcar" a rede; dependendo, inclusive, do número de pessoas participantes.
A rede é "embarcada redonda", quando a pescaria é "de cerco" ou quando o número de
pessoas é pequeno para realizar o "lanço". Neste caso, um único homem é suficiente para
lançar a rede, porém necessitará de um tempo maior para a sua realização.
No caso da pescaria "de lanço", a rede é "embarcada à moda de rede alta". Esta
operação é mais rápida. Na hora de lançar a rede, o mestre "larga" o "chumbo" e o "ré"
"larga" a "cortiça". Essa segunda operação, que consta de lançar a rede de dentro da canoa
para o mar, é chamada de "largar" a rede.
Uma outra técnica de utilização da rede consiste em recolher a rede que foi lançada ao
mar, à medida que se fizer necessária a interrupção de um cerco ou lanço. Esta operação
denomina-se "cobrar" a rede e é realizada pelo mestre e por mais um homem.
Segundo Kant de Lima (1997), a atividade humana consiste no terceiro e último fator
de produção. Para um melhor entendimento acerca deste, vale ressaltar que as unidades de
produção, ou seja, os quadros específicos em que se dá a pesca, dependem da natureza dos
trabalhos que são realizados e dos meios que dispõem para realizá-los. Nas condições dessas
unidades de produção é que ocorre a relação técnica com a natureza, por intermédio das
relações dos trabalhadores ativos no âmbito do sistema. Constata-se, no entanto, que a
utilização e combinação dos fatores de produção, assim como os motivos que levam os
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indivíduos economicamente ativos a se agruparem para exercer uma certa atividade produtiva,
podem ser distintos dentro de um mesmo sistema. (GODELIER, s.d.)
Quanto à equipe que trabalha nas pescarias de arrasto, esta, denomina-se "companha",
e seus participantes são chamados de "companheiros".
"A companha constitui, por assim dizer, o núcleo fundamental para o exercício da
atividade produtiva, através dos equipamentos da 'pescaria' e dos conhecimentos que
permitem a apropriação dos recursos." (KANT DE LIMA, 1997, p.164)
Ao prosseguir com a literatura, verifica-se que dentro desta equipe de produção da
pescaria de arrasto, estabelece-se uma hierarquia de posições, e a partir desta, cada um terá a
sua função na atividade da pesca.
Desta forma, o mestre ocupa a posição de nível mais alto dentro da pescaria. Ele é o
"encarregado" da produção da pesca e é também o responsável pela reprodução nos quadros
que permitem a sua continuidade. É ele quem decide o local, a quantidade e a hora para
pescar. Ele transmite os conhecimentos à medida que comanda a realização de uma tarefa. A
orientação de todo o trabalho da companha, é ele quem faz. A sua posição não é muito
requisitada, uma vez que ela implica numa ligação mais intensa com uma determinada tarefa.
No interior da canoa, ele vai na popa, viajando junto com os companheiros-de-remo. Com a
ajuda do "ré", ele "larga a rede" e poderá "cobrá-la", caso esteja embarcada à "moda de rede
alta". A ele cabe ainda, com a ajuda do timão, dirigir a canoa durante o "lanço" e comandar a
"puxada". Ao retornar à praia com a rede, ele iniciará a distribuição e a comercialização do
pescado. E é através do leilão, seja ele realizado na praia ou no mercado, que se desenrola a
comercialização do produto.
Da equipe de produção, constam ainda os "companheiros-de-remo" que têm como
função remar, colaborar na puxada de rede de terra e também sob a orientação do mestre,
trabalhar na manutenção dos instrumentos de pesca. Todos os companheiros devem participar
das funções de "atar" e "entralhar" redes, que associadas às outras tarefas da atividade
produtiva, vão implicar na totalidade do pescador. Outros valores também considerados são a
assiduidade, a ausência de vício com bebida alcoólica, e a prontidão e vigor na realização das
tarefas, além de ser necessário que resistam à permanência no mar, sem passar mal. Ajudam a
"encalhar" e "desencalhar" a canoa e participam do ato de "embarcar" a rede. Aos
companheiros-de-remo compete, ainda, guiar a canoa para bombordo ou estibordo, esquerda e
direita respectivamente, considerando-se o sentido da popa para a proa.
Os companheiros têm como função também, a operação de juntar as cordas que se
desprendem dos cabos da rede, enrolando-as e acondicionando-as. É o que chamam de "fazer
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corda em roda". Além dessas tarefas, após a sua chegada na praia, os "companheiros-deremo" deverão organizar, distribuir em classes nos "cestos" ou "ganhos" - depósitos para
quantificar a produção e transportar o pescado - e lavar o produto no mar. E finalmente, então,
atuarão naquilo que menos se valoriza, que é guardar esses depósitos.
Segundo Kant de Lima (1997), aqueles que ainda estão em fase de aprendizagem,
conseguem ingressar numa companha mediante as relações de parentesco, embora, em
determinadas circunstâncias, também sejam aceitas pessoas "de fora". As crianças começam
como pontas-de-cabo ou cabeiro e vão realizando tarefas simples. À medida que se
desenvolvem fisicamente, ficam aptos para remar e ascendem à função de companheiros-deremo.
O autor ressalta ainda, que o contramestre ou mestre-de-rede, além de substituir o
mestre quando necessário, ele é responsável por largar, apenas ele, a rede "embarcada
redonda". O vigia, na praia, é encarregado de orientar o cerco em conjunto com o mestre, no
mar. As posições de contramestre e vigia, incluídas no inverno, no entanto, implicam em uma
maior responsabilidade. Para ascender a essas funções é preciso uma maior habilidade
resultante de conhecimentos apurados adquiridos. Caberá ao mestre, ponderar e decidir sobre
a progressão do pescador na profissão.
Os companheiros são chamados de "efetivos", caso tenham uma obrigação contínua
com a companha. Se apenas ocasionalmente eles realizam a pesca, são denominados
"substitutos". Ao "efetivo" caberá sempre a sua parte no produto obtido. Mesmo que esteja
ausente, a sua falta não lhe trará problemas, desde que apresente as causas justificadas.
Quanto ao "substituto", este pode até desempenhar as mesmas funções que o "efetivo", mas a
sua parte será sempre inferior a dos demais companheiros.
O que se percebe nessas relações é que o parentesco atua de forma a reunir os
companheiros em sociedade e socializar a pesca. Porém, quanto à participação nas
companhas, com o passar do tempo, o parentesco estabelece uma espécie de força centrífuga
(PEIRANO, 1975, p.102). Ou seja, tão logo um companheiro pertencente a uma dada unidade
de produção adquira uma certa autonomia de vida, ele tenderá a abandonar a atividade de
pesca até então realizada em conjunto com seus parentes mais velhos.
Kant de Lima (1997) ressalta que dentro dos quadros apresentados, a atividade
pesqueira se identifica no mar, por meio da companha embarcada, e na terra, mediante a
comercialização do produto no mercado. Somente os pescadores que façam parte da
companha, têm direito a sair na canoa para pescar. No entanto, as atividades desenvolvidas na
praia, tais como encalhar e desencalhar a canoa, puxar a rede para a praia e consertá-la, estas
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podem ser realizadas por outras pessoas interessadas, mesmo que não possuam um
compromisso permanente com a companha.
Segundo o autor, o companheiro, adquire maior destaque e passa a ser melhor
remunerado, a partir da sua estabilidade na companha. Desta forma, outros companheiros se
sentem motivados e atraídos, fato que acarreta uma maior produtividade. No entanto, Peirano
(1975, p. 107), sustenta que apesar dos laços de parentesco serem importantes na reunião dos
companheiros em sociedade, mais importância é dada à busca pelo maior valor que a
produção pode alcançar.
Como percebe-se, o conhecimento na pesca é imprescindível para o desenvolvimento
da atividade. Kant de Lima (1997) observa que, em Itaipu, este conhecimento constitui-se
num saber local, o qual inclui os fatores de produção e revela uma hierarquia que é constatada
durante o processo de produção. Para que seja possível a reprodução e a aquisição desse
conhecimento é necessário que o pescador participe nas atividades de grupos de pesca do
local.
1.2.1.2 Os processos de produção
No âmbito da pescaria de "canoas grandes" ou "de arrasto", conforme mencionado
anteriormente, existem dois importantes processos de produção: o "cerco" e o "lanço à sorte".
Seguindo a literatura, a pescaria de "lanço" realiza-se com mais freqüência no verão.
Possui baixo nível de previsibilidade, o que faz dela uma pescaria menos interessante. As
canoas e redes, nela utilizadas, são pouco valorizadas, sendo chamadas de "cata-cata".
Enquanto isto, a pescaria de "cerco" possui alto nível de previsibilidade, e consiste na captura
de espécies que se deslocam em cardumes e que podem ser vistos na superfície d'água. Os
principais peixes a serem capturados são: parati, tainha, bonito e xaréu. É no inverno que ela
tem seu ápice. Utiliza-se de equipamentos adequados, como rede e canoa "de tainha", por
exemplo, e dispõe do trabalho especializado do mestre, contramestre e vigia. A abundância
do produto, bem como a sua boa cotação comercial, acarreta uma maior vantagem econômica.
O "lanço à sorte", tem inicio nas primeiras horas da manhã, quando o dia ainda não se
encontra totalmente claro. O mestre e os companheiros-de-remo embarcam na canoa, e o
cabeiro que é o responsável por uma das pontas da corda, poderá ir embarcado ou não. A
canoa é guiada no sentido da praia para o mar adentro, iniciando-se o "correr o lanço". Ao
acabarem as cordas dessa extremidade, o mestre, em conjunto com os companheiros-de-remo,
manobra para estibordo em círculo. O mestre viaja na popa, com o timão, ora direcionando a
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canoa para a direita (estibordo), ora para a esquerda (bombordo). Para a operação de "largar a
rede", o mestre contará com a ajuda do ré, caso a rede esteja embarcada "à moda de rede alta"
ou atuará sozinho. "Arribar" é o nome dado à operação quando a canoa retorna à praia,
sempre perpendicularmente a esta, e na qual se soltam as cordas da outra extremidade. À
medida que se aproxima da praia, retiram-se os remos de dentro d'água e os colocam dentro
da canoa no sentido popa-proa. O proeiro e os companheiros-de-remo deixam a canoa,
levando a extremidade da corda. A seguir dá-se a "puxada". Durante esta, os companheiros
contam com a participação de colaboradores externos à companha. Neste processo de trabalho
podem ocorrer vários lanços. (KANT DE LIMA, 1997)
O conhecimento de fatores tais como a correnteza e a maré, determinará o ritmo da
puxada, e será imprescindível para que a rede não arrebente. Existem duas estratégias: a do
mar, de responsabilidade do mestre, e a da terra, realizada por aqueles que participam da
puxada. Finalizada a puxada, é hora de averiguar se ocorreu o "prognóstico", ou seja, se
houve uma manipulação acertada das variáveis, tais como, o tempo, as condições do mar, a
lua, as espécies marinhas locais, e outros conhecimentos responsáveis pela previsibilidade do
resultado da pesca naquele local escolhido. (KANT DE LIMA, 1997)
Segundo o autor, as tarefas são todas executadas em silêncio. A maior parte das
comunicações é feita através do corpo ou de gestos. Somente no momento da puxada, como
também na operação de encalhar e desencalhar a canoa, é que se observa gritos e a
verbalização da comunicação.
O resultado da pescaria denomina-se "maré". Já a "mistura" é o nome dado para a
captura de diferentes espécies, e todas em pequena quantidade, trata-se da "salada de peixe"
que é comercializada na praia mesmo. Somente no caso de uma grande quantidade de uma
certa espécie, ou de uma espécie bem cotada no comércio, é que o mestre ou o dono da
pescaria irá comercializar o produto no mercado. Pode ocorrer também, de um companheiro
mais capacitado ir vender o produto, caso o mestre não possa ir ao mercado em função de um
outro lanço a ser feito naquele momento.
Na pescaria de cerco, as canoas "tomam o lanço", ou "marcam a vez", que consiste em
mergulhar a âncora n'água ou "molhar o ferro". Em seguida, aguardam, geralmente na praia, a
vez para fazer a captura. Essa modalidade de pescaria é realizada sempre durante o dia, para
que se possa ver o cardume, seu tamanho e movimentação. Cada companha conta com um
vigia. E juntos, eles saem cedo para observar o deslocamento dos cardumes. Enquanto isso, os
companheiros ficam, à vontade, esperando na areia. Assim que os vigias avistam os cardumes
e definem por quem eles serão capturados, ocorre o "capiá", operação na qual, aqueles que
33
vão pescar saem correndo pela areia em "ziguezague". Depois de decidido, o vigia segue
"capiando" no início do cardume, sinalizando o começo deste. (KANT DE LIMA, 1997,
p.188-190)
Em seguida, os companheiros que esperam na areia, desencalham as canoas e vão
rapidamente para o local onde marcaram a vez. Em se tratando do primeiro cerco do dia,
todas as companhas cujos vigias "capiaram" ou não, vão para lá. Isto se deve ao fato, dos
"cercos" serem feitos daquele local em diante, uma vez que quando aparece um cardume,
outros também virão naquele mesmo dia.
Ainda segundo o autor, as canoas, ao chegarem no local escolhido, organizam-se em
função da vez. Uma ponta de cabo é deixada na praia próxima ao cabeiro. É preferível, muitas
vezes, jogar a ponta de cabo da canoa para o cabeiro, do que desembarcá-lo com ela. Sendo
assim, ele a pegará, à medida que for correndo pela areia. Ao contrário do que acontece na
"espera", existe muita competitividade durante essas operações. O mestre, em pé na popa da
canoa, acata os sinais do vigia, em terra, e manda os companheiros-de-remo e o contramestre
executarem as operações. O vigia é quem comanda a pescaria, mas o mestre passa a participar
das decisões, assim que ele avista o cardume.
Depois de "arribada" a canoa, o vigia une-se às pessoas que estão realizando a
"puxada". Ele comanda a estratégia de terra, enquanto o mestre volta ao "cópio", para orientar
a estratégia de mar, e a companha é dividida entre as duas extremidades da rede. A rede
deverá ser puxada rapidamente para que o cardume não fuja do cerco.
Por fim, chega a hora de grande alegria e de total descontração, por parte de todos, é o
momento em que se vê as tainhas pulando na rede. Elas são levadas para a areia, onde são
classificadas e contadas pelo vigia. Depois de colocadas nos "ganhos", elas são lavadas no
mar e leiloadas na praia. Podendo também ser transportadas pelo vigia, mestre ou dono da
pescaria, para serem leiloadas no mercado. Os companheiros, no entanto, têm direito a pegar a
sua parte antes do leilão. A "puxada" é distribuída, pelo vigia, após a realização do leilão. Em
condições normais, cada cerco leva em torno de 30 minutos.
No âmbito das pescarias de canoas pequenas, o autor destaca a pescaria de cerco que é
feita em noites sem lua. Nestas noites escuras, os peixes são localizados mais facilmente,
devido à luminosidade causada por microorganismos que se movimentam à medida que os
peixes se locomovem debaixo d'água. Assim sendo, direciona-se a canoa para uma costa de
pedra, por exemplo, e ao redor do peixe, faz-se um cerco com a rede. A partir daí, desloca-se
a canoa entre a costa e a rede. Para espantar o peixe, liga-se uma lanterna, remexe-se os remos
n'água e nela atira-se uma pedra. O peixe ao se assustar, foge para o mar, ficando preso na
34
rede. Essa pescaria costuma ocorrer no verão, época em que o mar está mais tranqüilo. Para
tanto, são utilizadas canoas movidas a motor, e rede curvineira ou rede alta, dependendo da
espécie que se pretende capturar. (KANT DE LIMA, 1997, p.86)
O autor aponta um outro tipo de pescaria de canoa pequena, trata-se da pescaria de
caceia. Esta consiste na utilização da rede alta e é voltada para a captura de espécies que se
movimentam próximo à superfície d'água, tais como a cavala e a enchova. Para a sua
realização, a rede é estendida, da beira da praia para fora. Segura-se a rede e, assim que o
peixe a toque, inicia-se o seu recolhimento.
A pescaria de rede de espera, outra modalidade de pesca em canoa pequena, utiliza-se
da rede alta ou curvineira. A rede é estendida à tardinha bem perto da praia, sendo recolhida
bem cedo na manhã seguinte. Existe uma maior previsibilidade quanto às espécies a serem
capturas neste tipo de pescaria, sendo a enchova, a de maior valor. (KANT DE LIMA, 1997)
O autor ressalta que essa modalidade de pesca causa desentendimentos entre
proprietários de "canoas pequenas" e "canoas grandes". O fato é que as redes de espera,
depois de uma noite inteira no mar, ao serem recolhidas, deixam uma "catinga" ou "restalha"
(que consiste em forte e característico odor) no local, a qual afugenta os outros peixes. A
pescaria de arrasto para captura da tainha, a qual aparece em cardumes, é a mais prejudicada
com a "restalha".
A subsistência, através do mar, se dá também por intermédio de pescarias de tarrafa,
espinhel, linha, caniço e puça dentre outras. Estas também são realizadas nas canoas pequenas
ou caíques. Além dessas atividades de captura, existe também a coleta de tatuís, sarnambis,
mariscos etc.
1.2.2 AS OPERAÇÕES DE REPARTIÇÃO
Um aspecto sempre fundamental para a compreensão da lógica que preside as várias
formas de pesca, está nas operações de repartição, pois "(...) são aquelas que determinam
dentro de uma sociedade as formas de apropriação e uso das condições da produção e de seu
resultado – o produto social". (GODELIER, s.d., p.334)
Na pesca, existem restrições quanto aos recursos a serem apropriados. Uma delas diz
respeito ao quadro tecnológico disponível. Este inclui os equipamentos utilizados na pesca e a
sua ligação, no interior do processo, aos demais fatores de produção. A outra limitação está
atrelada à definição dos recursos apropriáveis, ou seja, ao conhecimento naturalístico de que
se dispõe e da habilidade que se tem em sua manipulação. Esta última restrição, "implica a
35
formulação de uma concepção restrita dos recursos do mar, num determinado momento, que
se articula à percepção de sua inesgotável renovação cíclica". Embora o mar seja ilimitado, o
objeto da captura é limitado e, mesmo sendo de propriedade comum, ele será apropriado
somente por alguns dos seus proprietários potenciais. (KANT DE LIMA, 1997, p.201)
O autor afirma que a propriedade dos equipamentos de produção, ou seja, da pescaria,
ocorre geralmente, de forma particularizada. Fato que demonstra incoerência entre pescaria e
companha. A literatura aponta que os donos das pescarias apropriam-se dos instrumentos de
produção de forma individualizada. No entanto, são estes instrumentos que serão utilizados
para a apropriação dos recursos do mar, os quais são de ciência coletiva. O uso desses
instrumentos está atrelado não só à utilização de um conhecimento local dos recursos de que
se dispõe, como também das estratégias e técnicas indispensáveis para sua apropriação. Desta
forma, a relação entre a oferta de trabalho e a procura de trabalhadores sofre restrições, que
extrapolam os fatores econômicos. Dentre esses fatores, ressalta-se o fato de se pertencer ao
lugar e ser identificado como aquele que tem o conhecimento da pesca. A partir daí, viabilizase a formação de um grupo permanente.
Quanto à apropriação do produto final - o segundo aspecto considerado no que tange à
repartição - esta se dá conforme os interesses direta e indiretamente econômicos. Como
motivos diretamente econômicos, entende-se a necessidade de manter em renovação
permanente os fatores de produção, viabilizando a reprodução da atividade produtiva e dos
meios materiais para a subsistência do grupo. Os motivos indiretamente econômicos, no
entanto, são aqueles que visam levar às atividades não-econômicas da vida social, as
condições materiais fundamentais para a sua realização. (KANT DE LIMA, 1997, p.199)
Kant de Lima (1997) afirma que a pesca, enquanto atividade econômica, destina-se à
captura de espécies, visando principalmente, colocá-las no mercado. Há um tipo de pesca,
porém, a pescaria de arrasto, que além de visar a troca monetária do pescado capturado, não
exclui a sua utilização para o consumo. Ou seja, ela tem também como objetivo a subsistência
dos companheiros e de seus familiares, e ainda a remuneração do trabalho de pessoas não
pertencentes à companha, mas que tenham de alguma forma colaborado na puxada, por
exemplo.
Prosseguindo com o autor, constata-se que na pescaria de "cerco", o seu produto final
é destinado a um mercado especializado. Isto se deve ao fato de que a captura se realiza com
alto nível de previsibilidade, inclusive quanto à quantidade e qualidade da espécie a ser
capturada. Ao passo que, na pescaria de "lanço", a imprevisibilidade quanto à quantidade e
qualidade do pescado capturado faz com que ele seja, muitas vezes, distribuído ou
36
dispensado, já que não existe cotação no mercado para determinadas espécies.
Kant de Lima (1997, p. 212), ao estudar a pesca em Itaipu, constata que na maioria das
vezes, a comercialização do produto é feita na própria praia, com comerciantes ambulantes, e
não passam por nenhuma espécie de registro. O pescado é registrado na Colônia, apenas
quando se trata, de uma maior quantidade, e quando esta não é vendida nem para os
comerciantes ambulantes, nem para o mercado de Niterói. Nesse caso, a Colônia de Pesca
recolhe 5% sobre o valor estimado de comercialização, visando adquirir guia de transporte
para o mercado de Niterói. Este registro, no entanto, não consegue representar os números
reais da produção, sua quantidade e valor. Fatos como este, levam a Colônia a ser questionada
quanto a sua importância, representando o declínio do poder político em conseqüência das
mudanças que ocorreram em Itaipu.
Mas a distribuição do produto da pesca não pode ser pensada fora dos quadros da
reprodução dos recursos naturais em questão. Os recursos naturais constituem-se, de
(...) "populações naturais", cuja reprodução e migração apresentam-se, por
definição, alheias ao controle por parte do grupo que delas se apropria. Daí
decorre sua representação, de certa maneira, como "bem inesgotável", e de
ocorrências cíclicas, reguladas por fatores alheios à interferência humana, que
se limita à criação de representações cuja articulação constitui modelos
probabilísticos que visam diminuir seu caráter de aleatoriedade. (KANT DE
LIMA, 1997, p.213)
Desta forma, é fundamental que os instrumentos de produção sejam compatíveis com
o tipo de captura a ser realizado, ou melhor, constata-se aí a importância do conhecimento
técnico estar totalmente atrelado ao conhecimento naturalístico adquirido por aquele que
exerce a atividade pesqueira.
Seguindo a literatura, constata-se que a renovação dos recursos, portanto, é limitada
não só pela eficácia técnica dos instrumentos de produção, como também pelas limitações
existentes a partir da forma como se combinam os fatores de produção. As inovações
tecnológicas introduzidas na pescaria de arrasto, a saber, não provocaram um aumento da
produção, mas sim, uma maior produtividade na pesca.
Quanto à forma de remuneração que se dá no interior das companhas, esta é feita pelo
sistema de "partilha". Este sistema é que vai garantir a acumulação e reprodução dos
equipamentos necessários para a atividade pesqueira. Os companheiros vêem a partilha como
uma participação no produto obtido na pesca, e não como um salário ou uma comissão. A
literatura aponta para o fato de que esse sistema de remuneração viabiliza uma maior
37
produtividade na atividade econômica.
O dinheiro, conseguido com a venda do pescado, é então dividido entre os
companheiros e a "pescaria". Após a retirada da parte da pescaria, o restante do montante é
distribuído aos companheiros, conforme percentuais pré-estabelecidos para cada membro da
equipe. A remuneração varia de acordo com o cargo, qualificação e habilidade do
companheiro. Em geral, 30% são destinados à pescaria, e visam a manutenção do
equipamento. O restante, geralmente, é dividido da seguinte forma: 10% para o companheiro
de remo, de 12 a 15% para o mestre, 5 a 8% para o ponta-de-cabo, além do vigia que recebe
igual ao mestre e do contramestre que ganha de 10 a 12%. (KANT DE LIMA, 1997, p. 216)
Quanto à reprodução técnica dos companheiros, destaca-se a importância da
socialização das crianças na praia. Estas, após atuarem de alguma forma na pesca, ganham
peixes, assim como os idosos e viúvas que por lá aparecem. Quando não estão atuando na
pescaria, costumam ficar nas proximidades. Os companheiros apropriam-se do peixe para
consumo próprio e familiar de modo que atenda as suas necessidades, e de forma equilibrada,
sem que façam uso de excessos e desperdício. (KANT DE LIMA, 1997)
Como já foi mencionado anteriormente, as regras de repartição com motivos
indiretamente econômicos, são aquelas que permitem levar às atividades não-econômicas da
vida social as possibilidades materiais de suma importância para a sua consecução. As festas
locais são um exemplo dessas atividades. Elas podem variar não só em função da
produtividade do trabalho, como também a partir da margem do excedente, ou seja, daquilo
que é considerado "a mais" quando se trata de suprir as necessidades de subsistência do
pescador. A idéia de excedente é relativa, pois dependerá sempre do quadro em que se
encontra inserido, ou seja, não existe um excedente absoluto, não se pode generalizar o que é
considerado "a mais". Cabe entender, no entanto, que trata-se daquilo que é considerado além
do imprescindível para a subsistência dos integrantes de uma dada sociedade (KANT DE
LIMA, 1997, p. 218). Vale ressaltar, porém, que o desenvolvimento social e econômico não
virá como conseqüência imediata desse excedente, para que isto ocorra é fundamental que
haja condições e estímulos específicos. (GODELIER, s.d.)
Diegues (1983, p. 85) corrobora essa afirmação, quando ressalta que o pequeno
pescador, ao capturar um pescado numa economia natural, visa prover os meios de
subsistência para ele próprio e seus familiares. Havendo ocasionalmente, um excedente, este
será destinado à realização de rituais, tais como o consumo em cerimônias comunitárias. Já o
armador de pesca, mesmo utilizando-se de técnicas semelhantes para a captura, o seu maior
objetivo será o lucro monetário, a reprodução do capital etc.
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Existem várias formas de circulação dos bens que variam de acordo com a sociedade e
com os princípios que regulam as trocas no seu interior. Existem formas não mercantis, como
a partilha, a dádiva e o tributo dentre outros; e formas mercantis de circulação de bens.
(GODELIER, 1974)
Ainda segundo Godelier, no que tange às formas mercantis, ressalta-se as formas
simples de circulação das mercadorias com a utilização ou não de moeda, e as formas
capitalistas de circulação das mercadorias. A forma de circulação mercantil sem moeda ocorre
quando os bens são produzidos para a troca e esta troca é feita de acordo com taxas admitidas.
Ao passo que, na forma de circulação simples com moeda, entre os bens trocados existe
aquele que é considerado o equivalente de todos os demais. Nesta forma de circulação, há
uma que não está voltada para o lucro, visando apenas suprir as necessidades, e outra que
circula a moeda como capital, voltando-se para o lucro. (GODELIER, 1974)
Segundo Kant de Lima (1997), no âmbito da pescaria de arrasto, as relações
estabelecidas são muito freqüentemente percebidas em função do modo como circula o
produto final. Alguns circuitos de troca internos e externos ao grupo são, portanto,
importantes para essa compreensão.
O valor do peixe capturado inclui também significados próprios. Não só porque passa
por um processo de produção artesanal, o qual baseia-se na utilização dos fatores de produção
e na forma como estes se interligam, como também, devido às incertezas das quais se
constitui o processo de produção, além do contexto social em que se realiza.
O autor afirma que existem três níveis de circulação do produto final da pescaria de
arrasto, de acordo com as características do objeto. Quando a "doação" do peixe capturado é
feita àqueles que não participam das atividades produtivas do grupo ou àqueles que a
mereçam, por algum motivo. Trata-se da "reciprocidade generalizada". Quanto aos
colaboradores da atividade de produção, estes têm o "direito" ao peixe, em troca do seu
trabalho realizado. É a "reciprocidade equilibrada". E finalmente, o terceiro nível diz respeito
à venda, que se dá quando o peixe capturado é entendido como mercadoria, representando a
"reciprocidade negativa". (KANT DE LIMA, 1997)
Será enfatizada, inicialmente, a troca de trabalho por peixe. Nela, são consideradas não
só a "quantidade" de trabalho empregada, como sobretudo , o "valor" desse trabalho,
(...) qualitativamente definido nos termos das hierarquias técnicas que se
atualizam nos processos de produção do grupo para esse efeito dividido em
"companheiros" e "não-companheiros". Tal circunstância empresta a esse
tipo de troca características de redistribuição, no que essa tem de constituir-se
39
em uma distribuição autoritária de produto de esforço coletivo. (KANT DE
LIMA, 1997, p.226)
Pode-se enfatizar a existência de dois circuitos. O primeiro é aquele que sustenta a
"igualdade" dos companheiros, ao invés da hierarquia e desigualdade existente durante a
atividade produtiva, incluindo aí os aspectos técnicos e econômicos. Desta forma, todos os
companheiros têm "direito", e não obrigação, de obter parte dos peixes capturados, em geral
para consumo próprio. A única restrição é concernente ao volume da produção. Quando este
for pequeno, a apropriação do peixe capturado se dará em partes iguais, por cada
companheiro. Ao exercerem esse "direito", reforça-se a ideologia da companha, ou seja, a
noção de igualdade nas relações existentes no interior desta. O outro circuito é muito
importante para a significação da pescaria de arrasto. A "puxada", onde ele é percebido, é uma
operação bastante específica dentro da produção. Ela agrega, ao trabalho realizado pela
companha, o trabalho de membros de outros grupos externos a ela. Caberá ao mestre da
pescaria reunir os homens que ficam em terra e deliberar sobre a remuneração destes que
podem participar freqüentemente ou não da "puxada".
Os companheiros, muitas vezes, deixam a parte que lhes compete, para os
colaboradores que participaram da "puxada", sejam eles colaboradores regulares ou não. A
relação de troca, portanto, demonstra uma reciprocidade equilibrada. Ela está mais voltada
para o trabalho despendido do que para o possível preço de comercialização do peixe
capturado. Este, também pode ser vendido na praia, prejudicando a venda em leilão, realizada
pelo mestre. Observa-se também que a quantidade e a qualidade do produto distribuído para
aqueles que puxam a rede, está relacionada com a quantidade e qualidade da produção
conseguida na pescaria. Assim, há dias de pequenas e dias de grandes "puxadas", e
conseqüentemente remuneração. (KANT DE LIMA, 1997, p. 229)
Kant de Lima (1997), ao referir-se ao "objeto" trocado em Itaipu, ressalta que existe
uma diferença entre as espécies capturadas e destinadas à venda, daquelas destinadas à troca.
Na pescaria "de lanço" as espécies de maior valor vão para o mercado e na pescaria "de
cerco", as maiores são vendidas, ao passo que as menos cotadas e menores são trocadas.
Contudo, o ápice da troca se dá na pescaria "de cerco". O produto de vários "cercos" é
dividido por todos aqueles que de alguma forma participaram da atividade.
O produto da pesca, no momento de sua redistribuição tem, portanto, um significado
especial, ou seja, ele representa o resultado de um trabalho conjunto, do qual participam
"companheiros" e "não-companheiros". Nesta etapa, o peixe não é visto apenas como uma
40
mercadoria ou como aquilo que vai ser consumido como alimento, mas sim como algo
recebido em conseqüência da significativa colaboração no processo produtivo.
Será enfatizado a seguir, os processos relacionados à venda das espécies capturadas,
ou seja, quando o peixe representa uma mercadoria. Neste caso, mesmo em se tratando de um
produto voltado para o mercado, ou seja, que possa estar mais associado ao aspecto
econômico, ainda assim, existe uma acepção não-econômica. As diversas modalidades de
venda, geralmente, agregam diferentes aspectos não-econômicos em seus preços e estão
relacionadas não só com o grau de relação social estabelecido entre quem compra e quem
vende, como também com a valorização do produto independentemente de sua cotação no
mercado.
Quando o resultado de várias pescarias implica num número excessivo de pescados
capturados, e estes, é claro, devem ser vendidos o mais rapidamente possível, percebe-se a
formação de um ambiente de competição visando o melhor preço do produto no mercado.
Kant de Lima (1997) acrescenta que em Itaipu, o problema se agrava à medida que uma
pescaria não pode, em conjunto com outra, utilizar o mesmo transporte fretado. Tal situação
está atrelada à falta de cooperativas de pesca entre os pescadores para que estes possam
competir com os atravessadores impedindo o aumento do preço do produto vendido no varejo,
para o consumidor final.
Quando fala-se em grandes quantidades de peixe capturado, percebe-se que isto pode
ser interessante para o vendedor apesar de provocar uma redução no preço do produto. A
tainha é um exemplo de que a sua comercialização se dá de maneira muito mais satisfatória
quando ela pode ser capturada em quantidades maiores. (PESSANHA, 1977)
Segundo Kant de Lima (1997), a modalidade de venda da espécie capturada varia em
função de sua qualidade e quantidade. O produto é vendido a peso ou por unidade, quando é
capturado em grande número e apresenta uma boa cotação no mercado. Ao passo que a
"mistura" representa aquelas unidades sem classificação e que são vendidas na "maré", por
atacado. A venda da tainha no inverno ocorre de ambas as formas.
O autor enfatiza que em conseqüência das condições que norteiam a atividade de
pesca, a utilização de seu produto é destinada principalmente para o consumo e não para a
acumulação. Porém o fato de se perceber a produção como cíclica implica na compreensão de
uma reprodução infinita a qual intercala fases de muito a fases de pouco. Estas representações
falam de um modo de ver específico do trabalho, no qual o resultado evidente pode ser
previsto no que diz respeito à sucessão repetida e regular dessas fases, e surpreendente quanto
aos resultados. Pode-se repetir com o mesmo empenho a realização de uma mesma pescaria,
41
porém o seu resultado poderá ser abaixo ou acima do esperado.
1.2.3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL
Segundo ainda o autor, na pescaria dos pequenos produtores, a atividade pesqueira é
percebida de forma diferente da produção do operário. Este, além de estar inserido em outro
sistema de remuneração, tem o dever de cumprir horários e regulamentos, sem que haja um
contrato social que os valha. Por outro lado, o pescador faz o seu horário em função da hora
do peixe, fato que torna a sua remuneração inconstante e, ao mesmo tempo em que leva
alguns a abandonar a atividade, estimula outros a nela continuar.
Seguindo a literatura, em Itaipu, a economia local está voltada para a pesca da tainha.
No entanto, a maioria das atividades de lazer, acontece durante a atividade de espera. Fato que
coloca bem próximo o lazer do trabalho, ou seja, tudo acontece dentro de uma mesma
jornada.
No inverno, existe uma concentração de atividades e as companhas efetuam a captura
das espécies de forma alternada. Enquanto que no verão, caracterizado pela "dispersão
espacial", as equipes de pesca atuam concomitantemente. No inverno, atinge-se o máximo do
volume e do valor da produção, uma vez que existe uma previsibilidade na captura das
tainhas, a qual se realiza com canoas e redes próprias para a época. Esta será assim, “a época
em que se maximiza a hierarquia e se reafirmam os valores locais, quando os ganhos
extraordinários são possíveis, processando o reforço da ideologia de que afinal a atividade
pode ser economicamente compensadora”. (KANT DE LIMA, 1997, p. 251)
A partir da literatura abordada, pode-se concluir que a pescaria de arrasto,
principalmente na modalidade de cerco da tainha, realizada no âmbito da produção dos
pequenos pescadores ", consiste da "espera", do próprio cerco", da "puxada" e do "leilão".
A "espera" é a atividade que se dá de forma descontraída e consiste em permanecer na
expectativa da chegada dos cardumes. Dela participam todos que estão em convivência na
praia. A vigília cabe ao vigia que dá o sinal para o mestre.
Em seguida, o vigia realiza a "capiada" e os companheiros embarcados realizam o
"cerco". Neste momento, percebe-se muita competição, muita rigidez na disciplina e o
máximo de silêncio. Este último só poderá ser quebrado pelo vigia que, desembarcado, realiza
comandos de operações, os quais geram desentendimentos com o mestre que, embarcado,
realiza as suas tarefas.
A "puxada" é realizada por todos na praia. É a atividade que sucede o "cerco" e que
42
permite total liberdade de expressão. É um momento de muita alegria que se opõe à hierarquia
e à rigidez existente nas atividades realizadas no mar. Quando a rede finalmente chega à praia,
a hierarquia percebida até então nos comandos do vigia e do mestre, vão cedendo espaço para
a algazarra que se instaura neste momento em que todos são pescadores iguais.
O "leilão" é um momento de muita formalidade, principalmente quando é feito no
mercado. Ele é acompanhado por todos de forma silenciosa. O mestre é o responsável pelas
transações. Antes de colocadas à venda, as tainhas são separadas e classificadas.
Vale ressaltar que os processos de trabalho que ocorrem durante a produção pesqueira,
se dão a partir do tipo de recursos a serem explorados. E é na pesca e na produção agrícola
cujas atividades estão voltadas para os ciclos naturais, que as forças produtivas da natureza
assumem um papel de suma importância. Justamente, por estar sempre se moldando às
constantes mudanças das condições naturais, a pesca não se insere num processo de produção
em massa, e quando isto ocorre devido à inserção do maquinismo, dá-se a exaustão dos
estoques. Já na indústria, a produção em massa se torna viável devido a uma certa
homogeneidade de sua matéria-prima. (DIEGUES, 1983)
1.3 A ATIVIDADE PESQUEIRA DESENVOLVIDA DENTRO DO QUADRO DE
PRODUÇÃO CAPITALISTA DOS ARMADORES DE PESCA E EMBARCADOS - A
PESCA NAS TRAINEIRAS
Nesta etapa, pretende-se entender a forma como se dava a produção da pesca em
traineiras no bairro de Jurujuba, com ênfase para a transição daquela modalidade de pesca
desenvolvida dentro dos moldes da pequena produção mercantil para aquela desenvolvida no
âmbito da produção capitalista, a partir dos estudos realizados por Duarte nos anos 70, nesta
localidade de pescadores situada em Niterói - RJ.
1.3.1 CANOAS E TRAINEIRAS: A TRANSIÇÃO NA PESCA
Primeiramente, cabe definir que as traineiras são barcos movidos a motor, cujo nome
provém da denominação dada às únicas redes de que fazem uso. O processo de trabalho
desenvolvido nessas embarcações é bastante parecido com aquele praticado nas canoas
motorizadas que se utilizam de rede traineira, as quais são próprias para pescaria em alto mar.
No entanto, difere daquelas que se utilizam de rede de arrasto, já que estas têm sua atuação
limitada junto às praias da Baía de Guanabara, onde os problemas decorrentes da impactação
43
ambiental e a iluminação à noite, prejudicam a captura do pescado.
Nos dois processos que se assemelham, a pescaria abrange a procura do peixe, o cerco
e o transporte do pescado capturado da rede para a embarcação, etapas que serão aclaradas
mais adiante. A forma como se movimenta o barco e o modo como se utiliza a rede, assim
como as atividades de reparos na rede e também a tarefa de descarregamento do peixe
solicitam as mesmas técnicas em ambos os processos. As funções dos trabalhadores também
são semelhantes e tem a mesma denominação. Constata-se, inclusive, a ocorrência de
desentendimentos entre o mestre e os outros componentes da companha. No caso das canoas,
o mestre, em geral, é o proprietário da embarcação, enquanto que nas traineiras, ele é um
assalariado. Em ambos os casos ele assume a função de direção.
Em Jurujuba, a forma de remuneração na produção das traineiras, assim como na
produção das canoas, se dava muitas vezes, pelo regime de partilha, embora também fosse
comum ocorrer o sistema de assalariamento. A partilha, já que se aplicava em ambas as
formas de produção, sustentava a representação da identidade, uma vez que estava ligada à
idéia de companha calcada no interesse comum dos trabalhadores numa boa pescaria, a qual
implicaria numa boa remuneração diretamente relacionada com o montante da produção.
Constata-se também que no sistema de partilha, a remuneração era baseada não só no
montante, no tipo e na quantidade do pescado como também no valor alcançado em mercado.
Ou seja, esta forma de produção, além de enfrentar a inconstância das condições de produção
e do pescado, sofria ainda com a imprevisibilidade dos preços inerentes ao sistema de
comercialização. O sistema de partilha na produção em traineiras interava, portanto, a idéia de
co-participação neste processo.
Vale ressaltar que as traineiras são constituídas de um casco, um convés, uma casa
central e um grande espaço interior, o porão. Fazem uso de motores melhores, podem utilizarse de equipamentos mecânicos, possuem local para armazenamento e alojam a tripulação,
além de abrigá-la contra o mau tempo. Apresentam, portanto, melhores condições de trabalho
que as canoas. Comportam de 10 a 20 trabalhadores, podendo embarcá-los por um período
maior, e há a divisão técnica do trabalho no seu interior.
Por atingirem locais mais distantes e também em função dos altos custos da produção
nas traineiras, o que se percebia era uma especialização na produção. Principalmente as
grandes traineiras, estas davam preferência à captura de sardinha e cavalinha. Esta
especialização acarretava a diminuição da “imprevisibilidade” na pesca, e ainda tinha como
mercado consumidor, as fábricas de enlatamento de pescado cujos preços eram controlados de
tempos em tempos, mediante combinações entre patrões.
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Para os pescadores, a produção em traineiras representaria não só uma maior
estabilidade como também a possibilidade de aumento de remuneração em relação à
produtividade das canoas. Mas o que ocorria é que eles não sentiam naquela transição de
modo de produção, nem a primeira nem a segunda melhoria. Percebiam, isto sim, uma perda
quanto ao espírito de companha antes existente.
Com as traineiras, surgiu a figura do armador como proprietário não-trabalhador;
havia uma diferenciação social interna na qual ao mestre era atribuído um outro significado, e
surgiram também as posições com vantagens.
Em Jurujuba, a legitimidade do sistema de partilha, antes existente, fora abalada em
função de problemas que vieram a ocorrer na distribuição das partes, surgindo o vínculo de
assalariamento pelo regime de embarque. Este não só impossibilitava uma noção de todos os
trabalhadores juntos com um mesmo interesse, como também inviabilizava a idéia de unidade
de produção como unidade de agregação social.
O proprietário da embarcação, o armador não-trabalhador, não embarcava e a sua
relação com os companheiros não se dava de forma direta já que um armador era proprietário
de mais de uma embarcação. Cada uma delas, ou seja, cada unidade produtiva era autônoma,
seguia a direção de um mestre e possuía guarnição própria.
A figura do encarregado, o gerente das questões referentes ao processo de produção
em terra, assumia diversos papéis, inclusive dirigia e cuidava do dinheiro, além de fazer a
mediação na comunicação com o armador. Ele era responsável por todas as unidades
produtivas de um mesmo proprietário.
A produção nas traineiras representada como moderna e dinâmica se opunha, portanto,
ao regime de produção de canoas atrelado ao sistema de companha. Tratava-se de uma
produção de base capitalista. A produção capitalista se caracteriza pela presença de um nãotrabalhador. Nela, além dos trabalhadores há a figura do proprietário dos meios de produção
que determina as condições de produção de forma a garantir a reprodução do processo,
enquanto que na pequena produção mercantil o proprietário dos meios de produção também
se identifica como trabalhador, além de existir um sentimento coletivo de cooperação entre os
trabalhadores da pesca. Estes últimos estabelecem uma ligação com os meios de produção
mediante a relação de apropriação real. Desta forma, o valor gerado pelo trabalho excedente
poderá ser direcionado de maneiras diferentes dependendo da forma de produção em questão.
No caso da pequena produção mercantil, por exemplo, este valor será apropriado pela própria
comunidade, ao passo que na produção capitalista ele será apropriado por um dos indivíduos
do sistema. (DUARTE, 1978)
45
Em Jurujuba, na produção do pescado através das traineiras grandes, percebia-se um
nível mais alto de interdependência entre os trabalhadores e também uma produtividade maior
da atividade, além de uma subordinação a um capital e a capitalistas distantes do processo de
produção direto. Conservava-se ainda o elo de apropriação real entre o trabalhador e os meios
de produção e a introdução da maquinaria era discreta. Neste bairro de pescadores, a forma de
produção capitalista, portanto, coexistia com a pequena produção mercantil. Percebia-se
ainda, uma resistência da subordinação formal à subordinação real do trabalho ao capital.
(DUARTE, 1978)
A produção das traineiras embora apresentasse um aumento nas forças produtivas, não
conseguia superar as questões da aleatoriedade e inconstância na captura do pescado,
incluindo aí as más condições meteorológicas e a limitação do mercado, dentre outros
aspectos que não permitiam um real planejamento de como se daria a produção. A baixa
produtividade, por sua vez, impossibilitava uma grande acumulação, fato que gerava uma
exploração da força de trabalho, e em conseqüência a dificuldade de desenvolvimento das
forças produtivas. Para a inviabilização da acumulação contribuiu também, a incapacidade do
mercado consumidor em absorver a quantidade de pescado e as falhas por parte do governo
em propiciar condições para a acumulação nesse âmbito, além do desconhecimento relativo à
abundante capacidade de captura no mar, que também implicava na forma insuficiente com
que se investia o capital acumulado na produção da pesca.
Constata-se que a pesca realizada no âmbito da produção capitalista se mantinha
devido a uma maior exploração do trabalho humano em conseqüência da sua baixa
capacidade de negociação em função até mesmo do sistema jurídico a que se vinculava. Daí
os armadores atuavam de forma a controlar radicalmente essa força de trabalho.
As condições de trabalho nas traineiras apresentavam dois aspectos: a) o conhecer
tradicional do pescador não tinha tanto valor, a sua prática ficava reduzida àquela do
trabalhador não-proprietário; b) uma divisão técnica do trabalho, onde não se valorizava a
qualificação ampla e sim uma adaptação à determinada tarefa integrante do processo
produtivo, situação própria das grandes unidades de produção.
A sorte era condição de suma importância na produção na pesca, na relação com o mar
e com o peixe. Na relação com o mercado e na produção nas traineiras a sorte era importante,
porém em menor escala. “(...) O mar e as condições de produção do pescado permanecem
como o lugar da resistência ao trabalho, do limite a ser enfrentado, com boa ou má sorte.”
(DUARTE, 1978, p. 71)
Pode-se dizer que a pescaria incluía o processo de trabalho e os meios de trabalho.
46
Quanto à tripulação das traineiras grandes, esta além de trabalhar no mar, trabalhava também
em terra, quando havia necessidade de reparar a rede. Já o objeto de trabalho - o peixe - este é
um ser vivo que possui costumes próprios, incluindo aí o fato de que ele se protege das
práticas produtivas, o que implica na necessidade de um conhecimento específico por parte
daquele que atua no processo de produção do pescado.
No processo de organização de uma companha, ocorria a chamada "emenda" quando o
trabalhador, que se encontrava desempregado ou saindo de uma companha para outra, atuava
casualmente em alguma outra unidade de trabalho. Essa cooperação momentânea era bastante
interessante já que o pequeno produtor podia fazer uso de trabalhadores da pesca bastante
qualificados e sem vínculo, pelos quais ele remunerava de forma tal que fosse mais caro que
os trabalhadores da sua companha, porém mais barato do que aqueles das grandes unidades de
produção. E para o trabalhador, esta remuneração era bastante necessária.
O serviço de emenda remetia a aspectos tais como a manutenção daquilo que se
entendia por qualificação existente na pequena produção e o reconhecimento por uma ajuda
de fora. Para o pequeno produtor era importante considerar a utilização dessa força de
trabalho como uma ajuda, evitando assim a condição de assalariamento e reafirmando a idéia
de interesse comum existente na companha.
O sistema de partilha, integrante da lógica da pequena produção, consistia na divisão,
entre o proprietário e os trabalhadores não-proprietários, da quantia obtida numa saída de
pesca. Na pequena produção, ela se realizava da seguinte forma: ao retornar do mercado, o
mestre retirava, do total do montante, a quantia referente às despesas comuns, incluindo aí o
combustível e as taxas; e às vezes, também, a alimentação, o gelo etc. A partir daí ele dividia
o restante de acordo com a soma ponderada das partes de todos os trabalhadores. Esse número
de partes geralmente totalizava em 14 a 30. Ao proprietário dos meios de trabalho cabia,
aproximadamente, 50% do valor, que se subdividia em partes da proa como proeiro e partes
das redes e da canoa, garantindo assim a reprodução do sistema. Nas traineiras, no entanto, a
partilha era percebida como um salário. (DUARTE, 1978)
Esse outro sistema de produção era entendido pelos trabalhadores como regime de
embarque. A carta de embarque assinada representava a segurança e o reconhecimento de
uma sólida relação que se dava através do assalariamento. A questão dos direitos, por outro
lado, era sentida pelos pequenos produtores como a única desvantagem com relação às
unidades capitalistas, já que a garantia dos direitos pelo embarque era de suma importância
para o pequeno produtor.
No entanto, o pequeno produtor se via impossibilitado de embarcar seus
47
companheiros, expondo-se assim à fiscalização da Capitania dos Portos que muitas vezes não
admitia que as pequenas embarcações deixassem de regularizar a situação trabalhista de sua
companha. Freqüentemente, o que ocorria era a sua inscrição como trabalhador autônomo, o
que na verdade reforçava a questão da ilegitimidade pelo não-embarque dos pescadores, uma
vez que estes não teriam acesso aos direitos jurídicos obtidos através da carta de embarque
assinada.
A traineira era considerada pelo pequeno produtor, como a unidade de produção onde
a estabilidade era total, ao contrário da pequena produção pesqueira onde o pescador dependia
da sorte e vivia uma constante insegurança. Equivaleria dizer que o trabalho humano, em
conjunto com os instrumentos de trabalho mais potentes, pudesse ser mais forte que a
natureza.
Todo esse poder era também percebido no "domínio das condições de mercado e das
relações com as instâncias do poder da sociedade abrangente"; ou seja, eles tinham o acesso
livre, não precisando de mediadores nas transações. Os próprios armadores se qualificavam
como poderosos. Eles tinham autoridade para efetuar inscrições, ou seja, eles tinham o
domínio também sobre as documentações, na determinação dos direitos e deveres existentes
numa relação social. Tratava-se da relação de poder sobre aqueles que não tinham o domínio
da escrita. (DUARTE, 1978)
Mais especificamente, o armador era aquele que não trabalhava mais, embora já
tivesse trabalhado, o que lhe assegurava certa legitimidade diferentemente daqueles que não
trabalhavam. Mas de qualquer maneira, nas traineiras tinha-se o armador que não trabalhava e
os companheiros, ou seja, os trabalhadores que viviam a dependência e a instabilidade
existentes nesta forma de produção. Esse trabalhador era o reflexo da expropriação dos meios
de trabalho, da condição de submissão ao assalariamento, ao proprietário da embarcação, a
uma nova lógica de produtividade. O conhecimento da arte de pescar e ainda o controle sob a
forma como se dava a sua apropriação dos meios de produção, não eram mais aí valorizados.
(DUARTE, 1978)
O pequeno produtor apontava uma ilegitimidade na atuação das traineiras, ressaltando
as conseqüências negativas da competição pouco honesta que estas engendravam, já que
desordenavam o mercado de trabalho e atraíam os melhores profissionais, tornando menor a
produtividade na pequena produção. "Competição também pelos recursos escassos da
sociedade: pelo monopólio do crédito, das facilidades fiscais e do abastecimento das
enlatadoras de sardinha". Uma outra forma de competição se dava com relação ao peixe, já
que as traineiras, por utilizarem meios de produção mais poderosos, exerciam uma pesca mais
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predatória. Elas atuavam de forma a desequilibrar a natureza, afugentando os peixes,
impossibilitando a produção dos "pequenos". (DUARTE, 1978, p. 118-119)
Em Jurujuba, constatava-se, portanto, a permanência do modelo de companha,
embora não se verificasse mais o espírito de comunidade, e sim uma crescente diferenciação
social. A prática da pequena produção mercantil já se encontrava subordinada ao modo de
produção capitalista. Um outro aspecto a ser ressaltado refere-se à "acumulação diferencial",
ou seja, ao mesmo tempo em que para obter estabilidade e melhor prognóstico na pesca, faziase necessária a aquisição de instrumentos de trabalho mais poderosos, este era também o
caminho para a diferenciação, que ocorria a partir da acumulação que era propiciada neste
quadro. Esta diferenciação, embora fosse sedutora, era também responsável pela noção de
ilegitimidade atribuída ao armador.
O pequeno produtor sentia que precisava acumular, não para alcançar o posto de
armador, ou seja, não se tratava de uma “acumulação econômica” mas sim uma “acumulação
social”. Enquanto a categoria armador equivalia a um empresário de pesca, do outro lado
estava o pescador artesanal, ou seja, o pequeno proprietário. Em Jurujuba, essa categoria era
uma outra forma dos pequenos pescadores denominarem o pescador rico, e dos pescadores
não-proprietários denominarem os grandes proprietários de traineiras. Os armadores não
costumavam tachar-se desta forma, porém assim se viam. Eles eram os proprietários no
sistema de embarque. Os pequenos produtores viam na trajetória desses armadores, um
sucesso na luta da pesca, embora apontasse para o processo de “acumulação diferencial”.
(DUARTE, 1978)
O antagonismo entre a atuação de um pequeno pescador e a de um armador era
estabelecida ao longo de uma prática que na medida em que se realizava ia se consolidando.
Os armadores apesar de não pescarem, carregavam com eles essa identidade de
pescadores, devido ao passado quando trabalhavam em canoas. No entanto, os armadores
eram os grandes padrinhos, devendo significar um modelo de conduta, uma possibilidade de
ajuda e além de tudo serem singulares. A imagem deles estava atrelada a de uma empresa, a
qual era o reflexo das peculiaridades de seus respectivos armadores. Essas peculiaridades
eram importantes na concorrência entre traineiras, principalmente pelo reduzido número de
trabalhadores, naquela época, existente.
Duarte (1978) aponta para o fato de que para os trabalhadores da pesca em Jurujuba,
os
sistemas
de
trabalho
desenvolvidos
tanto
na
canoa/companha
quanto
na
traineira/embarque, estavam atrelados a várias “continuidades” relativas aos meios de
produção, já que não se verificava na pesca de traineiras, uma produção capitalista radical que
49
englobasse “cooperação” e “maquinismo”, que submetesse o trabalho ao capital.
O modo de produzir das traineiras, a forma como o trabalhador se ligava aos meios de
trabalho, tudo isso era muito parecido com o que ocorria na pequena produção. A distinção se
dava na "escala de produção", no "ritmo das jornadas", na divisão do trabalho mais acentuada,
embora ainda fossem comparáveis à produção nas canoas.
Uma outra constatação da “continuidade” encontrava-se na relação entre o armador e
os pescadores com vantagens, ou seja, o grupo dos qualificados e também entre algum
companheiro que tivesse trabalhado antes com o armador. Todo esse pessoal caracterizava a
continuidade daquela companha na qual o armador atuara anteriormente.
A continuidade pelo trabalho sofreu uma ruptura, portanto, na medida em que o
armador local distanciava-se da companha, por atuar como um não-trabalhador, ao mesmo
tempo em que o identificava com os outros membros de sua classe.
A imagem da categoria do armador se distanciava e muito daquela existente para o
pescador, devido à atuação empresarial do primeiro. Ele possuía mais de uma embarcação e
ficava longe do processo de produção imediato. Passava a atuar como um gerente, em função
de sua situação econômica. Sua posição era superior e externa à unidade de produção, o que
propiciava uma percepção impessoal da empresa. Ao contrário do pequeno produtor que se
identificava totalmente com sua embarcação. (DUARTE, 1978)
No processo de trabalho na pesca em traineiras, o armador não se preocupava mais
com o ensino formal para o filho, mas sim com o equilíbrio entre a quantidade de
embarcações e de filhos.
Os armadores locais competiam entre eles pelos poucos recursos existentes e também
pela luta para ser bem sucedido numa situação que dizia respeito a todos. Para tanto,
formavam-se grupos compostos de unidades economicamente parecidas. Os grandes
proprietários tentavam impedir que novos concorrentes aparecessem, o que comprometeria
mais ainda o reduzido número de trabalhadores da pesca disponíveis para as grandes
traineiras.
As fábricas de enlatamento de sardinha que consumiam quase que totalmente o
produto da pesca das grandes traineiras, constituíam-se de um forte órgão de classe e
encaravam os grandes produtores de igual para igual, brigando sempre por preços mais em
conta durante a negociação desse produto de que faziam uso. Ao passo que os armadores se
preocupavam com a possibilidade dessas fábricas, devido ao seu alto poder econômico,
voltarem a pensar na produção do pescado por conta própria, deixando-os fora de uma
expressiva frente de comercialização do produto.
50
Já na relação com os órgãos do Governo era comum a prática de fiscais oficiais das
relações de trabalho no mar receberem alguns benefícios pagos pelos armadores, garantindo a
impunidade na exploração da força de trabalho.
Tudo isso refletia o ápice da situação dos armadores que haviam passado pela já
mencionada acumulação diferencial. Os próximos armadores já seriam grandes proprietários.
A prática da produção nas traineiras provavelmente iria se modificando em função de novas
condutas que iriam se distanciando da forma precedente e, portanto, da condição de
legitimidade e continuidade. (DUARTE, 1978)
Os trabalhadores da pesca em Jurujuba percebiam que trabalhar como operário, para o
qual supõe-se uma qualificação manual/técnica, oferecia uma estabilidade através da carteira
assinada, ao passo que trabalhando em traineiras eles usufruíam maior liberdade. Alguns
deles, no entanto, alcançavam a almejada condição de trabalhador embarcado com vantagens:
possuíam a carta de embarque, que é o correspondente marítimo da carteira de trabalho,
exerciam uma função qualificada e eram melhores remunerados, à medida que recebiam um
maior número de partes.
Como o alcance dessas posições não dependia apenas de qualificação e não se dava de
forma impessoal, ao chegar numa idade mais avançada, aqueles que não haviam conseguido
essas posições, não tinham nenhuma segurança. Caracterizava-se, portanto, um outro período
de relacionamento com os aspectos concernentes à subsistência na produção pesqueira.
Mesmo assim, a idéia de ser livre vivendo do mar, ainda era bastante forte.
Segundo Duarte (1978), muitos trabalhadores do mar preferiam a liberdade sem
estabilidade na pesca à falta de liberdade sem estabilidade fora da pesca. Como forma de
suprir a subsistência do dia-a-dia, também mergulhavam para catar outras espécies marítimas.
As trajetórias de vida dos assalariados da pesca consubstanciavam-se, portanto, das difíceis
condições de trabalho que enfrentavam, visando o sustento da família e sonhando com a
liberdade e a estabilidade.
As traineiras equiparavam-se a pequenas empresas autônomas e de uma certa forma
competitivas, apresentando diferentes tamanhos. Esses tamanhos demonstravam a
desigualdade socialmente importante entre as pequenas e as grandes embarcações. A
diferença física entre traineiras grandes e pequenas era de suma importância para as questões
sócio-econômicas. Os grandes armadores possuíam várias traineiras grandes enquanto que as
traineiras pequenas constituíam os únicos barcos dos pequenos armadores. Estes últimos
assemelhavam-se aos pequenos produtores, inclinando-se a não mais fazer uso de suas canoas
anteriores, enquanto os grandes armadores iam deixando para trás as pequenas ou a pequena
51
traineira que antes possuíam.
Na pequena produção faz-se uma associação do proprietário com a unidade de
produção, ao passo que nas unidades capitalistas esta identificação inexiste. Fato que além de
evidenciar o modo de produção, demonstra também a forma como o trabalhador se empenha
no trabalho dessas unidades.
Quanto ao ritmo e à intensidade do processo produtivo das traineiras, estes eram
bastante distintos. As viagens das pequenas traineiras eram de pequena duração, podendo
levar de 12 horas a dois dias no máximo. Por serem aptas à captura de diversas espécies,
podiam alcançar uma produtividade mais estável que a das traineiras grandes, as quais
estavam voltadas somente para os cardumes de sardinha. Este aspecto é importante já que o
trabalhador recebia por produção, isto é, ele não era remunerado através de salários fixos, a
sua remuneração dependia do quanto era produzido. (DUARTE, 1978)
Embora o proprietário conseguisse estabelecer equilíbrio entre os períodos de maior e
menor intensidade do trabalho ao volume previsível de produção, para o trabalhador o mesmo
não ocorria, uma vez que ele não conseguia meios de sobrevivência nestes períodos de baixa
produção. Tanto as traineiras pequenas quanto as traineiras grandes, conseguiam no verão
uma maior produtividade, levando a um montante da produção que garantia à força de
trabalho uma remuneração mais satisfatória. Porém, a diminuição de facilidade na captura do
pescado que ocorria no inverno levava a uma baixa produtividade que iria comprometer,
sazonalmente, a condição mínima de reprodução da força de trabalho até mesmo das
pequenas traineiras. Assim sendo, em função do regime de remuneração que se utilizava na
produção pesqueira, o valor e a regularidade dos salários eram afetados pelas diferenças que
ocorriam na intensidade da produção. Fato que levava a um rodízio de trabalhadores nas
unidades produtivas.
Quanto ao sistema de vantagens e a segurança do embarque, pode-se dizer que o
embarque com vantagens não se realizava nas pequenas traineiras, devido a sua menor
produtividade e a menor condição de sua reprodução. Nestas unidades o embarque estabelecia
uma relação de remuneração menos estável e também as vantagens não eram percebidas como
uma forte diferença no salário. Em Jurujuba, embora a experiência do trabalhador da pesca
achasse melhor o trabalho nas traineiras pequenas, era nas traineiras grandes que buscavam as
posições com vantagens. Somente ficava de fora dessa situação o mestre-proeiro que ocupava
posição de distinção tanto nas pequenas quanto nas grandes traineiras. Esse posto era ocupado
geralmente pelos proprietários e destacava-se em relação às demais posições com vantagens.
É neste cenário de diferenças entre barcos pequenos e barcos grandes que os
52
pescadores não-proprietários desenvolviam a sua prática e que de acordo com as condições de
trabalho que iam se apresentando ocorria a sua mobilidade entre as unidades de produção. Em
geral, quanto menos idade tivesse o trabalhador, maior seria a sua disposição para mobilidade
já que ele era mais independente, menos qualificado, era mais forte fisicamente, e almejava ir
além da subsistência do dia-a-dia. (DUARTE, 1978)
Quando atingiam a meia-idade, as trajetórias ficavam mais sedimentadas, fosse na
segurança advinda das vantagens, fosse na liberdade de alguma forma alcançada, ou ainda,
quando sem opção, submetiam-se a alguma condição de trabalho.
Constata-se que além da "oposição entre barcos grandes e barcos pequenos" e da
"alternância entre as estações", existia um outro fator importante que diz respeito às condições
de produção, trata-se do "encerramento de cada ciclo anual". Os trabalhadores embarcados ou
não, no final do ano, recebiam uma "caixinha", ou seja, um pagamento que equivalia
aproximadamente ao décimo-terceiro salário e às férias, e que ajudava na sua subsistência.
Por ser verão, a passagem de fim de ano era a época mais propícia para sair de um barco para
outro, inclusive porque a caixinha só era paga totalmente a quem tivesse cumprido um ano de
trabalho em dada unidade de produção, fato que não favorecia uma transição ao longo do ano.
O período de um ano possibilitava ao trabalhador analisar, em função das suas condições de
sobrevivência, se devia ou não continuar num determinado barco. Ele poderia deixar a
embarcação ou solicitar o embarque. O embarque, na visão do trabalhador, se daria se o
patrão fizesse uma boa avaliação do profissional, recompensando-o com a assinatura da carta
de embarque e algumas vantagens. (DUARTE, 1978)
A lógica da mobilidade dos trabalhadores estava associada às condições de produção
de cada unidade produtiva. A "regularidade" e a "produtividade média" em cada embarcação
eram importantes na escolha entre barcos grandes e barcos pequenos. A regularidade remetia
à questão da remuneração por produção, à regularidade das saídas de pesca e ao
descontentamento frente aos grandes intervalos de tempo sem trabalho, conforme
determinação do armador. Enquanto que a produtividade não só englobava a regularidade
como também abrangia as condições dos meios de trabalho e o seu possível ajustamento ao
processo de produção em pauta. Se os meios de trabalho fossem deficientes, isto afetaria a
produtividade, implicando na exploração do trabalhador o qual teria que intensificar ou
estender o seu trabalho, ou ainda sofrer uma redução na remuneração deste.
Embora as condições de produtividade nos barcos grandes exercessem uma grande
atração ao trabalhador, existia uma maior inclinação pelo trabalho nos barcos pequenos. Estes
últimos asseguravam, por menor que fosse, uma remuneração regular. Os trabalhadores
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podiam optar por embarcar ou não em determinada embarcação. A escolha pelo embarque se
daria somente quando as condições fossem consideradas satisfatórias. Ou seja, o trabalhador
percebia que sofreria uma maior submissão, mas ele avaliava se, em troca, haveria alguma
garantia.
Segundo a literatura, o trabalho de emenda era uma outra forma que o trabalhador
encontrava para garantir sua subsistência. Aí, o trabalho não possuía qualquer ligação com
outra embarcação que não fosse a sua de origem, a qual estava filiado. Desta forma, o
trabalhador ia suprindo as necessidades do dia-a-dia oriundas da inconstância do processo
produtivo da unidade a qual se encontrava vinculado.
A suspensão do trabalho por muito tempo, para que se fizessem os reparos nas
traineiras pequenas, levava à prática da emenda. Enquanto que nas traineiras grandes, quando
essas interrupções ocorriam, constatava-se a imposição do desembarque à maioria dos
trabalhadores.
O fato é que os grandes armadores não precisavam se preocupar com a ruptura de
vínculos entre a unidade produtiva e o trabalhador, já que possuíam outras embarcações as
quais possibilitavam sua sobrevivência econômica. Ao contrário dos pequenos armadores que
por possuírem um só barco buscavam manter os vínculos, na esperança de voltar à produção
logo após a realização do conserto.
A emenda demonstrava que a liberdade existente na pesca estava associada à
subsistência cotidiana. Ela ocorria casualmente, não agregava nenhuma segurança de direitos
trabalhistas e não levava em consideração a qualificação do trabalhador, o qual atuaria sempre
sem vantagens durante a emenda em outra unidade produtiva.
O autor deixa bem claro ao longo de sua pesquisa neste bairro de pescadores:
(...) a relação de apropriação real entre os portadores da força de trabalho e os
instrumentos de produção não sofre, mesmo nas traineiras grandes, aquele
corte radical que caracteriza a produção capitalista acabada, a "fábrica" onde
a onipresença do maquinismo e a exacerbada complexificação da cooperação
transformam o trabalhador em um apêndice irracional do processo; o
"apertador de parafusos" das linhas de montagem. (DUARTE, 1978, p.164)
Para tanto, um certo conhecimento na produção da pesca é essencial no engajamento
do trabalhador nesse processo de produção. Nas traineiras, esse conhecimento era
diversificado, ao passo que, na pequena produção ele estava totalmente calcado no saber fazer
do pequeno pescador. Essa diversidade podia se dar pela especialização que acarretava as
posições de cozinheiro e motorista, por exemplo, e que tinham uma atuação distante da
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pescaria em si; ou pela qualificação levando a posições qualificadas de mestre-de-rede e
mestre-proeiro lembrando o saber do mestre enquanto pequeno pescador. Inicialmente todos
eram trabalhadores de convés, com funções igualadas. Depois, passavam, no mínimo, por
uma das funções que levavam a vantagens independentemente de um saber específico. A
partir daí optava-se pelas tarefas mais especializadas ou através de outras se tinha o acesso às
tarefas de qualificação. (DUARTE, 1978)
Os trabalhadores do mar tinham, portanto, a sua probabilidade de sucesso relacionada
a sua trajetória. No entanto, podia haver maiores dificuldades nessa trajetória, fosse pela
prática do trabalhador, fosse pela sua situação dentro das unidades de produção, fato que
interferia na importância do investimento no saber como forma de alcançar a estabilidade.
O trabalhador, ao mesmo tempo em que se sentia “co-responsável” pelo êxito da saída
de pesca, já que a remuneração do seu trabalho nesse tipo de produção atrelava o valor do
salário ao “valor realizado da produção”, ele também vivia o tão conhecido “enfrentamento
do trabalhador com o monopólio dos meios e condições de produção nas mãos dos
armadores”. (DUARTE, 1978, p.167)
Desta forma, os trabalhadores ou mostravam-se dispostos e interessados em realizar o
melhor no processo produtivo, empenhando-se no trabalho de forma a garantir a sua
reprodução enquanto trabalhador da pesca; ou muitas vezes, ultrapassavam esse limite,
atendendo de maneira ilegítima àquilo que lhe convinha em combinação com o que convinha
ao armador. Percebe-se que a briga pelas vantagens provocava a competição entre os
trabalhadores. Quando vencidos, utilizavam-se da possibilidade de sair para um outro barco, e
começar tudo de novo.
Um outro aspecto a ser ressaltado, trata-se da instituição do compadrio. Esta ocorria aí
da mesma forma que se dava com os pequenos produtores. A relação de compadrio existia
tradicionalmente e era de grande expressão social.
Existia a relação de compadrio clássico e aquela de padrinho X afilhado para as
ligações informais. Porém enquanto o pequeno produtor vivia a questão de créditos e suas
relações com os pescadores ricos e órgãos do Governo, para o trabalhador não existia o
problema do crédito, já que para sobreviver não precisava da reprodução dos meios de
produção. Podia sim, utilizar-se de empréstimos, mas estes não envolviam instituições
financeiras, eram realizados num âmbito menor. (DUARTE, 1978)
A busca por esse apadrinhamento se dava com o objetivo de estreitar as relações com
parentes distantes socialmente. Ele podia abranger um pequeno produtor próspero ou um
armador ou outros familiares em boas condições econômicas e que não trabalhassem na pesca
55
ou ainda alguma pessoa influente que a família tivesse travado conhecimento ao longo de sua
vida. A relação de apadrinhamento com armadores não tinha caráter pessoal e não se tratava
de uma ajuda recíproca. Não se caracterizava como uma relação de proteção entre trabalhador
e empregador, até porque só muito raramente se trabalhava em embarcação de padrinho.
Quando ocorria o rompimento de uma relação de apadrinhamento, podia inclusive se tornar
inexeqüível o trabalho no barco do ex-padrinho. Mesmo que ocorresse uma relação padrinhoarmador, o vínculo não traria nenhuma vantagem para o trabalhador, tudo dependeria de sua
capacidade pessoal. (DUARTE, 1978)
1.3.2 O PROCESSO DE TRABALHO
Quanto ao processo de trabalho nas traineiras, este era bastante abrangente. Era um
trabalho típico da produção capitalista, cujas características estavam visíveis na sua "jornada",
na sua "intensidade" e "produtividade".
Ressalta-se neste tipo de produção, a ausência de sistematicidade e de constância do
processo. Se por um lado, era possível que se realizasse o cálculo da "jornada de trabalho"
média anual de um trabalhador; por outro, a relação existente entre o tempo de trabalho
necessário e tempo de trabalho excedente implicava numa noção diferente do tempo de
trabalho dos operários dos clássicos setores da produção. Outro aspecto importante desse
processo é o da remuneração por produção, onde a idéia de co-responsabilidade pelo valor do
produto é a base de toda a sua prática. (DUARTE, 1978)
A saída de pesca constituía a unidade básica do processo de trabalho. Ela consistia na
ida do barco aos locais escolhidos para a pescaria, na realização da pesca e na sua volta ao
local de onde partira. Nesta prática de produção, incluía-se também as tarefas de preparação
para a viagem e as atividades relacionadas à entrega do produto para a comercialização. O
processo de trabalho constava principalmente da saída de pesca e da pescaria.
A saída da pesca se dava após a fase preparatória, na qual o barco era abastecido, sob
orientação do contramestre ou mestre-proeiro, de combustível, gelo e alimentos que seriam
consumidos ao longo da viagem. Para tanto, contava-se com a atuação de um ou mais
geladores e dois trabalhadores que exerceriam alternadamente as tarefas comuns. Desta etapa
também participava o motorista que tinha o domínio das máquinas que ficavam no porão e
cuidava da parte técnica indispensável ao seu funcionamento. Após o embarque da guarnição,
sob a direção do mestre-proeiro, dava-se a saída da embarcação. Era a hora em que toda a
guarnição realizava o enforcamento, ou seja, suspendia o caíque por meio de cordas e
56
amarrava-o à popa do barco, além de suspender também a âncora. No trajeto até o ponto de
pesca, o motorista trabalhava no porão e um par de trabalhadores atuava no leme e na proa
guiando o barco. Acolhendo ordem do mestre, a cada duas horas esses dois trabalhadores
sofriam um revezamento, do qual ficavam fora os qualificados, tais como, mestre,
contramestre, motorista e cozinheiro e os iniciantes com pouquíssima qualificação. Chamavase quarto esse revezamento que começava no carregamento da embarcação e finalizava nas
tarefas de arrumação do barco, quando este voltava ao ponto de onde partira. O cozinheiro, de
acordo com a distância do percurso, desenvolveria ou não o seu trabalho de preparação dos
alimentos, sempre seguindo ordem do mestre. (DUARTE, 1978)
Ao chegar no local escolhido, iniciava-se o processo da pescaria. O leme era de
responsabilidade do contramestre, ao passo que o mestre-proeiro colocava-se de pé à frente do
barco, sempre atento a qualquer vestígio de presença de cardumes no mar. Se na embarcação
houvesse sonda, esta seria de responsabilidade do sondeiro, que a partir dos sinais
provenientes deste instrumento, inteirava o trabalho do proeiro. A busca pelo peixe, também
chamada de correr o peixe, podia levar uma noite inteira com os trabalhadores se revezando
informalmente na proa. O cerco só se iniciava após a aprovação da captura do pescado. Cabia
ao proeiro tanto a aprovação quanto o comando da captura. Uma vez aprovada, dava-se maior
velocidade ao barco, direcionando-o de forma a fazer um círculo ao redor do cardume,
soltando-se então, a rede numa cadência própria abrangendo toda aquela região demarcada.
Além do proeiro, do contramestre e do motorista, também trabalhavam neste processo, os
caiqueiros, o chumbeleiro e o corticeiro. Quanto aos caiqueiros, estes iam no caíque que,
depois de desamarrado, servia como uma bóia para a rede lançada. Já o chumbeleiro, este era
encarregado de largar, de forma cadenciada, os chumbos que constituiriam a extremidade
inferior da rede. O corticeiro era aquele trabalhador que soltava o caíque, ou seja,
desamarrava a corda que o prendia à popa, assim que os caiqueiros estivessem dentro dele.
(DUARTE, 1978)
Segundo o autor, constata-se que após o cerco, dava-se o carregamento da rede. Nesta
etapa, o fundo da rede era fechado transformando-se em um saco. Para tanto, esticava-se a
carregadeira, uma corda grossa, que passava entre os chumbos. Tarefa realizada apenas por
dois homens, uma vez que contava com a energia do motor para girar duas polias. Avaliava-se
então o cerco a partir da qualidade e da quantidade de pescado capturado. Em se tratando de
avaliação positiva continuava-se com o carregamento, embora agora toda a guarnição
estivesse envolvida. Somente o motorista e o cozinheiro não participavam dessa tarefa. O
recolhimento da rede constituía-se de uma tarefa realizada, cuidadosamente, em um dos lados
57
do barco. Ela deveria ser acomodada de tal forma que, terminado o lanço, a rede pudesse ser
novamente lançada. Neste sentido, os corticeiros guardavam as bóias da extremidade superior
da rede próximo à popa, enquanto que o chumbeleiro guardava os chumbos no eixo de ferro,
além daqueles que trabalhavam no corpo central da rede (trabalhadores da panagem). O
caiqueiro, no interior do caíque, e também o mestre e o contramestre ajudavam durante todo o
processo. A operação, no entanto, seria interrompida assim que o pescado alcançasse a beira
da embarcação, dentro do saco em que se transformara a rede.
O carregamento da rede só terminava após o transporte do peixe da rede para os
porões, ou seja, após o charrico2. Nesta etapa, era necessária a participação de toda a
guarnição. O charrico era movido de cima para baixo até a rede. E, depois de enchido de
pescado, ele era suspenso, para então ser despejado sobre o convés para que pudesse chegar
ao porão através das pequenas passagens existentes, e ser resfriado com o gelo que se
encontrava guardado na bodega, localizada no
porão. Finalizada toda essa etapa, os
trabalhadores com menos qualificação ficavam responsáveis por guardar os instrumentos de
trabalho utilizados durante o processo. Uma atenção especial era dada às cordas utilizadas
para a movimentação do pau de carga, estas deveriam ser colocadas em vários locais do
convés, de tal forma que ficassem preparadas para ser utilizadas num próximo lanço.
Vários lanços podiam ocorrer durante uma noite de trabalho. Após um lanço, tomavase um café, e enforcava-se o caíque, mais uma vez. A partir daí o mestre fazia a apreciação de
todo o procedimento, sempre atento aos comentários da guarnição.
Quando os porões ficavam cheios ou quando os meios de produção se desgastavam,
não havia mais condições de saída. Voltava-se ao local de partida, onde o mestre e um
trabalhador qualificado passavam para o armador ou para o seu encarregado o produto da
pescaria e eram orientados quanto à comercialização do pescado.
Um trabalhador externo à pesca, o descarregador, cuidava do processo de descarga do
peixe. Sua tarefa constava do levantamento de cestos cheios de peixe do porão para o convés
e sua remuneração que era feita por caixa, enquanto unidade de comercialização, fazia parte
das despesas gerais. A guarnição também colaborava na descarga. Os geladores retiravam o
pescado semicongelado dos porões e os outros trabalhadores de convés, não-qualificados,
2
O nome desta operação coincidia com a denominação dada a um importante instrumento de trabalho, o qual
assemelhava-se a um grande coador de rede e possuía um cabo de madeira comprido amarrado ao pau de carga
por uma corda. Este último consistia num grande eixo preso ao mastro da proa, que se movia e era operado pelo
homem, servindo de guindaste. Chamava-se cafifeiro, o trabalhador que atuava na movimentação das cordas
que faziam o pau de carga funcionar. (DUARTE, 1978)
58
levavam os cestos cheios de peixe do convés para as caixas, atirando-os de mão em mão.
(DUARTE, 1978)
O trabalho nas traineiras constituía-se não só da saída de pesca como também do
trabalho de preservação da rede da embarcação, realizado em terra. Esse trabalho era
esporádico já que as redes eram bem fortes. Cabia ao mestre-de-redes, trabalhador com
vantagens, orientar as atividades de atar a rede, ou seja, de remendá-las com fio de náilon.
O ponto mais importante do processo de trabalho consistia, portanto, na saída de
pesca, na qual constata-se uma subordinação direta do trabalhador. O trabalhador encontravase permanentemente ligado à pescaria, fosse na saída de pesca, fosse na sua própria vida.
Enquanto os intervalos de tempo existentes entre um lanço e outro, por exemplo,
representavam a espera preocupante da hora de pescar, as horas de descanso na vida
representavam também a espera preocupante das saídas de pesca inesperadas. O mesmo não
ocorre com o trabalhador que atua num processo de produção regular, ou seja, ele tem tempo
para jornada e tempo para repouso bem distintos e definidos. (DUARTE, 1978)
Sabe-se que para o "operário clássico", a superexploração pode ocorrer diretamente
em função de uma maior jornada de trabalho, ou mediante a ruptura do seu tempo livre, ao
passo que para o trabalhador da pesca, a superexploração se dá a partir do uso excessivo de
sua força num processo de produção inconstante, que vem perturbar aquela difícil relação
entre o valor de sua força de trabalho, altamente flexível, e o salário médio que se dá de forma
fixa, constatando-se, por assim dizer, uma constante oscilação nos níveis da superexploração.
A produção da pesca nas traineiras apresentava uma característica na qual a superexploração
possibilitava que as unidades de produção atuassem com o seu grau mínimo de produtividade,
e este fortalecia a inevitável superexploração. E, além disso, pode-se dizer também, que neste
tipo de produção ocorria a extração de uma taxa elevada de mais-valia, a partir da forte
superexploração constatada. (DUARTE, 1978)
Segundo o autor, como conseqüência da superexploração, o trabalhador se utilizava da
mobilidade para sobreviver a tanta "irregularidade". Em geral, não aceitava sujeitar-se ao
regime das traineiras grandes, optando por trabalhar em traineiras pequenas devido a sua
"maior estabilidade do regime produtivo". Diante da mobilidade e da negação ao extenso
período de saídas e esperas das traineiras grandes, estas unidades de produção perdiam sua
força, observando-se ainda uma carência de trabalhadores nelas interessados.
Diante do exposto, os grandes armadores faziam uso de trabalhadores provenientes de
áreas de produção pesqueira debilitadas economicamente. Devido a pouca idade e a frágil
situação do mercado de trabalho com que deparavam no seu local de procedência, eles
59
submetiam-se à baixa remuneração da sua força de trabalho. Alguns deles alojavam-se nas
traineiras, entre uma e outra saída de pesca, e os gastos com a sua alimentação eram
descontados das despesas comuns.
Para os trabalhadores da produção pesqueira, as condições de trabalho nas traineiras
eram uma realidade que abarcava os problemas relacionados à instabilidade do trabalho no
mar, e também incluía o próprio processo de trabalho que nelas ocorria.
As traineiras, principalmente as pequenas, tornavam-se ainda menos seguras quando
voltavam carregadas, ao local de onde partiram. O seu espaço interno era deficiente e
desconfortável, e os trabalhadores sofriam o incômodo causado pelo movimento do barco,
devido à agitação do mar e também pela má alimentação e alojamento durante a viagem.
Mesmo depois que chegavam a terra, o mal estar físico também era grande, em conseqüência
do balanço do barco. Fato que inviabilizava a realização de algum outro trabalho físico ou
mental, entre uma saída e outra.
Os armadores não admitiam a ingestão de bebida alcoólica a bordo. Portanto, quando
iam a terra, no decorrer de uma saída, os trabalhadores procuravam pela bebida, além de
tomar banho e desenvolver uma atividade física de lazer.
O sacrifício era sentido por cada uma das categorias: o mestre-proeiro ficava na proa,
incumbido do correr o peixe, enfrentando o mau tempo, e sempre atento ao mar. O motorista
viajava no porão, ficando exposto ao vapor e à poluição proveniente da queima do
combustível, além de enfrentar a grande diferença de temperatura quando subia ao convés. Os
geladores trabalhavam no porão, no meio do gelo. Eram responsáveis pelo carregamento
deste, além de cuidarem do arrefecimento dos peixes do charrico e da descarga do pescado.
Os caiqueiros, nos caíques, expunham-se a cada lanço aos riscos no mar. Constata-se que os
armadores não forneciam qualquer tipo de proteção aos trabalhadores, já que isto implicaria
em alto custo.
Um outro aspecto muito importante, trata-se dos vínculos estabelecidos entre os
trabalhadores e os meios de produção utilizados na pesca em traineiras. Eles representavam
não só o locus como também os meios de consolidação do seu trabalho, independentemente
de quem fosse o seu proprietário. Neste modo de organização do trabalho, embora houvesse
uma ruptura na relação de propriedade, ainda ocorria "a relação de apropriação real entre o
trabalhador e os meios de produção". O mesmo não ocorre quando a organização do trabalho
se dá totalmente nos moldes da organização capitalista da produção, já que esta implica na
"submissão real do trabalho ao capital”. (DUARTE, 1978, p.200)
A partir da pesquisa de Duarte (1978), constata-se que em Jurujuba, embora houvesse
60
uma relação do trabalhador com os instrumentos de trabalho da pesca, percebia-se também
uma produtividade pouco expressiva no trabalho das traineiras, devido não só a pouca
inserção de novas tecnologias, como também em função do escasso desenvolvimento de
estudos sobre os recursos da pesca e sua captura, fatos que levavam a uma divisão do trabalho
pouco significativa e uma cooperação complexa pouco desenvolvida. Desta forma, o que
ocorria era uma superexploração do trabalho humano.
A manutenção das partes do barco, que eram diretamente ligadas ao processo de
produção, era considerada de responsabilidade do trabalhador enquanto que as outras partes
ficavam por conta do armador.
Os instrumentos de trabalho, apesar da forma pouco legítima com que se dava a sua
utilização, eram passíveis de identificação. Era o caso das embarcações que por serem
distintas umas das outras passavam por um processo de caracterização pessoal por parte dos
trabalhadores.
1.3.3 A REMUNERAÇÃO E OS DIREITOS
Quanto à remuneração daqueles que trabalhavam nas traineiras, esta era baseada na
produção e se dava sob a forma de partilha, ou seja, na distribuição das partes, a qual era
complementada por outras remunerações.
Em Jurujuba, denominava-se monte o “valor realizado em mercado após cada saída
de pesca (...)”. Abatidas as despesas comuns, o monte era dividido entre o armador ou seus
prepostos, entre si e a guarnição. Das despesas comuns constava o dispêndio com
combustível, gelo, alimentos, taxas e impostos, possíveis multas, encargos sociais do armador
e da tripulação, tarefas de desembarque e de comercialização do produto; mais uma taxa para
gastos de administração (5%). Feitas essas deduções, restava então o bolo a ser dividido. A
partilha era feita a partir do somatório das partes que cabiam aos trabalhadores além das
partes do armador, inclusive daquela em ele representava os instrumentos de trabalho, de
forma semelhante ao que ocorria na pequena produção mercantil. Era o armador quem decidia
sobre os cálculos da partilha, sempre de acordo com a forma de organização capitalista. Se
uma pescaria não tivesse sido boa, ele poderia não abater do monte todas as despesas comuns,
a fim de evitar que a tripulação precisasse abandonar a traineira por não receber o mínimo
imprescindível. Até que uma saída de pesca tivesse sucesso, esses atrasados iam se
adicionando a tantos outros. (DUARTE, 1978, p. 207-208)
O armador também se utilizava de um sistema de vales, uma espécie de pagamento de
61
aluguel, que permitia que os trabalhadores sobrevivessem e não se afastassem da unidade de
produção no período das esperas. Contudo, com a soma dos atrasados e dos vales, os
descontos a serem abatidos do monte, poderiam atingir valores muito altos a ponto de
implicar numa reduzida remuneração dos trabalhadores. Era comum também, o armador
descontar 5% do valor das partes, toda vez que o pescado fosse vendido para as fábricas de
enlatamento. Estas, dificilmente, efetuavam o pagamento do pescado num prazo inferior a 30
dias após a sua entrega. Desta forma, o armador considerava uma antecipação concedida ao
trabalhador, aquele pagamento das partes que era feito assim que o produto era desembarcado.
No entanto, de uma forma ou de outra, os trabalhadores acabavam sempre pagando essa
diferença. Eles também podiam ser prejudicados, fosse pelo descontrole do valor dos
descontos, ou pelo equivocado número de partes, uma vez que não participavam dos cálculos
feitos pelo proprietário. Além da remuneração por partes, o trabalhador recebia também o
pagamento da caixinha e do salário-família e ainda sofria o desconto previdenciário. A
caixinha equivalia ao décimo-terceiro salário e férias que caberiam aos trabalhadores no final
do ano. Todos os trabalhadores e não somente os embarcados, ou seja, não só aqueles que
possuíam a carteira de trabalhador do mar assinada, contavam com ela. Enquanto que o
salário-família e o desconto previdenciário cabiam somente aos embarcados e diferentemente
da caixinha, não estavam sujeitos a acordos pessoais. No entanto, o pagamento de todos esses
direitos costumava sair atrasado chegando a causar dívidas enormes como era o caso dos
descontos previdenciários que acumulados levavam à necessidade de leiloar os barcos.
(DUARTE, 1978)
Nessa esfera da remuneração e dos direitos sociais dos trabalhadores da pesca, um
outro aspecto a ser ressaltado é a questão do “Regulamento do Tráfego Marítimo” (RTM) e da
“Consolidação das Leis Trabalhistas” (CLT) que eram contraditórios muitas vezes, o que
impossibilitava um texto único que incluísse os direitos supostos por ambos. Da mesma
forma, a pesca, que estava submetida juridicamente à Capitania dos Portos enquanto
Delegacia Regional Marítima, ficava sujeita à justiça trabalhista. Esta não favorecia o
trabalhador, que se sentia impotente quando se tratava daquilo que convinha à categoria dos
proprietários. (DUARTE, 1978, p. 210)
A remuneração da força de trabalho na produção das traineiras, portanto, “não é típica,
(...), do assalariamento capitalista ao mesmo tempo em que se afasta da forma da remuneração
por partilha vigente na ‘pequena produção’”. (DUARTE, 1978, p. 211)
No caso específico das traineiras, em Jurujuba, a partilha mascarava um
assalariamento, fato que favorecia a exploração da força de trabalho num local caracterizado
62
pela impossibilidade de previsão na produção. A noção de participação, portanto, era vista de
forma diferente entre os trabalhadores e entre os armadores.
Quando se tratava da noção de sociedade entre armador e trabalhador, prevalecia,
portanto, aquela existente para a classe de proprietários, já que era ditada pelos meios que
serviam de intermediário dessa categoria.
Com relação aos instrumentos de trabalho, a guarnição percebia o processo de trabalho
nas traineiras como uma sociedade no trabalho, e não como uma sociedade no capital, em que
o proprietário somente adiantasse o valor dos meios que fossem utilizados na pesca. Tal
adiantamento, no entanto, não significava nenhum adiantamento real, mas sim a
pressuposição de uma cooperação entre o trabalhador e os instrumentos de trabalho.
(DUARTE, 1978)
Para os trabalhadores, a origem da exploração estava na ilegitimidade de que se
revestia a separação do proprietário do processo de trabalho, fato determinante do
reconhecimento do armador de forma contrária ao pequeno produtor.
O processo de trabalho nas traineiras diferia, portanto, da pequena produção, em
alguns aspectos. A guarnição percebia que era responsável pelo processo de produção, ou
seja, existia a cooperação no trabalho tanto nas traineiras quanto no sistema de companha, no
entanto, um aspecto que não constava da pequena produção diz respeito à exploração que
ocorria diariamente no processo produtivo nas traineiras.
Segundo o autor, os problemas referentes à partilha consistiam não só na grande
quantidade de partes para dividir como também na forma pouca correta com que se davam os
seus cálculos. O que se constatava era uma efetiva diminuição do valor das partes dos
trabalhadores, embora isto não implicasse numa conotação negativa ao sistema de partilha.
O pagamento da caixinha viabilizava, ao final de cada ano, o pagamento das dívidas
contraídas, e deixava o trabalhador livre para a mobilidade. Já o salário-família, embora
pequeno, era um direito que representava a regularidade de remuneração, a estabilidade dos
embarcados. Portanto, era inaceitável que ocorresse um atraso desses pagamentos.
A noção de companha, existente na pequena produção e na tradição da comunidade,
fazia parte também do imaginário dos pescadores nas traineiras. Porém dentre estes últimos
havia aqueles que valorizavam a forma companha e outros que preferiam a forma
assalariamento, de acordo com as diferentes práticas de trabalho em que se enquadravam.
Os trabalhadores embarcados com vantagens, que não participavam da pescaria em si
e, portanto, menos preocupados com a subsistência do dia-a-dia, davam maior importância à
efetivação dos direitos do que ao recebimento da partilha, já que não estavam diretamente
63
ligados ao processo produtivo, e portanto, não se sentiam tão responsáveis pelo montante da
remuneração no sistema das partes. Mas os trabalhadores de convés valorizavam o sistema de
partilha já que além de participarem diretamente da produção do pescado, atuavam na maioria
das vezes como trabalhador não-embarcado, portanto, passíveis da complementação pela
mobilidade.
Diante de várias e instáveis formas de remuneração, os planos de reprodução do
trabalhador iam ficando mais difíceis de serem realizados, levando-o a criar alternativas de
subsistência. A sobrevivência do dia-a-dia e o pagamento da caixinha ao final do ano não
davam conta de suprir as necessidades de cada mês.
A categoria do embarque situava-se entre a partilha, enquanto ponto central do salário
real, e os direitos como forma legal de complementar a remuneração do trabalho humano,
possibilitando a sua reprodução social.
Em Jurujuba, o embarque significava a formalização da relação de assalariamento de
acordo com a legislação do trabalho marítimo e era submetido à Capitania dos Portos. Ao
passo que o desembarque era a ruptura legal desta relação. A caderneta de embarque era tão
importante quanto a carteira de trabalho dos trabalhadores de terra.
O embarque representava uma estabilidade garantida pelos direitos: décimo-terceiro,
férias, salário-família e desconto previdenciário. No âmbito do trabalho nas traineiras, o
embarque correspondia às vantagens, uma vez que estas não cabiam aos trabalhadores nãoembarcados. Embora implicasse na perda de liberdade, o embarque representava a
estabilidade, os direitos.
Uma maior ou menor importância podia ser dada à estabilidade conseqüente do
embarque, de acordo com as condições de reprodução do trabalhador durante a sua trajetória.
Esta importância estava atrelada não só às especificidades da unidade de produção em
questão, como também à possibilidade de obter, a partir do vínculo de embarque, uma
significativa estabilidade nas posições com maiores vantagens.
Para a efetivação do embarque exigia-se documentos. A exigência destes documentos
representava um obstáculo para que se conseguisse a condição de embarcado, tão almejada.
Porém, era necessário que também se levasse em consideração os períodos de intervalo na
produção e a possibilidade de mobilidade daqueles trabalhadores que lutavam pela
subsistência. A aquisição dos documentos não era a maior dificuldade. Pode-se dizer que os
maiores problemas eram causados pelos armadores. Estes entendiam que embarcar toda a
tripulação representava um custo muito alto, o que impossibilitaria sua reprodução como
proprietários/empresários. Somente embarcavam um número muito pequeno de trabalhadores,
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este número dependeria da relação estabelecida com os fiscais e do número de posições com
vantagens de cada unidade produtiva.
Segundo o autor, a fiscalização era mais intensa em alguns percursos do que em
outros, variando, portanto, de acordo com o tipo de pescaria. A cobrança de multas se dava
em função do status econômico dos armadores, sendo que os grandes armadores eram os
menos multados. Contudo, uma vez que ainda se podia contar com autoridades não
subornáveis, essas cobranças eram válidas, pois implicavam num grau de respeitabilidade
importante para as embarcações de pesca.
Ao mesmo tempo em que para o armador o não embarcar toda a sua tripulação
viabilizava a sua unidade, para os trabalhadores tal fato impossibilitava a sua própria
reprodução. E ainda havia o problema quanto ao dispêndio com os encargos sociais da
tripulação, que faziam parte do desconto das despesas comuns, ou seja, havendo qualquer
acréscimo desses encargos, o mesmo seria debitado do próprio trabalhador.
A fiscalização era vista tanto como uma forma de garantir os direitos, quanto como um
impasse na maneira como ligava esses direitos com a viabilização da reprodução dos
trabalhadores. Desta forma, constata-se que era tão importante a obtenção dos direitos através
do embarque, quanto a obrigação do embarque levando em consideração a possibilidade de
uma trajetória favorável ao trabalhador. Segundo o autor, embora existisse o direito de leis
para o trabalhador, ele geralmente não era bem empregado pelos agentes governamentais.
Assim sendo, o embarque seria tanto melhor quanto pior fosse a fiscalização. Constatando-se,
inclusive, que a quantia referente às multas também era debitada das despesas comuns. O que
ocorria era que mesmo nas condições ditas legais do embarque, os direitos dos trabalhadores
eram derrubados.
A caixinha, pagamento que equivalia ao décimo-terceiro e às férias, geralmente não
era paga em dia, podendo sofrer propostas de pacto, assim como o salário-família que também
sofria atrasos.
Segundo o autor, no momento do desembarque, ruptura formal do vínculo de trabalho,
era que os armadores forçavam os acordos que prejudicavam os direitos de indenização,
inclusive procurando intimidar aqueles que não concordavam com essas práticas. Os
trabalhadores, no entanto, já podiam tentar recuperar os seus direitos judicialmente, devido às
mudanças em seu Sindicato. Principalmente os embarcados qualificados percebiam a
importância desta Associação, já as outras categorias dificilmente apresentavam as queixas
trabalhistas.
O Sindicato, responsável por defender os direitos da classe, deparava-se, no entanto,
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com a pouca efetivação desses direitos através do embarque. Para a categoria dos nãoproprietários, a tão almejada legitimação pelo embarque não era possível no âmbito da
produção em traineiras, já que esta não assegurava a estabilidade desejada.
A não efetivação dos direitos não queria dizer que eles não existiam, e que não
pudessem ser usufruídos. Estes direitos, embora legitimados fora do trabalho nas traineiras,
eram importantes na luta contra a superexploração.
Voltando a questão das vantagens, vale ressaltar que estas eram posições que recebiam
remuneração através de partes suplementares na produção das traineiras.
1.3.4 A QUALIFICAÇÃO
Quanto à categoria posição, esta podia ser esporádica e exercida de forma passageira,
ou podia constituir-se em posições mais duradouras como daqueles que comandavam o
processo produtivo. Ela representava as normas e a forma como se dava a divisão do trabalho
e a co-participação no processo de produção. Era através dessas posições que se viabilizava
uma remuneração com vantagens das partes suplementares.
A partir da literatura abordada, constata-se que as posições e vantagens podiam ser
divididas em três grupos. No primeiro deles, enquadrar-se-iam os geladores e os caiqueiros,
além do cafifeiro, do corticeiro, do chumbeleiro, do sondeiro e do mestre-de-rede. No
segundo grupo, estariam o ajudante de cozinheiro e o ajudante de motorista, assim como o
cozinheiro e o motorista. Ao último grupo pertenceriam o contramestre e o mestre-proeiro.
O primeiro grupo é aquele em que os trabalhadores eram menos qualificados e
ingressavam inicialmente. Recebiam poucas partes suplementares, entre meia e duas partes.
As categorias de geladores e caiqueiros não exigiam experiência específica, sendo tarefas do
trabalhador de convés. No entanto, sobrecarregavam mais do que as outras tarefas,
entendidas, portanto, como posições específicas, levando inclusive riscos à saúde do
trabalhador. Eram posições ocupadas pelos trabalhadores de menos idade ou menos
qualificados e não eram tão valorizadas quanto as outras. O trabalhador não pensava em
ocupar essas posições por muito tempo. Os geladores deveriam ser fortes fisicamente
enquanto que os caiqueiros deveriam ser ágeis. Já os cafifeiros, corticeiros, chumbeleiros,
sondeiros e mestre-de-rede eram posições pelas quais os trabalhadores, provenientes das duas
posições anteriores, ascendiam. Essas posições já requeriam alguma qualificação específica e,
portanto, um mesmo trabalhador dificilmente ocuparia mais de uma delas concomitantemente
ou uma em seguida da outra. Elas eram exercidas no conjunto do processo de trabalho.
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Essas posições eram entendidas como um acesso para o terceiro grupo no qual as
categorias de contramestre e mestre-proeiro representavam o ápice do processo de trabalho na
pesca, embora nem todos as alcançassem. Para tanto era necessário que dispusessem de
algumas vantagens pré-estabelecidas.
O trabalhador também podia ascender através do segundo grupo, neste já se percebia
alguma especialização. Ou seja, os geladores e caiqueiros também podiam fazer sua trajetória
através do subgrupo dos ajudantes e alcançarem posteriormente a posição de cozinheiro ou
motorista.
A categoria de cozinheiro atuava à parte do conjunto do processo de trabalho.
Caracterizava-se como uma "prestação de serviços" que contribuía para a reprodução dos
demais trabalhadores ao invés de uma categoria de produção.
A posição de motorista era bastante específica e participava do processo de trabalho.
Sua especificidade, motorista de pesca, era reconhecida legalmente a partir da exigência de
uma qualificação formalizada de “carta de motorista” expedida pela Capitania dos Portos e
que lhe permitia receber um salário duplo de referência, além das partes.
Essa qualificação podia ser obtida formalmente através de algum curso reconhecido,
porém em Jurujuba esse título era obtido pelo reconhecimento da capacitação espontânea
como ajudante, inclusive porque os pescadores deste local entendiam que a formação de
motorista através de curso era imprópria já que o motorista "de curso" não possuía a
experiência do embarque.
A carta, no entanto, representava o status, quem a possuísse poderia utilizá-la para fins
de trabalho ou para um reconhecimento qualquer. Contudo, este motorista não poderia
embarcar em outra categoria que não fosse esta. Mesmo mudando de barco, não poderia
assumir posição inferior.
Os armadores, porém, utilizavam-se de outros meios, ou seja, mesmo contra a
legislação eles ocupavam as posições de motorista com os ajudantes de motorista. Os
ajudantes aceitavam essa condição, pois passavam a ser remunerados de forma informal com
mais uma parte além de estarem mais perto da sua posição almejada.
Sabe-se que enquanto motorista, o profissional podia trabalhar na mesma categoria na
Marinha Mercante, embora isto não ocorresse em Jurujuba.
Quanto ao terceiro grupo, constata-se que a categoria de mestre-proeiro se formalizava
através da carta de patrão de pesca. Esta categoria tinha direito a três salários de referência.
Existiam também, para a obtenção do título, cursos formais de capacitação.
Embora a posição de mestre-proeiro pareça se referir a duas posições distintas, ela não
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podia ser ocupada por pessoas diferentes, mas sim pelo contramestre, ou seja, elas
representavam dois momentos de uma mesma posição. A categoria de contramestre, portanto,
se direcionava para a categoria de mestre-proeiro.
Daí surgiam duas possibilidades: o mestre como posição suprema e legitimada, com
grande conhecimento sobre a pesca e altamente qualificado; e o mestre desempenhando o
papel do patrão, ou seja, como articulador dos seus interesses e da prática dos trabalhadores.
A primeira possibilidade, portanto, trata da qualificação de proeiro associada à
qualificação do trabalho de mestre da arte na pesca. Esta categoria se revestia de tamanha
legitimidade sendo percebida como o apogeu de um exemplo de trabalhador da pesca.
Quanto ao "patrão de pesca", constata-se uma maior ligação do mestre ao patrão, ou
seja, do armador ou do seu encarregado, onde a prática do mestre caminhava de forma
coerente com os desígnios do patrão.
Dessa forma, na condução do processo de trabalho, o mestre vivia a dupla experiência
enquanto pescador e interessado na remuneração pela partilha e enquanto representante e
preposto do armador, trabalhando de acordo com os interesses deste.
O armador, porém, tinha maior interesse pela função do “patrão de pesca” do que do
mestre-proeiro. E assim podia agir de diferentes formas. A primeira delas se efetivava por
meio de uma forçada associação, a partir da conversão do número de partes que cabiam ao
mestre em uma sociedade nos lucros, ou seja, em uma maior participação na partilha. A
segunda, tratava de boicotar o acesso interno à categoria de mestre, ocupando com seus
herdeiros a posição de contramestre, o qual sucederia o mestre. A terceira implicava na
prática da guarnição. Aí, o armador aproveitava o espírito de competição entre os
trabalhadores com vantagens, uma vez que ele não tinha interesse em alocar parentes seus no
comando do processo de trabalho. Desta forma ele podia estabelecer uma relação mais
próxima e, portanto, de maior regalias com certos trabalhadores, de modo a rebaixar a
autoridade do mestre. Tal fato acarretava a oposição do trabalhador privilegiado ao restante da
guarnição, fazendo com que aumentasse a sua semelhança com o mestre.
Diante deste quadro, o mestre poderia ter diferentes reações, já que a sua experiência
era única e devia-se a todas essas circunstâncias por que passava ao longo de sua trajetória.
Surgia então o problema da identidade entre o mestre e a guarnição que somada a
outros motivos o levaria a distanciar-se de seus companheiros. Desta forma, o mestre preferia
sempre se referir apenas à parte técnica da pescaria ao invés de falar daquela realidade
existente ao longo de sua atuação como tal.
68
1.3.5 A COOPERAÇÃO NO TRABALHO
Um outro aspecto importante a ser levantado, e já visto anteriormente, trata-se da
existência de uma grande cooperação entre os trabalhadores durante o processo de produção
na traineira. Excluindo-se a tarefa do cozinheiro e do motorista, as demais eram assistidas por
todos e, portanto, podiam ser até mesmo criticadas mesmo por aqueles que ocupassem
posições diferentes. A forma de cooperação aí, não chega a ser uma cooperação complexa,
própria da produção capitalista, mas também não se trata mais da cooperação simples. Ou
seja, existia uma certa proximidade entre as tarefas realizadas pela maioria dos trabalhadores,
embora nem todos participassem de todas as tarefas durante o processo produtivo.
Essa forma de cooperação acarretava uma indeterminação das atividades que cabiam
a cada um, já que possibilitava ao trabalhador abranger grande parte do processo.
A
integração que ocorria, acabava por dar-lhe condições de avaliar o trabalho de cada
trabalhador, comportando-se como verdadeiros censores uns dos outros. Tal fato ganhava
importância devido ao interesse dos trabalhadores da pesca no preço de venda do pescado,
que implicava na partilha.
Esse controle mútuo, também percebido como cooperação mútua, ao mesmo tempo
em que revela competição e colaboração das partes, revela também a forma de sociedade que
existia entre a guarnição.
1.4 A BAÍA DE GUANABARA E O PROGRAMA DE DESPOLUIÇÃO DE SUAS ÁGUAS
Nesta fase busca-se apreender as questões relativas à Baía de Guanabara, passando
pela sua origem, pelas principais causas de sua poluição e por aspectos relacionados ao
Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, o PDBG. Neste sentido, ressalta-se a
importância do trabalho de pesquisa sobre o PDBG, realizado por Santos Neto (2002).
Há muitos milênios atrás, segundo o Centro de Informações da Baía de Guanabara
(CIBG - <http://www.cibg.rj.gov.br>), a Baía de Guanabara constituía-se de um rio cuja foz
se abria largamente e ocupava a área situada entre o Pão de Açúcar e a Praia de Jurujuba. A
Bacia de Campos, inicialmente, recebia as águas oriundas da drenagem natural que aí se dava.
No entanto, à medida que novas formações foram surgindo, houve uma alteração no
curso dos rios, implicando na separação de bacias. Tal fato, aliado às variações de nível da
água do mar, implicou no surgimento da atual Baía de Guanabara, "Seio do Mar" na
linguagem indígena. Até então, em suas águas se observava a existência de cardumes de
69
diferentes pescados, além de crustáceos e outras espécies. No entanto, no século XVI, já se
observa, em suas encostas, o início da exploração da Mata Atlântica para obtenção de paubrasil e o seu desmatamento devido à produção de cana-de-açúcar.
A partir do século XVII, com o crescimento da cultura da cana de açúcar e outras
culturas secundárias, a fauna local é obrigada a abandonar essa região, constatando-se
também a mudança na conformação dos rios que corriam para a Baía de Guanabara. Estes rios
constituíam as vias de transportes do açúcar produzido, o qual era conduzido até a Europa
através do Porto do Rio de Janeiro. Posteriormente deu-se, também pela via portuária, o
transporte de ouro oriundo de Minas Gerais. No início do século XIX, esse escoamento já
ocorre de forma mais vagarosa devido aos aterros existentes. A partir do ciclo do café,
constata-se a construção de ferrovias e com elas a comercialização passou a ser realizada pela
via terrestre, fato que reforça a questão dos alagamentos, criando regiões de represamento de
águas.
É neste contexto que a Bacia Hidrográfica da Baía de Guanabara e seus ecossistemas
começam a sofrer danos que vão se agravando com o crescente desmatamento, provocando
seca e erosão no solo. O desmatamento, visando a construção de barracos em morros, nesta
região, também trouxe conseqüências desagradáveis, tais como alterações nas nascentes de
água potável. O lixo e os dejetos oriundos da população que habitava nas favelas eram
conduzidos pelas águas da chuva, até a Baía.
No século XX, a população pobre, buscando maiores possibilidades de emprego no
Rio de Janeiro, contribuiu para o aumento populacional da cidade, tendo a favela como uma
das opções de habitação. Mais aterros foram sendo realizados e a região em volta da Baía foi
se transformando. É neste mesmo século que se constata o desenvolvimento de um processo
de degradação da Baía de Guanabara. Para tanto, contribuiu não só o aumento da população
como também do número de indústrias em seu entorno, além da falta de comprometimento de
sucessivas gestões no que se refere às questões sanitárias das áreas urbanas.
A bacia que drena para a Baía de Guanabara constitui-se dos Municípios de
Guapimirim, Nilópolis, Magé, Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti, São
Gonçalo, Tanguá, Itaboraí e partes dos Municípios do Rio de Janeiro, Niterói, Petrópolis,
Cachoeiras de Macacu, Nova Iguaçu e Rio Bonito, a maior parte deles situados na Região
Metropolitana do Rio de Janeiro.
Atualmente, pode-se perceber que a Baía de Guanabara é o destino final de todos os
efluentes líquidos produzidos no seu entorno e nas bacias dos rios e córregos que a nutrem. A
poluição de suas águas provém, principalmente, das indústrias, da Refinaria Duque de Caxias-
70
Reduc - Terminais marítimos de petróleo, dos portos comerciais, dos postos de combustível,
dos estaleiros, do lançamento de esgoto doméstico, dos vazadouros de lixo, da ocupação das
margens dos rios e encostas, implicando no lançamento de lixo e esgoto doméstico sem
controle. Como carga poluidora despejada todos os dias na Baía, tem-se a carga orgânica
doméstica (DBO), orgânica industrial, metais pesados e lixo doméstico.
Diante da situação crítica em que se coloca a Baía de Guanabara, foram criados
procedimentos e ações no sentido de fazer cessar e de reparar os danos até então causados,
para que se viabilize condições de sobrevivência do ecossistema local.
De acordo com a literatura, constata-se, portanto, que nas águas da Baía, a pesca
realizada, como meio de subsistência ou para fins comerciais, foi muito prejudicada. Também
a vegetação local foi atingida, ou seja, os aterros construídos ilegalmente e a extração da
madeira contribuíram para o desaparecimento de manguezais. Somado a isso tem-se a
inviabilidade do comércio marítimo, em muitas partes da Baía, além das questões relativas ao
assoreamento, ao impedimento da circulação de córregos (devido ao despejo de resíduos
sólidos e à utilização de suas margens para fins de habitação), e ainda ao lançamento de
esgoto sanitário in natura. Estes últimos implicam em situações de inundação propiciando o
surgimento de enfermidades conduzidas pela água.
Neste contexto, em Santos Neto (2002), verifica-se que vão surgindo iniciativas tais
como as da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE), que desenvolveu, em 1978, o
"Plano Diretor de Esgotamento Sanitário da Região Metropolitana do Rio de Janeiro", mas
que não teve um avanço significativo. Em 1981, realizou-se um estudo acerca da situação
sanitária da Baía de Guanabara e da origem da poluição de suas águas. A partir daí foi
apresentada uma proposta de importantes ações a serem desenvolvidas. Em 1987, o governo
estadual criou a "Comissão para a Recuperação Gradual do Ecossistema da Baía de
Guanabara". Essa comissão era composta pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente
(SEMA, atual IBAMA), pela Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente
(FEEMA), pela Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (SERLA), pelo Instituto Estadual
de Florestas (IEF) e pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano e Regional do Rio
de Janeiro (SEDUR/RJ).
Na década de 90, a preocupação com a recuperação das águas da Baía de Guanabara
ganhou grandes proporções. Em 1991, foi assinado um convênio entre o Brasil e o Japão, o
qual referia-se ao desenvolvimento de um conjunto de métodos e medidas visando controlar a
poluição dessas águas. Este trabalho foi realizado em conjunto com a FEEMA. A partir daí,
em 1992, a CEDAE fez algumas atualizações no "Plano Diretor de Esgotamento Sanitário da
71
Região Metropolitana do Rio de Janeiro".
Neste mesmo ano, ressalta-se a importância da Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro. A Agenda 21, documento
aprovado nesta Conferência, contem uma lista de compromissos acordados pelos países
signatários, colocando-os na direção do desenvolvimento sustentável.
Em 1993, a
administração do Estado do Rio de Janeiro criou, a "Comissão Coordenadora para a Execução
do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG)".
O PDBG é um projeto ambiental de grande importância. Ele tem como objetivo a
redução de 90% da carga orgânica industrial; a redução (de 87% para 53%) da carga orgânica
do esgoto lançado in natura; a redução de 97% da carga tóxica oriunda das indústrias; e a
redução de 70% do volume de óleos e graxas; além de prever uma destinação própria para
90% do lixo gerado. (Relatório dos Empreendimentos - SOSP/ CEDAE/ SONDOTÉCNICA set / 97)
Segundo a literatura, em curto prazo o Programa tem como meta a construção de um
anel sanitário no entorno da Baía, impedindo que cheguem até ela as cargas de esgoto
doméstico e industrial. Em médio prazo, o PDBG pretende restabelecer a situação ambiental
da Baía; viabilizar uma melhor qualidade de vida à população que vive em sua área de
influência; atualizar o modelo de gestão ambiental existente; e fortalecer as organizações
municipais que respondem, legalmente, por ações que venham a trazer conseqüências
favoráveis à qualidade ambiental da Baía de Guanabara. Quanto às metas de longo prazo,
estas não foram estabelecidas, até o momento.
A primeira etapa do Programa abrange ações nas áreas de saneamento (água e esgoto);
resíduos sólidos (coleta e destino final); macrodrenagem; mapeamento digital; e programas
ambientais complementares.
Quanto ao Esgotamento Sanitário, o PDBG, por intermédio da CEDAE, atua na
implantação de redes coletoras de esgoto; emissários terrestres e submarinos; além de realizar
ligações domiciliares, assentar linhas de recalque, reformar e construir Estações Elevatórias.
O Programa tem como prioridade as bacias mais densamente povoadas e com baixo
poder aquisitivo, onde o risco sanitário é maior em conseqüência do lançamento de esgoto in
natura. Os coletores-tronco e interceptores serão primordiais para o fim do perigo de contágio
nas principais bacias passíveis de inundações. O Programa engloba a construção e ampliação
de Estações de Tratamento de Esgotos (ETEs). Todas essas obras fazem parte de Sistemas
implantados.
Com as obras do Sistema Alegria, o Programa viabiliza a redução de 30% da carga
72
orgânica, atendendo a 46 bairros da Cidade do Rio de Janeiro. As obras do Sistema Sarapuí
favorecem os Municípios de São João de Meriti, Belford Roxo, Mesquita e Nova Iguaçu,
reduzindo a carga orgânica em 55%. O Sistema Pavuna beneficia os Municípios do Rio de
Janeiro, São João de Meriti e Duque de Caxias, reduzindo a carga orgânica em 55%. Com o
Sistema Penha, reduz-se a carga orgânica em 95%, atendendo localidades da Zona Norte e da
Leopoldina, do Rio de Janeiro. O Sistema Paquetá reduz a carga orgânica em 99% e atende
residentes e turistas da Ilha de Paquetá. Com as obras do Sistema Ilha do Governador, a carga
orgânica é reduzida em 95%, atendendo a vários bairros. O Sistema Icaraí atende a 19 bairros
do Município de Niterói, reduzindo a carga orgânica em 95%. O Sistema São Gonçalo
contempla 30 bairros do Município e reduz a carga orgânica em 95%. O Sistema Marina da
Glória trará melhorias para as condições sanitárias dos bairros antigos do Rio de Janeiro.
Além disso, constata-se a realização de obras em 31 Favelas dos Municípios do Rio de
Janeiro e Niterói, trazendo melhorias para as condições sanitárias e reduzindo a poluição.
O PDBG supõe alcançar níveis mais satisfatórios de redução da carga orgânica
lançada na Baía de Guanabara, futuramente, a partir da segunda etapa do Programa.
Quanto ao Abastecimento de Água, o PDBG pretende tornar mais eficiente o serviço
de abastecimento e distribuição de água da CEDAE. O Programa engloba obras no sentido de
fornecer água a quinze Favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, Ilha do Governador e Niterói.
Também abrange a implantação de adutoras e de redes e troncos de distribuição, além da
realização de ligações domiciliares e construção de reservatórios.
O Sistema Éden e o Sistema Coelho da Rocha têm como objetivo melhorar as
condições de abastecimento de água em vários bairros do Município de São João de Meriti. O
Sistema Belford Roxo, o Sistema Retiro Feliz e o Sistema Lote XV pretendem melhorar as
condições de abastecimento de água em vários bairros do Município de Belford Roxo. O
Sistema Olavo Bilac, o Sistema Parque Fluminense e o Sistema 25 de Agosto têm como
objetivo a melhoria das condições de abastecimento de água em diversos bairros do
Município de Duque de Caxias. O Sistema Marques Maneta assim como o Sistema
Colubandê visa favorecer as condições de abastecimento de água em vários bairros do
Município de São Gonçalo. O Sistema Ilha do Governador objetiva melhorar as condições de
abastecimento de água para as populações menos favorecidas da Ilha do Governador.
Constata-se também que o Programa atuou em 15 Favelas dos Municípios do Rio de Janeiro e
Niterói, objetivando acabar com o despejo in natura na Baía de Guanabara.
Ressalta-se, ainda, as ações de Reforço Institucional. Estas contemplam a
informatização do Cadastro Técnico da CEDAE, visando modernizar as ações referentes ao
73
setor de projetos, manutenção e operação. A micromedição ocorre a partir da provisão e
instalação de hidrômetros, tornando possível a diminuição das perdas no sistema de
abastecimento e distribuição de água. A partir da ampliação do Centro de Controle
Operacional (CCO) do Guandu, será possível a macromedição da vazão, volume e pressão da
água no sistema, possibilitando a informação sobre produção e distribuição de volumes reais.
Quanto aos Resíduos Sólidos, o Programa visa recolher 90% do lixo produzido nos
Municípios. Também estão previstos a coleta do lixo hospitalar e a adequação do destino final
dos resíduos, além de um sistema de drenagem que viabilizará recolher o resíduo líquido do
lixo (chorume). Com ações deste tipo, pretende-se eliminar os lixões que darão lugar aos
aterros sanitários e reduzir o assoreamento de rios e canais, além de impedir que o chorume
seja absorvido pelo subsolo.
Está prevista a construção de prédios administrativos e galpões de reciclagem e de
peneiramento nas Usinas de Niterói, São Gonçalo e Magé. Nos Aterros de Niterói, São
Gonçalo e Magé será construído prédio de incinerador e será realizada a reforma da casa de
balança e da base do aterro sanitário.
Serão construídas unidades de apoio à coleta domiciliar de lixo nos Municípios de
Magé, Duque de Caxias, São Gonçalo, Nilópolis, São João de Meriti e Guapimirim. Serão
realizadas obras de adequação das Estações de Transferência de Lixo de Nilópolis e São João
de Meriti. Serão fornecidos equipamentos de coleta de lixo e equipamentos móveis, tais como
caminhões basculantes, veículos coletores etc, para os Municípios de Niterói, Duque de
Caxias, São João de Meriti, Guapimirim, São Gonçalo, Magé e Nilópolis.
A unidade de produção de flocos PET, conta com um galpão industrial e
equipamentos, e implicará na comercialização do PET, além de atrair um maior número de
mão-de-obra não qualificada para as atividades de reciclagem.
Quanto à coleta seletiva, triagem e reciclagem, serão erguidas baias para separar os
resíduos sólidos recicláveis e instalados equipamentos em postos de apoio a coletas, fato que
propiciará a criação de cooperativas ou associações de catadores de lixo.
Também constam desse Programa a elaboração de projeto executivo de restauração e
melhorias nos aterros sanitários de Niterói e São Gonçalo, bem como a elaboração de um
diagnóstico sócio-econômico das áreas onde o Estado interfere.
Os cursos oferecidos possibilitarão a formação técnica e o engajamento de um número
considerável de catadores de lixo, dos municípios de Niterói e São Gonçalo, no mercado
formal de trabalho. O Programa abrange os Municípios de Niterói, Magé, São Gonçalo,
Guapimirim, Duque de Caxias, Nilópolis e São João de Meriti, cujas Prefeituras recebem
74
apoio institucional, assistência técnica e capacitação de pessoal.
Para o controle de inundações, o Programa visou obras de macrodrenagem e
implantação da rede hidrometeorológica, possibilitando a observação de índices
pluviométricos dos rios e canais, apontando áreas de risco de ocorrência de enchentes. As
obras de drenagem dos rios da bacia do rio Acarí englobam a recuperação de muros de
contenção e a execução de canalizações e galerias. As obras realizadas no Rio das Pedras, Rio
Timbó e Rio Piraquara, têm como objetivo o controle de inundações sofridas pelas
comunidades justafluviais. Um estudo sobre a circulação hidrodinâmica no Canal do Fundão,
Canal do Cubha e áreas próximas, no Município do Rio de Janeiro, é proposto pelo Programa,
a fim de determinar o que precisa ser feito para revitalizar a circulação da maré naquela área
da Baía de Guanabara. Além disso, o PDBG também propõe um estudo geotécnico com o
objetivo de dragar o canal.
Um outro componente do Programa, o mapeamento digital, consiste na elaboração de
um cadastro digitalizado dos Municípios situados na Bacia da Baía de Guanabara,
viabilizando mudanças na arrecadação tributária, no planejamento urbano e na gestão
ambiental. Para tanto são realizados trabalhos de aerofotogrametria de áreas urbanas dos
Municípios e da área da Bacia Hidrográfica da Baía de Guanabara, além de levantamentos de
dados de campo, processamento e análise destes dados visando atualizar os cadastros
imobiliários e de logradouros. A CIDE, Fundação Centro de Informações e Dados do Rio de
Janeiro, é a responsável pela criação do sistema de armazenamento de dados.
O Programa, no que tange à capacitação e apoio técnico às Prefeituras, ainda inclui o
estabelecimento de locais próprios para a implantação e operação de sistemas de cadastros
georeferenciados. Além disso, também faz parte do Programa a estabilização dos trabalhos de
implantação dos sistemas de geoprocessamento e a concepção de uma metodologia de índices
de sustentabilidade para os Municípios de Niterói, Itaboraí, Guapimirim, São Gonçalo,
Cachoeiras de Macacu, Nova Iguaçu, Magé, Belford Roxo, Duque de Caxias, Nilópolis, São
João de Meriti, Tanguá e Rio Bonito.
A partir dos programas ambientais complementares, o PDBG pretende modernizar os
órgãos da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
(SEMADS) visando o monitoramento das condições ambientais, a fiscalização e controle das
atividades que geram poluição e a recuperação das áreas que sofreram degradação ambiental.
Objetiva melhores condições da infra-estrutura da Secretaria e de suas instituições
vinculadas, priorizando a informatização e inclusive, ligando em rede todo o sistema
ambiental nos Municípios do Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo, São João de Meriti,
75
Nilópolis, Belford Roxo, Guapimirim, Nova Iguaçu, Cachoeiras de Macacu, Duque de
Caxias, Rio Bonito, Tanguá, Itaboraí e Magé.
O Laboratório Central da FEEMA será modernizado e receberá equipamentos de
informática. A equipe técnica da Fundação receberá capacitação para atuar nesta área. A
aquisição de veículos será importante para as atividades de monitoramento e fiscalização.
Dentre outras realizações, o Programa prevê, a partir do fornecimento de produtos e serviços,
a implementação do Sistema de Informação para Gestão Ambiental da Baía de Guanabara,
além de tornar disponível em rede as informações a respeito da Bacia da Baía.
O PDBG também propõe um mapeamento digitalizado das atividades de risco
ambiental e desenvolve um programa de educação ambiental. Este último é considerado de
grande importância no sentido de trazer modificações de comportamento, atitudes e
conhecimentos fundamentais para a construção de uma sociedade auto-sustentável. Tem como
objetivo o treinamento de professores da rede pública, para atuarem como multiplicadores,
através das escolas em que trabalham.
O Centro de Referência de Educação Ambiental viabiliza um maior apoio às
atividades de educação ambiental, além de prestar informações acerca das questões
ambientais e do PDBG. Também está prevista a capacitação de profissionais do setor público
em gestão ambiental, publicações técnicas de órgãos da área ambiental, e a criação de modelo
de simulação que represente o sistema ambiental da Bacia da Baía de Guanabara. Serão
distribuídos livros para as escolas da rede pública dos Municípios anteriormente citados,
visando a educação ambiental.
O subprojeto de Mobilização Social - Participação Comunitária, consta da
conscientização da população no que diz respeito à conservação das condições operacionais
das intervenções técnicas desenvolvidas, além da criação de Banco de Dados das lideranças
comunitárias nos locais onde o PDBG realiza obras.
A Revisão do Zoneamento Industrial da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e o
Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia da Baía de Guanabara são projetos
desenvolvidos no âmbito da gestão ambiental. O primeiro prevê o mapeamento da situação
das indústrias na Região Metropolitana, além da elaboração de banco de dados
georeferenciados da região, principalmente no que tange às indústrias. Está prevista também a
provisão de subsídios para viabilização do licenciamento ambiental das indústrias novas e
reformulação no Zoneamento Industrial existente, promovendo a descentralização
administrativa, contribuindo para um crescimento industrial ordenado e sustentável. O Plano
Diretor de Recursos Hídricos objetiva disciplinar a utilização das águas e prevenir e controlar
76
inundações e poluição acidental.
Está prevista ainda a criação de planos diretores e de manejo, sugerindo novos
modelos de gestão administrativa e ambiental para parques.
A política de proteção e recuperação da Mata Atlântica no Estado do Rio de Janeiro
inclui o Programa de consolidação de Unidades de Conservação da Natureza (UCNs), na
Bacia da Baía de Guanabara. Neste sentido pretende-se preservar a área remanescente da
Mata Atlântica e resguardar as nascentes dos rios que mantém o fornecimento de água nos
Municípios.
A Estação de Tratamento de Água do Guandu (ETAG) está situada no Município de
Nova Iguaçu e faz uso das águas do rio Guandu. Ela fornece água para o Município do Rio de
Janeiro, Baixada Fluminense e parte do Município de Itaguaí.
Antes de ser consumida no Estado do Rio de Janeiro, a água passa por um longo
processo de tratamento e posteriormente passa pelo sistema de adução. O PDBG modernizou
o Laboratório de Controle de Qualidade da ETA Guandu, que juntamente com o Centro de
Controle Operacional, controla todo o processo de tratamento de água, e através de freqüentes
e rígidas análises laboratoriais, assegura a condição de água potável, dentro dos níveis de
exigência estabelecidos pelas Organizações de Saúde.
Apesar das atividades já iniciadas, os índices de poluição da Baía ainda são
alarmantes. No entanto, a segunda fase do Programa ainda não tem data para começar, o que
não aponta para soluções muito rápidas, na medida em que nesta fase estaria se
desenvolvendo ações mais precisas e de maior impacto.
1.5 CULTURA E IDENTIDADE
Nesta parte, objetiva-se tecer subsídios para um melhor entendimento sobre o binômio
cultura e identidade.
Inicia-se a discussão acerca da cultura e da identidade, a partir de Bosi (1998, p. 16),
definindo que "cultura é o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que
se devem transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de um estado de
coexistência social".
Segundo Sahlins (1997 p. 1), a cultura distingue "a organização da experiência e da
ação humana por meios simbólicos. As pessoas, relações e coisas que povoam a existência
humana manifestam-se essencialmente como valores e significados, significados que não
podem ser determinados a partir de propriedades biológicas ou físicas".
77
Ainda para este autor, a arrumação e desarrumação do mundo em termos simbólicos, a
cultura, por assim dizer, é a capacidade particular do homem.
Sahlins (1997) afirma que embora não se constate o fim dos povos entendidos como
primitivos, a sua cultura vem sofrendo uma perda de integridade devido à interpenetração de
culturas em função do sistema capitalista mundial vigente.
O autor destaca a cultura como "demarcação de diferenças", enfatizando que as formas
e regras culturais são explicitamente estabelecidas e não permitem a interferência proposital
da ação do homem.
Ele acrescenta que o homem estabelece as bases de sua experiência de acordo com
suas tradições e sua percepção de mundo. Estas levam no seu interior a "moralidade" e as
"emoções" ligadas por natureza ao seu próprio processo de transmissão. O mundo é ensinado
ao homem e não descoberto por ele. (SAHLINS 1997, p. 4-5)
Turner (1987, p. 6) contribui para esta discussão afirmando que cultura é "o sistema de
formas significativas de ação social", desta forma, ela é percebida como o modo através do
qual um povo dá-se a conhecer exatamente e se faz existir enquanto "entidade social em
relação à sua situação histórica em transformação".
E ainda segundo esse autor, a "sobrevivência cultural" no mundo moderno baseia-se
na tentativa dos povos se apropriarem desse mundo nos seus próprios termos.
Inicia-se a discussão sobre a identidade, a partir de Hall (2001) que ressalta três
percepções acerca desta. O autor destaca a concepção de identidade do sujeito do iluminismo,
do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno.
Assim, para Hall (2001, p.10-11), o sujeito do Iluminismo fundamentava-se no
entendimento do homem como um indivíduo completamente "centrado", "unificado", com
inteligência, sendo consciente e atuante. Seu "centro" baseava-se num ponto essencial
interior, que se manifestava
de início no nascimento da pessoa e com ela crescia,
conservando-se sempre igual durante a vida do sujeito. "O centro essencial do eu era a
identidade de uma pessoa.” Constatando-se assim, que se tratava de uma percepção bastante
individualista do sujeito e de sua identidade. Além do que, o sujeito do Iluminismo era
freqüentemente visto como masculino.
Quanto à concepção do sujeito sociológico, pode-se dizer que esta revelava a
progressiva abrangência do mundo moderno e a noção de que este ponto essencial interior do
homem não gozava de autonomia e não se bastava por si só, era isto sim, constituído na
relação com outros indivíduos considerados de grande importância para ele. Estes "mediavam
78
para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava”.
(HALL, 2001, p. 11)
Desta forma, a identidade é desenvolvida a partir da ação que se exerce mutuamente
entre o eu e a sociedade. O sujeito possui um ponto essencial dentro de si, o "eu real", no
entanto, este se constitui e sofre alterações numa comunicação ininterrupta com os mundos
culturais externos e as identidades que esses mundos apresentam. Nesse entendimento do
sujeito sociológico, a identidade ocupa a área delimitada entre o mundo interior do indivíduo
e o mundo exterior a ele.
O que ocorre é que o sujeito ao se projetar nessas identidades culturais,
concomitantemente que internaliza seus significados e valores, fazendo com que constituam
uma parte sua, colabora para o nivelamento de seus sentimentos subjetivos com os lugares
objetivos que ocupa no mundo social e cultural. Pode-se dizer que a identidade liga o sujeito à
estrutura. Ela torna estáveis não só os sujeitos como também os mundos culturais em que eles
vivem, fazendo-os mais "unificados e predizíveis" mutuamente. (HALL, 2001, p. 11-12)
Tudo isso, no entanto, está em mudança. Hall (2001) afirma que o sujeito, que antes
apresentava uma identidade unificada e constante, hoje, ele apresenta não apenas uma, mas
inúmeras identidades, inclusive elas podem se opor ou não estarem ainda bem estabelecidas.
E ainda segundo este autor, o processo de identificação, por meio do qual o sujeito se
projeta em suas identidades culturais, encontra-se mais transitório e passível de modificações
Assim sendo, esse processo cria o sujeito pós-moderno, entendido como aquele que não
possui uma identidade constante e estável.
A partir de Hall (1987), constata-se que a identidade vem a ser uma "celebração
móvel". Ela desenvolve-se e sofre alterações de forma ininterrupta de acordo com o modo
com que o sujeito é percebido ou "interpelado" nos sistemas culturais que o cercam.
O autor afirma que a identidade “é definida historicamente, e não biologicamente". O
sujeito toma para si identidades diferentes nas variadas situações. Estas identidades não são
"unificadas" em torno de um "eu" coeso. Tem-se, isto sim, identidades que se opõem,
apontando para variados rumos. Assim sendo, as identificações do sujeito vão sempre se
alterando. A identidade completamente unificada e coerente não existe. Percebe-se que na
proporção em que se tornam mais numerosos os "sistemas de significação e representação
cultural", o sujeito é colocado frente a frente com inúmeras e diferentes identidades viáveis, as
quais estariam disponíveis para que ele se identificasse mesmo que fosse de maneira
transitória.
Costuma-se dizer que os tempos modernos trouxeram uma nova visão do sujeito
79
individual e sua identidade. As mudanças ocorridas na época moderna tornaram o indivíduo
livre de seus pilares firmados nas tradições e nas estruturas, consideradas até então como
imutáveis. A forma como se classificava um indivíduo, o seu status, prevalecia a qualquer
percepção da pessoa como absoluta. O surgimento do "indivíduo soberano", ocorrido entre o
Humanismo Renascentista, que posicionou o Homem no centro do universo (século XVI) e o
Iluminismo que colocava o Homem como racional, livre das intransigências (século XVIII),
significou, portanto, a descontinuidade com a época passada. Para essa nova visão do
Homem, também colaboraram movimentos tais como a Reforma, o Protestantismo e as
revoluções científicas.
Para Hall, a identidade vai se desenvolvendo com o passar do tempo, de forma
inconsciente e em contínuo processo de formação. Ela não nasce com o indivíduo. O autor
sugere que fale-se da identidade não como algo completo, mas sim como uma identificação
num processo que nunca termina.
Segundo ainda este autor, a identidade passa a existir não somente a partir da
identidade que o indivíduo já carrega em seu interior, mas também em função daquilo que
externamente vem completá-la, mediante as maneiras pelas quais o indivíduo supõe que é
percebido pelo outro.
Woodward contribui para essa discussão, afirmando que as identidades ganham
sentido a partir da linguagem e dos sistemas simbólicos através dos quais elas são
representadas. Desta forma, a identidade é determinada através de símbolos. Há uma
correspondência entre a identidade do indivíduo e aquilo que ele usa. Pode-se dizer ainda, que
“a construção da identidade é tanto simbólica quanto social”. (WOODWARD, 2000, p. 8-10)
Constata-se que povos tentam estabelecer novamente suas identidades, procurando no
passado essas identidades lá esquecidas. Contudo, dessa forma eles possivelmente estarão
criando novas identidades.
Segundo Woodward (2000, p. 17), “é por meio dos significados produzidos pelas
representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos”. Ou seja, aquilo
que se é ou aquilo no qual é possível se tornar deve-se aos sistemas simbólicos.
O autor afirma que as formas de diferença “simbólica” e “social”, nas relações sociais,
são determinadas através de "sistemas classificatórios". Estes sistemas estabelecem o
princípio de diferença a uma população separando-a em no mínimo dois grupos opostos: “nós
e eles”.
Woodward (2000) ressalta que as identidades são percebidas a partir do modo como a
cultura determina fronteiras e estabelece a diferença. A diferença é o que afasta uma
80
identidade da outra, distintas muitas vezes pela oposição. Pode-se dizer que a marcação da
diferença é fundamental em todo sistema de classificação.
As culturas geram sistemas classificatórios, criando fronteiras simbólicas. Estabelecem
o que está fora e o que está dentro, determinando se uma prática é culturalmente aceita ou
não. "Essa classificação ocorre, (...), por meio da marcação da diferença entre categorias”.
(WOODWARD, 2000, p. 49)
O autor discute um outro aspecto importante para esse estudo, trata-se da
subjetividade. Por subjetividade entende-se a forma como o sujeito percebe o seu eu. Ela
inclui os seus pensamentos e sentimentos pessoais, conscientes e inconscientes, os quais
formam as compreensões que o sujeito faz acerca de quem é ele. Por abarcar o inconsciente, a
subjetividade apresenta contradições.
A partir da concepção de subjetividade, torna-se viável um estudo abarcando os
sentimentos contidos no processo de elaboração da identidade e a forma como cada indivíduo
se lança e se prende a identidades particulares.
Segundo Silva (2000, p. 74), a identidade é aquilo que se é, e dá como exemplo: "sou
brasileiro". Desta forma, a identidade pode ser entendida como algo sobre o qual não se
admite dúvidas e que desfrute de autonomia. Ou ainda, “(...) a identidade só tem como
referência a si própria: ela é autocontida e auto-suficiente”. Pode-se dizer também que a
diferença se basta por si só, embora, contrariamente à identidade, a diferença constitui-se
daquilo que o outro é, por exemplo: "ela é mulher". Neste contexto, a diferença, tal e qual a
identidade, é entendida como aquilo que faz alusão a si mesmo.
No entanto, constata-se que identidade e diferença são altamente dependentes uma da
outra. O modo afirmativo como o sujeito se refere à identidade tende a ocultar essa relação.
Ou seja, é devido ao fato de existirem pessoas de variadas nacionalidades que se afirma que
alguém é francês, por exemplo.
As afirmações a respeito da diferença não têm cabimento se não estiverem
relacionadas com as afirmações concernentes à identidade. Afirmar que o sujeito é brasileiro,
é o mesmo que expressar que ele não é francês, italiano etc. As afirmações referentes à
diferença resultam ainda de uma sucessão, embora não revelada, de pronunciamentos que
negam as demais identidades. Pode-se dizer que a identidade e a diferença dependem uma da
outra mutuamente. Ambas jamais se separam.
A identidade e a diferença são dependentes entre si e são também a conseqüência do
modo como se dá a linguagem, ou seja, elas não são dadas pela natureza, elas são produzidas.
Ambas são construídas social e culturalmente.
81
Afirmar a identidade é o mesmo que delimitar fronteiras, distinguir o que está excluído
e o que está incluído. Essa divisão, ou melhor, essa classificação do mundo social entre "nós"
e "eles", vem consolidar as relações de poder.
O processo classificatório é de grande importância. A sua compreensão pode se dar a
partir da divisão e da disposição do mundo social em grupos. A identidade e a diferença estão
ligadas aos diferentes modos através dos quais a sociedade cria as classificações e vale-se
delas. Estas últimas são construídas na perspectiva da identidade. "Dividir e classificar
significa, neste caso, também hierarquizar. Deter o privilégio de classificar significa também
deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados.” (SILVA,
2000, p. 82)
Butler (1999), colabora com esta discussão ao desenvolver o conceito de
performatividade. Este, ao invés de ressaltar a identidade como algo que descreve, tal como
algo é, e cuja notoriedade se mantém pela noção de representação, ressalta a concepção do vir
a ser, entendendo que a identidade está sempre em andamento e sempre se modificando. Para
a autora, a produção da identidade é uma questão de performatividade.
Ao se entender que a identidade e a diferença são criadas, equivale dizer que as
relações entre as diversas culturas existentes abarcam relações de poder. A identidade e a
diferença não possuem uma existência anterior, ou seja, elas não existiram o tempo todo,
muito pelo contrário, ambas são incessantemente produzidas e continuamente criadas
novamente. Assim sendo, "a identidade e a diferença têm a ver com a atribuição de sentido ao
mundo social e com disputa e luta em torno dessa atribuição”. (SILVA, 2000, p. 96)
Hall (2000) colabora com essa discussão apontando que as identidades teriam seu
início num passado histórico com o qual elas conservariam uma correlação. Através dos
recursos da história, da cultura e da linguagem é que se dá a criação do modo como vem-se a
ser e não do que se é. As identidades estão voltadas para aspectos tais como quem o sujeito
pode vir a ser, ou ainda, a forma como veio sendo representado e cuja representação implica
no modo como representa a si mesmo. Elas são ligadas à tradição, porém estão em constante
transformação.
Elas surgem da narrativização do eu, mas a natureza necessariamente
ficcional desse processo não diminui, de forma alguma, sua eficácia
discursiva, material ou política, mesmo que a sensação de pertencimento, ou
seja, a "suturação à história" por meio da qual as identidades surgem, esteja,
em parte, no imaginário (assim como no simbólico) e, portanto, sempre, em
parte, construída na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo
fantasmático. (HALL, 2000, p. 109)
82
As identidades são, portanto, produzidas no interior do discurso, ou seja, são criadas
em situações históricas e institucionais particulares, dentro de constituições e práticas
discursivas também particulares, passando ainda por estratégias e iniciativas particulares.
Estão relacionadas com situações de poder. São fragmentadas, apresentando diferenciações
internas e sendo caracterizadas pela diferença e pela determinação do que fica fora, do que
não está incluído.
Quanto à reelaboração cultural, Sahlins (1997) aponta como exemplo, os povos que
passaram pelo cerco do colonialismo e que agora tentam incorporar o sistema mundial ao seu
sistema de mundo próprio.
Segundo Latour (1996), diferentemente do que parece, as culturas percebidas como em
processo de extinção estão muito vivas, redescobrindo seu passado e propagando-se. Elas não
se entregaram à uniformidade do mercado global e do sistema capitalista.
Para Watson (1958), as conseqüências do industrialismo e do trabalho remunerado sob
a forma de salário apontam para o fato de que uma sociedade procurará se adaptar às novas
circunstâncias mediante as instituições sociais já estabelecidas. Essas instituições continuarão
existindo mesmo depois de passar pelo processo de mudança social, porém, seus valores serão
outros e estarão inseridos em um outro sistema social.
Alverson (1978) acrescenta que a incorporação dos aspectos da época moderna na
"auto-identidade" constitui uma nova produção. Pode-se dizer que a transformação da
identidade é conseqüência não só da forma como um povo percebe as modificações nas suas
condições materiais, como também, da forma como são forçados a se engajarem naquilo
determinado pelas instituições da cultura industrial.
Hannerz (1990) ressalta que nos tempos atuais há uma cultura mundial, a qual consiste
numa espécie de organização em que se administra as diversidades ao invés de se contestar a
uniformidade.
E ainda para Wagner (1975), os costumes passam a ser conscientizados em função
mesmo da sua capacidade de serem postergados, em situações como aquela em que povos
com costumes bem diferentes vivem muito próximos uns dos outros. Nesses casos, o que se
percebe muitas vezes é que esses costumes, além de um conjunto de qualidades morais e
emocionais adequados, tendem a ser forçadamente incorporados pelos jovens.
Retomando-se os conceitos de cultura de Bosi (1998) e Sahlins (1997) apresentados
antes, e os relacionando com a problemática da identidade, pode-se obter algumas conclusões
importantes para este trabalho.
Se a cultura compreende a elaboração simbólica da experiência e se a experiência dos
83
homens tem como mediação fundamental as necessidades de reprodução material e social
destes; pode-se então compreender a identidade como uma forma de agregação dos indivíduos
a partir do estabelecimento de proximidades que se constroem no campo da reprodução
material e simbólica.
Mais especificamente, a imersão histórica de um grupo em um conjunto de atividades
cotidianas de reprodução material, e as formas simbólicas que se agregam a estas, podem ser
as matérias-primas para a construção da identidade.
É a partir deste viés mais específico, que o problema da identidade entre os pescadores
de Jurujuba será investigado.
CAPÍTULO 2 - CARACTERIZAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA
DA COMUNIDADE DE JURUJUBA
Neste Capítulo busca-se traçar um perfil da população pescadora de Jurujuba, a partir
da análise de dados quantitativos obtidos com a aplicação de 249 questionários, em uma
amostra de famílias no bairro de Jurujuba em Niterói/RJ.
O bairro de Jurujuba subdivide-se em localidades, e segundo a estimativa do Programa
Saúde da Família (PSF), que lá atua, existiam cerca de 1173 famílias, em 2002.
A entrada no campo foi feita através da Associação de Moradores local e teve início
em março de 2002. A composição do questionário fechado, que constituiu o instrumento de
coleta de dados, foi realizada em conjunto com a Associação. Vale ressaltar que a proposta
inicial de questionário de coleta de dados veio a incluir variáveis que foram demandadas pela
Associação. Para a elaboração do levantamento sócio-econômico do bairro de Jurujuba, foi
feito um projeto de extensão comunitária institucional através da Universidade Federal
Fluminense (UFF), onde a autora dessa dissertação faz parte do quadro docente. Para a
aplicação dos questionários sócio-econômicos, contou-se com a participação de um aluno
bolsista de extensão da UFF. Adotou-se como critério, aplicar os questionários em 20% dos
domicílios de cada localidade.
Na medida em que o bairro de Jurujuba é constituído de morros, definiu-se que a
pesquisa seria feita seguindo as ruas, desde a sua parte mais baixa, até o seu ponto mais alto,
uma vez que os domicílios que se encontram na rua principal, e portanto na parte mais
baixa do morro, apresentam melhores condições, inclusive de saneamento, diferindo dos
demais domicílios situados ao longo da subida dos morros.
Com esses questionários buscou-se identificar características sócio-econômicas atuais
da população. Desta forma procurou-se apreender as seguintes informações: composição da
família; distribuição etária; tempo de residência; escolaridade; ocupação; renda; desemprego
85
e tempo de desemprego.
Os dados quantitativos, oriundos desses questionários, foram obtidos, portanto,
desagregados por áreas, e sua coleta estendeu-se até junho de 2002. Foram tabulados através
de cruzamentos realizados no programa SPSS, contando com a assessoria do Departamento de
Estatística da UFF.
As Características Sócio-econômicas
A amostra dos domicílios indicou que os núcleos familiares constituíam-se, em média,
de 3,33 pessoas, o que permite uma estimativa de 3906 habitantes para a população do bairro
(3906 + 136 habitantes, com 95% de confiança).
Nesta primeira Tabela abaixo pode-se observar a proporção da População
Economicamente Ativa (PEA) do bairro de Jurujuba. Ao somar-se os indivíduos que
trabalham e aqueles que procuram emprego, percebe-se que eles atingem a proporção de
51,3% a 58,3% (54,8% + 3,5%, com 95% de confiança) da população local. Nos demais se
encontram não somente indivíduos dependentes economicamente dos indivíduos ativos como
também os aposentados. Estes últimos, na população, estão entre 13,1% e 20,9% (17% +
3,9%, com 95% de confiança) dos não economicamente ativos.
Jurujuba
- Número
de indivíduos,
segundo
a inserçãosegundo
em atividade
TABELA
1 - Jurujuba
- Número
de indivíduos,
a inserção
em atividade
econômica
- 2002 econômica - 2002
Inserção em atividade econômica
PEA
Total
Número de indivíduos
Percentual
Trabalhando
355
44,8
À procura de emprego
79
10,0
Economicamente inativos
359
45,2
793
100,0
Na Tabela 2 seguinte, pode-se perceber o número total de indivíduos que ainda
encontra-se vinculado à pesca, na PEA do bairro. Como vê-se, o número de pescadores na
PEA é bastante pequeno, se levar-se em conta que Jurujuba é considerada ainda uma
"comunidade de pescadores". Estima-se, com os dados obtidos na amostra, que o total de
pescadores esteja, com 95% de confiança, entre 5,7% e 8,5% (7,1% + 1,4%) da população
86
total do bairro, o que permite concluir que, em média, existem aproximadamente 275
pescadores em Jurujuba, pertencentes à cerca de 85 domicílios. Talvez este dado explique o
fato de que a própria sede da Colônia de Pesca Z-08 encontra-se fechada, em estado de
abandono e a Associação de Pescadores local encontra-se em processo de reativação nos dias
atuais.
No entanto, a imagem que o bairro tenta projetar para o conjunto do Município ainda
se vincula à idéia de uma comunidade pesqueira. Um exemplo disto encontra-se na festa do
Padroeiro da mesma, "São Pedro", realizada no mês de junho. Nesta ocorre uma procissão de
barcos e na festa realizada no ano de 2003 encontrou-se um espaço reservado àqueles que
teriam feito a história da pesca no local.
Assim, a imagem que a comunidade projeta se assemelha a uma performance
discursiva que não se concretiza nos dados encontrados nesta pesquisa.
TABELA
2 - Jurujuba
- Número
de pescadores
no total na
Jurujuba
- Número
de pescadores
no total
da PEA identificados
da PEA
identificados
amostra
- 2002 na amostra - 2002
Número de pessoas
Percentual
Pescadores
56
12,9
Não pescadores
378
87,1
434
100,0
Total
Dentre o número de pescadores encontrados na amostra, pode-se dizer, conforme
demonstrado na Tabela 3 a seguir, que 78,6% deles são chefes de família, 1,8% são cônjuges
de chefes de família, e menos de 20% são filhas ou filhos. Isto parece indicar que os
pescadores são em geral indivíduos de maior idade que já constituíram suas famílias. Além
disto, parece não estar ocorrendo um processo de continuidade da atividade pesqueira dentro
dos núcleos familiares.
Os dados obtidos apontaram ainda para o fato de que somente 18% dos pescadores
passam para seus filhos a hereditariedade na pesca, ou seja, têm filhos trabalhando na pesca.
87
Jurujuba
- Pescadores
segundo- aPescadores
tipificaçãosegundo
de membro
da família - 2002
TABELA
3 - Jurujuba
a tipificação
de membro da família - 2002
Count
Número de
pescadores
Percentual
Chefe de família
44
78,6
Cônjuge
1
1,8
Filho/filha
11
29,6
19,6
56
100,0
Classificação do membro da família
Total
No Gráfico1 abaixo, pode-se constatar a idade dos chefes de família que se dizem
pescadores na amostra. Vê-se que a média alcança pouco menos de 50 anos.
Jurujuba - Idade dos chefes de família pescadores - 2002
12
Número de pescadores
10
8
6
4
2
Std. Dev = 9,81
Mean = 49,8
N = 44,00
0
30,0
35,0
40,0
45,0
50,0
55,0
60,0
65,0
70,0
IDADE
Gráfico 1 - Jurujuba - Idade dos chefes de família pescadores - 2002
Quanto à idade dos filhos que são pescadores, identificados na amostragem, pode-se
perceber conforme Gráfico 2 seguinte, que a sua média encontra-se em pouco mais de 25
anos. É nesta idade que se concentra a parte mais significativa destes, o que corrobora as
88
assertivas apresentadas anteriormente, pois poucos são os filhos de pescadores em idade mais
jovem.
Jurujuba - Idade dos filhos pescadores - 2002
4,0
Número de pescadores
3,0
2,0
1,0
Std. Dev = 6,90
Mean = 25,3
N = 11,00
0,0
17,5
20,0
22,5
25,0
27,5
30,0
32,5
35,0
37,5
IDADE
Gráfico 2 - Jurujuba - Idade dos filhos pescadores - 2002
No Gráfico 3 a seguir, que corresponde à idade de todos os pescadores da população
pesquisada, pode-se notar que a média fica pouco abaixo dos 45 anos. Porém existe uma
sobreposição da idade dos pais com a dos filhos, na faixa dos 35 anos. Os dois picos neste
Gráfico evidenciam a existência de dois grupos de pescadores: os pais com a idade modal em
torno dos 50 anos e os mais jovens (incluindo os filhos) com a concentração em torno dos 35
anos de idade.
89
Jurujuba - Idades dos pescadores - 2002
12
Número de pescadores
10
8
6
4
Std. Dev = 13,49
2
Mean = 44,8
N = 56,00
0
15,0
25,0
20,0
35,0
30,0
45,0
40,0
55,0
50,0
65,0
60,0
70,0
IDADE
Gráfico 3 - Jurujuba - Idade dos pescadores - 2002
Como vê-se na Tabela 4 abaixo, a grande maioria dos chefes de família da
comunidade é do sexo masculino, acompanhando uma tendência nacional.
TABELA 4 - Jurujuba - Chefes de família,
segundo o sexo - 2002
Jurujuba - Chefe de família, segundo o sexo - 2002
Sexo
Número de
Número
deChefe
Chefes
de
família
de família
Freqüência
percentual
masculino
219
88,0
feminino
30
12,0
Total
249
100,0
Ao averiguar-se a situação dos chefes de família de acordo com a sua ocupação,
percebe-se, na Tabela 5 seguinte, que de 13,0% a 22,4% (17,7% + 4,7% com 95% de
confiança) deles trabalham na atividade pesqueira, indicando o pequeno peso da pesca como
atividade econômica que viabiliza a reprodução material das famílias que ali residem.
90
TABELA 5 - Jurujuba - Chefes de família, segundo
a ocupação
com
a pesca - com
2002a pesca - 2002
Jurujuba - Chefes de família,
segundo
a ocupação
Número de chefes de família
Freqüência percentual
Pescador
44
17,7
Não pescador
205
82,3
249
100,0
Total
Dentre esses chefes de família que trabalham na pesca, constata-se, conforme Tabela 6
abaixo, que 45,5% (45,5% + 12,4%, com 95% de confiança na população de pescadores)
deles trabalham também em uma segunda atividade. Este dado mostra, mais uma vez, o
quanto a atividade pesqueira não mais caracteriza o bairro, pois além de somente cerca de
17,7% dos chefes de família serem pescadores, por volta da metade destes desenvolvem outra
atividade remunerada.
Jurujuba
- Chefes
de família
pescadores,
conforme
a existência
de uma
TABELA
6 - Jurujuba
- Chefes
de família
pescadores,
conforme
segunda
ocupação
2002
a existência de uma segunda ocupação - 2002
Número de chefes
de família
Freqüencia
percentual
Pescador com segunda ocupação
20
45,5
Pescador sem segunda ocupação
24
54,5
44
100,0
Total
O Gráfico 4 a seguir dá alguma indicação, a respeito da renda individual dos que
declararam ter a pesca como única fonte de renda. Como vê-se, a média de rendimentos destes
alcança R$276,00. A concentração maior se encontra na faixa entre R$250,00 e R$300,00;
seguida da faixa de R$300,00 e R$350,00. Um número muito pequeno de indivíduos recebe
renda maior que R$350,00.
Vale ressaltar que dos 39 indivíduos que declararam ter a pesca como única ocupação,
35 deles apresentaram renda relacionada à atividade pesqueira, 2 deles se declararam
desempregados e outros 2 não declararam renda recebida.
91
Jurujuba - Rendimento dos pescadores que declararam
não ter segunda fonte de renda - 2002
18
Número de pescadores
15
12
9
6
3
0
200 - 250
300 - 350
250 - 300
400 - 450
350 - 400
500 - 550
450 - 500
550 - 600
Rendimento de pescador
Média de rendimentos: R$ 276,00 (desvio padrão: R$ 57,36)
Número de pescadores na amostra: 35
Coeficiente de variação: 20,78%
Gráfico 4 - Jurujuba - Rendimento dos pescadores que declararam
não ter segunda fonte de renda - 2002
Quanto aos indivíduos que possuem renda proveniente tanto da atividade pesqueira
quanto de uma segunda ocupação, o Gráfico 5 a seguir permite fazer algumas observações.
Constata-se que dos 56 trabalhadores que se declararam pescadores, 17 deles têm
renda proveniente de uma segunda ocupação, incluídos aí, 2 casos de renda de aposentadoria.
Já quanto aos trabalhadores que declararam ter uma segunda ocupação, 5 deles não
apresentam a renda da segunda ocupação declarada. Como vê-se, a média de rendimentos
deste grupo alcança R$538,00. Estes se concentram em três faixas de renda: R$450,00 R$500,00; R$550,00 - R$600,00 e R$600,00 - R$650,00. Vê-se ainda que um pequeno
número destes chega a alcançar rendimentos entre R$750,00 e R$800,00. Quando compara-se
os Gráficos 4 e 5, vê-se que a segunda ocupação eleva substancialmente a renda individual do
pescador.
A partir dos dados obtidos, foi possível tecer algumas conclusões em relação à média
da renda per capita, nos domicílios nos quais o chefe de família se declarou pescador. Pode-se
92
perceber que quando o chefe de família é pescador e não tem uma segunda ocupação, a média
encontrada é R$188,71 - (total de 20 casos). Para os que têm uma segunda ocupação, a
média encontrada é R$172,17 - (total de 20 casos). Há quatro casos sem referência de renda
per capita, uma vez que o dado sobre a renda não foi fornecido nesses quatro domicílios.
Pode-se observar que não há diferença estatisticamente significativa entre a renda per
capita das famílias nas quais o chefe não tem uma segunda ocupação e a daquelas onde o
chefe possui uma segunda ocupação (teste t de Student t=-0,622; p > 0,05); assim a renda de
ambos os grupos se equivale. Talvez isso se deva ao fato de que em famílias maiores existe a
tendência a que o chefe complemente a renda obtida como pescador com outra atividade
remunerada.
Jurujuba - Rendimento dos pescadores que têm renda
proveniente de uma segunda ocupação - 2002
18
Número de pescadores
15
12
9
6
3
0
200 - 250
300 - 350
250 - 300
400 - 450
350 - 400
500 - 550
450 - 500
600 - 650
550 - 600
700 - 750
650 - 700
750 - 800
Rendimento do pescador
Média de rendimentos: R$ 538,00 (desvio padrão : R$ 99,03)
Número de pescadores na amostra: 17
Coeficiente de variação: 18,41%
Gráfico 5 - Jurujuba - Rendimento dos pescadores que têm renda
proveniente de uma segunda ocupação - 2002
O Gráfico 6 seguinte diz respeito à renda obtida por aqueles trabalhadores que não
atuam na pesca. Como vê-se, a média de renda aqui chega a R$338,00. A concentração está
na faixa de R$200,00 a R$300,00; seguida pela faixa entre R$300,00 e R$400,00. No entanto,
alguns indivíduos chegam à faixa entre R$900,00 e R$1000,00. Observando-se os Gráficos 4,
93
5 e 6 pode-se concluir que na média de renda, os não-pescadores ficam acima dos que
somente são pescadores, mas abaixo daqueles que agregam outra atividade à pesca.
Média de rendimentos: R$ 338,00 (desvio padrão : R$ 166,47)
Número de pescadores na amostra: 378
Coeficiente de variação = 49,25%
Gráfico 6 - Jurujuba - Rendimento dos não-pescadores - 2002
Média de rendimentos: R$ 338,00 (desvio padrão : R$ 166,47)
Número de não-pescadores na amostra: 378
Coeficiente de variação = 49,25%
Gráfico 6 - Jurujuba - Rendimento dos não-pescadores - 2002
O Gráfico 7 a seguir indica que a renda obtida pela segunda ocupação dos pescadores
é tanto menor quanto maior for a sua renda de pescador. Pode-se levantar a hipótese inicial
segundo a qual quanto mais o pescador se dedica à pesca e nela obtém uma melhor
remuneração, menos tempo tem para dedicar-se a uma segunda ocupação e conseqüentemente
conseguir uma melhor remuneração nesta atividade.
94
Jurujuba - Relação entre a renda da pesca com a renda adicional
dos pescadores com uma segunda ocupação - 2002
Renda adicional de pescador com outra ocupação
500
400
300
200
100
Rsq = 0,1323
180
200
220
240
260
280
300
320
340
360
Rendimento de pescador
Gráfico 7 - Jurujuba - Relação entre a renda da pesca
e a renda adicional dos pescadores com uma segunda ocupação - 2002
Quanto ao nível de escolaridade, pode-se perceber na Tabela 7 abaixo, que entre
87,5% e 98,3% (92,9% + 5,4%, com 95% de confiança) está a proporção de pescadores que
possuem o ensino fundamental ou começaram a cursá-lo, enquanto que no máximo 4,6%
(1,8% + 2,8%, com 95% de confiança) chegaram ou concluíram o ensino médio.
TABELA
7 - Jurujuba
- Escolaridade
dos pescadores
Jurujuba
- Escolaridade
dos pescadores
- 2002- 2002
Escolaridade
Número de pescadores
Percentual
ensino médio
1
1,8
ensino fundamental
52
92,9
não declarada
3
5,4
5,3
56
100,0
Total
Quanto à escolaridade dos chefes de família que trabalham na atividade pesqueira,
pode-se perceber conforme Tabela 8 a seguir, que nenhum deles alcançou o ensino médio.
95
Dentre eles, 76,2% (entre 65,2% e 87,2%, com 95% de confiança na população) possuem
somente o primeiro segmento do ensino fundamental, enquanto que 23,8% (entre 12,8% e
34,8%, com 95% de confiança para a população) alcançaram o segundo segmento.
TABELA 8 - Jurujuba - Escolaridade dos chefes
Jurujuba - Escolaridade dos
chefespescadores
de família-pescadores
- 2002
de família
2002
Número de chefes de
famnilia
Percentual
Ensino Fundamental (5a. a 8a. série)
10
23,8
18,2
Ensino Fundamental (1a. a 4a. série)
32
65,9
76,2
Total
42
100,0
Escolaridade
Quanto ao nível de escolaridade dos chefes de família que não trabalham na pesca,
pode-se observar, conforme a Tabela 9 abaixo, que 73,9% deles (73,9% + 2,0% na população,
com 95% de confiança) possuem apenas o ensino fundamental, 23,0% (23,0% + 1,9% na
população) possuem o ensino médio e 0,5% (de 0,2% a 0,8% na população, com 95% de
confiança) tem nível superior. Vê-se assim, que a escolarização média dos chefes de família
que não trabalham como pescadores é muito mais elevada que a dos chefes de família
pescadores.
TABELA
9 - Jurujubados
- Escolaridade
dos chefes
família
Jurujuba
- Escolaridade
chefes de familia
nãodepescadores
não-pescadores
2002
2002
Escolaridade
Número de chefes de familia
Percentual
ensino superior
1
,5
ensino médio
43
23,0
ensino fundamental
138
73,9
73,8
alfabetização
4
2,1
analfabeto
1
,5
187
100,0
Total
Na Tabela 10 seguinte, pode-se perceber que dentre as localidades que compõem o
bairro de Jurujuba, Cascarejo é aquela que apresenta o maior número de chefes de família que
96
trabalham na atividade pesqueira, talvez isso se deva a sua localização, próxima do final do
bairro, e conseqüentemente mais próxima das áreas onde tradicionalmente ocorrem as saídas
de barcos e baleeiras para a pesca.
Jurujuba 10
- D-isJurujuba
tribuição -dDistribuição
os chefes de fdos
amíchefes
lia pescde
adfamília
ores,
TABELA
segpescadores,
undo a locasegundo
lidade - 2a0localidade
02
- 2002
Localidade
Percentual
Salina
11,4
Peixe Galo
13,6
Pau Ferro
11,4
Jurujuba
6,8
Cascarejo
38,6
Canguna
18,2
Total
100
CAPÍTULO 3 - VOZES DA PESCA DE JURUJUBA
Neste Capítulo, busca-se através das histórias de vida dos pescadores de Jurujuba,
perceber como as transformações ocorridas na atividade pesqueira foram, subjetivamente,
sentidas por essa população.
As entrevistas abertas realizadas com os moradores foram gravadas e ocorreram
através de um roteiro previamente definido. Com essas entrevistas buscou-se coletar dados
qualitativos para que se tornasse possível a compreensão da forma como se desenvolvem as
características sócio-econômicas mapeadas através do questionário, e para poder-se ir além na
compreensão de aspectos subjetivos que explicam configurações objetivas. Além disso, nos
importa compreender como pescadores e ex-pescadores percebiam: a) a evolução da pesca
local frente aos impactos ambientais que se aprofundaram na Baía de Guanabara nas últimas
décadas; b) a questão da identidade dos moradores do bairro frente a esta relação entre pesca e
impactos ambientais.
O roteiro de entrevista compreendeu os seguintes itens: trajetória habitacional;
trajetória escolar; trajetória profissional e ocupacional; a vida dentro da pesca; as relações ao
redor; a lógica da pesca; a impactação da Baía; o número reduzido de pescadores; a forma
como o bairro de Jurujuba é hoje; e a forma como se sente, hoje, as transformações ocorridas
na pesca.
Não houve um critério para a escolha de quais moradores seriam entrevistados. Em
geral, eles eram escolhidos, diretamente, a partir das relações que a pesquisadora ia
estabelecendo na comunidade, ao longo do tempo.
98
Entrevista 1
"E a questão também da lâmina d'água que não dá pra se renovar muito. Nesse fundo
da Baía... vem muito segmento de esgoto in natura, né?"
O Sr. Paulo nasceu em 1940, em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, região do
Pantanal. Sua mãe era índia, pertencia à tribo dos Bororós, fato que é motivo de muito
orgulho para ele. Ela trabalhava como doméstica numa fazenda. Naquela época, seu pai
trabalhava na área de manutenção de uma companhia de avião, chamada Cruzeiro do Sul.
Fazendo uma viagem ao Mato Grosso, ele conheceu sua mãe, e lá se casaram. Quatro anos
após o nascimento do Sr. Paulo, vieram os três morar no Rio de Janeiro. Lá deixaram seu avô,
que administrava uma fazenda, e seu padrinho, que era de nacionalidade japonesa e
proprietário de uma fábrica de adubo. Mas, nunca mais tiveram notícias de seus parentes.
Estudou no Rio de Janeiro, no bairro de Engenho de Dentro. Não completou o 2º grau.
Tentou fazer o Curso Básico de Contador, mas não foi possível porque na época, como disse,
já tinha família para sustentar.
Em 1958, mudou-se para Rio do Ouro, em Niterói, na esperança de melhorar de vida.
Veio para atuar, juntamente com um grupo, na campanha de Jânio Quadros, candidato à
presidente da República naquela época. Nesta ocasião, sua filha tinha poucos meses de
nascida. Não deu sorte "porque Jânio assumiu e logo depois renunciou e todo mundo ficou a
ver navios". Com o término da campanha, ele passou a trabalhar na casa do seu sogro,
limpando pé de laranja. Durante pouco mais de um ano, trabalhou em limpeza de sítios e
limpeza de pés de laranja, visando o sustento de sua primeira filha. Sua segunda filha nasceu
em 1960.
Morou em Rio do Ouro até 1962, nos últimos dois anos trabalhava como subgerente
de um armazém e conheceu uma menina que o convidou para conhecer Jurujuba, onde ela
morava com a mãe. Ele foi, morou em sua casa, num quarto cedido e depois morou com essa
menina durante 25 anos. Foi conhecer o bairro de Jurujuba, e desde que conheceu nunca mais
saiu de lá. Já está na segunda família no bairro. Ficou casado durante esses 25 anos, teve três
filhos, perdeu um.
Começou a pescar em 1964, quando nasceu seu filho. Voltou a trabalhar em sítio,
localizado no ponto final de Jurujuba. Morou neste sítio durante 23 anos. Naquela ocasião,
além de zelar pelo sítio ele também trabalhava como pescador. Seu segundo filho, com
problemas de saúde, faleceu com 6 anos de idade. E depois veio o terceiro filho, que hoje já
99
tem uma família construída. Por volta de 1990 se separou, e constituiu outra família, agora
com mais dois filhos, uma filha com dez anos e um garoto com cinco.
Pescou muito tempo em Jurujuba, embora nunca tenha aprendido a nadar. De fato,
pescou durante mais de vinte anos. Pescou até aproximadamente 1985. Em 1987 passou a ser
diretor da Colônia de Pesca, ocasião em que parou de pescar e começou a trabalhar em terra.
O Sr. Paulo lembra que na época em que ele foi para Jurujuba, já havia algumas
embarcações a motor, mas a maioria das pescarias pequenas era feita em canoa. Eles
pescavam em canoa, com rede traineira. Iam sete companheiros numa canoa de nove metros,
mais ou menos. Iam "lá fora em Itaipu".
A gente botava na canoa, a gente cercava no mar e tinha que cobrar, controlar
aquilo na mão... A corda que trabalha nas anilhas, aquilo era tudo puxado à
mão...Hoje em dia tem o guincho, antigamente não. Eu, como era o mais
fraco da pescaria...eu vivia na popa da embarcação com a cabeça dentro
d'água e as mãos dentro d'água quando soltava a rede, pra evitar que a rede
fosse na hélice da canoa, porque na canoa o motor era na popa. A canoa ia
andando, aí soltava a rede e se bobeasse a rede ia na hélice, então ia com a
mão afastando a rede, pra evitar que desse problema.
O Sr. Paulo conta que havia a canoa a remo também. A pescaria a remo se dava
dentro da Baía, chamava-se pescaria de arrastão. Consistia em jogar a rede, cercar no mar e
puxar para a terra. "Mas a maioria, essa nossa, era tudo motor de popa, mas a gente levava
remo também porque às vezes o motor de popa enguiçava, a gente tinha que ir no remo."
Ele passou uns oito ou dez anos pescando dessa forma mais descapitalizada. Depois,
com o capital que ele e seu compadre acumularam, pescando artesanalmente, construíram um
barco. A partir de então, deixaram a canoa e passaram a pescar em barco, uma traineira de
nove metros.
A canoa também tinha mais ou menos nove metros, só que era baixinha,
quando vinha com muito peixe, vinha quatro dedinhos fora d'água, a gente
vinha direitinho, quietinho, sem se mexer, porque se mexesse de um lado ia
todo mundo pro fundo. O meu apelido na embarcação, onde a gente pescava,
era mestre-bomba porque eu que tirava água da embarcação. Eu vinha na
popinha, perto do motorista do leme, abaixadinho ali, só com a caçambinha
tirando água pra evitar que a água pegasse a embarcação.
Esse grupo de pescadores, chamado de guarnição, companheiros ou companha, era um
grupo muito unido. "Às vezes saía um, entrava outro, mas a maioria ficava sempre unida."
A remuneração era feita por partes. Cada um tinha uma posição e ganhava de acordo
com essa posição. O proeiro, que era o mestre, ganhava três partes; o motorista que conduzia
100
a embarcação recebia duas partes; o chumbeleiro ganhava duas partes; o corticeiro também
ganhava duas partes e os outros companheiros ganhavam uma parte. E existia, ainda, a parte
da embarcação, do proprietário, que além de dono era proeiro. "Ele trabalhava, ele queria
trabalhar porque ele queria zelar pelo material dele, né?"
Naquela época, eles iam para o Mercado vender o peixe e só havia despesa com óleo e
combustível da embarcação. O restante eles dividiam pelo número de partes estabelecidas.
(...) por exemplo assim, nove partes do barco, aí vinha três do proeiro, duas
do motorista...Via quantas partes dava, somava as duas partes, via o dinheiro
e rateava. Vamos dizer, dezoito partes... Fazia R$1.800,00? No caso, seria
R$100,00 por parte. Quem ganhava uma parte ganhava só R$100,00, mas
quem ganhava duas, ganhava R$200,00.
O desconto previdenciário, era considerado muito caro e, portanto, inviável de ser
realizado, fosse ele como profissional autônomo ou não. "O autônomo também, a autonomia
era cara e não dava pra embarcação pagar isso."
"Era raro a gente fazer dinheiro, fazia pouco dinheiro. Às vezes, tirava R$20,00;
R$30,00. Era mil réis naquela época, parece... né? Meu trabalho era esse, e dava pra
sobreviver muito bem, porque não tinha aquela inflação galopante que existe hoje em dia."
O Sr. Paulo conta que no interior da Baía, eles conseguiam algum pescado na área de
Paquetá. E fora da Baía, embora não fosse permitido, eles pescavam em Itaipu, Copacabana,
Praia Vermelha e Botafogo.
Até aproximadamente 1980, o pescado era vendido no Mercado da Praça XV ou então
em Niterói. Como o peixe não era tão valorizado como nos dias de hoje, era mais fácil vendêlo porque havia menos compradores. Com a desativação do Mercado da Praça XV, a situação
dos pescadores piorou, uma vez que o Mercado de Niterói não tinha condições de absorver
toda a produção.
Quando tem muito peixe ali, você é obrigado a dar o peixe quase de graça,
tem um termo...é uma mercadoria perecível e você não tem um frigorífico pra
armazenar, então, o que eles fazem? A maioria dos compradores... juntam
todos... um só que vai botar o dinheiro em leilão, os outros ficam esperando.
Depois, aquele que comprou a preço mais barato... aí eles rateiam entre eles e
com isso o pescador é obrigado a se desfazer, porque a mercadoria é
perecível, né? Se tivesse um frigorífico que pudesse armazenar o peixe e
pegar outro preço...
O Sr. Paulo, hoje, está à frente da Associação dos Pescadores, e conta que está se
esforçando para conseguir pagar, aos poucos, a dívida que aí encontrou. Visando obter
101
dinheiro para ir amortecendo a dívida contraída, ele abriu um estacionamento para automóveis
na área interna da Associação. Uma vez que há espaço interno também para dois frigoríficos,
ele está se dispondo a ir à Brasília este mês para tentar obter recursos para construí-los,
entendendo que a vida do pescador artesanal seria facilitada com a construção desses
frigoríficos. "Pescador profissional, ele tem mais recurso, o artesanal não tem quase nenhum
recurso."
A falta de condições para o peixe se procriar na Baía, é um problema mencionado pelo
Sr. Paulo. Basta estar iniciando a época das sardinhas e já é possível ver as traineiras
chegando e realizando a pesca de forma predatória. Um outro fator também apontado pelo Sr.
Paulo, trata-se da poluição local. Ele conta que a fábrica de sardinha está sem funcionar a uns
quatro meses e já se sente uma melhora nas águas da proximidade. Inclusive constata-se a
presença, atualmente, de arrastão para pesca de camarão, fato que não vinha ocorrendo há
algum tempo, no interior da Baía.
Mas agora, você vê aqui esse arrastão que está matando camarão todo dia aí,
coisa que há mais de dez anos a gente não sabia o que era isso. Agora está
tendo bastante camarão aí. Sempre um criador de camarão...Mas depois que a
fábrica veio e começou a jogar aquele resíduo, aquela gordura, tapou a parte
do fundo do mar, (...)então, aquela alga que dava, aquela folhinha igual a uma
alface, sumiu. Agora, no arrasto vem aquela alface, está melhorando. E as
pessoas tão matando camarão aí: uns camarões desse tamanho assim... Oh,
muita coisa! Em arrasto aí de uma hora, vem dois, três quilos de camarão.
O Sr. Paulo conta que em 1990, quando ele atuava na Associação de Moradores, foi
feito um projeto de rede de esgoto para a comunidade. Este projeto foi levado para a ECO 92,
mas não obteve retorno satisfatório. Atualmente Sr. Paulo encaminhou o projeto de Estação
de Tratamento do bairro de Jurujuba para a empresa "Águas de Niterói". Ele espera, em
breve, conseguir que a rede de esgoto seja implantada em sua comunidade.
"Se isso acontecer, isso vai dar muito peixe... Agora vem o pessoal que está pegando
as sardinhazinhas, as curvinotazinhas pequenininhas... Vem a mudança... Se isso aí parasse
um pouco, isso aqui ia voltar a ser criador de peixe. Porque tem condição de dá muito peixe
aqui."
Atualmente, ele está construindo sua casa própria. Ele diz não medir sacrifícios para
ajudar as pessoas, dentro de suas possibilidades, muito embora sofra algumas críticas.
Aqui no bairro, dizem que sou rico... Não tenho nada, devo a todo mundo,
entendeu? Mas quando eu quero fazer as minhas coisas... Eu não meço
sacrifício pra fazer uma casinha aqui pra mim agora, pra sair lá do morro.
102
Não tenho nada (...). Eu faço muita coisa aí, a troco de nada. (...) Eu consigo
remédio pra comunidade, tiro documento pra um e pra outro, nunca cobrei
um centavo a ninguém, entendeu? (...) isso incomoda algumas pessoas. Elas
pensam que você está fazendo por interesse, que está ganhando dinheiro com
isso. Mas não existe dinheiro, pelo contrário, às vezes você perde dinheiro.
Eu acho que dinheiro não é tudo na vida... Você ajudando o próximo, puxa!!
É mais do que ter dinheiro no bolso. Dinheiro, você tendo pra sobreviver, é o
suficiente.
Quando Sr. Paulo se iniciou na pesca, as canoas estavam no auge da atuação. Ele
descreve o processo que levou pescadores artesanais como ele, a acumular algum capital.
Conta que, até então, a pesca de atum era desconhecida por eles. Só havia um barco, que
praticava essa pescaria, chamava-se "Niterói". A isca necessária para essa pescaria, o próprio
barco pescava. Mas a partir do momento que sentiram dificuldades para obtê-la, passaram a
chamar o pessoal local para pescá-la. Foi nessa ocasião, aproximadamente em 1969, que Sr.
Paulo e outros pescadores começaram a atuar nesse tipo de pescaria, e dezenas de outros
barcos vieram atraídos. Esses barcos eram procedentes da Ponta D'Areia, de Angra dos Reis,
de Santa Catarina, e do Nordeste do Brasil. "Alguns barcos que faziam anteriormente pesca da
lagosta lá... começou a fracassar (...) aí eles começaram a vir pra cá com os barcos e iscar aí.
E nós iscávamos aí, de canoa."
Com o dinheiro que foram ganhando neste tipo de pescaria em canoa, muitos
conseguiram acumular algum capital.
"E esse pessoal, com o dinheirinho que foi ganhando de canoa... um fez um barco...
daqui a pouco, outro fez um barco... deu pra eles construírem um barco com o dinheiro que
iam ganhando nas pescarias nas canoas pra iscar."
Sr. Paulo aponta para a abundância de atum existente, naquela época. Eram muitos
barcos pescando, em torno de 40 embarcações.
O atum tinha tanto, que eles iam lá... dois dias depois eles estavam voltando
pra apanhar isca, outra vez. Era a sardinha pequenininha que a gente matava
pra eles (...) lugar que sempre deu muita sardinha pra pesca que eles fazem,
sempre foi essa região nossa aqui. A sardinha servia de isca.
É interessante observar que a chegada de embarcações mais capitalizadas e voltadas
para uma pesca mais predatória, acabou puxando a acumulação de alguns pescadores
artesanais que passaram à condição de proprietários de barcos. Estes instauram uma nova
lógica de concorrência que acaba levando os pescadores artesanais a sérias dificuldades que se
sobrepõem, por um lado à própria questão da concorrência, depois à questão da sobrepesca
103
que se aprofunda. Aqueles que podem sair da Baía e procurar outros espaços pesqueiros se
diferenciam dos que, com suas canoas artesanais não podem ir tão longe.
Alguns pescadores de Jurujuba continuam trabalhando nesse tipo de pescaria."Se
engajaram e estão até hoje, e ganharam muito dinheiro." São barcos de 20 metros, 18 metros,
aptos para enfrentar mar aberto. O Sr. Paulo afirma que, em Jurujuba, as embarcações
pequenas, os botes, são construídos pelo próprio pessoal local. Atualmente eles não constroem
mais canoas, porque a sua confecção requer uma única madeira inteiriça, e isso não é mais
possível hoje em dia. Ao passo que o bote, este é construído com placas de compensado.E
para a confecção dos barcos grandes, o Sr. Paulo diz que
"agora... tem um rapaz que está
com estaleiro aí, que está construindo barco grande."
Nos barcos grandes existe uma maior segurança para se trabalhar. Além de mais
seguros, eles comportam um maior número de pescado capturado. E ainda permitem a
conservação do pescado já que levam gelo em seu interior.
Na canoa era difícil, não dava pra botar gelo. Você tinha que ir com o peixe
sem gelo...chegar em terra... apanhar o tabuleiro, forrar o tabuleiro de gelo e
botar o peixe. No barco não, no barco tem os porões preparado pra isso
mesmo, pra você botar o gelo e quando matar o peixe gelar ele ali dentro e
conservar mais.
Sr. Paulo afirma que, em Jurujuba, existem muitos proprietários de barco. "Tem um
rapaz aí que tem seis embarcações e ainda está construindo alguns barcos, é um dos diretores
da Colônia."
Ele diz que, atualmente, ainda existem muitos pescadores em Jurujuba, porém os
jovens, estes já preferem seguir outras profissões.
"Aqui nessa comunidade, a grande maioria ainda é pescador. Só essa nova geração
está buscando outros tipos de trabalho. Mas 70% da comunidade ainda é envolvida com a
pesca, direta e indiretamente." No entanto, conforme visto no Capítulo 2, os números obtidos
apontam que apenas 7,1% da população do bairro, se constitui de pescadores. E ao observarse, dentre os chefes de família aqueles que são pescadores, este número sobe para 17,7%.
Como envolvimento indireto com a pesca ele aponta alguns casos:
(...) têm as kombis que levam para o Mercado de peixe... tem os outros que
compram pra revender em outros lugares. Não pescam, mas tem condução,
pegam o peixe e levam para o Mercado pra vender. Tem outros que compram
ali pra revender em outros lugares. Fazem venda direta. Então eles são, a
maioria, envolvidos com a pesca, indiretamente.
104
O Sr. Paulo aponta algumas questões como responsáveis pela atual difícil situação da
pesca em Jurujuba. Tempos atrás, nesta localidade, além de uma maior abundância de peixes,
existia também um menor número de embarcações. Hoje em dia a pesca é mais predatória, e o
problema se agrava com a poluição existente nas águas da Baía de Guanabara.
E o peixe também não dá pra criar, porque o pessoal vai e pesca
indiscriminadamente, mata a criação, mata os filhotes e depois ele não vai
poder se reproduzir. A poluição também atrapalhou muito, esse monte de
casa que foi construída ao redor, esse esgoto sendo tudo desembocado dentro
da Baía, aqui na Baía, aqui dentro. E a questão também da lâmina d'água que
não dá pra se renovar muito. Nesse fundo da Baía... vem muito segmento de
esgoto in natura, né?(...) Se abrisse um canal aqui, dava pra renovar o
espelho d'água. Dava pra renovar completamente, e conseqüentemente
melhorava mais.
O Sr. Paulo aponta o uso constante da chamada "rede caiçara", que é altamente
predatória, e captura inclusive os peixes ainda em crescimento. Diz que só usava rede
predatória em alto mar, critica os que usam em Jurujuba. Considera Jurujuba um criatório
natural de peixes e crustáceos.
As embarcações maiores, a gente chama de caiçara, que também é de rede de
malha, mas a gente pesca lá fora... curvineira pesca lá fora da Baía, no mar
alto. Mas aqui dentro, tem muita embarcação que pesca aqui dentro, rede de
malha, que coloca e começa a bater, jogar pedra para o peixe emalhar. Isso aí
também ajuda a destruir isso.
E ele vai além: "se a gente conseguisse colocar aqui uns arrecifes, uma reta, e ficasse
um tempo sem ninguém pescar aqui dentro... No ano seguinte, a gente já teria peixe aqui com
fartura. É que não dá peixe mais".
Quanto à tradicional festa de São Pedro que acontece todos os anos em Jurujuba, o Sr.
Paulo conta que a parte religiosa é organizada pela igreja, pela irmandade e pelo pároco da
igreja. E para a parte festiva, também chamada de parte profana, eles contam com um festeiro,
pessoa que se oferece para organizar a festa, ou simplesmente escolhem alguém da
comunidade para fazê-lo. Trata-se de um investimento nos conjuntos musicais que se
apresentam durante os festejos. O Sr. Paulo trabalhou na organização de festa, durante dois
anos. Considera uma atividade desgastante. As pessoas sempre achavam que ele ganhava
dinheiro para desenvolver aquele trabalho. E ele então, desistiu. "Eu, nas duas festas que eu
dei, nos dois anos seguidos... Nós fizemos uma melhoria substancial na nossa igreja."
Todos os barcos de Jurujuba são enfeitados, são muitas embarcações saindo na
105
procissão, acompanhadas da queima de fogos de artifício. "Tem um rapaz que constrói os
barcos, Ademir o nome dele, né? Todo ano ele solta muitos fogos no dia da procissão.
Quando a procissão sai, vai até a porta da casa dele e ali já sabe que ele solta muito, gasta
muitos fogos."
O Sr. Paulo diz que atualmente, a maioria dos peixes consumidos em Niterói é
pescado com os barcos de Jurujuba. Praticamente são eles que abastecem o Mercado de
Niterói. Antigamente eles vendiam no Rio, iam com a embarcação carregada de pescado e
descarregavam no Porto do Rio. O restante era vendido em Niterói. "Agora não, a gente vende
direto pra Niterói, Mercado São Pedro, que pertence à Colônia de Pesca de Jurujuba, (Z-08).
O Mercado cá fora, atacadista... não lá dentro, aquela galeria não."
Sr. Paulo conta que, atualmente, a Colônia de Pesca, a Z-08, está situada na parte
externa do Mercado de Peixe de Niterói. Quando ele foi presidente da Colônia, ajudou a
construir o prédio onde seria a sede da Z-08. Após a conclusão das obras, ele se afastou da
Colônia, por motivos de divergências internas, e a partir daí, o prédio ficou abandonado.
Inicialmente ele havia conseguido com o INCRA, um prédio no Rink, bairro de Niterói. Na
ocasião, ele fora à Brasília, e o processo que estava em andamento, foi abandonado quando
ele se afastou da Colônia. "Não ligaram... aí o INCRA tirou eles de lá. Tiraram eles de lá, e
tiveram de construir uma sede lá no Mercado de Peixe mesmo." Mas a sede da Colônia
continua sendo em Jurujuba, embora seu prédio esteja totalmente abandonado.
Naquela época, a Colônia fez um convênio com uma firma que precisava de um local
para guardar material. Cederam para esta firma um espaço que não era utilizado no Mercado e
em contrapartida receberam ajuda para terminar a obra em Jurujuba. A nova presidência
assumiu e não se interessou pelo prédio. "E quem está lá como presidente da Colônia, hoje em
dia, não gosta de Jurujuba, ele é da Ilha da Conceição. Ele não gosta e não quer trazer a
Colônia pra aqui."
A Z-08 engloba Niterói e também São Gonçalo. Sr. Paulo suspeita de que a Colônia Z07, que funciona em Itaipu, pertencerá só à Maricá, fazendo com que Itaipu passe também a
pertencer à Z-08.
Ele diz estar querendo voltar a atuar na Colônia para que possa lutar para retirar o
Município de São Gonçalo, do âmbito da Z-08. Na opinião de Sr. Paulo, o Município de São
Gonçalo deveria criar uma Colônia própria, e deixar que a Z-08 abranja somente a região até
o Barreto. "A Z-08 não cuida direito nem aqui de Niterói, como é que ela vai atender São
Gonçalo? São Gonçalo tem um porto lá, eles negociam o pescado. Por que eles não criaram
uma Colônia pra eles?"
106
As histórias que são contadas sobre os pescadores, deixam o Sr. Paulo muito
contrariado. Muitos dizem que "o pescador não planta nada no mar, só vai lá colher". Ele não
concorda com essa afirmação. Antes de sair para pescar, o pescador faz um grande
investimento. Ele precisa investir em embarcação, rede, e demais apetrechos: bóia, colete,
bússola, fogos de sinalização, corda e etc. Abastecem o barco com óleo e combustível,
providenciam o gelo e levam alimentos para a companha.
A gente não planta nada no mar, mas também não se colhe com facilidade,
não. A gente vai lá, é como se tivesse plantado. Mas mesmo assim, essa
plantação é incerta porque a gente vai lá e de repente você não acha nada, aí
você vai embora pra casa. No dia seguinte, tem que fazer aquela mesma
ladainha de botar tudo outra vez, e é mais despesa.
Quando o pescador chega a capturar o peixe, o valor obtido com a venda do pescado
capturado não é suficiente para cobrir as despesas anteriormente feitas. "Aí, o companheiro
vai, leva dois, três dias, quatro dias, às vezes uma semana, só pra pagar a despesa, não ganha
nada."
E muitas vezes, o companheiro tem a sorte de capturar um peixe, ganha um dinheiro e,
ao invés de ir para casa vai comemorar no botequim, deixando lá tudo o que ganhou. "Muitos
fazem isso. Ah! Amanhã eu ganho mais, já ganhei R$30,00 hoje, amanhã eu ganho R$50,00,
mas não é assim não. A história não é bem essa não."
Além de tudo isso, o pescador também arrisca a sua própria vida. "De repente, o mar
dá um mar revolto lá, e volta e meia fica um lá."
Um outro aspecto importante está relacionado com os atravessadores. Os
companheiros se sentem obrigados a lhes vender o peixe por preços abaixo do esperado.
Você vai lá, mata o peixe, quando chega pra vender não tem o valor que
merece, porque tem aqueles atravessadores que não plantam nem nada, ficam
só de braços cruzados, esperando lá chegar porque sabem que aquilo é
mercadoria perecível, se não vender, vai jogar fora, e compram pelo preço
que eles querem.
Quando o peixe chega ao consumidor final, ele já está custando, muito mais caro.
"Quem matou o peixe lá, que se sacrificou lá, que correu risco, não ganha nada, quem tá com
a mão pra trás esperando, que tem dinheiro no bolso, que ganha muito mais."
O Sr. Paulo acha que, até hoje, não houve um governo que apresentasse uma boa
política voltada para a pesca. A pesca nunca teve o tratamento que deveria ter. Nunca houve
107
incentivo e financiamento para o pescador.
Já fizeram isso, mas não para o pescador. Porque financiamento para o
pescador... O pescador chegava no banco, tinha que ter uma casa pra
penhorar, ou então um avalista, isso não era financiamento...Quem pegava
esse dinheiro eram pessoas que tinham condições e pra usar pra outra coisa,
pra pesca não usava.
Ele ouviu dizer que o novo governo dispõe de uma verba grande destinada à pesca.
"Que eles olhem com carinho a parte do pescador artesanal, o pescador pequeno, miúdo, e que
precisa de ter uma redezinha miúda pra poder sobreviver."
E espera que sejam criadas "alternativas de ganho ligadas à pesca, serem criadores de
peixe".
Em poucos dias, ele irá com um grupo à Brasília visando sensibilizar o governo. "O
pescador artesanal, o pescador caiçara, ele precisa também de ter incentivo, não é só para os
grandes armadores." São muitos os pescadores artesanais existentes no Estado do Rio, eles
precisam de incentivo para se desenvolverem. "Talvez nem seja individualmente, mas em
grupo de 5 ou 6 pescadores. Aí você dá um financiamento pra aqueles 6 pescadores poderem
desenvolver um trabalho, tipo cooperativa, né?"
Preocupado com o pescador artesanal, é que o Sr. Paulo pensa em construir o
frigorífico na Associação de Pescadores. "Eu preciso construir um frigorífico, pra que? Pra
esses pescadores pequenos. Vai levar o pescado... não tem preço... Coloca dentro do
frigorífico e espera um preço melhor." Segundo ele, não se trata de acabar com o
atravessador, mas ao menos os disciplinar um pouco, para que o trabalho desse pescador seja
valorizado.
O Sr. Paulo conta que por volta do ano de 1983, quando ele e seu compadre voltavam
da pesca no "barquinho" que pertencia a ambos, eles iam para o Mercado vender o pescado.
Chegando lá, caso não conseguissem um bom preço na mercadoria, ao invés de venderem por
qualquer valor, ele preferia utilizar uma kombi e subir os morros Cavalão, do Estado e outros
(todos em Niterói), para doar os peixes. "Tinha muito disso, muitas vezes eu me sinto
satisfeito com isso. Me achava explorado, eu estava empenhado e no fim aquele pessoal
chegava ali, apanhava pelo preço que quisesse, que a gente tinha que jogar fora, que a gente
não tinha como guardar."
Com relação à Associação, criada em 1985, o Sr. Paulo recorda que ali eles tinham
uma fábrica de gelo, a única existente em Jurujuba. Dali eles forneciam gelo para todos.
Atualmente esta fábrica está toda destruída e não existe financiamento para recuperá-la. Ele
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pretende aproveitar as duas "câmaras isotérmicas" existentes para construir dois frigoríficos
lá. Ele acha que fazendo isso, e construindo uma rampa para os pescadores puxarem o barco,
e uma ponte, ele estará ajudando os pescadores artesanais. "Que aí, eles vão ter como guardar
o pescado. Se não tem preço... vai... guarda..., no dia seguinte leva. Ou então a gente deixa na
Associação depois vende pra eles, enquanto que eles vão pescar outros."
O Sr. Paulo está tentando organizar a Associação, desde 1995. Vai tentar mais uma
vez, caso não consiga, ele vai desistir. "Botei naquela ocasião, 13 mil e poucos reais meus.
Agora, estou tirando tudo sem juros e correção monetária. Tá muito difícil!" As tentativas de
obter financiamento foram em vão: "a gente vai tentar pegar financiamento, mas tá caríssimo,
não dá pra cobrir. A gente assim não consegue fazer nada, né? Se arriscar, amanhã ou depois
tem que vender seu patrimônio".
O Sr. Paulo diz que foi recentemente eleito presidente da Federação das Associações
de Moradores do Município de Niterói (FAMNIT), e também é presidente da Associação de
Pescadores, a qual ele está tentando reativar.
Em Jurujuba, hoje em dia, eles contam com a assistência de uma advogada da UFF e
de uma médica que não cobram nada a eles. Contam também com o serviço odontológico, e o
protético atende a comunidade e cobra barato.
O Sr. Paulo acredita que se a rede de esgoto for implantada em Jurujuba, a situação vai
melhorar muito. O esgoto recebe tratamento somente até o Preventório, o bairro de Jurujuba
não é contemplado. "Se a gente conseguir implantar a rede de esgoto aqui, vai melhorar
muito mais o espelho d'água. E com isso, eu tenho certeza que vai dar muita criação de
peixe."
Uma outra grande fonte de preocupação para o Sr. Paulo, é a estação de aerobarcos
prevista para ser inaugurada no Preventório. Para ele, o pescador artesanal vai perder mais um
espaço de pesca, porque supõe que ali vá funcionar como área de linha de barcos e o pescador
ficará impedido de realizar a pesca naquela área. A implantação da estação de aerobarco
somada às questões dos iates clubes, que fazem os campeonatos de barco, são consideradas
para o Sr. Paulo como "mais um agravante pra pesca." Ele não sente nem os pescadores, nem
os seus dirigentes preocupados com isso. Ele teme que depois de um dia inteiro de
funcionamento, o aerobarco deixe óleo nas águas da Baía, fato que afugentaria o peixe.
"Melhora o esgoto das residências e vai piorar a questão do óleo diesel e outras coisas mais
que vão soltar aí no mar..."
Ao falar dos jovens, Sr. Paulo aponta que essa nova geração não tem encontrado na
pesca, a segurança para a sua subsistência. Ele está tentando conseguir verba para iniciar um
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curso de preservação da cultura do pescador em sua comunidade. Este curso teria como
clientela esses jovens que estão na escola, na faixa etária de 14 a 16 anos. Freqüentariam o
curso em turnos opostos ao da escola. O aprendizado constaria de noções de como costurar a
rede, emendar a corda, aprender a salgar o peixe, desviscerar o peixe, além de primeiros
socorros. Sr. Paulo já tem um cálculo do custo do curso, e considera um projeto
barato."R$48.000,00 durante um ano, você vai diplomar 180 jovens e vai ajudar pelo menos
uns 20 pescadores que estão hoje em dia sem poder trabalhar, e tem conhecimento... e tem um
ganhosinho."
Mas até agora, o Sr. Paulo não obteve nenhum respaldo e percebe que a maioria não
sabe trabalhar em rede, atualmente. No tempo em que ele pescava, as pessoas ficavam ao lado
do mestre-de-rede e à medida que iam observando, iam aprendendo alguma coisa. Hoje em
dia, os donos dos barcos pagam àqueles camaradas que já sabem fazer o trabalho e aqueles
pescadores que não têm esse conhecimento são dispensados. O trabalho de costurar a rede é
cobrado por diária. "Essa diária, ele tira do bolo. Quem não sabe trabalhar, não aprende e tá
tirando do bolo pra pagar aqueles que já sabem trabalhar. A maioria é daqui, são os
aposentados que vem ganhar um trocadinho."
Na época em que Sr. Paulo pescava, a rede era feita de fio de náilon de seda. Com o
uso, a rede ia perdendo a cor e para protegê-la e devolvê-la a coloração, eles utilizavam a tinta
de murici ou aroeira. Sentavam no meio-fio e socavam o murici com uma marreta, depois o
colocavam no fogo, em tacho de metal. Quando a tinta de murici, estava fervendo, eles
colocavam a rede dentro do tacho e ela ganhava aquela cor avermelhada da tinta. Atualmente
o náilon é diferente, é industrial, não é mais necessário tingir a rede.
Tudo acontecia de forma que enquanto uns pescadores atavam a rede na pedra,
despertava a curiosidade dos outros que ali estavam socando o murici. Desta forma, uns
aprendiam com os outros. "Agora não, ninguém faz nada na pedra, não cozinha mais nada, a
rede não faz mais nada disso."
Quando retornavam da pescaria em canoa, eles iam para o porto, chegavam na
chamada Pedra do Canto, e ali tiravam a rede. Dois ou três companheiros iam vender o peixe
no Mercado e os outros permaneciam cuidando da rede. Quando não era possível, eles iam
com rede e tudo vender o peixe no Mercado que era na rua da praia, na Visconde de Rio
Branco. Depois voltavam e batiam a rede.
Batia a rede é o seguinte: a gente encostava a canoa na beira da praia, ficava
um só segurando um remo pra não deixar a canoa bater de contra a pedra. E
você puxava a rede pra pedra, e sacudia pra limpar a rede pra tirar peixe
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podre...aquelas coisas...pra não deixar peixe, porque a gente deixava a rede
na pedra com peixe.... o rato vinha, ruía a rede todinha. Então a gente tinha
que sacudir a rede, depois esticava ela na pedra pra secar e costurava, onde
tinha que costurar. E quando estava muito branca, (...) a gente botava no
tacho pra dar coloração nela.
Quando voltavam do Mercado, cada um ganhava a sua parte, de acordo com a posição.
Atualmente, existe o meeiro, que é um contrato feito com o dono da embarcação. Mas ainda
existe a "parte" também.
Em geral, são os filhos de donos de embarcação que trabalham nas traineiras. Eles
aprenderam com seus pais. Com a perda dos pais, eles passaram a assumir seus lugares e
alguns deles conseguiram prosperar. Mas, hoje em dia, a nova geração não segue a profissão,
porque não sente incentivo. "Vê o pai ir para o mar, mata peixe e na hora de vender o peixe
não tem valor nenhum. Aí, vai nas barcas lá, vê que o pai vendeu por R$1,00; vê que na banca
tá R$5,00. Por que tanta diferença,assim?"
O Sr. Paulo então conclui que há uma falta de incentivo para os jovens se ingressarem
na atividade pesqueira. Essa falta de incentivo passa principalmente, por questões
relacionadas ao baixo preço obtido com a venda do peixe, devido à ação dos atravessadores.
Existem muitos fatores que dificultam a reprodução do pescador artesanal. Estes vão desde a
ausência de frigoríficos para poder guardar os peixes e poder esperar para vendê-los no
momento certo, ao invés de ter que vendê-los a qualquer preço para evitar que se deteriorem,
passando por problemas de poluição local e pelo poder predatório das pescas atuais. O Sr.
Paulo conclui também que existe uma perda da memória da pesca artesanal.
Entrevista 2
"A nossa Baía é muito poluída. Antigamente dava muito peixe, hoje não dá peixe
como antigamente aqui dentro da Baía."
O Sr. Norberto nasceu no ano de 1943. "Sou nascido e criado em Jurujuba." Foi criado
pela sua mãe e suas irmãs, sem a presença do pai. Todos, no núcleo familiar, nasceram em
Jurujuba, com exceção do pai que era natural do Ceará. Completou o 4º ano do ensino
fundamental na escola estadual local, Colégio Fernando Magalhães. Quando ia fazer a prova
para ingressar no antigo Ginasial, parou de estudar e iniciou sua vida no trabalho, para ajudar
a família.
Quando tinha pouco mais de 12 anos, o Sr. Norberto foi gerente de pensão. Aos 13
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anos começou a pescar, mas não achava que trabalhar na pesca fosse bom para ele. "Então, eu
vi que aquela vida de pescaria não servia pra mim. Aí, eu dizia para o mestre: vou largar isso.
O mestre era até o meu cunhado."
Depois veio a época de servir o exército, e após "dar baixa" ele voltou a pescar. No
entanto, afirma que continuou sem se adaptar à pesca "não me adaptava mesmo, não sei o que
batia em mim, eu dizia para o meu cunhado, eu vou largar isso. E ele dizia: 'que nada, você
vai fazer um curso de patrão de pesca aí'".
Um outro cunhado o convidou para trabalhar na empresa de navegação São Miguel. E
mesmo sendo informado das dificuldades que teria lá, ele quis experimentar. Começou a
trabalhar no estaleiro e só depois foi para o mar. Lá, fazia-se o abastecimento de óleo e água
de navios.
Tempos depois, o Sr. Norberto trocou o seu documento de pescador para o de "moço
de convés". Quando foi despedido da empresa São Miguel, ele foi para a Companhia de
Navegação do Estado do Rio de Janeiro (CONERJ), onde trabalhou durante 21 anos.
Somando esses 21 anos com os 6 que trabalhou na firma anterior, ele pode se aposentar.
Hoje eu estou, graças a Deus, aposentado. Dava pra me aposentar e aí eu me
aposentei porque lá 5 vale 7, porque é insalubre. Quer dizer, nesse percurso
todo importou 35 anos 4 meses e 29 dias. Mas não trabalhei este tempo todo,
trabalhei menos, só porque insalubre conta diferente.
Hoje, o Sr. Norberto é presidente da Associação de Moradores local, ele a preside
desde 2000.
Trabalhou durante 15 anos na pesca. Pescava em traineira "pra 10 toneladas", e
segundo ele, não era de grande porte, mas também não era um barco muito pequeno. Era uma
traineira que navegava para Santos, Ilha Grande, Cabo Frio e Macaé. O Sr. Norberto conta
que naquela época ainda existiam canoas. Hoje em dia elas foram substituídas pelas baleeiras.
Agora é baleeira, canoa ficou de lado. Canoa, você tinha que arranjar madeira
pra você fazer... madeira única. Hoje em dia é difícil... Agora não, com a
baleeira você vai numa loja de madeira, compra o compensado e diz para o
carpinteiro: eu quero assim... a metragem que eu quero é assim de largura,
boca, comprimento... A maioria do pessoal que pesca agora, é baleeira.
Naquela época tinha canoa, era no remo. Hoje, as baleeiras são com
motorzinho na popa, a remo é muito pouco.
O Sr. Norberto diz que está há mais de 30 anos fora da pesca. Quando ainda atuava na
atividade pesqueira, ele pescava fora da Baía e confessa que ganhou muito dinheiro
112
trabalhando dessa forma. Hoje em dia ele constata que a pesca em Jurujuba está muito
diferente do tempo em que ele a praticava. No seu tempo, o pescador ficava durante vários
dias no mar, hoje, toda noite o pescador volta para dormir em casa independentemente de ter
feito uma boa pescaria ou não. "Antigamente, a gente saía quatro horas da tarde, varava a
noite e tal, se não viesse nada, de madrugada arriava o ferro pra descansar um pouquinho...
clareava o dia." Depois com a introdução do aparelho de sonda já era possível pescar mesmo
com a luz do sol: "o dia ia clareando...então a gente ia procurar mais peixe, às vezes o
encontrava; às vezes rodava o dia todo... parava... almoçava, tal... outra noite..." Mas
atualmente, segundo o Sr. Norberto, os pescadores não se dedicam à atividade da pesca tanto
quanto naquela época.
Hoje o pessoal sai quatro horas da tarde, uma suposição, regressa nove horas
da noite, e não encontra nada. Aí sai cinco horas da manhã novamente, às
vezes fica o dia todo, mas só aqui dentro da Baía, lá fora muito pouco. Eu
ficava cinco dias... três dias no mar. Hoje o pessoal está todo dia em casa, não
tem explicação pra isso. Isso a traineira.
Ele revela que embora nunca tenha visto ou praticado a pescaria de caiçara, esta sim, é
realizada durante vários dias no mar, mas é perigosa. O barco utilizado para essa pescaria
chama-se caiçara e fica sete ou oito dias no mar. Os pescadores carregam diversas redes que
vão sendo "esticadas" uma aqui outra mais ali na frente. Depois de um ou dois dias dá-se o
seu recolhimento. No caso de haver peixe capturado, eles serão gelados e em seguida a rede
será novamente "esticada", são diversas redes que vão ensacadas. Os barcos utilizados são de
médio porte e são seguros, é uma pescaria feita "fora de barra".
O Sr. Norberto diz que esses barcos não eram pequenos: "é 8 toneladas, 10 toneladas
por aí assim ..."
Aos 26 ou 27 anos o Sr. Norberto deixou a pesca. E daquele tempo em que pescava,
ele recorda-se das más condições de acomodação existentes para a tripulação nos barcos:
(...) dava um temporal e você estava com ferro ancorado ou correndo mesmo
do temporal... a gente dormia em cima da rede molhada, dormia no convés,
que não tinha a comodidade... assim acolhedora... pra toda a guarnição. Tinha
um beliche lá com 6 vagas e tinha em cima da caixa de máquina, ali dava o
motorista, o chumbeleiro... Era assim, e o resto ficava em cima da rede,
botava japona (...) e ficava dormindo ali... quinze, dezesseis...
Quanto ao trabalho desempenhado no barco, ele diz que atuava no convés. "Cada um
tinha a sua função. Eu não tinha função, era no convés. Cheguei a tirar o documento de
113
motorista de pesca, mas nunca usei."
Segundo ele, naquela época, a Capitania dos Portos exigia dois anos de trabalho
embarcado, para que o pescador pudesse obter a carta de motorista. Porém, mesmo não tendo
atuado nas condições de embarcado, o Sr. Norberto afirma ter conseguido a carta, embora
nunca a tivesse utilizado. "Só valeu na troca de meu documento de pescador pra moço de
convés".
Ele lembra que naquela ocasião foi sondado pela Capitania, no sentido de obter o
documento de "carvoeiro" ou "moço de convés". "Agora é motorista, marinheiro de máquina,
antigamente, era carvoeiro." E ele prontamente respondeu, que máquina, ele não queria. "Eu
quero convés. Foi aí que eu troquei o meu documento."
O Sr. Norberto diz que mesmo hoje em dia, exige-se do pescador que ele tenha atuado
durante dois anos embarcado para que possa realizar o curso, por exemplo, para marinheiro,
cabotagem ou contramestre, oferecido pela Casa do Marinheiro. O ideal é que a empresa
empregadora promova o aprendizado, caso contrário, as dificuldades são muito grandes. Foi
trabalhando embarcado na CONERJ, que o Sr. Norberto aprendeu muito, sem nunca ter
realizado curso.
Hoje está mais difícil do que antigamente. Antigamente, se trocava um
documento pelo outro, hoje em dia não, você tem que prestar curso, a
estabilidade, a navegação, o radar... Você tem que conhecer isto tudo. Eu sem
fazer curso, eu saí da Companhia entendendo muito bem de radar. Eu
pretendia fazer um curso, mas então eu estava aprendendo, eu era o
marinheiro de leme, então eu trabalhava com o comandante, então eu
chegava lá e ligava o radar.
Ele aponta a situação daquele profissional que obteve a documentação, porém jamais
atuou no mar. Quando ficavam surpresos vendo-o ligar o radar, ele dizia: "eu quero aprender
a navegar no radar... 'mas Norberto, você me ensinou rapaz...', te ensinei a navegar na maré...
O cara nunca viu o mar, mas tinha o documento, né?"
O Sr. Norberto conta que hoje as pessoas que trabalham na cabotagem, estão atuando
na Bacia de Campos, nas plataformas, nas firmas que prestam serviço para a Petrobrás ou na
Petrobrás mesmo. Provavelmente ele também estaria nessas condições, caso não estivesse
com um problema de saúde na perna. "Se eu não me aposentasse, eu poderia estar nessa. Eu
não estou trabalhando mesmo, embora aposentado, por causa da minha perna se não eu estava
trabalhando como marinheiro. Mas graças a Deus está dando pra viver."
Ele relata que na época em que atuava na pesca, ele não exercia nenhuma outra
114
atividade. "Quando você é pescador, você não tem tempo de estudar. Pescador não tem tempo
de estudar não, nem de trabalhar em outra coisa, de maneira alguma. É uma fase difícil, então
a pessoa fica ali."
Ele, inclusive, aconselha os jovens a não trabalharem na pesca, os incentiva a buscar
outras formas de subsistência que não a atividade pesqueira. "De vez em quando eu converso
com um rapaz... Oh rapaz, procure estudar... sai disso... que até pra você embarcar hoje em
dia está difícil. Dono de barco não quer embarcar você."
O Sr. Norberto fala do número reduzido de pessoas do bairro que ainda trabalham na
pesca: "hoje aqui em Jurujuba, me parece... de morador... deve ter uns 20% só que pescam, o
resto estuda, trabalha; não vê resultado. Eu acho que os pais mesmos que trabalharam na
pesca não incentivam."
Ele ressalta o problema que os pescadores enfrentam diante da falta de legalização de
sua situação de trabalho. Ele conta que em Jurujuba, na época da entressafra da sardinha, os
pescadores não podem pescá-la. "Então eles não podem matar a sardinha, por causa da
procriação, né?" Nesta ocasião, o governo paga a esses trabalhadores um ou dois salários,
desde que estejam embarcados, ou seja, desde que estejam com a sua situação de trabalho
legalizada. E é aí que o problema surge, pois já que ficam proibidos de pescar, eles deveriam
deixar os barcos em que trabalham, passando a contar com esse salário proveniente do
governo. Mas o que ocorre é que a grande maioria dos pescadores não dispõe de
documentação, não tem sua situação legalizada, inviabilizando, portanto, outras possibilidades
legais de sobrevivência como trabalhador da pesca durante esse período de respeito ao ciclo
de reprodução de espécies marinhas. E quanto aos armadores, estes não têm interesse no
embarque da guarnição, porque implicaria em custos para eles.
Pra ele receber essa subvenção ele tem que desembarcar no ato. Não pode
matar sardinha... então não sai pra pescar. Então tem que desembarcar pra
poder ter direito àquele um salário, dois salários pra sobreviver. E a maioria
do pescador aqui não tem esse direito porque não é legalizado, não é
embarcado. Eu sou revoltado com isso. Têm muitos que nem documentos
têm. É porque o dono do barco tem que pagar o INSS, tem que depositar o
fundo de garantia, isso tem que sair tudo da pesca.
O Sr. Norberto revela também que muitas vezes o pescador aceita trabalhar nos
barcos, mesmo que de forma ilegal, porque não vê outra solução para a manutenção de sua
subsistência através da pesca. "Às vezes vai sem estar embarcado porque precisa trabalhar,
não tem outro meio de sobrevivência, né? Então ele vai assim mesmo desembarcado,
115
entendeu? Quer dizer, mas eu não acho isso legal."
Ele diz que não é por falta de vaga nos barcos que os pescadores deixam de ser
embarcados.O problema é que o pescador não possui a documentação necessária para a
legalização de sua situação, e mesmo se a tivesse, ela não é solicitada. "Pra embarcar,
geralmente tem vaga sim, pedir documento é que ninguém pede. E às vezes quando pede, o
pescador que diz que é pescador, não tem. Eu sempre fui revoltado por esses motivos."
Os armadores ou mestres, segundo ele, como não têm interesse nessa legalização,
levam os trabalhadores a manterem-se ilegalmente na pesca e obrigando-os muitas vezes a
camuflarem essa situação. Sr. Norberto conta que "tirou" seus documentos quando tinha 20
anos, e mesmo assim não conseguiu que o embarcassem. Ele não aceitava quando, para
enganar os agentes fiscalizadores, era solicitado para se esconder dentro do barco em que
estava trabalhando, para que não fosse descoberta a ilegalidade existente naquela embarcação.
Quando a Capitania batia, encostava na borda do barco, o mestre ou o dono
do barco, mandava a gente se esconder. Eu não vou me esconder! "Mas por
que Norberto?" Porque você não me embarca porque você não quer. Às vezes
eu ainda ajudava a encostar a lancha no barco. O sargento ou o tenente que
estava comandando ali, entrava no barco pra pedir documento. Você não
adianta me esconder... Se eu estou me escondendo, eu estou devendo... e eu
não estou devendo rapaz... A minha caderneta está no fundo da minha bolsa.
Isso é uma prova que vocês não me embarcam porque não quer. Agora... Eu
vou me esconder quando a Capitania vai abordar o barco? Eu não vou me
esconder nunca!
Como o Sr. Norberto não aceitava esse tipo de situação, ele percebia que era visto de
forma diferente dos outros. "Então sobre isso, aí eu já passava a ser marginalizado por alguns
donos de barco. 'Esse aí é polêmico... Esse aí não se esconde quando a Capitania encosta...
Norberto está certo, a gente não embarca ele porque não quer, entendeu?' "
Ele diz que atualmente a situação está mais difícil, e que já naquela época, por não ser
embarcado, ele correu o risco de não obter a sua documentação. "Quase não consegui meu
documento porque não era embarcado, não consegui os dois anos de embarque. Quase não
consegui trocar na época em que precisei; hoje em dia está pior ainda... eles continuam não
fazendo."
Ele conta que no tempo em que pescava, muitas vezes após uma pescaria, eles iam
direto com o barco para o Entreposto de Pesca da Praça XV, que naquela época abria às três
horas da manhã e fechava às cinco. Lá eles vendiam o pescado. "Então a gente encostava lá
pra vender o pescado. Aí vendia o que tinha lá, 1 tonelada, 2 toneladas, 3 toneladas, 10
toneladas, entendeu? Aí pegava o dinheiro. Era sardinha, xerelete, enchova, corvina, variava,
116
né?" Ele lembra que naquela época o pescador de Jurujuba não gostava de capturar sardinha.
E ao saírem do mercado por volta das oito, nove horas da manhã, eles abasteciam o barco com
gelo, água e óleo também, caso fosse necessário.
No trajeto de volta para o porto, eles calculavam a quantia que cabia a cada um.
Naquela época descontava-se primeiramente as despesas comuns, e o restante dividia em
partes. Hoje, segundo Sr. Norberto, a divisão é feita de forma que metade do valor obtido vá
para o proprietário do barco e a outra metade vá para a guarnição, dessa última descontam-se
as despesas comuns.
Aí vinha para o porto e ali já vinha fazendo as contas... Tanto para as
despesas... antigamente era assim. Vamos supor, fazia 100, tirava 20 de
despesa, ficava 80. Então daqueles 80 ia dividir ali em 25 partes... 30 partes.
Hoje não... hoje é o contrário, é meio a meio. Por exemplo, se faz 100, 50
para o dono do barco, 50 pra dividir com a guarnição e desses 50 que ficam
pra guarnição ainda sai, ainda tira despesa. Então aquela do barco, que era
pra entrar na despesa também, não entra.
Ele diz ser totalmente contra essa forma atual de divisão do valor obtido com a venda
do pescado. "É o caso... se estou pescando... eu estava criando polêmica, eu era polêmico por
esse motivo."
Ele explica que nessa atual forma de dividir o montante, ou seja, metade para o dono
do barco e a outra metade para a guarnição, dos 50% que cabem aos pescadores são abatidas
as despesas comuns e depois eles fazem o rateio: "tantas partes para o fulano, gelador ganha
duas partes, contramestre ganha quatro partes, o proeiro ganha 6 partes por aí assim, então do
dono mesmo não mexe nada." Ele diz que jamais aceitaria uma situação dessa. "Então, se eu
estivesse pescando ainda, eu era uma pedra no calcanhar deles. Eu não concordo nunca com
isso. Isso não muda, só piora."
O Sr. Norberto acha que a vida do pescador ficou prejudicada também em função do
Plano Real. Segundo ele, a atividade de pesca piorou muito a partir daí, principalmente com
relação à venda do pescado. "Porque antigamente eles falavam muito em 150 mil cruzeiros,
100 mil cruzeiros, certo? Agora não, é R$ 35,00... R$ 40,00. Sabe que R$ 40,00 pra uma
família com o cara que passou sete dias no mar não vai dar mesmo."
Ele diz que nos últimos tempos não se constata a introdução de nenhuma melhoria
significativa na atividade pesqueira em Jurujuba. "Está péssimo, muita gente reclama da pesca
aí, atualmente. Não melhorou nada... A tecnologia aqui, principalmente aqui, em Jurujuba não
mudou nada." Ele acha que não houve uma evolução na tecnologia empregada na pesca local,
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ao passo que em outros Estados ele percebe a existência de tecnologias já mais avançadas.
"Você vai pra outros Estados... a pescaria evoluiu, o tipo de trabalho evoluiu. Aqui não, eu
não sei o que houve, estacionou naquilo. Só entrou a sonda, o eco-sonda, quem pode comprar
um eco-sonda compra, quem não pode não compra, a sonda também."
Ele diz que as únicas novidades introduzidas na pesca em Jurujuba, os aparelhos de
sonda e eco-sonda, permitem que o barco navegue procurando o peixe mesmo em noites
iluminadas pela lua. Na época em que era pescador, não se pescava nessas noites porque a
claridade proveniente do luar dificultava a atividade. "O pescador principalmente com a lua
clara ficava três a quatro dias ou uma semana em casa despreocupado, hoje não tem nada
disso, acabou." Mas, segundo ele, essa foi a única inovação na pesca, "o resto continua a
mesma coisa, está ruim dentro e fora da Baía".
Quanto às mudanças percebidas, o Sr. Norberto lamenta a forma predatória como a
pesca vem sendo realizada em Jurujuba. Ele diz que atualmente vende-se peixes tais como
boca-torta, savelha e sardinha-laje, que não eram vendidos antigamente. "Quando cercava e
vinha boca-torta, o pessoal ficava até revoltado que tinha que fazer força pra jogar fora
quando era muito, né? A savelha, a casca dura principalmente, também isso não vendia, hoje
vende tudo." Segundo ele, as fábricas compram a boca-torta e a savelha para enlatar e dizem
que são exportadas para o Japão. "Mas a tecnologia na pescaria mesmo não mudou nada. E
essa tal da boca-torta e da savelha são mortas aqui dentro da Baía da Guanabara, não é fora de
Barra não, antes ninguém matava."
Além da pesca predatória ele constata também que a poluição das águas da Baía de
Guanabara levou a uma diminuição da quantidade de peixes naquela região.
A nossa Baía é muito poluída. Antigamente dava muito peixe, hoje não dá
peixe como antigamente aqui dentro da Baía. Às vezes aparece uma sardinha,
uma corvininha. O pessoal tem descarregado corvina, na minha opinião é um
crime, desse tamanhosinho assim...Leva para o mercado e não tem nem
preço.
Ele critica a forma como o IBAMA atua na fiscalização da pesca. Segundo ele, o
IBAMA deveria ser mais rigoroso, principalmente com aqueles que pescam para obter isca
para os barcos de captura de atum. "Era uma época do IBAMA estar em cima, não deixar
matar, deixar crescer, mas não." Segundo ele, a pescaria de isca para o "atunzeiro" é
permitida, mas a pesca da sardinha pequena para vender é proibida. "Se você encostar o barco
na entressafra com sardinha pequena ou no tamanho mais ou menos, o IBAMA está arriscado
a prender o barco, dar multa no barco, mas para o atunzeiro pode matar pra iscar." Ele
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reconhece que era muito polêmico, "eu já não tinha nem mais chance de trabalhar em barco
nenhum."
O Sr. Norberto revela que, atualmente, não deseja se envolver com a pesca
novamente. "Hoje, graças a Deus eu não estou mais envolvido com a pesca e nem me
preocupo mais com a pesca. Se algum pescador vier aqui, depender de uma ajuda de qualquer
coisa, se eu puder ajudar, eu ajudo sim, mas eu me envolver com a pesca não, de maneira
nenhuma, nem quero."
Quando ele saiu da CONERJ, pensou em comprar um barco de pesca, mas logo
desistiu da idéia. Ele acha que não conseguiria conviver com todas aquelas irregularidades, ao
mesmo tempo em que também não via condições de reverter toda aquela situação. "Mas
depois pensei... não quero não, eu ia me chatear muito... ia mesmo. É o caso, se eu gostava
das coisas tudo certo, eu tinha que andar certo também e alguns armadores vinham contra
mim, 'mas Sr. Norberto você não pode agir assim não, você tem que agir conforme...'"
Ele acha que hoje em dia, quem não trabalha na pesca está muito melhor de vida do
que aqueles que trabalham. "Teve um colega meu que teve três barcos de pesca, hoje não tem
nenhum. O cara vende coco na praça, é aposentado também, vende uma cervejinha, agora ele
está melhor do que na época em que estava com o barco, muito trabalho... vou abrir o jogo...
É muita aporrinhação."
Ele conta que a desonestidade na pesca é grande, atinge não só a guarnição como
também os armadores. "O dono tem que estar na frente se não é roubado também. Tem isso, o
armador tem que estar ali se não é roubado pelo mestre... têm essas coisas também... Então há
desonestidade de um lado e de outro. Às vezes eu não gosto nem de comentar mais sobre a
pesca."
Quanto às fábricas de sardinhas, o Sr. Norberto diz que elas são responsáveis por
grande parte da poluição das águas da Baía de Guanabara. "Nessa praia aqui, as fábricas de
sardinha escangalharam as praias, né? Então as fábricas estão paradas, eu não sei porque estão
paradas, uma tem mais de anos que está fechada, a daqui tem mais de dois meses, pára...
fecha... Antes quando tinha pescado abastecia a fábrica."
Ele lamenta o problema da poluição proveniente tanto das fábricas quanto do esgoto
que é lançado todos os dias nas águas da Baía. E percebe que, atualmente, a pesca do camarão
foi viabilizada a partir do fechamento das fábricas de enlatamento.
Está dando camarão nessa praia imunda aí, pra você ver... depois que eles
pararam de jogar detrito aí na praia, está dando camarão. Agora... quanto que
as fábricas poluíam as praias aí! E o esgoto de Jurujuba é tudo jogado na
praia. Agora você vê... Criador de camarão! Um rapaz um dia desses matou
30 quilos, os garotos pescando de arrastão aqui, dois molequinhos... 3 quilos.
119
Tem camarão graúdo, entendeu? Agora você vê como a poluição acaba com
o negócio...
O Sr. Norberto diz saber da intenção de se despoluir a Baía, mas gostaria que tal fato
se desse em breve. "Aí, diz os governantes que a Baía da Guanabara vai ser despoluída, vai...
mas quando?"
Ele constata que a maioria dos pescadores que atuam na pesca da sardinha, trabalha
para abastecer os barcos de pesca de atum. E para tanto, eles não respeitam o ciclo de
reprodução da espécie. "Aqui dentro mesmo tem sardinha se criando aí, os barcos estão todos
pescando pra abastecer atunzeiros. Sardinhas desse tamanhosinho... Alguns são de dentro,
outros são de fora. É uma minoria, pescador de Jurujuba hoje tem muito pouco, a maioria é de
fora que veio pra pescar aqui."
Ao se referir ao bairro de Jurujuba, o Sr. Norberto acha que com o declínio da
atividade pesqueira, o bairro melhorou muito. Hoje em dia os moradores buscam obter um
melhor nível de escolaridade e almejam outros tipos de trabalho que não a pesca.
As pessoas procuraram estudar mais, se aprofundar mais no estudo, hoje eles
não procuram mais a pesca, a maioria procura trabalho, entendeu? Então, por
isso que Jurujuba está melhor. Jurujuba pela pesca estava lá embaixo, até as
fábricas de sardinha que ajudaram muito... na verdade, aquela lá do final está
fechada, as três fábricas daqui estão fechadas, não estão funcionando não.
Apesar de constatar que o bairro melhorou, o Sr. Norberto não concorda com a idéia
de Jurujuba passar a ser um bairro turístico, conforme vem sendo denominado. "Quer dizer,
em Jurujuba houve um progresso. Tanto é que aqui não está considerado mais bairro de pobre,
é considerado bairro turístico, eu sou contra isto também porque quem inventou isto, quem
jogou isto pra Jurujuba não vive aqui, se vivesse aqui..."
Ele entende que esta denominação se deu em função dos Fortes existentes ao redor do
bairro. "Rio Branco, São Luís, Fortaleza de Santa Cruz e Imbuí. Muita visitação na Fortaleza
de Santa Cruz, no Forte de São Luís, e tudo é pago nas praias dos quartéis... Então por isso
que é bairro turístico. E a comunidade, isso ninguém fala."
Ele constata que a comunidade fica prejudicada com essa nova concepção do bairro.
Um exemplo disso se deu no dia em que uma ONG estava distribuindo leite para a
comunidade do Preventório, local vizinho a Jurujuba. O Sr. Norberto, então, se dirigiu à
pessoa responsável pela distribuição, se apresentou como presidente da Associação e solicitou
que aquela ONG atendesse a comunidade de Jurujuba, já que também era constituída de
120
moradores de baixo poder econômico. A pessoa lhe negou o pedido, por entender que
Jurujuba não se tratava de um bairro pobre e sim de um bairro turístico. "Não, o bairro do
senhor é considerado bairro turístico, por isso que nós não procuramos o senhor." Ele diz que
em Jurujuba existem várias famílias, a maioria de pescadores, que estão passando por
dificuldades financeiras. "E estou correndo atrás de uma cesta básica aí e não estou
conseguindo pra dar pra essas pessoas, eu sei que estão passando necessidade, a maioria é
pescador. Então, por isso que a gente vê porque que o bairro é turístico, por causa dos
quartéis."
O Sr. Norberto afirma mais uma vez que a denominação de bairro turístico se dá em
função das visitações aos Fortes, que são inclusive pagas. E ele lembra de uma visita que fez
com uma família à Fortaleza de Santa Cruz: ao entrar a pessoa paga R$2,00 ou R$3,00 com
direito a um guia para a visitação. É um local que ele conhece melhor do que o próprio guia,
pois inclusive, o problema em sua perna foi adquirido lá, na época em que "servia". "E lá em
cima também paga R$ 3,00 pra ir, tem uma Van...paga R$ 3,00 a uma Van pra levar você. É
onde é o bairro turístico. Quem sofre a conseqüência, não são os quartéis, é a comunidade. Eu
acho isso errado. Mas quem que montou isso aí? Não sei."
Quanto à festa de São Pedro, o Sr. Norberto diz que atualmente, ela é organizada por
um grupo de fora da pesca. "Este ano foi um rapaz que mora lá no final quem fez, pescador
ele não. Não, pescador mesmo não se envolve, não sei porque." Quanto ao dinheiro
arrecadado, este não fica para a comunidade, vai todo para os organizadores. Somente a parte
religiosa é que ocorre por conta da igreja. Para ele, a festa perdeu todas as suas características
originais.
No ano retrasado e ano passado, não sei se você conhece, (...) o Secretário
Regional aqui, ele quem fez a festa porque a senhora dele tem uma
propaganda, né? Então ela que fez a festa, os gastos todos foram com ela,
uma barraca era R$ 400,00 pra alugar. Então, hoje em dia, a festa de São
Pedro é comércio, mas não volta nada pra comunidade e sim pra quem
organiza. Trabalham na barraca aqueles que alugam, as barracas todas são
alugadas, vem gente de fora pra trabalhar. Descaracterizou totalmente.
Segundo ele, a procissão de barcos é a única tradição mantida durante os festejos de
São Pedro. Ele á realizada pelos pescadores. Uma lancha da Barca S/A também vem
atualmente, mas os barcos são de Jurujuba e a maioria deles leva famílias. Um sorteio é feito
para determinar em que barco irá a imagem de São Pedro e em qual deles irá a banda. A
comunidade participa da procissão, mas também tem barco de fora participando. "Por
exemplo, um barco de Macaé está fazendo uma temporada aqui, tem uma pescaria aqui perto,
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vai, pesca e vem pra cá. Eles participam da procissão, também é só a procissão... mas não
enfeitam o barco, não enfeita nada, então só acompanha."
Ele conta que embora seja uma grande festa com duração de dois ou três dias, ela não
tem mais nada a ver com a comunidade de pescadores local. Na festa desse ano calcularam a
presença de um público de 30 mil pessoas, ele diz que Jurujuba "fechou" e tem "fechado" nos
últimos três anos de festa. "Não é da comunidade. Não tem mais um leilão. Aí eles contratam
cinco, seis bandas... Umas melhores do que as outras e aí tocando à noite. Três dias de festa,
então três dias de banda, forró, pagode. Então a festa se decorre assim... e as barracas!"
O Sr. Norberto acha que a festa deveria continuar sendo organizada pela própria
comunidade. No entanto, essas pessoas que antes estavam à frente da organização, sofreram
sérias acusações, fato que atualmente as deixam afastadas do processo, ao passo que outros
grupos externos à comunidade assumiram o papel. "Não sei porque a gente está saindo...
Porque quando você fazia festa, o pessoal daqui mesmo andava dizendo que havia
roubalheiras, mas nunca ninguém provou. Aí foram se chateando, largaram de mão. Agora
quem faz é grupo de fora, mas é muita gente."
Ele diz que a festa de São Pedro é tão freqüentada que não é necessário nem divulgála. Os arredores se transformam em estacionamento para o público: "aquele campo ali é
estacionamento, este campinho aqui é estacionamento, aqui na escola abre pra
estacionamento, aonde vai ser feito o colégio faz de estacionamento também, fora os carros
ficam na rua largados aí". Ele revela que se alguém passar mal lá dentro, terá dificuldades
para sair. E afirma que atualmente, o capital investido para a sua realização tem como
finalidade o lucro. "O pessoal adora, é muito bom. Agora, a pessoa olha mais o dinheiro,
investe pra ganhar. Acho que em todo lugar tá assim."
Mas, segundo ele, mesmo com todo o sucesso da festa, constata-se a perda do sentido
original das comemorações de São Pedro para os pescadores.
De dia, aquele monte de barraca lá... Pessoal bebendo cerveja, pessoal deixa
de almoçar em casa pra ir às barracas pra almoçar, lá tem umas comidas boas.
Eu mesmo de vez em quando vou almoçar lá. Vamos almoçar na festa. Três...
quatro colegas vamos lá almoçar durante o dia, tomando cerveja. À noite é a
mesma coisa, só que à noite tem o pagode, tem uma outra banda, outro tipo
de música, forró. Os artistas nunca vieram, só bandas, banda aqui de Niterói
mesmo. Porque esse grupo que fez a festa, eles fizeram um rodeio que foi
uma coisa de maluco. Muito bom, bons artistas, bons grupos de pagode, de
fama mesmo... Então foi esse pessoal que fez a festa do ano seguinte. Mas o
sentido da festa de São Pedro conforme era antigamente dos pescadores,
aquilo acabou.
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O Sr. Norberto, enquanto presidente da Associação, gostaria de conseguir reunir mais
a comunidade. Mostrar os planos que ele e outros têm para desenvolver dentro de Jurujuba.
"A gente bota um projeto pra funcionar, ou depender de ir pra Prefeitura, ou pra Fundação ou
pra qualquer lugar, a comunidade tem que partir junto. A força de uma Associação é isso, e
aqui não acontece." Segundo ele, a própria comunidade não aparece nas reuniões, não se
envolve com as questões que são do próprio interesse. "A comunidade, não estou
generalizando, a comunidade só vem aqui quando está precisando de alguma coisa, mas pra
agir pra comunidade mesmo que é deles, que é nossa, muito pouco aparece. Então eles
querem mais gente representando a comunidade, entendeu?"
Ele diz que o não envolvimento de todos com as questões comunitárias é responsável
por muitos problemas existentes em Jurujuba. "A comunidade, o morador é o culpado de
muita coisa aqui... de não acontecer aqui." Ele acha que em Jurujuba cada um cuida da sua
vida particular, mas não se preocupa com as questões da comunidade. "Porque não é só o
diretor da Associação que vai resolver muitos problemas, precisamos da comunidade em si,
tem mais força, a união faz a força. Eu sinto muito isso na nossa comunidade."
Ele revela que a UFF está desenvolvendo um projeto para viabilizar a posse de terra
dentro da comunidade. Eles estão começando a atuar pelo Cascarejo, localidade de Jurujuba.
Mas ele fica desapontado ao perceber que os próprios moradores não "compram" a idéia.
"Tem gente que diz que nós somos malucos ou então estamos levando dinheiro. A gente quer
se organizar... Posse de terra, então é pra se organizar, cada um dá o seu nome, faz o
cadastro... Muita gente acha que nós estamos malucos, pra deixar conforme está." Ele não
entende o fato das pessoas não se empenharem nessa questão do direito da terra onde moram.
Não está pensando que amanhã ou depois, um grupo empresarial pode dizer
que é dono disso aí, porque ninguém aqui é dono, todo mundo é posseiro.
Nós estamos brigando pelo direito nosso, direito da terra, direito do pedaço
que nós moramos. Tem muita gente que não quer. Então por isso que o
projeto está demorando a caminhar. É por isso que eu digo que Jurujuba
poderia ser melhor.
Nas reuniões que são marcadas para a comunidade, quase ninguém comparece. Em
Jurujuba, o Sr. Norberto estima que haja pouco mais de 1000 casas, totalizando cerca de
pouco mais de 5000 moradores. Segundo ele, a empresa Telemar está fazendo um projeto
para melhorar a rede, colocar fibra óptica. E para ter uma maior precisão quanto ao número de
moradores eles foram até o local onde fica a sede do Programa Médico de Família para obter
a informação. "Quero saber casa... então duzentas e poucas, trezentas e poucas, quinhentas e
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poucas, sei que dá mil e poucas casas...calculadamente cinco mil e poucos moradores, de
Peixe Galo para cá, daquela subidinha para cá."
Quanto às perspectivas de melhoria na atividade pesqueira, o Sr. Norberto afirma que
existem muitas promessas, inclusive do governo, mas até hoje nada aconteceu.
O Ministro do Desenvolvimento da Pesca prometeu mundo e fundos,
principalmente, nosso Presidente, né? Aqui teve reunião e tudo, com os
armadores aí e o Ministro. Eles querem investir na pesca. Agora vamos ver se
com este investimento vai melhorar, que até agora está na mesma.
Quanto ao saneamento básico, o Sr. Norberto afirma que saiu inclusive na imprensa,
que a empresa "Águas de Niterói" está sendo pressionada a tratar do problema naquela região.
Ele conta que um engenheiro da empresa e uma senhora que trata de assuntos das
comunidades foram lá para obter alguns dados locais. "O engenheiro que veio era antigo, era
da CEDAE. Nós fizemos um projeto, nem foi em minha época, ele que elaborou o projeto
pegando lá do final... Fazer um posto de tratamento ali no terreno de um quartel, que tem ali,
que está largado, né?"
O Sr. Norberto diz que os próprios moradores de Jurujuba se incubem de resolver o
problema do esgoto local que vai direto para as praias. "A prefeitura nunca fez nada aqui, fez
um pedacinho ali, não é lá grandes coisas, e a maioria quem fez foi o próprio morador." Ele
diz tudo é jogado dentro das praias. "Vai tudo direto para as praias. Aonde eu moro, quem fez
foi a gente mesmo e quando escangalha é a gente mesmo. Dá algum problema... nós vamos
resolver."
Conta também que ele e alguns vizinhos cuidam, por conta própria, do esgoto de uma
faixa de 60 casas.
Eu e mais dois rapazes encabeçamos lá... até lá na praia. É um meio de
sobreviver, né? Pegamos nas casas com tubulação pelo caminho, fizemos
diversas caixas, isso é pra limpar onde a gente mora. Era uma imundície,
graças a Deus conseguimos. Aquele pedaço ali está limpo, você via fezes no
caminho, rolando nas valas. Lá no final de Jurujuba rola isso ainda. Eu então
chamei... eu nem era da Associação ainda... chamei uns interessados vizinhos
meus, né? Vamos fazer... Vamos fazer... Só eu, comprei 30 tubos.
Ele afirma que quando ocorre algum problema relacionado ao esgoto, muitas pessoas
procuram pela Associação ou pela Secretaria Regional, uma vez que algumas obras foram
executadas a partir do orçamento participativo, no qual ele inclusive atuou como delegado.
Ele, no entanto, age de forma diferente. Nessas ocasiões, ele procura a pessoa que está
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diretamente ligada ao problema para tentar resolvê-lo. Se for o caso, ele compra o material
necessário e depois divide o valor pelos envolvidos na situação. "Vou lá no bazar, faço um
orçamento. É de R$100,00 pra dividir por 60, entendeu? É assim que eu faço, mas isso já
venho fazendo antes de ser presidente da Associação."
O Sr. Norberto não gostou quando ouviu dizer que 70% dos moradores de Jurujuba
não pagam a água. Ele afirma que isto se deve ao projeto feito na época pela CEDAE. O
projeto só contemplava a rua principal, "para os morros não, então pra lei de sobrevivência
pra ter um líquido dentro de casa, e eu estou nessa... eu gastei e a maioria dos moradores
gastou do bolso deles."
E ele prossegue dizendo que se os moradores não pagam pela água que consomem, a
responsabilidade é toda da empresa "Águas de Niterói". "Então você diz que tem 70% dos
moradores de Jurujuba que não paga água, mas vocês que são culpados, o dia em que vocês
fizerem um projeto para os morros, aí vocês vão receber os 70%. Eu pago, eu pago até bem,
pago muito caro, (...), pago R$ 80,00 de água por mês."
Segundo ele, a tubulação existente nos morros foi toda colocada pelos moradores.
"Aquilo foi morador que fez, gastou tubo, comprou tubo, comprou fio, compra bomba e mãode-obra."
Quando recebeu a visita de profissional da empresa "Águas de Niterói", solicitando
que mostrasse a área, o Sr. Norberto o levou no lugar mais crítico de Jurujuba.
Levei ele na última casa que a gente chama de Ponta da Ilha, dá uns 800m ou
mais, aí eu falei pra ele assim: então o senhor analisa quanto este cidadão
gastou pra botar água na casa dele (mão-de-obra, fio, tubo, bomba e às vezes
ainda tem um problema com a CERJ, tem isso também). Não sei se esse
cidadão paga, que a maioria que furou lá embaixo... a maioria não paga.
E ele continua explicando que 70% dos moradores não pagam pela água que
consomem porque a empresa "Águas de Niterói" não fez sequer um projeto para fornecimento
de água para os morros de Jurujuba. Segundo ele, já houve promessas de realização do
projeto, mas até agora nada. "É claro, estão investindo tudo na Região Oceânica. Eles
gastaram muito lá, estão ganhando retorno. Mas eles esqueceram de Niterói, não é de Jurujuba
não, esqueceram é de Niterói, só estavam investindo na Região Oceânica. Isso é um
projetinho, em vista da Região Oceânica."
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Entrevista 3
"(...) que eles estavam falando em despoluir, mas não conheciam o que era a Baía..."
O Sr. Leopoldo nasceu no dia 4 de agosto de 1920 às 4 horas da manhã. Seu pai era
procedente de Maricá e sua mãe era nascida e criada em Jurujuba. Ela nasceu em 1900, era
parteira, prestou muitos serviços, fez muitos partos. Foi condecorada, no Hotel Glória, porque
participou da Legião Brasileira de Assistência, prestando serviços gratuitos durante a guerra.
O Sr. Leopoldo frisa que ela não aceitava dinheiro, "era no amor mesmo". E o seu pai
trabalhava como pescador. Quando teve um problema sério nos ossos, foi levado para fazer
tratamento na Policlínica de Pescadores do Brasil, na Praça XV, no Rio de Janeiro. Lá, ele foi
tratado por dois médicos, um deles era almirante reformado da Marinha. "O meu pai ficou
cheio de dor porque aquilo dói muito, ficava desesperado."
O Sr. Leopoldo conta que seu pai sempre foi pescador, ele remava e trabalhava muito.
Não se recorda se ele faleceu aos 73 ou 76 anos de idade. Quando veio de Maricá para
Jurujuba, casou-se com sua mãe e sempre trabalhou na pesca. "Foi a vida de pescador."
Ele diz que ainda era criança quando começou a pescar. "Com 7 anos já pescava para
ajudar minha mãe. A minha irmã fazia rede artesanal; (...)muito bonita por sinal minha irmã,
tenho saudade dela." O Sr. Leopoldo, atualmente só tem um irmão, as duas irmãs já são
falecidas.
Uma delas faleceu cedo, foi vítima de uma doença séria contraída na época da guerra.
"Uma doença ruim aí, onde a saúde pública se manifestou." Ele conta que naquela ocasião, o
então presidente Getúlio Vargas criou uma "guarda de saúde pública. Andavam
uniformizados igual ao exército, de boné, roupa cáqui, comprida, paletó fechado até aqui, no
Brasil inteiro fazendo a campanha... trabalhando.., mas uma doença horrível ... "
O Sr. Leopoldo diz, que naquela ocasião, morriam muitas pessoas dessa doença,
muitas delas no Hospital Paula Cândido, no Rio de Janeiro.
Tinha uns arcos assim que os carros passavam embaixo e no prédio tinha
aquela parte da janela fechada de vergalhões grossos de uma polegada cada
um, porque era doença incurável, principalmente, a tuberculose, que tinha
muito mesmo. Então, essas coisas todas eu lembro bem, mais a dificuldade
que a gente tinha aqui.
Ele recorda-se também que na década de 30, o transporte utilizado pelos moradores de
Jurujuba era a canoa a remo. Iam até o Canto do Rio. Ali, o pessoal saltava e no caso de um
126
problema de saúde, iam ao Hospital São João Batista ou na Casa de Saúde em Icaraí, a única
que existia. O Pronto Socorro era ali no Jardim São João onde funciona uma parte da
Prefeitura. "Na década de 30, era só canoa a remo, tudo. Depois que apareceu aqui... já mais
pra frente os motores de popa, mais ou menos em 1936. E aí já iam aparecendo essas
melhoras, né? E aí já tinha o motor."
O Sr. Leopoldo trabalhou inicialmente junto com um senhor bastante idoso. "Um cara
velho, antigo, naquela época já tinha mais de 80 anos e trabalhamos com ele. Eu ajudava ele,
já ganhava um dinheirinho. Um dia eu peguei a nota de 5 mil réis, naquele tempo, e duas de 1
mil réis, ih! Já achava que estava cheio de dinheiro!"
Trabalhou também com um senhor que tinha quatro embarcações. "Tinha uma
amendoeira grande ali, então eu ficava trabalhando com ele." Ele diz que remava, trabalhava
na rede, fazia tudo, mas era em grupo. Depois de pescar eles tinham que puxar a rede e para
tanto ficavam dois de cada lado e um recolhendo as cordas que eram colocadas para fora e
puxadas para a terra. Iam 4 tripulantes e o dono da embarcação.
E assim, segundo ele, a atividade pesqueira foi crescendo e se desenvolvendo. Ele
conta que naquela época existia abundância de peixe, "desde o camarão até a tainha, enchova,
xaréu, muita coisa... mas muita abundância mesmo". Mas a comercialização se dava no antigo
Mercado Municipal do Rio de Janeiro e os valores obtidos com a venda eram bem baixos.
"Então era a fartura, mas o valor lá embaixo. Não tinha essa evolução, não existia o
Entreposto, era o Mercado Municipal que ainda resta aquele Restaurante Alba Mar na Praça
XV lá perto da Saúde Pública, é o que resta do Mercado antigo."
Ele afirma que toda aquela estrutura veio da Inglaterra, era tudo feito de ferro e as
peças vinham prontas para montar, e foram montadas na Praça XV. O Mercado ia até próximo
de onde ficam as barcas. Os pescadores iam remando até ali para descarregar o produto.
Remando... As embarcações cheias de peixe... pescava... ia direto para o
Mercado vender. Todo mundo saía para pescar tainha, sardinha, enchova,
camarão, arraia, polvo, lula. Eram canoas pequenas, duas toneladas... com os
companheiros remando. A minha vida é essa aqui em Jurujuba.
E quanto à trajetória escolar, o Sr. Leopoldo diz que estudou em Jurujuba numa escola
situada ali mesmo perto da praia. "Eu quando fui pra escola... aqui era uma padaria...era aqui
mesmo. A mesma área da escola...aquilo era uma escola, estudei aqui." O Sr. Leopoldo
completou o antigo Ginasial em 1936 e diz que naquela época apanhava-se muito da
professora. "Como você apanhava! A professora batia na gente, botava a gente de joelho no
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milho quando fosse malcriado e botava a gente de castigo no quarto escuro." Ele pescava e
estudava ao mesmo tempo para poder ajudar em casa, porque não havia outro meio.
Ele conta que, na década de 30, houve uma fartura de camarão nas águas da Baía de
Guanabara. "Deu uma abundância de camarão na região aqui, deu em toda a Baía. Mas... se
deu aqui... a gente não ia lá pra cima, pra Paquetá, nem ali para o Cais do Porto... Aquelas
áreas... ninguém ia, porque aqui deu muito."
Ele diz que naquela época o presidente da Colônia era um oficial da reserva da
marinha. E em função dessa enorme quantidade de camarão, ele determinou que cada saída
para pescaria dessa espécie só poderia ser realizada dentro de um período máximo de duas
horas, por vez. Desta forma, estaria viabilizando que o produto chegasse em perfeitas
condições no Mercado.
(...) se não o camarão não chegava 100%. Ele gostava da coisa certa, então a
gente pescava. A gente saía 5 horas... quando chegava 7 horas a gente tinha
que parar. Quando saía 4 horas... 6 horas tinha que parar. E hasteava um
pavilhão branco que estava mandando regressar... e o pessoal respeitava...
depois levava para o Mercado a mercadoria.
O Sr. Leopoldo conta que naquela época o que tinha de melhor era a organização dos
pescadores, o que hoje não mais existe. "O pescador hoje é marginalizado porque hoje em dia
o pessoal se abandonou. O órgão continua vivo; você tirava os documentos para a pesca, a
fiscalização era da Marinha: os documentos... a carteira assinada para fins de aposentadoria."
Ele diz que hoje qualquer pessoa que "viva no mar" é considerada pescador. No
entanto, apesar de viver no mar, ela "não sabe fazer o serviço artesanal que é o reparo do
material, tem que pagar alguém para fazer e comprar as peças feitas, vindas das fábricas".
Ele lembra que as senhoras do local, inclusive sua mãe e sua esposa, teciam as redes.
Atividade que exerciam como meio de vida. E ele tece até hoje: "agora mesmo eu comprei um
rolo, eu não gosto de ficar parado. Desde cedo... levanto cedo, vou caminhar, venho da
caminhada, faço trabalho. Quando eu não tenho o que fazer eu saio na rua e o pessoal ri da
minha cara, pinta e borda". Atualmente compra-se a rede, ela é industrializada. "Só que a rede
nossa é manual, é uma outra... é mais pesqueiro como eles chamam. O peixe se embaraça
mais, a outra é mais cara, mas já vem pronta, você chegou numa emergência... pronto você
faz tudo... rapidinho."
O Sr. Leopoldo fala que a vida de pescador é completamente irregular. Segundo ele,
em 1930 a Policlínica dos Pescadores do Brasil recebia pessoas que vinham de fora do Estado
para fazer tratamento. "Vinha pessoal de Manaus para cá para se tratar. Era na Praça XV,
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aquele prédio que tem, ali era a Policlínica dos Pescadores." Ele lembra que o atendimento era
realizado por ótimos profissionais. "Os maiores médicos aí para fazer o tratamento com maior
carinho com a gente. Minha mãe fez operação lá, minha senhora fez operação lá, eu fiz a
operação lá; e o carinho que eles tinham conosco... Sabe de que eles gostavam? Do peixe
fresco e camarão." E os pescadores levavam camarões graúdos, para eles. "Camarões VG
deste tamanho, naquele tempo era grande, nós chamamos camarão verdadeiro. Então hoje tem
muito pouco. Então agarrava assim... separava 2... 3 quilos para um, 2...3 quilos para outro.
Mas a vida minha é essa."
Os pescadores ficavam felizes com o entusiasmo dos médicos diante dos camarões
recebidos, que em troca vendiam seus barcos a preços bastante accessíveis. "Pô eles ficavam
malucos. 'Eu quero ir no barco pescar'. Muitos deles queriam dar um passeio para ver como é
que é. E aquilo para a gente era uma felicidade! E o carinho que eles tinham conosco, crédito.
A gente comprava barco deles, pagando a perder de vista". O Sr. Leopoldo faz questão de
ressaltar que tudo isso se deu na época em que Getúlio Vargas era presidente do Brasil.
O Sr. Leopoldo já era marinheiro na década de 30. "A primeira arrancada minha foi
até 1937, só pescando." Ele conta que depois foi para a escola da Marinha, Escola Almirante
Batista Ana Neves, em Angra dos Reis. 658 colegas foram aprovados. Ao final do curso eles
faziam uma prova e ele foi um dos aprovados, portanto estava habilitado. Os que não haviam
conseguido a habilitação continuaram no curso e no ano seguinte foram aprovados."Eu estava
embarcado no Tender Belmonte, navio alemão que foi preso aqui e era navio-oficina para
reparos navais." Depois o Sr. Leopoldo continuou trabalhando na Marinha e desde que passou
para a reserva voltou para a pesca e nela continua até hoje. "Eu viajei, embarquei, fiz a guerra,
fiz tudo e me aposentei na Marinha. Foi na II Guerra Mundial. Fiquei afastado de Jurujuba
desde 1937 até terminar a Guerra. Só voltei em 1945."
Ele foi para a guerra sem se despedir de ninguém. Na véspera de partir, já a bordo,
falou ao telefone com aquela que atualmente é sua esposa, ela morava no Posto 6 em
Copacabana. Pediu que avisasse a sua mãe que o navio partiria no dia seguinte às 9 horas da
manhã e que não sabia quando voltava e nem sequer se voltaria. Ele soube que no dia da
partida ela esteve em Jurujuba, falou com todos, porém a tempestade era tão forte que
ninguém saiu para ver navio nenhum. E assim, ele partiu e só voltou em 1945.
A sua atual esposa esperou 12 anos por ele. A mãe dela faleceu em 1949 e partir desta
data ele começou os preparativos para o casamento. "A mãe dela faleceu e meu pai chegou
pra mim e disse: 'meu filho, você além de meu filho é meu amigo. Acabou-se a farra, agora
vamos tratar do casamento.' Tudo bem meu pai, meu pai era muito meu amigo mesmo, desde
129
criança." O Sr. Leopoldo diz que naquela época tinha barco a remo, mas já existia bastante
barco a motor.
O Sr. Leopoldo acha que o IBAMA não cumpre o seu papel. "Uma área que era de
preservação às matas, que eu não suporto este IBAMA porque não preserva nada, você olha e
vê tudo destruído. É o órgão mais venal que tem porque o sujeito invade, destrói e fica o dito
pelo não dito."
Segundo ele, naquele tempo, eles conseguiam empréstimo porque existia a SUDEPE.
Com o dinheiro que pegavam emprestado eles podiam adquirir aquilo que fosse necessário
para a pesca. "Comprar rede, máquina, mandar fazer o casco para pescar e pagava lentamente.
Isso na gestão de Getúlio Vargas, da década de 30 até 54, se não me engano; quando mataram
ele."
O Sr. Leopoldo conta que tem um neto com 18 anos que é inteligente mas é muito
relaxado. E o seu filho que é torneiro mecânico orientou este neto para ser motorista. "Pelo
menos não é tão ruim, ele está ganhando três salários. Motorista de barco... ele entende de
máquina, né? Então se ele estivesse ancorado ali, eu ia lá com você."
O Sr. Leopoldo acha que a pesca artesanal hoje está abandonada, "sem meios de
defesa por causa do abandono político."
E ele prossegue dizendo que atualmente a atividade pesqueira vai mal."Está numa
obscuridade, sofrendo... sem documento." Ele diz que ninguém tem interesse em acertar a
situação da documentação dos pescadores. "Ninguém se interessa, os proprietários, os
embarcados precisam da Capitania pra fazer o seu registro, pra ele contribuir com o
recolhimento do INSS." A maioria dos idosos, segundo ele, é aposentada como pescador. Mas
os jovens não poderão contar com esse direito porque não têm a documentação.
Os donos dos barcos têm, porque eles têm que ter o registro de propriedade
da embarcação, mas os embarcados...não têm ninguém. Esse é o problema.
Pescador hoje em dia é um lavrador daqueles do interior que não sabe o que é
vida, não sabe nem o que é isso que nós estamos comentando. Se os donos
dos barcos tivessem interesse eles iriam na Capitania, exigiam que você
tirasse seus documentos pra anexar pra eles pagarem os direitos.
Ele conta que em Jurujuba já houve dois casos de acidente com pescadores. Um foi
com um sobrinho seu. Ele sofreu um acidente, machucou o braço e ficou desesperado: "meu
tio, o que vou fazer?" "O que você vai fazer: você vai receber o seu dinheirinho em casa,
vamos comigo na Capitania dos Portos..." O Sr. Leopoldo diz que naquele tempo, ele
conhecia muita gente. "Agora faz muitos anos que eu estou fora..." Primeiramente ele
130
conversou com seu sobrinho: "como é que você quer? Como pescador ou como da reserva?"
e o rapaz disse que queria "da reserva". Ao chegar na Capitania dirigiu-se ao sargento e o
informou sobre o problema.
Esse menino aí é meu sobrinho, sofreu um acidente no barco, o proprietário
está se recusando a reconhecer a situação dele, o sujeito vai ficar aleijado.
Não tem contribuição...não tem nada. "Tem matrícula?" Tem, quem registrou
fui eu. "Cadê o documento?" Está aqui. "Pode deixar que eu vou chamá-lo.
Você tem que ganhar o vencimento em casa, acidente a bordo, ele tem de
pagar o direito dele. Sua carteira?" Tá aqui. "Além do que ele recebe lá, você
tem que dar a parte da embarcação".
O Sr. Leopoldo acha que agora é diferente, ninguém mais briga pelos seus direitos,
pela sua documentação.
O cara fica nessa bagunça, não procura se interessar para o futuro. Você tenta
orientar, fala... e os patrões, os proprietários poderosos, acham que você não
tem que se meter com isso porque você não é nada. Hoje, essa juventude, é
falta de luz mesmo, a gente conversa, explica como é que se tira o
documento, o elemento não se interessa.
Ele dá o exemplo e mostra o que tem de ser feito para se obter os documentos, mas
sente que os jovens não dão a devida importância ao assunto. "Eu mostro a minha carteira de
pescador, condutor motorista naval, auxiliar de máquinas principais, são as máquinas pesadas.
A gente faz isso em três meses. Meu neto mesmo é motorista, mas não tem a carteira
assinada, então não ganha. Você me entendeu? É a vida, difícil, difícil."
O Sr. Leopoldo afirma que esses pescadores não têm outra profissão e o problema da
falta de documentos se agrava na hora da aposentadoria. "Quando chega no último tempo
quer porque quer. Quem é que vai provar alguma coisa? Mas não é um, nem dois... são vários,
lá tem muito mais do que aqui."
O Sr. Leopoldo diz que a Colônia de Pesca recolhe um percentual na hora da descarga
do pescado, mas essa contribuição não tem nenhum retorno em benefício do pescador.
É difícil, mas agora o que eu acho mais desagradável é a parte administrativa
da Colônia de Pesca. Você paga uma taxa na descarga do peixe para mantêla, e você não tem nada... Agora mesmo que eu não vou lá... porque estão
dizendo que estão pagando o dinheiro do óleo, daquele problema da
Petrobrás.
Ele lembra que em uma ida à Colônia, o presidente foi pouco gentil com ele e dali ele
131
se afastou. "Falou comigo, parecia que ia me agredir, que estava falando com um moleque. Eu
disse: assunto encerrado, acabou. E morreu ali, não quero saber."
O Sr. Leopoldo conta que as pessoas sentem falta do tempo em que ele trabalhava na
Colônia.
"Ah! Sr. Leopoldo, você podia estar na Colônia, quando você estava lá fazia
levantamento. Porque os falecidos... as famílias querem encaminhar para o
INSS, agora não tem mais nada disso." Eu não queria dinheiro não, eu queria
participar em favor dos outros. Ninguém quer... também não sou eu que vou
obrigar. Depois de 83 anos, vou estar procurando o quê?
E ele relembra como comprou o seu barco que estava praticamente abandonado pelo
dono. "Aquele barquinho ali estava jogado no lixo, aquele branquinho que está ali..."
Ele conta que em Charitas, bairro ao lado de Jurujuba, naquela época existia um
casarão, um convento onde hoje funciona uma casa noturna. Ali viviam uns portugueses e o
seu barco atual é daquela época. "E aquele barco era daquele tempo, eu era criança e ele já
era velho." O Sr. Leopoldo lembra que ninguém entendia porque ele desejava comprar aquele
barco velho. "'Você vai comprar isto para quê?', Eu acho o arqueamento dele bonito. Meu
filho chegou e falou: 'Você está maluco, você vai dar quanto por isso?'"
E ele pagou 25 mil réis pelo barco que só tinha a armação e estava podre. Em seguida
pediu a um amigo que trabalhava no arsenal da Marinha para fazer umas melhorias no barco:
"aí mandei fazer o arqueamento dele todo, medida, boca, quilha, tirou as medidas todas, e
fazer o arqueamento." O Sr. Leopoldo comprou as madeiras necessárias e o amigo fez o
serviço de graça.
"Aí o irmão do dono do barco que faleceu há muitos anos disse: 'Leopoldo, o dono
desse barco é vivo agora morria de novo de ver o barco tão bonito assim' ... isso foi na década
de 70." Em seguida o Sr. Leopoldo encalhou o barco em Jurujuba e fez uns últimos acertos:
(...) aí eu peguei, encalhei aqui, dei uma geral e fibrei ele todinho, tem 10
mãos de fibra, nunca mais vai acabar. Aí eu comprei um motor que estava
enterrado na areia que o dono disse que não prestava mais, porque os
mecânicos estão lá em casa mesmo, né? Levei, lavamos ele com água,
abrimos ele todo, lubrificamos, batemos e está funcionando. Então essa é a
vida da gente na pesca, é a situação que ensina a gente.
O Sr. Leopoldo conta que muita gente, inclusive do "Iate Clube", se interessa em
comprar o barco dele. "Tem uma senhora que ficou maravilhada...'Ah! Como eu queria... está
tão bonito.'" Segundo ele, agora o barco está maltratado porque seu filho o tem usado para
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pescar enchova e outros peixes."Agora eu não saio mais porque as pernas não têm aquele
equilíbrio e a pressão também."
Em 1979 o Sr. Leopoldo deu entrada no pedido de aposentadoria mas não se afastou
da pesca. "Mas eu já estava aposentado e continuava pescando." Hoje em dia ele continua
fazendo a rede artesanal. "Eu faço rede, eu mesmo faço, eu faço sozinho, não preciso de
ninguém para me ajudar não, se não perturba..."
O Sr. Leopoldo diz que todos os seus filhos têm uma profissão. E aponta para o mar
mostrando os barcos que passou para os seus filhos: "aquele barco azul que está lá é de meu
filho, aquele ali eu passei já para o nome do outro por causa da minha idade. Eu digo: vai para
a Capitania... O outro é do outro filho, toma passa para o seu nome."
Ele conta que naquela época era fácil comprar um barco porque ele também tinha uma
outra profissão e "fazia bicos". E admite que hoje em dia é raro alguém fazer uma rede
artesanalmente, ela já vem pronta, industrializada.
Você chega lá e compra uma peça que você vai pagar a montagem. Vai
demorar um mês na hipótese. Uma coisa que você faz ali mesmo, numa
questão de 1... 2 horas. Já está industrializado, vem de São Paulo, Santa
Catarina e do Paraná, vem desses locais onde têm as fábricas. Eles vêm aqui
oferecer pra gente e a gente compra. Quantos metros quer? Eu quero 200m,
eu quero 100m. Aí eles facilitam às vezes o preço e aí a gente leva o material
mais barato. Eles fazem em duas vezes. Cada dia que se passa, vêm outras
coisas que facilitam mais o trabalho.
E sobre a poluição da Baía de Guanabara, ele prossegue contando que em Jurujuba
havia uma abundância de camarão. Em 1932, quando ele tinha 12 anos aproximadamente,
eles iam pescar nas Ilhas da Enxada e no Cais do Porto. E desses locais eles viam, no canal
onde fica a "ponte", várias dragas enormes holandesas em atividade.
Não tinha, não conhecia, não sabia, não tinha malícia, não tinha experiência,
então eles estavam dragando a Baía de Guanabara. Já naquela época ali, (...)
as dragas faziam aquele trabalho, então eu passei a estudar, a observar. Eu
ainda não era nem homem feito, era criança. Tinha aquela caçamba... enchia
aquele troço de lama, fedia, cheiro enjoativo, forte (...).
Num determinado momento, o Sr. Leopoldo interrompe a entrevista e aponta para a
lancha da Capitania passando no mar, é a fiscalização. Segundo ele, a lancha passa, porém
não executa o trabalho de fiscalização. "Eles passam, mas fazem vista grossa. Porque se
forem mesmo pedir a documentação, vai todo mundo preso, tá tudo irregular... ninguém vai
ter. A documentação existe, mas está ultrapassada, adulterada."
133
O Sr. Leopoldo esteve em alguns debates sobre a questão da despoluição da Baía de
Guanabara, um deles no antigo Cassino de Icaraí-Niterói, outro na Praia Vermelha-RJ. Nestes
locais ele se dirigia aos palestrantes dizendo que não acreditava que a Baía pudesse ser
despoluída, "que eles estavam falando em despoluir, mas não conheciam o que era a Baía ..."
E o Sr. Leopoldo então quis mostrar que conhecia a região.
Então eu enumerei, desde ali, aquele braço d'água que desce de São Francisco
pelo canto até Botafogo chegando àqueles canais todos de Niterói, que joga
água ali no Cais do Porto, na praça ali do Barreto, Gradim (...). Aí eu comecei
dali pra lá a enumerar os rios – Macacu, Estrela, Suruí, Magé, Piedade...
enumerando eles todos. Estão vendo quanta coisa joga detrito, lixo e lama
dentro da Baía?
Ele dizia não estar duvidando do trabalho de despoluição proposto, mas achava que o
problema voltaria com o passar do tempo.
Não estou duvidando do trabalho que vocês estão fazendo. Agora, despoluir
Baía? Americano lutou, foi anos e nunca conseguiu, desistiu e nunca
conseguiu com todo recurso dele, com toda sabedoria dele. Não dá, eu pago
pra ver... com o tempo ela volta tudo de novo. E aqui é rio e mais rio e lá não
tem isso. Lá é mar. E aqui joga mesmo dentro da enseada. E a enseada, como
é que ela é? É isso aqui... Ela vai... depois vai lá dentro perto daquele
morrão que está lá, e aí vem fazendo assim, entradas e saídas...
E ele prosseguiu falando da Praia Vermelha e do lixo hospitalar que cai nas águas da
Baía de Guanabara. "De qualquer jeito está saindo e vai tudo para a Baía. Então eu disse a
eles: são várias gerações que passaram e não conseguiram. Porque é a natureza. Isso aí não é
nada que vocês estão pensando. Agora o lixo da superfície esse aí é fácil de você limpar."
Ele diz que apresentou um projeto de dragagem à Prefeitura, na época do "governo de
Roberto Silveira, pai". "Fazer uma draga que passa por baixo do lixo e vai jogando para
dentro da embarcação. Então 2... 3 homens já vão ensacando os lixos e chegava na praia,
encostava num lugar baixo, punha ali e a prefeitura carregava." Segundo ele, naquela época
um vereador que é deputado hoje, lançou uma proposta de limpar a superfície da água e
ganhou. "Chegou lá, torpedeou a reunião ...deu contra. Queria apanhar detrito na superfície da
Baía de Guanabara. Como? E ganhou a questão...também morreu...e fim de papo." E o Sr.
Leopoldo concorda que as praias ficaram limpas, mas percebe que o problema não está
solucionado. "Lógico que as praias ficavam completamente limpas. Na praia de Adão e Eva,
um grupo de homens que tem lá, limpa periodicamente. Olha, limparam pela manhã, ela deve
ainda estar limpa porque ainda não caiu temporal; mas se cair temporal, os detritos todos
134
vêm."
Uma questão que o Sr. Leopoldo aponta é que existia uma fiscalização da Capitania
dos Portos sobre a malha de rede. Hoje, sem essa fiscalização, a pesca se tornou muito mais
predatória. "O mínimo que se podia ter de uma malha era isso... 11mm e hoje tem de 4 mm,
então você mata um trocinho desse tamanho... Quando você só matava a sardinha que se
podia vender, era 11mm pra frente." E ele lamenta a presença dos barcos de pesca de atum
que se encontram no local esperando para comprar a isca. "Então eles vêm, compram, pagam
bem e tudo bem. Só que não deixam desenvolver a criação... se você mata desse
tamanhozinho...o que você quer?"
Ele conta que existe uma outra pescaria realizada em mar aberto, chama-se "pescaria
de porta".
É uma rede que tem umas madeiras grandes nos calões que são as pontas da
rede que faz um círculo, e ela aqui faz assim e vai juntando tudo pra lá. Então
quando chega na hora de colher a rede, eles puxam pra bordo, tem o peixe
bom, o grande... e o resto jogam na água. Fica branco de você ver
pescadinha, maria-mole... tudo jogado em cima d'água; os passarinhos tudo
comendo.
O Sr. Leopoldo constata os prejuízos causados pela pesca realizada de forma
predatória: "então tudo isso é coisa que a gente vai vendo que está cada vez destruindo mais.
O que se devia fazer, no meu raciocínio... malha de 50 mm, o ideal pra salvar a
criação...apanhavam somente os graúdos."
Ele não concorda com os procedimentos utilizados pelo IBAMA, porque na opinião
dele, deveriam dar maior atenção ao que os moradores locais têm para dizer. "Infelizmente é
difícil de você chegar numa reunião do IBAMA... é criticado... eu prefiro não ir porque são
pessoas que não vivem a vida, não viveram a vida e querem debater com alguém que nasceu e
criou aqui. Eu vi, eu vivi."
O Sr. Leopoldo recorda-se que somente na década de 20 houve um período tão difícil
na pesca comparável a este. Ele conta que naquela época praticamente todos os pescadores
perderam as suas redes que eram de algodão e, portanto, pouco resistentes:
(...) perderam porque naquele tempo não existia o náilon, a rede era de
algodão.. Então ela não podia ficar fora da umidade... ficar toda vida no
sol...pega uma chuva, daqui a pouco está se desfazendo. Então todo mundo
aqui ficou numa crise bárbara. Aí bota lance pra comer peixe. Chegava em
terra dividia aqueles peixes pra se comer. Vocês viram isso? Eu vi.
135
E ele afirma que é imprescindível que se tome providência com relação à falta de um
trabalho efetivo de fiscalização. "E assim vai a agricultura, vai tudo. Se não tomar uma
iniciativa de gente para fiscalizar... não é levar dinheiro... é fiscalizar."
Ele revela que é uma minoria dos moradores de Jurujuba que ainda trabalha na pesca.
Os camaradas experientes não vão ficar nisso. Vão ganhar o quê? Tem outro
ramo que ele vai faturar aí e ter um descanso... Vamos dizer, trabalhou 8
horas durante o dia, mas à noite ele dorme. No dia seguinte tá lá, mas chega
no fim do mês o registro está lá pra receber a sua aposentadoria.
Ele afirma que, atualmente, os jovens não querem trabalhar na pesca. "A garotada
também não tem estímulo. Os meus filhos não pescam para a subsistência. Ele pesca, mas ele
está trabalhando em uma sapataria, vem para casa à noite, descansa de manhãzinha... 5 horas
está dentro de casa, quando é 8 horas já está no trabalho dele." Ele trabalha na sapataria, usa o
barco para pescar e tem uma barraca para vender salgados.
E ele conta que a quantia obtida com a venda do peixe que seu filho capturou no dia
anterior serviu de complemento para os seus rendimentos.
Ontem ele trouxe enchova, cheguei ali tem um cara: quanto você quer? "5
kg". Eu vou fazer um preço pra você mais barato porque você é da casa, vou
fazer R$ 6,00. Tá todo mundo pegando a R$ 6,00... R$ 8,00 no mercado,
enchova viva. "Ah, quero". Consegui R$ 80,00 pra ele, é um complemento.
Pois é, mas ele tem o emprego dele lá, a filha também trabalha lá.
Ele diz que o outro filho também trabalha na pesca, mas está esperando a
aposentadoria do outro emprego que tem. "Não é muito, mas com o pouco que ele ganha na
aposentadoria... Ele fica com o dinheiro de lá e continua trabalhando na oficina dele, pra
aumentar a renda dele."
Sr. Leopoldo comenta que não foi por falta de orientar seus filhos, mas eles não
aceitaram seguir a carreira militar naquela época. "Então, a minha vida é essa. Não, que eu
não encaminhasse nenhum dos dois. Eles podiam estar na reserva. Hoje, um está com 53 e
Tuninho está com 51, já podiam estar aposentados."
Ele diz que seus filhos teriam conseguido entrar com facilidade para a Marinha
naquela época porque ele conhecia todo o pessoal do Batalhão Naval, mas eles se recusaram a
aceitar. "O comandante adora vocês... (que eles têm 1,85m de altura) é um grupo especial de
fuzileiros navais para ações. Eu disse: rapaz vocês com formação... vão perder essa vaga?
'Ah! Não quero ser militar não.'"
136
Um deles abandonou a profissão de Educação Física: "formado na Castelo Branco,
mas também estava hoje encaminhando pra reserva". Eles trabalharam em vários lugares,
pescam aqui perto, é enchova, garoupa...
O Sr. Leopoldo aponta no mar os barcos pequenos que fornecem a isca para os barcos
grandes de fora. "Vendem ali mesmo, eles compram e pagam na hora, eles pagam com
cheque."
Ele fala da difícil e arriscada vida que os pescadores têm, os barcos não passam por
vistorias e eles correm risco de vida no mar.
A vida do pescador em si é um sacrifício muito grande. Quando o mar está
bom, está tudo bem é uma beleza. Quando você pega aquelas travancas no
oceano, não é mole não. É de arrepiar! Sacrifício e risco. Já peguei cada
temporal medonho, mas a gente acostuma, faz parte. Agora a pouco ficou um
lá no fundo aí. Não fazem a vistoria, aqui tem muito barco que se for fazer a
vistoria, não passa. Sai... se morrer, morreu um cachorro. É a vida!
Ele diz que hoje em dia existem muitos barcos. O número de canoas é muito reduzido,
elas pertencem a pessoas que as preservam pela tradição. "Canoa é caro, é muito caro porque
é feita de uma madeira só, de um pau só e aí tem tábuas. Agora... baleeira tem bastante ainda,
essa quantidade imensa!"
Ele lastima a atual situação de irregularidade que o pescador vive."É uma vida
irregular porque não há uma organização, uma administração feito tinha no passado. Porque
esse órgão só aposentava. Tantos outros do meu tempo são aposentados, por que hoje não
são?"
Ele conta que, naquela época, a arrecadação previdenciária era feita. Ele atuava na
parte econômica, fazia os cálculos, verificava a mercadoria que era descarregada no mercado,
vendia, e passava para o patrão o peso, o valor e a arrecadação. Daquela arrecadação eles
tiravam o valor referente à despesa com gelo, óleo e alimentação. Do valor restante, 50% iam
para o proprietário e 50% iam para os tripulantes. Mas antes de tirar cada uma dessas
metades, eles deduziam o valor correspondente ao número de pessoas que contribuíam para o
INSS. Depois de reservado o dinheiro para o pagamento do INSS, o saldo líquido restante era
dividido:
(...) tem uma parte que é um salário... duas partes é a parte do gelador, três
partes é do motorista que ganha três salários, três partes é do homem do leme
que é o comandante, cinco é do rapaz que pesca, que enxerga, que vê, que
não tem hora, ele é o tempo todo em pé vigiando o aparelho ou em pé na proa
do barco a noite toda e o dia todo – é o proeiro que provavelmente é o dono
do barco ou sócio.
137
O Sr. Leopoldo conta que o pescado era vendido no Rio de Janeiro e em Niterói
também. "Aqui em Niterói não é mal, só que não tem espaço pra aquelas carretas de
transporte pra São Paulo levar. Onde você vai parar com uma carreta ali? Aqui não tem muito
espaço... mas descarregava ali muita coisa, toneladas de peixe no Mercado de Niterói."
Ele diz que o pescado capturado era utilizado também para consumo próprio e doação.
"Lógico que tirávamos o peixe para o nosso alimento. A gente tira o quanto quiser, o que é
conveniente, escolhe o que você gosta mais... dava também."
E ressalta a boa vontade dos pescadores em doar um peixe a quem quer que seja.
É uma classe que embora sem instrução, sem uma experiência, uma boa
educação, mas tem um coração deste tamanho. Se você estiver ali no cais, se
tem peixe, você leva peixe. Falam besteiras, umas expressões pouco
recomendadas... mas você sai com um peixe pra comer, até aquele que não
trabalhou. Era e é comum isso.
O Sr. Leopoldo recorda-se do tempo em que tingia as redes artesanais com tinta de
murici ou aroeira.
Casca de madeira chamada murici, era aroeira e uma madeira que eu não
conheço. Então tinha um grupo que era pra carregar água em lata, encher
aqueles tachos enormes para botar a tinta, a água, a casca e ferver. E quando
aquilo estivesse vermelho, a gente passava ali, fervendo, puxando na
pontinha. Não era mole.
Enquanto a pesquisadora e o entrevistado observavam todo o movimento de chegada
das traineiras no cais de Jurujuba, foi possível notar o Sr. Simão, um ex-pescador, que
atualmente trabalha sem qualquer tipo de vínculo, reparando as redes danificadas.
É um trabalho artesanal, pra fazer um bico. Ele agora só faz zelar, né? Isso aí
é uma taxa que o patrão paga diário, porque ele não é empregado dele, mas
está aposentado e recebe uma média de R$ 25,00 ou R$ 30,00 por dia. Ele é
desde criança daqui, nasceu com minha mãe. O dono dá o material, tira um
percentual. Ele não sai mais para pescar. Ele é pago somente para atar as
redes.
Quanto à confecção dos barcos, ele diz que estes são construídos no Estaleiro na Ilha
da Conceição. "Não temos espaço."
Quanto à descarga dos peixes ele informa que em Jurujuba existe a ponte de descarga
do produto capturado, "mas a oficial é lá em Niterói".
Ainda enquanto observavam o descarregamento no cais, a pesquisadora e o
138
entrevistado avistaram um outro pescador aposentado reparando a rede de forma artesanal.
Tá vendo? Esse é artesanal, tá reparando a rede. Esse aí é pescador
aposentado, passou na mão da minha mãe... Sabe fazer a rede, sabe remendar
a rede e reparar de um modo geral. E a montagem também. Então esse é o
verdadeiro pescador porque tem pescador e pescarola (aquele que não sabe
nada). Ganha para fazer isso, é independente, não é dentro da pescaria, ele
deve ganhar no mínimo R$30,00... R$ 35,00 diário.
Quanto à Colônia de Pesca, o Sr. Leopoldo garante que ele nunca mais pretende
trabalhar nela. "Eu não quero mais de jeito nenhum. Já trabalhei muito na Colônia, sem
reivindicar nada porque eu gosto de fazer a coisa... eu era responsável pelo fichário. E nego
não gosta disso, gosta de ficar à vontade."
Ele conta que hoje em dia, a escassez de espécies é grande a ponto de um barco de
pesca de camarão, por exemplo, chegar em Jurujuba e ali mesmo vender tudo no restaurante
local. "Porque não tem aquela abundância que existia aqui no passado. A pesca está passando
por uma crise muito profunda."
Ele aponta a situação de seu primo que se iniciou na pesca com um barquinho pequeno
e hoje ele tem dois daquele tamanho e um outro que é menor: "que criou a vida dele". E se a
situação atual na pesca não está boa, segundo ele, não é por isso que o pescador vai abandonála. "Agora tá fraco, mas não é por isso que ele vai deixar de estar seguindo as normas da vida
no mar. A vida dele é aquela, ele não tem outra."
O Sr. Leopoldo acredita que ao chegar o verão, haverá uma "ligeira melhora" na
produção, e maio é o mês em que ela diminui novamente. "Mês de janeiro, peixe que dá em
abundância: enchova, corvina, maria-mole, goete e a sardinha também em abundância."
Mas o Sr. Leopoldo prossegue dizendo que o problema está no tamanho das malhas
utilizado atualmente que é de 4 mm e que não passa por nenhum tipo de fiscalização. "A
Capitania chegava nessas redes aí no passado, chegava assim, cortava assim, tirava aquilo
tudo e deixava aquele pedaço sem rede. Você também tinha que comprar outra pra botar no
lugar da malhagem que era oficial, não aquela. Tinha um controle. Mas agora!"
O Sr. Leopoldo acha que apesar de não haver mais a quantidade de peixe que existia
antes, o pescador deveria se satisfazer com o que consegue capturar dentro da legalidade. Mas
como não há fiscalização, eles buscam melhores resultados na produção utilizando-se de
malhas muito pequenas e, portanto, predatórias.
O que eu me preocupo é que por você não ter aquela abundância de peixe,
porque está difícil... mas você se contenta com o que pega... Não tá ali aquele
139
ali só com o bonito? Por que que outro bota aquele trocinho desse tamanho
pra matar a criação? Falta de fiscalização! Nós estamos decadentes nessa
área.
A pesquisadora e o entrevistado se dirigiram a um pescador que ali estava e o Sr.
Leopoldo perguntou sobre a situação de sua documentação: "Tiago, de amigo para amigo:
você tem carteira de pescador?" E ele respondeu: "Só da Colônia de Pesca." O Sr. Leopoldo
insistiu: "Está vendo? Aquela oficial da Capitania dos Portos?" E o pescador: "não, da
Capitania não." Ele diz que há uma falta de interesse por parte da Colônia de Pesca, caso
contrário eles seriam registrados oficialmente.
Ele não tem culpa. Você vê, ele pra se aposentar tem que tirar do bolso dele.
Então é uma montagem que o direito do homem já era. Por causa de que? Por
causa da falta de organização dos nossos chefes, né? Esse negócio de
Colônia, é tudo uma panelinha só. Eu tenho um temperamento meio
agressivo e acho que a Colônia não funciona. É a maior armação, não
funciona.Você me entendeu? Quem dirige a Colônia são os armadores e um
grupo de advogados que eles botam pra ficar por trás disto tudo, pra fazer um
trabalho de acordo que eles não fiquem desmoralizados.
O Sr. Leopoldo ainda ressalta a situação da Escola de pescadores que era na Ilha de
Marambaia: "ela foi fundada na década de 30 e acabou mais ou menos em 1950, por aí.
Acabou por causa de que? Por falta de apoio."
E ele encerra a entrevista falando da tranqüilidade do bairro: "tudo gente humilde que
trabalha".
CAPÍTULO 4 - CONCLUSÃO
Após a realização das atividades de pesquisa de campo e da organização e análise dos
dados quantitativos e qualitativos coletados, chegou-se ao conjunto de conclusões abaixo
relacionadas:
a) O contingente de pescadores entre a população total no bairro é muito pequeno.
Na década de 70 segundo Duarte (1978), Jurujuba tinha aproximadamente 25% de
pescadores entre os residentes. O resultado desta pesquisa aponta somente 7,1%
de pescadores na população total do bairro, o que corresponde a 12,9% da
população economicamente ativa ali residente e a 17,7% dos chefes de família.
Esta tão acentuada diminuição indica que o bairro perdeu em duas décadas sua
tipicidade de "comunidade de pescadores" e hoje abarca uma grande maioria de
moradores que se aproximam ocupacionalmente dos moradores de outros bairros
pobres de Niterói.
b) Atualmente, 45,5% do total de chefes de família que pescam, também atuam em
uma segunda ocupação.
c) Ao calcular-se a renda individual média dos chefes de família que trabalham em
ocupações diferentes da pesca e dos que são somente pescadores, pode-se verificar
que os chefes não-pescadores recebem em média salários 18% maiores que os
chefes pescadores.
d) Houve redução significativa no número de pescadores, segundo resultados obtidos
com os entrevistados, que acentuam o fato de que a profissão não é mais
141
repassada "de pai para filho", ou seja, não há mais, atualmente, a reprodução
familiar da ocupação de pescador no bairro analisado.
e) Os agentes sociais entrevistados apresentam várias justificativas que explicam esta
crise da pesca e da própria identidade do bairro.
e1) Uma delas é a questão da legalização. Atualmente não existe mais a
organização dos pescadores que existia, no passado. Conforme informaram os
entrevistados, a grande maioria desses trabalhadores não tem a sua carteira de
embarque assinada, a sua documentação regularizada, de forma a lhes dar
alguma garantia, seja ela no momento de sua aposentadoria ou ao longo da sua
trajetória profissional. Eles não têm os direitos trabalhistas assegurados.
e2) Em caso de acidente, não possuem garantias trabalhistas ou previdenciárias.
Geralmente, o registro é feito apenas na Colônia de Pesca, mas não é realizado
na Capitania dos Portos. Acredita-se que este desinteresse se manifeste em
razão da questão da possibilidade de gerar mais custos, de pagamento dos
direitos do profissional da pesca.
f)
É compreensível que o pescador prefira trabalhar em outra atividade que não seja
a pesca, passando a ter seus direitos garantidos em outra profissão (8 horas de
trabalho diário, garantia de aposentadoria etc).
g) Ouvindo-se os entrevistados, pode-se perceber a falta de fiscalização sobre as
atividades de pesca em Jurujuba. Existem muitas irregularidades ocorrendo,
muitas vezes, sob condições de "vistas grossas" dos órgãos competentes, que não
têm desempenhado a contento o seu papel de fiscalização.
h) Dentre as irregularidades ocorrentes destaca-se a falta de documentação dos
pescadores e proprietários de barcos de pesca. Há ainda o problema do tamanho
da malha de rede de pesca (tempos atrás, o tamanho permitido para as malhas era
de 11mm e atualmente encontram-se malhas de 4mm apenas, e, portanto,
significativamente predatórias). Esta prática inviabiliza o desenvolvimento e
reprodução de algumas espécies, tais como a sardinha, usada como isca para a
142
pesca do atum.
i)
O pescador, por não estar na condição de "embarcado", fica totalmente
prejudicado. Isto não ocorre por falta de vaga no barco, mas pelo fato de não
possuir a documentação necessária para a regularização da sua situação (e quando
a tem, geralmente não é levada em consideração no barco em que trabalha). Desta
forma, ele perde oportunidades legais de sobrevivência como trabalhador da
pesca durante o período de reprodução de espécies marinhas. Estas oportunidades
só cabem aos legalizados. Os armadores ou mestres, conforme foi afirmado em
uma entrevista, não têm interesse nessa legalização e levam os pescadores a
permanecerem de forma ilegal na pesca, obrigando-os inclusive a disfarçar essa
situação quando estão trabalhando nos barcos e são abordados por agentes fiscais.
j)
A sobrepesca é um outro fator responsável pela atual situação do bairro.
Constatou-se que a pesca predatória, assim como a poluição das águas da Baía de
Guanabara, levaram a uma diminuição da quantidade de peixes naquela região.
k) Atualmente os barcos pequenos fornecem a isca para os barcos grandes, e para
isto, utilizam malhas de rede muito pequenas, não respeitando o ciclo de
reprodução da espécie, contribuindo, desta forma, para a escassez dos recursos
marinhos.
l)
Antigamente, as embarcações maiores, chamadas caiçaras só realizavam a pesca
em alto mar, mas, atualmente, atuam dentro da Baía de Guanabara, contribuindo
para a diminuição das espécies marinhas, por capturarem peixes ainda em fase de
crescimento.
m) Quanto à poluição da Baía de Guanabara, são muitas as suas fontes, destacando-se
as fábricas de enlatamento, que possuem uma grande parcela de contribuição para
a sua ocorrência. Isto é mais pronunciado nas águas da Baía que banham Jurujuba.
Somente após o fechamento destas fábricas foi possível detectar o reaparecimento
de algumas espécies marinhas, nas praias de Jurujuba.
143
n) Os esgotos sanitários são lançados diretamente nas águas das praias locais, além
de outros poluentes provenientes das mais variadas origens, lançados diariamente
nas águas da Baía de Guanabara.
o) Enquanto aguardam por efetivas melhorias das condições de saneamento (água e
esgoto) do bairro, os próprios moradores vão contornando o problema local, por
conta própria, através de formas improvisadas de saneamento, construídas através
de mutirões locais.
p) Diante de tantas dificuldades, atualmente em Jurujuba, um número muito pequeno
de pessoas ainda atua na pesca. Os demais estudam ou trabalham em outras
profissões. Os resultados das entrevistas atestam que os próprios pais não mais
incentivam seus filhos a permanecerem na pesca. A maioria dos idosos, que já
trabalharam na pesca, conseguiu a aposentadoria de pescador, mas os jovens não
poderão contar com esse direito, porque dificilmente obterão a documentação
necessária para que isto se concretize.
q) Geralmente, o pescador aceita trabalhar nos barcos, mesmo que de forma ilegal,
porque não vê outra solução para a manutenção de sua subsistência através da
pesca. Precisa trabalhar, mesmo sem estar embarcado, porque não tem outro meio
de sobrevivência.
r)
Atualmente, a maioria dos pescadores não sabe fazer o trabalho artesanal com a
rede. Constata-se, inclusive, uma perda da memória da pesca artesanal. No
passado, à medida que observavam o trabalho do mestre-de-rede, iam aprendendo.
Atualmente, os donos dos barcos pagam diárias àquelas pessoas, geralmente
aposentados, que sabem fazer este tipo de trabalho e aqueles pescadores que não
têm esse conhecimento, são dispensados.
s) Em geral, são os filhos dos donos da embarcação que trabalham nas traineiras.
Com a perda dos pais, eles passaram a assumir seus lugares, ou também pode
ocorrer dos pais passarem, ainda em vida, os barcos para seus filhos.
t)
A nova geração não segue a profissão de pescador, por falta de incentivo.
144
Passando inclusive por questões relacionadas ao baixo preço obtido com a venda
do peixe, devido à ação dos atravessadores.
u) Atualmente, os jovens não querem trabalhar na pesca, não têm estímulo para isto;
e não pescam para a sua subsistência. Quando atuam na pesca, geralmente
trabalham em outras atividades profissionais, concomitantemente, objetivando
complementar os seus rendimentos.
v) Os agentes sociais entrevistados carregam, ainda, um saber prático adquirido e
formatado através de suas histórias ocupacionais como pescadores. Este saber faz
parte de sua identidade. Um claro exemplo disto encontra-se na fala de um destes,
que polemiza o fato de que não basta trabalhar na pesca para ser "pescador", pois
o "pescador" precisa dominar os meandros da atividade de forma mais artesanal,
conhecendo todas as fases do processo da pesca, desde a confecção da rede, até o
momento de "matar" o peixe. Esta identidade que se ancora em um saber
específico está, hoje, viva em somente poucos indivíduos, no bairro.
x) Em suas discursividades, os agentes sociais entrevistados nomeiam o ciclo de
reprodução das espécies de valor econômico e chegam a definir Jurujuba como
sendo um "criador" de peixes e de camarões. Com este mesmo saber prático,
explicam o fenômeno da diminuição de peixes e conseqüentemente, de
pescadores. Sabem que, sem peixes não há pescadores, e que sem novas gerações
de pescadores socializados nos mesmos conteúdos identitários, não haverá, em
breve, senão traços em Jurujuba da antiga efervescência material e simbólica que
foi o motor para uma forma específica de sociabilidade.
y) Esta dissertação aponta inúmeros problemas acerca da escassez do pescado e da
poluição na Baía de Guanabara. Não se tem a pretensão de apresentar soluções
para tais problemas. No entanto, acredita-se que um elemento fundamental, aqui
discutido, consiste na recomendação para que atuais ou futuros projetos voltados
para a recuperação ambiental da Baía de Guanabara, ou para a recuperação da
atividade pesqueira, levem em consideração o "saber local", construído ao longo
do tempo pelos agentes sociais que se reproduzem naquele ecossistema.
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APÊNDICES
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DE JURUJUBA
AMORJ
CONSIDERADA DE UTILIDADE PÚBLICA PELA LEI Nº811 DE 16/05/90
PELA PREFEITURA MUNICIPAL DE NITERÓI.
Fundação: 15 de Fevereiro de 1981.
Levantamento Sócio-econômico no Bairro de Jurujuba
Endereço.:_____________________________________________________________________________________________________________________________________Localidade: _____________________
Chefe: ____________________________________________________
Tempo em Jurujuba:____anos e ____meses
Nascimento: ___/___/_____
Escolaridade: ___________________
Residência anterior: ______________________________________________________________________________________________________________________
Cônjuge:______________________________________
Tempo em Jurujuba:____anos e ____meses
Cor: ________________
Cor: ________________
Nascimento: ___/___/_____
Escolaridade: ___________________
Residência anterior: ______________________________________________________________________________________________
Religião da Família: _____________________________________
Nome
Parentesco
Idade
Tempo de Moradia
Escolaridade
Se há crianças entre 7 e 14 anos fora da escola, por quê? _______________________________________________________
UFF / PROEX – Rua Miguel de Frias nº 9 – 6º andar – Icaraí – RJ
AMORJ- SEDE PRÓPRIA:
Av. Carlos Ermelindo Marins - 153 - Jurujuba - Niterói - RJ - CEP.: 24370-190
C.G.C.: 27.785.161/0001-94 - Registro no Cartório do 5º Ofício de Justiça de Niterói
Estudante
Sexo
Esportes
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Pessoas que trabalham ou procuram emprego:
Condição Relacionada à Pesca
Profissão
Ocupação
Renda
Pai
CTA
( )S ( )N
Mãe
( )S ( )N
Outro
( )S ( )N
Outro
( )S ( )N
Outro
( )S ( )N
Outro
( )S ( )N
Proprietário
( )Canoa
Saneamento: Água:
Esgoto:
( )Cedida
( )Alugada
( )Outros_____________
( )Canoa
( )Traineira
( )Outros_____________
( )Canoa
( )Traineira
( )Outros_____________
( )Canoa
( )Traineira
( )Outros_____________
( )Canoa
( )Traineira
( )Outros_____________
( )Canoa
( )Traineira
( )Outros_____________
Embarcado
Outros
()
( )____________
( )Com Caderneta
()
( )Sem Caderneta
( )Com Caderneta
()
()
( )Sem Caderneta
( )Com Caderneta
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()
( )Sem Caderneta
( )Com Caderneta
()
()
( )Sem Caderneta
( )Com Caderneta
()
()
( )Sem Caderneta
( )Com Caderneta
()
Forma
()
( )Sem Caderneta
( )____________
( )____________
( )____________
( )____________
( )____________
Tipo de Construção: ( )Alvenaria
( )Madeira
( )Outros_________
( )Partilha
( )Outros_________
( )Partilha
( )Outros_________
( )Partilha
( )Outros_________
( )Partilha
( )Outros_________
( )Partilha
( )Outros_________
( )Colônia de Pesca
( )Assoc.Pesc.Jurujuba
( )Outros___________
( )Colônia de Pesca
( )Assoc.Pesc.Jurujuba
( )Outros___________
( )Colônia de Pesca
( )Assoc.Pesc.Jurujuba
( )Outros___________
( )Colônia de Pesca
( )Assoc.Pesc.Jurujuba
( )Outros___________
( )Colônia de Pesca
( )Assoc.Pesc.Jurujuba
( )Outros___________
( )Colônia de Pesca
( )Assoc.Pesc.Jurujuba
( )Outros___________
( )Material aproveitado
( )Água encanada não oficial
( )Poço
( )Outros _________________
( )No mar
( )Fossa séptica
( )Fossa rústica
( )Vala
( )S ( )N
( )Partilha
Filiação
Se o chefe e o cônjuge trabalham, com quem e onde ficam as crianças? ________________________________________________
Nº de Cômodos: _____
Iluminação na casa: ( )S ( )N
Remuneração
Autônomo
( )Água encanada oficial
Iluminação pública na rua : ( )S ( )N
Criação de animais:
Companha
( )Traineira
Nº de pessoas desempregadas e o tempo: _________________
Habitação: ( )Própria
Trabalha de Que Forma ?
Lixo: ( )Coleta
( )Outros _________________
Quais :________________________________________________________
Onde a família busca tratamento médico: ______________________________________________________________
Principais problemas do bairro : 1) _____________________________________________ 2) ______________________________________________
_____________________________
Assinatura do Entrevistador
3)_____________________________________________
151
ROTEIRO DE ENTREVISTA
1) Onde e quando nasceu?
2) Caso não tenha nascido em Jurujuba, como e quando chegou lá?
3) Qual a procedência dos pais e o que faziam/fazem eles?
4) Trajetória Escolar
5) Trajetória Profissional
6) Como e quando começou a pescar?
7) Como era a lógica da pesca em Jurujuba, naquela época?
8) Como se davam as relações ao redor da pesca? As crianças também atuavam? Como era o
aprendizado?
9) Até quando se deu a pesca em canoas?
10) Atualmente existem muitos poucos pescadores em Jurujuba, o que acha disso?
11) Por que as pessoas foram desistindo de pescar?
12) Ainda trabalha na pesca?/Quando parou de trabalhar na pesca?
13) Como sente as condições atuais da Baía de Guanabara?
14) Como percebe o bairro de Jurujuba atual?
15) Como sente subjetivamente essas transformações?
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A CRISE DA ATIVIDADE PESQUEIRA EM JURUJUBA