MARIA TERESA COSTA SOARES DEGRADAÇÃO SÓCIO - AMBIENTAL: A CRISE DA ATIVIDADE PESQUEIRA EM JURUJUBA - NITERÓI/RJ Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Sistemas de Gestão da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Sistemas de Gestão. Área de Concentração: Sistemas de Gestão do Meio Ambiente. Orientador: Prof. Gilson Brito Alves Lima, D.Sc. Niterói 2003 S676 Soares, Maria Teresa Costa Degradação sócio-ambiental: a crise da atividade pesqueira em Jurujuba – Niterói/RJ / Maria Teresa Costa Soares – Niterói: UFF, 2003. 147 f. Dissertação (Mestrado em Sistemas Universidade Federal Fluminense, 2003. de Gestão) – Orientador: Prof. Gilson Brito Alves Lima. 1. Degradação ambiental. 2. Responsabilidade por danos ambientais. 3. Pescadores – Niterói (RJ) – Condições sociais. 4. Pesca – Niterói (RJ). I. Título. CDD 364.28 MARIA TERESA COSTA SOARES DEGRADAÇÃO SÓCIO - AMBIENTAL: A CRISE DA ATIVIDADE PESQUEIRA EM JURUJUBA - NITERÓI/RJ Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Sistemas de Gestão da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Sistemas de Gestão. Área de Concentração: Sistemas de Gestão do Meio Ambiente. Aprovada em 29 de dezembro de 2003. BANCA EXAMINADORA: Prof. Gilson Brito Alves Lima, D.Sc. Universidade Federal Fluminense – UFF Prof. André Augusto Pereira Brandão, D.Sc. Universidade Federal Fluminense – UFF Prof. Fernando Toledo Ferraz, D.Sc. Universidade Federal Fluminense – UFF Prof. Reginaldo Vello Loureiro, D.Sc. Universidade Federal do Espírito Santo - UFES Niterói 2003 AGRADECIMENTOS Aos meus pais por todo o apoio, dedicação e amor. À minha família e amigos por todo o incentivo. À Ana Maria, minha irmã, que mesmo de longe, muito contribuiu com o seu conhecimento na língua inglesa. Aos amigos da Pró-Reitoria de Extensão da UFF que me apoiaram na realização do Curso. À amiga Luzia Helena de Resende sempre me assessorando nas questões da Computação. Obrigada por toda a sua ajuda, inclusive na formatação da dissertação. À amiga Jamaci A. M. C. Lima que muito me incentivou a realizar o Curso, e com quem pude contar, principalmente, durante os momentos difíceis de minha convalescença. Ao meu orientador, Prof. Dr. Gilson Brito Alves Lima, pelo seu grande apoio e estímulo. Ao Prof. Dr. André Augusto Pereira Brandão por toda a sua experiência e conhecimento transmitidos na área das Ciências Sociais. Obrigada pela força, pelo incentivo e pela sua rica contribuição à dissertação. Ao Prof. Licínio Esmeraldo da Silva pelo seu empenho, consideração e relevante colaboração na área da Estatística. Ao Prof. Dr. Osvaldo Luiz Gonçalves Quelhas pela sensibilidade e compreensão que muito me animou a prosseguir. SUMÁRIO INTRODUÇÃO p. 12 CAPÍTULO 1 - REVISÃO DA LITERATURA p. 17 1.1 UMA BREVE INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA PESCA NO BRASIL p. 17 1.2 A ATIVIDADE PESQUEIRA DESENVOLVIDA DENTRO DO QUADRO DE PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL DOS PESCADORES ARTESANAIS - A PESCA NAS CANOAS p. 24 1.2.1 A PRODUÇÃO p 25 1.2.1.1 Os Fatores de Produção p. 25 1.2.1.2 Os Processos de Produção p. 31 1.2.2 AS OPERAÇÕES DE REPARTIÇÃO p. 34 1.2.3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL p. 41 1.3 A ATIVIDADE PESQUEIRA DESENVOLVIDA DENTRO DO QUADRO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA DOS ARMADORES DE PESCA E EMBARCADOS - A PESCA NAS TRAINEIRAS p. 42 1.3.1 CANOAS E TRAINEIRAS: A TRANSIÇÃO NA PESCA p. 42 1.3.2 O PROCESSO DE TRABALHO p. 55 1.3.3 A REMUNERAÇÃO E OS DIREITOS p. 60 1.3.4 A QUALIFICAÇÃO p. 65 1.3.5 A COOPERAÇÃO NO TRABALHO p. 68 1.4 A BAÍA DE GUANABARA E O PROGRAMA DE DESPOLUIÇÃO DE SUAS ÁGUAS p. 68 1.5 CULTURA E IDENTIDADE p. 76 CAPÍTULO 2 - CARACTERIZAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA DA COMUNIDADE DE JURUJUBA p. 84 CAPÍTULO 3 -VOZES DA PESCA DE JURUJUBA p. 97 CAPÍTULO 4 - CONCLUSÃO p. 140 REFERÊNCIAS p. 145 APÊNDICES p. 148 RESUMO A dissertação aqui desenvolvida apresenta uma pesquisa na comunidade pesqueira de Jurujuba. Neste locus, a pesca era realizada pelos pequenos pescadores locais através de know-how tradicional passado de pai para filho, conhecimento este de grande importância para a coleta de forma sustentável dos recursos naturais. Assim, os pescadores de Jurujuba tinham a sustentação de sua identidade baseada na utilização do meio, a Baía de Guanabara, ou seja, sua identidade se estruturava no próprio meio de produção econômica e reprodução da vida material e social. Hoje, frente às mudanças ocorridas na pesca, esses pescadores passam a buscar outras ocupações que não a atividade pesqueira, visando a sua subsistência. O corpo teórico deste trabalho passa por aspectos relacionados à atividade pesqueira: apresenta uma breve introdução à história da pesca no Brasil; detém-se um pouco mais na forma como se desenvolve a pesca dentro do quadro da pequena produção mercantil dos pescadores artesanais - a pesca nas canoas - e explora também a literatura acerca da atividade pesqueira desenvolvida dentro dos moldes da produção capitalista dos armadores e embarcados - a pesca nas traineiras. Busca ainda, apreender as questões relativas à Baía de Guanabara e ao Programa de despoluição de suas águas, além de fazer uma discussão teórica acerca do binômio cultura e identidade. A partir da análise dos dados quantitativos e qualitativos obtidos através da pesquisa de campo foi possível compreender o processo de dissolução da identidade social do grupo em função das transformações que se deram na atividade pesqueira. ABSTRACT This dissertation presents a research done in the fishing community of Jurujuba. In that locus, fishing used to be carried out by the local fishermen based on the know-how passed from father to son, which was extremely important in order to sustain the natural resources. Thus, the identity of the fishermen of Jurujuba was built based on their own production environment - the Baía de Guanabara. Nowadays, due to changes in the fishing activity, those fishermen are pursuing different occupations in order to maintain their subsistence level. The theoretical part of this work covers aspects related to the fishing activity: it presents a brief introduction to the history of fishing in Brazil, expands a bit further on the way that the fishing activity is carried out in the scenario of the small production by the local fishermen and also explores the literature around the fishing activity carried out under the capitalist production model. Furthermore, it seeks to understand the questions related to the Baía de Guanabara and the program to clean its waters, and promotes a theoretical discussion around culture and identity. Based on the analysis of the qualitative and quantitative data obtained through the field survey, it was possible to understand the process of dissolution of the group social identity as a result of the changes in the fishing activity. LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Jurujuba - Idade dos chefes de família pescadores - 2002, f. 87 Gráfico 2 - Jurujuba - Idade dos filhos pescadores - 2002, f. 88 Gráfico 3 - Jurujuba - Idade dos pescadores - 2002, f. 89 Gráfico 4 -Jurujuba - Rendimento dos pescadores que declararam não ter segunda fonte de renda - 2002, f. 91 Gráfico 5 - Jurujuba - Rendimento dos pescadores que têm renda proveniente de uma segunda ocupação - 2002, f. 92 Gráfico 6 - Jurujuba - Rendimento dos não-pescadores - 2002, f. 93 Gráfico 7 - Jurujuba - Relação entre a renda da pesca e a renda adicional dos pescadores com uma segunda ocupação - 2002, f. 94 LISTA DE TABELAS TABELA 1 - Jurujuba - Número de indivíduos, segundo a econômica - 2002, f. 85 inserção em atividade TABELA 2 - Jurujuba - Número de pescadores no total da PEA identificados na amostra 2002, f. 86 TABELA 3 - Jurujuba - Pescadores segundo a tipificação de membro da família - 2002, f. 87 TABELA 4 - Jurujuba - Chefes de família, segundo o sexo - 2002, f. 89 TABELA 5 - Jurujuba - Chefes de família, segundo a ocupação com a pesca - 2002, f. 90 TABELA 6 - Jurujuba - Chefes de família pescadores, conforme a existência de uma segunda ocupação - 2002, f. 90 TABELA 7 - Jurujuba - Escolaridade dos pescadores - 2002, f. 94 TABELA 8 - Jurujuba - Escolaridade dos chefes de família pescadores - 2002, f. 95 TABELA 9 - Jurujuba - Escolaridade dos chefes de família não-pescadores - 2002, f. 95 TABELA 10 -Jurujuba - Distribuição localidade - 2002, f. 96 dos chefes de família pescadores, segundo a LISTA DE SIGLAS CCO Centro de Controle Operacional CEDAE Companhia Estadual de Águas e Esgotos CERJ Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro CIBG Centro de Informações da Baía de Guanabara CIDE Fundação Centro de Informações e Dados do Rio de Janeiro CLT Consolidação das Leis Trabalhistas CONERJ Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro DBO Demanda Bioquímica de Oxigênio ETAG Estação de Tratamento de Água do Guandu ETEs Estações de Tratamento de Esgotos FAMNIT Federação das Associações de Moradores do Município de Niterói FEEMA Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IEF Instituto Estadual de Florestas INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INSS Instituto Nacional do Seguro Social ONG Organização Não-Governamental PDBG Programa de Despoluição da Baía de Guanabara PEA População Economicamente Ativa PET Polietileno Tereftalato PSF Programa Saúde da Família RTM Regulamento do Tráfego Marítimo SEDUR-RJ Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Regional do Rio de Janeiro SEMA Secretaria de Estado do Meio Ambiente SEMADS Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável SERLA Superintendência Estadual de Rios e Lagoas SOSP Secretaria de Obras e Serviços Públicos SPSS Statistical Package for Social Sciences SUDEPE Superintendência do Desenvolvimento da Pesca UCNs Unidades de Conservação da Natureza UFF Universidade Federal Fluminense INTRODUÇÃO A dissertação aqui desenvolvida, que toma a comunidade pesqueira de Jurujuba como alvo, parte da constatação de que neste locus, a pesca, de um modo geral, era circunscrita à comunidade local dos pequenos pescadores; ou seja, não se fazia uso de mão-de-obra assalariada. E desta forma, a pesca como meio de subsistência constituía o objetivo fundamental das atividades pesqueiras locais. (DIEGUES, 1983) A comunidade de Jurujuba, que do ponto de vista histórico, possuía traços semelhantes aos das “comunidades tradicionais” (DIEGUES, 1994), baseava-se economicamente no uso dos recursos naturais renováveis da Baía de Guanabara, através da pesca artesanal. Esta atividade era desenvolvida através de know-how tradicional transmitido, de geração em geração; conhecimento este de grande importância para a coleta, de forma sustentável, desses recursos naturais. Hoje, frente ao desequilíbrio ecológico para o qual colaborou não só a sobrepesca como também a poluição proveniente dos dejetos urbano-industriais, esses pescadores que tinham na exploração do ecossistema aquático local a sua fonte de renda passam a buscar novas formas de relação com o trabalho, no sentido de viabilizar sua reprodução familiar. Não fosse a degradação de seus recursos naturais, a Baía de Guanabara continuaria possibilitando a pesca como atividade econômica de subsistência da comunidade local de Jurujuba, e viabilizando perspectivas de capitalização e desenvolvimento da atividade. Da mesma forma, a inserção de meios de pesca mais poderosos e mecanizados, tanto para os fins de navegação quanto para a captura do pescado, contribui aqui para o afastamento do pequeno pescador dos seus instrumentos de trabalho, de sua experiência, conhecimento, e do domínio sobre o processo de trabalho (DIEGUES, 1983), na medida em que este não possuía a disponibilidade de capital necessária para a aquisição desses meios de pesca mais caros. 13 A caracterização atual da comunidade de Jurujuba frente aos impactos ambientais que levaram à exaustão das suas unidades de recurso na Baía de Guanabara é, portanto, objeto desta pesquisa. Este estudo constitui um escopo importante para políticas públicas e privadas que venham a trabalhar com a relação entre a manutenção de unidades de recursos ambientais e formas locais de geração de renda. 1 - Formulação da Situação-Problema Os pescadores artesanais se identificam como um grupo que possui profissão, entendida aqui como o domínio de um conjunto de conhecimentos e técnicas que permitem ao produtor subsistir e se reproduzir enquanto pescador. (DIEGUES, 1983) Da mesma forma, a comunidade pesqueira de Jurujuba tinha a sustentação de sua identidade calcada na utilização do meio, a Baía de Guanabara: sua identidade, portanto se estruturava no próprio meio de produção econômica e reprodução da vida material e social. O desenvolvimento da pesca neste "território"1 ou locus, possibilitava ao pescador não somente viver da pesca, mas sobretudo apropriar-se dos meios de produção e ter "o controle de como pescar e do que pescar, em suma, o controle da arte da pesca." (DIEGUES, 1983) Hoje, frente a impactação da Baía de Guanabara, este cenário se modifica, acarretando impactos sociais na comunidade, ou seja, na história da reprodução sócio-cultural de um grupo que tem uma base econômica ligada ao meio e cujo locus de reprodução não mais possibilita a sua atividade econômica como meio de subsistência. Portanto, a pesquisa aqui proposta focaliza, também, a dissolução da identidade de um grupo social que garantia a sua reprodução econômica e sócio-cultural de forma autônoma. Atualmente, esta comunidade não mais obtém da pesca artesanal, os seus meios de subsistência o que leva boa parte dos moradores a buscarem outras formas de sobrevivência. Seja trabalhando em traineiras, ou até mesmo abandonando a profissão; alimentando conseqüentemente, as franjas mais pauperizadas do emprego urbano e do desemprego. A comunidade de Jurujuba, portanto, constitui um locus interessante para um estudo que se proponha a colaborar com a compreensão de processos dinâmicos de inter-relação entre: meio ambiente e economia, meio ambiente e relações de trabalho e meio ambiente e reprodução social de comunidades pesqueiras. 1 Espaço determinado pelo meio físico explorado e pelas relações sociais e econômicas nele existentes. 14 2 - Objetivos, Delimitação e Importância do Estudo Objetivo Geral: Contribuir com o conhecimento acerca dos processos adaptativos (sociais, econômicos e técnicos) da comunidade pesqueira de Jurujuba frente à degradação de seus recursos naturais. Objetivos Específicos: Compreender na história social do grupo, as técnicas e as relações de trabalho no que tange à atividade pesqueira e às mudanças nestas, frente à impactação da Baía de Guanabara. Compreender as mudanças nos processos identitários da comunidade pesqueira de Jurujuba. Delimitação do Estudo Este estudo estará delimitado na comunidade pesqueira de Jurujuba e sua relação com o meio de subsistência próximo. Não serão aqui avaliadas as características biológicas do impacto da Baía pela poluição e pela sobrepesca. Não estarão aqui igualmente, sendo tomadas como objeto as fontes de tal impacto. Outrossim, a preocupação está na forma como a comunidade sentiu e se adaptou a esta degradação ambiental. Importância do Estudo A importância desta pesquisa está configurada em dois pontos principais: a) a identificação de como o impacto ambiental desestrutura formas consolidadas de reprodução econômica e impede o possível desenvolvimento destas; e b) o mapeamento de como as populações atingidas reagem e constroem novas estratégias de sobrevivência. Acredita-se que é fundamental demonstrar o custo social conseqüente dos efeitos da inexistência, ou ineficiência de uma política ambiental atuante. Acredita-se também que é importante demonstrar que caso houvesse uma perspectiva de equilíbrio ambiental, haveria 15 possibilidade de reprodução econômica e desenvolvimento sustentável de pequenos aglomerados populacionais. Ambos aspectos constituem pontos que podem ser utilizados em futuras atividades de formulação e gestão de políticas públicas e privadas. 3 - Referencial Teórico O corpo teórico que sustenta esta pesquisa será discutido no Capítulo de Revisão da Literatura e conta com um grande número de aportes: a) a questão da caracterização dos tipos de pesca (Diegues, 1983; Duarte, 1978; Kant de Lima, 1997); b) a questão do meio ambiente como unidade de recurso para reprodução de comunidades pesqueiras (Diegues, 1994 e 1983); c) o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (Santos Neto, 2002); e d) a questão da cultura e da identidade como elemento de pertencimento grupal e formação de aproximações subjetivas entre indivíduos (Bosi, 1998; Hall, 2001; 2000 e 1987; Latour, 1996; Sahlins, 1997; Silva, 2000; Woodward, 2000). 4 - Questões e/ou Hipóteses Esta pesquisa visa o estudo das novas relações de trabalho que vão sendo implementadas pela comunidade pesqueira de Jurujuba, e o mapeamento das modificações técnicas que foram realizadas. Ambas as mudanças estariam, em conjunto, determinando a formatação de novas estratégias de sobrevivência frente ao impacto ambiental de suas unidades tradicionais de reprodução econômica, bem como formatando novos elementos identitários. Ao procurarem atender as suas necessidades básicas bem como as de seus familiares, os pescadores migraram para um novo contexto técnico e de relações de trabalho em que são utilizados novos instrumentos e cuja forma de acumulação e transmissão de capital diferem ao extremo da forma tradicional com que vinham sendo praticados pela população local. Muitos deles ficam sujeitos a abandonar a profissão sendo inseridos no contexto do mercado de trabalho urbano e do desemprego. Além disto, pressupõe-se que há uma perda de identidade social da comunidade, na medida em que se reduz o peso da atividade pesqueira na reprodução sócio-econômica do grupo. 16 5 - A Estrutura do Trabalho O Capítulo 1, a partir do corpo teórico que sustenta essa pesquisa, permite que se faça uma breve introdução à história da pesca no Brasil. Busca uma maior compreensão acerca da forma como se desenvolve a pesca nos quadros da pequena produção mercantil dos pescadores artesanais (a pesca nas canoas) e o modo como se dá a atividade pesqueira desenvolvida nos moldes da produção capitalista dos armadores de pesca e embarcados (a pesca nas traineiras). Buscou-se ainda, apreender as questões relativas à Baía de Guanabara e ao Programa de despoluição de suas águas, além de fazer também uma discussão teórica sobre o binômio cultura e identidade. O Capítulo 2 apresenta e analisa os dados quantitativos resultantes da aplicação dos questionários sócio-econômicos fechados, além de expor a metodologia utilizada para a obtenção desses dados. Buscou-se elaborar uma caracterização da população, principalmente no que diz respeito aos aspectos econômicos de trabalho e renda, além de aspectos tais como nível de escolaridade, faixa etária e outros. O Capítulo 3 apresenta as análises das entrevistas abertas realizadas, além de expor a metodologia utilizada. Através de perspectivas metodológicas qualitativas, buscou-se caracterizar as formas subjetivas através das quais o grupo percebe a crise na pesca e o próprio processo de dissolução identitária do grupo. O Capítulo 4 é conclusivo. Nele discutiu-se os resultados do trabalho de análise de dados quantitativos e qualitativos. Tais resultados apontam para um reduzido número de moradores que ainda trabalha na pesca em Jurujuba, e permitem a compreensão do processo de dissolução da identidade social dessa comunidade na medida em que se reduz o peso da atividade pesqueira na reprodução sócio-econômica do grupo. Além disto, verificou-se como o grupo identifica na poluição e na sobrepesca os determinantes da crise atual da atividade. CAPÍTULO 1 - REVISÃO DA LITERATURA 1.1 UMA BREVE INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA PESCA NO BRASIL Ao longo do século XX, constata-se que as transformações técnicas que se deram tanto na captura do pescado quanto na sua industrialização, ocorreram a partir de um processo de concentração de capital e acarretaram um aumento do poder predatório dos equipamentos de produção utilizados na pesca. Neste sentido, as técnicas cada vez mais predatórias, em conjunto com a introdução do maquinismo, produziram uma situação de sobrepesca. A captura indiscriminada e em larga escala, por sua vez, somada a problemas decorrentes da poluição urbano-industrial, implicou no desaparecimento de um grande número de espécies de pescado em todo o País. (DIEGUES, 1983) Sabe-se que dentro de um ecossistema, as diversas espécies que aí convivem, atuam dentro de uma cadeia trófica. Porém, quando esses processos não são levados em consideração, devido, principalmente, à sobrepesca, instaura-se a desorganização desse equilíbrio instável, levando, muitas vezes, ao desaparecimento de várias espécies marinhas, já que esses organismos ficam impossibilitados de se reproduzirem. É importante ressaltar que a natureza dos recursos a serem explorados na pesca é que irá caracterizar os processos de produção nesta atividade. Inúmeras espécies de pescado com valor comercial, só podem ser exploradas em determinadas épocas do ano, após passarem por várias fases, até alcançarem a maturidade, ou seja, são cíclicas. São também móveis, pois não possuem um nicho ecológico fixo. Muitas vezes chegam a ultrapassar fronteiras marítimas de países ou vão de um oceano a outro. Observa-se que essas migrações ocorrem devido a vários fatores tais como o deslocamento da massa alimentar que serve de nutrição para certas espécies (como fitoplâncton), as alterações de temperatura e salinidade etc. (DIEGUES, 1983) 18 Ao considerar o desenvolvimento da atividade pesqueira no Brasil, mais especificamente no litoral Sudeste brasileiro, Diegues (1983) observa algumas formas de organização da produção da pesca. Dentre elas, destaca a presença da traineira tradicional de propriedade de um armador, ou seja, daquele que é dono das traineiras onde trabalham os pescadores embarcados. E ressalta a pequena produção desenvolvida por meio de uma pequena embarcação motorizada, a baleeira, pertencente a um produtor artesanal que costuma pescar sozinho ou acompanhado de mais um outro pescador. O autor ainda constata o desaparecimento gradativo do sistema de companhas, ou seja, daquele em que o proprietário do barco e dos equipamentos de pesca participa desta com vizinhos e familiares, de forma igualitária e cuja remuneração do trabalho se dá pelo regime de partilha. Segundo a literatura, as diferentes unidades de produção, ou seja, os quadros específicos em que se dá a pesca, apontam para formas de produção distintas, e referem-se a diferentes momentos históricos. Existe, no entanto, uma articulação entre as diversas formas de organização da pesca. Esta articulação é que norteará a reprodução da força de trabalho, dos instrumentos de produção e das relações sociais de produção específicas de cada forma produtiva. Na medida em que o modo como se explora a natureza depende de cada forma específica da produção, os pequenos pescadores, diferentemente daqueles que atuam na produção pesqueira capitalizada, para obterem os seus meios de subsistência na pesca, utilizam embarcações de pequena autonomia, equipamentos de baixo poder predatório e fazem uso de conhecimentos acumulados, de forma hereditária. E são justamente esses pequenos produtores, os mais atingidos com a destruição da natureza em ecossistemas aquáticos, como os existentes nas baías e águas costeiras. A atividade pesqueira se dá, portanto, diferentemente de outros setores da divisão social da produção. Na pesca empresarial capitalista, por exemplo, é comum ocorrer o desaparecimento de cardumes, já que este é explorado até que o lucro médio seja inviabilizado. Esta forma de produção também sofre com a limitação dos estoques, embora não dependa tanto das forças da natureza para reproduzir. Ou seja, após explorar concomitantemente vários ecossistemas marinhos, a limitação da predação virá com a exaustão dos recursos naturais. Outras formas de organização social, no entanto, apresentam um rationale diferente. É possível, portanto, assegurar a manutenção dos recursos, a partir de grupos sociais que tenham a sua reprodução social calcada no respeito à capacidade limitada da reprodução biológica dos recursos renováveis. (DIEGUES, 1983) Segundo Diegues (1983), entre grupos de pescadores com baixo desenvolvimento 19 tecnológico, há uma dinâmica que consiste em descobrir e ao mesmo tempo manter o controle sobre os pontos ótimos para a pesca. O pescador adquire prestígio à medida que ele consegue descobrir um maior número de pontos sem deixar que estes sejam localizados por seus concorrentes. Ele deverá guardar esta descoberta para si e sua família, ou seja, mantê-la na unidade de produção. À medida que forem surgindo outros pontos melhores, aqueles poderão deixar de ser explorados e esse conhecimento será sempre passado de pai para filho, através do mestre. O autor sustenta que as diferentes formas de produção, nas quais se atualiza a pesca, apontam para racionalidades específicas. Dois pescadores podem ter visões distintas a respeito do meio ambiente, as quais serão retratadas na forma como se relacionam com a natureza. Assim sendo, "cada forma de produção social apresenta, portanto, uma racionalidade própria, indicada pelos objetivos mais gerais de sua reprodução social ao longo da história" (DIEGUES, 1983, p. 84). É neste sentido que para o pescador, o mar não é uma "infinita" massa de água, mas sim, um espaço racionalmente apreendido. Ainda segundo o autor, o que ocorre na pesca é que a formação do sobretrabalho não se dá exclusivamente em função do distanciamento do trabalhador das forças produtivas naturais, uma vez que o espaço marinho é disponível a todos, mas sim pelo fato do produtor direto não possuir os instrumentos de captura e, ainda ser impedido de utilizar os conhecimentos acumulados, uma vez que não dispõe de barco e redes para explorar novos espaços marinhos à procura dos peixes oriundos de locais onde as condições naturais foram profundamente abaladas. Ou seja, “à medida que o capital técnico (equipamentos de pesca e navegação) se torna cada vez mais poderoso e o acesso à sua propriedade mais limitado, surge a possibilidade histórica de o seu proprietário se apropriar do sobretrabalho dos outros pescadores”. (DIEGUES, 1983, p. 96) O surgimento de formas capitalistas de produção na atividade pesqueira representou não apenas o distanciamento do trabalhador direto dos instrumentos de trabalho, implicando na remuneração sob a forma de salário, como também acarretou o afastamento gradativo de seu know-how profissional, conhecimento este que caracteriza o bom pescador. Na pesca industrial, com a utilização dos equipamentos modernos e eletrônicos, o conhecimento passado de geração em geração é totalmente dispensável. Embora estes tenham diminuído a instabilidade na pesca e aumentado o domínio sobre as variáveis naturais, a pesca continua sendo uma atividade arriscada e que depende da sorte. Assim, quando a produção empresarial-capitalista se vê impossibilitada da produção 20 em larga escala devido à diversidade das condições naturais, o pequeno pescador pode atuar com a mão-de-obra familiar, usando o seu conhecimento acumulado de nichos ecológicos específicos e instrumentos de captura apropriados. A inserção do maquinismo, além de acarretar o afastamento do know-how tradicional dos pescadores, modificou também o modo como eles percebiam o ecossistema marinho. Não somente os poderosos barcos de pesca industrial exploraram exaustivamente os cardumes implicando na própria impossibilidade das espécies marinhas se reproduzirem, como também a poluição urbano-industrial ocasionou alterações nas propriedades relacionadas à constituição das águas com conseqüências diretas sobre o modo de agir e reagir das espécies. Ainda segundo a literatura, no litoral Sudeste-Sul as condições naturais e históricas aí existentes propiciaram uma maior acumulação de capital no setor pesqueiro. A partir da década de 60, havendo uma maior concentração dos meios de produção, surge uma nova forma de organização social, a pesca embarcada, realizada por armadores ou por empresas de pesca. No entanto, constata-se ainda, a existência da pequena pesca, desenvolvida dentro do quadro de pequena produção mercantil, porém, muitas vezes já subordinada à pesca empresarial-capitalista. O que se percebe é que essas formas de organização da produção não existem de maneira estanque. Há entre elas uma forte relação. O surgimento das traineiras na Região Sudeste e o início da pesca embarcada no Brasil se deram concomitantemente, levando a uma ruptura gradativa com a pequena pesca. Esta ruptura ficou mais acentuada quando as traineiras passaram a fornecer sardinhas para as indústrias de conserva. Isto se deu na década de 30. Diferentemente das canoas da pequena pesca, as traineiras, unidades de produção de alto custo, alcançam mares mais distantes. Apresentam uma maior divisão do trabalho e os instrumentos de pesca utilizados são mais poderosos, o que facilita a captura do pescado em maior volume. Bernardes (1958) e Brito Soeiro (1960), discutem as condições em que a traineira foi introduzida no Brasil. A partir do final do século XIX, pescadores imigrantes portugueses e espanhóis, se fixaram no Rio de Janeiro e trouxeram com eles três formas de pesca, cuja arte foi de suma importância para a evolução da pesca no Brasil. Segundo esses autores, com o fim da pesca tradicional na Póvoa de Varzim, aldeia de pescadores em Portugal, os poveiros, seus habitantes, vieram para o Brasil trazendo equipamentos de pesca e introduziram no sul da Bahia a “pesca de linha de fundo com caíques”, atividade considerada bastante arriscada, porém de grande retorno econômico. 21 Pouco depois, em 1900, uma outra forma de pesca foi introduzida pelos pescadores portugueses e espanhóis do bairro do Caju: a “pesca do camarão com arrasto de porta”. Esta arte de pesca consistia na utilização de redes cada vez mais aperfeiçoadas e se realizava no interior da Baía de Guanabara, favorecendo que migrantes agricultores portugueses se tornassem pequenos pescadores. E em torno de 1910 os pescadores espanhóis trouxeram a traina, uma rede de cerco grande, que quando fechada, concentra a sardinha numa espécie de saco. Até então, a pesca da sardinha não era valorizada na Região Sudeste, sendo inicialmente realizada dentro do sistema de companhas. A partir de 1930, com a introdução do motor, a pesca da sardinha passa a ser realizada pelas traineiras e conta com a tripulação do barco e a tripulação da rede. Segundo ainda a literatura, com a abertura de indústrias de enlatamento de sardinhas, o mercado foi ampliando-se e tornando-se mais estável. A partir da criação do Entreposto de Pesca, em 1934, a pesca das traineiras deu um grande salto. Surge assim a figura do armador proprietário de várias traineiras onde parentes, vizinhos ou conhecidos são postos para atuar como mestres. Com o conhecimento da existência de grandes cardumes de sardinha no litoral Sul e da possibilidade de pescadores constituírem a tripulação, deu-se que as traineiras do Rio de Janeiro e de Santos começaram a marcar presença em Santa Catarina. Com Lago e Gouveia (1968), retoma-se a história e percebe-se que a atividade pesqueira era ali realizada pelos descendentes dos açorianos, e era praticada nos moldes da pesca de companha. Assim, segundo a literatura abordada, no século XIX os migrantes açorianos chegaram no litoral de Santa Catarina. Eles eram agricultores e realizavam a pequena pesca sazonalmente. Com a venda do produto eles obtinham o dinheiro para comprar os bens que não eram produzidos diretamente por eles. Nas décadas de 40-50, devido às baixas rendas obtidas na atividade agrícola houve uma grande evasão dos agricultores para a atividade pesqueira. Para a desestruturação da pequena agricultura litorânea contribuiu não só os problemas com o solo como também a competição com produtos agrícolas oriundos de outros lugares. Os inúmeros ex-agricultores-pescadores que passaram a viver somente da pesca acabaram por afetar a organização das companhas. Estas não mais constituíam as sociedades tradicionais, mas sim representavam a união de duas ou mais companhas. O grande aumento de companhas não só causou a predação dos recursos pesqueiros dos mares catarinenses como também favoreceu o surgimento dos pescadores migrantes ou 22 andorinhas. Estes pescadores iam de caminhão para as praias do Rio Grande do Sul atuando como camaradas em companhas de barcos de proprietários locais. Seguindo a literatura, a partir deste quadro de desestruturação de uma organização da produção que não comportava a mão-de-obra excedente, que apareceram as embarcações do tipo traineira em Santos e Rio de Janeiro, cuja estrutura acolhia esta mão-de-obra. O objetivo do pescador-andorinha e do embarcado na traineira de fora, era juntar dinheiro para adquirir equipamentos de pesca que possibilitassem a sua condição de dono de meios de produção mais possantes. Diante dessa impossibilidade, esses pescadores eram forçados a residir nos porões das traineiras nas condições ditadas pelo embarque. A desorganização da pequena agricultura e pesca em Santa Catarina, acarretou um excedente populacional marginalizado e necessitado que, visando a subsistência, migrava sazonalmente para as praias de outros Estados. Instaura-se, desta forma, um processo de acumulação que possibilitou aos armadores de Santos e do Rio de Janeiro dispor de uma mãode-obra barata para trabalhar nas traineiras. O aparecimento das traineiras, nas primeiras décadas do século XX, trouxe consigo o início da concentração dos meios de produção e da força de trabalho na atividade pesqueira. Como o proprietário da traineira era o mestre ou patrão de pesca e atuava junto com os embarcados no processo de trabalho, esta forma de organização não se constituía ainda numa organização empresarial-capitalista. A partir do momento que os proprietários de traineiras acumulam algum capital e compram outras embarcações, eles vão se distanciando do processo de trabalho direto, atuando como administrador e vendedor do produto que é desembarcado pelos seus representantes ou mestres. Conforme já mencionado anteriormente, denomina-se armador, o proprietário de várias traineiras onde trabalham os pescadores embarcados. A forma de organização implícita na prática desses armadores, não poderia, no entanto, ser entendida como uma pesca empresarial já que esta implicaria numa integração de setores de captura e industrialização, o que só ocorre tempos depois. Com Diegues (1983), constata-se que a pesca no Brasil, até a década de 60, compreendia a pesca artesanal e a produção dos armadores nas traineiras. Havia um número muito reduzido de empresas de pesca que atuava somente na produção do pescado para ser consumido fresco ou para seu enlatamento. No Nordeste, porém, havia algumas empresas que exportavam a lagosta. A sardinha e os peixes de fundo, encontrados em grande quantidade no litoral SudesteSul, eram importantes para o trabalho dos armadores de traineiras e barcos linheiros que 23 comercializavam a produção nos centros urbanos. No entanto, essa concentração dos meios de produção ainda não era o bastante para a construção da indústria estável, em que o lucro pudesse ser reinvestido na atividade pesqueira. No litoral Sul onde a demanda é maior para peixes finos, constata-se uma grande concentração de sardinha, pescado de custo baixo. Assim, o peixe salgado ou enlatado é transportado do Sul para o Nordeste do Brasil a alto preço e através de um grande sistema de transporte. Visando acabar com esse problema da baixa produtividade e custo elevado, em 1967 o Governo brasileiro criou um programa de incentivos fiscais que incrementava os investimentos privados na pesca, acarretando o aumento de produção de pescado. Em conseqüência, a organização da pesca no Brasil sofreu modificações e atingiu objetivos inesperados. As novas empresas, começaram a construir e importar barcos, equipamentos e infraestrutura de terra que seriam viáveis para uma pesca costeira tendo como limite de atuação a plataforma continental. Observa-se, portanto, que houve uma maior concentração dos meios de produção nas regiões Sudeste e Sul, em especial, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, já que a maior parte das empresas favorecidas aí se localizava. Porém em conseqüência dos incentivos fiscais, as empresas visavam o retorno do investimento feito nos meios de produção e para tanto as espécies mais valorizadas no mercado sofreram maior predação e foram vendidas no mercado externo. Entre 1967 e 1972 em função da sobrepesca ocorrida, os estoques de camarão, espécie de alto valor comercial, ficaram reduzidos no litoral Sul, fato que em conjunto com a alta do preço do combustível gerou uma crise em grande parte das empresas. Como no Norte do país ainda existiam grandes estoques, a solução foi as empresas do Sul mandarem vários barcos para lá. Estas empresas, também passaram a comprar a produção dos pescadores artesanais especialmente do Amazonas e Pará. Assim o ecossistema se desestruturou em função dessa corrida para a captura de camarões e similares. Visando atender à demanda das empresas, os estoques foram explorados de forma predatória, fato que levou, os pequenos pescadores a esgotarem os seus meios de subsistência, favorecendo o quadro de pobreza social. Com o desaparecimento do camarão, as empresas iam procurar outros locais para estabelecer seus postos de compra, recomeçando assim um novo ciclo. Além dos barcos brasileiros, barcos americanos a partir de 1972 conseguiram, através de um tratado bilateral, autorização para pescar nesta área mediante o pagamento de uma 24 pequena taxa por temporada. A atividade pesqueira vai se desnacionalizando a medida que multinacionais compram fábricas de enlatamento do pescado e ainda devido à política de joint-ventures, ou seja, aquela onde empresas brasileiras se associam às estrangeiras para explorar os recursos pesqueiros. 1.2 A ATIVIDADE PESQUEIRA DESENVOLVIDA DENTRO DO QUADRO DE PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL DOS PESCADORES ARTESANAIS - A PESCA NAS CANOAS. Nesta parte, busca-se uma maior compreensão acerca da forma como se desenvolve a pesca no âmbito da pequena produção mercantil, ou seja, a pesca realizada em canoas. Para tanto, muito contribuirá a pesquisa realizada por Kant de Lima (1997), a respeito dos pescadores de Itaipu - Niterói/RJ. A pescaria constitui-se da atividade de pesca, e implica na organização de grupos de pesca que façam uso de aparelhos tecnológicos para a captura das espécies, de acordo com o conhecimento naturalístico acumulado por quem a realiza. Ela segue regras sociais estabelecidas para a apropriação do produto, e estratégias para apropriação da natureza. Estas estratégias são geradas a partir do conhecimento técnico e naturalístico, cuja socialização se dá no interior das companhas. Ele é passado hereditariamente e mantido em sigilo. Um outro aspecto importante é a habilidade do pescador demonstrada na sua manipulação. Esta é reconhecida por todos, e estabelece uma hierarquia, a qual estrutura o grupo durante a atividade de pesca. (KANT DE LIMA, 1997) O objetivo maior da pesca encontra-se, portanto, nessa previsibilidade de resultados decorrente do conhecimento de classificação da natureza, já que a atividade pesqueira, conforme visto, depende das populações naturais, as quais não permitem o controle dos ciclos reprodutivos e migratórios dos estoques. Para que se possa entender melhor a pesca artesanal da pequena produção mercantil, segue-se Kant de Lima (1997) nas considerações acerca da pescaria de "canoas pequenas" e dá-se maior destaque, juntamente com este autor, aos aspectos concernentes à produção e repartição do produto da pescaria de "canoas grandes" ou "de arrasto", como também é chamada. 25 1.2.1 A PRODUÇÃO Inicia-se a discussão com a definição de Kant de Lima (1997, p.99) acerca da produção. Segundo este autor, a produção constitui-se do "conjunto de operações destinadas a fornecer os meios materiais de existência a um grupo social (...)." Godelier (s.d., p.327-328), contribui para essa discussão, afirmando que a produção tem por fim a obtenção de um produto de uso social. Para tanto, ela segue determinadas regras técnicas, as quais combinam os fatores de produção, a saber: recursos, instrumentos de trabalho e homens. É claro, porém, que as formas como se ligam esses fatores de produção podem variar no interior de um mesmo grupo ou de um grupo para outro. Para Godelier (s.d., p. 328), não há "recursos em si, mas possibilidades de recursos oferecidas pela natureza no quadro de uma dada sociedade num determinado momento de sua evolução". Aparece aí, a importância do saber naturalístico (LÉVI-STRAUSS, 1970, 1975) na exploração dos recursos naturais. Ou melhor, a importância de se conhecer as características particulares e a forma como se comportam as espécies nas diferentes condições em que se encontram. 1.2.1.1 Os fatores de produção Para Kant de Lima (1997), o saber "naturalístico" seria o primeiro e mais fundamental. A partir deste, as classificações utilizadas pelo grupo de pesca servem de "representações que orientam a produção". Assim sendo, o pescador acumula empiricamente e de forma hereditária o conhecimento de variáveis naturais, tais como, posição da lua, marés, migração de pescado etc. A avaliação desses fatores naturais que antecedem o ato de lançar uma rede é o que caracteriza a qualidade do pescador. (DIEGUES, 1983) O Conhecimento técnico é o segundo fator de produção apontado por Kant de Lima (1997). Ao analisar-se as técnicas e os instrumentos utilizados no âmbito da pequena pesca, parte-se da pressuposição de Godelier: Todo processo de produção constitui, (...), uma seqüência ordenada de operações cuja natureza e encadeamento se fundam nas condições às quais se submetem para obter o produto final esperado. Essas operações se desenrolam, portanto, na base de um meio natural e de realidades sociais dadas que constituem as restrições às quais está submetido o sistema tecnológico de produção, restrições que "limitam" e determinam as "possibilidades" do sistema, sua eficácia. (GODELIER, s.d., p. 329) 26 Kant de Lima (1997), corrobora essa idéia, ao constatar que na pesca em Itaipu existe uma eficácia dos meios de produção empregados na captura do pescado. Estes meios de produção permitem uma exploração do local de forma econômica e não acarretam a exaustão dos recursos naturais aí existentes. Além disso, eles combinam um saber naturalístico com um conhecimento técnico que se ajustam, portanto, às condições de produção local. A sua eficácia pode ser confirmada, na medida em que a reprodução dos pescadores de Itaipu é mantida até os dias de hoje. Constata-se, a partir do exposto, a importância de uma adequação da utilização e da combinação dos diferentes fatores de produção dentro dos quadros específicos em que se realiza a atividade pesqueira. O autor informa que dentro do quadro de pequena produção mercantil dos pescadores artesanais, a pescaria se constitui basicamente de canoas e redes, incluindo aí as técnicas para sua utilização e manutenção. Quanto às canoas, estas podem ser "canoas pequenas" ou "canoas grandes". Ambas são produções artesanais. São feitas de tronco cavado de madeira de lei, e em seguida dá-se a sua armação, ou seja, a colocação de seus acessórios pelo artesão. Esta última deverá se adequar às condições naturais do local. As canoas pequenas podem ser "menores", quase sempre propulsadas a remo, ou "maiores", as quais utilizam-se de motor, para se deslocar. Nas canoas pequenas, utiliza-se o sistema de "palamenta". Este, constitui-se da colocação de dois remos em direções opostas, nos dois lados da canoa. O pescador pode guiá-la sozinho, fazendo uso dos dois remos simultaneamente. Estes remos denominam-se palamentos, e além deles existe um outro separado. As pescarias "de canoas grandes", também chamadas "de arrasto" ou "de arrastão", apresentam dois importantes processos de produção: o "lanço à sorte" e o "cerco". São de grande importância para a atividade de captura e comercialização das espécies. Além de requisitarem mais pescadores em sua companha, elas também requerem maiores investimentos que as pescarias de canoas pequenas. Com elas, os seus proprietários conseguem maiores ganhos econômicos e maior respeitabilidade, interna e externamente ao grupo, inclusive representando-o em determinadas situações de suas relações sociais. (KANT DE LIMA, 1997, p.99) Prosseguindo com a literatura, constata-se que as canoas grandes utilizam-se de quatro remos compridos e um menor denominado "timão". Os bancos colocados na direção popaproa, bem como seus ocupantes são chamados de "ré", "meio", "contra-meio" e "proa". Dois outros bancos restringem o local da rede. Na popa, parte situada para além do banco de ré, o 27 mestre viaja de pé. Segundo ainda o autor, depois de colocados os remos e demais acessórios necessários, por último, dá-se a pintura da canoa, inclusive com o nome e o número de matrícula na Capitania dos Portos. Estes últimos deverão ser registrados com o nome do proprietário na Capitania, na Colônia de Pesca e na SUDEPE (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca). Todos os dias em que a canoa é usada ou exposta ao sol, ela é lavada com a água do mar, visando a sua conservação. E aqueles que atuam na pescaria, farão a troca de alguns acessórios quando estes estiverem gastos ou forem perdidos durante a atividade de pesca. Os consertos são realizados dentro de um certo intervalo de tempo. À medida que o casco se danifica, as partes prejudicadas vão sendo substituídas por pedaços de madeira. As canoas grandes transportam a rede de arrasto e seus cabos. Elas se movimentam em terra e no mar. O deslocamento das canoas da areia até a água é denominado "desencalhar" e no sentido contrário, "encalhar". A operação de "encalhar" pode ser realizada por qualquer pessoa na praia, além dos participantes da pescaria. Os pescadores, quando solicitados, caso não aceitem colaborar, também não receberão ajuda quando precisarem, já que o esperado é a troca de serviços mútua. No mar, os remadores cuidam do deslocamento da canoa, sempre orientados pelo mestre. Remar requer, além de força, muita habilidade. Nas "canoas grandes", cada remador utiliza um remo. O mestre, com a ajuda do timão, direciona a canoa, contando com a colaboração dos remadores. Terminado o "lanço" ou "cerco", quando a canoa volta para a praia, os remos são guardados dentro dela. Prosseguindo com o autor, percebe-se que as redes de canoas grandes podem ser "redes de lanço", ou "cata-cata", além das "redes de tainha", "redes de parati" e "redes de sardinha". O tamanho das "redes de cerco" e "de lanço", variam em função não só da condição econômica de seus proprietários, como também do tamanho das canoas que farão o seu transporte. Quanto às redes de canoas pequenas, a curvineira tem 1,5 a 2 braças de altura, lembrando que 1 braça corresponde a 2,20m, e equivale à extensão medida entre um dedo médio e outro de um homem com os braços abertos em cruz. O comprimento mede 150 braças aproximadamente. Esta rede é utilizada para a captura de espécies que se deslocam muito próximo ao fundo. Este tipo de rede necessita de, pelo menos, dois homens para sua utilização. É indicada para a captura de corvina e de cação sendo mais utilizada nos meses de abril a outubro, período em que o mar está revolto e venta mais. Ao passo que a "rede alta" é 28 utilizada nas canoas "maiores", e é própria para a captura de espécies que se deslocam próximo à superfície, tais como o robalo e a enchova. Ela pode medir de 6 a 8 braças de altura e aproximadamente 300 braças de comprimento. São necessários dois homens para remar e dois para colocar a rede n'água e depois recolhê-la com o pescado capturado. (KANT DE LIMA, 1997, p. 84-86) As redes das canoas grandes são, em geral, feitas de panos. Estes panos constituem-se de pedaços de malha que são mais largos em ambas as extremidades ou "mangas" e mais estreitas no centro, formando um saco, ou "cópio". As redes de arrasto são confeccionadas com fio de náilon. Enquanto na parte de cima da rede, ao ser lançada no mar, são atadas cortiças, ou bóias, do outro lado, na parte de baixo, são presos "chumbos", ou pesos. "Entralhar" é o nome dado a toda a montagem da rede. E "atar" é como chamam o ato de remendar as malhas. Seguindo a literatura, verifica-se que na pescaria de arrasto, a operação de "embarcar" a rede, consiste em trazê-la para o interior da canoa, após o seu uso durante a pesca. Para a sua execução são necessários quatro homens. A pescaria "de cerco" e "de lanço", processos de trabalho realizados no âmbito da pescaria de arrasto, cada uma delas, apresenta uma forma diferente de "embarcar" a rede; dependendo, inclusive, do número de pessoas participantes. A rede é "embarcada redonda", quando a pescaria é "de cerco" ou quando o número de pessoas é pequeno para realizar o "lanço". Neste caso, um único homem é suficiente para lançar a rede, porém necessitará de um tempo maior para a sua realização. No caso da pescaria "de lanço", a rede é "embarcada à moda de rede alta". Esta operação é mais rápida. Na hora de lançar a rede, o mestre "larga" o "chumbo" e o "ré" "larga" a "cortiça". Essa segunda operação, que consta de lançar a rede de dentro da canoa para o mar, é chamada de "largar" a rede. Uma outra técnica de utilização da rede consiste em recolher a rede que foi lançada ao mar, à medida que se fizer necessária a interrupção de um cerco ou lanço. Esta operação denomina-se "cobrar" a rede e é realizada pelo mestre e por mais um homem. Segundo Kant de Lima (1997), a atividade humana consiste no terceiro e último fator de produção. Para um melhor entendimento acerca deste, vale ressaltar que as unidades de produção, ou seja, os quadros específicos em que se dá a pesca, dependem da natureza dos trabalhos que são realizados e dos meios que dispõem para realizá-los. Nas condições dessas unidades de produção é que ocorre a relação técnica com a natureza, por intermédio das relações dos trabalhadores ativos no âmbito do sistema. Constata-se, no entanto, que a utilização e combinação dos fatores de produção, assim como os motivos que levam os 29 indivíduos economicamente ativos a se agruparem para exercer uma certa atividade produtiva, podem ser distintos dentro de um mesmo sistema. (GODELIER, s.d.) Quanto à equipe que trabalha nas pescarias de arrasto, esta, denomina-se "companha", e seus participantes são chamados de "companheiros". "A companha constitui, por assim dizer, o núcleo fundamental para o exercício da atividade produtiva, através dos equipamentos da 'pescaria' e dos conhecimentos que permitem a apropriação dos recursos." (KANT DE LIMA, 1997, p.164) Ao prosseguir com a literatura, verifica-se que dentro desta equipe de produção da pescaria de arrasto, estabelece-se uma hierarquia de posições, e a partir desta, cada um terá a sua função na atividade da pesca. Desta forma, o mestre ocupa a posição de nível mais alto dentro da pescaria. Ele é o "encarregado" da produção da pesca e é também o responsável pela reprodução nos quadros que permitem a sua continuidade. É ele quem decide o local, a quantidade e a hora para pescar. Ele transmite os conhecimentos à medida que comanda a realização de uma tarefa. A orientação de todo o trabalho da companha, é ele quem faz. A sua posição não é muito requisitada, uma vez que ela implica numa ligação mais intensa com uma determinada tarefa. No interior da canoa, ele vai na popa, viajando junto com os companheiros-de-remo. Com a ajuda do "ré", ele "larga a rede" e poderá "cobrá-la", caso esteja embarcada à "moda de rede alta". A ele cabe ainda, com a ajuda do timão, dirigir a canoa durante o "lanço" e comandar a "puxada". Ao retornar à praia com a rede, ele iniciará a distribuição e a comercialização do pescado. E é através do leilão, seja ele realizado na praia ou no mercado, que se desenrola a comercialização do produto. Da equipe de produção, constam ainda os "companheiros-de-remo" que têm como função remar, colaborar na puxada de rede de terra e também sob a orientação do mestre, trabalhar na manutenção dos instrumentos de pesca. Todos os companheiros devem participar das funções de "atar" e "entralhar" redes, que associadas às outras tarefas da atividade produtiva, vão implicar na totalidade do pescador. Outros valores também considerados são a assiduidade, a ausência de vício com bebida alcoólica, e a prontidão e vigor na realização das tarefas, além de ser necessário que resistam à permanência no mar, sem passar mal. Ajudam a "encalhar" e "desencalhar" a canoa e participam do ato de "embarcar" a rede. Aos companheiros-de-remo compete, ainda, guiar a canoa para bombordo ou estibordo, esquerda e direita respectivamente, considerando-se o sentido da popa para a proa. Os companheiros têm como função também, a operação de juntar as cordas que se desprendem dos cabos da rede, enrolando-as e acondicionando-as. É o que chamam de "fazer 30 corda em roda". Além dessas tarefas, após a sua chegada na praia, os "companheiros-deremo" deverão organizar, distribuir em classes nos "cestos" ou "ganhos" - depósitos para quantificar a produção e transportar o pescado - e lavar o produto no mar. E finalmente, então, atuarão naquilo que menos se valoriza, que é guardar esses depósitos. Segundo Kant de Lima (1997), aqueles que ainda estão em fase de aprendizagem, conseguem ingressar numa companha mediante as relações de parentesco, embora, em determinadas circunstâncias, também sejam aceitas pessoas "de fora". As crianças começam como pontas-de-cabo ou cabeiro e vão realizando tarefas simples. À medida que se desenvolvem fisicamente, ficam aptos para remar e ascendem à função de companheiros-deremo. O autor ressalta ainda, que o contramestre ou mestre-de-rede, além de substituir o mestre quando necessário, ele é responsável por largar, apenas ele, a rede "embarcada redonda". O vigia, na praia, é encarregado de orientar o cerco em conjunto com o mestre, no mar. As posições de contramestre e vigia, incluídas no inverno, no entanto, implicam em uma maior responsabilidade. Para ascender a essas funções é preciso uma maior habilidade resultante de conhecimentos apurados adquiridos. Caberá ao mestre, ponderar e decidir sobre a progressão do pescador na profissão. Os companheiros são chamados de "efetivos", caso tenham uma obrigação contínua com a companha. Se apenas ocasionalmente eles realizam a pesca, são denominados "substitutos". Ao "efetivo" caberá sempre a sua parte no produto obtido. Mesmo que esteja ausente, a sua falta não lhe trará problemas, desde que apresente as causas justificadas. Quanto ao "substituto", este pode até desempenhar as mesmas funções que o "efetivo", mas a sua parte será sempre inferior a dos demais companheiros. O que se percebe nessas relações é que o parentesco atua de forma a reunir os companheiros em sociedade e socializar a pesca. Porém, quanto à participação nas companhas, com o passar do tempo, o parentesco estabelece uma espécie de força centrífuga (PEIRANO, 1975, p.102). Ou seja, tão logo um companheiro pertencente a uma dada unidade de produção adquira uma certa autonomia de vida, ele tenderá a abandonar a atividade de pesca até então realizada em conjunto com seus parentes mais velhos. Kant de Lima (1997) ressalta que dentro dos quadros apresentados, a atividade pesqueira se identifica no mar, por meio da companha embarcada, e na terra, mediante a comercialização do produto no mercado. Somente os pescadores que façam parte da companha, têm direito a sair na canoa para pescar. No entanto, as atividades desenvolvidas na praia, tais como encalhar e desencalhar a canoa, puxar a rede para a praia e consertá-la, estas 31 podem ser realizadas por outras pessoas interessadas, mesmo que não possuam um compromisso permanente com a companha. Segundo o autor, o companheiro, adquire maior destaque e passa a ser melhor remunerado, a partir da sua estabilidade na companha. Desta forma, outros companheiros se sentem motivados e atraídos, fato que acarreta uma maior produtividade. No entanto, Peirano (1975, p. 107), sustenta que apesar dos laços de parentesco serem importantes na reunião dos companheiros em sociedade, mais importância é dada à busca pelo maior valor que a produção pode alcançar. Como percebe-se, o conhecimento na pesca é imprescindível para o desenvolvimento da atividade. Kant de Lima (1997) observa que, em Itaipu, este conhecimento constitui-se num saber local, o qual inclui os fatores de produção e revela uma hierarquia que é constatada durante o processo de produção. Para que seja possível a reprodução e a aquisição desse conhecimento é necessário que o pescador participe nas atividades de grupos de pesca do local. 1.2.1.2 Os processos de produção No âmbito da pescaria de "canoas grandes" ou "de arrasto", conforme mencionado anteriormente, existem dois importantes processos de produção: o "cerco" e o "lanço à sorte". Seguindo a literatura, a pescaria de "lanço" realiza-se com mais freqüência no verão. Possui baixo nível de previsibilidade, o que faz dela uma pescaria menos interessante. As canoas e redes, nela utilizadas, são pouco valorizadas, sendo chamadas de "cata-cata". Enquanto isto, a pescaria de "cerco" possui alto nível de previsibilidade, e consiste na captura de espécies que se deslocam em cardumes e que podem ser vistos na superfície d'água. Os principais peixes a serem capturados são: parati, tainha, bonito e xaréu. É no inverno que ela tem seu ápice. Utiliza-se de equipamentos adequados, como rede e canoa "de tainha", por exemplo, e dispõe do trabalho especializado do mestre, contramestre e vigia. A abundância do produto, bem como a sua boa cotação comercial, acarreta uma maior vantagem econômica. O "lanço à sorte", tem inicio nas primeiras horas da manhã, quando o dia ainda não se encontra totalmente claro. O mestre e os companheiros-de-remo embarcam na canoa, e o cabeiro que é o responsável por uma das pontas da corda, poderá ir embarcado ou não. A canoa é guiada no sentido da praia para o mar adentro, iniciando-se o "correr o lanço". Ao acabarem as cordas dessa extremidade, o mestre, em conjunto com os companheiros-de-remo, manobra para estibordo em círculo. O mestre viaja na popa, com o timão, ora direcionando a 32 canoa para a direita (estibordo), ora para a esquerda (bombordo). Para a operação de "largar a rede", o mestre contará com a ajuda do ré, caso a rede esteja embarcada "à moda de rede alta" ou atuará sozinho. "Arribar" é o nome dado à operação quando a canoa retorna à praia, sempre perpendicularmente a esta, e na qual se soltam as cordas da outra extremidade. À medida que se aproxima da praia, retiram-se os remos de dentro d'água e os colocam dentro da canoa no sentido popa-proa. O proeiro e os companheiros-de-remo deixam a canoa, levando a extremidade da corda. A seguir dá-se a "puxada". Durante esta, os companheiros contam com a participação de colaboradores externos à companha. Neste processo de trabalho podem ocorrer vários lanços. (KANT DE LIMA, 1997) O conhecimento de fatores tais como a correnteza e a maré, determinará o ritmo da puxada, e será imprescindível para que a rede não arrebente. Existem duas estratégias: a do mar, de responsabilidade do mestre, e a da terra, realizada por aqueles que participam da puxada. Finalizada a puxada, é hora de averiguar se ocorreu o "prognóstico", ou seja, se houve uma manipulação acertada das variáveis, tais como, o tempo, as condições do mar, a lua, as espécies marinhas locais, e outros conhecimentos responsáveis pela previsibilidade do resultado da pesca naquele local escolhido. (KANT DE LIMA, 1997) Segundo o autor, as tarefas são todas executadas em silêncio. A maior parte das comunicações é feita através do corpo ou de gestos. Somente no momento da puxada, como também na operação de encalhar e desencalhar a canoa, é que se observa gritos e a verbalização da comunicação. O resultado da pescaria denomina-se "maré". Já a "mistura" é o nome dado para a captura de diferentes espécies, e todas em pequena quantidade, trata-se da "salada de peixe" que é comercializada na praia mesmo. Somente no caso de uma grande quantidade de uma certa espécie, ou de uma espécie bem cotada no comércio, é que o mestre ou o dono da pescaria irá comercializar o produto no mercado. Pode ocorrer também, de um companheiro mais capacitado ir vender o produto, caso o mestre não possa ir ao mercado em função de um outro lanço a ser feito naquele momento. Na pescaria de cerco, as canoas "tomam o lanço", ou "marcam a vez", que consiste em mergulhar a âncora n'água ou "molhar o ferro". Em seguida, aguardam, geralmente na praia, a vez para fazer a captura. Essa modalidade de pescaria é realizada sempre durante o dia, para que se possa ver o cardume, seu tamanho e movimentação. Cada companha conta com um vigia. E juntos, eles saem cedo para observar o deslocamento dos cardumes. Enquanto isso, os companheiros ficam, à vontade, esperando na areia. Assim que os vigias avistam os cardumes e definem por quem eles serão capturados, ocorre o "capiá", operação na qual, aqueles que 33 vão pescar saem correndo pela areia em "ziguezague". Depois de decidido, o vigia segue "capiando" no início do cardume, sinalizando o começo deste. (KANT DE LIMA, 1997, p.188-190) Em seguida, os companheiros que esperam na areia, desencalham as canoas e vão rapidamente para o local onde marcaram a vez. Em se tratando do primeiro cerco do dia, todas as companhas cujos vigias "capiaram" ou não, vão para lá. Isto se deve ao fato, dos "cercos" serem feitos daquele local em diante, uma vez que quando aparece um cardume, outros também virão naquele mesmo dia. Ainda segundo o autor, as canoas, ao chegarem no local escolhido, organizam-se em função da vez. Uma ponta de cabo é deixada na praia próxima ao cabeiro. É preferível, muitas vezes, jogar a ponta de cabo da canoa para o cabeiro, do que desembarcá-lo com ela. Sendo assim, ele a pegará, à medida que for correndo pela areia. Ao contrário do que acontece na "espera", existe muita competitividade durante essas operações. O mestre, em pé na popa da canoa, acata os sinais do vigia, em terra, e manda os companheiros-de-remo e o contramestre executarem as operações. O vigia é quem comanda a pescaria, mas o mestre passa a participar das decisões, assim que ele avista o cardume. Depois de "arribada" a canoa, o vigia une-se às pessoas que estão realizando a "puxada". Ele comanda a estratégia de terra, enquanto o mestre volta ao "cópio", para orientar a estratégia de mar, e a companha é dividida entre as duas extremidades da rede. A rede deverá ser puxada rapidamente para que o cardume não fuja do cerco. Por fim, chega a hora de grande alegria e de total descontração, por parte de todos, é o momento em que se vê as tainhas pulando na rede. Elas são levadas para a areia, onde são classificadas e contadas pelo vigia. Depois de colocadas nos "ganhos", elas são lavadas no mar e leiloadas na praia. Podendo também ser transportadas pelo vigia, mestre ou dono da pescaria, para serem leiloadas no mercado. Os companheiros, no entanto, têm direito a pegar a sua parte antes do leilão. A "puxada" é distribuída, pelo vigia, após a realização do leilão. Em condições normais, cada cerco leva em torno de 30 minutos. No âmbito das pescarias de canoas pequenas, o autor destaca a pescaria de cerco que é feita em noites sem lua. Nestas noites escuras, os peixes são localizados mais facilmente, devido à luminosidade causada por microorganismos que se movimentam à medida que os peixes se locomovem debaixo d'água. Assim sendo, direciona-se a canoa para uma costa de pedra, por exemplo, e ao redor do peixe, faz-se um cerco com a rede. A partir daí, desloca-se a canoa entre a costa e a rede. Para espantar o peixe, liga-se uma lanterna, remexe-se os remos n'água e nela atira-se uma pedra. O peixe ao se assustar, foge para o mar, ficando preso na 34 rede. Essa pescaria costuma ocorrer no verão, época em que o mar está mais tranqüilo. Para tanto, são utilizadas canoas movidas a motor, e rede curvineira ou rede alta, dependendo da espécie que se pretende capturar. (KANT DE LIMA, 1997, p.86) O autor aponta um outro tipo de pescaria de canoa pequena, trata-se da pescaria de caceia. Esta consiste na utilização da rede alta e é voltada para a captura de espécies que se movimentam próximo à superfície d'água, tais como a cavala e a enchova. Para a sua realização, a rede é estendida, da beira da praia para fora. Segura-se a rede e, assim que o peixe a toque, inicia-se o seu recolhimento. A pescaria de rede de espera, outra modalidade de pesca em canoa pequena, utiliza-se da rede alta ou curvineira. A rede é estendida à tardinha bem perto da praia, sendo recolhida bem cedo na manhã seguinte. Existe uma maior previsibilidade quanto às espécies a serem capturas neste tipo de pescaria, sendo a enchova, a de maior valor. (KANT DE LIMA, 1997) O autor ressalta que essa modalidade de pesca causa desentendimentos entre proprietários de "canoas pequenas" e "canoas grandes". O fato é que as redes de espera, depois de uma noite inteira no mar, ao serem recolhidas, deixam uma "catinga" ou "restalha" (que consiste em forte e característico odor) no local, a qual afugenta os outros peixes. A pescaria de arrasto para captura da tainha, a qual aparece em cardumes, é a mais prejudicada com a "restalha". A subsistência, através do mar, se dá também por intermédio de pescarias de tarrafa, espinhel, linha, caniço e puça dentre outras. Estas também são realizadas nas canoas pequenas ou caíques. Além dessas atividades de captura, existe também a coleta de tatuís, sarnambis, mariscos etc. 1.2.2 AS OPERAÇÕES DE REPARTIÇÃO Um aspecto sempre fundamental para a compreensão da lógica que preside as várias formas de pesca, está nas operações de repartição, pois "(...) são aquelas que determinam dentro de uma sociedade as formas de apropriação e uso das condições da produção e de seu resultado – o produto social". (GODELIER, s.d., p.334) Na pesca, existem restrições quanto aos recursos a serem apropriados. Uma delas diz respeito ao quadro tecnológico disponível. Este inclui os equipamentos utilizados na pesca e a sua ligação, no interior do processo, aos demais fatores de produção. A outra limitação está atrelada à definição dos recursos apropriáveis, ou seja, ao conhecimento naturalístico de que se dispõe e da habilidade que se tem em sua manipulação. Esta última restrição, "implica a 35 formulação de uma concepção restrita dos recursos do mar, num determinado momento, que se articula à percepção de sua inesgotável renovação cíclica". Embora o mar seja ilimitado, o objeto da captura é limitado e, mesmo sendo de propriedade comum, ele será apropriado somente por alguns dos seus proprietários potenciais. (KANT DE LIMA, 1997, p.201) O autor afirma que a propriedade dos equipamentos de produção, ou seja, da pescaria, ocorre geralmente, de forma particularizada. Fato que demonstra incoerência entre pescaria e companha. A literatura aponta que os donos das pescarias apropriam-se dos instrumentos de produção de forma individualizada. No entanto, são estes instrumentos que serão utilizados para a apropriação dos recursos do mar, os quais são de ciência coletiva. O uso desses instrumentos está atrelado não só à utilização de um conhecimento local dos recursos de que se dispõe, como também das estratégias e técnicas indispensáveis para sua apropriação. Desta forma, a relação entre a oferta de trabalho e a procura de trabalhadores sofre restrições, que extrapolam os fatores econômicos. Dentre esses fatores, ressalta-se o fato de se pertencer ao lugar e ser identificado como aquele que tem o conhecimento da pesca. A partir daí, viabilizase a formação de um grupo permanente. Quanto à apropriação do produto final - o segundo aspecto considerado no que tange à repartição - esta se dá conforme os interesses direta e indiretamente econômicos. Como motivos diretamente econômicos, entende-se a necessidade de manter em renovação permanente os fatores de produção, viabilizando a reprodução da atividade produtiva e dos meios materiais para a subsistência do grupo. Os motivos indiretamente econômicos, no entanto, são aqueles que visam levar às atividades não-econômicas da vida social, as condições materiais fundamentais para a sua realização. (KANT DE LIMA, 1997, p.199) Kant de Lima (1997) afirma que a pesca, enquanto atividade econômica, destina-se à captura de espécies, visando principalmente, colocá-las no mercado. Há um tipo de pesca, porém, a pescaria de arrasto, que além de visar a troca monetária do pescado capturado, não exclui a sua utilização para o consumo. Ou seja, ela tem também como objetivo a subsistência dos companheiros e de seus familiares, e ainda a remuneração do trabalho de pessoas não pertencentes à companha, mas que tenham de alguma forma colaborado na puxada, por exemplo. Prosseguindo com o autor, constata-se que na pescaria de "cerco", o seu produto final é destinado a um mercado especializado. Isto se deve ao fato de que a captura se realiza com alto nível de previsibilidade, inclusive quanto à quantidade e qualidade da espécie a ser capturada. Ao passo que, na pescaria de "lanço", a imprevisibilidade quanto à quantidade e qualidade do pescado capturado faz com que ele seja, muitas vezes, distribuído ou 36 dispensado, já que não existe cotação no mercado para determinadas espécies. Kant de Lima (1997, p. 212), ao estudar a pesca em Itaipu, constata que na maioria das vezes, a comercialização do produto é feita na própria praia, com comerciantes ambulantes, e não passam por nenhuma espécie de registro. O pescado é registrado na Colônia, apenas quando se trata, de uma maior quantidade, e quando esta não é vendida nem para os comerciantes ambulantes, nem para o mercado de Niterói. Nesse caso, a Colônia de Pesca recolhe 5% sobre o valor estimado de comercialização, visando adquirir guia de transporte para o mercado de Niterói. Este registro, no entanto, não consegue representar os números reais da produção, sua quantidade e valor. Fatos como este, levam a Colônia a ser questionada quanto a sua importância, representando o declínio do poder político em conseqüência das mudanças que ocorreram em Itaipu. Mas a distribuição do produto da pesca não pode ser pensada fora dos quadros da reprodução dos recursos naturais em questão. Os recursos naturais constituem-se, de (...) "populações naturais", cuja reprodução e migração apresentam-se, por definição, alheias ao controle por parte do grupo que delas se apropria. Daí decorre sua representação, de certa maneira, como "bem inesgotável", e de ocorrências cíclicas, reguladas por fatores alheios à interferência humana, que se limita à criação de representações cuja articulação constitui modelos probabilísticos que visam diminuir seu caráter de aleatoriedade. (KANT DE LIMA, 1997, p.213) Desta forma, é fundamental que os instrumentos de produção sejam compatíveis com o tipo de captura a ser realizado, ou melhor, constata-se aí a importância do conhecimento técnico estar totalmente atrelado ao conhecimento naturalístico adquirido por aquele que exerce a atividade pesqueira. Seguindo a literatura, constata-se que a renovação dos recursos, portanto, é limitada não só pela eficácia técnica dos instrumentos de produção, como também pelas limitações existentes a partir da forma como se combinam os fatores de produção. As inovações tecnológicas introduzidas na pescaria de arrasto, a saber, não provocaram um aumento da produção, mas sim, uma maior produtividade na pesca. Quanto à forma de remuneração que se dá no interior das companhas, esta é feita pelo sistema de "partilha". Este sistema é que vai garantir a acumulação e reprodução dos equipamentos necessários para a atividade pesqueira. Os companheiros vêem a partilha como uma participação no produto obtido na pesca, e não como um salário ou uma comissão. A literatura aponta para o fato de que esse sistema de remuneração viabiliza uma maior 37 produtividade na atividade econômica. O dinheiro, conseguido com a venda do pescado, é então dividido entre os companheiros e a "pescaria". Após a retirada da parte da pescaria, o restante do montante é distribuído aos companheiros, conforme percentuais pré-estabelecidos para cada membro da equipe. A remuneração varia de acordo com o cargo, qualificação e habilidade do companheiro. Em geral, 30% são destinados à pescaria, e visam a manutenção do equipamento. O restante, geralmente, é dividido da seguinte forma: 10% para o companheiro de remo, de 12 a 15% para o mestre, 5 a 8% para o ponta-de-cabo, além do vigia que recebe igual ao mestre e do contramestre que ganha de 10 a 12%. (KANT DE LIMA, 1997, p. 216) Quanto à reprodução técnica dos companheiros, destaca-se a importância da socialização das crianças na praia. Estas, após atuarem de alguma forma na pesca, ganham peixes, assim como os idosos e viúvas que por lá aparecem. Quando não estão atuando na pescaria, costumam ficar nas proximidades. Os companheiros apropriam-se do peixe para consumo próprio e familiar de modo que atenda as suas necessidades, e de forma equilibrada, sem que façam uso de excessos e desperdício. (KANT DE LIMA, 1997) Como já foi mencionado anteriormente, as regras de repartição com motivos indiretamente econômicos, são aquelas que permitem levar às atividades não-econômicas da vida social as possibilidades materiais de suma importância para a sua consecução. As festas locais são um exemplo dessas atividades. Elas podem variar não só em função da produtividade do trabalho, como também a partir da margem do excedente, ou seja, daquilo que é considerado "a mais" quando se trata de suprir as necessidades de subsistência do pescador. A idéia de excedente é relativa, pois dependerá sempre do quadro em que se encontra inserido, ou seja, não existe um excedente absoluto, não se pode generalizar o que é considerado "a mais". Cabe entender, no entanto, que trata-se daquilo que é considerado além do imprescindível para a subsistência dos integrantes de uma dada sociedade (KANT DE LIMA, 1997, p. 218). Vale ressaltar, porém, que o desenvolvimento social e econômico não virá como conseqüência imediata desse excedente, para que isto ocorra é fundamental que haja condições e estímulos específicos. (GODELIER, s.d.) Diegues (1983, p. 85) corrobora essa afirmação, quando ressalta que o pequeno pescador, ao capturar um pescado numa economia natural, visa prover os meios de subsistência para ele próprio e seus familiares. Havendo ocasionalmente, um excedente, este será destinado à realização de rituais, tais como o consumo em cerimônias comunitárias. Já o armador de pesca, mesmo utilizando-se de técnicas semelhantes para a captura, o seu maior objetivo será o lucro monetário, a reprodução do capital etc. 38 Existem várias formas de circulação dos bens que variam de acordo com a sociedade e com os princípios que regulam as trocas no seu interior. Existem formas não mercantis, como a partilha, a dádiva e o tributo dentre outros; e formas mercantis de circulação de bens. (GODELIER, 1974) Ainda segundo Godelier, no que tange às formas mercantis, ressalta-se as formas simples de circulação das mercadorias com a utilização ou não de moeda, e as formas capitalistas de circulação das mercadorias. A forma de circulação mercantil sem moeda ocorre quando os bens são produzidos para a troca e esta troca é feita de acordo com taxas admitidas. Ao passo que, na forma de circulação simples com moeda, entre os bens trocados existe aquele que é considerado o equivalente de todos os demais. Nesta forma de circulação, há uma que não está voltada para o lucro, visando apenas suprir as necessidades, e outra que circula a moeda como capital, voltando-se para o lucro. (GODELIER, 1974) Segundo Kant de Lima (1997), no âmbito da pescaria de arrasto, as relações estabelecidas são muito freqüentemente percebidas em função do modo como circula o produto final. Alguns circuitos de troca internos e externos ao grupo são, portanto, importantes para essa compreensão. O valor do peixe capturado inclui também significados próprios. Não só porque passa por um processo de produção artesanal, o qual baseia-se na utilização dos fatores de produção e na forma como estes se interligam, como também, devido às incertezas das quais se constitui o processo de produção, além do contexto social em que se realiza. O autor afirma que existem três níveis de circulação do produto final da pescaria de arrasto, de acordo com as características do objeto. Quando a "doação" do peixe capturado é feita àqueles que não participam das atividades produtivas do grupo ou àqueles que a mereçam, por algum motivo. Trata-se da "reciprocidade generalizada". Quanto aos colaboradores da atividade de produção, estes têm o "direito" ao peixe, em troca do seu trabalho realizado. É a "reciprocidade equilibrada". E finalmente, o terceiro nível diz respeito à venda, que se dá quando o peixe capturado é entendido como mercadoria, representando a "reciprocidade negativa". (KANT DE LIMA, 1997) Será enfatizada, inicialmente, a troca de trabalho por peixe. Nela, são consideradas não só a "quantidade" de trabalho empregada, como sobretudo , o "valor" desse trabalho, (...) qualitativamente definido nos termos das hierarquias técnicas que se atualizam nos processos de produção do grupo para esse efeito dividido em "companheiros" e "não-companheiros". Tal circunstância empresta a esse tipo de troca características de redistribuição, no que essa tem de constituir-se 39 em uma distribuição autoritária de produto de esforço coletivo. (KANT DE LIMA, 1997, p.226) Pode-se enfatizar a existência de dois circuitos. O primeiro é aquele que sustenta a "igualdade" dos companheiros, ao invés da hierarquia e desigualdade existente durante a atividade produtiva, incluindo aí os aspectos técnicos e econômicos. Desta forma, todos os companheiros têm "direito", e não obrigação, de obter parte dos peixes capturados, em geral para consumo próprio. A única restrição é concernente ao volume da produção. Quando este for pequeno, a apropriação do peixe capturado se dará em partes iguais, por cada companheiro. Ao exercerem esse "direito", reforça-se a ideologia da companha, ou seja, a noção de igualdade nas relações existentes no interior desta. O outro circuito é muito importante para a significação da pescaria de arrasto. A "puxada", onde ele é percebido, é uma operação bastante específica dentro da produção. Ela agrega, ao trabalho realizado pela companha, o trabalho de membros de outros grupos externos a ela. Caberá ao mestre da pescaria reunir os homens que ficam em terra e deliberar sobre a remuneração destes que podem participar freqüentemente ou não da "puxada". Os companheiros, muitas vezes, deixam a parte que lhes compete, para os colaboradores que participaram da "puxada", sejam eles colaboradores regulares ou não. A relação de troca, portanto, demonstra uma reciprocidade equilibrada. Ela está mais voltada para o trabalho despendido do que para o possível preço de comercialização do peixe capturado. Este, também pode ser vendido na praia, prejudicando a venda em leilão, realizada pelo mestre. Observa-se também que a quantidade e a qualidade do produto distribuído para aqueles que puxam a rede, está relacionada com a quantidade e qualidade da produção conseguida na pescaria. Assim, há dias de pequenas e dias de grandes "puxadas", e conseqüentemente remuneração. (KANT DE LIMA, 1997, p. 229) Kant de Lima (1997), ao referir-se ao "objeto" trocado em Itaipu, ressalta que existe uma diferença entre as espécies capturadas e destinadas à venda, daquelas destinadas à troca. Na pescaria "de lanço" as espécies de maior valor vão para o mercado e na pescaria "de cerco", as maiores são vendidas, ao passo que as menos cotadas e menores são trocadas. Contudo, o ápice da troca se dá na pescaria "de cerco". O produto de vários "cercos" é dividido por todos aqueles que de alguma forma participaram da atividade. O produto da pesca, no momento de sua redistribuição tem, portanto, um significado especial, ou seja, ele representa o resultado de um trabalho conjunto, do qual participam "companheiros" e "não-companheiros". Nesta etapa, o peixe não é visto apenas como uma 40 mercadoria ou como aquilo que vai ser consumido como alimento, mas sim como algo recebido em conseqüência da significativa colaboração no processo produtivo. Será enfatizado a seguir, os processos relacionados à venda das espécies capturadas, ou seja, quando o peixe representa uma mercadoria. Neste caso, mesmo em se tratando de um produto voltado para o mercado, ou seja, que possa estar mais associado ao aspecto econômico, ainda assim, existe uma acepção não-econômica. As diversas modalidades de venda, geralmente, agregam diferentes aspectos não-econômicos em seus preços e estão relacionadas não só com o grau de relação social estabelecido entre quem compra e quem vende, como também com a valorização do produto independentemente de sua cotação no mercado. Quando o resultado de várias pescarias implica num número excessivo de pescados capturados, e estes, é claro, devem ser vendidos o mais rapidamente possível, percebe-se a formação de um ambiente de competição visando o melhor preço do produto no mercado. Kant de Lima (1997) acrescenta que em Itaipu, o problema se agrava à medida que uma pescaria não pode, em conjunto com outra, utilizar o mesmo transporte fretado. Tal situação está atrelada à falta de cooperativas de pesca entre os pescadores para que estes possam competir com os atravessadores impedindo o aumento do preço do produto vendido no varejo, para o consumidor final. Quando fala-se em grandes quantidades de peixe capturado, percebe-se que isto pode ser interessante para o vendedor apesar de provocar uma redução no preço do produto. A tainha é um exemplo de que a sua comercialização se dá de maneira muito mais satisfatória quando ela pode ser capturada em quantidades maiores. (PESSANHA, 1977) Segundo Kant de Lima (1997), a modalidade de venda da espécie capturada varia em função de sua qualidade e quantidade. O produto é vendido a peso ou por unidade, quando é capturado em grande número e apresenta uma boa cotação no mercado. Ao passo que a "mistura" representa aquelas unidades sem classificação e que são vendidas na "maré", por atacado. A venda da tainha no inverno ocorre de ambas as formas. O autor enfatiza que em conseqüência das condições que norteiam a atividade de pesca, a utilização de seu produto é destinada principalmente para o consumo e não para a acumulação. Porém o fato de se perceber a produção como cíclica implica na compreensão de uma reprodução infinita a qual intercala fases de muito a fases de pouco. Estas representações falam de um modo de ver específico do trabalho, no qual o resultado evidente pode ser previsto no que diz respeito à sucessão repetida e regular dessas fases, e surpreendente quanto aos resultados. Pode-se repetir com o mesmo empenho a realização de uma mesma pescaria, 41 porém o seu resultado poderá ser abaixo ou acima do esperado. 1.2.3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL Segundo ainda o autor, na pescaria dos pequenos produtores, a atividade pesqueira é percebida de forma diferente da produção do operário. Este, além de estar inserido em outro sistema de remuneração, tem o dever de cumprir horários e regulamentos, sem que haja um contrato social que os valha. Por outro lado, o pescador faz o seu horário em função da hora do peixe, fato que torna a sua remuneração inconstante e, ao mesmo tempo em que leva alguns a abandonar a atividade, estimula outros a nela continuar. Seguindo a literatura, em Itaipu, a economia local está voltada para a pesca da tainha. No entanto, a maioria das atividades de lazer, acontece durante a atividade de espera. Fato que coloca bem próximo o lazer do trabalho, ou seja, tudo acontece dentro de uma mesma jornada. No inverno, existe uma concentração de atividades e as companhas efetuam a captura das espécies de forma alternada. Enquanto que no verão, caracterizado pela "dispersão espacial", as equipes de pesca atuam concomitantemente. No inverno, atinge-se o máximo do volume e do valor da produção, uma vez que existe uma previsibilidade na captura das tainhas, a qual se realiza com canoas e redes próprias para a época. Esta será assim, “a época em que se maximiza a hierarquia e se reafirmam os valores locais, quando os ganhos extraordinários são possíveis, processando o reforço da ideologia de que afinal a atividade pode ser economicamente compensadora”. (KANT DE LIMA, 1997, p. 251) A partir da literatura abordada, pode-se concluir que a pescaria de arrasto, principalmente na modalidade de cerco da tainha, realizada no âmbito da produção dos pequenos pescadores ", consiste da "espera", do próprio cerco", da "puxada" e do "leilão". A "espera" é a atividade que se dá de forma descontraída e consiste em permanecer na expectativa da chegada dos cardumes. Dela participam todos que estão em convivência na praia. A vigília cabe ao vigia que dá o sinal para o mestre. Em seguida, o vigia realiza a "capiada" e os companheiros embarcados realizam o "cerco". Neste momento, percebe-se muita competição, muita rigidez na disciplina e o máximo de silêncio. Este último só poderá ser quebrado pelo vigia que, desembarcado, realiza comandos de operações, os quais geram desentendimentos com o mestre que, embarcado, realiza as suas tarefas. A "puxada" é realizada por todos na praia. É a atividade que sucede o "cerco" e que 42 permite total liberdade de expressão. É um momento de muita alegria que se opõe à hierarquia e à rigidez existente nas atividades realizadas no mar. Quando a rede finalmente chega à praia, a hierarquia percebida até então nos comandos do vigia e do mestre, vão cedendo espaço para a algazarra que se instaura neste momento em que todos são pescadores iguais. O "leilão" é um momento de muita formalidade, principalmente quando é feito no mercado. Ele é acompanhado por todos de forma silenciosa. O mestre é o responsável pelas transações. Antes de colocadas à venda, as tainhas são separadas e classificadas. Vale ressaltar que os processos de trabalho que ocorrem durante a produção pesqueira, se dão a partir do tipo de recursos a serem explorados. E é na pesca e na produção agrícola cujas atividades estão voltadas para os ciclos naturais, que as forças produtivas da natureza assumem um papel de suma importância. Justamente, por estar sempre se moldando às constantes mudanças das condições naturais, a pesca não se insere num processo de produção em massa, e quando isto ocorre devido à inserção do maquinismo, dá-se a exaustão dos estoques. Já na indústria, a produção em massa se torna viável devido a uma certa homogeneidade de sua matéria-prima. (DIEGUES, 1983) 1.3 A ATIVIDADE PESQUEIRA DESENVOLVIDA DENTRO DO QUADRO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA DOS ARMADORES DE PESCA E EMBARCADOS - A PESCA NAS TRAINEIRAS Nesta etapa, pretende-se entender a forma como se dava a produção da pesca em traineiras no bairro de Jurujuba, com ênfase para a transição daquela modalidade de pesca desenvolvida dentro dos moldes da pequena produção mercantil para aquela desenvolvida no âmbito da produção capitalista, a partir dos estudos realizados por Duarte nos anos 70, nesta localidade de pescadores situada em Niterói - RJ. 1.3.1 CANOAS E TRAINEIRAS: A TRANSIÇÃO NA PESCA Primeiramente, cabe definir que as traineiras são barcos movidos a motor, cujo nome provém da denominação dada às únicas redes de que fazem uso. O processo de trabalho desenvolvido nessas embarcações é bastante parecido com aquele praticado nas canoas motorizadas que se utilizam de rede traineira, as quais são próprias para pescaria em alto mar. No entanto, difere daquelas que se utilizam de rede de arrasto, já que estas têm sua atuação limitada junto às praias da Baía de Guanabara, onde os problemas decorrentes da impactação 43 ambiental e a iluminação à noite, prejudicam a captura do pescado. Nos dois processos que se assemelham, a pescaria abrange a procura do peixe, o cerco e o transporte do pescado capturado da rede para a embarcação, etapas que serão aclaradas mais adiante. A forma como se movimenta o barco e o modo como se utiliza a rede, assim como as atividades de reparos na rede e também a tarefa de descarregamento do peixe solicitam as mesmas técnicas em ambos os processos. As funções dos trabalhadores também são semelhantes e tem a mesma denominação. Constata-se, inclusive, a ocorrência de desentendimentos entre o mestre e os outros componentes da companha. No caso das canoas, o mestre, em geral, é o proprietário da embarcação, enquanto que nas traineiras, ele é um assalariado. Em ambos os casos ele assume a função de direção. Em Jurujuba, a forma de remuneração na produção das traineiras, assim como na produção das canoas, se dava muitas vezes, pelo regime de partilha, embora também fosse comum ocorrer o sistema de assalariamento. A partilha, já que se aplicava em ambas as formas de produção, sustentava a representação da identidade, uma vez que estava ligada à idéia de companha calcada no interesse comum dos trabalhadores numa boa pescaria, a qual implicaria numa boa remuneração diretamente relacionada com o montante da produção. Constata-se também que no sistema de partilha, a remuneração era baseada não só no montante, no tipo e na quantidade do pescado como também no valor alcançado em mercado. Ou seja, esta forma de produção, além de enfrentar a inconstância das condições de produção e do pescado, sofria ainda com a imprevisibilidade dos preços inerentes ao sistema de comercialização. O sistema de partilha na produção em traineiras interava, portanto, a idéia de co-participação neste processo. Vale ressaltar que as traineiras são constituídas de um casco, um convés, uma casa central e um grande espaço interior, o porão. Fazem uso de motores melhores, podem utilizarse de equipamentos mecânicos, possuem local para armazenamento e alojam a tripulação, além de abrigá-la contra o mau tempo. Apresentam, portanto, melhores condições de trabalho que as canoas. Comportam de 10 a 20 trabalhadores, podendo embarcá-los por um período maior, e há a divisão técnica do trabalho no seu interior. Por atingirem locais mais distantes e também em função dos altos custos da produção nas traineiras, o que se percebia era uma especialização na produção. Principalmente as grandes traineiras, estas davam preferência à captura de sardinha e cavalinha. Esta especialização acarretava a diminuição da “imprevisibilidade” na pesca, e ainda tinha como mercado consumidor, as fábricas de enlatamento de pescado cujos preços eram controlados de tempos em tempos, mediante combinações entre patrões. 44 Para os pescadores, a produção em traineiras representaria não só uma maior estabilidade como também a possibilidade de aumento de remuneração em relação à produtividade das canoas. Mas o que ocorria é que eles não sentiam naquela transição de modo de produção, nem a primeira nem a segunda melhoria. Percebiam, isto sim, uma perda quanto ao espírito de companha antes existente. Com as traineiras, surgiu a figura do armador como proprietário não-trabalhador; havia uma diferenciação social interna na qual ao mestre era atribuído um outro significado, e surgiram também as posições com vantagens. Em Jurujuba, a legitimidade do sistema de partilha, antes existente, fora abalada em função de problemas que vieram a ocorrer na distribuição das partes, surgindo o vínculo de assalariamento pelo regime de embarque. Este não só impossibilitava uma noção de todos os trabalhadores juntos com um mesmo interesse, como também inviabilizava a idéia de unidade de produção como unidade de agregação social. O proprietário da embarcação, o armador não-trabalhador, não embarcava e a sua relação com os companheiros não se dava de forma direta já que um armador era proprietário de mais de uma embarcação. Cada uma delas, ou seja, cada unidade produtiva era autônoma, seguia a direção de um mestre e possuía guarnição própria. A figura do encarregado, o gerente das questões referentes ao processo de produção em terra, assumia diversos papéis, inclusive dirigia e cuidava do dinheiro, além de fazer a mediação na comunicação com o armador. Ele era responsável por todas as unidades produtivas de um mesmo proprietário. A produção nas traineiras representada como moderna e dinâmica se opunha, portanto, ao regime de produção de canoas atrelado ao sistema de companha. Tratava-se de uma produção de base capitalista. A produção capitalista se caracteriza pela presença de um nãotrabalhador. Nela, além dos trabalhadores há a figura do proprietário dos meios de produção que determina as condições de produção de forma a garantir a reprodução do processo, enquanto que na pequena produção mercantil o proprietário dos meios de produção também se identifica como trabalhador, além de existir um sentimento coletivo de cooperação entre os trabalhadores da pesca. Estes últimos estabelecem uma ligação com os meios de produção mediante a relação de apropriação real. Desta forma, o valor gerado pelo trabalho excedente poderá ser direcionado de maneiras diferentes dependendo da forma de produção em questão. No caso da pequena produção mercantil, por exemplo, este valor será apropriado pela própria comunidade, ao passo que na produção capitalista ele será apropriado por um dos indivíduos do sistema. (DUARTE, 1978) 45 Em Jurujuba, na produção do pescado através das traineiras grandes, percebia-se um nível mais alto de interdependência entre os trabalhadores e também uma produtividade maior da atividade, além de uma subordinação a um capital e a capitalistas distantes do processo de produção direto. Conservava-se ainda o elo de apropriação real entre o trabalhador e os meios de produção e a introdução da maquinaria era discreta. Neste bairro de pescadores, a forma de produção capitalista, portanto, coexistia com a pequena produção mercantil. Percebia-se ainda, uma resistência da subordinação formal à subordinação real do trabalho ao capital. (DUARTE, 1978) A produção das traineiras embora apresentasse um aumento nas forças produtivas, não conseguia superar as questões da aleatoriedade e inconstância na captura do pescado, incluindo aí as más condições meteorológicas e a limitação do mercado, dentre outros aspectos que não permitiam um real planejamento de como se daria a produção. A baixa produtividade, por sua vez, impossibilitava uma grande acumulação, fato que gerava uma exploração da força de trabalho, e em conseqüência a dificuldade de desenvolvimento das forças produtivas. Para a inviabilização da acumulação contribuiu também, a incapacidade do mercado consumidor em absorver a quantidade de pescado e as falhas por parte do governo em propiciar condições para a acumulação nesse âmbito, além do desconhecimento relativo à abundante capacidade de captura no mar, que também implicava na forma insuficiente com que se investia o capital acumulado na produção da pesca. Constata-se que a pesca realizada no âmbito da produção capitalista se mantinha devido a uma maior exploração do trabalho humano em conseqüência da sua baixa capacidade de negociação em função até mesmo do sistema jurídico a que se vinculava. Daí os armadores atuavam de forma a controlar radicalmente essa força de trabalho. As condições de trabalho nas traineiras apresentavam dois aspectos: a) o conhecer tradicional do pescador não tinha tanto valor, a sua prática ficava reduzida àquela do trabalhador não-proprietário; b) uma divisão técnica do trabalho, onde não se valorizava a qualificação ampla e sim uma adaptação à determinada tarefa integrante do processo produtivo, situação própria das grandes unidades de produção. A sorte era condição de suma importância na produção na pesca, na relação com o mar e com o peixe. Na relação com o mercado e na produção nas traineiras a sorte era importante, porém em menor escala. “(...) O mar e as condições de produção do pescado permanecem como o lugar da resistência ao trabalho, do limite a ser enfrentado, com boa ou má sorte.” (DUARTE, 1978, p. 71) Pode-se dizer que a pescaria incluía o processo de trabalho e os meios de trabalho. 46 Quanto à tripulação das traineiras grandes, esta além de trabalhar no mar, trabalhava também em terra, quando havia necessidade de reparar a rede. Já o objeto de trabalho - o peixe - este é um ser vivo que possui costumes próprios, incluindo aí o fato de que ele se protege das práticas produtivas, o que implica na necessidade de um conhecimento específico por parte daquele que atua no processo de produção do pescado. No processo de organização de uma companha, ocorria a chamada "emenda" quando o trabalhador, que se encontrava desempregado ou saindo de uma companha para outra, atuava casualmente em alguma outra unidade de trabalho. Essa cooperação momentânea era bastante interessante já que o pequeno produtor podia fazer uso de trabalhadores da pesca bastante qualificados e sem vínculo, pelos quais ele remunerava de forma tal que fosse mais caro que os trabalhadores da sua companha, porém mais barato do que aqueles das grandes unidades de produção. E para o trabalhador, esta remuneração era bastante necessária. O serviço de emenda remetia a aspectos tais como a manutenção daquilo que se entendia por qualificação existente na pequena produção e o reconhecimento por uma ajuda de fora. Para o pequeno produtor era importante considerar a utilização dessa força de trabalho como uma ajuda, evitando assim a condição de assalariamento e reafirmando a idéia de interesse comum existente na companha. O sistema de partilha, integrante da lógica da pequena produção, consistia na divisão, entre o proprietário e os trabalhadores não-proprietários, da quantia obtida numa saída de pesca. Na pequena produção, ela se realizava da seguinte forma: ao retornar do mercado, o mestre retirava, do total do montante, a quantia referente às despesas comuns, incluindo aí o combustível e as taxas; e às vezes, também, a alimentação, o gelo etc. A partir daí ele dividia o restante de acordo com a soma ponderada das partes de todos os trabalhadores. Esse número de partes geralmente totalizava em 14 a 30. Ao proprietário dos meios de trabalho cabia, aproximadamente, 50% do valor, que se subdividia em partes da proa como proeiro e partes das redes e da canoa, garantindo assim a reprodução do sistema. Nas traineiras, no entanto, a partilha era percebida como um salário. (DUARTE, 1978) Esse outro sistema de produção era entendido pelos trabalhadores como regime de embarque. A carta de embarque assinada representava a segurança e o reconhecimento de uma sólida relação que se dava através do assalariamento. A questão dos direitos, por outro lado, era sentida pelos pequenos produtores como a única desvantagem com relação às unidades capitalistas, já que a garantia dos direitos pelo embarque era de suma importância para o pequeno produtor. No entanto, o pequeno produtor se via impossibilitado de embarcar seus 47 companheiros, expondo-se assim à fiscalização da Capitania dos Portos que muitas vezes não admitia que as pequenas embarcações deixassem de regularizar a situação trabalhista de sua companha. Freqüentemente, o que ocorria era a sua inscrição como trabalhador autônomo, o que na verdade reforçava a questão da ilegitimidade pelo não-embarque dos pescadores, uma vez que estes não teriam acesso aos direitos jurídicos obtidos através da carta de embarque assinada. A traineira era considerada pelo pequeno produtor, como a unidade de produção onde a estabilidade era total, ao contrário da pequena produção pesqueira onde o pescador dependia da sorte e vivia uma constante insegurança. Equivaleria dizer que o trabalho humano, em conjunto com os instrumentos de trabalho mais potentes, pudesse ser mais forte que a natureza. Todo esse poder era também percebido no "domínio das condições de mercado e das relações com as instâncias do poder da sociedade abrangente"; ou seja, eles tinham o acesso livre, não precisando de mediadores nas transações. Os próprios armadores se qualificavam como poderosos. Eles tinham autoridade para efetuar inscrições, ou seja, eles tinham o domínio também sobre as documentações, na determinação dos direitos e deveres existentes numa relação social. Tratava-se da relação de poder sobre aqueles que não tinham o domínio da escrita. (DUARTE, 1978) Mais especificamente, o armador era aquele que não trabalhava mais, embora já tivesse trabalhado, o que lhe assegurava certa legitimidade diferentemente daqueles que não trabalhavam. Mas de qualquer maneira, nas traineiras tinha-se o armador que não trabalhava e os companheiros, ou seja, os trabalhadores que viviam a dependência e a instabilidade existentes nesta forma de produção. Esse trabalhador era o reflexo da expropriação dos meios de trabalho, da condição de submissão ao assalariamento, ao proprietário da embarcação, a uma nova lógica de produtividade. O conhecimento da arte de pescar e ainda o controle sob a forma como se dava a sua apropriação dos meios de produção, não eram mais aí valorizados. (DUARTE, 1978) O pequeno produtor apontava uma ilegitimidade na atuação das traineiras, ressaltando as conseqüências negativas da competição pouco honesta que estas engendravam, já que desordenavam o mercado de trabalho e atraíam os melhores profissionais, tornando menor a produtividade na pequena produção. "Competição também pelos recursos escassos da sociedade: pelo monopólio do crédito, das facilidades fiscais e do abastecimento das enlatadoras de sardinha". Uma outra forma de competição se dava com relação ao peixe, já que as traineiras, por utilizarem meios de produção mais poderosos, exerciam uma pesca mais 48 predatória. Elas atuavam de forma a desequilibrar a natureza, afugentando os peixes, impossibilitando a produção dos "pequenos". (DUARTE, 1978, p. 118-119) Em Jurujuba, constatava-se, portanto, a permanência do modelo de companha, embora não se verificasse mais o espírito de comunidade, e sim uma crescente diferenciação social. A prática da pequena produção mercantil já se encontrava subordinada ao modo de produção capitalista. Um outro aspecto a ser ressaltado refere-se à "acumulação diferencial", ou seja, ao mesmo tempo em que para obter estabilidade e melhor prognóstico na pesca, faziase necessária a aquisição de instrumentos de trabalho mais poderosos, este era também o caminho para a diferenciação, que ocorria a partir da acumulação que era propiciada neste quadro. Esta diferenciação, embora fosse sedutora, era também responsável pela noção de ilegitimidade atribuída ao armador. O pequeno produtor sentia que precisava acumular, não para alcançar o posto de armador, ou seja, não se tratava de uma “acumulação econômica” mas sim uma “acumulação social”. Enquanto a categoria armador equivalia a um empresário de pesca, do outro lado estava o pescador artesanal, ou seja, o pequeno proprietário. Em Jurujuba, essa categoria era uma outra forma dos pequenos pescadores denominarem o pescador rico, e dos pescadores não-proprietários denominarem os grandes proprietários de traineiras. Os armadores não costumavam tachar-se desta forma, porém assim se viam. Eles eram os proprietários no sistema de embarque. Os pequenos produtores viam na trajetória desses armadores, um sucesso na luta da pesca, embora apontasse para o processo de “acumulação diferencial”. (DUARTE, 1978) O antagonismo entre a atuação de um pequeno pescador e a de um armador era estabelecida ao longo de uma prática que na medida em que se realizava ia se consolidando. Os armadores apesar de não pescarem, carregavam com eles essa identidade de pescadores, devido ao passado quando trabalhavam em canoas. No entanto, os armadores eram os grandes padrinhos, devendo significar um modelo de conduta, uma possibilidade de ajuda e além de tudo serem singulares. A imagem deles estava atrelada a de uma empresa, a qual era o reflexo das peculiaridades de seus respectivos armadores. Essas peculiaridades eram importantes na concorrência entre traineiras, principalmente pelo reduzido número de trabalhadores, naquela época, existente. Duarte (1978) aponta para o fato de que para os trabalhadores da pesca em Jurujuba, os sistemas de trabalho desenvolvidos tanto na canoa/companha quanto na traineira/embarque, estavam atrelados a várias “continuidades” relativas aos meios de produção, já que não se verificava na pesca de traineiras, uma produção capitalista radical que 49 englobasse “cooperação” e “maquinismo”, que submetesse o trabalho ao capital. O modo de produzir das traineiras, a forma como o trabalhador se ligava aos meios de trabalho, tudo isso era muito parecido com o que ocorria na pequena produção. A distinção se dava na "escala de produção", no "ritmo das jornadas", na divisão do trabalho mais acentuada, embora ainda fossem comparáveis à produção nas canoas. Uma outra constatação da “continuidade” encontrava-se na relação entre o armador e os pescadores com vantagens, ou seja, o grupo dos qualificados e também entre algum companheiro que tivesse trabalhado antes com o armador. Todo esse pessoal caracterizava a continuidade daquela companha na qual o armador atuara anteriormente. A continuidade pelo trabalho sofreu uma ruptura, portanto, na medida em que o armador local distanciava-se da companha, por atuar como um não-trabalhador, ao mesmo tempo em que o identificava com os outros membros de sua classe. A imagem da categoria do armador se distanciava e muito daquela existente para o pescador, devido à atuação empresarial do primeiro. Ele possuía mais de uma embarcação e ficava longe do processo de produção imediato. Passava a atuar como um gerente, em função de sua situação econômica. Sua posição era superior e externa à unidade de produção, o que propiciava uma percepção impessoal da empresa. Ao contrário do pequeno produtor que se identificava totalmente com sua embarcação. (DUARTE, 1978) No processo de trabalho na pesca em traineiras, o armador não se preocupava mais com o ensino formal para o filho, mas sim com o equilíbrio entre a quantidade de embarcações e de filhos. Os armadores locais competiam entre eles pelos poucos recursos existentes e também pela luta para ser bem sucedido numa situação que dizia respeito a todos. Para tanto, formavam-se grupos compostos de unidades economicamente parecidas. Os grandes proprietários tentavam impedir que novos concorrentes aparecessem, o que comprometeria mais ainda o reduzido número de trabalhadores da pesca disponíveis para as grandes traineiras. As fábricas de enlatamento de sardinha que consumiam quase que totalmente o produto da pesca das grandes traineiras, constituíam-se de um forte órgão de classe e encaravam os grandes produtores de igual para igual, brigando sempre por preços mais em conta durante a negociação desse produto de que faziam uso. Ao passo que os armadores se preocupavam com a possibilidade dessas fábricas, devido ao seu alto poder econômico, voltarem a pensar na produção do pescado por conta própria, deixando-os fora de uma expressiva frente de comercialização do produto. 50 Já na relação com os órgãos do Governo era comum a prática de fiscais oficiais das relações de trabalho no mar receberem alguns benefícios pagos pelos armadores, garantindo a impunidade na exploração da força de trabalho. Tudo isso refletia o ápice da situação dos armadores que haviam passado pela já mencionada acumulação diferencial. Os próximos armadores já seriam grandes proprietários. A prática da produção nas traineiras provavelmente iria se modificando em função de novas condutas que iriam se distanciando da forma precedente e, portanto, da condição de legitimidade e continuidade. (DUARTE, 1978) Os trabalhadores da pesca em Jurujuba percebiam que trabalhar como operário, para o qual supõe-se uma qualificação manual/técnica, oferecia uma estabilidade através da carteira assinada, ao passo que trabalhando em traineiras eles usufruíam maior liberdade. Alguns deles, no entanto, alcançavam a almejada condição de trabalhador embarcado com vantagens: possuíam a carta de embarque, que é o correspondente marítimo da carteira de trabalho, exerciam uma função qualificada e eram melhores remunerados, à medida que recebiam um maior número de partes. Como o alcance dessas posições não dependia apenas de qualificação e não se dava de forma impessoal, ao chegar numa idade mais avançada, aqueles que não haviam conseguido essas posições, não tinham nenhuma segurança. Caracterizava-se, portanto, um outro período de relacionamento com os aspectos concernentes à subsistência na produção pesqueira. Mesmo assim, a idéia de ser livre vivendo do mar, ainda era bastante forte. Segundo Duarte (1978), muitos trabalhadores do mar preferiam a liberdade sem estabilidade na pesca à falta de liberdade sem estabilidade fora da pesca. Como forma de suprir a subsistência do dia-a-dia, também mergulhavam para catar outras espécies marítimas. As trajetórias de vida dos assalariados da pesca consubstanciavam-se, portanto, das difíceis condições de trabalho que enfrentavam, visando o sustento da família e sonhando com a liberdade e a estabilidade. As traineiras equiparavam-se a pequenas empresas autônomas e de uma certa forma competitivas, apresentando diferentes tamanhos. Esses tamanhos demonstravam a desigualdade socialmente importante entre as pequenas e as grandes embarcações. A diferença física entre traineiras grandes e pequenas era de suma importância para as questões sócio-econômicas. Os grandes armadores possuíam várias traineiras grandes enquanto que as traineiras pequenas constituíam os únicos barcos dos pequenos armadores. Estes últimos assemelhavam-se aos pequenos produtores, inclinando-se a não mais fazer uso de suas canoas anteriores, enquanto os grandes armadores iam deixando para trás as pequenas ou a pequena 51 traineira que antes possuíam. Na pequena produção faz-se uma associação do proprietário com a unidade de produção, ao passo que nas unidades capitalistas esta identificação inexiste. Fato que além de evidenciar o modo de produção, demonstra também a forma como o trabalhador se empenha no trabalho dessas unidades. Quanto ao ritmo e à intensidade do processo produtivo das traineiras, estes eram bastante distintos. As viagens das pequenas traineiras eram de pequena duração, podendo levar de 12 horas a dois dias no máximo. Por serem aptas à captura de diversas espécies, podiam alcançar uma produtividade mais estável que a das traineiras grandes, as quais estavam voltadas somente para os cardumes de sardinha. Este aspecto é importante já que o trabalhador recebia por produção, isto é, ele não era remunerado através de salários fixos, a sua remuneração dependia do quanto era produzido. (DUARTE, 1978) Embora o proprietário conseguisse estabelecer equilíbrio entre os períodos de maior e menor intensidade do trabalho ao volume previsível de produção, para o trabalhador o mesmo não ocorria, uma vez que ele não conseguia meios de sobrevivência nestes períodos de baixa produção. Tanto as traineiras pequenas quanto as traineiras grandes, conseguiam no verão uma maior produtividade, levando a um montante da produção que garantia à força de trabalho uma remuneração mais satisfatória. Porém, a diminuição de facilidade na captura do pescado que ocorria no inverno levava a uma baixa produtividade que iria comprometer, sazonalmente, a condição mínima de reprodução da força de trabalho até mesmo das pequenas traineiras. Assim sendo, em função do regime de remuneração que se utilizava na produção pesqueira, o valor e a regularidade dos salários eram afetados pelas diferenças que ocorriam na intensidade da produção. Fato que levava a um rodízio de trabalhadores nas unidades produtivas. Quanto ao sistema de vantagens e a segurança do embarque, pode-se dizer que o embarque com vantagens não se realizava nas pequenas traineiras, devido a sua menor produtividade e a menor condição de sua reprodução. Nestas unidades o embarque estabelecia uma relação de remuneração menos estável e também as vantagens não eram percebidas como uma forte diferença no salário. Em Jurujuba, embora a experiência do trabalhador da pesca achasse melhor o trabalho nas traineiras pequenas, era nas traineiras grandes que buscavam as posições com vantagens. Somente ficava de fora dessa situação o mestre-proeiro que ocupava posição de distinção tanto nas pequenas quanto nas grandes traineiras. Esse posto era ocupado geralmente pelos proprietários e destacava-se em relação às demais posições com vantagens. É neste cenário de diferenças entre barcos pequenos e barcos grandes que os 52 pescadores não-proprietários desenvolviam a sua prática e que de acordo com as condições de trabalho que iam se apresentando ocorria a sua mobilidade entre as unidades de produção. Em geral, quanto menos idade tivesse o trabalhador, maior seria a sua disposição para mobilidade já que ele era mais independente, menos qualificado, era mais forte fisicamente, e almejava ir além da subsistência do dia-a-dia. (DUARTE, 1978) Quando atingiam a meia-idade, as trajetórias ficavam mais sedimentadas, fosse na segurança advinda das vantagens, fosse na liberdade de alguma forma alcançada, ou ainda, quando sem opção, submetiam-se a alguma condição de trabalho. Constata-se que além da "oposição entre barcos grandes e barcos pequenos" e da "alternância entre as estações", existia um outro fator importante que diz respeito às condições de produção, trata-se do "encerramento de cada ciclo anual". Os trabalhadores embarcados ou não, no final do ano, recebiam uma "caixinha", ou seja, um pagamento que equivalia aproximadamente ao décimo-terceiro salário e às férias, e que ajudava na sua subsistência. Por ser verão, a passagem de fim de ano era a época mais propícia para sair de um barco para outro, inclusive porque a caixinha só era paga totalmente a quem tivesse cumprido um ano de trabalho em dada unidade de produção, fato que não favorecia uma transição ao longo do ano. O período de um ano possibilitava ao trabalhador analisar, em função das suas condições de sobrevivência, se devia ou não continuar num determinado barco. Ele poderia deixar a embarcação ou solicitar o embarque. O embarque, na visão do trabalhador, se daria se o patrão fizesse uma boa avaliação do profissional, recompensando-o com a assinatura da carta de embarque e algumas vantagens. (DUARTE, 1978) A lógica da mobilidade dos trabalhadores estava associada às condições de produção de cada unidade produtiva. A "regularidade" e a "produtividade média" em cada embarcação eram importantes na escolha entre barcos grandes e barcos pequenos. A regularidade remetia à questão da remuneração por produção, à regularidade das saídas de pesca e ao descontentamento frente aos grandes intervalos de tempo sem trabalho, conforme determinação do armador. Enquanto que a produtividade não só englobava a regularidade como também abrangia as condições dos meios de trabalho e o seu possível ajustamento ao processo de produção em pauta. Se os meios de trabalho fossem deficientes, isto afetaria a produtividade, implicando na exploração do trabalhador o qual teria que intensificar ou estender o seu trabalho, ou ainda sofrer uma redução na remuneração deste. Embora as condições de produtividade nos barcos grandes exercessem uma grande atração ao trabalhador, existia uma maior inclinação pelo trabalho nos barcos pequenos. Estes últimos asseguravam, por menor que fosse, uma remuneração regular. Os trabalhadores 53 podiam optar por embarcar ou não em determinada embarcação. A escolha pelo embarque se daria somente quando as condições fossem consideradas satisfatórias. Ou seja, o trabalhador percebia que sofreria uma maior submissão, mas ele avaliava se, em troca, haveria alguma garantia. Segundo a literatura, o trabalho de emenda era uma outra forma que o trabalhador encontrava para garantir sua subsistência. Aí, o trabalho não possuía qualquer ligação com outra embarcação que não fosse a sua de origem, a qual estava filiado. Desta forma, o trabalhador ia suprindo as necessidades do dia-a-dia oriundas da inconstância do processo produtivo da unidade a qual se encontrava vinculado. A suspensão do trabalho por muito tempo, para que se fizessem os reparos nas traineiras pequenas, levava à prática da emenda. Enquanto que nas traineiras grandes, quando essas interrupções ocorriam, constatava-se a imposição do desembarque à maioria dos trabalhadores. O fato é que os grandes armadores não precisavam se preocupar com a ruptura de vínculos entre a unidade produtiva e o trabalhador, já que possuíam outras embarcações as quais possibilitavam sua sobrevivência econômica. Ao contrário dos pequenos armadores que por possuírem um só barco buscavam manter os vínculos, na esperança de voltar à produção logo após a realização do conserto. A emenda demonstrava que a liberdade existente na pesca estava associada à subsistência cotidiana. Ela ocorria casualmente, não agregava nenhuma segurança de direitos trabalhistas e não levava em consideração a qualificação do trabalhador, o qual atuaria sempre sem vantagens durante a emenda em outra unidade produtiva. O autor deixa bem claro ao longo de sua pesquisa neste bairro de pescadores: (...) a relação de apropriação real entre os portadores da força de trabalho e os instrumentos de produção não sofre, mesmo nas traineiras grandes, aquele corte radical que caracteriza a produção capitalista acabada, a "fábrica" onde a onipresença do maquinismo e a exacerbada complexificação da cooperação transformam o trabalhador em um apêndice irracional do processo; o "apertador de parafusos" das linhas de montagem. (DUARTE, 1978, p.164) Para tanto, um certo conhecimento na produção da pesca é essencial no engajamento do trabalhador nesse processo de produção. Nas traineiras, esse conhecimento era diversificado, ao passo que, na pequena produção ele estava totalmente calcado no saber fazer do pequeno pescador. Essa diversidade podia se dar pela especialização que acarretava as posições de cozinheiro e motorista, por exemplo, e que tinham uma atuação distante da 54 pescaria em si; ou pela qualificação levando a posições qualificadas de mestre-de-rede e mestre-proeiro lembrando o saber do mestre enquanto pequeno pescador. Inicialmente todos eram trabalhadores de convés, com funções igualadas. Depois, passavam, no mínimo, por uma das funções que levavam a vantagens independentemente de um saber específico. A partir daí optava-se pelas tarefas mais especializadas ou através de outras se tinha o acesso às tarefas de qualificação. (DUARTE, 1978) Os trabalhadores do mar tinham, portanto, a sua probabilidade de sucesso relacionada a sua trajetória. No entanto, podia haver maiores dificuldades nessa trajetória, fosse pela prática do trabalhador, fosse pela sua situação dentro das unidades de produção, fato que interferia na importância do investimento no saber como forma de alcançar a estabilidade. O trabalhador, ao mesmo tempo em que se sentia “co-responsável” pelo êxito da saída de pesca, já que a remuneração do seu trabalho nesse tipo de produção atrelava o valor do salário ao “valor realizado da produção”, ele também vivia o tão conhecido “enfrentamento do trabalhador com o monopólio dos meios e condições de produção nas mãos dos armadores”. (DUARTE, 1978, p.167) Desta forma, os trabalhadores ou mostravam-se dispostos e interessados em realizar o melhor no processo produtivo, empenhando-se no trabalho de forma a garantir a sua reprodução enquanto trabalhador da pesca; ou muitas vezes, ultrapassavam esse limite, atendendo de maneira ilegítima àquilo que lhe convinha em combinação com o que convinha ao armador. Percebe-se que a briga pelas vantagens provocava a competição entre os trabalhadores. Quando vencidos, utilizavam-se da possibilidade de sair para um outro barco, e começar tudo de novo. Um outro aspecto a ser ressaltado, trata-se da instituição do compadrio. Esta ocorria aí da mesma forma que se dava com os pequenos produtores. A relação de compadrio existia tradicionalmente e era de grande expressão social. Existia a relação de compadrio clássico e aquela de padrinho X afilhado para as ligações informais. Porém enquanto o pequeno produtor vivia a questão de créditos e suas relações com os pescadores ricos e órgãos do Governo, para o trabalhador não existia o problema do crédito, já que para sobreviver não precisava da reprodução dos meios de produção. Podia sim, utilizar-se de empréstimos, mas estes não envolviam instituições financeiras, eram realizados num âmbito menor. (DUARTE, 1978) A busca por esse apadrinhamento se dava com o objetivo de estreitar as relações com parentes distantes socialmente. Ele podia abranger um pequeno produtor próspero ou um armador ou outros familiares em boas condições econômicas e que não trabalhassem na pesca 55 ou ainda alguma pessoa influente que a família tivesse travado conhecimento ao longo de sua vida. A relação de apadrinhamento com armadores não tinha caráter pessoal e não se tratava de uma ajuda recíproca. Não se caracterizava como uma relação de proteção entre trabalhador e empregador, até porque só muito raramente se trabalhava em embarcação de padrinho. Quando ocorria o rompimento de uma relação de apadrinhamento, podia inclusive se tornar inexeqüível o trabalho no barco do ex-padrinho. Mesmo que ocorresse uma relação padrinhoarmador, o vínculo não traria nenhuma vantagem para o trabalhador, tudo dependeria de sua capacidade pessoal. (DUARTE, 1978) 1.3.2 O PROCESSO DE TRABALHO Quanto ao processo de trabalho nas traineiras, este era bastante abrangente. Era um trabalho típico da produção capitalista, cujas características estavam visíveis na sua "jornada", na sua "intensidade" e "produtividade". Ressalta-se neste tipo de produção, a ausência de sistematicidade e de constância do processo. Se por um lado, era possível que se realizasse o cálculo da "jornada de trabalho" média anual de um trabalhador; por outro, a relação existente entre o tempo de trabalho necessário e tempo de trabalho excedente implicava numa noção diferente do tempo de trabalho dos operários dos clássicos setores da produção. Outro aspecto importante desse processo é o da remuneração por produção, onde a idéia de co-responsabilidade pelo valor do produto é a base de toda a sua prática. (DUARTE, 1978) A saída de pesca constituía a unidade básica do processo de trabalho. Ela consistia na ida do barco aos locais escolhidos para a pescaria, na realização da pesca e na sua volta ao local de onde partira. Nesta prática de produção, incluía-se também as tarefas de preparação para a viagem e as atividades relacionadas à entrega do produto para a comercialização. O processo de trabalho constava principalmente da saída de pesca e da pescaria. A saída da pesca se dava após a fase preparatória, na qual o barco era abastecido, sob orientação do contramestre ou mestre-proeiro, de combustível, gelo e alimentos que seriam consumidos ao longo da viagem. Para tanto, contava-se com a atuação de um ou mais geladores e dois trabalhadores que exerceriam alternadamente as tarefas comuns. Desta etapa também participava o motorista que tinha o domínio das máquinas que ficavam no porão e cuidava da parte técnica indispensável ao seu funcionamento. Após o embarque da guarnição, sob a direção do mestre-proeiro, dava-se a saída da embarcação. Era a hora em que toda a guarnição realizava o enforcamento, ou seja, suspendia o caíque por meio de cordas e 56 amarrava-o à popa do barco, além de suspender também a âncora. No trajeto até o ponto de pesca, o motorista trabalhava no porão e um par de trabalhadores atuava no leme e na proa guiando o barco. Acolhendo ordem do mestre, a cada duas horas esses dois trabalhadores sofriam um revezamento, do qual ficavam fora os qualificados, tais como, mestre, contramestre, motorista e cozinheiro e os iniciantes com pouquíssima qualificação. Chamavase quarto esse revezamento que começava no carregamento da embarcação e finalizava nas tarefas de arrumação do barco, quando este voltava ao ponto de onde partira. O cozinheiro, de acordo com a distância do percurso, desenvolveria ou não o seu trabalho de preparação dos alimentos, sempre seguindo ordem do mestre. (DUARTE, 1978) Ao chegar no local escolhido, iniciava-se o processo da pescaria. O leme era de responsabilidade do contramestre, ao passo que o mestre-proeiro colocava-se de pé à frente do barco, sempre atento a qualquer vestígio de presença de cardumes no mar. Se na embarcação houvesse sonda, esta seria de responsabilidade do sondeiro, que a partir dos sinais provenientes deste instrumento, inteirava o trabalho do proeiro. A busca pelo peixe, também chamada de correr o peixe, podia levar uma noite inteira com os trabalhadores se revezando informalmente na proa. O cerco só se iniciava após a aprovação da captura do pescado. Cabia ao proeiro tanto a aprovação quanto o comando da captura. Uma vez aprovada, dava-se maior velocidade ao barco, direcionando-o de forma a fazer um círculo ao redor do cardume, soltando-se então, a rede numa cadência própria abrangendo toda aquela região demarcada. Além do proeiro, do contramestre e do motorista, também trabalhavam neste processo, os caiqueiros, o chumbeleiro e o corticeiro. Quanto aos caiqueiros, estes iam no caíque que, depois de desamarrado, servia como uma bóia para a rede lançada. Já o chumbeleiro, este era encarregado de largar, de forma cadenciada, os chumbos que constituiriam a extremidade inferior da rede. O corticeiro era aquele trabalhador que soltava o caíque, ou seja, desamarrava a corda que o prendia à popa, assim que os caiqueiros estivessem dentro dele. (DUARTE, 1978) Segundo o autor, constata-se que após o cerco, dava-se o carregamento da rede. Nesta etapa, o fundo da rede era fechado transformando-se em um saco. Para tanto, esticava-se a carregadeira, uma corda grossa, que passava entre os chumbos. Tarefa realizada apenas por dois homens, uma vez que contava com a energia do motor para girar duas polias. Avaliava-se então o cerco a partir da qualidade e da quantidade de pescado capturado. Em se tratando de avaliação positiva continuava-se com o carregamento, embora agora toda a guarnição estivesse envolvida. Somente o motorista e o cozinheiro não participavam dessa tarefa. O recolhimento da rede constituía-se de uma tarefa realizada, cuidadosamente, em um dos lados 57 do barco. Ela deveria ser acomodada de tal forma que, terminado o lanço, a rede pudesse ser novamente lançada. Neste sentido, os corticeiros guardavam as bóias da extremidade superior da rede próximo à popa, enquanto que o chumbeleiro guardava os chumbos no eixo de ferro, além daqueles que trabalhavam no corpo central da rede (trabalhadores da panagem). O caiqueiro, no interior do caíque, e também o mestre e o contramestre ajudavam durante todo o processo. A operação, no entanto, seria interrompida assim que o pescado alcançasse a beira da embarcação, dentro do saco em que se transformara a rede. O carregamento da rede só terminava após o transporte do peixe da rede para os porões, ou seja, após o charrico2. Nesta etapa, era necessária a participação de toda a guarnição. O charrico era movido de cima para baixo até a rede. E, depois de enchido de pescado, ele era suspenso, para então ser despejado sobre o convés para que pudesse chegar ao porão através das pequenas passagens existentes, e ser resfriado com o gelo que se encontrava guardado na bodega, localizada no porão. Finalizada toda essa etapa, os trabalhadores com menos qualificação ficavam responsáveis por guardar os instrumentos de trabalho utilizados durante o processo. Uma atenção especial era dada às cordas utilizadas para a movimentação do pau de carga, estas deveriam ser colocadas em vários locais do convés, de tal forma que ficassem preparadas para ser utilizadas num próximo lanço. Vários lanços podiam ocorrer durante uma noite de trabalho. Após um lanço, tomavase um café, e enforcava-se o caíque, mais uma vez. A partir daí o mestre fazia a apreciação de todo o procedimento, sempre atento aos comentários da guarnição. Quando os porões ficavam cheios ou quando os meios de produção se desgastavam, não havia mais condições de saída. Voltava-se ao local de partida, onde o mestre e um trabalhador qualificado passavam para o armador ou para o seu encarregado o produto da pescaria e eram orientados quanto à comercialização do pescado. Um trabalhador externo à pesca, o descarregador, cuidava do processo de descarga do peixe. Sua tarefa constava do levantamento de cestos cheios de peixe do porão para o convés e sua remuneração que era feita por caixa, enquanto unidade de comercialização, fazia parte das despesas gerais. A guarnição também colaborava na descarga. Os geladores retiravam o pescado semicongelado dos porões e os outros trabalhadores de convés, não-qualificados, 2 O nome desta operação coincidia com a denominação dada a um importante instrumento de trabalho, o qual assemelhava-se a um grande coador de rede e possuía um cabo de madeira comprido amarrado ao pau de carga por uma corda. Este último consistia num grande eixo preso ao mastro da proa, que se movia e era operado pelo homem, servindo de guindaste. Chamava-se cafifeiro, o trabalhador que atuava na movimentação das cordas que faziam o pau de carga funcionar. (DUARTE, 1978) 58 levavam os cestos cheios de peixe do convés para as caixas, atirando-os de mão em mão. (DUARTE, 1978) O trabalho nas traineiras constituía-se não só da saída de pesca como também do trabalho de preservação da rede da embarcação, realizado em terra. Esse trabalho era esporádico já que as redes eram bem fortes. Cabia ao mestre-de-redes, trabalhador com vantagens, orientar as atividades de atar a rede, ou seja, de remendá-las com fio de náilon. O ponto mais importante do processo de trabalho consistia, portanto, na saída de pesca, na qual constata-se uma subordinação direta do trabalhador. O trabalhador encontravase permanentemente ligado à pescaria, fosse na saída de pesca, fosse na sua própria vida. Enquanto os intervalos de tempo existentes entre um lanço e outro, por exemplo, representavam a espera preocupante da hora de pescar, as horas de descanso na vida representavam também a espera preocupante das saídas de pesca inesperadas. O mesmo não ocorre com o trabalhador que atua num processo de produção regular, ou seja, ele tem tempo para jornada e tempo para repouso bem distintos e definidos. (DUARTE, 1978) Sabe-se que para o "operário clássico", a superexploração pode ocorrer diretamente em função de uma maior jornada de trabalho, ou mediante a ruptura do seu tempo livre, ao passo que para o trabalhador da pesca, a superexploração se dá a partir do uso excessivo de sua força num processo de produção inconstante, que vem perturbar aquela difícil relação entre o valor de sua força de trabalho, altamente flexível, e o salário médio que se dá de forma fixa, constatando-se, por assim dizer, uma constante oscilação nos níveis da superexploração. A produção da pesca nas traineiras apresentava uma característica na qual a superexploração possibilitava que as unidades de produção atuassem com o seu grau mínimo de produtividade, e este fortalecia a inevitável superexploração. E, além disso, pode-se dizer também, que neste tipo de produção ocorria a extração de uma taxa elevada de mais-valia, a partir da forte superexploração constatada. (DUARTE, 1978) Segundo o autor, como conseqüência da superexploração, o trabalhador se utilizava da mobilidade para sobreviver a tanta "irregularidade". Em geral, não aceitava sujeitar-se ao regime das traineiras grandes, optando por trabalhar em traineiras pequenas devido a sua "maior estabilidade do regime produtivo". Diante da mobilidade e da negação ao extenso período de saídas e esperas das traineiras grandes, estas unidades de produção perdiam sua força, observando-se ainda uma carência de trabalhadores nelas interessados. Diante do exposto, os grandes armadores faziam uso de trabalhadores provenientes de áreas de produção pesqueira debilitadas economicamente. Devido a pouca idade e a frágil situação do mercado de trabalho com que deparavam no seu local de procedência, eles 59 submetiam-se à baixa remuneração da sua força de trabalho. Alguns deles alojavam-se nas traineiras, entre uma e outra saída de pesca, e os gastos com a sua alimentação eram descontados das despesas comuns. Para os trabalhadores da produção pesqueira, as condições de trabalho nas traineiras eram uma realidade que abarcava os problemas relacionados à instabilidade do trabalho no mar, e também incluía o próprio processo de trabalho que nelas ocorria. As traineiras, principalmente as pequenas, tornavam-se ainda menos seguras quando voltavam carregadas, ao local de onde partiram. O seu espaço interno era deficiente e desconfortável, e os trabalhadores sofriam o incômodo causado pelo movimento do barco, devido à agitação do mar e também pela má alimentação e alojamento durante a viagem. Mesmo depois que chegavam a terra, o mal estar físico também era grande, em conseqüência do balanço do barco. Fato que inviabilizava a realização de algum outro trabalho físico ou mental, entre uma saída e outra. Os armadores não admitiam a ingestão de bebida alcoólica a bordo. Portanto, quando iam a terra, no decorrer de uma saída, os trabalhadores procuravam pela bebida, além de tomar banho e desenvolver uma atividade física de lazer. O sacrifício era sentido por cada uma das categorias: o mestre-proeiro ficava na proa, incumbido do correr o peixe, enfrentando o mau tempo, e sempre atento ao mar. O motorista viajava no porão, ficando exposto ao vapor e à poluição proveniente da queima do combustível, além de enfrentar a grande diferença de temperatura quando subia ao convés. Os geladores trabalhavam no porão, no meio do gelo. Eram responsáveis pelo carregamento deste, além de cuidarem do arrefecimento dos peixes do charrico e da descarga do pescado. Os caiqueiros, nos caíques, expunham-se a cada lanço aos riscos no mar. Constata-se que os armadores não forneciam qualquer tipo de proteção aos trabalhadores, já que isto implicaria em alto custo. Um outro aspecto muito importante, trata-se dos vínculos estabelecidos entre os trabalhadores e os meios de produção utilizados na pesca em traineiras. Eles representavam não só o locus como também os meios de consolidação do seu trabalho, independentemente de quem fosse o seu proprietário. Neste modo de organização do trabalho, embora houvesse uma ruptura na relação de propriedade, ainda ocorria "a relação de apropriação real entre o trabalhador e os meios de produção". O mesmo não ocorre quando a organização do trabalho se dá totalmente nos moldes da organização capitalista da produção, já que esta implica na "submissão real do trabalho ao capital”. (DUARTE, 1978, p.200) A partir da pesquisa de Duarte (1978), constata-se que em Jurujuba, embora houvesse 60 uma relação do trabalhador com os instrumentos de trabalho da pesca, percebia-se também uma produtividade pouco expressiva no trabalho das traineiras, devido não só a pouca inserção de novas tecnologias, como também em função do escasso desenvolvimento de estudos sobre os recursos da pesca e sua captura, fatos que levavam a uma divisão do trabalho pouco significativa e uma cooperação complexa pouco desenvolvida. Desta forma, o que ocorria era uma superexploração do trabalho humano. A manutenção das partes do barco, que eram diretamente ligadas ao processo de produção, era considerada de responsabilidade do trabalhador enquanto que as outras partes ficavam por conta do armador. Os instrumentos de trabalho, apesar da forma pouco legítima com que se dava a sua utilização, eram passíveis de identificação. Era o caso das embarcações que por serem distintas umas das outras passavam por um processo de caracterização pessoal por parte dos trabalhadores. 1.3.3 A REMUNERAÇÃO E OS DIREITOS Quanto à remuneração daqueles que trabalhavam nas traineiras, esta era baseada na produção e se dava sob a forma de partilha, ou seja, na distribuição das partes, a qual era complementada por outras remunerações. Em Jurujuba, denominava-se monte o “valor realizado em mercado após cada saída de pesca (...)”. Abatidas as despesas comuns, o monte era dividido entre o armador ou seus prepostos, entre si e a guarnição. Das despesas comuns constava o dispêndio com combustível, gelo, alimentos, taxas e impostos, possíveis multas, encargos sociais do armador e da tripulação, tarefas de desembarque e de comercialização do produto; mais uma taxa para gastos de administração (5%). Feitas essas deduções, restava então o bolo a ser dividido. A partilha era feita a partir do somatório das partes que cabiam aos trabalhadores além das partes do armador, inclusive daquela em ele representava os instrumentos de trabalho, de forma semelhante ao que ocorria na pequena produção mercantil. Era o armador quem decidia sobre os cálculos da partilha, sempre de acordo com a forma de organização capitalista. Se uma pescaria não tivesse sido boa, ele poderia não abater do monte todas as despesas comuns, a fim de evitar que a tripulação precisasse abandonar a traineira por não receber o mínimo imprescindível. Até que uma saída de pesca tivesse sucesso, esses atrasados iam se adicionando a tantos outros. (DUARTE, 1978, p. 207-208) O armador também se utilizava de um sistema de vales, uma espécie de pagamento de 61 aluguel, que permitia que os trabalhadores sobrevivessem e não se afastassem da unidade de produção no período das esperas. Contudo, com a soma dos atrasados e dos vales, os descontos a serem abatidos do monte, poderiam atingir valores muito altos a ponto de implicar numa reduzida remuneração dos trabalhadores. Era comum também, o armador descontar 5% do valor das partes, toda vez que o pescado fosse vendido para as fábricas de enlatamento. Estas, dificilmente, efetuavam o pagamento do pescado num prazo inferior a 30 dias após a sua entrega. Desta forma, o armador considerava uma antecipação concedida ao trabalhador, aquele pagamento das partes que era feito assim que o produto era desembarcado. No entanto, de uma forma ou de outra, os trabalhadores acabavam sempre pagando essa diferença. Eles também podiam ser prejudicados, fosse pelo descontrole do valor dos descontos, ou pelo equivocado número de partes, uma vez que não participavam dos cálculos feitos pelo proprietário. Além da remuneração por partes, o trabalhador recebia também o pagamento da caixinha e do salário-família e ainda sofria o desconto previdenciário. A caixinha equivalia ao décimo-terceiro salário e férias que caberiam aos trabalhadores no final do ano. Todos os trabalhadores e não somente os embarcados, ou seja, não só aqueles que possuíam a carteira de trabalhador do mar assinada, contavam com ela. Enquanto que o salário-família e o desconto previdenciário cabiam somente aos embarcados e diferentemente da caixinha, não estavam sujeitos a acordos pessoais. No entanto, o pagamento de todos esses direitos costumava sair atrasado chegando a causar dívidas enormes como era o caso dos descontos previdenciários que acumulados levavam à necessidade de leiloar os barcos. (DUARTE, 1978) Nessa esfera da remuneração e dos direitos sociais dos trabalhadores da pesca, um outro aspecto a ser ressaltado é a questão do “Regulamento do Tráfego Marítimo” (RTM) e da “Consolidação das Leis Trabalhistas” (CLT) que eram contraditórios muitas vezes, o que impossibilitava um texto único que incluísse os direitos supostos por ambos. Da mesma forma, a pesca, que estava submetida juridicamente à Capitania dos Portos enquanto Delegacia Regional Marítima, ficava sujeita à justiça trabalhista. Esta não favorecia o trabalhador, que se sentia impotente quando se tratava daquilo que convinha à categoria dos proprietários. (DUARTE, 1978, p. 210) A remuneração da força de trabalho na produção das traineiras, portanto, “não é típica, (...), do assalariamento capitalista ao mesmo tempo em que se afasta da forma da remuneração por partilha vigente na ‘pequena produção’”. (DUARTE, 1978, p. 211) No caso específico das traineiras, em Jurujuba, a partilha mascarava um assalariamento, fato que favorecia a exploração da força de trabalho num local caracterizado 62 pela impossibilidade de previsão na produção. A noção de participação, portanto, era vista de forma diferente entre os trabalhadores e entre os armadores. Quando se tratava da noção de sociedade entre armador e trabalhador, prevalecia, portanto, aquela existente para a classe de proprietários, já que era ditada pelos meios que serviam de intermediário dessa categoria. Com relação aos instrumentos de trabalho, a guarnição percebia o processo de trabalho nas traineiras como uma sociedade no trabalho, e não como uma sociedade no capital, em que o proprietário somente adiantasse o valor dos meios que fossem utilizados na pesca. Tal adiantamento, no entanto, não significava nenhum adiantamento real, mas sim a pressuposição de uma cooperação entre o trabalhador e os instrumentos de trabalho. (DUARTE, 1978) Para os trabalhadores, a origem da exploração estava na ilegitimidade de que se revestia a separação do proprietário do processo de trabalho, fato determinante do reconhecimento do armador de forma contrária ao pequeno produtor. O processo de trabalho nas traineiras diferia, portanto, da pequena produção, em alguns aspectos. A guarnição percebia que era responsável pelo processo de produção, ou seja, existia a cooperação no trabalho tanto nas traineiras quanto no sistema de companha, no entanto, um aspecto que não constava da pequena produção diz respeito à exploração que ocorria diariamente no processo produtivo nas traineiras. Segundo o autor, os problemas referentes à partilha consistiam não só na grande quantidade de partes para dividir como também na forma pouca correta com que se davam os seus cálculos. O que se constatava era uma efetiva diminuição do valor das partes dos trabalhadores, embora isto não implicasse numa conotação negativa ao sistema de partilha. O pagamento da caixinha viabilizava, ao final de cada ano, o pagamento das dívidas contraídas, e deixava o trabalhador livre para a mobilidade. Já o salário-família, embora pequeno, era um direito que representava a regularidade de remuneração, a estabilidade dos embarcados. Portanto, era inaceitável que ocorresse um atraso desses pagamentos. A noção de companha, existente na pequena produção e na tradição da comunidade, fazia parte também do imaginário dos pescadores nas traineiras. Porém dentre estes últimos havia aqueles que valorizavam a forma companha e outros que preferiam a forma assalariamento, de acordo com as diferentes práticas de trabalho em que se enquadravam. Os trabalhadores embarcados com vantagens, que não participavam da pescaria em si e, portanto, menos preocupados com a subsistência do dia-a-dia, davam maior importância à efetivação dos direitos do que ao recebimento da partilha, já que não estavam diretamente 63 ligados ao processo produtivo, e portanto, não se sentiam tão responsáveis pelo montante da remuneração no sistema das partes. Mas os trabalhadores de convés valorizavam o sistema de partilha já que além de participarem diretamente da produção do pescado, atuavam na maioria das vezes como trabalhador não-embarcado, portanto, passíveis da complementação pela mobilidade. Diante de várias e instáveis formas de remuneração, os planos de reprodução do trabalhador iam ficando mais difíceis de serem realizados, levando-o a criar alternativas de subsistência. A sobrevivência do dia-a-dia e o pagamento da caixinha ao final do ano não davam conta de suprir as necessidades de cada mês. A categoria do embarque situava-se entre a partilha, enquanto ponto central do salário real, e os direitos como forma legal de complementar a remuneração do trabalho humano, possibilitando a sua reprodução social. Em Jurujuba, o embarque significava a formalização da relação de assalariamento de acordo com a legislação do trabalho marítimo e era submetido à Capitania dos Portos. Ao passo que o desembarque era a ruptura legal desta relação. A caderneta de embarque era tão importante quanto a carteira de trabalho dos trabalhadores de terra. O embarque representava uma estabilidade garantida pelos direitos: décimo-terceiro, férias, salário-família e desconto previdenciário. No âmbito do trabalho nas traineiras, o embarque correspondia às vantagens, uma vez que estas não cabiam aos trabalhadores nãoembarcados. Embora implicasse na perda de liberdade, o embarque representava a estabilidade, os direitos. Uma maior ou menor importância podia ser dada à estabilidade conseqüente do embarque, de acordo com as condições de reprodução do trabalhador durante a sua trajetória. Esta importância estava atrelada não só às especificidades da unidade de produção em questão, como também à possibilidade de obter, a partir do vínculo de embarque, uma significativa estabilidade nas posições com maiores vantagens. Para a efetivação do embarque exigia-se documentos. A exigência destes documentos representava um obstáculo para que se conseguisse a condição de embarcado, tão almejada. Porém, era necessário que também se levasse em consideração os períodos de intervalo na produção e a possibilidade de mobilidade daqueles trabalhadores que lutavam pela subsistência. A aquisição dos documentos não era a maior dificuldade. Pode-se dizer que os maiores problemas eram causados pelos armadores. Estes entendiam que embarcar toda a tripulação representava um custo muito alto, o que impossibilitaria sua reprodução como proprietários/empresários. Somente embarcavam um número muito pequeno de trabalhadores, 64 este número dependeria da relação estabelecida com os fiscais e do número de posições com vantagens de cada unidade produtiva. Segundo o autor, a fiscalização era mais intensa em alguns percursos do que em outros, variando, portanto, de acordo com o tipo de pescaria. A cobrança de multas se dava em função do status econômico dos armadores, sendo que os grandes armadores eram os menos multados. Contudo, uma vez que ainda se podia contar com autoridades não subornáveis, essas cobranças eram válidas, pois implicavam num grau de respeitabilidade importante para as embarcações de pesca. Ao mesmo tempo em que para o armador o não embarcar toda a sua tripulação viabilizava a sua unidade, para os trabalhadores tal fato impossibilitava a sua própria reprodução. E ainda havia o problema quanto ao dispêndio com os encargos sociais da tripulação, que faziam parte do desconto das despesas comuns, ou seja, havendo qualquer acréscimo desses encargos, o mesmo seria debitado do próprio trabalhador. A fiscalização era vista tanto como uma forma de garantir os direitos, quanto como um impasse na maneira como ligava esses direitos com a viabilização da reprodução dos trabalhadores. Desta forma, constata-se que era tão importante a obtenção dos direitos através do embarque, quanto a obrigação do embarque levando em consideração a possibilidade de uma trajetória favorável ao trabalhador. Segundo o autor, embora existisse o direito de leis para o trabalhador, ele geralmente não era bem empregado pelos agentes governamentais. Assim sendo, o embarque seria tanto melhor quanto pior fosse a fiscalização. Constatando-se, inclusive, que a quantia referente às multas também era debitada das despesas comuns. O que ocorria era que mesmo nas condições ditas legais do embarque, os direitos dos trabalhadores eram derrubados. A caixinha, pagamento que equivalia ao décimo-terceiro e às férias, geralmente não era paga em dia, podendo sofrer propostas de pacto, assim como o salário-família que também sofria atrasos. Segundo o autor, no momento do desembarque, ruptura formal do vínculo de trabalho, era que os armadores forçavam os acordos que prejudicavam os direitos de indenização, inclusive procurando intimidar aqueles que não concordavam com essas práticas. Os trabalhadores, no entanto, já podiam tentar recuperar os seus direitos judicialmente, devido às mudanças em seu Sindicato. Principalmente os embarcados qualificados percebiam a importância desta Associação, já as outras categorias dificilmente apresentavam as queixas trabalhistas. O Sindicato, responsável por defender os direitos da classe, deparava-se, no entanto, 65 com a pouca efetivação desses direitos através do embarque. Para a categoria dos nãoproprietários, a tão almejada legitimação pelo embarque não era possível no âmbito da produção em traineiras, já que esta não assegurava a estabilidade desejada. A não efetivação dos direitos não queria dizer que eles não existiam, e que não pudessem ser usufruídos. Estes direitos, embora legitimados fora do trabalho nas traineiras, eram importantes na luta contra a superexploração. Voltando a questão das vantagens, vale ressaltar que estas eram posições que recebiam remuneração através de partes suplementares na produção das traineiras. 1.3.4 A QUALIFICAÇÃO Quanto à categoria posição, esta podia ser esporádica e exercida de forma passageira, ou podia constituir-se em posições mais duradouras como daqueles que comandavam o processo produtivo. Ela representava as normas e a forma como se dava a divisão do trabalho e a co-participação no processo de produção. Era através dessas posições que se viabilizava uma remuneração com vantagens das partes suplementares. A partir da literatura abordada, constata-se que as posições e vantagens podiam ser divididas em três grupos. No primeiro deles, enquadrar-se-iam os geladores e os caiqueiros, além do cafifeiro, do corticeiro, do chumbeleiro, do sondeiro e do mestre-de-rede. No segundo grupo, estariam o ajudante de cozinheiro e o ajudante de motorista, assim como o cozinheiro e o motorista. Ao último grupo pertenceriam o contramestre e o mestre-proeiro. O primeiro grupo é aquele em que os trabalhadores eram menos qualificados e ingressavam inicialmente. Recebiam poucas partes suplementares, entre meia e duas partes. As categorias de geladores e caiqueiros não exigiam experiência específica, sendo tarefas do trabalhador de convés. No entanto, sobrecarregavam mais do que as outras tarefas, entendidas, portanto, como posições específicas, levando inclusive riscos à saúde do trabalhador. Eram posições ocupadas pelos trabalhadores de menos idade ou menos qualificados e não eram tão valorizadas quanto as outras. O trabalhador não pensava em ocupar essas posições por muito tempo. Os geladores deveriam ser fortes fisicamente enquanto que os caiqueiros deveriam ser ágeis. Já os cafifeiros, corticeiros, chumbeleiros, sondeiros e mestre-de-rede eram posições pelas quais os trabalhadores, provenientes das duas posições anteriores, ascendiam. Essas posições já requeriam alguma qualificação específica e, portanto, um mesmo trabalhador dificilmente ocuparia mais de uma delas concomitantemente ou uma em seguida da outra. Elas eram exercidas no conjunto do processo de trabalho. 66 Essas posições eram entendidas como um acesso para o terceiro grupo no qual as categorias de contramestre e mestre-proeiro representavam o ápice do processo de trabalho na pesca, embora nem todos as alcançassem. Para tanto era necessário que dispusessem de algumas vantagens pré-estabelecidas. O trabalhador também podia ascender através do segundo grupo, neste já se percebia alguma especialização. Ou seja, os geladores e caiqueiros também podiam fazer sua trajetória através do subgrupo dos ajudantes e alcançarem posteriormente a posição de cozinheiro ou motorista. A categoria de cozinheiro atuava à parte do conjunto do processo de trabalho. Caracterizava-se como uma "prestação de serviços" que contribuía para a reprodução dos demais trabalhadores ao invés de uma categoria de produção. A posição de motorista era bastante específica e participava do processo de trabalho. Sua especificidade, motorista de pesca, era reconhecida legalmente a partir da exigência de uma qualificação formalizada de “carta de motorista” expedida pela Capitania dos Portos e que lhe permitia receber um salário duplo de referência, além das partes. Essa qualificação podia ser obtida formalmente através de algum curso reconhecido, porém em Jurujuba esse título era obtido pelo reconhecimento da capacitação espontânea como ajudante, inclusive porque os pescadores deste local entendiam que a formação de motorista através de curso era imprópria já que o motorista "de curso" não possuía a experiência do embarque. A carta, no entanto, representava o status, quem a possuísse poderia utilizá-la para fins de trabalho ou para um reconhecimento qualquer. Contudo, este motorista não poderia embarcar em outra categoria que não fosse esta. Mesmo mudando de barco, não poderia assumir posição inferior. Os armadores, porém, utilizavam-se de outros meios, ou seja, mesmo contra a legislação eles ocupavam as posições de motorista com os ajudantes de motorista. Os ajudantes aceitavam essa condição, pois passavam a ser remunerados de forma informal com mais uma parte além de estarem mais perto da sua posição almejada. Sabe-se que enquanto motorista, o profissional podia trabalhar na mesma categoria na Marinha Mercante, embora isto não ocorresse em Jurujuba. Quanto ao terceiro grupo, constata-se que a categoria de mestre-proeiro se formalizava através da carta de patrão de pesca. Esta categoria tinha direito a três salários de referência. Existiam também, para a obtenção do título, cursos formais de capacitação. Embora a posição de mestre-proeiro pareça se referir a duas posições distintas, ela não 67 podia ser ocupada por pessoas diferentes, mas sim pelo contramestre, ou seja, elas representavam dois momentos de uma mesma posição. A categoria de contramestre, portanto, se direcionava para a categoria de mestre-proeiro. Daí surgiam duas possibilidades: o mestre como posição suprema e legitimada, com grande conhecimento sobre a pesca e altamente qualificado; e o mestre desempenhando o papel do patrão, ou seja, como articulador dos seus interesses e da prática dos trabalhadores. A primeira possibilidade, portanto, trata da qualificação de proeiro associada à qualificação do trabalho de mestre da arte na pesca. Esta categoria se revestia de tamanha legitimidade sendo percebida como o apogeu de um exemplo de trabalhador da pesca. Quanto ao "patrão de pesca", constata-se uma maior ligação do mestre ao patrão, ou seja, do armador ou do seu encarregado, onde a prática do mestre caminhava de forma coerente com os desígnios do patrão. Dessa forma, na condução do processo de trabalho, o mestre vivia a dupla experiência enquanto pescador e interessado na remuneração pela partilha e enquanto representante e preposto do armador, trabalhando de acordo com os interesses deste. O armador, porém, tinha maior interesse pela função do “patrão de pesca” do que do mestre-proeiro. E assim podia agir de diferentes formas. A primeira delas se efetivava por meio de uma forçada associação, a partir da conversão do número de partes que cabiam ao mestre em uma sociedade nos lucros, ou seja, em uma maior participação na partilha. A segunda, tratava de boicotar o acesso interno à categoria de mestre, ocupando com seus herdeiros a posição de contramestre, o qual sucederia o mestre. A terceira implicava na prática da guarnição. Aí, o armador aproveitava o espírito de competição entre os trabalhadores com vantagens, uma vez que ele não tinha interesse em alocar parentes seus no comando do processo de trabalho. Desta forma ele podia estabelecer uma relação mais próxima e, portanto, de maior regalias com certos trabalhadores, de modo a rebaixar a autoridade do mestre. Tal fato acarretava a oposição do trabalhador privilegiado ao restante da guarnição, fazendo com que aumentasse a sua semelhança com o mestre. Diante deste quadro, o mestre poderia ter diferentes reações, já que a sua experiência era única e devia-se a todas essas circunstâncias por que passava ao longo de sua trajetória. Surgia então o problema da identidade entre o mestre e a guarnição que somada a outros motivos o levaria a distanciar-se de seus companheiros. Desta forma, o mestre preferia sempre se referir apenas à parte técnica da pescaria ao invés de falar daquela realidade existente ao longo de sua atuação como tal. 68 1.3.5 A COOPERAÇÃO NO TRABALHO Um outro aspecto importante a ser levantado, e já visto anteriormente, trata-se da existência de uma grande cooperação entre os trabalhadores durante o processo de produção na traineira. Excluindo-se a tarefa do cozinheiro e do motorista, as demais eram assistidas por todos e, portanto, podiam ser até mesmo criticadas mesmo por aqueles que ocupassem posições diferentes. A forma de cooperação aí, não chega a ser uma cooperação complexa, própria da produção capitalista, mas também não se trata mais da cooperação simples. Ou seja, existia uma certa proximidade entre as tarefas realizadas pela maioria dos trabalhadores, embora nem todos participassem de todas as tarefas durante o processo produtivo. Essa forma de cooperação acarretava uma indeterminação das atividades que cabiam a cada um, já que possibilitava ao trabalhador abranger grande parte do processo. A integração que ocorria, acabava por dar-lhe condições de avaliar o trabalho de cada trabalhador, comportando-se como verdadeiros censores uns dos outros. Tal fato ganhava importância devido ao interesse dos trabalhadores da pesca no preço de venda do pescado, que implicava na partilha. Esse controle mútuo, também percebido como cooperação mútua, ao mesmo tempo em que revela competição e colaboração das partes, revela também a forma de sociedade que existia entre a guarnição. 1.4 A BAÍA DE GUANABARA E O PROGRAMA DE DESPOLUIÇÃO DE SUAS ÁGUAS Nesta fase busca-se apreender as questões relativas à Baía de Guanabara, passando pela sua origem, pelas principais causas de sua poluição e por aspectos relacionados ao Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, o PDBG. Neste sentido, ressalta-se a importância do trabalho de pesquisa sobre o PDBG, realizado por Santos Neto (2002). Há muitos milênios atrás, segundo o Centro de Informações da Baía de Guanabara (CIBG - <http://www.cibg.rj.gov.br>), a Baía de Guanabara constituía-se de um rio cuja foz se abria largamente e ocupava a área situada entre o Pão de Açúcar e a Praia de Jurujuba. A Bacia de Campos, inicialmente, recebia as águas oriundas da drenagem natural que aí se dava. No entanto, à medida que novas formações foram surgindo, houve uma alteração no curso dos rios, implicando na separação de bacias. Tal fato, aliado às variações de nível da água do mar, implicou no surgimento da atual Baía de Guanabara, "Seio do Mar" na linguagem indígena. Até então, em suas águas se observava a existência de cardumes de 69 diferentes pescados, além de crustáceos e outras espécies. No entanto, no século XVI, já se observa, em suas encostas, o início da exploração da Mata Atlântica para obtenção de paubrasil e o seu desmatamento devido à produção de cana-de-açúcar. A partir do século XVII, com o crescimento da cultura da cana de açúcar e outras culturas secundárias, a fauna local é obrigada a abandonar essa região, constatando-se também a mudança na conformação dos rios que corriam para a Baía de Guanabara. Estes rios constituíam as vias de transportes do açúcar produzido, o qual era conduzido até a Europa através do Porto do Rio de Janeiro. Posteriormente deu-se, também pela via portuária, o transporte de ouro oriundo de Minas Gerais. No início do século XIX, esse escoamento já ocorre de forma mais vagarosa devido aos aterros existentes. A partir do ciclo do café, constata-se a construção de ferrovias e com elas a comercialização passou a ser realizada pela via terrestre, fato que reforça a questão dos alagamentos, criando regiões de represamento de águas. É neste contexto que a Bacia Hidrográfica da Baía de Guanabara e seus ecossistemas começam a sofrer danos que vão se agravando com o crescente desmatamento, provocando seca e erosão no solo. O desmatamento, visando a construção de barracos em morros, nesta região, também trouxe conseqüências desagradáveis, tais como alterações nas nascentes de água potável. O lixo e os dejetos oriundos da população que habitava nas favelas eram conduzidos pelas águas da chuva, até a Baía. No século XX, a população pobre, buscando maiores possibilidades de emprego no Rio de Janeiro, contribuiu para o aumento populacional da cidade, tendo a favela como uma das opções de habitação. Mais aterros foram sendo realizados e a região em volta da Baía foi se transformando. É neste mesmo século que se constata o desenvolvimento de um processo de degradação da Baía de Guanabara. Para tanto, contribuiu não só o aumento da população como também do número de indústrias em seu entorno, além da falta de comprometimento de sucessivas gestões no que se refere às questões sanitárias das áreas urbanas. A bacia que drena para a Baía de Guanabara constitui-se dos Municípios de Guapimirim, Nilópolis, Magé, Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti, São Gonçalo, Tanguá, Itaboraí e partes dos Municípios do Rio de Janeiro, Niterói, Petrópolis, Cachoeiras de Macacu, Nova Iguaçu e Rio Bonito, a maior parte deles situados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Atualmente, pode-se perceber que a Baía de Guanabara é o destino final de todos os efluentes líquidos produzidos no seu entorno e nas bacias dos rios e córregos que a nutrem. A poluição de suas águas provém, principalmente, das indústrias, da Refinaria Duque de Caxias- 70 Reduc - Terminais marítimos de petróleo, dos portos comerciais, dos postos de combustível, dos estaleiros, do lançamento de esgoto doméstico, dos vazadouros de lixo, da ocupação das margens dos rios e encostas, implicando no lançamento de lixo e esgoto doméstico sem controle. Como carga poluidora despejada todos os dias na Baía, tem-se a carga orgânica doméstica (DBO), orgânica industrial, metais pesados e lixo doméstico. Diante da situação crítica em que se coloca a Baía de Guanabara, foram criados procedimentos e ações no sentido de fazer cessar e de reparar os danos até então causados, para que se viabilize condições de sobrevivência do ecossistema local. De acordo com a literatura, constata-se, portanto, que nas águas da Baía, a pesca realizada, como meio de subsistência ou para fins comerciais, foi muito prejudicada. Também a vegetação local foi atingida, ou seja, os aterros construídos ilegalmente e a extração da madeira contribuíram para o desaparecimento de manguezais. Somado a isso tem-se a inviabilidade do comércio marítimo, em muitas partes da Baía, além das questões relativas ao assoreamento, ao impedimento da circulação de córregos (devido ao despejo de resíduos sólidos e à utilização de suas margens para fins de habitação), e ainda ao lançamento de esgoto sanitário in natura. Estes últimos implicam em situações de inundação propiciando o surgimento de enfermidades conduzidas pela água. Neste contexto, em Santos Neto (2002), verifica-se que vão surgindo iniciativas tais como as da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE), que desenvolveu, em 1978, o "Plano Diretor de Esgotamento Sanitário da Região Metropolitana do Rio de Janeiro", mas que não teve um avanço significativo. Em 1981, realizou-se um estudo acerca da situação sanitária da Baía de Guanabara e da origem da poluição de suas águas. A partir daí foi apresentada uma proposta de importantes ações a serem desenvolvidas. Em 1987, o governo estadual criou a "Comissão para a Recuperação Gradual do Ecossistema da Baía de Guanabara". Essa comissão era composta pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA, atual IBAMA), pela Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA), pela Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (SERLA), pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF) e pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano e Regional do Rio de Janeiro (SEDUR/RJ). Na década de 90, a preocupação com a recuperação das águas da Baía de Guanabara ganhou grandes proporções. Em 1991, foi assinado um convênio entre o Brasil e o Japão, o qual referia-se ao desenvolvimento de um conjunto de métodos e medidas visando controlar a poluição dessas águas. Este trabalho foi realizado em conjunto com a FEEMA. A partir daí, em 1992, a CEDAE fez algumas atualizações no "Plano Diretor de Esgotamento Sanitário da 71 Região Metropolitana do Rio de Janeiro". Neste mesmo ano, ressalta-se a importância da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro. A Agenda 21, documento aprovado nesta Conferência, contem uma lista de compromissos acordados pelos países signatários, colocando-os na direção do desenvolvimento sustentável. Em 1993, a administração do Estado do Rio de Janeiro criou, a "Comissão Coordenadora para a Execução do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG)". O PDBG é um projeto ambiental de grande importância. Ele tem como objetivo a redução de 90% da carga orgânica industrial; a redução (de 87% para 53%) da carga orgânica do esgoto lançado in natura; a redução de 97% da carga tóxica oriunda das indústrias; e a redução de 70% do volume de óleos e graxas; além de prever uma destinação própria para 90% do lixo gerado. (Relatório dos Empreendimentos - SOSP/ CEDAE/ SONDOTÉCNICA set / 97) Segundo a literatura, em curto prazo o Programa tem como meta a construção de um anel sanitário no entorno da Baía, impedindo que cheguem até ela as cargas de esgoto doméstico e industrial. Em médio prazo, o PDBG pretende restabelecer a situação ambiental da Baía; viabilizar uma melhor qualidade de vida à população que vive em sua área de influência; atualizar o modelo de gestão ambiental existente; e fortalecer as organizações municipais que respondem, legalmente, por ações que venham a trazer conseqüências favoráveis à qualidade ambiental da Baía de Guanabara. Quanto às metas de longo prazo, estas não foram estabelecidas, até o momento. A primeira etapa do Programa abrange ações nas áreas de saneamento (água e esgoto); resíduos sólidos (coleta e destino final); macrodrenagem; mapeamento digital; e programas ambientais complementares. Quanto ao Esgotamento Sanitário, o PDBG, por intermédio da CEDAE, atua na implantação de redes coletoras de esgoto; emissários terrestres e submarinos; além de realizar ligações domiciliares, assentar linhas de recalque, reformar e construir Estações Elevatórias. O Programa tem como prioridade as bacias mais densamente povoadas e com baixo poder aquisitivo, onde o risco sanitário é maior em conseqüência do lançamento de esgoto in natura. Os coletores-tronco e interceptores serão primordiais para o fim do perigo de contágio nas principais bacias passíveis de inundações. O Programa engloba a construção e ampliação de Estações de Tratamento de Esgotos (ETEs). Todas essas obras fazem parte de Sistemas implantados. Com as obras do Sistema Alegria, o Programa viabiliza a redução de 30% da carga 72 orgânica, atendendo a 46 bairros da Cidade do Rio de Janeiro. As obras do Sistema Sarapuí favorecem os Municípios de São João de Meriti, Belford Roxo, Mesquita e Nova Iguaçu, reduzindo a carga orgânica em 55%. O Sistema Pavuna beneficia os Municípios do Rio de Janeiro, São João de Meriti e Duque de Caxias, reduzindo a carga orgânica em 55%. Com o Sistema Penha, reduz-se a carga orgânica em 95%, atendendo localidades da Zona Norte e da Leopoldina, do Rio de Janeiro. O Sistema Paquetá reduz a carga orgânica em 99% e atende residentes e turistas da Ilha de Paquetá. Com as obras do Sistema Ilha do Governador, a carga orgânica é reduzida em 95%, atendendo a vários bairros. O Sistema Icaraí atende a 19 bairros do Município de Niterói, reduzindo a carga orgânica em 95%. O Sistema São Gonçalo contempla 30 bairros do Município e reduz a carga orgânica em 95%. O Sistema Marina da Glória trará melhorias para as condições sanitárias dos bairros antigos do Rio de Janeiro. Além disso, constata-se a realização de obras em 31 Favelas dos Municípios do Rio de Janeiro e Niterói, trazendo melhorias para as condições sanitárias e reduzindo a poluição. O PDBG supõe alcançar níveis mais satisfatórios de redução da carga orgânica lançada na Baía de Guanabara, futuramente, a partir da segunda etapa do Programa. Quanto ao Abastecimento de Água, o PDBG pretende tornar mais eficiente o serviço de abastecimento e distribuição de água da CEDAE. O Programa engloba obras no sentido de fornecer água a quinze Favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro, Ilha do Governador e Niterói. Também abrange a implantação de adutoras e de redes e troncos de distribuição, além da realização de ligações domiciliares e construção de reservatórios. O Sistema Éden e o Sistema Coelho da Rocha têm como objetivo melhorar as condições de abastecimento de água em vários bairros do Município de São João de Meriti. O Sistema Belford Roxo, o Sistema Retiro Feliz e o Sistema Lote XV pretendem melhorar as condições de abastecimento de água em vários bairros do Município de Belford Roxo. O Sistema Olavo Bilac, o Sistema Parque Fluminense e o Sistema 25 de Agosto têm como objetivo a melhoria das condições de abastecimento de água em diversos bairros do Município de Duque de Caxias. O Sistema Marques Maneta assim como o Sistema Colubandê visa favorecer as condições de abastecimento de água em vários bairros do Município de São Gonçalo. O Sistema Ilha do Governador objetiva melhorar as condições de abastecimento de água para as populações menos favorecidas da Ilha do Governador. Constata-se também que o Programa atuou em 15 Favelas dos Municípios do Rio de Janeiro e Niterói, objetivando acabar com o despejo in natura na Baía de Guanabara. Ressalta-se, ainda, as ações de Reforço Institucional. Estas contemplam a informatização do Cadastro Técnico da CEDAE, visando modernizar as ações referentes ao 73 setor de projetos, manutenção e operação. A micromedição ocorre a partir da provisão e instalação de hidrômetros, tornando possível a diminuição das perdas no sistema de abastecimento e distribuição de água. A partir da ampliação do Centro de Controle Operacional (CCO) do Guandu, será possível a macromedição da vazão, volume e pressão da água no sistema, possibilitando a informação sobre produção e distribuição de volumes reais. Quanto aos Resíduos Sólidos, o Programa visa recolher 90% do lixo produzido nos Municípios. Também estão previstos a coleta do lixo hospitalar e a adequação do destino final dos resíduos, além de um sistema de drenagem que viabilizará recolher o resíduo líquido do lixo (chorume). Com ações deste tipo, pretende-se eliminar os lixões que darão lugar aos aterros sanitários e reduzir o assoreamento de rios e canais, além de impedir que o chorume seja absorvido pelo subsolo. Está prevista a construção de prédios administrativos e galpões de reciclagem e de peneiramento nas Usinas de Niterói, São Gonçalo e Magé. Nos Aterros de Niterói, São Gonçalo e Magé será construído prédio de incinerador e será realizada a reforma da casa de balança e da base do aterro sanitário. Serão construídas unidades de apoio à coleta domiciliar de lixo nos Municípios de Magé, Duque de Caxias, São Gonçalo, Nilópolis, São João de Meriti e Guapimirim. Serão realizadas obras de adequação das Estações de Transferência de Lixo de Nilópolis e São João de Meriti. Serão fornecidos equipamentos de coleta de lixo e equipamentos móveis, tais como caminhões basculantes, veículos coletores etc, para os Municípios de Niterói, Duque de Caxias, São João de Meriti, Guapimirim, São Gonçalo, Magé e Nilópolis. A unidade de produção de flocos PET, conta com um galpão industrial e equipamentos, e implicará na comercialização do PET, além de atrair um maior número de mão-de-obra não qualificada para as atividades de reciclagem. Quanto à coleta seletiva, triagem e reciclagem, serão erguidas baias para separar os resíduos sólidos recicláveis e instalados equipamentos em postos de apoio a coletas, fato que propiciará a criação de cooperativas ou associações de catadores de lixo. Também constam desse Programa a elaboração de projeto executivo de restauração e melhorias nos aterros sanitários de Niterói e São Gonçalo, bem como a elaboração de um diagnóstico sócio-econômico das áreas onde o Estado interfere. Os cursos oferecidos possibilitarão a formação técnica e o engajamento de um número considerável de catadores de lixo, dos municípios de Niterói e São Gonçalo, no mercado formal de trabalho. O Programa abrange os Municípios de Niterói, Magé, São Gonçalo, Guapimirim, Duque de Caxias, Nilópolis e São João de Meriti, cujas Prefeituras recebem 74 apoio institucional, assistência técnica e capacitação de pessoal. Para o controle de inundações, o Programa visou obras de macrodrenagem e implantação da rede hidrometeorológica, possibilitando a observação de índices pluviométricos dos rios e canais, apontando áreas de risco de ocorrência de enchentes. As obras de drenagem dos rios da bacia do rio Acarí englobam a recuperação de muros de contenção e a execução de canalizações e galerias. As obras realizadas no Rio das Pedras, Rio Timbó e Rio Piraquara, têm como objetivo o controle de inundações sofridas pelas comunidades justafluviais. Um estudo sobre a circulação hidrodinâmica no Canal do Fundão, Canal do Cubha e áreas próximas, no Município do Rio de Janeiro, é proposto pelo Programa, a fim de determinar o que precisa ser feito para revitalizar a circulação da maré naquela área da Baía de Guanabara. Além disso, o PDBG também propõe um estudo geotécnico com o objetivo de dragar o canal. Um outro componente do Programa, o mapeamento digital, consiste na elaboração de um cadastro digitalizado dos Municípios situados na Bacia da Baía de Guanabara, viabilizando mudanças na arrecadação tributária, no planejamento urbano e na gestão ambiental. Para tanto são realizados trabalhos de aerofotogrametria de áreas urbanas dos Municípios e da área da Bacia Hidrográfica da Baía de Guanabara, além de levantamentos de dados de campo, processamento e análise destes dados visando atualizar os cadastros imobiliários e de logradouros. A CIDE, Fundação Centro de Informações e Dados do Rio de Janeiro, é a responsável pela criação do sistema de armazenamento de dados. O Programa, no que tange à capacitação e apoio técnico às Prefeituras, ainda inclui o estabelecimento de locais próprios para a implantação e operação de sistemas de cadastros georeferenciados. Além disso, também faz parte do Programa a estabilização dos trabalhos de implantação dos sistemas de geoprocessamento e a concepção de uma metodologia de índices de sustentabilidade para os Municípios de Niterói, Itaboraí, Guapimirim, São Gonçalo, Cachoeiras de Macacu, Nova Iguaçu, Magé, Belford Roxo, Duque de Caxias, Nilópolis, São João de Meriti, Tanguá e Rio Bonito. A partir dos programas ambientais complementares, o PDBG pretende modernizar os órgãos da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMADS) visando o monitoramento das condições ambientais, a fiscalização e controle das atividades que geram poluição e a recuperação das áreas que sofreram degradação ambiental. Objetiva melhores condições da infra-estrutura da Secretaria e de suas instituições vinculadas, priorizando a informatização e inclusive, ligando em rede todo o sistema ambiental nos Municípios do Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo, São João de Meriti, 75 Nilópolis, Belford Roxo, Guapimirim, Nova Iguaçu, Cachoeiras de Macacu, Duque de Caxias, Rio Bonito, Tanguá, Itaboraí e Magé. O Laboratório Central da FEEMA será modernizado e receberá equipamentos de informática. A equipe técnica da Fundação receberá capacitação para atuar nesta área. A aquisição de veículos será importante para as atividades de monitoramento e fiscalização. Dentre outras realizações, o Programa prevê, a partir do fornecimento de produtos e serviços, a implementação do Sistema de Informação para Gestão Ambiental da Baía de Guanabara, além de tornar disponível em rede as informações a respeito da Bacia da Baía. O PDBG também propõe um mapeamento digitalizado das atividades de risco ambiental e desenvolve um programa de educação ambiental. Este último é considerado de grande importância no sentido de trazer modificações de comportamento, atitudes e conhecimentos fundamentais para a construção de uma sociedade auto-sustentável. Tem como objetivo o treinamento de professores da rede pública, para atuarem como multiplicadores, através das escolas em que trabalham. O Centro de Referência de Educação Ambiental viabiliza um maior apoio às atividades de educação ambiental, além de prestar informações acerca das questões ambientais e do PDBG. Também está prevista a capacitação de profissionais do setor público em gestão ambiental, publicações técnicas de órgãos da área ambiental, e a criação de modelo de simulação que represente o sistema ambiental da Bacia da Baía de Guanabara. Serão distribuídos livros para as escolas da rede pública dos Municípios anteriormente citados, visando a educação ambiental. O subprojeto de Mobilização Social - Participação Comunitária, consta da conscientização da população no que diz respeito à conservação das condições operacionais das intervenções técnicas desenvolvidas, além da criação de Banco de Dados das lideranças comunitárias nos locais onde o PDBG realiza obras. A Revisão do Zoneamento Industrial da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e o Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia da Baía de Guanabara são projetos desenvolvidos no âmbito da gestão ambiental. O primeiro prevê o mapeamento da situação das indústrias na Região Metropolitana, além da elaboração de banco de dados georeferenciados da região, principalmente no que tange às indústrias. Está prevista também a provisão de subsídios para viabilização do licenciamento ambiental das indústrias novas e reformulação no Zoneamento Industrial existente, promovendo a descentralização administrativa, contribuindo para um crescimento industrial ordenado e sustentável. O Plano Diretor de Recursos Hídricos objetiva disciplinar a utilização das águas e prevenir e controlar 76 inundações e poluição acidental. Está prevista ainda a criação de planos diretores e de manejo, sugerindo novos modelos de gestão administrativa e ambiental para parques. A política de proteção e recuperação da Mata Atlântica no Estado do Rio de Janeiro inclui o Programa de consolidação de Unidades de Conservação da Natureza (UCNs), na Bacia da Baía de Guanabara. Neste sentido pretende-se preservar a área remanescente da Mata Atlântica e resguardar as nascentes dos rios que mantém o fornecimento de água nos Municípios. A Estação de Tratamento de Água do Guandu (ETAG) está situada no Município de Nova Iguaçu e faz uso das águas do rio Guandu. Ela fornece água para o Município do Rio de Janeiro, Baixada Fluminense e parte do Município de Itaguaí. Antes de ser consumida no Estado do Rio de Janeiro, a água passa por um longo processo de tratamento e posteriormente passa pelo sistema de adução. O PDBG modernizou o Laboratório de Controle de Qualidade da ETA Guandu, que juntamente com o Centro de Controle Operacional, controla todo o processo de tratamento de água, e através de freqüentes e rígidas análises laboratoriais, assegura a condição de água potável, dentro dos níveis de exigência estabelecidos pelas Organizações de Saúde. Apesar das atividades já iniciadas, os índices de poluição da Baía ainda são alarmantes. No entanto, a segunda fase do Programa ainda não tem data para começar, o que não aponta para soluções muito rápidas, na medida em que nesta fase estaria se desenvolvendo ações mais precisas e de maior impacto. 1.5 CULTURA E IDENTIDADE Nesta parte, objetiva-se tecer subsídios para um melhor entendimento sobre o binômio cultura e identidade. Inicia-se a discussão acerca da cultura e da identidade, a partir de Bosi (1998, p. 16), definindo que "cultura é o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que se devem transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de um estado de coexistência social". Segundo Sahlins (1997 p. 1), a cultura distingue "a organização da experiência e da ação humana por meios simbólicos. As pessoas, relações e coisas que povoam a existência humana manifestam-se essencialmente como valores e significados, significados que não podem ser determinados a partir de propriedades biológicas ou físicas". 77 Ainda para este autor, a arrumação e desarrumação do mundo em termos simbólicos, a cultura, por assim dizer, é a capacidade particular do homem. Sahlins (1997) afirma que embora não se constate o fim dos povos entendidos como primitivos, a sua cultura vem sofrendo uma perda de integridade devido à interpenetração de culturas em função do sistema capitalista mundial vigente. O autor destaca a cultura como "demarcação de diferenças", enfatizando que as formas e regras culturais são explicitamente estabelecidas e não permitem a interferência proposital da ação do homem. Ele acrescenta que o homem estabelece as bases de sua experiência de acordo com suas tradições e sua percepção de mundo. Estas levam no seu interior a "moralidade" e as "emoções" ligadas por natureza ao seu próprio processo de transmissão. O mundo é ensinado ao homem e não descoberto por ele. (SAHLINS 1997, p. 4-5) Turner (1987, p. 6) contribui para esta discussão afirmando que cultura é "o sistema de formas significativas de ação social", desta forma, ela é percebida como o modo através do qual um povo dá-se a conhecer exatamente e se faz existir enquanto "entidade social em relação à sua situação histórica em transformação". E ainda segundo esse autor, a "sobrevivência cultural" no mundo moderno baseia-se na tentativa dos povos se apropriarem desse mundo nos seus próprios termos. Inicia-se a discussão sobre a identidade, a partir de Hall (2001) que ressalta três percepções acerca desta. O autor destaca a concepção de identidade do sujeito do iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno. Assim, para Hall (2001, p.10-11), o sujeito do Iluminismo fundamentava-se no entendimento do homem como um indivíduo completamente "centrado", "unificado", com inteligência, sendo consciente e atuante. Seu "centro" baseava-se num ponto essencial interior, que se manifestava de início no nascimento da pessoa e com ela crescia, conservando-se sempre igual durante a vida do sujeito. "O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa.” Constatando-se assim, que se tratava de uma percepção bastante individualista do sujeito e de sua identidade. Além do que, o sujeito do Iluminismo era freqüentemente visto como masculino. Quanto à concepção do sujeito sociológico, pode-se dizer que esta revelava a progressiva abrangência do mundo moderno e a noção de que este ponto essencial interior do homem não gozava de autonomia e não se bastava por si só, era isto sim, constituído na relação com outros indivíduos considerados de grande importância para ele. Estes "mediavam 78 para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava”. (HALL, 2001, p. 11) Desta forma, a identidade é desenvolvida a partir da ação que se exerce mutuamente entre o eu e a sociedade. O sujeito possui um ponto essencial dentro de si, o "eu real", no entanto, este se constitui e sofre alterações numa comunicação ininterrupta com os mundos culturais externos e as identidades que esses mundos apresentam. Nesse entendimento do sujeito sociológico, a identidade ocupa a área delimitada entre o mundo interior do indivíduo e o mundo exterior a ele. O que ocorre é que o sujeito ao se projetar nessas identidades culturais, concomitantemente que internaliza seus significados e valores, fazendo com que constituam uma parte sua, colabora para o nivelamento de seus sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupa no mundo social e cultural. Pode-se dizer que a identidade liga o sujeito à estrutura. Ela torna estáveis não só os sujeitos como também os mundos culturais em que eles vivem, fazendo-os mais "unificados e predizíveis" mutuamente. (HALL, 2001, p. 11-12) Tudo isso, no entanto, está em mudança. Hall (2001) afirma que o sujeito, que antes apresentava uma identidade unificada e constante, hoje, ele apresenta não apenas uma, mas inúmeras identidades, inclusive elas podem se opor ou não estarem ainda bem estabelecidas. E ainda segundo este autor, o processo de identificação, por meio do qual o sujeito se projeta em suas identidades culturais, encontra-se mais transitório e passível de modificações Assim sendo, esse processo cria o sujeito pós-moderno, entendido como aquele que não possui uma identidade constante e estável. A partir de Hall (1987), constata-se que a identidade vem a ser uma "celebração móvel". Ela desenvolve-se e sofre alterações de forma ininterrupta de acordo com o modo com que o sujeito é percebido ou "interpelado" nos sistemas culturais que o cercam. O autor afirma que a identidade “é definida historicamente, e não biologicamente". O sujeito toma para si identidades diferentes nas variadas situações. Estas identidades não são "unificadas" em torno de um "eu" coeso. Tem-se, isto sim, identidades que se opõem, apontando para variados rumos. Assim sendo, as identificações do sujeito vão sempre se alterando. A identidade completamente unificada e coerente não existe. Percebe-se que na proporção em que se tornam mais numerosos os "sistemas de significação e representação cultural", o sujeito é colocado frente a frente com inúmeras e diferentes identidades viáveis, as quais estariam disponíveis para que ele se identificasse mesmo que fosse de maneira transitória. Costuma-se dizer que os tempos modernos trouxeram uma nova visão do sujeito 79 individual e sua identidade. As mudanças ocorridas na época moderna tornaram o indivíduo livre de seus pilares firmados nas tradições e nas estruturas, consideradas até então como imutáveis. A forma como se classificava um indivíduo, o seu status, prevalecia a qualquer percepção da pessoa como absoluta. O surgimento do "indivíduo soberano", ocorrido entre o Humanismo Renascentista, que posicionou o Homem no centro do universo (século XVI) e o Iluminismo que colocava o Homem como racional, livre das intransigências (século XVIII), significou, portanto, a descontinuidade com a época passada. Para essa nova visão do Homem, também colaboraram movimentos tais como a Reforma, o Protestantismo e as revoluções científicas. Para Hall, a identidade vai se desenvolvendo com o passar do tempo, de forma inconsciente e em contínuo processo de formação. Ela não nasce com o indivíduo. O autor sugere que fale-se da identidade não como algo completo, mas sim como uma identificação num processo que nunca termina. Segundo ainda este autor, a identidade passa a existir não somente a partir da identidade que o indivíduo já carrega em seu interior, mas também em função daquilo que externamente vem completá-la, mediante as maneiras pelas quais o indivíduo supõe que é percebido pelo outro. Woodward contribui para essa discussão, afirmando que as identidades ganham sentido a partir da linguagem e dos sistemas simbólicos através dos quais elas são representadas. Desta forma, a identidade é determinada através de símbolos. Há uma correspondência entre a identidade do indivíduo e aquilo que ele usa. Pode-se dizer ainda, que “a construção da identidade é tanto simbólica quanto social”. (WOODWARD, 2000, p. 8-10) Constata-se que povos tentam estabelecer novamente suas identidades, procurando no passado essas identidades lá esquecidas. Contudo, dessa forma eles possivelmente estarão criando novas identidades. Segundo Woodward (2000, p. 17), “é por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos”. Ou seja, aquilo que se é ou aquilo no qual é possível se tornar deve-se aos sistemas simbólicos. O autor afirma que as formas de diferença “simbólica” e “social”, nas relações sociais, são determinadas através de "sistemas classificatórios". Estes sistemas estabelecem o princípio de diferença a uma população separando-a em no mínimo dois grupos opostos: “nós e eles”. Woodward (2000) ressalta que as identidades são percebidas a partir do modo como a cultura determina fronteiras e estabelece a diferença. A diferença é o que afasta uma 80 identidade da outra, distintas muitas vezes pela oposição. Pode-se dizer que a marcação da diferença é fundamental em todo sistema de classificação. As culturas geram sistemas classificatórios, criando fronteiras simbólicas. Estabelecem o que está fora e o que está dentro, determinando se uma prática é culturalmente aceita ou não. "Essa classificação ocorre, (...), por meio da marcação da diferença entre categorias”. (WOODWARD, 2000, p. 49) O autor discute um outro aspecto importante para esse estudo, trata-se da subjetividade. Por subjetividade entende-se a forma como o sujeito percebe o seu eu. Ela inclui os seus pensamentos e sentimentos pessoais, conscientes e inconscientes, os quais formam as compreensões que o sujeito faz acerca de quem é ele. Por abarcar o inconsciente, a subjetividade apresenta contradições. A partir da concepção de subjetividade, torna-se viável um estudo abarcando os sentimentos contidos no processo de elaboração da identidade e a forma como cada indivíduo se lança e se prende a identidades particulares. Segundo Silva (2000, p. 74), a identidade é aquilo que se é, e dá como exemplo: "sou brasileiro". Desta forma, a identidade pode ser entendida como algo sobre o qual não se admite dúvidas e que desfrute de autonomia. Ou ainda, “(...) a identidade só tem como referência a si própria: ela é autocontida e auto-suficiente”. Pode-se dizer também que a diferença se basta por si só, embora, contrariamente à identidade, a diferença constitui-se daquilo que o outro é, por exemplo: "ela é mulher". Neste contexto, a diferença, tal e qual a identidade, é entendida como aquilo que faz alusão a si mesmo. No entanto, constata-se que identidade e diferença são altamente dependentes uma da outra. O modo afirmativo como o sujeito se refere à identidade tende a ocultar essa relação. Ou seja, é devido ao fato de existirem pessoas de variadas nacionalidades que se afirma que alguém é francês, por exemplo. As afirmações a respeito da diferença não têm cabimento se não estiverem relacionadas com as afirmações concernentes à identidade. Afirmar que o sujeito é brasileiro, é o mesmo que expressar que ele não é francês, italiano etc. As afirmações referentes à diferença resultam ainda de uma sucessão, embora não revelada, de pronunciamentos que negam as demais identidades. Pode-se dizer que a identidade e a diferença dependem uma da outra mutuamente. Ambas jamais se separam. A identidade e a diferença são dependentes entre si e são também a conseqüência do modo como se dá a linguagem, ou seja, elas não são dadas pela natureza, elas são produzidas. Ambas são construídas social e culturalmente. 81 Afirmar a identidade é o mesmo que delimitar fronteiras, distinguir o que está excluído e o que está incluído. Essa divisão, ou melhor, essa classificação do mundo social entre "nós" e "eles", vem consolidar as relações de poder. O processo classificatório é de grande importância. A sua compreensão pode se dar a partir da divisão e da disposição do mundo social em grupos. A identidade e a diferença estão ligadas aos diferentes modos através dos quais a sociedade cria as classificações e vale-se delas. Estas últimas são construídas na perspectiva da identidade. "Dividir e classificar significa, neste caso, também hierarquizar. Deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados.” (SILVA, 2000, p. 82) Butler (1999), colabora com esta discussão ao desenvolver o conceito de performatividade. Este, ao invés de ressaltar a identidade como algo que descreve, tal como algo é, e cuja notoriedade se mantém pela noção de representação, ressalta a concepção do vir a ser, entendendo que a identidade está sempre em andamento e sempre se modificando. Para a autora, a produção da identidade é uma questão de performatividade. Ao se entender que a identidade e a diferença são criadas, equivale dizer que as relações entre as diversas culturas existentes abarcam relações de poder. A identidade e a diferença não possuem uma existência anterior, ou seja, elas não existiram o tempo todo, muito pelo contrário, ambas são incessantemente produzidas e continuamente criadas novamente. Assim sendo, "a identidade e a diferença têm a ver com a atribuição de sentido ao mundo social e com disputa e luta em torno dessa atribuição”. (SILVA, 2000, p. 96) Hall (2000) colabora com essa discussão apontando que as identidades teriam seu início num passado histórico com o qual elas conservariam uma correlação. Através dos recursos da história, da cultura e da linguagem é que se dá a criação do modo como vem-se a ser e não do que se é. As identidades estão voltadas para aspectos tais como quem o sujeito pode vir a ser, ou ainda, a forma como veio sendo representado e cuja representação implica no modo como representa a si mesmo. Elas são ligadas à tradição, porém estão em constante transformação. Elas surgem da narrativização do eu, mas a natureza necessariamente ficcional desse processo não diminui, de forma alguma, sua eficácia discursiva, material ou política, mesmo que a sensação de pertencimento, ou seja, a "suturação à história" por meio da qual as identidades surgem, esteja, em parte, no imaginário (assim como no simbólico) e, portanto, sempre, em parte, construída na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo fantasmático. (HALL, 2000, p. 109) 82 As identidades são, portanto, produzidas no interior do discurso, ou seja, são criadas em situações históricas e institucionais particulares, dentro de constituições e práticas discursivas também particulares, passando ainda por estratégias e iniciativas particulares. Estão relacionadas com situações de poder. São fragmentadas, apresentando diferenciações internas e sendo caracterizadas pela diferença e pela determinação do que fica fora, do que não está incluído. Quanto à reelaboração cultural, Sahlins (1997) aponta como exemplo, os povos que passaram pelo cerco do colonialismo e que agora tentam incorporar o sistema mundial ao seu sistema de mundo próprio. Segundo Latour (1996), diferentemente do que parece, as culturas percebidas como em processo de extinção estão muito vivas, redescobrindo seu passado e propagando-se. Elas não se entregaram à uniformidade do mercado global e do sistema capitalista. Para Watson (1958), as conseqüências do industrialismo e do trabalho remunerado sob a forma de salário apontam para o fato de que uma sociedade procurará se adaptar às novas circunstâncias mediante as instituições sociais já estabelecidas. Essas instituições continuarão existindo mesmo depois de passar pelo processo de mudança social, porém, seus valores serão outros e estarão inseridos em um outro sistema social. Alverson (1978) acrescenta que a incorporação dos aspectos da época moderna na "auto-identidade" constitui uma nova produção. Pode-se dizer que a transformação da identidade é conseqüência não só da forma como um povo percebe as modificações nas suas condições materiais, como também, da forma como são forçados a se engajarem naquilo determinado pelas instituições da cultura industrial. Hannerz (1990) ressalta que nos tempos atuais há uma cultura mundial, a qual consiste numa espécie de organização em que se administra as diversidades ao invés de se contestar a uniformidade. E ainda para Wagner (1975), os costumes passam a ser conscientizados em função mesmo da sua capacidade de serem postergados, em situações como aquela em que povos com costumes bem diferentes vivem muito próximos uns dos outros. Nesses casos, o que se percebe muitas vezes é que esses costumes, além de um conjunto de qualidades morais e emocionais adequados, tendem a ser forçadamente incorporados pelos jovens. Retomando-se os conceitos de cultura de Bosi (1998) e Sahlins (1997) apresentados antes, e os relacionando com a problemática da identidade, pode-se obter algumas conclusões importantes para este trabalho. Se a cultura compreende a elaboração simbólica da experiência e se a experiência dos 83 homens tem como mediação fundamental as necessidades de reprodução material e social destes; pode-se então compreender a identidade como uma forma de agregação dos indivíduos a partir do estabelecimento de proximidades que se constroem no campo da reprodução material e simbólica. Mais especificamente, a imersão histórica de um grupo em um conjunto de atividades cotidianas de reprodução material, e as formas simbólicas que se agregam a estas, podem ser as matérias-primas para a construção da identidade. É a partir deste viés mais específico, que o problema da identidade entre os pescadores de Jurujuba será investigado. CAPÍTULO 2 - CARACTERIZAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA DA COMUNIDADE DE JURUJUBA Neste Capítulo busca-se traçar um perfil da população pescadora de Jurujuba, a partir da análise de dados quantitativos obtidos com a aplicação de 249 questionários, em uma amostra de famílias no bairro de Jurujuba em Niterói/RJ. O bairro de Jurujuba subdivide-se em localidades, e segundo a estimativa do Programa Saúde da Família (PSF), que lá atua, existiam cerca de 1173 famílias, em 2002. A entrada no campo foi feita através da Associação de Moradores local e teve início em março de 2002. A composição do questionário fechado, que constituiu o instrumento de coleta de dados, foi realizada em conjunto com a Associação. Vale ressaltar que a proposta inicial de questionário de coleta de dados veio a incluir variáveis que foram demandadas pela Associação. Para a elaboração do levantamento sócio-econômico do bairro de Jurujuba, foi feito um projeto de extensão comunitária institucional através da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde a autora dessa dissertação faz parte do quadro docente. Para a aplicação dos questionários sócio-econômicos, contou-se com a participação de um aluno bolsista de extensão da UFF. Adotou-se como critério, aplicar os questionários em 20% dos domicílios de cada localidade. Na medida em que o bairro de Jurujuba é constituído de morros, definiu-se que a pesquisa seria feita seguindo as ruas, desde a sua parte mais baixa, até o seu ponto mais alto, uma vez que os domicílios que se encontram na rua principal, e portanto na parte mais baixa do morro, apresentam melhores condições, inclusive de saneamento, diferindo dos demais domicílios situados ao longo da subida dos morros. Com esses questionários buscou-se identificar características sócio-econômicas atuais da população. Desta forma procurou-se apreender as seguintes informações: composição da família; distribuição etária; tempo de residência; escolaridade; ocupação; renda; desemprego 85 e tempo de desemprego. Os dados quantitativos, oriundos desses questionários, foram obtidos, portanto, desagregados por áreas, e sua coleta estendeu-se até junho de 2002. Foram tabulados através de cruzamentos realizados no programa SPSS, contando com a assessoria do Departamento de Estatística da UFF. As Características Sócio-econômicas A amostra dos domicílios indicou que os núcleos familiares constituíam-se, em média, de 3,33 pessoas, o que permite uma estimativa de 3906 habitantes para a população do bairro (3906 + 136 habitantes, com 95% de confiança). Nesta primeira Tabela abaixo pode-se observar a proporção da População Economicamente Ativa (PEA) do bairro de Jurujuba. Ao somar-se os indivíduos que trabalham e aqueles que procuram emprego, percebe-se que eles atingem a proporção de 51,3% a 58,3% (54,8% + 3,5%, com 95% de confiança) da população local. Nos demais se encontram não somente indivíduos dependentes economicamente dos indivíduos ativos como também os aposentados. Estes últimos, na população, estão entre 13,1% e 20,9% (17% + 3,9%, com 95% de confiança) dos não economicamente ativos. Jurujuba - Número de indivíduos, segundo a inserçãosegundo em atividade TABELA 1 - Jurujuba - Número de indivíduos, a inserção em atividade econômica - 2002 econômica - 2002 Inserção em atividade econômica PEA Total Número de indivíduos Percentual Trabalhando 355 44,8 À procura de emprego 79 10,0 Economicamente inativos 359 45,2 793 100,0 Na Tabela 2 seguinte, pode-se perceber o número total de indivíduos que ainda encontra-se vinculado à pesca, na PEA do bairro. Como vê-se, o número de pescadores na PEA é bastante pequeno, se levar-se em conta que Jurujuba é considerada ainda uma "comunidade de pescadores". Estima-se, com os dados obtidos na amostra, que o total de pescadores esteja, com 95% de confiança, entre 5,7% e 8,5% (7,1% + 1,4%) da população 86 total do bairro, o que permite concluir que, em média, existem aproximadamente 275 pescadores em Jurujuba, pertencentes à cerca de 85 domicílios. Talvez este dado explique o fato de que a própria sede da Colônia de Pesca Z-08 encontra-se fechada, em estado de abandono e a Associação de Pescadores local encontra-se em processo de reativação nos dias atuais. No entanto, a imagem que o bairro tenta projetar para o conjunto do Município ainda se vincula à idéia de uma comunidade pesqueira. Um exemplo disto encontra-se na festa do Padroeiro da mesma, "São Pedro", realizada no mês de junho. Nesta ocorre uma procissão de barcos e na festa realizada no ano de 2003 encontrou-se um espaço reservado àqueles que teriam feito a história da pesca no local. Assim, a imagem que a comunidade projeta se assemelha a uma performance discursiva que não se concretiza nos dados encontrados nesta pesquisa. TABELA 2 - Jurujuba - Número de pescadores no total na Jurujuba - Número de pescadores no total da PEA identificados da PEA identificados amostra - 2002 na amostra - 2002 Número de pessoas Percentual Pescadores 56 12,9 Não pescadores 378 87,1 434 100,0 Total Dentre o número de pescadores encontrados na amostra, pode-se dizer, conforme demonstrado na Tabela 3 a seguir, que 78,6% deles são chefes de família, 1,8% são cônjuges de chefes de família, e menos de 20% são filhas ou filhos. Isto parece indicar que os pescadores são em geral indivíduos de maior idade que já constituíram suas famílias. Além disto, parece não estar ocorrendo um processo de continuidade da atividade pesqueira dentro dos núcleos familiares. Os dados obtidos apontaram ainda para o fato de que somente 18% dos pescadores passam para seus filhos a hereditariedade na pesca, ou seja, têm filhos trabalhando na pesca. 87 Jurujuba - Pescadores segundo- aPescadores tipificaçãosegundo de membro da família - 2002 TABELA 3 - Jurujuba a tipificação de membro da família - 2002 Count Número de pescadores Percentual Chefe de família 44 78,6 Cônjuge 1 1,8 Filho/filha 11 29,6 19,6 56 100,0 Classificação do membro da família Total No Gráfico1 abaixo, pode-se constatar a idade dos chefes de família que se dizem pescadores na amostra. Vê-se que a média alcança pouco menos de 50 anos. Jurujuba - Idade dos chefes de família pescadores - 2002 12 Número de pescadores 10 8 6 4 2 Std. Dev = 9,81 Mean = 49,8 N = 44,00 0 30,0 35,0 40,0 45,0 50,0 55,0 60,0 65,0 70,0 IDADE Gráfico 1 - Jurujuba - Idade dos chefes de família pescadores - 2002 Quanto à idade dos filhos que são pescadores, identificados na amostragem, pode-se perceber conforme Gráfico 2 seguinte, que a sua média encontra-se em pouco mais de 25 anos. É nesta idade que se concentra a parte mais significativa destes, o que corrobora as 88 assertivas apresentadas anteriormente, pois poucos são os filhos de pescadores em idade mais jovem. Jurujuba - Idade dos filhos pescadores - 2002 4,0 Número de pescadores 3,0 2,0 1,0 Std. Dev = 6,90 Mean = 25,3 N = 11,00 0,0 17,5 20,0 22,5 25,0 27,5 30,0 32,5 35,0 37,5 IDADE Gráfico 2 - Jurujuba - Idade dos filhos pescadores - 2002 No Gráfico 3 a seguir, que corresponde à idade de todos os pescadores da população pesquisada, pode-se notar que a média fica pouco abaixo dos 45 anos. Porém existe uma sobreposição da idade dos pais com a dos filhos, na faixa dos 35 anos. Os dois picos neste Gráfico evidenciam a existência de dois grupos de pescadores: os pais com a idade modal em torno dos 50 anos e os mais jovens (incluindo os filhos) com a concentração em torno dos 35 anos de idade. 89 Jurujuba - Idades dos pescadores - 2002 12 Número de pescadores 10 8 6 4 Std. Dev = 13,49 2 Mean = 44,8 N = 56,00 0 15,0 25,0 20,0 35,0 30,0 45,0 40,0 55,0 50,0 65,0 60,0 70,0 IDADE Gráfico 3 - Jurujuba - Idade dos pescadores - 2002 Como vê-se na Tabela 4 abaixo, a grande maioria dos chefes de família da comunidade é do sexo masculino, acompanhando uma tendência nacional. TABELA 4 - Jurujuba - Chefes de família, segundo o sexo - 2002 Jurujuba - Chefe de família, segundo o sexo - 2002 Sexo Número de Número deChefe Chefes de família de família Freqüência percentual masculino 219 88,0 feminino 30 12,0 Total 249 100,0 Ao averiguar-se a situação dos chefes de família de acordo com a sua ocupação, percebe-se, na Tabela 5 seguinte, que de 13,0% a 22,4% (17,7% + 4,7% com 95% de confiança) deles trabalham na atividade pesqueira, indicando o pequeno peso da pesca como atividade econômica que viabiliza a reprodução material das famílias que ali residem. 90 TABELA 5 - Jurujuba - Chefes de família, segundo a ocupação com a pesca - com 2002a pesca - 2002 Jurujuba - Chefes de família, segundo a ocupação Número de chefes de família Freqüência percentual Pescador 44 17,7 Não pescador 205 82,3 249 100,0 Total Dentre esses chefes de família que trabalham na pesca, constata-se, conforme Tabela 6 abaixo, que 45,5% (45,5% + 12,4%, com 95% de confiança na população de pescadores) deles trabalham também em uma segunda atividade. Este dado mostra, mais uma vez, o quanto a atividade pesqueira não mais caracteriza o bairro, pois além de somente cerca de 17,7% dos chefes de família serem pescadores, por volta da metade destes desenvolvem outra atividade remunerada. Jurujuba - Chefes de família pescadores, conforme a existência de uma TABELA 6 - Jurujuba - Chefes de família pescadores, conforme segunda ocupação 2002 a existência de uma segunda ocupação - 2002 Número de chefes de família Freqüencia percentual Pescador com segunda ocupação 20 45,5 Pescador sem segunda ocupação 24 54,5 44 100,0 Total O Gráfico 4 a seguir dá alguma indicação, a respeito da renda individual dos que declararam ter a pesca como única fonte de renda. Como vê-se, a média de rendimentos destes alcança R$276,00. A concentração maior se encontra na faixa entre R$250,00 e R$300,00; seguida da faixa de R$300,00 e R$350,00. Um número muito pequeno de indivíduos recebe renda maior que R$350,00. Vale ressaltar que dos 39 indivíduos que declararam ter a pesca como única ocupação, 35 deles apresentaram renda relacionada à atividade pesqueira, 2 deles se declararam desempregados e outros 2 não declararam renda recebida. 91 Jurujuba - Rendimento dos pescadores que declararam não ter segunda fonte de renda - 2002 18 Número de pescadores 15 12 9 6 3 0 200 - 250 300 - 350 250 - 300 400 - 450 350 - 400 500 - 550 450 - 500 550 - 600 Rendimento de pescador Média de rendimentos: R$ 276,00 (desvio padrão: R$ 57,36) Número de pescadores na amostra: 35 Coeficiente de variação: 20,78% Gráfico 4 - Jurujuba - Rendimento dos pescadores que declararam não ter segunda fonte de renda - 2002 Quanto aos indivíduos que possuem renda proveniente tanto da atividade pesqueira quanto de uma segunda ocupação, o Gráfico 5 a seguir permite fazer algumas observações. Constata-se que dos 56 trabalhadores que se declararam pescadores, 17 deles têm renda proveniente de uma segunda ocupação, incluídos aí, 2 casos de renda de aposentadoria. Já quanto aos trabalhadores que declararam ter uma segunda ocupação, 5 deles não apresentam a renda da segunda ocupação declarada. Como vê-se, a média de rendimentos deste grupo alcança R$538,00. Estes se concentram em três faixas de renda: R$450,00 R$500,00; R$550,00 - R$600,00 e R$600,00 - R$650,00. Vê-se ainda que um pequeno número destes chega a alcançar rendimentos entre R$750,00 e R$800,00. Quando compara-se os Gráficos 4 e 5, vê-se que a segunda ocupação eleva substancialmente a renda individual do pescador. A partir dos dados obtidos, foi possível tecer algumas conclusões em relação à média da renda per capita, nos domicílios nos quais o chefe de família se declarou pescador. Pode-se 92 perceber que quando o chefe de família é pescador e não tem uma segunda ocupação, a média encontrada é R$188,71 - (total de 20 casos). Para os que têm uma segunda ocupação, a média encontrada é R$172,17 - (total de 20 casos). Há quatro casos sem referência de renda per capita, uma vez que o dado sobre a renda não foi fornecido nesses quatro domicílios. Pode-se observar que não há diferença estatisticamente significativa entre a renda per capita das famílias nas quais o chefe não tem uma segunda ocupação e a daquelas onde o chefe possui uma segunda ocupação (teste t de Student t=-0,622; p > 0,05); assim a renda de ambos os grupos se equivale. Talvez isso se deva ao fato de que em famílias maiores existe a tendência a que o chefe complemente a renda obtida como pescador com outra atividade remunerada. Jurujuba - Rendimento dos pescadores que têm renda proveniente de uma segunda ocupação - 2002 18 Número de pescadores 15 12 9 6 3 0 200 - 250 300 - 350 250 - 300 400 - 450 350 - 400 500 - 550 450 - 500 600 - 650 550 - 600 700 - 750 650 - 700 750 - 800 Rendimento do pescador Média de rendimentos: R$ 538,00 (desvio padrão : R$ 99,03) Número de pescadores na amostra: 17 Coeficiente de variação: 18,41% Gráfico 5 - Jurujuba - Rendimento dos pescadores que têm renda proveniente de uma segunda ocupação - 2002 O Gráfico 6 seguinte diz respeito à renda obtida por aqueles trabalhadores que não atuam na pesca. Como vê-se, a média de renda aqui chega a R$338,00. A concentração está na faixa de R$200,00 a R$300,00; seguida pela faixa entre R$300,00 e R$400,00. No entanto, alguns indivíduos chegam à faixa entre R$900,00 e R$1000,00. Observando-se os Gráficos 4, 93 5 e 6 pode-se concluir que na média de renda, os não-pescadores ficam acima dos que somente são pescadores, mas abaixo daqueles que agregam outra atividade à pesca. Média de rendimentos: R$ 338,00 (desvio padrão : R$ 166,47) Número de pescadores na amostra: 378 Coeficiente de variação = 49,25% Gráfico 6 - Jurujuba - Rendimento dos não-pescadores - 2002 Média de rendimentos: R$ 338,00 (desvio padrão : R$ 166,47) Número de não-pescadores na amostra: 378 Coeficiente de variação = 49,25% Gráfico 6 - Jurujuba - Rendimento dos não-pescadores - 2002 O Gráfico 7 a seguir indica que a renda obtida pela segunda ocupação dos pescadores é tanto menor quanto maior for a sua renda de pescador. Pode-se levantar a hipótese inicial segundo a qual quanto mais o pescador se dedica à pesca e nela obtém uma melhor remuneração, menos tempo tem para dedicar-se a uma segunda ocupação e conseqüentemente conseguir uma melhor remuneração nesta atividade. 94 Jurujuba - Relação entre a renda da pesca com a renda adicional dos pescadores com uma segunda ocupação - 2002 Renda adicional de pescador com outra ocupação 500 400 300 200 100 Rsq = 0,1323 180 200 220 240 260 280 300 320 340 360 Rendimento de pescador Gráfico 7 - Jurujuba - Relação entre a renda da pesca e a renda adicional dos pescadores com uma segunda ocupação - 2002 Quanto ao nível de escolaridade, pode-se perceber na Tabela 7 abaixo, que entre 87,5% e 98,3% (92,9% + 5,4%, com 95% de confiança) está a proporção de pescadores que possuem o ensino fundamental ou começaram a cursá-lo, enquanto que no máximo 4,6% (1,8% + 2,8%, com 95% de confiança) chegaram ou concluíram o ensino médio. TABELA 7 - Jurujuba - Escolaridade dos pescadores Jurujuba - Escolaridade dos pescadores - 2002- 2002 Escolaridade Número de pescadores Percentual ensino médio 1 1,8 ensino fundamental 52 92,9 não declarada 3 5,4 5,3 56 100,0 Total Quanto à escolaridade dos chefes de família que trabalham na atividade pesqueira, pode-se perceber conforme Tabela 8 a seguir, que nenhum deles alcançou o ensino médio. 95 Dentre eles, 76,2% (entre 65,2% e 87,2%, com 95% de confiança na população) possuem somente o primeiro segmento do ensino fundamental, enquanto que 23,8% (entre 12,8% e 34,8%, com 95% de confiança para a população) alcançaram o segundo segmento. TABELA 8 - Jurujuba - Escolaridade dos chefes Jurujuba - Escolaridade dos chefespescadores de família-pescadores - 2002 de família 2002 Número de chefes de famnilia Percentual Ensino Fundamental (5a. a 8a. série) 10 23,8 18,2 Ensino Fundamental (1a. a 4a. série) 32 65,9 76,2 Total 42 100,0 Escolaridade Quanto ao nível de escolaridade dos chefes de família que não trabalham na pesca, pode-se observar, conforme a Tabela 9 abaixo, que 73,9% deles (73,9% + 2,0% na população, com 95% de confiança) possuem apenas o ensino fundamental, 23,0% (23,0% + 1,9% na população) possuem o ensino médio e 0,5% (de 0,2% a 0,8% na população, com 95% de confiança) tem nível superior. Vê-se assim, que a escolarização média dos chefes de família que não trabalham como pescadores é muito mais elevada que a dos chefes de família pescadores. TABELA 9 - Jurujubados - Escolaridade dos chefes família Jurujuba - Escolaridade chefes de familia nãodepescadores não-pescadores 2002 2002 Escolaridade Número de chefes de familia Percentual ensino superior 1 ,5 ensino médio 43 23,0 ensino fundamental 138 73,9 73,8 alfabetização 4 2,1 analfabeto 1 ,5 187 100,0 Total Na Tabela 10 seguinte, pode-se perceber que dentre as localidades que compõem o bairro de Jurujuba, Cascarejo é aquela que apresenta o maior número de chefes de família que 96 trabalham na atividade pesqueira, talvez isso se deva a sua localização, próxima do final do bairro, e conseqüentemente mais próxima das áreas onde tradicionalmente ocorrem as saídas de barcos e baleeiras para a pesca. Jurujuba 10 - D-isJurujuba tribuição -dDistribuição os chefes de fdos amíchefes lia pescde adfamília ores, TABELA segpescadores, undo a locasegundo lidade - 2a0localidade 02 - 2002 Localidade Percentual Salina 11,4 Peixe Galo 13,6 Pau Ferro 11,4 Jurujuba 6,8 Cascarejo 38,6 Canguna 18,2 Total 100 CAPÍTULO 3 - VOZES DA PESCA DE JURUJUBA Neste Capítulo, busca-se através das histórias de vida dos pescadores de Jurujuba, perceber como as transformações ocorridas na atividade pesqueira foram, subjetivamente, sentidas por essa população. As entrevistas abertas realizadas com os moradores foram gravadas e ocorreram através de um roteiro previamente definido. Com essas entrevistas buscou-se coletar dados qualitativos para que se tornasse possível a compreensão da forma como se desenvolvem as características sócio-econômicas mapeadas através do questionário, e para poder-se ir além na compreensão de aspectos subjetivos que explicam configurações objetivas. Além disso, nos importa compreender como pescadores e ex-pescadores percebiam: a) a evolução da pesca local frente aos impactos ambientais que se aprofundaram na Baía de Guanabara nas últimas décadas; b) a questão da identidade dos moradores do bairro frente a esta relação entre pesca e impactos ambientais. O roteiro de entrevista compreendeu os seguintes itens: trajetória habitacional; trajetória escolar; trajetória profissional e ocupacional; a vida dentro da pesca; as relações ao redor; a lógica da pesca; a impactação da Baía; o número reduzido de pescadores; a forma como o bairro de Jurujuba é hoje; e a forma como se sente, hoje, as transformações ocorridas na pesca. Não houve um critério para a escolha de quais moradores seriam entrevistados. Em geral, eles eram escolhidos, diretamente, a partir das relações que a pesquisadora ia estabelecendo na comunidade, ao longo do tempo. 98 Entrevista 1 "E a questão também da lâmina d'água que não dá pra se renovar muito. Nesse fundo da Baía... vem muito segmento de esgoto in natura, né?" O Sr. Paulo nasceu em 1940, em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, região do Pantanal. Sua mãe era índia, pertencia à tribo dos Bororós, fato que é motivo de muito orgulho para ele. Ela trabalhava como doméstica numa fazenda. Naquela época, seu pai trabalhava na área de manutenção de uma companhia de avião, chamada Cruzeiro do Sul. Fazendo uma viagem ao Mato Grosso, ele conheceu sua mãe, e lá se casaram. Quatro anos após o nascimento do Sr. Paulo, vieram os três morar no Rio de Janeiro. Lá deixaram seu avô, que administrava uma fazenda, e seu padrinho, que era de nacionalidade japonesa e proprietário de uma fábrica de adubo. Mas, nunca mais tiveram notícias de seus parentes. Estudou no Rio de Janeiro, no bairro de Engenho de Dentro. Não completou o 2º grau. Tentou fazer o Curso Básico de Contador, mas não foi possível porque na época, como disse, já tinha família para sustentar. Em 1958, mudou-se para Rio do Ouro, em Niterói, na esperança de melhorar de vida. Veio para atuar, juntamente com um grupo, na campanha de Jânio Quadros, candidato à presidente da República naquela época. Nesta ocasião, sua filha tinha poucos meses de nascida. Não deu sorte "porque Jânio assumiu e logo depois renunciou e todo mundo ficou a ver navios". Com o término da campanha, ele passou a trabalhar na casa do seu sogro, limpando pé de laranja. Durante pouco mais de um ano, trabalhou em limpeza de sítios e limpeza de pés de laranja, visando o sustento de sua primeira filha. Sua segunda filha nasceu em 1960. Morou em Rio do Ouro até 1962, nos últimos dois anos trabalhava como subgerente de um armazém e conheceu uma menina que o convidou para conhecer Jurujuba, onde ela morava com a mãe. Ele foi, morou em sua casa, num quarto cedido e depois morou com essa menina durante 25 anos. Foi conhecer o bairro de Jurujuba, e desde que conheceu nunca mais saiu de lá. Já está na segunda família no bairro. Ficou casado durante esses 25 anos, teve três filhos, perdeu um. Começou a pescar em 1964, quando nasceu seu filho. Voltou a trabalhar em sítio, localizado no ponto final de Jurujuba. Morou neste sítio durante 23 anos. Naquela ocasião, além de zelar pelo sítio ele também trabalhava como pescador. Seu segundo filho, com problemas de saúde, faleceu com 6 anos de idade. E depois veio o terceiro filho, que hoje já 99 tem uma família construída. Por volta de 1990 se separou, e constituiu outra família, agora com mais dois filhos, uma filha com dez anos e um garoto com cinco. Pescou muito tempo em Jurujuba, embora nunca tenha aprendido a nadar. De fato, pescou durante mais de vinte anos. Pescou até aproximadamente 1985. Em 1987 passou a ser diretor da Colônia de Pesca, ocasião em que parou de pescar e começou a trabalhar em terra. O Sr. Paulo lembra que na época em que ele foi para Jurujuba, já havia algumas embarcações a motor, mas a maioria das pescarias pequenas era feita em canoa. Eles pescavam em canoa, com rede traineira. Iam sete companheiros numa canoa de nove metros, mais ou menos. Iam "lá fora em Itaipu". A gente botava na canoa, a gente cercava no mar e tinha que cobrar, controlar aquilo na mão... A corda que trabalha nas anilhas, aquilo era tudo puxado à mão...Hoje em dia tem o guincho, antigamente não. Eu, como era o mais fraco da pescaria...eu vivia na popa da embarcação com a cabeça dentro d'água e as mãos dentro d'água quando soltava a rede, pra evitar que a rede fosse na hélice da canoa, porque na canoa o motor era na popa. A canoa ia andando, aí soltava a rede e se bobeasse a rede ia na hélice, então ia com a mão afastando a rede, pra evitar que desse problema. O Sr. Paulo conta que havia a canoa a remo também. A pescaria a remo se dava dentro da Baía, chamava-se pescaria de arrastão. Consistia em jogar a rede, cercar no mar e puxar para a terra. "Mas a maioria, essa nossa, era tudo motor de popa, mas a gente levava remo também porque às vezes o motor de popa enguiçava, a gente tinha que ir no remo." Ele passou uns oito ou dez anos pescando dessa forma mais descapitalizada. Depois, com o capital que ele e seu compadre acumularam, pescando artesanalmente, construíram um barco. A partir de então, deixaram a canoa e passaram a pescar em barco, uma traineira de nove metros. A canoa também tinha mais ou menos nove metros, só que era baixinha, quando vinha com muito peixe, vinha quatro dedinhos fora d'água, a gente vinha direitinho, quietinho, sem se mexer, porque se mexesse de um lado ia todo mundo pro fundo. O meu apelido na embarcação, onde a gente pescava, era mestre-bomba porque eu que tirava água da embarcação. Eu vinha na popinha, perto do motorista do leme, abaixadinho ali, só com a caçambinha tirando água pra evitar que a água pegasse a embarcação. Esse grupo de pescadores, chamado de guarnição, companheiros ou companha, era um grupo muito unido. "Às vezes saía um, entrava outro, mas a maioria ficava sempre unida." A remuneração era feita por partes. Cada um tinha uma posição e ganhava de acordo com essa posição. O proeiro, que era o mestre, ganhava três partes; o motorista que conduzia 100 a embarcação recebia duas partes; o chumbeleiro ganhava duas partes; o corticeiro também ganhava duas partes e os outros companheiros ganhavam uma parte. E existia, ainda, a parte da embarcação, do proprietário, que além de dono era proeiro. "Ele trabalhava, ele queria trabalhar porque ele queria zelar pelo material dele, né?" Naquela época, eles iam para o Mercado vender o peixe e só havia despesa com óleo e combustível da embarcação. O restante eles dividiam pelo número de partes estabelecidas. (...) por exemplo assim, nove partes do barco, aí vinha três do proeiro, duas do motorista...Via quantas partes dava, somava as duas partes, via o dinheiro e rateava. Vamos dizer, dezoito partes... Fazia R$1.800,00? No caso, seria R$100,00 por parte. Quem ganhava uma parte ganhava só R$100,00, mas quem ganhava duas, ganhava R$200,00. O desconto previdenciário, era considerado muito caro e, portanto, inviável de ser realizado, fosse ele como profissional autônomo ou não. "O autônomo também, a autonomia era cara e não dava pra embarcação pagar isso." "Era raro a gente fazer dinheiro, fazia pouco dinheiro. Às vezes, tirava R$20,00; R$30,00. Era mil réis naquela época, parece... né? Meu trabalho era esse, e dava pra sobreviver muito bem, porque não tinha aquela inflação galopante que existe hoje em dia." O Sr. Paulo conta que no interior da Baía, eles conseguiam algum pescado na área de Paquetá. E fora da Baía, embora não fosse permitido, eles pescavam em Itaipu, Copacabana, Praia Vermelha e Botafogo. Até aproximadamente 1980, o pescado era vendido no Mercado da Praça XV ou então em Niterói. Como o peixe não era tão valorizado como nos dias de hoje, era mais fácil vendêlo porque havia menos compradores. Com a desativação do Mercado da Praça XV, a situação dos pescadores piorou, uma vez que o Mercado de Niterói não tinha condições de absorver toda a produção. Quando tem muito peixe ali, você é obrigado a dar o peixe quase de graça, tem um termo...é uma mercadoria perecível e você não tem um frigorífico pra armazenar, então, o que eles fazem? A maioria dos compradores... juntam todos... um só que vai botar o dinheiro em leilão, os outros ficam esperando. Depois, aquele que comprou a preço mais barato... aí eles rateiam entre eles e com isso o pescador é obrigado a se desfazer, porque a mercadoria é perecível, né? Se tivesse um frigorífico que pudesse armazenar o peixe e pegar outro preço... O Sr. Paulo, hoje, está à frente da Associação dos Pescadores, e conta que está se esforçando para conseguir pagar, aos poucos, a dívida que aí encontrou. Visando obter 101 dinheiro para ir amortecendo a dívida contraída, ele abriu um estacionamento para automóveis na área interna da Associação. Uma vez que há espaço interno também para dois frigoríficos, ele está se dispondo a ir à Brasília este mês para tentar obter recursos para construí-los, entendendo que a vida do pescador artesanal seria facilitada com a construção desses frigoríficos. "Pescador profissional, ele tem mais recurso, o artesanal não tem quase nenhum recurso." A falta de condições para o peixe se procriar na Baía, é um problema mencionado pelo Sr. Paulo. Basta estar iniciando a época das sardinhas e já é possível ver as traineiras chegando e realizando a pesca de forma predatória. Um outro fator também apontado pelo Sr. Paulo, trata-se da poluição local. Ele conta que a fábrica de sardinha está sem funcionar a uns quatro meses e já se sente uma melhora nas águas da proximidade. Inclusive constata-se a presença, atualmente, de arrastão para pesca de camarão, fato que não vinha ocorrendo há algum tempo, no interior da Baía. Mas agora, você vê aqui esse arrastão que está matando camarão todo dia aí, coisa que há mais de dez anos a gente não sabia o que era isso. Agora está tendo bastante camarão aí. Sempre um criador de camarão...Mas depois que a fábrica veio e começou a jogar aquele resíduo, aquela gordura, tapou a parte do fundo do mar, (...)então, aquela alga que dava, aquela folhinha igual a uma alface, sumiu. Agora, no arrasto vem aquela alface, está melhorando. E as pessoas tão matando camarão aí: uns camarões desse tamanho assim... Oh, muita coisa! Em arrasto aí de uma hora, vem dois, três quilos de camarão. O Sr. Paulo conta que em 1990, quando ele atuava na Associação de Moradores, foi feito um projeto de rede de esgoto para a comunidade. Este projeto foi levado para a ECO 92, mas não obteve retorno satisfatório. Atualmente Sr. Paulo encaminhou o projeto de Estação de Tratamento do bairro de Jurujuba para a empresa "Águas de Niterói". Ele espera, em breve, conseguir que a rede de esgoto seja implantada em sua comunidade. "Se isso acontecer, isso vai dar muito peixe... Agora vem o pessoal que está pegando as sardinhazinhas, as curvinotazinhas pequenininhas... Vem a mudança... Se isso aí parasse um pouco, isso aqui ia voltar a ser criador de peixe. Porque tem condição de dá muito peixe aqui." Atualmente, ele está construindo sua casa própria. Ele diz não medir sacrifícios para ajudar as pessoas, dentro de suas possibilidades, muito embora sofra algumas críticas. Aqui no bairro, dizem que sou rico... Não tenho nada, devo a todo mundo, entendeu? Mas quando eu quero fazer as minhas coisas... Eu não meço sacrifício pra fazer uma casinha aqui pra mim agora, pra sair lá do morro. 102 Não tenho nada (...). Eu faço muita coisa aí, a troco de nada. (...) Eu consigo remédio pra comunidade, tiro documento pra um e pra outro, nunca cobrei um centavo a ninguém, entendeu? (...) isso incomoda algumas pessoas. Elas pensam que você está fazendo por interesse, que está ganhando dinheiro com isso. Mas não existe dinheiro, pelo contrário, às vezes você perde dinheiro. Eu acho que dinheiro não é tudo na vida... Você ajudando o próximo, puxa!! É mais do que ter dinheiro no bolso. Dinheiro, você tendo pra sobreviver, é o suficiente. Quando Sr. Paulo se iniciou na pesca, as canoas estavam no auge da atuação. Ele descreve o processo que levou pescadores artesanais como ele, a acumular algum capital. Conta que, até então, a pesca de atum era desconhecida por eles. Só havia um barco, que praticava essa pescaria, chamava-se "Niterói". A isca necessária para essa pescaria, o próprio barco pescava. Mas a partir do momento que sentiram dificuldades para obtê-la, passaram a chamar o pessoal local para pescá-la. Foi nessa ocasião, aproximadamente em 1969, que Sr. Paulo e outros pescadores começaram a atuar nesse tipo de pescaria, e dezenas de outros barcos vieram atraídos. Esses barcos eram procedentes da Ponta D'Areia, de Angra dos Reis, de Santa Catarina, e do Nordeste do Brasil. "Alguns barcos que faziam anteriormente pesca da lagosta lá... começou a fracassar (...) aí eles começaram a vir pra cá com os barcos e iscar aí. E nós iscávamos aí, de canoa." Com o dinheiro que foram ganhando neste tipo de pescaria em canoa, muitos conseguiram acumular algum capital. "E esse pessoal, com o dinheirinho que foi ganhando de canoa... um fez um barco... daqui a pouco, outro fez um barco... deu pra eles construírem um barco com o dinheiro que iam ganhando nas pescarias nas canoas pra iscar." Sr. Paulo aponta para a abundância de atum existente, naquela época. Eram muitos barcos pescando, em torno de 40 embarcações. O atum tinha tanto, que eles iam lá... dois dias depois eles estavam voltando pra apanhar isca, outra vez. Era a sardinha pequenininha que a gente matava pra eles (...) lugar que sempre deu muita sardinha pra pesca que eles fazem, sempre foi essa região nossa aqui. A sardinha servia de isca. É interessante observar que a chegada de embarcações mais capitalizadas e voltadas para uma pesca mais predatória, acabou puxando a acumulação de alguns pescadores artesanais que passaram à condição de proprietários de barcos. Estes instauram uma nova lógica de concorrência que acaba levando os pescadores artesanais a sérias dificuldades que se sobrepõem, por um lado à própria questão da concorrência, depois à questão da sobrepesca 103 que se aprofunda. Aqueles que podem sair da Baía e procurar outros espaços pesqueiros se diferenciam dos que, com suas canoas artesanais não podem ir tão longe. Alguns pescadores de Jurujuba continuam trabalhando nesse tipo de pescaria."Se engajaram e estão até hoje, e ganharam muito dinheiro." São barcos de 20 metros, 18 metros, aptos para enfrentar mar aberto. O Sr. Paulo afirma que, em Jurujuba, as embarcações pequenas, os botes, são construídos pelo próprio pessoal local. Atualmente eles não constroem mais canoas, porque a sua confecção requer uma única madeira inteiriça, e isso não é mais possível hoje em dia. Ao passo que o bote, este é construído com placas de compensado.E para a confecção dos barcos grandes, o Sr. Paulo diz que "agora... tem um rapaz que está com estaleiro aí, que está construindo barco grande." Nos barcos grandes existe uma maior segurança para se trabalhar. Além de mais seguros, eles comportam um maior número de pescado capturado. E ainda permitem a conservação do pescado já que levam gelo em seu interior. Na canoa era difícil, não dava pra botar gelo. Você tinha que ir com o peixe sem gelo...chegar em terra... apanhar o tabuleiro, forrar o tabuleiro de gelo e botar o peixe. No barco não, no barco tem os porões preparado pra isso mesmo, pra você botar o gelo e quando matar o peixe gelar ele ali dentro e conservar mais. Sr. Paulo afirma que, em Jurujuba, existem muitos proprietários de barco. "Tem um rapaz aí que tem seis embarcações e ainda está construindo alguns barcos, é um dos diretores da Colônia." Ele diz que, atualmente, ainda existem muitos pescadores em Jurujuba, porém os jovens, estes já preferem seguir outras profissões. "Aqui nessa comunidade, a grande maioria ainda é pescador. Só essa nova geração está buscando outros tipos de trabalho. Mas 70% da comunidade ainda é envolvida com a pesca, direta e indiretamente." No entanto, conforme visto no Capítulo 2, os números obtidos apontam que apenas 7,1% da população do bairro, se constitui de pescadores. E ao observarse, dentre os chefes de família aqueles que são pescadores, este número sobe para 17,7%. Como envolvimento indireto com a pesca ele aponta alguns casos: (...) têm as kombis que levam para o Mercado de peixe... tem os outros que compram pra revender em outros lugares. Não pescam, mas tem condução, pegam o peixe e levam para o Mercado pra vender. Tem outros que compram ali pra revender em outros lugares. Fazem venda direta. Então eles são, a maioria, envolvidos com a pesca, indiretamente. 104 O Sr. Paulo aponta algumas questões como responsáveis pela atual difícil situação da pesca em Jurujuba. Tempos atrás, nesta localidade, além de uma maior abundância de peixes, existia também um menor número de embarcações. Hoje em dia a pesca é mais predatória, e o problema se agrava com a poluição existente nas águas da Baía de Guanabara. E o peixe também não dá pra criar, porque o pessoal vai e pesca indiscriminadamente, mata a criação, mata os filhotes e depois ele não vai poder se reproduzir. A poluição também atrapalhou muito, esse monte de casa que foi construída ao redor, esse esgoto sendo tudo desembocado dentro da Baía, aqui na Baía, aqui dentro. E a questão também da lâmina d'água que não dá pra se renovar muito. Nesse fundo da Baía... vem muito segmento de esgoto in natura, né?(...) Se abrisse um canal aqui, dava pra renovar o espelho d'água. Dava pra renovar completamente, e conseqüentemente melhorava mais. O Sr. Paulo aponta o uso constante da chamada "rede caiçara", que é altamente predatória, e captura inclusive os peixes ainda em crescimento. Diz que só usava rede predatória em alto mar, critica os que usam em Jurujuba. Considera Jurujuba um criatório natural de peixes e crustáceos. As embarcações maiores, a gente chama de caiçara, que também é de rede de malha, mas a gente pesca lá fora... curvineira pesca lá fora da Baía, no mar alto. Mas aqui dentro, tem muita embarcação que pesca aqui dentro, rede de malha, que coloca e começa a bater, jogar pedra para o peixe emalhar. Isso aí também ajuda a destruir isso. E ele vai além: "se a gente conseguisse colocar aqui uns arrecifes, uma reta, e ficasse um tempo sem ninguém pescar aqui dentro... No ano seguinte, a gente já teria peixe aqui com fartura. É que não dá peixe mais". Quanto à tradicional festa de São Pedro que acontece todos os anos em Jurujuba, o Sr. Paulo conta que a parte religiosa é organizada pela igreja, pela irmandade e pelo pároco da igreja. E para a parte festiva, também chamada de parte profana, eles contam com um festeiro, pessoa que se oferece para organizar a festa, ou simplesmente escolhem alguém da comunidade para fazê-lo. Trata-se de um investimento nos conjuntos musicais que se apresentam durante os festejos. O Sr. Paulo trabalhou na organização de festa, durante dois anos. Considera uma atividade desgastante. As pessoas sempre achavam que ele ganhava dinheiro para desenvolver aquele trabalho. E ele então, desistiu. "Eu, nas duas festas que eu dei, nos dois anos seguidos... Nós fizemos uma melhoria substancial na nossa igreja." Todos os barcos de Jurujuba são enfeitados, são muitas embarcações saindo na 105 procissão, acompanhadas da queima de fogos de artifício. "Tem um rapaz que constrói os barcos, Ademir o nome dele, né? Todo ano ele solta muitos fogos no dia da procissão. Quando a procissão sai, vai até a porta da casa dele e ali já sabe que ele solta muito, gasta muitos fogos." O Sr. Paulo diz que atualmente, a maioria dos peixes consumidos em Niterói é pescado com os barcos de Jurujuba. Praticamente são eles que abastecem o Mercado de Niterói. Antigamente eles vendiam no Rio, iam com a embarcação carregada de pescado e descarregavam no Porto do Rio. O restante era vendido em Niterói. "Agora não, a gente vende direto pra Niterói, Mercado São Pedro, que pertence à Colônia de Pesca de Jurujuba, (Z-08). O Mercado cá fora, atacadista... não lá dentro, aquela galeria não." Sr. Paulo conta que, atualmente, a Colônia de Pesca, a Z-08, está situada na parte externa do Mercado de Peixe de Niterói. Quando ele foi presidente da Colônia, ajudou a construir o prédio onde seria a sede da Z-08. Após a conclusão das obras, ele se afastou da Colônia, por motivos de divergências internas, e a partir daí, o prédio ficou abandonado. Inicialmente ele havia conseguido com o INCRA, um prédio no Rink, bairro de Niterói. Na ocasião, ele fora à Brasília, e o processo que estava em andamento, foi abandonado quando ele se afastou da Colônia. "Não ligaram... aí o INCRA tirou eles de lá. Tiraram eles de lá, e tiveram de construir uma sede lá no Mercado de Peixe mesmo." Mas a sede da Colônia continua sendo em Jurujuba, embora seu prédio esteja totalmente abandonado. Naquela época, a Colônia fez um convênio com uma firma que precisava de um local para guardar material. Cederam para esta firma um espaço que não era utilizado no Mercado e em contrapartida receberam ajuda para terminar a obra em Jurujuba. A nova presidência assumiu e não se interessou pelo prédio. "E quem está lá como presidente da Colônia, hoje em dia, não gosta de Jurujuba, ele é da Ilha da Conceição. Ele não gosta e não quer trazer a Colônia pra aqui." A Z-08 engloba Niterói e também São Gonçalo. Sr. Paulo suspeita de que a Colônia Z07, que funciona em Itaipu, pertencerá só à Maricá, fazendo com que Itaipu passe também a pertencer à Z-08. Ele diz estar querendo voltar a atuar na Colônia para que possa lutar para retirar o Município de São Gonçalo, do âmbito da Z-08. Na opinião de Sr. Paulo, o Município de São Gonçalo deveria criar uma Colônia própria, e deixar que a Z-08 abranja somente a região até o Barreto. "A Z-08 não cuida direito nem aqui de Niterói, como é que ela vai atender São Gonçalo? São Gonçalo tem um porto lá, eles negociam o pescado. Por que eles não criaram uma Colônia pra eles?" 106 As histórias que são contadas sobre os pescadores, deixam o Sr. Paulo muito contrariado. Muitos dizem que "o pescador não planta nada no mar, só vai lá colher". Ele não concorda com essa afirmação. Antes de sair para pescar, o pescador faz um grande investimento. Ele precisa investir em embarcação, rede, e demais apetrechos: bóia, colete, bússola, fogos de sinalização, corda e etc. Abastecem o barco com óleo e combustível, providenciam o gelo e levam alimentos para a companha. A gente não planta nada no mar, mas também não se colhe com facilidade, não. A gente vai lá, é como se tivesse plantado. Mas mesmo assim, essa plantação é incerta porque a gente vai lá e de repente você não acha nada, aí você vai embora pra casa. No dia seguinte, tem que fazer aquela mesma ladainha de botar tudo outra vez, e é mais despesa. Quando o pescador chega a capturar o peixe, o valor obtido com a venda do pescado capturado não é suficiente para cobrir as despesas anteriormente feitas. "Aí, o companheiro vai, leva dois, três dias, quatro dias, às vezes uma semana, só pra pagar a despesa, não ganha nada." E muitas vezes, o companheiro tem a sorte de capturar um peixe, ganha um dinheiro e, ao invés de ir para casa vai comemorar no botequim, deixando lá tudo o que ganhou. "Muitos fazem isso. Ah! Amanhã eu ganho mais, já ganhei R$30,00 hoje, amanhã eu ganho R$50,00, mas não é assim não. A história não é bem essa não." Além de tudo isso, o pescador também arrisca a sua própria vida. "De repente, o mar dá um mar revolto lá, e volta e meia fica um lá." Um outro aspecto importante está relacionado com os atravessadores. Os companheiros se sentem obrigados a lhes vender o peixe por preços abaixo do esperado. Você vai lá, mata o peixe, quando chega pra vender não tem o valor que merece, porque tem aqueles atravessadores que não plantam nem nada, ficam só de braços cruzados, esperando lá chegar porque sabem que aquilo é mercadoria perecível, se não vender, vai jogar fora, e compram pelo preço que eles querem. Quando o peixe chega ao consumidor final, ele já está custando, muito mais caro. "Quem matou o peixe lá, que se sacrificou lá, que correu risco, não ganha nada, quem tá com a mão pra trás esperando, que tem dinheiro no bolso, que ganha muito mais." O Sr. Paulo acha que, até hoje, não houve um governo que apresentasse uma boa política voltada para a pesca. A pesca nunca teve o tratamento que deveria ter. Nunca houve 107 incentivo e financiamento para o pescador. Já fizeram isso, mas não para o pescador. Porque financiamento para o pescador... O pescador chegava no banco, tinha que ter uma casa pra penhorar, ou então um avalista, isso não era financiamento...Quem pegava esse dinheiro eram pessoas que tinham condições e pra usar pra outra coisa, pra pesca não usava. Ele ouviu dizer que o novo governo dispõe de uma verba grande destinada à pesca. "Que eles olhem com carinho a parte do pescador artesanal, o pescador pequeno, miúdo, e que precisa de ter uma redezinha miúda pra poder sobreviver." E espera que sejam criadas "alternativas de ganho ligadas à pesca, serem criadores de peixe". Em poucos dias, ele irá com um grupo à Brasília visando sensibilizar o governo. "O pescador artesanal, o pescador caiçara, ele precisa também de ter incentivo, não é só para os grandes armadores." São muitos os pescadores artesanais existentes no Estado do Rio, eles precisam de incentivo para se desenvolverem. "Talvez nem seja individualmente, mas em grupo de 5 ou 6 pescadores. Aí você dá um financiamento pra aqueles 6 pescadores poderem desenvolver um trabalho, tipo cooperativa, né?" Preocupado com o pescador artesanal, é que o Sr. Paulo pensa em construir o frigorífico na Associação de Pescadores. "Eu preciso construir um frigorífico, pra que? Pra esses pescadores pequenos. Vai levar o pescado... não tem preço... Coloca dentro do frigorífico e espera um preço melhor." Segundo ele, não se trata de acabar com o atravessador, mas ao menos os disciplinar um pouco, para que o trabalho desse pescador seja valorizado. O Sr. Paulo conta que por volta do ano de 1983, quando ele e seu compadre voltavam da pesca no "barquinho" que pertencia a ambos, eles iam para o Mercado vender o pescado. Chegando lá, caso não conseguissem um bom preço na mercadoria, ao invés de venderem por qualquer valor, ele preferia utilizar uma kombi e subir os morros Cavalão, do Estado e outros (todos em Niterói), para doar os peixes. "Tinha muito disso, muitas vezes eu me sinto satisfeito com isso. Me achava explorado, eu estava empenhado e no fim aquele pessoal chegava ali, apanhava pelo preço que quisesse, que a gente tinha que jogar fora, que a gente não tinha como guardar." Com relação à Associação, criada em 1985, o Sr. Paulo recorda que ali eles tinham uma fábrica de gelo, a única existente em Jurujuba. Dali eles forneciam gelo para todos. Atualmente esta fábrica está toda destruída e não existe financiamento para recuperá-la. Ele 108 pretende aproveitar as duas "câmaras isotérmicas" existentes para construir dois frigoríficos lá. Ele acha que fazendo isso, e construindo uma rampa para os pescadores puxarem o barco, e uma ponte, ele estará ajudando os pescadores artesanais. "Que aí, eles vão ter como guardar o pescado. Se não tem preço... vai... guarda..., no dia seguinte leva. Ou então a gente deixa na Associação depois vende pra eles, enquanto que eles vão pescar outros." O Sr. Paulo está tentando organizar a Associação, desde 1995. Vai tentar mais uma vez, caso não consiga, ele vai desistir. "Botei naquela ocasião, 13 mil e poucos reais meus. Agora, estou tirando tudo sem juros e correção monetária. Tá muito difícil!" As tentativas de obter financiamento foram em vão: "a gente vai tentar pegar financiamento, mas tá caríssimo, não dá pra cobrir. A gente assim não consegue fazer nada, né? Se arriscar, amanhã ou depois tem que vender seu patrimônio". O Sr. Paulo diz que foi recentemente eleito presidente da Federação das Associações de Moradores do Município de Niterói (FAMNIT), e também é presidente da Associação de Pescadores, a qual ele está tentando reativar. Em Jurujuba, hoje em dia, eles contam com a assistência de uma advogada da UFF e de uma médica que não cobram nada a eles. Contam também com o serviço odontológico, e o protético atende a comunidade e cobra barato. O Sr. Paulo acredita que se a rede de esgoto for implantada em Jurujuba, a situação vai melhorar muito. O esgoto recebe tratamento somente até o Preventório, o bairro de Jurujuba não é contemplado. "Se a gente conseguir implantar a rede de esgoto aqui, vai melhorar muito mais o espelho d'água. E com isso, eu tenho certeza que vai dar muita criação de peixe." Uma outra grande fonte de preocupação para o Sr. Paulo, é a estação de aerobarcos prevista para ser inaugurada no Preventório. Para ele, o pescador artesanal vai perder mais um espaço de pesca, porque supõe que ali vá funcionar como área de linha de barcos e o pescador ficará impedido de realizar a pesca naquela área. A implantação da estação de aerobarco somada às questões dos iates clubes, que fazem os campeonatos de barco, são consideradas para o Sr. Paulo como "mais um agravante pra pesca." Ele não sente nem os pescadores, nem os seus dirigentes preocupados com isso. Ele teme que depois de um dia inteiro de funcionamento, o aerobarco deixe óleo nas águas da Baía, fato que afugentaria o peixe. "Melhora o esgoto das residências e vai piorar a questão do óleo diesel e outras coisas mais que vão soltar aí no mar..." Ao falar dos jovens, Sr. Paulo aponta que essa nova geração não tem encontrado na pesca, a segurança para a sua subsistência. Ele está tentando conseguir verba para iniciar um 109 curso de preservação da cultura do pescador em sua comunidade. Este curso teria como clientela esses jovens que estão na escola, na faixa etária de 14 a 16 anos. Freqüentariam o curso em turnos opostos ao da escola. O aprendizado constaria de noções de como costurar a rede, emendar a corda, aprender a salgar o peixe, desviscerar o peixe, além de primeiros socorros. Sr. Paulo já tem um cálculo do custo do curso, e considera um projeto barato."R$48.000,00 durante um ano, você vai diplomar 180 jovens e vai ajudar pelo menos uns 20 pescadores que estão hoje em dia sem poder trabalhar, e tem conhecimento... e tem um ganhosinho." Mas até agora, o Sr. Paulo não obteve nenhum respaldo e percebe que a maioria não sabe trabalhar em rede, atualmente. No tempo em que ele pescava, as pessoas ficavam ao lado do mestre-de-rede e à medida que iam observando, iam aprendendo alguma coisa. Hoje em dia, os donos dos barcos pagam àqueles camaradas que já sabem fazer o trabalho e aqueles pescadores que não têm esse conhecimento são dispensados. O trabalho de costurar a rede é cobrado por diária. "Essa diária, ele tira do bolo. Quem não sabe trabalhar, não aprende e tá tirando do bolo pra pagar aqueles que já sabem trabalhar. A maioria é daqui, são os aposentados que vem ganhar um trocadinho." Na época em que Sr. Paulo pescava, a rede era feita de fio de náilon de seda. Com o uso, a rede ia perdendo a cor e para protegê-la e devolvê-la a coloração, eles utilizavam a tinta de murici ou aroeira. Sentavam no meio-fio e socavam o murici com uma marreta, depois o colocavam no fogo, em tacho de metal. Quando a tinta de murici, estava fervendo, eles colocavam a rede dentro do tacho e ela ganhava aquela cor avermelhada da tinta. Atualmente o náilon é diferente, é industrial, não é mais necessário tingir a rede. Tudo acontecia de forma que enquanto uns pescadores atavam a rede na pedra, despertava a curiosidade dos outros que ali estavam socando o murici. Desta forma, uns aprendiam com os outros. "Agora não, ninguém faz nada na pedra, não cozinha mais nada, a rede não faz mais nada disso." Quando retornavam da pescaria em canoa, eles iam para o porto, chegavam na chamada Pedra do Canto, e ali tiravam a rede. Dois ou três companheiros iam vender o peixe no Mercado e os outros permaneciam cuidando da rede. Quando não era possível, eles iam com rede e tudo vender o peixe no Mercado que era na rua da praia, na Visconde de Rio Branco. Depois voltavam e batiam a rede. Batia a rede é o seguinte: a gente encostava a canoa na beira da praia, ficava um só segurando um remo pra não deixar a canoa bater de contra a pedra. E você puxava a rede pra pedra, e sacudia pra limpar a rede pra tirar peixe 110 podre...aquelas coisas...pra não deixar peixe, porque a gente deixava a rede na pedra com peixe.... o rato vinha, ruía a rede todinha. Então a gente tinha que sacudir a rede, depois esticava ela na pedra pra secar e costurava, onde tinha que costurar. E quando estava muito branca, (...) a gente botava no tacho pra dar coloração nela. Quando voltavam do Mercado, cada um ganhava a sua parte, de acordo com a posição. Atualmente, existe o meeiro, que é um contrato feito com o dono da embarcação. Mas ainda existe a "parte" também. Em geral, são os filhos de donos de embarcação que trabalham nas traineiras. Eles aprenderam com seus pais. Com a perda dos pais, eles passaram a assumir seus lugares e alguns deles conseguiram prosperar. Mas, hoje em dia, a nova geração não segue a profissão, porque não sente incentivo. "Vê o pai ir para o mar, mata peixe e na hora de vender o peixe não tem valor nenhum. Aí, vai nas barcas lá, vê que o pai vendeu por R$1,00; vê que na banca tá R$5,00. Por que tanta diferença,assim?" O Sr. Paulo então conclui que há uma falta de incentivo para os jovens se ingressarem na atividade pesqueira. Essa falta de incentivo passa principalmente, por questões relacionadas ao baixo preço obtido com a venda do peixe, devido à ação dos atravessadores. Existem muitos fatores que dificultam a reprodução do pescador artesanal. Estes vão desde a ausência de frigoríficos para poder guardar os peixes e poder esperar para vendê-los no momento certo, ao invés de ter que vendê-los a qualquer preço para evitar que se deteriorem, passando por problemas de poluição local e pelo poder predatório das pescas atuais. O Sr. Paulo conclui também que existe uma perda da memória da pesca artesanal. Entrevista 2 "A nossa Baía é muito poluída. Antigamente dava muito peixe, hoje não dá peixe como antigamente aqui dentro da Baía." O Sr. Norberto nasceu no ano de 1943. "Sou nascido e criado em Jurujuba." Foi criado pela sua mãe e suas irmãs, sem a presença do pai. Todos, no núcleo familiar, nasceram em Jurujuba, com exceção do pai que era natural do Ceará. Completou o 4º ano do ensino fundamental na escola estadual local, Colégio Fernando Magalhães. Quando ia fazer a prova para ingressar no antigo Ginasial, parou de estudar e iniciou sua vida no trabalho, para ajudar a família. Quando tinha pouco mais de 12 anos, o Sr. Norberto foi gerente de pensão. Aos 13 111 anos começou a pescar, mas não achava que trabalhar na pesca fosse bom para ele. "Então, eu vi que aquela vida de pescaria não servia pra mim. Aí, eu dizia para o mestre: vou largar isso. O mestre era até o meu cunhado." Depois veio a época de servir o exército, e após "dar baixa" ele voltou a pescar. No entanto, afirma que continuou sem se adaptar à pesca "não me adaptava mesmo, não sei o que batia em mim, eu dizia para o meu cunhado, eu vou largar isso. E ele dizia: 'que nada, você vai fazer um curso de patrão de pesca aí'". Um outro cunhado o convidou para trabalhar na empresa de navegação São Miguel. E mesmo sendo informado das dificuldades que teria lá, ele quis experimentar. Começou a trabalhar no estaleiro e só depois foi para o mar. Lá, fazia-se o abastecimento de óleo e água de navios. Tempos depois, o Sr. Norberto trocou o seu documento de pescador para o de "moço de convés". Quando foi despedido da empresa São Miguel, ele foi para a Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro (CONERJ), onde trabalhou durante 21 anos. Somando esses 21 anos com os 6 que trabalhou na firma anterior, ele pode se aposentar. Hoje eu estou, graças a Deus, aposentado. Dava pra me aposentar e aí eu me aposentei porque lá 5 vale 7, porque é insalubre. Quer dizer, nesse percurso todo importou 35 anos 4 meses e 29 dias. Mas não trabalhei este tempo todo, trabalhei menos, só porque insalubre conta diferente. Hoje, o Sr. Norberto é presidente da Associação de Moradores local, ele a preside desde 2000. Trabalhou durante 15 anos na pesca. Pescava em traineira "pra 10 toneladas", e segundo ele, não era de grande porte, mas também não era um barco muito pequeno. Era uma traineira que navegava para Santos, Ilha Grande, Cabo Frio e Macaé. O Sr. Norberto conta que naquela época ainda existiam canoas. Hoje em dia elas foram substituídas pelas baleeiras. Agora é baleeira, canoa ficou de lado. Canoa, você tinha que arranjar madeira pra você fazer... madeira única. Hoje em dia é difícil... Agora não, com a baleeira você vai numa loja de madeira, compra o compensado e diz para o carpinteiro: eu quero assim... a metragem que eu quero é assim de largura, boca, comprimento... A maioria do pessoal que pesca agora, é baleeira. Naquela época tinha canoa, era no remo. Hoje, as baleeiras são com motorzinho na popa, a remo é muito pouco. O Sr. Norberto diz que está há mais de 30 anos fora da pesca. Quando ainda atuava na atividade pesqueira, ele pescava fora da Baía e confessa que ganhou muito dinheiro 112 trabalhando dessa forma. Hoje em dia ele constata que a pesca em Jurujuba está muito diferente do tempo em que ele a praticava. No seu tempo, o pescador ficava durante vários dias no mar, hoje, toda noite o pescador volta para dormir em casa independentemente de ter feito uma boa pescaria ou não. "Antigamente, a gente saía quatro horas da tarde, varava a noite e tal, se não viesse nada, de madrugada arriava o ferro pra descansar um pouquinho... clareava o dia." Depois com a introdução do aparelho de sonda já era possível pescar mesmo com a luz do sol: "o dia ia clareando...então a gente ia procurar mais peixe, às vezes o encontrava; às vezes rodava o dia todo... parava... almoçava, tal... outra noite..." Mas atualmente, segundo o Sr. Norberto, os pescadores não se dedicam à atividade da pesca tanto quanto naquela época. Hoje o pessoal sai quatro horas da tarde, uma suposição, regressa nove horas da noite, e não encontra nada. Aí sai cinco horas da manhã novamente, às vezes fica o dia todo, mas só aqui dentro da Baía, lá fora muito pouco. Eu ficava cinco dias... três dias no mar. Hoje o pessoal está todo dia em casa, não tem explicação pra isso. Isso a traineira. Ele revela que embora nunca tenha visto ou praticado a pescaria de caiçara, esta sim, é realizada durante vários dias no mar, mas é perigosa. O barco utilizado para essa pescaria chama-se caiçara e fica sete ou oito dias no mar. Os pescadores carregam diversas redes que vão sendo "esticadas" uma aqui outra mais ali na frente. Depois de um ou dois dias dá-se o seu recolhimento. No caso de haver peixe capturado, eles serão gelados e em seguida a rede será novamente "esticada", são diversas redes que vão ensacadas. Os barcos utilizados são de médio porte e são seguros, é uma pescaria feita "fora de barra". O Sr. Norberto diz que esses barcos não eram pequenos: "é 8 toneladas, 10 toneladas por aí assim ..." Aos 26 ou 27 anos o Sr. Norberto deixou a pesca. E daquele tempo em que pescava, ele recorda-se das más condições de acomodação existentes para a tripulação nos barcos: (...) dava um temporal e você estava com ferro ancorado ou correndo mesmo do temporal... a gente dormia em cima da rede molhada, dormia no convés, que não tinha a comodidade... assim acolhedora... pra toda a guarnição. Tinha um beliche lá com 6 vagas e tinha em cima da caixa de máquina, ali dava o motorista, o chumbeleiro... Era assim, e o resto ficava em cima da rede, botava japona (...) e ficava dormindo ali... quinze, dezesseis... Quanto ao trabalho desempenhado no barco, ele diz que atuava no convés. "Cada um tinha a sua função. Eu não tinha função, era no convés. Cheguei a tirar o documento de 113 motorista de pesca, mas nunca usei." Segundo ele, naquela época, a Capitania dos Portos exigia dois anos de trabalho embarcado, para que o pescador pudesse obter a carta de motorista. Porém, mesmo não tendo atuado nas condições de embarcado, o Sr. Norberto afirma ter conseguido a carta, embora nunca a tivesse utilizado. "Só valeu na troca de meu documento de pescador pra moço de convés". Ele lembra que naquela ocasião foi sondado pela Capitania, no sentido de obter o documento de "carvoeiro" ou "moço de convés". "Agora é motorista, marinheiro de máquina, antigamente, era carvoeiro." E ele prontamente respondeu, que máquina, ele não queria. "Eu quero convés. Foi aí que eu troquei o meu documento." O Sr. Norberto diz que mesmo hoje em dia, exige-se do pescador que ele tenha atuado durante dois anos embarcado para que possa realizar o curso, por exemplo, para marinheiro, cabotagem ou contramestre, oferecido pela Casa do Marinheiro. O ideal é que a empresa empregadora promova o aprendizado, caso contrário, as dificuldades são muito grandes. Foi trabalhando embarcado na CONERJ, que o Sr. Norberto aprendeu muito, sem nunca ter realizado curso. Hoje está mais difícil do que antigamente. Antigamente, se trocava um documento pelo outro, hoje em dia não, você tem que prestar curso, a estabilidade, a navegação, o radar... Você tem que conhecer isto tudo. Eu sem fazer curso, eu saí da Companhia entendendo muito bem de radar. Eu pretendia fazer um curso, mas então eu estava aprendendo, eu era o marinheiro de leme, então eu trabalhava com o comandante, então eu chegava lá e ligava o radar. Ele aponta a situação daquele profissional que obteve a documentação, porém jamais atuou no mar. Quando ficavam surpresos vendo-o ligar o radar, ele dizia: "eu quero aprender a navegar no radar... 'mas Norberto, você me ensinou rapaz...', te ensinei a navegar na maré... O cara nunca viu o mar, mas tinha o documento, né?" O Sr. Norberto conta que hoje as pessoas que trabalham na cabotagem, estão atuando na Bacia de Campos, nas plataformas, nas firmas que prestam serviço para a Petrobrás ou na Petrobrás mesmo. Provavelmente ele também estaria nessas condições, caso não estivesse com um problema de saúde na perna. "Se eu não me aposentasse, eu poderia estar nessa. Eu não estou trabalhando mesmo, embora aposentado, por causa da minha perna se não eu estava trabalhando como marinheiro. Mas graças a Deus está dando pra viver." Ele relata que na época em que atuava na pesca, ele não exercia nenhuma outra 114 atividade. "Quando você é pescador, você não tem tempo de estudar. Pescador não tem tempo de estudar não, nem de trabalhar em outra coisa, de maneira alguma. É uma fase difícil, então a pessoa fica ali." Ele, inclusive, aconselha os jovens a não trabalharem na pesca, os incentiva a buscar outras formas de subsistência que não a atividade pesqueira. "De vez em quando eu converso com um rapaz... Oh rapaz, procure estudar... sai disso... que até pra você embarcar hoje em dia está difícil. Dono de barco não quer embarcar você." O Sr. Norberto fala do número reduzido de pessoas do bairro que ainda trabalham na pesca: "hoje aqui em Jurujuba, me parece... de morador... deve ter uns 20% só que pescam, o resto estuda, trabalha; não vê resultado. Eu acho que os pais mesmos que trabalharam na pesca não incentivam." Ele ressalta o problema que os pescadores enfrentam diante da falta de legalização de sua situação de trabalho. Ele conta que em Jurujuba, na época da entressafra da sardinha, os pescadores não podem pescá-la. "Então eles não podem matar a sardinha, por causa da procriação, né?" Nesta ocasião, o governo paga a esses trabalhadores um ou dois salários, desde que estejam embarcados, ou seja, desde que estejam com a sua situação de trabalho legalizada. E é aí que o problema surge, pois já que ficam proibidos de pescar, eles deveriam deixar os barcos em que trabalham, passando a contar com esse salário proveniente do governo. Mas o que ocorre é que a grande maioria dos pescadores não dispõe de documentação, não tem sua situação legalizada, inviabilizando, portanto, outras possibilidades legais de sobrevivência como trabalhador da pesca durante esse período de respeito ao ciclo de reprodução de espécies marinhas. E quanto aos armadores, estes não têm interesse no embarque da guarnição, porque implicaria em custos para eles. Pra ele receber essa subvenção ele tem que desembarcar no ato. Não pode matar sardinha... então não sai pra pescar. Então tem que desembarcar pra poder ter direito àquele um salário, dois salários pra sobreviver. E a maioria do pescador aqui não tem esse direito porque não é legalizado, não é embarcado. Eu sou revoltado com isso. Têm muitos que nem documentos têm. É porque o dono do barco tem que pagar o INSS, tem que depositar o fundo de garantia, isso tem que sair tudo da pesca. O Sr. Norberto revela também que muitas vezes o pescador aceita trabalhar nos barcos, mesmo que de forma ilegal, porque não vê outra solução para a manutenção de sua subsistência através da pesca. "Às vezes vai sem estar embarcado porque precisa trabalhar, não tem outro meio de sobrevivência, né? Então ele vai assim mesmo desembarcado, 115 entendeu? Quer dizer, mas eu não acho isso legal." Ele diz que não é por falta de vaga nos barcos que os pescadores deixam de ser embarcados.O problema é que o pescador não possui a documentação necessária para a legalização de sua situação, e mesmo se a tivesse, ela não é solicitada. "Pra embarcar, geralmente tem vaga sim, pedir documento é que ninguém pede. E às vezes quando pede, o pescador que diz que é pescador, não tem. Eu sempre fui revoltado por esses motivos." Os armadores ou mestres, segundo ele, como não têm interesse nessa legalização, levam os trabalhadores a manterem-se ilegalmente na pesca e obrigando-os muitas vezes a camuflarem essa situação. Sr. Norberto conta que "tirou" seus documentos quando tinha 20 anos, e mesmo assim não conseguiu que o embarcassem. Ele não aceitava quando, para enganar os agentes fiscalizadores, era solicitado para se esconder dentro do barco em que estava trabalhando, para que não fosse descoberta a ilegalidade existente naquela embarcação. Quando a Capitania batia, encostava na borda do barco, o mestre ou o dono do barco, mandava a gente se esconder. Eu não vou me esconder! "Mas por que Norberto?" Porque você não me embarca porque você não quer. Às vezes eu ainda ajudava a encostar a lancha no barco. O sargento ou o tenente que estava comandando ali, entrava no barco pra pedir documento. Você não adianta me esconder... Se eu estou me escondendo, eu estou devendo... e eu não estou devendo rapaz... A minha caderneta está no fundo da minha bolsa. Isso é uma prova que vocês não me embarcam porque não quer. Agora... Eu vou me esconder quando a Capitania vai abordar o barco? Eu não vou me esconder nunca! Como o Sr. Norberto não aceitava esse tipo de situação, ele percebia que era visto de forma diferente dos outros. "Então sobre isso, aí eu já passava a ser marginalizado por alguns donos de barco. 'Esse aí é polêmico... Esse aí não se esconde quando a Capitania encosta... Norberto está certo, a gente não embarca ele porque não quer, entendeu?' " Ele diz que atualmente a situação está mais difícil, e que já naquela época, por não ser embarcado, ele correu o risco de não obter a sua documentação. "Quase não consegui meu documento porque não era embarcado, não consegui os dois anos de embarque. Quase não consegui trocar na época em que precisei; hoje em dia está pior ainda... eles continuam não fazendo." Ele conta que no tempo em que pescava, muitas vezes após uma pescaria, eles iam direto com o barco para o Entreposto de Pesca da Praça XV, que naquela época abria às três horas da manhã e fechava às cinco. Lá eles vendiam o pescado. "Então a gente encostava lá pra vender o pescado. Aí vendia o que tinha lá, 1 tonelada, 2 toneladas, 3 toneladas, 10 toneladas, entendeu? Aí pegava o dinheiro. Era sardinha, xerelete, enchova, corvina, variava, 116 né?" Ele lembra que naquela época o pescador de Jurujuba não gostava de capturar sardinha. E ao saírem do mercado por volta das oito, nove horas da manhã, eles abasteciam o barco com gelo, água e óleo também, caso fosse necessário. No trajeto de volta para o porto, eles calculavam a quantia que cabia a cada um. Naquela época descontava-se primeiramente as despesas comuns, e o restante dividia em partes. Hoje, segundo Sr. Norberto, a divisão é feita de forma que metade do valor obtido vá para o proprietário do barco e a outra metade vá para a guarnição, dessa última descontam-se as despesas comuns. Aí vinha para o porto e ali já vinha fazendo as contas... Tanto para as despesas... antigamente era assim. Vamos supor, fazia 100, tirava 20 de despesa, ficava 80. Então daqueles 80 ia dividir ali em 25 partes... 30 partes. Hoje não... hoje é o contrário, é meio a meio. Por exemplo, se faz 100, 50 para o dono do barco, 50 pra dividir com a guarnição e desses 50 que ficam pra guarnição ainda sai, ainda tira despesa. Então aquela do barco, que era pra entrar na despesa também, não entra. Ele diz ser totalmente contra essa forma atual de divisão do valor obtido com a venda do pescado. "É o caso... se estou pescando... eu estava criando polêmica, eu era polêmico por esse motivo." Ele explica que nessa atual forma de dividir o montante, ou seja, metade para o dono do barco e a outra metade para a guarnição, dos 50% que cabem aos pescadores são abatidas as despesas comuns e depois eles fazem o rateio: "tantas partes para o fulano, gelador ganha duas partes, contramestre ganha quatro partes, o proeiro ganha 6 partes por aí assim, então do dono mesmo não mexe nada." Ele diz que jamais aceitaria uma situação dessa. "Então, se eu estivesse pescando ainda, eu era uma pedra no calcanhar deles. Eu não concordo nunca com isso. Isso não muda, só piora." O Sr. Norberto acha que a vida do pescador ficou prejudicada também em função do Plano Real. Segundo ele, a atividade de pesca piorou muito a partir daí, principalmente com relação à venda do pescado. "Porque antigamente eles falavam muito em 150 mil cruzeiros, 100 mil cruzeiros, certo? Agora não, é R$ 35,00... R$ 40,00. Sabe que R$ 40,00 pra uma família com o cara que passou sete dias no mar não vai dar mesmo." Ele diz que nos últimos tempos não se constata a introdução de nenhuma melhoria significativa na atividade pesqueira em Jurujuba. "Está péssimo, muita gente reclama da pesca aí, atualmente. Não melhorou nada... A tecnologia aqui, principalmente aqui, em Jurujuba não mudou nada." Ele acha que não houve uma evolução na tecnologia empregada na pesca local, 117 ao passo que em outros Estados ele percebe a existência de tecnologias já mais avançadas. "Você vai pra outros Estados... a pescaria evoluiu, o tipo de trabalho evoluiu. Aqui não, eu não sei o que houve, estacionou naquilo. Só entrou a sonda, o eco-sonda, quem pode comprar um eco-sonda compra, quem não pode não compra, a sonda também." Ele diz que as únicas novidades introduzidas na pesca em Jurujuba, os aparelhos de sonda e eco-sonda, permitem que o barco navegue procurando o peixe mesmo em noites iluminadas pela lua. Na época em que era pescador, não se pescava nessas noites porque a claridade proveniente do luar dificultava a atividade. "O pescador principalmente com a lua clara ficava três a quatro dias ou uma semana em casa despreocupado, hoje não tem nada disso, acabou." Mas, segundo ele, essa foi a única inovação na pesca, "o resto continua a mesma coisa, está ruim dentro e fora da Baía". Quanto às mudanças percebidas, o Sr. Norberto lamenta a forma predatória como a pesca vem sendo realizada em Jurujuba. Ele diz que atualmente vende-se peixes tais como boca-torta, savelha e sardinha-laje, que não eram vendidos antigamente. "Quando cercava e vinha boca-torta, o pessoal ficava até revoltado que tinha que fazer força pra jogar fora quando era muito, né? A savelha, a casca dura principalmente, também isso não vendia, hoje vende tudo." Segundo ele, as fábricas compram a boca-torta e a savelha para enlatar e dizem que são exportadas para o Japão. "Mas a tecnologia na pescaria mesmo não mudou nada. E essa tal da boca-torta e da savelha são mortas aqui dentro da Baía da Guanabara, não é fora de Barra não, antes ninguém matava." Além da pesca predatória ele constata também que a poluição das águas da Baía de Guanabara levou a uma diminuição da quantidade de peixes naquela região. A nossa Baía é muito poluída. Antigamente dava muito peixe, hoje não dá peixe como antigamente aqui dentro da Baía. Às vezes aparece uma sardinha, uma corvininha. O pessoal tem descarregado corvina, na minha opinião é um crime, desse tamanhosinho assim...Leva para o mercado e não tem nem preço. Ele critica a forma como o IBAMA atua na fiscalização da pesca. Segundo ele, o IBAMA deveria ser mais rigoroso, principalmente com aqueles que pescam para obter isca para os barcos de captura de atum. "Era uma época do IBAMA estar em cima, não deixar matar, deixar crescer, mas não." Segundo ele, a pescaria de isca para o "atunzeiro" é permitida, mas a pesca da sardinha pequena para vender é proibida. "Se você encostar o barco na entressafra com sardinha pequena ou no tamanho mais ou menos, o IBAMA está arriscado a prender o barco, dar multa no barco, mas para o atunzeiro pode matar pra iscar." Ele 118 reconhece que era muito polêmico, "eu já não tinha nem mais chance de trabalhar em barco nenhum." O Sr. Norberto revela que, atualmente, não deseja se envolver com a pesca novamente. "Hoje, graças a Deus eu não estou mais envolvido com a pesca e nem me preocupo mais com a pesca. Se algum pescador vier aqui, depender de uma ajuda de qualquer coisa, se eu puder ajudar, eu ajudo sim, mas eu me envolver com a pesca não, de maneira nenhuma, nem quero." Quando ele saiu da CONERJ, pensou em comprar um barco de pesca, mas logo desistiu da idéia. Ele acha que não conseguiria conviver com todas aquelas irregularidades, ao mesmo tempo em que também não via condições de reverter toda aquela situação. "Mas depois pensei... não quero não, eu ia me chatear muito... ia mesmo. É o caso, se eu gostava das coisas tudo certo, eu tinha que andar certo também e alguns armadores vinham contra mim, 'mas Sr. Norberto você não pode agir assim não, você tem que agir conforme...'" Ele acha que hoje em dia, quem não trabalha na pesca está muito melhor de vida do que aqueles que trabalham. "Teve um colega meu que teve três barcos de pesca, hoje não tem nenhum. O cara vende coco na praça, é aposentado também, vende uma cervejinha, agora ele está melhor do que na época em que estava com o barco, muito trabalho... vou abrir o jogo... É muita aporrinhação." Ele conta que a desonestidade na pesca é grande, atinge não só a guarnição como também os armadores. "O dono tem que estar na frente se não é roubado também. Tem isso, o armador tem que estar ali se não é roubado pelo mestre... têm essas coisas também... Então há desonestidade de um lado e de outro. Às vezes eu não gosto nem de comentar mais sobre a pesca." Quanto às fábricas de sardinhas, o Sr. Norberto diz que elas são responsáveis por grande parte da poluição das águas da Baía de Guanabara. "Nessa praia aqui, as fábricas de sardinha escangalharam as praias, né? Então as fábricas estão paradas, eu não sei porque estão paradas, uma tem mais de anos que está fechada, a daqui tem mais de dois meses, pára... fecha... Antes quando tinha pescado abastecia a fábrica." Ele lamenta o problema da poluição proveniente tanto das fábricas quanto do esgoto que é lançado todos os dias nas águas da Baía. E percebe que, atualmente, a pesca do camarão foi viabilizada a partir do fechamento das fábricas de enlatamento. Está dando camarão nessa praia imunda aí, pra você ver... depois que eles pararam de jogar detrito aí na praia, está dando camarão. Agora... quanto que as fábricas poluíam as praias aí! E o esgoto de Jurujuba é tudo jogado na praia. Agora você vê... Criador de camarão! Um rapaz um dia desses matou 30 quilos, os garotos pescando de arrastão aqui, dois molequinhos... 3 quilos. 119 Tem camarão graúdo, entendeu? Agora você vê como a poluição acaba com o negócio... O Sr. Norberto diz saber da intenção de se despoluir a Baía, mas gostaria que tal fato se desse em breve. "Aí, diz os governantes que a Baía da Guanabara vai ser despoluída, vai... mas quando?" Ele constata que a maioria dos pescadores que atuam na pesca da sardinha, trabalha para abastecer os barcos de pesca de atum. E para tanto, eles não respeitam o ciclo de reprodução da espécie. "Aqui dentro mesmo tem sardinha se criando aí, os barcos estão todos pescando pra abastecer atunzeiros. Sardinhas desse tamanhosinho... Alguns são de dentro, outros são de fora. É uma minoria, pescador de Jurujuba hoje tem muito pouco, a maioria é de fora que veio pra pescar aqui." Ao se referir ao bairro de Jurujuba, o Sr. Norberto acha que com o declínio da atividade pesqueira, o bairro melhorou muito. Hoje em dia os moradores buscam obter um melhor nível de escolaridade e almejam outros tipos de trabalho que não a pesca. As pessoas procuraram estudar mais, se aprofundar mais no estudo, hoje eles não procuram mais a pesca, a maioria procura trabalho, entendeu? Então, por isso que Jurujuba está melhor. Jurujuba pela pesca estava lá embaixo, até as fábricas de sardinha que ajudaram muito... na verdade, aquela lá do final está fechada, as três fábricas daqui estão fechadas, não estão funcionando não. Apesar de constatar que o bairro melhorou, o Sr. Norberto não concorda com a idéia de Jurujuba passar a ser um bairro turístico, conforme vem sendo denominado. "Quer dizer, em Jurujuba houve um progresso. Tanto é que aqui não está considerado mais bairro de pobre, é considerado bairro turístico, eu sou contra isto também porque quem inventou isto, quem jogou isto pra Jurujuba não vive aqui, se vivesse aqui..." Ele entende que esta denominação se deu em função dos Fortes existentes ao redor do bairro. "Rio Branco, São Luís, Fortaleza de Santa Cruz e Imbuí. Muita visitação na Fortaleza de Santa Cruz, no Forte de São Luís, e tudo é pago nas praias dos quartéis... Então por isso que é bairro turístico. E a comunidade, isso ninguém fala." Ele constata que a comunidade fica prejudicada com essa nova concepção do bairro. Um exemplo disso se deu no dia em que uma ONG estava distribuindo leite para a comunidade do Preventório, local vizinho a Jurujuba. O Sr. Norberto, então, se dirigiu à pessoa responsável pela distribuição, se apresentou como presidente da Associação e solicitou que aquela ONG atendesse a comunidade de Jurujuba, já que também era constituída de 120 moradores de baixo poder econômico. A pessoa lhe negou o pedido, por entender que Jurujuba não se tratava de um bairro pobre e sim de um bairro turístico. "Não, o bairro do senhor é considerado bairro turístico, por isso que nós não procuramos o senhor." Ele diz que em Jurujuba existem várias famílias, a maioria de pescadores, que estão passando por dificuldades financeiras. "E estou correndo atrás de uma cesta básica aí e não estou conseguindo pra dar pra essas pessoas, eu sei que estão passando necessidade, a maioria é pescador. Então, por isso que a gente vê porque que o bairro é turístico, por causa dos quartéis." O Sr. Norberto afirma mais uma vez que a denominação de bairro turístico se dá em função das visitações aos Fortes, que são inclusive pagas. E ele lembra de uma visita que fez com uma família à Fortaleza de Santa Cruz: ao entrar a pessoa paga R$2,00 ou R$3,00 com direito a um guia para a visitação. É um local que ele conhece melhor do que o próprio guia, pois inclusive, o problema em sua perna foi adquirido lá, na época em que "servia". "E lá em cima também paga R$ 3,00 pra ir, tem uma Van...paga R$ 3,00 a uma Van pra levar você. É onde é o bairro turístico. Quem sofre a conseqüência, não são os quartéis, é a comunidade. Eu acho isso errado. Mas quem que montou isso aí? Não sei." Quanto à festa de São Pedro, o Sr. Norberto diz que atualmente, ela é organizada por um grupo de fora da pesca. "Este ano foi um rapaz que mora lá no final quem fez, pescador ele não. Não, pescador mesmo não se envolve, não sei porque." Quanto ao dinheiro arrecadado, este não fica para a comunidade, vai todo para os organizadores. Somente a parte religiosa é que ocorre por conta da igreja. Para ele, a festa perdeu todas as suas características originais. No ano retrasado e ano passado, não sei se você conhece, (...) o Secretário Regional aqui, ele quem fez a festa porque a senhora dele tem uma propaganda, né? Então ela que fez a festa, os gastos todos foram com ela, uma barraca era R$ 400,00 pra alugar. Então, hoje em dia, a festa de São Pedro é comércio, mas não volta nada pra comunidade e sim pra quem organiza. Trabalham na barraca aqueles que alugam, as barracas todas são alugadas, vem gente de fora pra trabalhar. Descaracterizou totalmente. Segundo ele, a procissão de barcos é a única tradição mantida durante os festejos de São Pedro. Ele á realizada pelos pescadores. Uma lancha da Barca S/A também vem atualmente, mas os barcos são de Jurujuba e a maioria deles leva famílias. Um sorteio é feito para determinar em que barco irá a imagem de São Pedro e em qual deles irá a banda. A comunidade participa da procissão, mas também tem barco de fora participando. "Por exemplo, um barco de Macaé está fazendo uma temporada aqui, tem uma pescaria aqui perto, 121 vai, pesca e vem pra cá. Eles participam da procissão, também é só a procissão... mas não enfeitam o barco, não enfeita nada, então só acompanha." Ele conta que embora seja uma grande festa com duração de dois ou três dias, ela não tem mais nada a ver com a comunidade de pescadores local. Na festa desse ano calcularam a presença de um público de 30 mil pessoas, ele diz que Jurujuba "fechou" e tem "fechado" nos últimos três anos de festa. "Não é da comunidade. Não tem mais um leilão. Aí eles contratam cinco, seis bandas... Umas melhores do que as outras e aí tocando à noite. Três dias de festa, então três dias de banda, forró, pagode. Então a festa se decorre assim... e as barracas!" O Sr. Norberto acha que a festa deveria continuar sendo organizada pela própria comunidade. No entanto, essas pessoas que antes estavam à frente da organização, sofreram sérias acusações, fato que atualmente as deixam afastadas do processo, ao passo que outros grupos externos à comunidade assumiram o papel. "Não sei porque a gente está saindo... Porque quando você fazia festa, o pessoal daqui mesmo andava dizendo que havia roubalheiras, mas nunca ninguém provou. Aí foram se chateando, largaram de mão. Agora quem faz é grupo de fora, mas é muita gente." Ele diz que a festa de São Pedro é tão freqüentada que não é necessário nem divulgála. Os arredores se transformam em estacionamento para o público: "aquele campo ali é estacionamento, este campinho aqui é estacionamento, aqui na escola abre pra estacionamento, aonde vai ser feito o colégio faz de estacionamento também, fora os carros ficam na rua largados aí". Ele revela que se alguém passar mal lá dentro, terá dificuldades para sair. E afirma que atualmente, o capital investido para a sua realização tem como finalidade o lucro. "O pessoal adora, é muito bom. Agora, a pessoa olha mais o dinheiro, investe pra ganhar. Acho que em todo lugar tá assim." Mas, segundo ele, mesmo com todo o sucesso da festa, constata-se a perda do sentido original das comemorações de São Pedro para os pescadores. De dia, aquele monte de barraca lá... Pessoal bebendo cerveja, pessoal deixa de almoçar em casa pra ir às barracas pra almoçar, lá tem umas comidas boas. Eu mesmo de vez em quando vou almoçar lá. Vamos almoçar na festa. Três... quatro colegas vamos lá almoçar durante o dia, tomando cerveja. À noite é a mesma coisa, só que à noite tem o pagode, tem uma outra banda, outro tipo de música, forró. Os artistas nunca vieram, só bandas, banda aqui de Niterói mesmo. Porque esse grupo que fez a festa, eles fizeram um rodeio que foi uma coisa de maluco. Muito bom, bons artistas, bons grupos de pagode, de fama mesmo... Então foi esse pessoal que fez a festa do ano seguinte. Mas o sentido da festa de São Pedro conforme era antigamente dos pescadores, aquilo acabou. 122 O Sr. Norberto, enquanto presidente da Associação, gostaria de conseguir reunir mais a comunidade. Mostrar os planos que ele e outros têm para desenvolver dentro de Jurujuba. "A gente bota um projeto pra funcionar, ou depender de ir pra Prefeitura, ou pra Fundação ou pra qualquer lugar, a comunidade tem que partir junto. A força de uma Associação é isso, e aqui não acontece." Segundo ele, a própria comunidade não aparece nas reuniões, não se envolve com as questões que são do próprio interesse. "A comunidade, não estou generalizando, a comunidade só vem aqui quando está precisando de alguma coisa, mas pra agir pra comunidade mesmo que é deles, que é nossa, muito pouco aparece. Então eles querem mais gente representando a comunidade, entendeu?" Ele diz que o não envolvimento de todos com as questões comunitárias é responsável por muitos problemas existentes em Jurujuba. "A comunidade, o morador é o culpado de muita coisa aqui... de não acontecer aqui." Ele acha que em Jurujuba cada um cuida da sua vida particular, mas não se preocupa com as questões da comunidade. "Porque não é só o diretor da Associação que vai resolver muitos problemas, precisamos da comunidade em si, tem mais força, a união faz a força. Eu sinto muito isso na nossa comunidade." Ele revela que a UFF está desenvolvendo um projeto para viabilizar a posse de terra dentro da comunidade. Eles estão começando a atuar pelo Cascarejo, localidade de Jurujuba. Mas ele fica desapontado ao perceber que os próprios moradores não "compram" a idéia. "Tem gente que diz que nós somos malucos ou então estamos levando dinheiro. A gente quer se organizar... Posse de terra, então é pra se organizar, cada um dá o seu nome, faz o cadastro... Muita gente acha que nós estamos malucos, pra deixar conforme está." Ele não entende o fato das pessoas não se empenharem nessa questão do direito da terra onde moram. Não está pensando que amanhã ou depois, um grupo empresarial pode dizer que é dono disso aí, porque ninguém aqui é dono, todo mundo é posseiro. Nós estamos brigando pelo direito nosso, direito da terra, direito do pedaço que nós moramos. Tem muita gente que não quer. Então por isso que o projeto está demorando a caminhar. É por isso que eu digo que Jurujuba poderia ser melhor. Nas reuniões que são marcadas para a comunidade, quase ninguém comparece. Em Jurujuba, o Sr. Norberto estima que haja pouco mais de 1000 casas, totalizando cerca de pouco mais de 5000 moradores. Segundo ele, a empresa Telemar está fazendo um projeto para melhorar a rede, colocar fibra óptica. E para ter uma maior precisão quanto ao número de moradores eles foram até o local onde fica a sede do Programa Médico de Família para obter a informação. "Quero saber casa... então duzentas e poucas, trezentas e poucas, quinhentas e 123 poucas, sei que dá mil e poucas casas...calculadamente cinco mil e poucos moradores, de Peixe Galo para cá, daquela subidinha para cá." Quanto às perspectivas de melhoria na atividade pesqueira, o Sr. Norberto afirma que existem muitas promessas, inclusive do governo, mas até hoje nada aconteceu. O Ministro do Desenvolvimento da Pesca prometeu mundo e fundos, principalmente, nosso Presidente, né? Aqui teve reunião e tudo, com os armadores aí e o Ministro. Eles querem investir na pesca. Agora vamos ver se com este investimento vai melhorar, que até agora está na mesma. Quanto ao saneamento básico, o Sr. Norberto afirma que saiu inclusive na imprensa, que a empresa "Águas de Niterói" está sendo pressionada a tratar do problema naquela região. Ele conta que um engenheiro da empresa e uma senhora que trata de assuntos das comunidades foram lá para obter alguns dados locais. "O engenheiro que veio era antigo, era da CEDAE. Nós fizemos um projeto, nem foi em minha época, ele que elaborou o projeto pegando lá do final... Fazer um posto de tratamento ali no terreno de um quartel, que tem ali, que está largado, né?" O Sr. Norberto diz que os próprios moradores de Jurujuba se incubem de resolver o problema do esgoto local que vai direto para as praias. "A prefeitura nunca fez nada aqui, fez um pedacinho ali, não é lá grandes coisas, e a maioria quem fez foi o próprio morador." Ele diz tudo é jogado dentro das praias. "Vai tudo direto para as praias. Aonde eu moro, quem fez foi a gente mesmo e quando escangalha é a gente mesmo. Dá algum problema... nós vamos resolver." Conta também que ele e alguns vizinhos cuidam, por conta própria, do esgoto de uma faixa de 60 casas. Eu e mais dois rapazes encabeçamos lá... até lá na praia. É um meio de sobreviver, né? Pegamos nas casas com tubulação pelo caminho, fizemos diversas caixas, isso é pra limpar onde a gente mora. Era uma imundície, graças a Deus conseguimos. Aquele pedaço ali está limpo, você via fezes no caminho, rolando nas valas. Lá no final de Jurujuba rola isso ainda. Eu então chamei... eu nem era da Associação ainda... chamei uns interessados vizinhos meus, né? Vamos fazer... Vamos fazer... Só eu, comprei 30 tubos. Ele afirma que quando ocorre algum problema relacionado ao esgoto, muitas pessoas procuram pela Associação ou pela Secretaria Regional, uma vez que algumas obras foram executadas a partir do orçamento participativo, no qual ele inclusive atuou como delegado. Ele, no entanto, age de forma diferente. Nessas ocasiões, ele procura a pessoa que está 124 diretamente ligada ao problema para tentar resolvê-lo. Se for o caso, ele compra o material necessário e depois divide o valor pelos envolvidos na situação. "Vou lá no bazar, faço um orçamento. É de R$100,00 pra dividir por 60, entendeu? É assim que eu faço, mas isso já venho fazendo antes de ser presidente da Associação." O Sr. Norberto não gostou quando ouviu dizer que 70% dos moradores de Jurujuba não pagam a água. Ele afirma que isto se deve ao projeto feito na época pela CEDAE. O projeto só contemplava a rua principal, "para os morros não, então pra lei de sobrevivência pra ter um líquido dentro de casa, e eu estou nessa... eu gastei e a maioria dos moradores gastou do bolso deles." E ele prossegue dizendo que se os moradores não pagam pela água que consomem, a responsabilidade é toda da empresa "Águas de Niterói". "Então você diz que tem 70% dos moradores de Jurujuba que não paga água, mas vocês que são culpados, o dia em que vocês fizerem um projeto para os morros, aí vocês vão receber os 70%. Eu pago, eu pago até bem, pago muito caro, (...), pago R$ 80,00 de água por mês." Segundo ele, a tubulação existente nos morros foi toda colocada pelos moradores. "Aquilo foi morador que fez, gastou tubo, comprou tubo, comprou fio, compra bomba e mãode-obra." Quando recebeu a visita de profissional da empresa "Águas de Niterói", solicitando que mostrasse a área, o Sr. Norberto o levou no lugar mais crítico de Jurujuba. Levei ele na última casa que a gente chama de Ponta da Ilha, dá uns 800m ou mais, aí eu falei pra ele assim: então o senhor analisa quanto este cidadão gastou pra botar água na casa dele (mão-de-obra, fio, tubo, bomba e às vezes ainda tem um problema com a CERJ, tem isso também). Não sei se esse cidadão paga, que a maioria que furou lá embaixo... a maioria não paga. E ele continua explicando que 70% dos moradores não pagam pela água que consomem porque a empresa "Águas de Niterói" não fez sequer um projeto para fornecimento de água para os morros de Jurujuba. Segundo ele, já houve promessas de realização do projeto, mas até agora nada. "É claro, estão investindo tudo na Região Oceânica. Eles gastaram muito lá, estão ganhando retorno. Mas eles esqueceram de Niterói, não é de Jurujuba não, esqueceram é de Niterói, só estavam investindo na Região Oceânica. Isso é um projetinho, em vista da Região Oceânica." 125 Entrevista 3 "(...) que eles estavam falando em despoluir, mas não conheciam o que era a Baía..." O Sr. Leopoldo nasceu no dia 4 de agosto de 1920 às 4 horas da manhã. Seu pai era procedente de Maricá e sua mãe era nascida e criada em Jurujuba. Ela nasceu em 1900, era parteira, prestou muitos serviços, fez muitos partos. Foi condecorada, no Hotel Glória, porque participou da Legião Brasileira de Assistência, prestando serviços gratuitos durante a guerra. O Sr. Leopoldo frisa que ela não aceitava dinheiro, "era no amor mesmo". E o seu pai trabalhava como pescador. Quando teve um problema sério nos ossos, foi levado para fazer tratamento na Policlínica de Pescadores do Brasil, na Praça XV, no Rio de Janeiro. Lá, ele foi tratado por dois médicos, um deles era almirante reformado da Marinha. "O meu pai ficou cheio de dor porque aquilo dói muito, ficava desesperado." O Sr. Leopoldo conta que seu pai sempre foi pescador, ele remava e trabalhava muito. Não se recorda se ele faleceu aos 73 ou 76 anos de idade. Quando veio de Maricá para Jurujuba, casou-se com sua mãe e sempre trabalhou na pesca. "Foi a vida de pescador." Ele diz que ainda era criança quando começou a pescar. "Com 7 anos já pescava para ajudar minha mãe. A minha irmã fazia rede artesanal; (...)muito bonita por sinal minha irmã, tenho saudade dela." O Sr. Leopoldo, atualmente só tem um irmão, as duas irmãs já são falecidas. Uma delas faleceu cedo, foi vítima de uma doença séria contraída na época da guerra. "Uma doença ruim aí, onde a saúde pública se manifestou." Ele conta que naquela ocasião, o então presidente Getúlio Vargas criou uma "guarda de saúde pública. Andavam uniformizados igual ao exército, de boné, roupa cáqui, comprida, paletó fechado até aqui, no Brasil inteiro fazendo a campanha... trabalhando.., mas uma doença horrível ... " O Sr. Leopoldo diz, que naquela ocasião, morriam muitas pessoas dessa doença, muitas delas no Hospital Paula Cândido, no Rio de Janeiro. Tinha uns arcos assim que os carros passavam embaixo e no prédio tinha aquela parte da janela fechada de vergalhões grossos de uma polegada cada um, porque era doença incurável, principalmente, a tuberculose, que tinha muito mesmo. Então, essas coisas todas eu lembro bem, mais a dificuldade que a gente tinha aqui. Ele recorda-se também que na década de 30, o transporte utilizado pelos moradores de Jurujuba era a canoa a remo. Iam até o Canto do Rio. Ali, o pessoal saltava e no caso de um 126 problema de saúde, iam ao Hospital São João Batista ou na Casa de Saúde em Icaraí, a única que existia. O Pronto Socorro era ali no Jardim São João onde funciona uma parte da Prefeitura. "Na década de 30, era só canoa a remo, tudo. Depois que apareceu aqui... já mais pra frente os motores de popa, mais ou menos em 1936. E aí já iam aparecendo essas melhoras, né? E aí já tinha o motor." O Sr. Leopoldo trabalhou inicialmente junto com um senhor bastante idoso. "Um cara velho, antigo, naquela época já tinha mais de 80 anos e trabalhamos com ele. Eu ajudava ele, já ganhava um dinheirinho. Um dia eu peguei a nota de 5 mil réis, naquele tempo, e duas de 1 mil réis, ih! Já achava que estava cheio de dinheiro!" Trabalhou também com um senhor que tinha quatro embarcações. "Tinha uma amendoeira grande ali, então eu ficava trabalhando com ele." Ele diz que remava, trabalhava na rede, fazia tudo, mas era em grupo. Depois de pescar eles tinham que puxar a rede e para tanto ficavam dois de cada lado e um recolhendo as cordas que eram colocadas para fora e puxadas para a terra. Iam 4 tripulantes e o dono da embarcação. E assim, segundo ele, a atividade pesqueira foi crescendo e se desenvolvendo. Ele conta que naquela época existia abundância de peixe, "desde o camarão até a tainha, enchova, xaréu, muita coisa... mas muita abundância mesmo". Mas a comercialização se dava no antigo Mercado Municipal do Rio de Janeiro e os valores obtidos com a venda eram bem baixos. "Então era a fartura, mas o valor lá embaixo. Não tinha essa evolução, não existia o Entreposto, era o Mercado Municipal que ainda resta aquele Restaurante Alba Mar na Praça XV lá perto da Saúde Pública, é o que resta do Mercado antigo." Ele afirma que toda aquela estrutura veio da Inglaterra, era tudo feito de ferro e as peças vinham prontas para montar, e foram montadas na Praça XV. O Mercado ia até próximo de onde ficam as barcas. Os pescadores iam remando até ali para descarregar o produto. Remando... As embarcações cheias de peixe... pescava... ia direto para o Mercado vender. Todo mundo saía para pescar tainha, sardinha, enchova, camarão, arraia, polvo, lula. Eram canoas pequenas, duas toneladas... com os companheiros remando. A minha vida é essa aqui em Jurujuba. E quanto à trajetória escolar, o Sr. Leopoldo diz que estudou em Jurujuba numa escola situada ali mesmo perto da praia. "Eu quando fui pra escola... aqui era uma padaria...era aqui mesmo. A mesma área da escola...aquilo era uma escola, estudei aqui." O Sr. Leopoldo completou o antigo Ginasial em 1936 e diz que naquela época apanhava-se muito da professora. "Como você apanhava! A professora batia na gente, botava a gente de joelho no 127 milho quando fosse malcriado e botava a gente de castigo no quarto escuro." Ele pescava e estudava ao mesmo tempo para poder ajudar em casa, porque não havia outro meio. Ele conta que, na década de 30, houve uma fartura de camarão nas águas da Baía de Guanabara. "Deu uma abundância de camarão na região aqui, deu em toda a Baía. Mas... se deu aqui... a gente não ia lá pra cima, pra Paquetá, nem ali para o Cais do Porto... Aquelas áreas... ninguém ia, porque aqui deu muito." Ele diz que naquela época o presidente da Colônia era um oficial da reserva da marinha. E em função dessa enorme quantidade de camarão, ele determinou que cada saída para pescaria dessa espécie só poderia ser realizada dentro de um período máximo de duas horas, por vez. Desta forma, estaria viabilizando que o produto chegasse em perfeitas condições no Mercado. (...) se não o camarão não chegava 100%. Ele gostava da coisa certa, então a gente pescava. A gente saía 5 horas... quando chegava 7 horas a gente tinha que parar. Quando saía 4 horas... 6 horas tinha que parar. E hasteava um pavilhão branco que estava mandando regressar... e o pessoal respeitava... depois levava para o Mercado a mercadoria. O Sr. Leopoldo conta que naquela época o que tinha de melhor era a organização dos pescadores, o que hoje não mais existe. "O pescador hoje é marginalizado porque hoje em dia o pessoal se abandonou. O órgão continua vivo; você tirava os documentos para a pesca, a fiscalização era da Marinha: os documentos... a carteira assinada para fins de aposentadoria." Ele diz que hoje qualquer pessoa que "viva no mar" é considerada pescador. No entanto, apesar de viver no mar, ela "não sabe fazer o serviço artesanal que é o reparo do material, tem que pagar alguém para fazer e comprar as peças feitas, vindas das fábricas". Ele lembra que as senhoras do local, inclusive sua mãe e sua esposa, teciam as redes. Atividade que exerciam como meio de vida. E ele tece até hoje: "agora mesmo eu comprei um rolo, eu não gosto de ficar parado. Desde cedo... levanto cedo, vou caminhar, venho da caminhada, faço trabalho. Quando eu não tenho o que fazer eu saio na rua e o pessoal ri da minha cara, pinta e borda". Atualmente compra-se a rede, ela é industrializada. "Só que a rede nossa é manual, é uma outra... é mais pesqueiro como eles chamam. O peixe se embaraça mais, a outra é mais cara, mas já vem pronta, você chegou numa emergência... pronto você faz tudo... rapidinho." O Sr. Leopoldo fala que a vida de pescador é completamente irregular. Segundo ele, em 1930 a Policlínica dos Pescadores do Brasil recebia pessoas que vinham de fora do Estado para fazer tratamento. "Vinha pessoal de Manaus para cá para se tratar. Era na Praça XV, 128 aquele prédio que tem, ali era a Policlínica dos Pescadores." Ele lembra que o atendimento era realizado por ótimos profissionais. "Os maiores médicos aí para fazer o tratamento com maior carinho com a gente. Minha mãe fez operação lá, minha senhora fez operação lá, eu fiz a operação lá; e o carinho que eles tinham conosco... Sabe de que eles gostavam? Do peixe fresco e camarão." E os pescadores levavam camarões graúdos, para eles. "Camarões VG deste tamanho, naquele tempo era grande, nós chamamos camarão verdadeiro. Então hoje tem muito pouco. Então agarrava assim... separava 2... 3 quilos para um, 2...3 quilos para outro. Mas a vida minha é essa." Os pescadores ficavam felizes com o entusiasmo dos médicos diante dos camarões recebidos, que em troca vendiam seus barcos a preços bastante accessíveis. "Pô eles ficavam malucos. 'Eu quero ir no barco pescar'. Muitos deles queriam dar um passeio para ver como é que é. E aquilo para a gente era uma felicidade! E o carinho que eles tinham conosco, crédito. A gente comprava barco deles, pagando a perder de vista". O Sr. Leopoldo faz questão de ressaltar que tudo isso se deu na época em que Getúlio Vargas era presidente do Brasil. O Sr. Leopoldo já era marinheiro na década de 30. "A primeira arrancada minha foi até 1937, só pescando." Ele conta que depois foi para a escola da Marinha, Escola Almirante Batista Ana Neves, em Angra dos Reis. 658 colegas foram aprovados. Ao final do curso eles faziam uma prova e ele foi um dos aprovados, portanto estava habilitado. Os que não haviam conseguido a habilitação continuaram no curso e no ano seguinte foram aprovados."Eu estava embarcado no Tender Belmonte, navio alemão que foi preso aqui e era navio-oficina para reparos navais." Depois o Sr. Leopoldo continuou trabalhando na Marinha e desde que passou para a reserva voltou para a pesca e nela continua até hoje. "Eu viajei, embarquei, fiz a guerra, fiz tudo e me aposentei na Marinha. Foi na II Guerra Mundial. Fiquei afastado de Jurujuba desde 1937 até terminar a Guerra. Só voltei em 1945." Ele foi para a guerra sem se despedir de ninguém. Na véspera de partir, já a bordo, falou ao telefone com aquela que atualmente é sua esposa, ela morava no Posto 6 em Copacabana. Pediu que avisasse a sua mãe que o navio partiria no dia seguinte às 9 horas da manhã e que não sabia quando voltava e nem sequer se voltaria. Ele soube que no dia da partida ela esteve em Jurujuba, falou com todos, porém a tempestade era tão forte que ninguém saiu para ver navio nenhum. E assim, ele partiu e só voltou em 1945. A sua atual esposa esperou 12 anos por ele. A mãe dela faleceu em 1949 e partir desta data ele começou os preparativos para o casamento. "A mãe dela faleceu e meu pai chegou pra mim e disse: 'meu filho, você além de meu filho é meu amigo. Acabou-se a farra, agora vamos tratar do casamento.' Tudo bem meu pai, meu pai era muito meu amigo mesmo, desde 129 criança." O Sr. Leopoldo diz que naquela época tinha barco a remo, mas já existia bastante barco a motor. O Sr. Leopoldo acha que o IBAMA não cumpre o seu papel. "Uma área que era de preservação às matas, que eu não suporto este IBAMA porque não preserva nada, você olha e vê tudo destruído. É o órgão mais venal que tem porque o sujeito invade, destrói e fica o dito pelo não dito." Segundo ele, naquele tempo, eles conseguiam empréstimo porque existia a SUDEPE. Com o dinheiro que pegavam emprestado eles podiam adquirir aquilo que fosse necessário para a pesca. "Comprar rede, máquina, mandar fazer o casco para pescar e pagava lentamente. Isso na gestão de Getúlio Vargas, da década de 30 até 54, se não me engano; quando mataram ele." O Sr. Leopoldo conta que tem um neto com 18 anos que é inteligente mas é muito relaxado. E o seu filho que é torneiro mecânico orientou este neto para ser motorista. "Pelo menos não é tão ruim, ele está ganhando três salários. Motorista de barco... ele entende de máquina, né? Então se ele estivesse ancorado ali, eu ia lá com você." O Sr. Leopoldo acha que a pesca artesanal hoje está abandonada, "sem meios de defesa por causa do abandono político." E ele prossegue dizendo que atualmente a atividade pesqueira vai mal."Está numa obscuridade, sofrendo... sem documento." Ele diz que ninguém tem interesse em acertar a situação da documentação dos pescadores. "Ninguém se interessa, os proprietários, os embarcados precisam da Capitania pra fazer o seu registro, pra ele contribuir com o recolhimento do INSS." A maioria dos idosos, segundo ele, é aposentada como pescador. Mas os jovens não poderão contar com esse direito porque não têm a documentação. Os donos dos barcos têm, porque eles têm que ter o registro de propriedade da embarcação, mas os embarcados...não têm ninguém. Esse é o problema. Pescador hoje em dia é um lavrador daqueles do interior que não sabe o que é vida, não sabe nem o que é isso que nós estamos comentando. Se os donos dos barcos tivessem interesse eles iriam na Capitania, exigiam que você tirasse seus documentos pra anexar pra eles pagarem os direitos. Ele conta que em Jurujuba já houve dois casos de acidente com pescadores. Um foi com um sobrinho seu. Ele sofreu um acidente, machucou o braço e ficou desesperado: "meu tio, o que vou fazer?" "O que você vai fazer: você vai receber o seu dinheirinho em casa, vamos comigo na Capitania dos Portos..." O Sr. Leopoldo diz que naquele tempo, ele conhecia muita gente. "Agora faz muitos anos que eu estou fora..." Primeiramente ele 130 conversou com seu sobrinho: "como é que você quer? Como pescador ou como da reserva?" e o rapaz disse que queria "da reserva". Ao chegar na Capitania dirigiu-se ao sargento e o informou sobre o problema. Esse menino aí é meu sobrinho, sofreu um acidente no barco, o proprietário está se recusando a reconhecer a situação dele, o sujeito vai ficar aleijado. Não tem contribuição...não tem nada. "Tem matrícula?" Tem, quem registrou fui eu. "Cadê o documento?" Está aqui. "Pode deixar que eu vou chamá-lo. Você tem que ganhar o vencimento em casa, acidente a bordo, ele tem de pagar o direito dele. Sua carteira?" Tá aqui. "Além do que ele recebe lá, você tem que dar a parte da embarcação". O Sr. Leopoldo acha que agora é diferente, ninguém mais briga pelos seus direitos, pela sua documentação. O cara fica nessa bagunça, não procura se interessar para o futuro. Você tenta orientar, fala... e os patrões, os proprietários poderosos, acham que você não tem que se meter com isso porque você não é nada. Hoje, essa juventude, é falta de luz mesmo, a gente conversa, explica como é que se tira o documento, o elemento não se interessa. Ele dá o exemplo e mostra o que tem de ser feito para se obter os documentos, mas sente que os jovens não dão a devida importância ao assunto. "Eu mostro a minha carteira de pescador, condutor motorista naval, auxiliar de máquinas principais, são as máquinas pesadas. A gente faz isso em três meses. Meu neto mesmo é motorista, mas não tem a carteira assinada, então não ganha. Você me entendeu? É a vida, difícil, difícil." O Sr. Leopoldo afirma que esses pescadores não têm outra profissão e o problema da falta de documentos se agrava na hora da aposentadoria. "Quando chega no último tempo quer porque quer. Quem é que vai provar alguma coisa? Mas não é um, nem dois... são vários, lá tem muito mais do que aqui." O Sr. Leopoldo diz que a Colônia de Pesca recolhe um percentual na hora da descarga do pescado, mas essa contribuição não tem nenhum retorno em benefício do pescador. É difícil, mas agora o que eu acho mais desagradável é a parte administrativa da Colônia de Pesca. Você paga uma taxa na descarga do peixe para mantêla, e você não tem nada... Agora mesmo que eu não vou lá... porque estão dizendo que estão pagando o dinheiro do óleo, daquele problema da Petrobrás. Ele lembra que em uma ida à Colônia, o presidente foi pouco gentil com ele e dali ele 131 se afastou. "Falou comigo, parecia que ia me agredir, que estava falando com um moleque. Eu disse: assunto encerrado, acabou. E morreu ali, não quero saber." O Sr. Leopoldo conta que as pessoas sentem falta do tempo em que ele trabalhava na Colônia. "Ah! Sr. Leopoldo, você podia estar na Colônia, quando você estava lá fazia levantamento. Porque os falecidos... as famílias querem encaminhar para o INSS, agora não tem mais nada disso." Eu não queria dinheiro não, eu queria participar em favor dos outros. Ninguém quer... também não sou eu que vou obrigar. Depois de 83 anos, vou estar procurando o quê? E ele relembra como comprou o seu barco que estava praticamente abandonado pelo dono. "Aquele barquinho ali estava jogado no lixo, aquele branquinho que está ali..." Ele conta que em Charitas, bairro ao lado de Jurujuba, naquela época existia um casarão, um convento onde hoje funciona uma casa noturna. Ali viviam uns portugueses e o seu barco atual é daquela época. "E aquele barco era daquele tempo, eu era criança e ele já era velho." O Sr. Leopoldo lembra que ninguém entendia porque ele desejava comprar aquele barco velho. "'Você vai comprar isto para quê?', Eu acho o arqueamento dele bonito. Meu filho chegou e falou: 'Você está maluco, você vai dar quanto por isso?'" E ele pagou 25 mil réis pelo barco que só tinha a armação e estava podre. Em seguida pediu a um amigo que trabalhava no arsenal da Marinha para fazer umas melhorias no barco: "aí mandei fazer o arqueamento dele todo, medida, boca, quilha, tirou as medidas todas, e fazer o arqueamento." O Sr. Leopoldo comprou as madeiras necessárias e o amigo fez o serviço de graça. "Aí o irmão do dono do barco que faleceu há muitos anos disse: 'Leopoldo, o dono desse barco é vivo agora morria de novo de ver o barco tão bonito assim' ... isso foi na década de 70." Em seguida o Sr. Leopoldo encalhou o barco em Jurujuba e fez uns últimos acertos: (...) aí eu peguei, encalhei aqui, dei uma geral e fibrei ele todinho, tem 10 mãos de fibra, nunca mais vai acabar. Aí eu comprei um motor que estava enterrado na areia que o dono disse que não prestava mais, porque os mecânicos estão lá em casa mesmo, né? Levei, lavamos ele com água, abrimos ele todo, lubrificamos, batemos e está funcionando. Então essa é a vida da gente na pesca, é a situação que ensina a gente. O Sr. Leopoldo conta que muita gente, inclusive do "Iate Clube", se interessa em comprar o barco dele. "Tem uma senhora que ficou maravilhada...'Ah! Como eu queria... está tão bonito.'" Segundo ele, agora o barco está maltratado porque seu filho o tem usado para 132 pescar enchova e outros peixes."Agora eu não saio mais porque as pernas não têm aquele equilíbrio e a pressão também." Em 1979 o Sr. Leopoldo deu entrada no pedido de aposentadoria mas não se afastou da pesca. "Mas eu já estava aposentado e continuava pescando." Hoje em dia ele continua fazendo a rede artesanal. "Eu faço rede, eu mesmo faço, eu faço sozinho, não preciso de ninguém para me ajudar não, se não perturba..." O Sr. Leopoldo diz que todos os seus filhos têm uma profissão. E aponta para o mar mostrando os barcos que passou para os seus filhos: "aquele barco azul que está lá é de meu filho, aquele ali eu passei já para o nome do outro por causa da minha idade. Eu digo: vai para a Capitania... O outro é do outro filho, toma passa para o seu nome." Ele conta que naquela época era fácil comprar um barco porque ele também tinha uma outra profissão e "fazia bicos". E admite que hoje em dia é raro alguém fazer uma rede artesanalmente, ela já vem pronta, industrializada. Você chega lá e compra uma peça que você vai pagar a montagem. Vai demorar um mês na hipótese. Uma coisa que você faz ali mesmo, numa questão de 1... 2 horas. Já está industrializado, vem de São Paulo, Santa Catarina e do Paraná, vem desses locais onde têm as fábricas. Eles vêm aqui oferecer pra gente e a gente compra. Quantos metros quer? Eu quero 200m, eu quero 100m. Aí eles facilitam às vezes o preço e aí a gente leva o material mais barato. Eles fazem em duas vezes. Cada dia que se passa, vêm outras coisas que facilitam mais o trabalho. E sobre a poluição da Baía de Guanabara, ele prossegue contando que em Jurujuba havia uma abundância de camarão. Em 1932, quando ele tinha 12 anos aproximadamente, eles iam pescar nas Ilhas da Enxada e no Cais do Porto. E desses locais eles viam, no canal onde fica a "ponte", várias dragas enormes holandesas em atividade. Não tinha, não conhecia, não sabia, não tinha malícia, não tinha experiência, então eles estavam dragando a Baía de Guanabara. Já naquela época ali, (...) as dragas faziam aquele trabalho, então eu passei a estudar, a observar. Eu ainda não era nem homem feito, era criança. Tinha aquela caçamba... enchia aquele troço de lama, fedia, cheiro enjoativo, forte (...). Num determinado momento, o Sr. Leopoldo interrompe a entrevista e aponta para a lancha da Capitania passando no mar, é a fiscalização. Segundo ele, a lancha passa, porém não executa o trabalho de fiscalização. "Eles passam, mas fazem vista grossa. Porque se forem mesmo pedir a documentação, vai todo mundo preso, tá tudo irregular... ninguém vai ter. A documentação existe, mas está ultrapassada, adulterada." 133 O Sr. Leopoldo esteve em alguns debates sobre a questão da despoluição da Baía de Guanabara, um deles no antigo Cassino de Icaraí-Niterói, outro na Praia Vermelha-RJ. Nestes locais ele se dirigia aos palestrantes dizendo que não acreditava que a Baía pudesse ser despoluída, "que eles estavam falando em despoluir, mas não conheciam o que era a Baía ..." E o Sr. Leopoldo então quis mostrar que conhecia a região. Então eu enumerei, desde ali, aquele braço d'água que desce de São Francisco pelo canto até Botafogo chegando àqueles canais todos de Niterói, que joga água ali no Cais do Porto, na praça ali do Barreto, Gradim (...). Aí eu comecei dali pra lá a enumerar os rios – Macacu, Estrela, Suruí, Magé, Piedade... enumerando eles todos. Estão vendo quanta coisa joga detrito, lixo e lama dentro da Baía? Ele dizia não estar duvidando do trabalho de despoluição proposto, mas achava que o problema voltaria com o passar do tempo. Não estou duvidando do trabalho que vocês estão fazendo. Agora, despoluir Baía? Americano lutou, foi anos e nunca conseguiu, desistiu e nunca conseguiu com todo recurso dele, com toda sabedoria dele. Não dá, eu pago pra ver... com o tempo ela volta tudo de novo. E aqui é rio e mais rio e lá não tem isso. Lá é mar. E aqui joga mesmo dentro da enseada. E a enseada, como é que ela é? É isso aqui... Ela vai... depois vai lá dentro perto daquele morrão que está lá, e aí vem fazendo assim, entradas e saídas... E ele prosseguiu falando da Praia Vermelha e do lixo hospitalar que cai nas águas da Baía de Guanabara. "De qualquer jeito está saindo e vai tudo para a Baía. Então eu disse a eles: são várias gerações que passaram e não conseguiram. Porque é a natureza. Isso aí não é nada que vocês estão pensando. Agora o lixo da superfície esse aí é fácil de você limpar." Ele diz que apresentou um projeto de dragagem à Prefeitura, na época do "governo de Roberto Silveira, pai". "Fazer uma draga que passa por baixo do lixo e vai jogando para dentro da embarcação. Então 2... 3 homens já vão ensacando os lixos e chegava na praia, encostava num lugar baixo, punha ali e a prefeitura carregava." Segundo ele, naquela época um vereador que é deputado hoje, lançou uma proposta de limpar a superfície da água e ganhou. "Chegou lá, torpedeou a reunião ...deu contra. Queria apanhar detrito na superfície da Baía de Guanabara. Como? E ganhou a questão...também morreu...e fim de papo." E o Sr. Leopoldo concorda que as praias ficaram limpas, mas percebe que o problema não está solucionado. "Lógico que as praias ficavam completamente limpas. Na praia de Adão e Eva, um grupo de homens que tem lá, limpa periodicamente. Olha, limparam pela manhã, ela deve ainda estar limpa porque ainda não caiu temporal; mas se cair temporal, os detritos todos 134 vêm." Uma questão que o Sr. Leopoldo aponta é que existia uma fiscalização da Capitania dos Portos sobre a malha de rede. Hoje, sem essa fiscalização, a pesca se tornou muito mais predatória. "O mínimo que se podia ter de uma malha era isso... 11mm e hoje tem de 4 mm, então você mata um trocinho desse tamanho... Quando você só matava a sardinha que se podia vender, era 11mm pra frente." E ele lamenta a presença dos barcos de pesca de atum que se encontram no local esperando para comprar a isca. "Então eles vêm, compram, pagam bem e tudo bem. Só que não deixam desenvolver a criação... se você mata desse tamanhozinho...o que você quer?" Ele conta que existe uma outra pescaria realizada em mar aberto, chama-se "pescaria de porta". É uma rede que tem umas madeiras grandes nos calões que são as pontas da rede que faz um círculo, e ela aqui faz assim e vai juntando tudo pra lá. Então quando chega na hora de colher a rede, eles puxam pra bordo, tem o peixe bom, o grande... e o resto jogam na água. Fica branco de você ver pescadinha, maria-mole... tudo jogado em cima d'água; os passarinhos tudo comendo. O Sr. Leopoldo constata os prejuízos causados pela pesca realizada de forma predatória: "então tudo isso é coisa que a gente vai vendo que está cada vez destruindo mais. O que se devia fazer, no meu raciocínio... malha de 50 mm, o ideal pra salvar a criação...apanhavam somente os graúdos." Ele não concorda com os procedimentos utilizados pelo IBAMA, porque na opinião dele, deveriam dar maior atenção ao que os moradores locais têm para dizer. "Infelizmente é difícil de você chegar numa reunião do IBAMA... é criticado... eu prefiro não ir porque são pessoas que não vivem a vida, não viveram a vida e querem debater com alguém que nasceu e criou aqui. Eu vi, eu vivi." O Sr. Leopoldo recorda-se que somente na década de 20 houve um período tão difícil na pesca comparável a este. Ele conta que naquela época praticamente todos os pescadores perderam as suas redes que eram de algodão e, portanto, pouco resistentes: (...) perderam porque naquele tempo não existia o náilon, a rede era de algodão.. Então ela não podia ficar fora da umidade... ficar toda vida no sol...pega uma chuva, daqui a pouco está se desfazendo. Então todo mundo aqui ficou numa crise bárbara. Aí bota lance pra comer peixe. Chegava em terra dividia aqueles peixes pra se comer. Vocês viram isso? Eu vi. 135 E ele afirma que é imprescindível que se tome providência com relação à falta de um trabalho efetivo de fiscalização. "E assim vai a agricultura, vai tudo. Se não tomar uma iniciativa de gente para fiscalizar... não é levar dinheiro... é fiscalizar." Ele revela que é uma minoria dos moradores de Jurujuba que ainda trabalha na pesca. Os camaradas experientes não vão ficar nisso. Vão ganhar o quê? Tem outro ramo que ele vai faturar aí e ter um descanso... Vamos dizer, trabalhou 8 horas durante o dia, mas à noite ele dorme. No dia seguinte tá lá, mas chega no fim do mês o registro está lá pra receber a sua aposentadoria. Ele afirma que, atualmente, os jovens não querem trabalhar na pesca. "A garotada também não tem estímulo. Os meus filhos não pescam para a subsistência. Ele pesca, mas ele está trabalhando em uma sapataria, vem para casa à noite, descansa de manhãzinha... 5 horas está dentro de casa, quando é 8 horas já está no trabalho dele." Ele trabalha na sapataria, usa o barco para pescar e tem uma barraca para vender salgados. E ele conta que a quantia obtida com a venda do peixe que seu filho capturou no dia anterior serviu de complemento para os seus rendimentos. Ontem ele trouxe enchova, cheguei ali tem um cara: quanto você quer? "5 kg". Eu vou fazer um preço pra você mais barato porque você é da casa, vou fazer R$ 6,00. Tá todo mundo pegando a R$ 6,00... R$ 8,00 no mercado, enchova viva. "Ah, quero". Consegui R$ 80,00 pra ele, é um complemento. Pois é, mas ele tem o emprego dele lá, a filha também trabalha lá. Ele diz que o outro filho também trabalha na pesca, mas está esperando a aposentadoria do outro emprego que tem. "Não é muito, mas com o pouco que ele ganha na aposentadoria... Ele fica com o dinheiro de lá e continua trabalhando na oficina dele, pra aumentar a renda dele." Sr. Leopoldo comenta que não foi por falta de orientar seus filhos, mas eles não aceitaram seguir a carreira militar naquela época. "Então, a minha vida é essa. Não, que eu não encaminhasse nenhum dos dois. Eles podiam estar na reserva. Hoje, um está com 53 e Tuninho está com 51, já podiam estar aposentados." Ele diz que seus filhos teriam conseguido entrar com facilidade para a Marinha naquela época porque ele conhecia todo o pessoal do Batalhão Naval, mas eles se recusaram a aceitar. "O comandante adora vocês... (que eles têm 1,85m de altura) é um grupo especial de fuzileiros navais para ações. Eu disse: rapaz vocês com formação... vão perder essa vaga? 'Ah! Não quero ser militar não.'" 136 Um deles abandonou a profissão de Educação Física: "formado na Castelo Branco, mas também estava hoje encaminhando pra reserva". Eles trabalharam em vários lugares, pescam aqui perto, é enchova, garoupa... O Sr. Leopoldo aponta no mar os barcos pequenos que fornecem a isca para os barcos grandes de fora. "Vendem ali mesmo, eles compram e pagam na hora, eles pagam com cheque." Ele fala da difícil e arriscada vida que os pescadores têm, os barcos não passam por vistorias e eles correm risco de vida no mar. A vida do pescador em si é um sacrifício muito grande. Quando o mar está bom, está tudo bem é uma beleza. Quando você pega aquelas travancas no oceano, não é mole não. É de arrepiar! Sacrifício e risco. Já peguei cada temporal medonho, mas a gente acostuma, faz parte. Agora a pouco ficou um lá no fundo aí. Não fazem a vistoria, aqui tem muito barco que se for fazer a vistoria, não passa. Sai... se morrer, morreu um cachorro. É a vida! Ele diz que hoje em dia existem muitos barcos. O número de canoas é muito reduzido, elas pertencem a pessoas que as preservam pela tradição. "Canoa é caro, é muito caro porque é feita de uma madeira só, de um pau só e aí tem tábuas. Agora... baleeira tem bastante ainda, essa quantidade imensa!" Ele lastima a atual situação de irregularidade que o pescador vive."É uma vida irregular porque não há uma organização, uma administração feito tinha no passado. Porque esse órgão só aposentava. Tantos outros do meu tempo são aposentados, por que hoje não são?" Ele conta que, naquela época, a arrecadação previdenciária era feita. Ele atuava na parte econômica, fazia os cálculos, verificava a mercadoria que era descarregada no mercado, vendia, e passava para o patrão o peso, o valor e a arrecadação. Daquela arrecadação eles tiravam o valor referente à despesa com gelo, óleo e alimentação. Do valor restante, 50% iam para o proprietário e 50% iam para os tripulantes. Mas antes de tirar cada uma dessas metades, eles deduziam o valor correspondente ao número de pessoas que contribuíam para o INSS. Depois de reservado o dinheiro para o pagamento do INSS, o saldo líquido restante era dividido: (...) tem uma parte que é um salário... duas partes é a parte do gelador, três partes é do motorista que ganha três salários, três partes é do homem do leme que é o comandante, cinco é do rapaz que pesca, que enxerga, que vê, que não tem hora, ele é o tempo todo em pé vigiando o aparelho ou em pé na proa do barco a noite toda e o dia todo – é o proeiro que provavelmente é o dono do barco ou sócio. 137 O Sr. Leopoldo conta que o pescado era vendido no Rio de Janeiro e em Niterói também. "Aqui em Niterói não é mal, só que não tem espaço pra aquelas carretas de transporte pra São Paulo levar. Onde você vai parar com uma carreta ali? Aqui não tem muito espaço... mas descarregava ali muita coisa, toneladas de peixe no Mercado de Niterói." Ele diz que o pescado capturado era utilizado também para consumo próprio e doação. "Lógico que tirávamos o peixe para o nosso alimento. A gente tira o quanto quiser, o que é conveniente, escolhe o que você gosta mais... dava também." E ressalta a boa vontade dos pescadores em doar um peixe a quem quer que seja. É uma classe que embora sem instrução, sem uma experiência, uma boa educação, mas tem um coração deste tamanho. Se você estiver ali no cais, se tem peixe, você leva peixe. Falam besteiras, umas expressões pouco recomendadas... mas você sai com um peixe pra comer, até aquele que não trabalhou. Era e é comum isso. O Sr. Leopoldo recorda-se do tempo em que tingia as redes artesanais com tinta de murici ou aroeira. Casca de madeira chamada murici, era aroeira e uma madeira que eu não conheço. Então tinha um grupo que era pra carregar água em lata, encher aqueles tachos enormes para botar a tinta, a água, a casca e ferver. E quando aquilo estivesse vermelho, a gente passava ali, fervendo, puxando na pontinha. Não era mole. Enquanto a pesquisadora e o entrevistado observavam todo o movimento de chegada das traineiras no cais de Jurujuba, foi possível notar o Sr. Simão, um ex-pescador, que atualmente trabalha sem qualquer tipo de vínculo, reparando as redes danificadas. É um trabalho artesanal, pra fazer um bico. Ele agora só faz zelar, né? Isso aí é uma taxa que o patrão paga diário, porque ele não é empregado dele, mas está aposentado e recebe uma média de R$ 25,00 ou R$ 30,00 por dia. Ele é desde criança daqui, nasceu com minha mãe. O dono dá o material, tira um percentual. Ele não sai mais para pescar. Ele é pago somente para atar as redes. Quanto à confecção dos barcos, ele diz que estes são construídos no Estaleiro na Ilha da Conceição. "Não temos espaço." Quanto à descarga dos peixes ele informa que em Jurujuba existe a ponte de descarga do produto capturado, "mas a oficial é lá em Niterói". Ainda enquanto observavam o descarregamento no cais, a pesquisadora e o 138 entrevistado avistaram um outro pescador aposentado reparando a rede de forma artesanal. Tá vendo? Esse é artesanal, tá reparando a rede. Esse aí é pescador aposentado, passou na mão da minha mãe... Sabe fazer a rede, sabe remendar a rede e reparar de um modo geral. E a montagem também. Então esse é o verdadeiro pescador porque tem pescador e pescarola (aquele que não sabe nada). Ganha para fazer isso, é independente, não é dentro da pescaria, ele deve ganhar no mínimo R$30,00... R$ 35,00 diário. Quanto à Colônia de Pesca, o Sr. Leopoldo garante que ele nunca mais pretende trabalhar nela. "Eu não quero mais de jeito nenhum. Já trabalhei muito na Colônia, sem reivindicar nada porque eu gosto de fazer a coisa... eu era responsável pelo fichário. E nego não gosta disso, gosta de ficar à vontade." Ele conta que hoje em dia, a escassez de espécies é grande a ponto de um barco de pesca de camarão, por exemplo, chegar em Jurujuba e ali mesmo vender tudo no restaurante local. "Porque não tem aquela abundância que existia aqui no passado. A pesca está passando por uma crise muito profunda." Ele aponta a situação de seu primo que se iniciou na pesca com um barquinho pequeno e hoje ele tem dois daquele tamanho e um outro que é menor: "que criou a vida dele". E se a situação atual na pesca não está boa, segundo ele, não é por isso que o pescador vai abandonála. "Agora tá fraco, mas não é por isso que ele vai deixar de estar seguindo as normas da vida no mar. A vida dele é aquela, ele não tem outra." O Sr. Leopoldo acredita que ao chegar o verão, haverá uma "ligeira melhora" na produção, e maio é o mês em que ela diminui novamente. "Mês de janeiro, peixe que dá em abundância: enchova, corvina, maria-mole, goete e a sardinha também em abundância." Mas o Sr. Leopoldo prossegue dizendo que o problema está no tamanho das malhas utilizado atualmente que é de 4 mm e que não passa por nenhum tipo de fiscalização. "A Capitania chegava nessas redes aí no passado, chegava assim, cortava assim, tirava aquilo tudo e deixava aquele pedaço sem rede. Você também tinha que comprar outra pra botar no lugar da malhagem que era oficial, não aquela. Tinha um controle. Mas agora!" O Sr. Leopoldo acha que apesar de não haver mais a quantidade de peixe que existia antes, o pescador deveria se satisfazer com o que consegue capturar dentro da legalidade. Mas como não há fiscalização, eles buscam melhores resultados na produção utilizando-se de malhas muito pequenas e, portanto, predatórias. O que eu me preocupo é que por você não ter aquela abundância de peixe, porque está difícil... mas você se contenta com o que pega... Não tá ali aquele 139 ali só com o bonito? Por que que outro bota aquele trocinho desse tamanho pra matar a criação? Falta de fiscalização! Nós estamos decadentes nessa área. A pesquisadora e o entrevistado se dirigiram a um pescador que ali estava e o Sr. Leopoldo perguntou sobre a situação de sua documentação: "Tiago, de amigo para amigo: você tem carteira de pescador?" E ele respondeu: "Só da Colônia de Pesca." O Sr. Leopoldo insistiu: "Está vendo? Aquela oficial da Capitania dos Portos?" E o pescador: "não, da Capitania não." Ele diz que há uma falta de interesse por parte da Colônia de Pesca, caso contrário eles seriam registrados oficialmente. Ele não tem culpa. Você vê, ele pra se aposentar tem que tirar do bolso dele. Então é uma montagem que o direito do homem já era. Por causa de que? Por causa da falta de organização dos nossos chefes, né? Esse negócio de Colônia, é tudo uma panelinha só. Eu tenho um temperamento meio agressivo e acho que a Colônia não funciona. É a maior armação, não funciona.Você me entendeu? Quem dirige a Colônia são os armadores e um grupo de advogados que eles botam pra ficar por trás disto tudo, pra fazer um trabalho de acordo que eles não fiquem desmoralizados. O Sr. Leopoldo ainda ressalta a situação da Escola de pescadores que era na Ilha de Marambaia: "ela foi fundada na década de 30 e acabou mais ou menos em 1950, por aí. Acabou por causa de que? Por falta de apoio." E ele encerra a entrevista falando da tranqüilidade do bairro: "tudo gente humilde que trabalha". CAPÍTULO 4 - CONCLUSÃO Após a realização das atividades de pesquisa de campo e da organização e análise dos dados quantitativos e qualitativos coletados, chegou-se ao conjunto de conclusões abaixo relacionadas: a) O contingente de pescadores entre a população total no bairro é muito pequeno. Na década de 70 segundo Duarte (1978), Jurujuba tinha aproximadamente 25% de pescadores entre os residentes. O resultado desta pesquisa aponta somente 7,1% de pescadores na população total do bairro, o que corresponde a 12,9% da população economicamente ativa ali residente e a 17,7% dos chefes de família. Esta tão acentuada diminuição indica que o bairro perdeu em duas décadas sua tipicidade de "comunidade de pescadores" e hoje abarca uma grande maioria de moradores que se aproximam ocupacionalmente dos moradores de outros bairros pobres de Niterói. b) Atualmente, 45,5% do total de chefes de família que pescam, também atuam em uma segunda ocupação. c) Ao calcular-se a renda individual média dos chefes de família que trabalham em ocupações diferentes da pesca e dos que são somente pescadores, pode-se verificar que os chefes não-pescadores recebem em média salários 18% maiores que os chefes pescadores. d) Houve redução significativa no número de pescadores, segundo resultados obtidos com os entrevistados, que acentuam o fato de que a profissão não é mais 141 repassada "de pai para filho", ou seja, não há mais, atualmente, a reprodução familiar da ocupação de pescador no bairro analisado. e) Os agentes sociais entrevistados apresentam várias justificativas que explicam esta crise da pesca e da própria identidade do bairro. e1) Uma delas é a questão da legalização. Atualmente não existe mais a organização dos pescadores que existia, no passado. Conforme informaram os entrevistados, a grande maioria desses trabalhadores não tem a sua carteira de embarque assinada, a sua documentação regularizada, de forma a lhes dar alguma garantia, seja ela no momento de sua aposentadoria ou ao longo da sua trajetória profissional. Eles não têm os direitos trabalhistas assegurados. e2) Em caso de acidente, não possuem garantias trabalhistas ou previdenciárias. Geralmente, o registro é feito apenas na Colônia de Pesca, mas não é realizado na Capitania dos Portos. Acredita-se que este desinteresse se manifeste em razão da questão da possibilidade de gerar mais custos, de pagamento dos direitos do profissional da pesca. f) É compreensível que o pescador prefira trabalhar em outra atividade que não seja a pesca, passando a ter seus direitos garantidos em outra profissão (8 horas de trabalho diário, garantia de aposentadoria etc). g) Ouvindo-se os entrevistados, pode-se perceber a falta de fiscalização sobre as atividades de pesca em Jurujuba. Existem muitas irregularidades ocorrendo, muitas vezes, sob condições de "vistas grossas" dos órgãos competentes, que não têm desempenhado a contento o seu papel de fiscalização. h) Dentre as irregularidades ocorrentes destaca-se a falta de documentação dos pescadores e proprietários de barcos de pesca. Há ainda o problema do tamanho da malha de rede de pesca (tempos atrás, o tamanho permitido para as malhas era de 11mm e atualmente encontram-se malhas de 4mm apenas, e, portanto, significativamente predatórias). Esta prática inviabiliza o desenvolvimento e reprodução de algumas espécies, tais como a sardinha, usada como isca para a 142 pesca do atum. i) O pescador, por não estar na condição de "embarcado", fica totalmente prejudicado. Isto não ocorre por falta de vaga no barco, mas pelo fato de não possuir a documentação necessária para a regularização da sua situação (e quando a tem, geralmente não é levada em consideração no barco em que trabalha). Desta forma, ele perde oportunidades legais de sobrevivência como trabalhador da pesca durante o período de reprodução de espécies marinhas. Estas oportunidades só cabem aos legalizados. Os armadores ou mestres, conforme foi afirmado em uma entrevista, não têm interesse nessa legalização e levam os pescadores a permanecerem de forma ilegal na pesca, obrigando-os inclusive a disfarçar essa situação quando estão trabalhando nos barcos e são abordados por agentes fiscais. j) A sobrepesca é um outro fator responsável pela atual situação do bairro. Constatou-se que a pesca predatória, assim como a poluição das águas da Baía de Guanabara, levaram a uma diminuição da quantidade de peixes naquela região. k) Atualmente os barcos pequenos fornecem a isca para os barcos grandes, e para isto, utilizam malhas de rede muito pequenas, não respeitando o ciclo de reprodução da espécie, contribuindo, desta forma, para a escassez dos recursos marinhos. l) Antigamente, as embarcações maiores, chamadas caiçaras só realizavam a pesca em alto mar, mas, atualmente, atuam dentro da Baía de Guanabara, contribuindo para a diminuição das espécies marinhas, por capturarem peixes ainda em fase de crescimento. m) Quanto à poluição da Baía de Guanabara, são muitas as suas fontes, destacando-se as fábricas de enlatamento, que possuem uma grande parcela de contribuição para a sua ocorrência. Isto é mais pronunciado nas águas da Baía que banham Jurujuba. Somente após o fechamento destas fábricas foi possível detectar o reaparecimento de algumas espécies marinhas, nas praias de Jurujuba. 143 n) Os esgotos sanitários são lançados diretamente nas águas das praias locais, além de outros poluentes provenientes das mais variadas origens, lançados diariamente nas águas da Baía de Guanabara. o) Enquanto aguardam por efetivas melhorias das condições de saneamento (água e esgoto) do bairro, os próprios moradores vão contornando o problema local, por conta própria, através de formas improvisadas de saneamento, construídas através de mutirões locais. p) Diante de tantas dificuldades, atualmente em Jurujuba, um número muito pequeno de pessoas ainda atua na pesca. Os demais estudam ou trabalham em outras profissões. Os resultados das entrevistas atestam que os próprios pais não mais incentivam seus filhos a permanecerem na pesca. A maioria dos idosos, que já trabalharam na pesca, conseguiu a aposentadoria de pescador, mas os jovens não poderão contar com esse direito, porque dificilmente obterão a documentação necessária para que isto se concretize. q) Geralmente, o pescador aceita trabalhar nos barcos, mesmo que de forma ilegal, porque não vê outra solução para a manutenção de sua subsistência através da pesca. Precisa trabalhar, mesmo sem estar embarcado, porque não tem outro meio de sobrevivência. r) Atualmente, a maioria dos pescadores não sabe fazer o trabalho artesanal com a rede. Constata-se, inclusive, uma perda da memória da pesca artesanal. No passado, à medida que observavam o trabalho do mestre-de-rede, iam aprendendo. Atualmente, os donos dos barcos pagam diárias àquelas pessoas, geralmente aposentados, que sabem fazer este tipo de trabalho e aqueles pescadores que não têm esse conhecimento, são dispensados. s) Em geral, são os filhos dos donos da embarcação que trabalham nas traineiras. Com a perda dos pais, eles passaram a assumir seus lugares, ou também pode ocorrer dos pais passarem, ainda em vida, os barcos para seus filhos. t) A nova geração não segue a profissão de pescador, por falta de incentivo. 144 Passando inclusive por questões relacionadas ao baixo preço obtido com a venda do peixe, devido à ação dos atravessadores. u) Atualmente, os jovens não querem trabalhar na pesca, não têm estímulo para isto; e não pescam para a sua subsistência. Quando atuam na pesca, geralmente trabalham em outras atividades profissionais, concomitantemente, objetivando complementar os seus rendimentos. v) Os agentes sociais entrevistados carregam, ainda, um saber prático adquirido e formatado através de suas histórias ocupacionais como pescadores. Este saber faz parte de sua identidade. Um claro exemplo disto encontra-se na fala de um destes, que polemiza o fato de que não basta trabalhar na pesca para ser "pescador", pois o "pescador" precisa dominar os meandros da atividade de forma mais artesanal, conhecendo todas as fases do processo da pesca, desde a confecção da rede, até o momento de "matar" o peixe. Esta identidade que se ancora em um saber específico está, hoje, viva em somente poucos indivíduos, no bairro. x) Em suas discursividades, os agentes sociais entrevistados nomeiam o ciclo de reprodução das espécies de valor econômico e chegam a definir Jurujuba como sendo um "criador" de peixes e de camarões. Com este mesmo saber prático, explicam o fenômeno da diminuição de peixes e conseqüentemente, de pescadores. Sabem que, sem peixes não há pescadores, e que sem novas gerações de pescadores socializados nos mesmos conteúdos identitários, não haverá, em breve, senão traços em Jurujuba da antiga efervescência material e simbólica que foi o motor para uma forma específica de sociabilidade. y) Esta dissertação aponta inúmeros problemas acerca da escassez do pescado e da poluição na Baía de Guanabara. Não se tem a pretensão de apresentar soluções para tais problemas. No entanto, acredita-se que um elemento fundamental, aqui discutido, consiste na recomendação para que atuais ou futuros projetos voltados para a recuperação ambiental da Baía de Guanabara, ou para a recuperação da atividade pesqueira, levem em consideração o "saber local", construído ao longo do tempo pelos agentes sociais que se reproduzem naquele ecossistema. REFERÊNCIAS ALVERSON, Hoyt. Mind in the Heart of Darkness: Value and Self-Identity Among Tswana of Southern Africa. New Haven: Yale University Press, 1978. BERNARDES, S. 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Levantamento Sócio-econômico no Bairro de Jurujuba Endereço.:_____________________________________________________________________________________________________________________________________Localidade: _____________________ Chefe: ____________________________________________________ Tempo em Jurujuba:____anos e ____meses Nascimento: ___/___/_____ Escolaridade: ___________________ Residência anterior: ______________________________________________________________________________________________________________________ Cônjuge:______________________________________ Tempo em Jurujuba:____anos e ____meses Cor: ________________ Cor: ________________ Nascimento: ___/___/_____ Escolaridade: ___________________ Residência anterior: ______________________________________________________________________________________________ Religião da Família: _____________________________________ Nome Parentesco Idade Tempo de Moradia Escolaridade Se há crianças entre 7 e 14 anos fora da escola, por quê? _______________________________________________________ UFF / PROEX – Rua Miguel de Frias nº 9 – 6º andar – Icaraí – RJ AMORJ- SEDE PRÓPRIA: Av. Carlos Ermelindo Marins - 153 - Jurujuba - Niterói - RJ - CEP.: 24370-190 C.G.C.: 27.785.161/0001-94 - Registro no Cartório do 5º Ofício de Justiça de Niterói Estudante Sexo Esportes ( )L ( )NL ( )M ( )F ( )S ( )N ( )L ( )NL ( )M ( )F ( )S ( )N ( )L ( )NL ( )M ( )F ( )S ( )N ( )L ( )NL ( )M ( )F ( )S ( )N ( )L ( )NL ( )M ( )F ( )S ( )N ( )L ( )NL ( )M ( )F ( )S ( )N ( )L ( )NL ( )M ( )F ( )S ( )N ( )L ( )NL ( )M ( )F ( )S ( )N Pessoas que trabalham ou procuram emprego: Condição Relacionada à Pesca Profissão Ocupação Renda Pai CTA ( )S ( )N Mãe ( )S ( )N Outro ( )S ( )N Outro ( )S ( )N Outro ( )S ( )N Outro ( )S ( )N Proprietário ( )Canoa Saneamento: Água: Esgoto: ( )Cedida ( )Alugada ( )Outros_____________ ( )Canoa ( )Traineira ( )Outros_____________ ( )Canoa ( )Traineira ( )Outros_____________ ( )Canoa ( )Traineira ( )Outros_____________ ( )Canoa ( )Traineira ( )Outros_____________ ( )Canoa ( )Traineira ( )Outros_____________ Embarcado Outros () ( )____________ ( )Com Caderneta () ( )Sem Caderneta ( )Com Caderneta () () ( )Sem Caderneta ( )Com Caderneta () () ( )Sem Caderneta ( )Com Caderneta () () ( )Sem Caderneta ( )Com Caderneta () () ( )Sem Caderneta ( )Com Caderneta () Forma () ( )Sem Caderneta ( )____________ ( )____________ ( )____________ ( )____________ ( )____________ Tipo de Construção: ( )Alvenaria ( )Madeira ( )Outros_________ ( )Partilha ( )Outros_________ ( )Partilha ( )Outros_________ ( )Partilha ( )Outros_________ ( )Partilha ( )Outros_________ ( )Partilha ( )Outros_________ ( )Colônia de Pesca ( )Assoc.Pesc.Jurujuba ( )Outros___________ ( )Colônia de Pesca ( )Assoc.Pesc.Jurujuba ( )Outros___________ ( )Colônia de Pesca ( )Assoc.Pesc.Jurujuba ( )Outros___________ ( )Colônia de Pesca ( )Assoc.Pesc.Jurujuba ( )Outros___________ ( )Colônia de Pesca ( )Assoc.Pesc.Jurujuba ( )Outros___________ ( )Colônia de Pesca ( )Assoc.Pesc.Jurujuba ( )Outros___________ ( )Material aproveitado ( )Água encanada não oficial ( )Poço ( )Outros _________________ ( )No mar ( )Fossa séptica ( )Fossa rústica ( )Vala ( )S ( )N ( )Partilha Filiação Se o chefe e o cônjuge trabalham, com quem e onde ficam as crianças? ________________________________________________ Nº de Cômodos: _____ Iluminação na casa: ( )S ( )N Remuneração Autônomo ( )Água encanada oficial Iluminação pública na rua : ( )S ( )N Criação de animais: Companha ( )Traineira Nº de pessoas desempregadas e o tempo: _________________ Habitação: ( )Própria Trabalha de Que Forma ? Lixo: ( )Coleta ( )Outros _________________ Quais :________________________________________________________ Onde a família busca tratamento médico: ______________________________________________________________ Principais problemas do bairro : 1) _____________________________________________ 2) ______________________________________________ _____________________________ Assinatura do Entrevistador 3)_____________________________________________ 151 ROTEIRO DE ENTREVISTA 1) Onde e quando nasceu? 2) Caso não tenha nascido em Jurujuba, como e quando chegou lá? 3) Qual a procedência dos pais e o que faziam/fazem eles? 4) Trajetória Escolar 5) Trajetória Profissional 6) Como e quando começou a pescar? 7) Como era a lógica da pesca em Jurujuba, naquela época? 8) Como se davam as relações ao redor da pesca? As crianças também atuavam? Como era o aprendizado? 9) Até quando se deu a pesca em canoas? 10) Atualmente existem muitos poucos pescadores em Jurujuba, o que acha disso? 11) Por que as pessoas foram desistindo de pescar? 12) Ainda trabalha na pesca?/Quando parou de trabalhar na pesca? 13) Como sente as condições atuais da Baía de Guanabara? 14) Como percebe o bairro de Jurujuba atual? 15) Como sente subjetivamente essas transformações?