2 Quando Evie Johnson entrou na Wyldcliffe Abbey School, sua vida se transformou de uma maneira que ela jamais poderia prever: a descoberta da sua ligação sobrenatural com Lady Agnes, seu elo especial de irmandade com Helen e Sarah, seu amor por Sebastian... Ah, Sebastian... Agora Evie retorna a Wyldcliffe para mais um semestre e mais perigos. Cercada por inimigos, ela vive todos os dias com medo de que Sebastian possa cair na escuridão. A congregação de Wyldcliffe tem planos para os dois e agora ela suas irmãs precisam dominar o poder do Talismã antes que seja tarde. 3 Se caminhares pelo fogo, não te queimarás, e a chama não te consumirá. – Isaías 43:2 4 M eu nome é Evie Johnson, tenho dezesseis anos e sou bolsista na Wyldcliffe Abbey School for Young Ladies. Sim, a famosa escola escondida atrás das desoladas campinas, onde o vento suspira acima das colinas e o urze floresce sob o imenso e agitado céu. Todo mundo já ouviu algo sobre Wyldcliffe. E todos dizem que tenho sorte de estar aqui. O que mais você quer saber? Matérias prediletas: história e inglês. O melhor esporte: natação. Adoro comida italiana e chocolate quente; e o som das ondas na praia. Tudo perfeitamente normal… a não ser pelo meu namorado, Sebastian, que está morto. Sebastian James Fairfax. Dezenove anos, cabelos escuros, olhos azuis, o sorriso de um anjo. Poeta, filósofo, meu primeiro, meu único amor… meu lindo… Sebastian. Quando digo morto, não é por causa de um trágico acidente de carro ou alguma doença horrível. É algo bem diferente, tão absurdamente diferente que você nem consegue imaginar. Sebastian está morto e, ainda assim, Sebastian está vivo. Sebastian 5 me ama e, ainda assim, Sebastian é meu inimigo. Estou sozinha, mas tenho minhas amigas — minhas irmãs. Às vezes preciso me lembrar de que tudo o que aconteceu comigo no semestre passado foi de verdade, e que minha história ainda não terminou. Tenho de persistir até o fim, mesmo não sabendo até onde tudo isso vai dar. Preciso acreditar que Sebastian não irá me trair. Existem muitos tipos de traição. As pequenas: a palavra indelicada, a risada por trás de alguém, as pequenas mentiras. E as traições que destroem corações, arruínam mundos e transformam a poderosa e encantadora luz do dia em poeira amarga. 6 A s férias haviam terminado. Do outro lado da janela, o amanhecer de inverno estava frio e cinza. As pontas nuas das roseiras espalhadas pelo jardim da Frankie estavam queimadas devido à geada. Amanhã eu não iria acordar neste conhecido quarto, ao som de gaivotas voando sobre a baía. Amanhã tudo seria diferente. Eu estava voltando para a escola, voltando para a Wyldcliffe. Minha mala estava atulhada com presentes que papai embaraçosa e delicadamente me forçou a aceitar. Eu não queria nada, mas ele insistiu muito. E então, além do uniforme, dos livros escolares e da roupa de educação física, minha bagagem também continha uma nova câmera e um monte de equipamentos caros para as aulas de equitação que ele me convenceu a fazer assim que eu voltasse para a escola. Era como se ele estivesse tentando me compensar pela dor do primeiro Natal sem a Frankie. A única mãe que conheci, Frankie foi minha querida avó, que cuidou de mim desde que eu era um bebê. Agora que ela se foi, meu pai estava tentando me dar algum conforto para amortecer a perda. Se fosse há um ano, a morte de Frankie teria 7 sido devastadora. Mas Wyldcliffe havia me transformado. Eu estava mais forte agora, não era mais uma simples estudante. Wyldcliffe havia me ensinado sobre o medo, o perigo e a morte. E também sobre o amor. O funeral de Frankie ocorreu alguns dias antes do Natal, na igreja sobre o promontório, ao som do mar suspirando sob a falésia. Não chorei. Apenas me senti mais silenciosa do que nunca, presa em um círculo de silêncio, apesar da pequena reunião de amigos e vizinhos, o vigário, os hinos e as flores, que não tinham nada a ver comigo ou com a Frankie. Ela se foi, como um pássaro voando para a alvorada, e todo o resto era um ritual consolador para as pessoas que ficaram. Papai, no entanto, estava muito aflito. Mais tarde, quando todos haviam ido embora murmurando clichês e condolências, ele assuou o nariz e esfregou os olhos vermelhos como um soldado rude que pretendia ser, e disse: — Desculpe-me, Evie, mas tudo isso me fez lembrar da Clara… sua mãe… me desculpe. Ele estava se lembrando do funeral de minha mãe, quinze anos atrás. Eu não tinha nenhuma lembrança daquilo, é claro, pois era apenas um bebê quando ela morreu. Desculpe-me, disse meu pai, sinto muito, e me encheu de presentes que eu na verdade não queria. E então os dias transcorreram tranquilamente, fragilizados com o luto, até a hora de eu retornar à escola e deixar as gaivotas, as falésias e o mar para trás mais uma vez. Agora minhas malas estavam cheias e prontas, e as férias terminadas. Eu estava de partida. 8 Avistei meu pequeno relógio próximo à cama. O dia estava apenas começando, mas já podia ouvir meu pai, acordado, preparando-se para a longa viagem até Londres. Era hora de me levantar também, mas havia alguém com quem deveria conversar antes de fazer qualquer outra coisa. Vesti uma calça jeans e um suéter e saí silenciosamente de casa, caminhando pelo atalho rochoso em direção à praia. Enquanto eu avançava, o pálido sol surgiu por detrás das nuvens, derramando uma aquarela de luz sobre as ondas. Respirei fundo. Aquelas poderosas águas me deram força. Bem, ela sempre amou o mar, pobre menina, disseram os amáveis vizinhos ao me ver caminhando pela praia todas as manhãs; mas eles não poderiam adivinhar a verdade. Eu realmente precisava estar perto da água, da mesma forma que precisava do ar para respirar. Acordada ou dormindo, escutava a voz me chamando, e sentia aquilo estimular meu corpo, sentia uma atração constante. Água para Evie, disse Helen. Achei que seria assim. Desci até a beira do mar e fechei os olhos, entregando minha mente ao meu belo e místico elemento. Eu alcancei seu poder, pedindo o que mais queria no mundo inteiro. A batida das ondas ecoou no meu coração e pulsou nas minhas veias. E, então, lá estava ele. Sebastian caminhou sobre os cascalhos e surgiu atrás de mim, beijando a parte de trás do meu pescoço. — Pobre Evie — ele disse. — Você está triste hoje, minha garota do mar. — Não quando estou com você. 9 Suspirei e me aproximei de seu peito e me aninhei em seus braços. Estar perto de Sebastian era a própria felicidade, o suficiente para apagar qualquer sofrimento. — Não se mexa — eu disse. — Quero ver o sol sobre as ondas. Ficamos parados e observamos juntos a luz se tornando cada vez mais forte e as gaivotas descendo lentamente. — Vou sempre pensar em você ao amanhecer depois disso — falou Sebastian. — Você é meu nascer do sol, Evie, meu recomeço. Minha vida era vazia antes de conhecer você. E não valeria mais nada se eu te perdesse algum dia. — Você jamais irá me perder, Sebastian — respondi e, por alguma razão, estremeci. — Não diga uma coisa dessas. Estaremos sempre juntos. — Sempre — ele disse calmamente. — Para sempre. Queria permanecer daquele jeito, sem me mexer, maravilhada com o milagre de encontrarmos um ao outro em meio a tantas probabilidades no mundo. Mas o humor de Sebastian mudou em instantes e ele riu, provocante. — Você não vai nadar? — perguntou. — Ouvi dizer que sereias nadam em quaisquer condições. — Só se você nadar comigo. — Ri de volta, sabendo que a água estava gelada e tudo o que podíamos fazer em uma manhã fria de janeiro era deslizar sobre as pedras e andar sobre as rochas e nos abraçar para ficarmos quentes, agarrando um ao outro como as rosas se agarram às velhas paredes da casa. 10 — Voltaremos no verão para nadar, Evie. E sentiremos o sol na cara o dia inteiro, e depois ficaremos acordados até mais tarde e faremos uma fogueira na praia, e veremos as estrelas girarem no céu. — Parece perfeito. — Tudo será perfeito para nós. Você poderá me contar histórias de quando era criança, e eu farei péssimos poemas em homenagem à sua beleza, e iremos conversar, nos maravilhar e rir e colocar o mundo na direção certa. Teremos esse verão juntos, e o próximo, e mais outro… mil dias gloriosos, apenas eu e você. Ele me puxou para mais perto, e o som do mar pareceu me hipnotizar. Eu não sentia mais frio. Uma gaivota gritou bruscamente no céu branco de inverno. — Venha. Vamos caminhar até o promontório — falou Sebastian. — Quero te dizer uma coisa. Algo muito importante. Ele puxou gentilmente minha mão, mas assim que comecei a caminhar ao seu lado, ele havia ido embora. Estava sozinha. Havia sido um sonho, uma fantasia ou uma visão? Não saberia dizer. Quando o sonho terminou é que senti a dor e tive de enfrentar a verdade. Sebastian não estava lá. Ele aparecia para mim em fragmentos como aquele, mas não era o bastante. Antes que eu pudesse me conter, gritei: — Volte… onde você está… onde você está? — Mas não houve resposta. Eu estava sozinha e o vento era gelado, como lágrimas caindo sobre a neve. Sebastian estava longe e eu não sabia quando iria vê-lo novamente. 11 E u e meu pai viajamos juntos até Londres e decidimos nos despedir na plataforma da estação King Cross. — Pegue-a e divida com suas amigas — disse ao me entregar uma cara caixa de chocolates. Faria a viagem rumo ao norte até Wyldcliffe sozinha, ao passo que meu pai se preparava para retornar às suas obrigações no Exército. Ele ainda era jovem e estava em boa forma — bem, não tão jovem, mas certamente atraente — e, enquanto esperávamos juntos naqueles momentos transitórios, eu me perguntei por que ele nunca havia se casado novamente. A resposta lampejou em minha cabeça: Por sua causa, Evie, por sua causa… Senti uma pontada no coração ao pensar em tudo o que ele já havia feito por mim, e então lhe dei um abraço apertado. — Tenha um bom semestre. — Ele sorriu. — E escreva para mim. — É claro. Toda semana. — Evie… — meu pai hesitou. — Prometa que vai cuidar de si mesma. Me preocupo com você. Você está crescendo tão rápido. — Estou bem, pai. De verdade. 12 Embarquei e o trem começou a se movimentar. Me apoiei na janela e acenei enquanto a plataforma ficava para trás e meu pai se tornava menor, parecendo de alguma forma diminuído e cinzento a distância. — Estou bem — sussurrei, e fui me sentar, enfiando os chocolates na mala. Ao menos dessa vez eu tinha amigas para dividi-los: duas amigas solitárias em meio a um bando de estudantes esnobes e hostis. Quando peguei o mesmo trem em setembro, era uma novata a caminho do desconhecido, mas agora Sarah e Helen estariam esperando por mim na escola. Estava ansiosa para vê-las. Elas eram mais do que amigas, eram minha família — minhas irmãs. Estávamos unidas por misteriosos laços que ainda me surpreendiam. Fomos conduzidas a um mundo de beleza e perigo, e cada uma de nós possuía uma poderosa conexão elementar. Água para Evie, terra para Sarah, ar para Helen… Não havia nada que não pudéssemos fazer, disse para mim mesma, se continuássemos sendo leais umas com as outras e com nossa irmã secreta, Lady Agnes Templeton. Ela era meu antepassado distante, o quarto membro de nosso círculo e a serva do fogo sagrado. Enquanto o trem ganhava velocidade ao passar pelos sombrios subúrbios, tudo o que aconteceu no semestre passado reverberou na minha cabeça como um interminável mantra: Agnes, Sebastian… Fogo, água, terra, ar… Agnes… Sebastian… Sebastian… Sebastian. Meu primeiro, meu único amor. Estou voltando. Tentei dizer a ele. Estou voltando para Wyldcliffe. E foi como se ouvisse um eco na cabeça: Volte, volte, volte… 13 Toquei o colar de prata que pendia de uma nova e fina corrente sob minha blusa. O colar foi um presente de Frankie antes de morrer, um lindo adorno com um cristal brilhante no centro. Sempre esteve em nossa família, mas se alguém tivesse me dito alguns meses atrás que ele era conhecido como Talismã, e que era uma herança do Caminho Místico, selada com forças elementares, eu teria dado risada. Grande piada. Eu não fazia coisas estranhas, paranormais, Wicca, magia — seja lá o nome que você queira dar a tudo isso. Eu era a última pessoa na face da terra que fantasiava com a ideia de cantar em volta de uma fogueira sob a luz da lua. Agora, eu não estava mais rindo. Tudo o que aconteceu em meu primeiro semestre na Wyldcliffe me transformou para sempre. Eu tinha uma nova realidade, por mais absurda que ela pudesse parecer. Sebastian James Fairfax, estava escrito em sua lápide. Nascido em 1865. Acreditase que ele partiu desta vida em 1884, pela força de sua própria mão. Deus o abençoe. Sebastian, porém, não havia morrido. Jovem, impetuoso e inquieto, ele foi amado por Agnes durante todos aqueles anos. Quando os dois depararam com os ensinamentos ancestrais do Caminho Místico, Sebastian ignorou os conselhos de Agnes e foi longe e fundo demais em sua tola obsessão pela imortalidade, corrompendo as forças sagradas. Ele aprendeu a prolongar sua existência, mas no fim das contas continuava insatisfeito na sua busca atormentada pela vida eterna. Agora ele é refém dos terríveis mestres a quem serviu, os Invictos, que enganaram a morte e viveram nas sombras para sempre. Eles querem se assegurar de que Sebastian pagará o preço pelo fracasso na tentativa de juntar-se ao grupo. 14 Os prédios horrendos e as árvores esparsas que passavam em flashes pelo trem pareciam tão reais, sólidos e comuns. Meu mundo, no entanto, não era mais assim. Eu havia deixado para trás a normalidade quando conheci Sebastian no crepúsculo de setembro. Agora, vivia em um mundo de impossibilidades e de poderes invisíveis. Minha realidade terrível e inimaginável era a de que Sebastian estava condenado a desaparecer, a definhar em corpo e espírito até se tornar um demônio, um escravo dos Invictos, e não um dos seus membros. Sua única esperança — a terrível opção que lhe foi dada — era pegar o Talismã e usar seus poderes místicos para se tornar, ele próprio, um dos Invictos. E para se apossar do Talismã ele teria de me matar antes. Às vezes, a realidade é muito dolorosa para ser suportada. Eu me ajustei no assento e apoiei minha cabeça dolorida no vidro frio da janela. Uma lembrança me invadiu. Vi uma cripta subterrânea iluminada por tochas oscilantes e uma multidão de mulheres encapuzadas, a congregação das Irmãs das Trevas, que já havia servido a Sebastian uma vez. Elas cantavam em frenesi, doidas para que Sebastian reivindicasse o Talismã e as conduzisse à vida eterna. Sarah, Helen e eu fomos encurraladas e, ainda assim — ainda assim —, quando tudo levava a crer que seríamos derrotadas e que Sebastian iria tirar o Talismã das minhas mãos, ele se recusou a me machucar. Eu te amo… te amo, garota do mar. Seu amor me deu a coragem necessária para convocar meus poderes elementares e, assim, provocar uma tempestade que varreu a congregação inteira. Porém, quando tudo estava acabado, Sebastian havia desaparecido. Seu cavalo negro foi encontrado vagando pelas campinas e qualquer vestígio do cavaleiro havia se apagado. 15 Eu precisava vê-lo novamente, apesar de tudo. Sonhos não me bastavam. Lembranças não bastavam. Eu estava voltando a Wyldcliffe para reencontrar Sebastian, mas não sabia o que me aguardava. Tudo o que eu podia fazer era repetir as mesmas perguntas sem resposta pela centésima vez. O que era maior para Sebastian — o amor por mim ou a necessidade do Talismã? Ele permaneceria fiel às suas breves palavras de amor ou, no fim de tudo, iria me trair para salvar sua própria pele? — Vamos, vamos, acelere — murmurei ao trem. Tinha de chegar em Wyldcliffe. Precisava saber a verdade. 16 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax E u te amo e por isso devo lhe contar a verdade. Você sabe de tudo agora, Evie. Você sabe quais foram os meus defeitos: ganância, ambição, egoísmo, loucura, destruição. Eu não queria fazer nada de errado. Queria andar pelo mundo como um grande viajante, voando perto do sol, elevando-me em pensamento, tempo e espaço. Queria viver para sempre. Agora minha sepultura se encontra vazia e jamais encontrarei descanso ali. Este é o fato irreversível, a terrível verdade. A minha realidade. Mas há outra verdade, até mesmo aqui, na escuridão. Esta lembrança é verdadeira. Devo me agarrar a ela e não a deixar escapar. 17 Eis o que aconteceu. Eu estava na cripta sob as ruínas em Wyldcliffe. Você estava lá também — vi seus cabelos brilhantes e seu rosto pálido — e havia mulheres clamando por seu sangue, gritando com terror e ódio. A congregação. As Irmãs das Trevas. Elas estavam tentando machucá-la, tentavam me colocar contra você. Você sentia medo. Mas, de repente, apesar do meu medo e da minha necessidade, lembrei de uma coisa. Lembrei que amo você. Eu te chamei, minha garota do mar. Evoquei meu amor por você. Lembro-me claramente disso. Você se transformou, como um anjo. Você convocou seus poderes contra a Alta Mestra e suas seguidoras. Vi as águas emergindo; vi uma aparição de Agnes. Lembro que você estava perto de mim e eu te queria tanto, e num segundo você não estava mais lá. Então, restaram-me apenas dor e escuridão e me obriguei a entrar neste esconderijo. Aqui, neste canto secreto, estou cercado pelo pouco que restou de meus estudos. Não preciso de comida ou companhia, luz ou calor. Tenho tinta, caneta e minhas lembranças com você. Risco estas palavras na tentativa de chegar até você. Eu te amo e por isso devo lhe contar a verdade. Estou deixando este mundo, Evie. Em breve fecharei os olhos e acordarei não em seus braços, mas em uma noite interminável. E não haverá nenhum despertar para esse sonho profundo e escuro. 18 A cordei de repente de um sonho profundo. Alguém falava comigo. — Er, com licença… você está indo para Wyldcliffe? Uma menina de uns 11, 12 anos rodeava ansiosamente meu assento. Ela vestia o uniforme cinza-escuro e vermelho do internato, tudo muito novo, formal e levemente grande para ela. Eu ainda vestia calça jeans e uma blusa comum. — Espero não tê-la acordado — ela falou, já se desculpando. — Não… claro que não, está tudo bem. — Me mexi para sair do estado de sono. — Apenas cochilei. Tolice minha. — Então está indo para Wyldcliffe? — A garota apontou para minha mala no bagageiro sobre minha cabeça. A mala tinha uma etiqueta com o endereço colada na alça e com a caligrafia firme de papai: Wyldcliffe Abbey School. — Acho que isso já me denuncia. — Sorri, tentando ser simpática. — Sim, estou a caminho de Wyldcliffe. 19 — Posso me sentar com você? — Ela tinha uma voz anasalada, como se estivesse sempre com gripe. — Eu estava andando para lá e para cá tentando encontrar outra garota de Wyldcliffe. — Sim, é claro que você pode. — Retirei umas revistas e as coloquei no assento da frente. Enfim, ela se sentou. — Este é o seu primeiro semestre? — Era para começar em setembro, mas fiquei doente — ela disse, com um tipo de excitação escondida — ou seria medo? Ela era morena e magra, com um aspecto doentio e tristes olhos negros que pareciam fixos na minha direção. — Você gosta de Wyldcliffe? Hesitei por um momento. Não iria contar a ela como realmente me sentia em relação a Wyldcliffe ou o que sabia sobre o lugar. — É um edifício espetacular — eu disse alegremente —, como um castelo em meio às campinas. Os professores são, bem… um pouco antiquados, mas eles têm conhecimento. Há um coral e uma orquestra, caso você aprecie música, e a maioria das garotas cavalgam nos fins de semana. Até eu vou aprender a montar. Parecia algo que eu estava copiando do fôlder da escola: Wyldcliffe é o mais importante e tradicional internato para meninas na Inglaterra. Localiza-se na deslumbrante Wylde Valley e nos orgulhamos de seus altíssimos padrões acadêmicos e sociais… O que o folder não dizia era que Celia Hartle, a Alta Mestra de Wyldcliffe, havia desaparecido em circunstâncias misteriosas no fim do semestre passado. Não dizia que ela era a Alta Mestra não só da escola, mas também da congregação mortífera das 20 Irmãs das Trevas. As autoridades ficaram aturdidas com o desaparecimento da Sra. Hartle, mas eu, Sarah e Helen sabíamos que ela havia desaparecido após o conflito na cripta. Parte de mim esperava que ela estivesse morta, mas outra parte se sentia mal só de pensar nessa possibilidade. De qualquer forma, seja lá o que tenha acontecido com Celia Hartle, a congregação estaria esperando por mim e pelo Talismã assim que eu voltasse. — Mas cavalos são imprevisíveis, não são? Deve ser muito assustador. — Ah… hum... — Não estava escutando o que ela dizia, perdida em meus próprios pensamentos. — Oi? — Cavalos — a garota repetiu, parecendo mais assustada do que nunca. — Você pode se machucar, entende? Ser lançada ao chão e tudo mais. É perigoso. Ri levemente. Depois de tudo o que enfrentei em Wyldcliffe, não me preocuparia tanto em montar um pônei bem alimentado. — Não acho que o cavalo vai andar muito rápido — eu disse. — Então você não vai cavalgar? — Minha mãe não pode pagar por atividades extras como essa. — Ah, sim, é claro… — Tentei consertar minha gafe. — De qualquer forma, Wyldcliffe é um bom lugar para estudar, mas acredito que no começo você ficará com muitas saudades de casa… — Não ficarei — disse bruscamente. — Não há nada me esperando em casa. Meu pai mora na América do Norte e minha mãe está sempre trabalhando. 21 Pobre garota — pensei —, pobre e infeliz garota. Ela parecia tão nova para estar viajando sozinha de trem, a caminho do internato. — Sua mãe não poderia ter viajado com você até Wyldcliffe, em seu primeiro dia? — perguntei. A menina ficou muito vermelha e imediatamente desejei não ter dito nada. Não era da minha conta se a mãe não podia ser incomodada com as coisas da filha e, naquele momento, eu havia colocado o bedelho onde não era chamada, de novo. — Mamãe veio até a estação, mas ela não podia abrir mão do seu tempo para me acompanhar. Ela disse que eu ficaria bem, que haveria outras alunas de Wyldcliffe no trem. — A garota franziu a sobrancelha antes de levantar os olhos ansiosos e desconcertantes para mim. — Bem, mas ela estava certa. Agora estou com você, não estou? Dei um sorriso meio sem graça, sentindo pena, mas ao mesmo tempo algo nela me repelia. Havia uma carência nessa menina, algo que iria condená-la a ser uma desajustada. Bem, eu conhecia bem essa sensação. As alunas de Wyldcliffe deixaram bem claro que eu não me enquadrava. Eu não era uma loira e despreocupada menina inglesa com a pele branca de porcelana, uma pequena herança e uma linhagem que vem desde Guilherme, o Conquistador. Não me enquadrei e tive a estranha sensação de que ela também não iria se adequar. O silêncio pousou sobre nós. Não sabia mais o que dizer, então peguei um livro da mala e fingi lê-lo. Alguns minutos se passaram até ser interrompida com outra pergunta. — Lá tem uma professora chamada Srta. Scratton? 22 — Sim. Por quê? — Ela deu aulas para a minha mãe em Wyldcliffe anos atrás. Mamãe disse que ela era uma boa professora, mas um pouco esquisita. Sempre falando sobre o passado. — Bem, a Srta. Scratton é professora de história, então acredito que seja algo natural. O passado. Você nunca pode fugir do passado, aonde quer que vá… Sebastian havia me dito isso, e agora a frase servia para mim também. — Como são os outros professores? — perguntou a garota, com um certo nervosismo. — São todos como ela? Os rostos das professoras de Wyldcliffe, ou mestras, surgiram na minha frente. Deixei o livro cair em meu colo. Havia muitas outras mulheres bem mais estranhas que a Srta. Scratton. A Srta. Dalrymple, por exemplo, a mestra rechonchuda de geografia, com seus cachos loiros e brilhantes e a risada de menininha. Ou a Srta. Raglan, severa, inflexível e furiosa, que ensinava matemática. Não era o amor pelo ensino o que mantinha aquelas duas em Wyldcliffe; disso eu tinha certeza. — Bem, elas tendem a ser rigorosas — eu disse. — Há muitas regras na escola, então você precisa tomar cuidado ou, do contrário, irá terminar o semestre com uma porção de deméritos e detenções1. A garota vasculhou sua mala e pegou um livrinho desbotado. — Você já viu isto antes? 1 Nas escolas públicas britânicas, quem desrespeita as regras impostas é obrigado a cumprir a chamada “detenção”, que é uma forma de punição na qual os alunos são obrigados a ficar no colégio após o período das aulas, ou durante os intervalos, fazendo deveres extras e perdendo as atividades pós-aula. (N.T.) 23 Assim que reconheci o livro, meu coração bateu acelerado. É claro que já o tinha visto antes. Eu havia devorado cada palavra daquele pequeno livro centenas de vezes, procurando por pistas, tentando descobrir a verdade… — Sim, acredito que sim — disse displicentemente, tomando-o de suas mãos. O título estava impresso com palavras douradas sobre a capa azul: Uma Breve História de Wyldcliffe Abbey School, de Rev. A. J. Flowerdew. — Há uma cópia na biblioteca da escola. Onde você conseguiu isto? — Eu lhe disse que minha mãe estudou na escola. Ela está por dentro de tudo isso e já li milhares de coisas a respeito de Wyldcliffe. — A menina pegou o livro de volta e folheou várias páginas à procura de alguma coisa. — Você já viu esta pintura? Sabe quem é? Ao olhar para a página, meu coração pareceu sair pela boca. Sim, eu sabia quem era naquele retrato. — É a Lady Agnes Templeton — continuou a menina. — A Abadia pertencia a sua família antes de se tornar uma escola. Aqui diz que Lady Agnes morreu em um acidente a cavalo. — Ela levantou os olhos e comentou em tom confidencial: — Mas não é verdade. Ela fugiu. — O quê? — Eu a encarei, completamente surpresa. — Tudo o que sei é que ela partiu para Londres e que os pais não procuraram por ela. Foi um jovem vizinho deles, um parente distante. Você já ouviu falar dele? Chama-se Sebastian Fairfax. 24 — Hum… não… — menti. Mas o sangue estava fervendo em minhas veias: Sebastian… Sebastian… Sebastian… desliguei a voz da menina em minha cabeça e mergulhei novamente em meu mundo particular. Agora, neste exato momento, Sebastian deveria estar desvanecendo. O processo aterrorizante e sobrenatural já havia começado no semestre passado. Lembrei de seu pálido rosto, a voz fraca, os olhos avermelhados e o pavor em se tornar um espírito demoníaco. Dia após dia, gota após gota, a existência de Sebastian ia sendo sugada pelo mundo das sombras. O tempo estava se esgotando. Talvez — aquele pensamento me atormentava — já tivesse acontecido. Talvez, ao retornar para Wyldcliffe, descobriria que ele já havia deixado este mundo e desaparecido na escuridão. Não iria pensar naquilo. Não iria deixar que aquilo acontecesse. Havia uma saída para esse pesadelo e eu a encontraria. De alguma maneira, como havia prometido, dominaria cada segredo do Talismã que Agnes legou a mim e teria o destino de Sebastian nas mãos. Não iria deixá-lo cair em tormento por minha causa. Precisava encontrá-lo antes que fosse tarde demais. O trem ressoou uma melodia interminável e dolorosa: Volte… tarde demais… volte… tarde demais… tarde demais… — Sebastian Fairfax era maluco. — A garota se aproximou e tocou meu braço para chamar minha atenção. — Dizem que Wyldcliffe é amaldiçoada por causa dele. Afastei-me do seu toque, sentindo-me terrivelmente irritada de repente. Aquela garota não sabia nada da verdade por trás da sua estúpida fofoca. Como ousava 25 esquadrinhar a vida de Sebastian daquele jeito, como se fosse o boato de algum jornal barato? — Não acredito nessas bobagens — disse friamente. — Bem, todos dizem que Wyldcliffe é mal-assombrada. — Ela se sentou no banco novamente, parecia pequena e magricela em seu uniforme mal-ajambrado. — E minha mãe disse que em Wyldcliffe as estudantes ficavam desafiando umas às outras a procurar pelo fantasma da Agnes depois do anoitecer. No entanto, mamãe nunca a viu. Você já? Levantei-me abruptamente. — Vou pegar um pouco de café no vagão-restaurante. Ao tirar minha carteira de dentro da mala, tentei me acalmar. Afinal de contas, ela era apenas uma menina indo para o internato pela primeira vez, animada pelo que havia escutado sobre a velha Abadia e sua longa história. Não tinha culpa por ser desajustada, comum e inconveniente. Me esforcei para ser simpática, mesmo não sentindo a menor vontade de sê-lo. — Bem, não devo demorar… er… qual é seu nome? — Harriet — ela deu um leve sorriso. — Harriet Templeton. Aproveite o café. Dei um pulo, como se alguém tivesse disparado uma pistola. Templeton. Harriet Templeton. Poderia ela… Teria ela alguma ligação com Agnes? E se tivesse, estaria também vinculada a mim? E por que ela estava tão interessada em Sebastian? 26 O trem fez uma curva repentina e fui cambaleando até o próximo vagão, onde os comes e bebes eram servidos. Minha cabeça girava. Paguei pela bebida, mas não retornei ao assento. Encontrei um canto vazio no corredor e olhei pela janela, deixando o café esfriar enquanto nos distanciávamos cada vez mais de Londres e adentrávamos o distante e selvagem norte. 27 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax A o norte distante e selvagem eu observo e espero pela garota do mar inquieto AaAN ah, vento selvagem que vem de longe, encontre meu amor e a traga de volta para mim, por favor No norte distante e selvagem meu coração se partirá pela garota dos olhos cinzentos, da cor do mar oh, meu amor… meu amor… Evie… minhas palavras morrem, meu corpo estremece, meu coração está amaldiçoado. 28 Tentei te escrever um poema uma vez e falhei, e agora falho novamente. O esforço para usar caneta e tinta é quase insuportável, mas de alguma forma me faz te ver diante de mim tão claramente. Desejo estar com você, ouvir sua voz e ver seu rosto, e nestes momentos desesperadores, quando tento encontrar as palavras certas para dizer como me sinto, me iludo achando que você está por perto. Mas tudo isso não tem valor nenhum. Minhas palavras são vazias e sem sentido. Os desvarios de um louco, diriam as pessoas, caso alguém se arriscasse a ler estas folhas. Chamaram-me de louco tempos atrás — mais de cem invernos atrás, em outra vida. Outra realidade. Havia retornado de Londres extasiado com todas as possibilidades do Caminho Místico, as permitidas e as proibidas. Estava obcecado pelos segredos obscuros descobertos e determinado a perseguir meu sonho egocêntrico de vida eterna, não importava o preço a pagar. Estudei, planejei e conspirei até meu cérebro explodir e meu corpo enfraquecer. Minha família e meus amigos acharam que eu estivesse louco. Naquele momento era Agnes quem me observava e rezava por mim a distância, assim como acredito e confio que você esteja fazendo agora. Querida Agnes. Amada, encantadora Evie. Posso lembrar claramente de cada detalhe da minha outra vida — mamãe chorando e meu pai frio e zangado; os criados fazendo hora pelos cantos da casa e o médico dando suas opiniões empoladas que tanto me enervavam. Tudo o que 29 aconteceu aparece para mim de forma nítida e clara, como em uma pintura, e, no entanto, as coisas que acabaram de ocorrer estão desaparecendo de minha mente perturbada. Desaparecem, borradas e confusas, como água misturada a tinta. Tudo está desaparecendo. Preciso me lembrar. Preciso me recuperar e lutar. Preciso encontrar você. E, ainda assim, o que posso lhe dar além de perigos e lamentações? É melhor me esconder aqui, como um animal ferido aguardando seu fim. Aqui posso esperar a morte pensando em você com minhas últimas forças. Não, não será este o meu fim — meu destino não é conhecer a morte. Não haverá fim para minha dor e degradação. Nenhum fim. Vida sem fim. Escuridão sem fim, para sempre. Foi para isso que me empenhei tanto? Foi para isso que Agnes morreu? Até mesmo agora percebo meus mestres pairando sobre mim, prontos a me puxar para seu mundo negro de demônios e sombras. Evie, estou com tanto medo. Eu, que pensei estar destinado a saber e a conquistar tudo! Sonhei que seria um mestre entre os homens, um alquimista, um feiticeiro, um senhor do Caminho Místico. Estava destinado a ser um operador de milagres, a triunfar sobre a própria morte; mas, neste exato momento, sinto medo. Tenho um receio maior que todos os outros: o de que você nunca esteve lá, em todos aqueles momentos. Assim como minha fatídica fantasia de eterna juventude e 30 conhecimento, talvez você tenha sido simplesmente mais um sonho absurdo. O delírio de um lunático. Uma garota dos sonhos. Uma vida dos sonhos. Um amor dos sonhos. Em meu sonho estávamos à beira do mar selvagem. Estava frio, tão frio quanto no primeiro dia de inverno, mas ainda assim meu coração estava vivo e aquecido, afinal você estava comigo. Observei-a parada na praia, envolta em pensamentos, a cabeça inclinada. E, então, surgi por trás e a envolvi em meus braços, beijando seu pescoço e sentindo o perfume de seu lindo cabelo. Lembro de seu cabelo, tão brilhante quanto uma chama viva. Eu queria lhe contar alguma coisa. Queria lhe contar… Não volte. Ela ainda está por perto, a Alta Mestra. Ela está esperando, está se preparando para envolvê-la em suas teias malditas mais uma vez. Você não deve voltar. Não volte nunca mais. É melhor que seja assim. Ah, Evie, não sou forte o bastante para lhe dizer isso! Se você é mais que um sonho, então venha até mim, tão rápido quanto um pássaro que regressa ao lar. Eu te amo, garota do mar. Volte, volte, volte. 31 E stava de volta a Wyldcliffe e tudo iria recomeçar. — Esta é a escola? — perguntou Harriet. — É para lá que vamos? O motorista de táxi da estação havia nos deixado nos portões de ferro batido que levavam à área de propriedade da escola. Era quase noite. Pegamos as malas e dobramos a estrada. As torres medievais da Wyldcliffe Abbey surgiram como vultos na sombra, congeladas no tempo dentro do turbilhão de neve. Não conseguia me decidir se aquilo lembrava um palácio ou uma prisão, mas de qualquer forma não havia escapatória. — É aqui mesmo — eu disse calmamente. — Estamos em Wyldcliffe. “Aquele lugar amaldiçoado” — denominaram alguns habitantes locais. Harriet tinha razão em uma coisa: as pessoas diziam que o lugar era assombrado. As histórias sobre Agnes tornaram-se verdadeiras lendas: velhas narrativas de que seu fantasma andava perto da Abadia; de que ela voltaria a Wyldcliffe mais uma vez para consertar um grande erro; de que podia curar os enfermos; de que Sebastian havia cometido suicídio com um antigo punhal de prata. Ah, eles diziam todo tipo de barbaridades, mas nada chegava perto da verdade. 32 Árvores altas ficaram escuras e desfolhadas nos dois lados do caminho, e montes de neve brilhavam na escuridão. A noite caía sobre as colinas escarpadas que marchavam ao redor da Abadia como guardas taciturnos. Sebastian estava lá fora, em algum lugar, eu tinha certeza. Por um momento fantasiei que ele estaria esperando por mim à beira do lago no jardim da Abadia, ansioso para contar que havia sido curado por algum milagre surpreendente. Escutaria sua risada e veria o brilho de seus olhos azuis e debochados. Provaria seus beijos, que faziam meu coração dançar e meu sangue ferver. Seríamos como qualquer casal de adolescentes deparando com o primeiro amor… Apressei os passos e Harriet caminhou a meu lado como um cão fiel. — Caramba! É tão grande… e tão antigo. — Você vai se acostumar. Ao nos aproximarmos do enorme edifício, imaginei ter ouvido algo em meio às árvores do meu lado esquerdo. Parei por um instante e olhei em volta, preocupada. Em meio às distantes sombras, pensei ter visto o vulto de alguém se mexendo silenciosamente por trás das árvores. — Quem está aí? — gritei, mas minha voz saiu fraca no ar gelado. Tudo estava parado, como o cenário de um palco antes de a peça começar, esperando que algo aconteça. Estava sendo observada. Por um momento pensei se deveria dar meia-volta e correr. Afinal de contas, estaria louca por ter voltado? No entanto, o Talismã permanecia frio e imóvel sobre minha pele, dando-me coragem e esperança. Podia fazer isso — disse a mim mesma. Podia enfrentar aquilo. Precisava enfrentar. Sebastian estaria me esperando. 33 — Vamos, Harriet, vamos entrar. Está frio. Arrastamos nossas malas até a grande porta de carvalho e adentramos o hall de entrada, onde o fogo queimava em uma lareira de pedra à moda antiga. As paredes revestidas, as pinturas de moldura dourada e os armários repletos de troféus de prata da escola eram exatamente como eu recordava. Havia o cheiro de flores, cera e madeira queimando, misturado a um sutil aroma de dinheiro e tradição. Alunas de uniforme escolar se demoravam na frente da lareira ou corriam pelos corredores que davam para o hall, ocupadas com os afazeres de um primeiro dia de aula e se achando muito importantes. Enquanto eu lá permanecia, absorvendo tudo de uma vez, uma garota de cabelos encaracolados e ternos olhos castanhos pulou sobre mim. — Evie! Você voltou! Ah, que bom te ver. — Sarah! Nos abraçamos e sorrimos, apesar do nó na minha garganta. — Como você está? — Sarah perguntou em voz baixa. — Deve ter sido difícil… lidar com o enterro e tudo mais. — Estou bem, de verdade. — Lembrei que Harriet ainda estava acompanhando minha sombra como um convidado de festa indesejável. — Er… Sarah, esta é a Harriet. Viemos juntas no trem. — Olá — Sarah sorriu. — Posso levá-la para conhecer a Srta. Barnard, Harriet? Ela é a responsável pelas meninas mais novas. O jantar será servido logo mais, e você não vai querer se atrasar. 34 — Sim, por favor — disse Harriet, agradecida. E eu estava grata, também, por me ver livre dela, finalmente. Sarah puxou Harriet com ar maternal, falando por cima do ombro: — Precisamos conversar, Evie. O mais rápido possível. Segui para o quarto carregando a mala pelas grandes escadas de mármore que levam aos andares superiores. Fiz uma pequena pausa para recobrar o fôlego perto do topo e olhei rapidamente por sobre a extremidade do corrimão de ferro. Os ladrilhos preto e branco do hall de entrada estavam logo abaixo, e a altura e todo o espaço ao redor da magnífica escadaria quase me deixavam zonza. Me desliguei de tudo por alguns segundos, o resto da escola não existia, só aquele abismo assustador, com ladrilhos brilhantes girando embaixo de mim como um frenético e gigante tabuleiro de xadrez. Imaginei ter visto a figura de uma garota deitada no chão como um brinquedo quebrado, seus olhos me encaravam e um filete de sangue vermelho corria pelo interminável preto e branco… Um sino soou estridente. Era a campainha de aviso alertando os últimos pais que se demoravam com suas despedidas de que era hora de deixar as filhas e ir embora. Respirei fundo e olhei novamente para baixo. Não havia ninguém estendido no chão ladrilhado. O que teria sido aquilo? Uma lembrança? Uma profecia? Ou apenas um dos truques que a atmosfera sinistra de Wyldcliffe pregava em minha imaginação? Não era nada. Não iria deixar que nada me desviasse do que tinha de fazer. Encontrar Sebastian. Despertar o Talismã. Era tão simples e, ao mesmo tempo, tão difícil. 35 Subi os últimos degraus e cheguei ao terceiro andar. Corredores longos ladeados por muitas portas se estendiam pelos dois lados da escadaria. Aquele era o topo do edifício; acima havia apenas o sótão fora de uso. Corri para o dormitório na esperança de encontrar Helen, mas o quarto frio e branco de teto alto estava vazio. Havia cinco camas, cada uma cercada por finas cortinas que podiam ser puxadas para se ter um pouco de privacidade. O único alívio contra a brancura asséptica do quarto era a fotografia emoldurada de uma garota pregada sobre minha cama e um assento sob a janela primorosamente esculpido com vista para o jardim e as colinas ao redor. Abri a mala e rapidamente troquei a calça jeans e o suéter pelo uniforme da escola. A gravata fora de moda escondia totalmente o Talismã pendurado sob a camisa. No entanto, sabia que precisaria encontrar algum lugar seguro para esconder minha preciosa herança. Não podia confiar em mais ninguém, exceto em Sarah e Helen, e não podia correr o risco de o colar cair em mãos erradas. Precisava manter o Talismã em segurança, tão seguro quanto o segredo de um homem prestes a morrer. Depois de transformar meus longos cachos em um perfeito rabo de cavalo, olheime no espelho. Cabelos ruivos, pele clara e olhos acinzentados da cor do mar, igual a Agnes. Em meu impecável uniforme, parecia uma típica aluna da Wyldcliffe. Apenas a expressão dos olhos me traía… Prestes a deixar o quarto vislumbrei algo no espelho e me virei novamente. Ao olhar atentamente para a parede oposta, percebi que um pedaço de papel havia sido 36 deixado na moldura da foto sobre a cama. Fui até lá e retirei o papel, mas, antes que pudesse ver o que estava escrito, uma voz familiar ecoou atrás de mim. — Ah, meu Deus. Veja quem chegou. Você não poderia ter encontrado outro lugar onde te aceitassem, Johnson? Como um orfanato? A porta foi escancarada e uma linda garota loira em roupas de grife estava lá, parada, acompanhada por mais duas alunas. — Perdão, Celeste — respondi, colocando o papel em meu bolso. — Não resisti e tive de voltar só para irritá-la. Celeste fez uma careta. — Bem, fique longe do meu caminho. — Ah, pode deixar. Na verdade não tenho muita vontade de te conhecer melhor. Celeste havia feito de tudo para tornar o meu primeiro semestre em Wyldcliffe insuportável, cheia de ressentimento por eu ter ocupado o lugar de sua prima Laura no dormitório. Pobre Laura; era seu retrato que pendia sobre minha cama. Pobre e morta Laura, destruída pela escola Wyldcliffe. Afogada no lago, segundo a história oficial, mas a terrível verdade era que ela havia sido assassinada pela congregação. Outra cruel realidade. Outro segredo de Wyldcliffe. — Olá, Sophie — cumprimentei uma das garotas paradas atrás de Celeste. Eu, na verdade, quase gostava de Sophie. Não era sua culpa ser tola, medrosa e comandada pela amiga. Sorri para ela, que olhou rapidamente para Celeste antes de responder com voz afetada: — Olá, Evie. Aproveitou as férias? 37 — Por que você está perdendo tempo falando com ela? — falou India rispidamente. Não havia nada de gentil ou de frágil em India. Tudo nela era caro e sofisticado, mas ela nunca ria ou brincava, nunca parecia realmente feliz. Wyldcliffe estava repleta de garotas como India, cada uma delas uma combinação perversa de muito dinheiro e pouco amor. Ela me empurrou estupidamente. — Viemos até aqui para nos trocar para o jantar. Por que não nos deixa em paz? — Com todo o prazer — respondi. — Bem, até mais Sophie. Vou procurar a Helen. Não deixe essas duas sugarem toda a sua energia. Caminhei em direção ao corredor. As estudantes se encaminhavam para a escadaria em pequenos grupos. Escutei fragmentos de conversas ao redor: “A polícia ainda não sabe o que aconteceu…”, “Minha mãe não sabia ao certo se me enviava de volta para cá…”, “Espero que eles descubram tudo logo…”. Falavam sobre a Alta Mestra. No exato instante em que passei pela soleira da porta de Wyldcliffe, senti que já esperava a Sra. Hartle e sua abordagem grosseira. Tão alta, elegante e fria, como em meu primeiro dia no internato. Era difícil acreditar que aquela mulher não estava mais lá, vigiando a escola como uma abelha-rainha malvada. Mesmo tendo ido embora, tinha de admitir que ela ainda me causava arrepios. Agachei e fingi mexer no sapato para ouvir o que as outras garotas diziam. Rumores sinistros circulavam entre as alunas de Wyldcliffe sobre o desaparecimento da Sra. Hartle no semestre anterior: ela havia roubado dinheiro da escola e saído do país; havia fugido com um amante secreto; havia sido raptada por um assassino 38 desvairado. Não demoraria muito até alguém culpar invasores alienígenas pelo seu sumiço. Ninguém podia imaginar que a verdade era ainda mais bizarra que qualquer outro possível boato. A fofoca das garotas continuou: “… Espero que nos digam o que está acontecendo…”; “É assustador não saber de nada…”. Elas me ignoravam. Eu era apenas a tola Evie Johnson, uma bolsista, uma intrusa que quase foi expulsa no semestre passado por estragar a procissão memorial em homenagem a Lady Agnes Templeton. Eu não era ninguém. Depois que foram embora, levantei-me e lembrei do pedaço de papel. Tirei-o do meu bolso e li as letras pequenas e pretas que alguém dali havia escrito: AGNES ESTÁ MORTA. LAURA ESTÁ MORTA. VOCÊ SERÁ A PRÓXIMA. Quem escreveu o bilhete certamente não estava perdendo tempo. Aquilo era uma declaração de guerra. 39 F ui até o sombrio refeitório, com suas fileiras de mesas e bancos de madeira. A mesa alta onde as mestras se sentavam localizava-se em uma plataforma elevada no fim da sala. O lugar ia sendo ocupado aos poucos por garotas vestidas com roupas vermelho e cinza, todas idênticas. Examinei seus rostos rapidamente e caminhei até a mesa onde uma garota alta e bonita se sentava sozinha, sua delicada beleza ofuscada pelo ar de tristeza que não a abandonava. — Helen — falei baixinho e me sentei próximo a ela. — Senti tanto sua falta. Helen levantou os olhos e, assim, pude perceber que havia chorado. Qualquer vontade de contar a ela sobra o bilhete desapareceu. Parecia que ela já tinha problemas demais com os quais se preocupar. — Desculpe-me, Evie — disse em voz baixa. — Deveria ter ajudado Sarah a te procurar, mas simplesmente não consegui. Fiquei caminhando pelo jardim a tarde toda, me escondendo de Celeste e de sua gangue, tentando criar coragem para encarar o resto da escola. 40 — Você deve estar congelada… andando lá fora com toda essa neve! Além disso, você não pode se esconder de Celeste o semestre inteiro, Helen. Apenas não deixe que ela chegue perto de você. — Eu sei, eu sei. Mas vai ser tão difícil… ouvir todas aquelas fofocas sobre a Sra. Hartle. — Sua voz era quase inaudível de tão baixa. — Sobre minha mãe… Ninguém mais sabia que Helen era filha de Celia Hartle. A Sra. Hartle abandonou Helen em um orfanato quando ela ainda era um bebê e há um ano entrou secretamente em contato com a filha e a trouxe para Wyldcliffe. A mestra pediu para Helen se juntar à congregação e a rejeitou cruelmente quando ela se recusou. — Agora que ela se foi, dói não poder dizer a ninguém que ela era minha… bem, minha família — continuou Helen. — Não é estranho? Quando estava por perto, eu ficava tão brava por ela esconder a verdade sobre mim. Tinha de esconder tanta coisa, toda a minha vida. Continuo escondendo. É como se eu não existisse. — Puxou, inquieta, a manga do suéter. — Eu a odeio por fazer parte da congregação e pelo que fez a Laura, e também pelo que tentou fazer a você; mas, ainda assim, ela era minha mãe. Acho que tinha a esperança de que um dia ela se lembrasse disso. Mas agora é tarde demais. — Mas você realmente acha que a Sra. Hartle se foi? — perguntei. — Ela está… morta? — Shhh! — Helen franziu a testa em sinal de reprovação. As alunas adentravam a sala e era impossível continuar aquela conversa. Sarah entrou e se sentou à nossa frente. 41 — Desculpe a demora. Estava ocupada com a Harriet e desci até o estábulo para ver como os pôneis estavam. — Sarah era louca por cavalos e mantinha dois pôneis nos estábulos de Wyldcliffe. — Já contei que meu pai me inscreveu para as aulas de equitação? — perguntei em tom descontraído, incapaz de falar sobre algo mais relevante. — Que maravilha! A Sra. Parker é uma boa professora, muito melhor que eu. — Sarah havia tentado me ensinar a montar no semestre passado com sua pônei Bonny, e apesar de eu ter conseguido me prender às costas do animal, ainda não era o que se poderia chamar de uma amazona elegante. Helen ficou em silêncio enquanto Sarah e eu conversávamos sobre a possibilidade de cavalgar pelas colinas durante a época de neve. E, então, o som de outra campainha invadiu a sala. As garotas se levantaram num pulo à medida que as professoras entraram e ocuparam seus devidos lugares. A cadeira entalhada onde a Alta Mestra se sentava permaneceu sem ninguém, como um trono vazio. A Srta. Scratton, a mestra responsável pelas alunas mais velhas, ficou em pé diante de toda a escola e fez a oração de praxe em voz calma e cerimoniosa. Ela lembrava uma freira, com seu vestido preto e formal, seu penteado simples e suas orações em Latim… Benedic, Domine, nos et dona tua… Em meu primeiro semestre em Wyldcliffe, a Srta. Scratton foi a única mestra na qual senti que poderia confiar. Não sabia exatamente por quê, mas sua inteligência e seus métodos justos e corretos não pareciam combinar com o estilo daquelas mulheres medonhas e avarentas que havíamos encontrado na cripta. 42 A oração chegou ao fim. A Srta. Scratton sinalizou que deveríamos nos sentar. Ouvia-se o ruído de cadeiras e bancos e um ligeiro alvoroço: “Ela vai nos contar alguma coisa”; “Eu disse a vocês… ”; “Alguma notícia ao menos…”. — Antes de iniciarmos o jantar, gostaria de dar-lhes boas-vindas novamente — declarou a Srta. Scratton. — Não nos encontramos em uma situação confortável para iniciar um novo semestre. Infelizmente, nossa Alta Mestra, a Sra. Hartle, continua desaparecida. A polícia está fazendo de tudo para tentar solucionar o caso, e temos de prosseguir normalmente, apesar das incertezas, apesar da perda que sentimos. — Por uma fração de segundo ela pareceu olhar diretamente para Helen, que estava quieta e tensa ao meu lado. — Na ausência da Sra. Hartle, devemos continuar perseguindo os altos padrões estabelecidos por ela. Os diretores da escola tomaram algumas providências para assegurar que as aulas de vocês continuem sem interrupções. A Srta. Raglan, nossa mestra de matemática, foi nomeada Alta Mestra substituta e irá conduzir a escola até segunda ordem. Todas respiraram profundamente, foi um suspiro tão alto que lembrou uma batida de tambor. Parecia que todas contavam com a escolha da Srta. Scratton para ficar no comando da escola. Eu certamente contava com isso, e quando observei um leve rubor se espalhando em seu fino rosto, percebi que ela também esperava o mesmo. — Tenho certeza — continuou resoluta — de que todas daremos à Srta. Raglan a ajuda e a lealdade que ela merece. — Começou a bater palmas e foi acompanhada por uma ou outra, mas os aplausos não duraram muito. 43 A Srta. Raglan deu um passo à frente. Ela era alta e grisalha, tinha um corpo pesado e desajeitado e um rosto vermelho de raiva. — É uma honra para mim, mesmo nas atuais circunstâncias, comandar a Wyldcliffe. Garanto a vocês que tudo permanecerá como antes, quando contávamos com a liderança inspiradora da Sra. Hartle. Não haverá perda nos padrões de excelência. Não haverá nenhum tipo de mudança. Sentou-se abruptamente na cadeira alta da Sra. Hartle, parecia deslocada e sem graça. A Srta. Scratton hesitou por um momento e, finalmente, falou: — Por favor, aproveitem o jantar agora, meninas. Hoje o sino do toque de recolher irá soar mais cedo, já que é o primeiro dia de aula e vocês devem estar cansadas da viagem. As mulheres que trabalhavam na cozinha trouxeram grandes travessas de comida e as colocaram nas mesas; as garotas começaram a se servir obedientemente, terminado o pequeno momento de surpresa. As alunas de Wyldcliffe estavam acostumadas a fazer o que lhes era imposto. Tudo permaneceria igual, não haveria mudanças… Wyldcliffe nunca mudou. Tradição. Ordem. Disciplina. Era a mesma escola de cem anos atrás. Tentei comer, mas não estava com fome. Celia Hartle podia ter ido embora, mas eu sabia que qualquer uma daquelas professoras que inspecionavam as fileiras das garotas poderia ser uma Irmã das Trevas. Caso a Sra. Hartle estivesse realmente morta, então mais cedo ou mais tarde outra Alta Mestra surgiria, sedenta de vingança. Observei cada mestra presente naquela sala: Srta. Raglan; Srta. Schofield; Sra. Richards, que ensinava biologia; Madame Duchesne, a mestra francesa; Srta. Dalrymple; e todas 44 as outras. Minha cabeça fervilhava de dúvidas. Teria alguma delas escrito o bilhete?, eu me perguntava. Quais delas estavam na cripta naquela noite, no semestre passado? Nunca gostei ou confiei na Srta. Raglan, e agora a escola estava sob seu comando. Estaria ela também comandando a congregação? Ou era simplesmente uma professora fria e insensível, obcecada pelas regras e tradições desta escola elitista? Ao me servir, olhei em volta, para as outras estudantes. Notei que Harriet estava debruçada sobre o prato, sem dizer uma palavra às outras colegas próximas a ela. Acho que ela já percebeu quais eram as verdadeiras boas-vindas do internato. Sem boa aparência, dinheiro ou confiança, Harriet já havia sido jogada para escanteio e teria de se arranjar sozinha. As outras garotas — tão ricas, bem relacionadas e atraentes — pareciam estar protegidas de qualquer mal desde o nascimento. Laura foi uma dessas meninas de ouro e, ainda assim, havia sido vítima dos segredos de Wyldcliffe. Percebi de repente que queria extirpar o mal do coração da Abadia por todos nós, não apenas por Sebastian. O jantar havia terminado. Mais orações e, mais uma vez, todas de pé em posição de sentido, enquanto o corpo docente se preparava para sair, seguido das filas de garotas. Ao ver Sarah saindo, peguei em seu braço. — Encontre a mim e a Helen depois do toque de recolher — sussurrei. — Onde? Murmurei lentamente duas palavras: — Na gruta. Sarah assentiu com a cabeça e saiu atrás das outras, em direção ao dormitório. Virei para Helen: 45 — Vamos acabar com isso o mais rápido possível. Como erámos bolsistas, Helen e eu tínhamos de fazer tediosas tarefas domésticas para mostrar nossa eterna gratidão: limpar salas de aula, escolher livros de música para o ensaio do coral, coisas do tipo. Após o jantar costumávamos organizar bandejas com xícaras de porcelana e colheres de prata para o corpo docente tomar o café na sala dos professores. Fui até o guarda-louça ao lado da sala onde tudo era guardado e comecei a arrumar as bandejas, enquanto Helen bateu na porta da cozinha para pedir um pouco de creme. Uma mulher agitada em um avental bem gordurento abriu a porta e nos examinou. — Não, hoje não. Ela não quer mais que vocês façam isso. Ela não quer alunas andando à toa por aí, foi o que me disse. — Quem disse? — perguntei. Porém, a mulher correu para dentro da cozinha abafada novamente. Senti que alguém estava me observando. Ao virar, percebi que a Srta. Raglan continuava sentada em sua cadeira esculpida sobre a plataforma elevada, torcendo as mãos lentamente. — Fui eu quem ordenou — disse, ao se levantar e caminhar em nossa direção. — Vocês estão liberadas dessa função. — Mas você disse que não haveria nenhuma mudança — retrucou Helen. Fiquei surpresa com sua atitude, pois ela geralmente permanecia em silêncio na frente das professoras. — A Sra. Hartle sempre nos pedia para deixar as bandejas de café prontas. E você disse que tudo continuaria como antes. — Não estava me referindo a essas questões menores. 46 — Não acho que a Sra. Hartle gostaria que isso fosse encarado como algo menor. — Como? Você está questionando minha autoridade? — Claro que não — respondeu Helen. — Você é a Alta Mestra agora, não é mesmo? Ela encarou sem medo o rosto pesado da Srta. Raglan, sustentando o olhar daquela velha mulher, até que a mestra cambaleou e deu um passo para trás. — Sou… sou a Alta Mestra substituta, e somente isso. Naturalmente esperamos que a Sra. Hartle volte muito em breve… é claro… Bem, continuem. A Srta. Raglan se afastou com passos pesados, lembrando-me um cão derrotado. Olhei para Helen com espanto. — O que foi tudo isso? — Não sei exatamente — ela deu de ombros. — Senti a necessidade de desafiá-la de alguma forma. Desculpe-me. Acho que não deveríamos chamar atenção para nós mesmas. — Baixou os olhos, começou a polir uma colher e suspirou pesadamente. — Talvez seja algo comigo, mas não vejo escapatória. Precisamos tomar cuidado, Evie. Sinto elas rondando sem parar, observando, esperando… — Esperando o quê? Helen suspirou novamente. — Esperando um erro nosso. 47 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax E spero… espero… espero… Espero pelo fim. Perdi a conta de quantas noites se passaram desde que a vi pela última vez. Esta noite, no entanto, me parece diferente. Algo está para acontecer. Algo mudou. Este lugar é tão frio quanto a morte. Meus membros doem e minha respiração mais parece nuvens de gelo. Deve ser inverno lá fora, onde as estações ainda existem. Quando era garoto, ficava à espera dos primeiros flocos de neve como se aguardasse um milagre… Algo está acontecendo. O silêncio deste lugar foi quebrado pelo som do mar em alguma praia distante. Sinto as ondas quebrando e batendo em meu coração. Sinto você por perto. Está de volta, minha querida? Arriscou tudo e retornou a este vale de segredos? Vou esperar por você. 48 A noite está diferente. Uma força retornou a Wyldcliffe, pulsando com vida, como o sol. O ar está mais vivo. Tudo agora se resume a observar e a esperar… Estou esperando por você. Ainda pensa em mim? Qual será o próximo capítulo de nossa história, Evie? Você ainda está à espera de um milagre? Você sonha que Agnes, a amável curandeira, irá atravessar o vazio e me tocar com seus maravilhosos dons? Rejeitei a ajuda dela há muito tempo, e temo que ela não possa me ajudar agora. Porém, sei que milagres realmente existem. Este ar. A escuridão. A neve que reside em todos os cantos desta casa adormecida. As estrelas lá em cima. Como tudo é profundamente misterioso! Não apenas os estranhos caminhos que percorremos, mas também as pequenas coisas para as quais não dei atenção. A terra sob os meus pés. Cada vida distinta: cada árvore, cada pássaro, cada criança. Cada alma preciosa… São todos mistérios. Estamos cercados por milagres. Você é um milagre. E, por isso, esperarei. Terei esperança. Aqui, em minha escuridão, erguerei os olhos para o nascer do sol. Vou esperar por você. 49 E stava aguardando. Tique… taque… tique… O pequeno despertador sobre a mesa de cabeceira contava os minutos passados, seu zunido metálico me induzia a fechar os olhos. Já havia me acostumado. Durante o semestre passado, noite após noite, deitei nesta estreita cama branca, esperando ouvir a respiração monótona de Celeste e Sophie ao caírem no sono. Sabia que India murmurava algumas vezes ao se virar na cama e que Helen permanecia imóvel, fitando o teto até seus olhos ficarem cada vez mais pesados e ela não conseguir mais mantê-los abertos. Conhecia cada rangido de cada piso daquele quarto branco e vazio. Noite após noite, saí do dormitório e desci lenta e silenciosamente a antiga escadaria dos criados para me encontrar secretamente com Sebastian. E esta noite quem sabe ele estivesse esperando por mim novamente… Talvez o milagre tenha acontecido. Tique… taque… tique… 50 Ao perceber que o sono havia tomado conta do quarto, procurei pelos sapatos em meio à escuridão, vesti o robe e saí lentamente. Não esperei por Helen. Ela teria de dar um jeito para comparecer ao nosso encontro com Sarah. Passei quase deslizando pelo corredor silencioso e atravessei a porta com cortinas que dava acesso à antiga escada dos fundos. Ao fechar a porta atrás de mim, mergulhei na escuridão e me desliguei do resto da escola. Por um momento fui tomada por uma onda de pânico. Sempre tive um medo tolo do escuro, receio de ficar presa em algum lugar estreito e sem luz e, com isso, me sentir sufocada. Agarrei e liguei uma pequena lanterna escondida no bolso. Pronto, tudo estava melhor. “Respire, Evie, não se esqueça de respirar…” O feixe de luz revelou as escadas empoeiradas de madeira que já haviam sido utilizadas pelos criados na época em que Agnes vivera em Wyldcliffe. Nos dias atuais era proibido adentrar aquela parte do edifício, mas não me importava. Eu não vivia mais de acordo com as regras da escola. Segurei firme na lanterna e desci os degraus na ponta dos pés. Não iria deixar que um medo infantil me impedisse de continuar. “Trinta e dois, trinta e três, trinta e quatro… cinquenta e cinco, cinquenta e seis…” Contei os passos até chegar lá embaixo. Por um lado, uma porta levava de volta até a parte principal da escola. Na outra direção, uma passagem com cheiro de mofo levava até a ala dos antigos criados, um aglomerado de depósitos e despensas apodrecidas. Obriguei-me a entrar na gélida escuridão e passar por uma fileira de sinos velhos, que eram utilizados pelos empregados, e pelo farfalhar de ratos nas paredes. Finalmente, 51 encontrei a desbotada porta verde que dava acesso aos estábulos. Soltei os ferrolhos e, enfim, saí. Os paralelepípedos do pátio do estábulo brilhavam devido à geada, e o céu estava alto, claro e muito distante. Uma pequena nuvem atravessou a lua, como um rastro de fumaça prateada. Parei por alguns instantes. Como tudo era profundamente misterioso, pensei. Não apenas os estranhos caminhos aos quais Sebastian havia me levado, mas as pequenas coisas às quais todos nós não damos atenção. As estrelas lá em cima. A terra sob nossos pés. Pessoas. Amizade. Amor. Eram mistérios cheios de poder e perigo — principalmente o amor. Precisava me apressar. Atravessei o pátio e passei rapidamente pelos atalhos gelados e gramados cobertos de neve. Depois de alguns minutos, cheguei até a beira de um grande lago, de águas tão negras quanto o céu. Próximo ao lago, as famosas ruínas da antiga capela de Wyldcliffe se ergueram como um navio-fantasma. Diminuí o ritmo e parei, minhas pernas tremiam e o coração batia descompassadamente. Aqui, as freiras medievais haviam um dia feito suas orações; aqui, Agnes esteve deitada e morta sobre a terra fria. E foi aqui que Sebastian e eu nos encontramos em segredo, sob as estrelas do norte. Foi aqui que conversamos, rimos e discutimos, e fizemos as pazes novamente. Aqui, nos beijamos pela primeira vez… A realidade era dura demais. Sebastian não estava me esperando debaixo dos arcos destruídos. Não haveria nenhuma solução rápida, nenhum final simples e feliz de conto de fadas. Já que Sebastian não podia operar milagres, eu teria de fazê-lo. 52 Porém, não podia fazer isso sozinha. Precisava do Talismã e de minhas irmãs — Helen, Sarah e Agnes. Deixei o lago e a capela para trás e corri sobre a terra gelada, avançando contra a escuridão. Sarah acendeu uma vela e a colocou em um vão na parede, e a caverna logo cresceu iluminada. Estávamos na gruta, uma estranha construção subterrânea, dispendiosa e inútil, construída pelo pai de Agnes no extremo mais distante do terreno da Abadia. Suas paredes eram revestidas com brilhantes mosaicos de criaturas míticas, e um riacho que corria em torno de uma estátua de Pã. A luz amarela da vela tremeluzia e iluminava brevemente as imagens grotescas2, que ganhavam vida por alguns instantes. — Alguém viu você entrando aqui? — perguntei. — Não, tenha certeza de que estamos seguras… por enquanto, mas espero que Helen consiga vir também. Precisamos decidir tanta coisa. Foi então que um vento surgiu, cortante, frio e perfumado de urze silvestre. Nossos cabelos voaram em nossos rostos e a chama da vela tremulou. Peguei na mão de Sarah enquanto o vento girava em torno de nós e uma névoa de luz prateada começou a brilhar. Imaginei estar ouvindo um som distante, como um canto de pássaro em meio à tempestade. Logo em seguida, o vento diminuiu e Helen havia saído da luz prateada, levemente corada e com falta de ar. 2 Estilo de pintura ou escultura que tem como característica o entrelaçamento de formas humanas e animais com folhagens e flores. (N.E.) 53 — Desculpe — ela disse fazendo careta. — Deve ter sido meio esquisito aparecer desse jeito. — Foi incrível — falou Sarah. — Nunca tinha visto você fazer isso antes. Estendi a mão para tocar o braço de Helen. Ela estava mesmo lá, na nossa frente, de repente. Helen havia nos contado sobre sua extraordinária habilidade — o que havia chamado de… dançando ao vento? Ela podia chegar a qualquer lugar que quisesse apenas percorrendo o ar com o poder do pensamento, era como uma faca cortando seda. — Você realmente pode fazer isso — eu disse, maravilhada. — Isso é incrível. — Não mais incrível do que o que você fez no semestre passado, Evie, erguendo as águas do lago — retrucou Helen com um sorriso. — Nós todas temos poderes. A questão é: como iremos usá-los? Senti frio, de repente. Aquilo não se tratava de feitos incríveis para entreter espectadores boquiabertos, como em um número de circo. Aquilo era terrivelmente sério. — Acredito que vocês duas sabem o que quero fazer — respondi rapidamente. — Quero procurar Sebastian e usar o Talismã para ajudá-lo. Sabemos que não posso entregar a ele o colar por minha livre e espontânea vontade. Tentei fazer isso no semestre passado e não funcionou. Sebastian só poderá se salvar quebrando o elo entre mim e o Talismã, e para isso teria de me matar. Poderei usar o colar apenas se descobrir seus segredos e o jeito certo de despertá-los. — Ensaiei aquele discurso diversas vezes, mas isso não facilitou em nada. Hesitei. — Eu sei… eu sei que tudo isso 54 parece loucura, e sei também que pode ser perigoso. Preciso de ajuda, mas vocês são minhas irmãs, e melhores amigas, e não quero que se machuquem. — Onde você acha que Sebastian está agora? E por que ele ainda não entrou em contato com você? — perguntou Helen. — Existem apenas três possibilidades — respondi, tentando me manter calma e racional. — Sebastian já pode ter desvanecido e agora está fora de nosso alcance para sempre. Ou está se escondendo em algum lugar, ficando cada vez mais fraco, na esperança de que voltarei para buscá-lo. Ou… — era difícil dizer aquilo — ele parou de me amar e agora é meu inimigo, e possui apenas um objetivo: tirar minha vida e roubar o Talismã. — Sebastian ainda não desvaneceu completamente, ainda não — falou Sarah lentamente. Olhei para ela. Sarah às vezes tinha lampejos de intuição sobre as pessoas, talvez algo que tenha herdado de seus antigos antepassados ciganos. Havia aprendido a confiar nela quando isso acontecia. — O que você está querendo dizer? Por que pensa isso? — Existe uma conexão muito forte entre vocês dois e tenho certeza de que, se isso já tivesse ocorrido, você saberia de alguma forma. Além disso, sinto a presença dele aqui em Wyldcliffe, como um frágil pulsar de energia. Você não? — Sim, sinto exatamente dessa forma. Contei entusiasmada sobre as vezes em que ele apareceu para mim: na praia, nos meus sonhos e na minha cabeça, como se fosse o murmúrio do mar. 55 — Acho que ele está tentando entrar em contato comigo. — Mas ele quer você ou o Talismã? — A voz de Helen saiu baixa e triste. — Sebastian disse a você que, assim que desvanecesse e entrasse no mundo das sombras, ele esqueceria todos os laços humanos. Uma vez no limite da existência, ele pode não conseguir controlar o desejo de tirar o colar de você, mesmo que isso leve à sua destruição, Evie. Ele a alertou sobre essa possibilidade. — Mas ele não quer o Talismã — argumentei. — Ele não usou o colar naquela noite, dentro da cripta. Sebastian prefere se tornar um espírito demoníaco a ter de me machucar. — Mas ele começou a desvanecer somente agora — retrucou Helen. — Quando deparar com a decisão final entre se juntar aos Invictos ou se tornar o eterno escravo deles, você pode dizer com certeza absoluta qual será a escolha de Sebastian? — E quanto à congregação? — perguntou Sarah. — As Irmãs das Trevas ainda querem o Talismã. Sebastian prometeu a elas os segredos da vida eterna caso o ajudassem a encontrar o colar. Elas esperaram, geração após geração, pelo que ele havia prometido. Ele pode ter mudado de ideia, mas elas não. A congregação fará o que for necessário para roubar o Talismã de você, Evie, e forçar Sebastian a usá-lo, antes que seja tarde demais. — Mas a Sra. Hartle não está mais entre nós. A congregação não ficou enfraquecida com sua saída? Elas tiveram tempo para encontrar outra Alta Mestra? 56 — Não acho que minha mãe esteja morta — falou Helen. — Naquela noite na cripta ela se feriu de alguma forma. Ela teve seu maior triunfo e sua maior derrota no momento em que a defrontamos. Porém, ela não foi embora, tampouco a congregação. Mostrei, com certa relutância, o pedaço de papel com o desagradável aviso. — Acho que este bilhete foi escrito por uma das Irmãs das Trevas. Encontrei-o no dormitório. — Então estão se preparando para nos atacar novamente — falou Sarah em tom sombrio. — Como eu disse, a congregação não quer Sebastian nas mãos dos Invictos. Querem tirar proveito dele para seu próprio benefício. Os Invictos… a congregação… as sombras… Senti um calor súbito, acabei desmaiando e caindo no chão. Uma lasca de chama vermelha parecia saltar de meus olhos e o cheiro de sangue era intenso e azedo em minhas narinas. A luz se apagou em minha volta e vi um homem com um rosto lindo e impiedoso, coroado com fogo azulado. Era um dos chefes dos Invictos e andava em torno de Sebastian, que parecia lamentavelmente pálido e doente. À medida que o mestre demoníaco se aproximava, senti minha pele queimar devido à sua asquerosa presença. Logo depois me vi empurrar o Talismã em direção aos seus olhos sanguinários, ao mesmo tempo que cantava uma série de palavras desconhecidas e protegia Sebastian com o corpo. — Não! — gritei. — Deixe-o em paz; não toque nele! — Evie, o que está havendo? — perguntou Helen. 57 — Eu o vi! Eu vi Sebastian! — falei quase sem ar, tremendo. — O mestre de Sebastian… ele está cada vez mais perto, mas Sebastian ainda reside neste mundo e está sozinho. Tenho certeza de que a congregação não sabe onde ele está. — Levanteime rapidamente e encarei minhas amigas. — Preciso agir agora, antes que seja tarde demais. Vejam, possuo algo que eles desejam… o Talismã. As Irmãs das Trevas acreditam que o Talismã seja a chave para a imortalidade. Se o colar é realmente tão poderoso, por que temer a ação delas? Não posso usá-lo para combatê-las? Se eu descobrir o jeito certo de dominá-lo, poderei exercer os poderes de Agnes. Controlarei o fogo sagrado, como ela fez. Com tamanho poder vou conseguir parar o processo de desvanecimento de Sebastian ou reverter o tempo ou… ou… Ah, não sei, mas preciso encontrar um modo de sair desta situação. Não posso deixá-lo se transformar em um tipo de demônio, simplesmente não posso! — Sabemos disso — disse Sarah, carinhosamente. — E não podemos deixá-la enfrentar tudo isso sozinha. Você não precisa pedir a nossa ajuda. Iremos a qualquer lugar com você e faremos o que for preciso. — Sarah tem razão — falou Helen. Seus olhos claros brilhavam sob a luz das velas. — Será perigoso tentar ajudar Sebastian, mas é tão perigoso quanto ficar parada, esperando o próximo ataque da congregação. Estou com você, Evie. Quando começamos? Abracei as duas, quase sem palavras. — Vocês são as melhores amigas que eu poderia ter — murmurei, emocionada. — Amigas? — sorriu Sarah. — Pensei que fôssemos irmãs. 58 Ri de repente, como se nada pudesse destruir a sensação de força e vida que percorria meu corpo. Estávamos unidas. Enquanto nos abraçávamos, ríamos e chorávamos, o eco da voz de Agnes percorreu a caverna: Minhas irmãs… minhas irmãs… Quatro irmãs, quatro elementos, um objetivo. E havia esperança dentro de mim, como uma chama branca e pura. 59 — E ntão, por onde você quer começar? — perguntou Helen. — Venho tentando compreender melhor meus poderes. Não sei todas as respostas ainda, mas passei horas durante as férias experimentando coisas novas nas falésias, sem ninguém por perto, ou no quarto, de madrugada. Estou aprendendo cada vez mais e quero mostrar isso a vocês. Vejam. Juntei as mãos na frente e fechei os olhos. Busquei dentro de mim, cada vez mais fundo. Tudo ficou silencioso, mas ainda podia ouvir, num lugar bem distante, o som das ondas quebrando na praia, lá em casa. Meu corpo começou a formigar e senti o sangue correndo pelas veias. “A água da vida… o sangue das minhas veias… despertados em mim…” Uma onda invisível de energia se derramou sobre meu corpo. Abri os olhos e ajoelhei para tocar com os dedos o riacho que borbulhava em torno da base da estátua. No instante seguinte ouvi o estalo do gelo. O riacho havia congelado, estava tão duro e imóvel quanto a estátua acima dele. Estalei os dedos e ele voltou a fluir novamente. 60 — Isso é fantástico, Evie — falou Sarah. Nos entreolhamos e rimos extasiadas, ainda maravilhadas com o novo mundo que descobríamos. — E você? — perguntei. — Fez algo novo? No semestre passado, eu havia presenciado Sarah usar seus poderes terrenos para dar vida a uma semente em segundos, bem diante de meus olhos, e fazer o chão tremer sob os nossos pés. — Sim, acho que sim — respondeu timidamente. — Sim, eu fiz. Ela olhou ao redor da caverna escura e se abaixou para pegar um pedaço de rocha sobre o leito do riacho. Sarah colocou a rocha na palma de uma mão e a cobriu com a outra, franzindo a testa, concentrada. Ao tirar uma das mãos, a rocha havia se desintegrado e se transformado em pó. — Uau! Isso prova que o acontecimento do semestre passado não foi uma simples casualidade. Helen, vamos ver se conseguimos despertar o Talismã. Vamos fazer isso agora, imediatamente — insisti. — Tentei invocar suas forças em casa, cantando e fazendo tudo o que era possível, mas nada aconteceu. No entanto, aqui em Wyldcliffe, no lar de Agnes, se todas nós trabalharmos juntas, o colar pode responder. — Algo me diz que você precisa fazer isso sozinha, Evie — retrucou Helen. — Lady Agnes não escreveu no diário que estava deixando o Talismã para você? E que estava selando os poderes no colar para que eles fossem guardados e você pudesse usá-los? Não creio que estivéssemos incluídas nisso. — Mas poderíamos tentar mesmo assim, não é? — questionou Sarah. 61 — Bem, não temos nada a perder. Vamos tentar. — Helen me deu um sorriso encorajador e pegou alguns tocos de velas do vão da rocha e os colocou no chão. Ao acender um por um, começou a cantar: — Que esta luz possa guiar nossos passos, iluminar nossas mentes, purificar nossos corações… As velas finalmente queimavam em um círculo de chamas tremulantes. Fui tomada por uma forte expectativa. Nossos poderes seriam unidos e ampliados dentro do Círculo Sagrado. Ficaríamos mais fortes, preparadas para o que viesse. Entrei no anel de fogo, tirei o brilhante colar e o coloquei cuidadosamente sobre o chão rochoso. Logo em seguida Sarah e Helen entraram no círculo e ficamos de mãos dadas. Helen falou em voz baixa: — Pedimos a vocês, nossas irmãs do vento, da terra e do mar. Rogamos ao fogo da vida. abençoem nosso círculo. Guiem nossas vidas. — Sarah começou a cantar calmamente: — O ar da nossa respiração, a água das nossas veias, a terra dos nossos corpos… Levantamos os braços em direção à lua e às estrelas, que giravam invisíveis sobre nós. — Poderes Sagrados — clamei. — Permita que eu use a dádiva que nossa irmã, Agnes, legou a mim. Deixe-me conhecer sua força e compreender seus segredos. Desperte o Talismã para mim, suplico-lhes. — Ajoelhei e pus a mão sobre o cristal no centro do Talismã. Uma luz azul-prateada cintilou assim que toquei a joia, dando vida aos mosaicos com mil reflexos. Meu coração acelerou. — Água da vida, invoco seus poderes para que este caminho me seja aberto. Agnes, Sebastian… me ajudem… 62 Tentei me concentrar no vasto e imensurável oceano, tão profundo quanto meu amor, tão fantástico quanto os meus sonhos, tão poderoso quanto os meus inimigos. Ouvi o suspiro e o bramido das ondas. Ouvi Sarah e Helen cantar. Juntei-me a elas e convoquei meu próprio segredo, como havia feito quando levantei o lago de seu calmo leito. — Penso, sinto, desejo… ordeno que o Talismã ouça o meu chamado… Poderes Místicos, venham ao nosso auxílio… ajudem-nos agora… No entanto, a luz que vinha do cristal desapareceu e não aconteceu mais nada. Realidade. O Talismã continuou lindo e sem vida em minhas mãos. Aquele momento não existia mais. — Não é um bom sinal. Isso não vai funcionar. Prendi novamente o colar ao pescoço e dei um passo para fora do círculo. Helen assoprou as velas do chão. A gruta parecia uma úmida caverna, e não um local de milagres. Todo o meu entusiasmo evaporara. — Sinto muito, Evie — falou Helen, tranquilamente. — Mas no fundo sabia que não seria tão simples assim. — O que vamos fazer agora? — perguntou Sarah. — Cada dia, hora e segundo são preciosos. Precisamos fazer algum progresso. — Talvez esse seja o problema. — Um pensamento me invadiu. — Talvez a gente não tenha progredido o bastante no Caminho Místico. Quando Agnes fez o Talismã, ela estava no auge do domínio de seus poderes. Sei que Helen está em contato com seus 63 dons há muito mais tempo que nós, mas você e eu, Sarah… bem, somos apenas iniciantes, não é? Talvez eu tenha de desenvolver ainda mais meus poderes para conseguir, enfim, o mesmo domínio sobre a água que Agnes teve sobre o fogo. Ela possuía os mais variados tipos de habilidade, as mais surpreendentes. Não preciso adquirir isso também? Sarah parecia estar impressionada com o que eu havia acabado de dizer. — Faz sentido… mas temos tão pouco tempo… — Então vamos praticar o máximo que pudermos — interrompi. — Podemos vir aqui todas as noites se for preciso, ou descobrir algum lugar na escola onde não seríamos observadas. O que acham? Vale a pena tentar? Helen e Sarah juntaram suas mãos com as minhas, como se estivessem fazendo um juramento. — Não vamos desistir até que o Talismã se abra para você, Evie. Vamos tornar isso possível, nós lhe prometemos. E não desistimos. A primeira semana em Wyldcliffe passou despercebida, pois me joguei nos estudos, dia e noite. Estava cheia de adrenalina, com fome de aprender o que fosse. Na gruta transformando água em névoa prateada ou extraindo essências das rochas da caverna, ou debruçada nas salas frias da escola estudando verbos latinos ou reações químicas. Estava a todo vapor. Conhecimento era poder, repetia a mim mesma, e era como se o conhecimento que eu buscava pudesse estar em qualquer lugar: num trecho de poesia desconhecido, numa fórmula científica ou num antigo feitiço. Neste 64 semestre eu seria a primeira de todas as classes e estaria à frente de todas as novas ideias. A neve rodeou a Abadia a semana inteira, branca, pálida e fria. Qualquer esperança de que Sebastian entraria em contato comigo desaparecera como um galho verde na amarga geada. Porém, me negava a entrar em desespero. Eu era jovem e forte e iria vencer a congregação. Encontraria Sebastian e logo saberia todos os segredos do Caminho Místico. Onde houvesse escuridão, eu traria luz, uma luz que jamais poderia ser apagada. 65 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax E tão escuro aqui, Evie. Acendo uma vela, mas isso não atenua a escuridão da minha mente. Eu disse que seria paciente e que esperaria sem reclamar, mas é tão difícil, já que minha força é sugada a cada hora, a cada minuto. Teria você me esquecido? Não posso culpá-la. Não tenho nada a lhe oferecer. Meus poderes estão desaparecendo. Sou um prisioneiro. Estou encurralado. Às vezes um leve brilho cinzento adentra as frestas e rachaduras deste quarto empoeirado, e imagino que em algum lugar exista luz e liberdade. Mas isso não tem nada a ver comigo agora. Já me esqueci do mundo lá fora. Esqueci o ontem. Restam apenas as velhas lembranças. 66 Lembro-me do vigário de cabelos grisalhos da Igreja Wyldcliffe, quando o mundo era mais jovem e eu estava livre de seus perigos. O que foi mesmo que ele disse? “Vou para o lugar de onde não voltarei, à terra da escuridão e à sombra da morte… onde a luz é como a escuridão.” Parece que passou uma eternidade desde que me sentei na pequena pedra da igreja na vila para observar as partículas de poeira dançando num raio de sol, e me esforçava para não bocejar enquanto o vigário fazia seu entediante discurso. Agnes sacudia a cabeça em sinal de reprovação, meio séria, meio rindo. Se ao menos eu não tivesse sido tão orgulhoso e teimoso em todos aqueles anos. Se tivesse escutado os conselhos de Agnes, dizendo para não me meter com o conhecimento proibido! Fui tão cego e louco, desde o começo… E, ainda assim, se eu não tivesse percorrido essa estrada teria vivido, morrido e passado por este mundo muito antes de você nascer. Nunca teria te conhecido, tampouco escutado sua voz ou tocado sua mão, ou sentido seus lábios nos meus. Este, sim, teria sido o pior dos castigos. Há algo que preciso lhe dizer. Preciso alertá-la. Eles estão se aproximando… Ah, Evie, há tanto medo! Vejo seus rostos impiedosos, são como zumbis. Vejo o rei deles todos, a coroa de ferro cintilando com chamas vermelhas enquanto ele se aproxima com seu punho de aço, me puxando para cada vez mais perto de sua emboscada. Escuto os uivos e grunhidos de demônios e é como se eu desaparecesse dentro daquela noite interminável… 67 Ainda assim, prefiro enfrentar esse horror de olhos abertos a tocar e ferir um único fio de seu lindo cabelo. Eles tentaram me pôr contra você uma vez, mas não conseguiram. Nunca vão conseguir isso. Posso me tornar uma criatura das trevas, mas nunca, jamais esquecerei que amo você. 68 N ão conseguia esquecer Sebastian, nem mesmo por um segundo. Ele estava nos meus pensamentos e sonhos e no próprio ar que eu respirava. Às vezes era como se sentisse o toque de sua mão na minha ou escutasse o eco de sua voz nos corredores sombrios de Wyldcliffe. Uma parte de mim gostaria de faltar às aulas e sair à procura dele pelas campinas, mas eu sabia que seria em vão. Ele poderia estar em qualquer lugar, escondido graças ao poder que ainda lhe restava. Mas não, precisava me ater ao plano de despertar o Talismã. Feito isso, eu sabia que o colar iria trazê-lo até mim. Eu tinha de trabalhar sem pensar, e a imagem dele, pálido, doente e com dor, era o que me fazia enfrentar as longas horas de empenho e estudo. No sábado à tarde, após o término das lições do dia, segui até o caminho coberto de neve passando pelos estábulos, onde tenho ajudado Sarah com os pôneis. Certifiquei-me de que ninguém estava à espreita, me concentrei em um pensamento e bati de leve no meu pulso. Um punhado de neve sobre o canteiro de flores derreteu instantaneamente, revelando pequenas espigas verdes e novas lutando para viver na terra. Uma onda de alegria percorreu meu corpo e desapareceu rapidamente. Estava 69 provado que eu tinha poder sobre a água, mas como deveria usá-lo? Aquilo estava me aproximando do centro do Talismã? — Não está f-frio? Olhei em volta, apreensiva. Harriet estava andando aos tropeços em direção a mim. Esperava com toda a força que ela não tivesse visto nada. Desde a nossa viagem no trem, ela cismara comigo e parecia pronta a esbarrar em mim em qualquer esquina para me perguntar alguma coisa: “Evie, você sabe onde posso arranjar um caderno novo?”; “Evie, como faço para fazer parte do coral?”; “Evie, você pode me ajudar com o exercício de matemática?”. — O que você está fazendo aqui fora? — perguntei. Seu nariz estava todo rosado e seus dentes batiam. — Você vai morrer de frio. Ela deu de ombros. — As aulas terminaram e não tenho nada para fazer. — Bem, por que você não vai para dentro e fica com suas amigas? Harriet ficou sem graça e falou com voz tristonha: — Na verdade, ainda não fiz nenhuma amizade aqui. Senti pena dela, mas eu simplesmente não tinha tempo a perder. — Bem, você não fará amizades vagando por aí sozinha — falei rispidamente. — Algumas meninas mais novas ficam desenhando e fazendo artesanato no refeitório durante as tardes de sábado. Por que você não se junta a elas? — Prefiro conversar com você. 70 — Não seja boba. Você precisa ficar com garotas da sua idade. — Eu a despachei da forma mais gentil que pude. — Melhor você ir agora, Harriet. E, da próxima vez que você sair, vista-se pelo menos com cachecol e luvas. Observei-a indo embora e logo em seguida me juntei a Helen no hall de entrada. Me esqueci rapidamente de Harriet e me esquentei um pouco no fogo baixo da lareira de pedra. Helen já havia iniciado nossa tarefa de todo sábado, a de arrumar flores de estufa no grande vaso de bronze que ficava na mesa do hall — outro dever idiota das bolsistas. As magníficas flores realçavam seu delicado cabelo. Mesmo com as roupas triviais da escola, ela parecia uma deusa jovem e extraordinária, cercada por heras, lírios e rosas. A professora de arte, Srta. Hetherington, passou pelo corredor carregando uma pilha de cadernos de desenhos. — Que flores encantadoras, meninas — disse em tom de aprovação. — Precisamos de um pouco de cor em meio a tanta neve. Por um momento consegui me ver em um colégio comum, onde as professoras eram realmente apenas professoras, e não mulheres que nos botavam medo. Mas aquela era a Wyldcliffe, onde não se podia confiar em ninguém. — Fico feliz em vê-la aqui, Evie — continuou a Srta. Hetherington. — Estava te procurando. Este bilhete foi deixado por engano entre as correspondências pessoais e é endereçado a você. — Ela me entregou um pequeno envelope e foi embora. Apreensiva, abri o bilhete dobrado: 71 ESPERO QUE TENHA APROVEITADO SUA PRIMEIRA SEMANA. SERÁ A ÚLTIMA. — Mais um… — disse ao passar o papel a Helen. — Outra ameaça. — O que você vai fazer? — Não há nada que eu possa fazer. Apenas continuar, me esforçar mais, trabalhar mais rápido. O que mais poderia fazer? E então, naquela noite, saí da cama novamente e desci pela escada dos empregados em direção ao pátio. Do outro lado dos amplos gramados da Abadia, um matagal de arbustos cobertos de neve escondia um amontoado de pedras. Abri caminho em meio ao mato e passei por baixo de um galho. A boca escura da gruta se abria como um túmulo secreto. Ao entrar, o feixe de luz da minha lanterna cruzou com o brilho discreto de uma vela. Sarah e Helen já estavam lá, fazendo um círculo no chão úmido e rochoso. Enquanto elas se concentravam, fiquei ao lado da estátua, observando o riacho borbulhar em torno de sua base, brotando de alguma nascente subterrânea. A água corria por um estreito canal no chão da caverna e então desaparecia novamente em algum tipo de aqueduto engenhosamente escondido. Água… a resposta deveria estar nela de alguma forma… água, movimento incessante, fonte de toda a vida. Num impulso, me ajoelhei, tirei o Talismã do pescoço e o coloquei na corrente gelada. Seu centro de cristal reluziu intensamente, cintilando dentro d’água como um olho 72 brilhante. Reparei que Helen e Sarah me observavam, e as sombras luminosas na parede pareciam fazer o mesmo; ninfas, centauros, faunos3 e animais fantásticos, todos me olhavam e esperavam. Peguei um pouco de água com as mãos e a deixei cair novamente como se fosse uma oração, e então me inclinei sobre a joia no curso do rio. — Fale comigo agora — implorei. — Mostre-me o caminho. — A joia parecia brilhar como um tesouro precioso jogado num terreno baldio, mas logo escureceu e vi apenas meu reflexo na água. Não era minha imagem, era a de Agnes… olhando para mim. Ela estava prestes a me contar alguma coisa… parecia guardar uma mensagem em seus olhos cinzentos… “Evie, siga o meu caminho… elas estão cada vez mais perto… Evie… Evie…” — Evie! — Sarah me sacudia, trazendo-me de volta ao tempo presente. — O que houve? — Senti uma coisa… Ouçam. Sarah caminhou devagar até o fundo da pequena caverna, onde uma projeção na parede rochosa escondia a boca de um túnel. Havíamos utilizado o túnel para escapar da cripta sob a capela no fim do semestre passado. Ela estendeu as mãos na frente das paredes ásperas com um olhar de intensa concentração, como se estivesse ouvindo através da ponta dos dedos. — Você consegue ouvir? — ela perguntou. Não ouvia nada a não ser a batida frenética do meu coração e o tilintar da correnteza gelada. Tirei o Talismã da água, um pouco irritada com Sarah por ter me 3 Criaturas metade homem, metade bode, que seriam descendentes do deus Fauno, protetor dos rebanhos e dos pastores. (N.T.) 73 interrompido. Agnes tentava se comunicar comigo. Queria que eu a seguisse… Bem, era o que eu estava tentando fazer. O que mais? Alguma coisa sobre alguém estar se aproximando, chegando cada vez mais perto… — Elas estão vindo! — Sarah virou-se rapidamente, o pânico cintilava em seus olhos. — As Irmãs das Trevas! Elas estão reunidas na cripta. Posso ouvir as vozes através da rocha e da terra do túnel, posso sentir seus passos. Estão se aproximando! — Voltem para a escola! — gritei. — Helen, dê um jeito de sair daqui. Vamos despistá-las e voltar pelos jardins. Depressa! Helen hesitou. — Não posso deixá-la aqui. — Você precisa. Vá! No instante seguinte, como um manto grosso, Helen pareceu tragar o ar em sua volta, desaparecendo logo em seguida. Sarah falou em voz baixa e fez sinais apontando para a boca do túnel, que começou a desmoronar; várias pedras tombaram e bloquearam a entrada. — Volte, Evie — gritou Sarah. — Vamos! Apagamos as velas e corri atrás de Sarah, que nos levou sãs e salvas para fora da caverna escura. Podia ouvir a água girando em torno da estátua atrás de nós, e imaginei ouvir o eco de pés no chão enquanto as Irmãs das Trevas caminhavam pelos longos e tortuosos túneis da cripta até a gruta. Mas elas não conseguiriam chegar, ao menos não imediatamente. Sarah nos dera uma chance de escapar. 74 Logo estávamos do lado de fora, passando com dificuldade pelo denso matagal e caminhando em direção à escola. Atravessamos correndo o gramado e procuramos ficar debaixo dos salgueiros que o cercavam. As ruínas eram fantásticas silhuetas sobre a neve, mas não paramos para admirá-las. Corremos até o pátio dos estábulos, onde a velha porta verde nos levaria até os quartos dos empregados. Ofegantes, empurramos a porta e fizemos uma pausa para recobrar o fôlego. — A congregação deve estar em reunião — falei quase sem ar. — Mas eu me pergunto: por que elas estavam saindo da cripta e indo em direção à gruta? É arriscado agora que está tudo desabando. Eu sabia a resposta. — Elas deviam saber que estávamos reunidas lá. — Como? Ergui os ombros. — Vai saber quem está nos espionando a mando delas? Ou talvez elas consigam sentir o Talismã, são atraídas pela joia de alguma forma. E aquele bilhete que recebi deve ter sido um aviso de que hoje ocorreria um ataque. — Eu deveria estar com medo, mas não estava. Comecei a rir baixinho de repente. — Quem escreveu aquilo vai se desapontar. Elas não vão se livrar de mim tão fácil. Você foi esperta demais para elas, Sarah. Nunca vão conseguir nos pegar. — Bem, mesmo assim continuo não querendo ser pega fora da cama pela Srta. Scratton. Vamos logo, Helen deve estar fora de perigo e em seu quarto a uma hora dessas. Vamos voltar o mais rápido possível. 75 Liguei a lanterna e seguimos apressadas e em silêncio pelos corredores empoeirados, logo subindo as escadas dos fundos até o terceiro andar. — Vá você primeiro — falei. — Esperarei dez minutos, até você chegar ao quarto. Depois sigo para o meu. Não queremos ser vistas juntas, não é? Se trombar com alguma professora, diga que precisou ir ao banheiro, pois direi o mesmo. Sarah entrou no corredor principal e calmamente fechou a porta atrás dela. Já havia entrado em pânico naquele lugar, no semestre passado, ao ficar presa fora do quarto, nas escadas desertas, mas esperava ser mais corajosa dessa vez. Procurei passar o tempo imaginando como era a vida dos jovens criados que realmente utilizaram aqueles degraus, correndo para cima e para baixo com seus afazeres quando Agnes ainda era viva. Não os teria mencionado em seu diário? Tentava me lembrar de seus nomes quando algo chamou minha atenção. Na parede oposta à porta que dava para o corredor, um painel rústico parecia estar pregado à parede há muito tempo. Estava coberto por teias de aranha e pó, e eu nunca havia reparado nele antes. Tentei erguer uma extremidade do painel com os dedos, e ela simplesmente se desfez em poeira, deixando uma fenda na parede. Olhei pelo buraco com a lanterna na mão e vislumbrei mais degraus estreitos, que subiam até o sótão abandonado. Estava tentada a tirar o painel inteiro e explorar o que havia do outro lado, mas algo me impediu. “Sensata, sábia Evie.” Sarah devia estar de volta ao seu quarto e eu precisava fazer o mesmo, disse a mim mesma. Com a congregação a caminho, não havia tempo para me aventurar. Seria sensata. Voltaria para a cama. 76 Abri a porta com cuidado e entrei na parte principal da escola. Uma lâmpada do lado de fora do banheiro emitia uma luz fraca. Ao voltar para o quarto, escutei um leve ruído. Do outro lado do longo corredor, no topo da escadaria de mármore, avistei o vulto de uma garota. A luz da lua que partia da janela arqueada e iluminava as escadas brilhou em sua camisola branca e ela permaneceu estranhamente imóvel, olhando para baixo junto ao corrimão, como uma estátua. Como um fantasma. 77 — A gnes? — ao me aproximar, percebi que a garota não era tão alta quanto Agnes e que seu cabelo era preto, e não ruivo. — Quem está aí? A garota me ignorava. Ela se inclinou ainda mais sobre o corrimão de ferro batido que a impedia de cair como uma boneca no térreo, cinquenta metros abaixo. — Tenha cuidado! Ela lentamente virou o rosto em minha direção. Seus olhos turvos me encararam com indiferença, sem vida ou familiaridade. Eu, no entanto, a reconheci. — Harriet? — chamei em voz baixa. — Que diabos você está fazendo? Você pode cair. Harriet não respondeu, mas continuou me encarando sem parar. Começou a caminhar em minha direção com uma expressão assustadora e cadavérica no rosto. — Harriet! — ao agarrá-la pelo ombro, tive um clique, de repente. Ela não está morta, e sim dormindo… É claro, Harriet era sonâmbula, apenas isso. Ela continuava me encarando com olhos vazios e indiferentes. Sua mão se contraiu e logo em seguida a cabeça começou a 78 tombar. Levei-a até um banco esculpido próximo ao topo da escadaria e fiz com que ela se sentasse. Quando a cabeça finalmente encostou em seu peito, ela acordou. — Harriet, o que você está fazendo aqui fora? — O quê? — perguntou, olhando em volta com o olhar perdido. — Você sabia que era sonâmbula? — Não… quer dizer… sim, já aconteceu algumas vezes, mas há muitos anos, há muito tempo isso não ocorria. — Seus olhos pareciam me encarar de verdade pela primeira vez. — Por favor, não conte a ninguém, Evie. — Por que não? A enfermeira não poderia lhe dar algo para impedir que isso aconteça de novo? Você pode se machucar perambulando no escuro. Acho que as professoras deveriam saber. — Não, por favor! Não diga nada! Não quero que ninguém saiba. Tenho certeza de que não acontecerá de novo. — Então, o que provocou isso? — Estou em um lugar novo, é só isso. — Olhou para mim com um ar suplicante. — Por favor, não diga nada. Elas já pensam que sou uma… Enfim, mas e você, o que está fazendo fora da cama? — Er… estava semiacordada e pensei ter escutado alguém no corredor, então me levantei para ver o que era. Apenas isso. Nós receberemos um monte de deméritos se alguma mestra acordar e nos pegar aqui. Acho melhor voltarmos para a cama e dormirmos um pouco. Harriet piscou de medo. 79 — Queria que minha mãe estivesse aqui. Gostaria de ser gentil, mas ela fez com que me sentisse um tanto fria, como se eu não conseguisse agir naturalmente em sua presença. — Olha, Harriet, leva um tempo para se acostumar com o internato. Você precisa dar uma chance a si mesma, tentar se adaptar e fazer novos amigos. Aí sim se sentirá mais à vontade. Aqueles velhos clichês soaram falsos e complacentes. Ela me encarou com seus olhos escuros e medrosos. — Você realmente acha que vou conseguir fazer amigas aqui? Sinto que ninguém gosta de mim. — Não seja boba — tentei rir. — Gosto de você. — Mas não tinha certeza se dizia a verdade. — Gosta? Gosta mesmo? — Harriet me olhou nos olhos e, depois, sorriu com gratidão. — Então, tenho uma amiga, não tenho? Vou me deitar agora. É engraçado — disse ao se levantar —, um desses quartos deve ter sido o de Lady Agnes. É como se seu espírito ainda vagasse por aqui… Bem, boa noite. — Espere, Harriet, espere um minuto! — Eu ainda precisava perguntar uma coisa a ela. — Venho me questionando se sua família possui alguma relação com a Lady Agnes… sabe? Com os Templetons que viveram aqui… Você está… hum, relacionada com eles de alguma forma? Ela olhou para baixo, com um ar sombrio novamente. 80 — Não estamos todos ligados, se voltarmos no tempo? Além do mais, o que isso importa? — Por favor, Harriet, eu… eu preciso saber, pode significar muita coisa. O silêncio entre nós se intensificou. As bochechas pálidas de Harriet ficaram rosadas. — Templeton é o sobrenome da minha mãe. Meus pais se divorciaram e mal vejo meu pai. Ele não se importa, na verdade… quer dizer, ele é muito ocupado. De qualquer forma, depois que eles se separaram ela quis que eu me chamasse Templeton também. — Você mencionou que sua mãe estudava na Abadia. Era porque ela tinha relação com os Templetons de Wyldcliffe? Ela ficou desconcertada novamente. — Isso é pouco provável. Minha mãe estudou aqui por causa de uma bolsa. Não acho que ela se enquadrava, mas ela tinha essa ideia idiota de que deveria estar relacionada a eles devido ao seu sobrenome, e começou a pensar que talvez pudesse realmente ter sido uma dama com uma mansão, cavalos e dinheiro. Ela era obcecada pela vida de Lady Agnes e dizia que eu deveria agir como se fosse Lady Harriet Templeton, e falava sem parar da Agnes como se ela fosse alguma parente nossa. — Harriet olhou para o lado com uma expressão amarga no rosto. — É por isso que minha mãe me enviou para cá — acrescentou. — Desde que meu pai se foi, ela não teve tempo para mais nada, apenas para o trabalho, porque assim pode ganhar dinheiro suficiente para me tornar uma típica dama de Wyldcliffe. Mas foi tudo uma 81 espécie de fantasia, coisa da cabeça dela. Na verdade, eu não queria vir para cá. Sinto… sinto falta dela. Senti um aperto no peito. Pobre Harriet. Pobre e triste Harriet. Eu a observei voltando ao dormitório, e logo depois retornei à minha própria cama. Não consegui descansar naquela noite; mas não foi Sebastian, tampouco a congregação, o que me manteve acordada. Foi o drama de uma garota simples e desajeitada, que sofria em silêncio sob o teto desta enorme casa. Ao me mexer e me revirar na cama, ouvi o relógio da vila bater três horas. Suspirei e enterrei a cabeça no travesseiro. Não podia lidar com mais problemas. Tudo o que eu queria era dormir e sonhar com Sebastian. 82 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax E scuto o relógio bater três horas. Não haverá descanso para mim nesta noite. Elas estão atrás de mim. As mulheres que um dia foram minhas servas, agora me perseguem com ódio mortal. E você, minha querida, é odiada por elas também. Quando me lembro delas, e de meu passado com elas, meu coração adoece. Mas essas mulheres, as Irmãs das Trevas, cujos corações e mentes um dia controlei, agem sem minha influência agora. Meus poderes desapareceram. Ainda assim, sairei desse leito; devo me arriscar e tentar alertá-la… e impedir a ação delas… eu preciso. Não posso… Não posso… 83 Oh, Evie, Evie, onde está você? Tudo o que mais quero é abraçá-la novamente, protegê-la de tudo o que lhe fiz. Faria qualquer coisa para poder andar, cavalgar e correr como antes. Talvez seja uma punição, essa fraqueza, por eu ter sido tão arrogante e não ter me dado conta da grande sorte dos meus dias de glória. Meu corpo está fraco. Minha mente está morrendo. Porém meu amor continua forte, até mesmo agora. Preciso te dizer… sei o que elas querem, aquelas mulheres implacáveis. Parece algo tão inofensivo, tão inocente! Um lindo acessório ao redor de um belo pescoço, apenas isso. Um simples colar, para ser admirado e logo esquecido. E como me queimou quando tentei tocá-lo! Naquela noite em que você me mostrou pela primeira vez. A dor perturbou minha mente, mas abriu meus olhos para a verdade sobre quem você era e o que o colar significava. E então descobri como Agnes havia conseguido manter seu maior segredo longe de mim. Ah, esconda isso, esconda, afaste-o de mim! As Irmãs das Trevas não são as únicas criaturas que desejam o Talismã. Eu também quero seus contornos prateados. Desejo as profundezas do seu coração de cristal. Desejo seus poderes, que podem me libertar. Não deixe ninguém vê-lo nem tocá-lo. Deixe-o fora do alcance delas. Afaste-o de mim. Esconda-o, Evie. Esconda-o antes que seja tarde demais… 84 E stava ficando tarde. O breve dia de inverno chegava ao fim e minhas pernas doíam enquanto eu subia as escadas de mármore até o dormitório, depois de uma partida longa e extenuante de lacrosse4. Odiava aquele jogo estúpido, toda a sujeira, o suor e os machucados, e sempre ficava pior com as zombarias de Celeste e suas comparsas. “Vamos lá, Johnson, é só isso o que você sabe fazer? Como você consegue ser tão imprestável, Johnson?” Minha vontade era deitar, fechar os olhos e ser esquecida. As paredes do corredor pareciam girar e a luz das lâmpadas se repartia em centenas de cores. Andando sem muita firmeza, enfim abri a porta do dormitório. A janela estava batendo e as finas cortinas ao redor das camas se agitavam como velas ao vento gelado. Fechei a janela, ajoelhei-me na cadeira e olhei para as colinas congeladas. O sol ficava cada vez menor e mais avermelhado no céu claro de inverno, e a neve estava tingida de vermelho, como se o mundo inteiro estivesse em chamas. — Não é lindo, Evie? — alguém falou atrás de mim. 4 Lacrosse é um esporte de equipe praticado com uma pequena bola de borracha e um bastão, chamado de crosse ou taco de lacrosse. (N.E.) 85 Virei e ali estava ele, um anjo em meio às sombras, com seu longo cabelo escuro, seus profundos olhos azuis e aquele sorriso feito só para mim. — Sebastian! Atravessei rapidamente o quarto e seus braços me esperavam. Ele me segurou e me apertou e eu sabia que finalmente aquele pesadelo havia terminado. Nos abraçamos, mas logo depois me afastei e me dividi entre lágrimas e sorrisos. — Não sabia onde você estava… Ai, Sebastian, estava louca para te ver. Por onde esteve? — Centenas de outras perguntas se chocavam dentro de mim, mas eu não conseguia parar de sorrir. Afinal, nunca havia me sentido tão feliz em toda a minha vida. — Tenho algo muito importante para te dizer — Sebastian falou em voz baixa, e a expressão em seu rosto me deu medo. Agora sabia o quanto ele estava doente e como suas roupas estavam largas e amarrotadas em seu corpo frágil e magro. — Sebastian… o que há de errado? — Estou correndo contra o tempo. Então aquele não era o milagre pelo qual eu estava esperando. O sino da igreja começou a tocar e o som ecoou intensamente pelo quarto. Tempo… tempo… não há mais tempo… As paredes pareciam vibrar… Segurei com força a mão dele, que me puxou delicadamente para perto. — Evie, estou doente e cansado há tanto tempo, mas precisava encontrá-la. Preciso te contar uma coisa. — O que foi? — perguntei, com medo da resposta. 86 — Você é a garota mais bonita que eu já vi. — Ele sorriu e meu coração se desmanchou todo, mas o relógio continuava a bater as horas, chamando Sebastian ao longe. Eu, no entanto, não podia ficar triste, não agora, ainda não. Ficaria triste depois, quando o sino parasse de bater. Naquele momento, Sebastian estava perto de mim, e eu pude sentir o doce calor de seu corpo ao se inclinar para me beijar… Alguém bateu à porta. Era a Srta. Scratton, que entrou vestida com uma longa túnica preta. Ela estendeu a mão e disse friamente: — O colar, Evie, me entregue seu colar. As luzes rodopiaram novamente e percebi que Sebastian escapava dos meus braços. — Não! — gritei. — Não, não, não… — O colar, Evie — ele berrou. — Preciso te contar… esconda… não deixe ninguém vê-lo… elas estão chegando… Era como se ele tivesse sumido junto com o clarão vermelho do sol agonizante, e tudo o que eu conseguia ouvir era a voz ríspida da Srta. Scratton. — Seu colar… seu colar… seu colar… Acordei soluçando baixinho: — Não, não, não… — O som do sino da igreja ecoava alto e límpido pelo vale gelado. Três… quatro… cinco… seis… Outro dia amanhecia sem Sebastian. Levantei e me arrastei para fora do quarto, seguindo pelo corredor que levava ao banheiro. Puxei com força a porta de um dos cubículos e vomitei violentamente no vaso. Estar com Sebastian em meus sonhos, escutá-lo e tocá-lo e abraçá-lo, e depois ser arremessada de volta ao mundo real e 87 desolador era bem mais do que eu podia suportar. Estava enjoada novamente, revelando minhas entranhas em vez do meu coração. Sebastian estava em algum lugar lá fora, desvanecendo lentamente e afundando no abismo, e eu ainda não havia descoberto uma maneira de acabar com aquilo tudo. Tomei banho de água fria, tentando esfriar o corpo e a mente. Água… meu elemento belo e translúcido: tão rápida quanto o fogo, tão suave quanto o ar, tão pesada quanto a terra… Esconda o Talismã, Sebastian havia dito. Teria sido ele ou apenas meus pensamentos desordenados tentando dar sentido às coisas enquanto eu dormia? Talvez tivesse sido leviana demais na noite anterior, quando escapamos da congregação. A confiança que sentia começava a ruir. Afinal de contas, se Sarah não tivesse percebido os movimentos das Irmãs das Trevas através das camadas da terra e das rochas, elas poderiam ter nos alcançado. O Talismã poderia ter sido roubado. Eu poderia ter sido pega. Seria minha última semana, meu último dia, como dizia no bilhete ameaçador. Enquanto secava o corpo, minha mão roçou o colar, que permanecia frio sobre a pele e pendurado pela corrente de prata, debaixo da minha camisola. Mesmo sabendo que minha camisa escolar abotoada até em cima e a gravata costumavam cobri-lo bem, havia momentos em que precisava vestir a roupa de educação física, tomar banho, deitar na cama. A qualquer hora uma das mestras, seja da congregação ou não, poderia vê-lo e exigi-lo. “Entregue seu colar… entregue seu colar…” Havia tomado uma decisão. 88 Decidi confiar no sonho que tivera com Sebastian. Ele me pedia para esconder o Talismã e era o que eu iria fazer, até estar preparada para usá-lo. Vesti o robe e voltei rapidamente ao quarto. Aproximei-me lentamente da cama de Helen e a acordei com uma leve sacudida. — Shhhh! — avisei. — Sou eu. Helen se sentou bocejando e tirando o cabelo dos olhos sonolentos. Fiquei de joelhos na beira da cama e tentei explicar tudo depressa e aos sussurros, antes que as outras acordassem. — Depois desse sonho estranho e do que aconteceu na noite passada, acho que, definitivamente, devemos esconder o colar em algum lugar seguro — murmurei. — Acho que você está certa. Usá-lo agora seria um convite para elas. Mas onde seria esse lugar seguro? Eu já havia decidido. Existia apenas um lugar para escondê-lo. — Em Uppercliffe. Ninguém irá encontrá-lo lá. — Tudo bem. Quando iremos? Felizmente era um domingo e poderíamos sair naquela mesma tarde. — Iremos hoje, o mais rápido possível. Celeste virou preguiçosamente em sua cama e abriu os olhos enormes e inocentes. — Vão para onde? Eu a ignorei. Quanto mais rápido o Talismã fosse enterrado, fora da vista de todos, mais seguro ele estaria. 89 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax F ui enterrado longe de todos, neste lugar estreito e sem claridade. Mas, agora, finalmente, sairei daqui. Serei livre. Eu vi você. Talvez tenha sido há apenas uma hora, ou há uma vida toda. Não tenho mais noção dessas coisas. Mas eu te vi, Evie. Toquei em você e me senti vivo novamente. Você sempre me faz sentir vivo. Vida, alento, força… tudo graças a você. Esperava por você no quarto da Abadia que um dia pertencera a Agnes, apesar de estar tudo vazio e mudado agora. Foi durante o pôr do sol. A terra estava viva, repleta de fogo e gelo. Fogo e água. Agnes e Evie. Agnes era como uma irmã, mas você é meu mundo inteiro. 90 Esperei por você. Escutei seus passos e no instante seguinte você estava em meus braços. Se eu fechar os olhos, ainda poderei sentir a maciez da sua pele e o aroma do seu cabelo… posso sentir a vibração do seu coração, o suspiro da sua respiração… Ah, meu Deus! Como suporto ficar um segundo longe de você quando me resta tão pouco tempo? Ver você me deu força. Vou alcançá-la novamente, e não apenas na minha mente. Foi um sonho e, ao mesmo tempo, não foi apenas um sonho. Agora, preciso torná-lo real. Você despertou algo aqui dentro e não me sinto mais tão sem vida. Sairei daqui. Evie, chegarei até você novamente, encontrarei um caminho. Uma luz brilha no meu rosto. A escuridão está se afastando lentamente. O gelo que em mim existe está derretendo… e é tudo graças a você. 91 A neve descongelou durante a noite e as pistas da região se transformaram em um grande lamaçal misturado à neve derretida. A maioria das garotas da minha classe reclamou durante toda a longa caminhada matinal até a igreja da vila, ida e volta, por estar com os pés molhados e os dedos congelados; mas eu tinha outras preocupações em mente. Sarah e eu cavalgaríamos até a Fazenda Uppercliffe naquela tarde, mas antes de visitarmos a fazenda, eu teria a primeira das muitas aulas de equitação que meu pai providenciara. Para ser sincera, não estava morrendo de vontade de ficar em cima de um cavalo novamente. “Cavalos são imprevisíveis, não são? É perigoso…” Tentei afastar da mente os comentários tolos de Harriet, mas meu estômago começou a se revirar, nervoso. Embora conseguisse montar em um pônei e seguir lentamente sobre as campinas, não sabia cavalgar direito. Torcia para que o professor não me obrigasse a galopar ou pular, ou a fazer qualquer outra coisa mais extravagante. Não tinha medo de nadar nos mares mais bravios, mas não fui criada junto a cavalos e nunca ficaria totalmente à vontade com eles. 92 Depois do almoço, fui ao dormitório para trocar de roupa e vestir a confortável calça jodhpur5 e as lustrosas botas de montaria que ganhei do papai no Natal. Procurei com as mãos o colar sob a camisola. — Agnes? — hesitei. — Agnes, diga-me se estou fazendo a coisa certa? Devo deixá-lo em Uppercliffe? — A fina cortina ao redor da minha cama balançou como se a brisa das campinas a tivesse soprado; ouvi o eco de um suspiro e, logo depois, o silêncio… exceto pela batida insistente do meu coração. Sarah devia estar me esperando. Eu precisava ir. Saí rapidamente do dormitório, desci os degraus de mármore e cheguei ao segundo andar, onde havia os quartos das professoras. A Srta. Scratton estava trancando a porta de um deles. Ao levantar os olhos e me ver, acenou com a mão. — Soube que vai cavalgar com Sarah, não é mesmo? Ela fez uma solicitação ontem à noite, para que você pudesse acompanhá-la nas campinas hoje à tarde. — Er, sim, isso mesmo… — Tomem cuidado para não ficar fora por muito tempo. Está esfriando novamente e acho que vem mais neve por aí. — Garanto que ficaremos bem, Srta. Scratton. — Sei que o funeral da sua avó ocorreu durante as férias — disse calma e séria, como sempre. — A morte é muito difícil para os mais jovens. Se precisar de alguma coisa, é só falar. 5 Calça larga no quadril e justa nas pernas, utilizada na prática de equitação. (N.E.) 93 Ela parecia olhar para mim com sincera piedade com aqueles olhos calmos e atentos. Por um breve momento, sua gentileza quase me tirou a coragem. Uma parte de mim queria conversar com ela, contar tudo sobre Frankie, ser acalmada e consolada. Eu me senti confusa com a imagem que tive da Srta. Scratton no meu sonho, esticando a mão para agarrar o Talismã. Não combinava com aquela professora aparentemente zelosa diante de mim. Forcei um sorriso tranquilo. — Obrigada, mas estou bem. — Não tenho dúvidas quanto a isso — retrucou calmamente. — Há um provérbio antigo que diz: “O coração se entristece, mas o homem sábio não sai à procura dos mortos”. Lembre-se disso, Evie. Não… Foi aí que a Srta. Dalrymple saiu de um dos quartos sorrindo, acenando com a cabeça e esfregando o canto da boca com um pequeno lenço de renda. — Vai cavalgar, Evie? Que maravilha! Tenho certeza de que a Srta. Scratton pode lhe dar bons conselhos. Ela é uma excelente cavaleira, excelente. — A professora presunçosa e arrogante sorriu maliciosamente ao fazer o elogio. — Certamente o conselho da Srta. Scratton em qualquer assunto seria de valor inestimável. Foi como se uma faísca de irritação passasse pelo rosto estreito da Srta. Scratton, mas ela se recompôs rapidamente. — Imagina! Não cavalgo há anos. É melhor você ir, Evie. E como eu ia dizendo… não corra nas escadas. Finalmente saí do edifício, atravessando o pátio do estábulo. O que será que a Srta. Scratton iria dizer? Não faça o quê? Não tinha nada a ver com correr nas escadas, 94 podia jurar. E o quanto será que a Srta. Dalrymple ouviu da conversa? “O homem sábio não sai à procura dos mortos…” A Srta. Scratton estava se referindo a Frankie… ou a Sebastian? Mas isso seria impossível, a não ser que… a não ser o quê? Se ela fosse uma das Irmãs das Trevas e soubesse de Sebastian, dificilmente me daria algum conselho. Chutei uma pedra dentre muitas e enfiei as mãos nos bolsos, pensativa. — Ei! — Ah, me desculpe! — Trombei sem querer com um garoto alto e muito bonito. Ele devia ter uns dezoito anos, tinha cabelos cor de milho e um olhar divertido. Dei um passo para trás e respirei fundo. — Sinto muito. Não te vi. — Tudo bem, sem crise — falou sorrindo. — Adoro ser tratado como se não existisse. Um homem invisível, este sou eu. — Não, não é isso. Quero dizer, sei quem você é — murmurei. — Você é… er… Josh, não é? E você… — Trabalho nos estábulos. Não se preocupe, você pode trombar comigo sempre que quiser. Fiquei vermelha, mesmo não sabendo exatamente por quê. Josh, por outro lado, parecia estar bem à vontade. — Bem, é melhor eu ir embora — falei, nitidamente sem graça. — Não posso me atrasar para a aula de equitação. — Não, claro que não — ele sorriu novamente. — Bem, espero que você aproveite bastante. — Sim, obrigada. 95 Corri apressada até a baia da Bonny e a selei com mãos desajeitadas e inexperientes. Estranhei Sarah não estar ali para me ajudar, mas imaginei que chegaria em breve. Sofrendo para apertar o último fecho, finalmente consegui colocar a sela e a rédea e caminhei com Bonny pelo pátio até a pista circular. Sarah estava lá fora, aborrecendo um cavalo manso e cinza amarrado à cerca enquanto conversava com Josh. Sarah parecia feliz e animada; percebi que nunca havia enxergado quem ela realmente era antes, de forma tão nítida e clara. Não tinha me dado conta do quanto ela era bonita. Reparei com certa surpresa que o brilho dos seus olhos era por causa do Josh, e logo em seguida me culpei por ter sido tão idiota ao não perceber uma coisa tão importante sobre minha melhor amiga. Do outro lado da pista, Harriet tremia sozinha no frio, como uma criança sem ninguém para brincar. Ela obviamente havia ignorado meu conselho de conhecer melhor suas colegas de sala. Suspirei. Eu realmente não gostaria que ela ficasse observando minhas primeiras tentativas com o instrutor de equitação. E, embora Sarah estivesse satisfeita por ter visto Josh, eu não estava muito animada com a ideia de ele me ver pagar mico logo na primeira aula. Por que acabei aceitando essas aulas? Sarah virou e acenou para mim. — Ei, Evie, você está pronta? — Acho que sim. Onde está a Sra. Parker, ou seja lá qual for seu nome? — resmunguei. — Ela já deveria estar aqui. Josh se endireitou. 96 — Eu sou a Sra. Parker — falou com um sorriso irônico. — Ao menos por enquanto. Devo ter lançado um olhar confuso ao ouvir a explicação dele. — Judith Parker é minha mãe. Ela dá aulas de equitação aqui em Wyldcliffe, mas torceu o pulso há alguns dias. Então você terá de me aturar. — Não sei, não… — Não se preocupe, já tirei meus certificados básicos de instrutor. Não farei você quebrar o pescoço. — Ah, então tudo bem — retruquei seriamente. Conduzi Bonny até a pista e montei em suas costas. — Não, assim não. Vamos começar pelo início. — Com muita paciência, ele me mostrou o jeito certo de montar, como se sentar de forma ereta, mas relaxada, e como apertar os dois lados do pônei com o joelho. A hora passou voando. Josh era um bom professor e, ao montar em seu cavalo cinza para me mostrar uma coisa, não pude deixar de notar a graça e a confiança do seu corpo flexível. Num determinado momento ele teve de corrigir minha postura e senti sua mão, quente e forte, na parte de baixo das minhas costas. Notei que Sarah não parava de observá-lo com o olhar parado, e Harriet nos olhava como uma criança faminta… Terminada a primeira aula, eu me sentia feliz. — Você foi bem — falou Josh. — Acho que, no fim das contas, podemos transformá-la em uma amazona. 97 — Só quero continuar em cima do cavalo e não fazer papel de idiota. — Ah, acho que você consegue fazer mais do que isso. — Ele sorriu, enquanto me observava descendo do cavalo. — Muito bem. — Josh! Onde você estava? — Uma voz furiosa atravessou o ar frio e úmido. — Fiquei esperando você selar Sapphire para mim por uma eternidade! Celeste nos encarava indignada, parada no caminho que levava até os estábulos. — Você poderia ter tentado selá-la sozinha, sabia? — retrucou Sarah. — Não ia doer nada. — Meu pai paga taxas de aluguel integrais — vociferou Celeste. — E eu espero… — Tudo bem. Já estou indo — prontificou-se Josh. — A aula da Evie se estendeu um pouco, apenas isso. — Ele virou para mim e disse: — Mesmo horário na semana que vem? — Hum, sim, quero dizer, se o pulso da sua mãe não tiver melhorado. Ele me lançou um olhar estranho, como se existisse um brilho de admiração em seus olhos. — Ah, acho que ela vai ter de ficar de repouso por um bom tempo. — Josh partiu em seguida atrás de Celeste, olhando rapidamente para Sarah por cima do ombro. — Até mais, Sarah. Por uma fração de segundos, Sarah pareceu desapontada com o jeito distraído do rapaz, mas respondeu quase no mesmo instante com um animado sorriso. — Até mais. 98 Partimos em direção à Fazenda Uppercliffe, perdidas em nossos próprios pensamentos. Trotava com cautela em cima da Bonny, enquanto Sarah cavalgava com confiança no seu outro pônei, Starlight. — Você conhece Josh há muito tempo? — perguntei ao deixarmos os portões da escola e começarmos a subir a trilha estreita que circundava as campinas. — Há três ou quatro anos, desde que entrei na Wyldcliffe. Josh sempre estava perto dos estábulos, ajudando o velho estribeiro que costumava ficar aqui. Ele ainda me vê como uma criança apaixonada por pôneis. — Ela me lançou um estranho olhar. — Não sou o tipo de garota em que os meninos reparam. Não sou como você. Eu me senti desconfortável, como se tivesse entrado em um assunto muito particular. Pensei em alguma coisa para dizer: — Ele parece ser um ótimo cavaleiro. — Um dos melhores — respondeu Sarah, com o rosto todo iluminado novamente. — Já participou de diversas exibições e competições, mas para levar o esporte a sério é necessário muito dinheiro. Então ele ajuda a mãe na escola de equitação e trabalha em Wyldcliffe. Acho que, se ele não conseguir ser um cavaleiro profissional, vai querer estudar para se tornar um veterinário. Ele é… bem, é um bom rapaz. Ela parou de falar por alguns instantes e franziu a testa. — Não sei como consegue aturar atitudes de gente como a Celeste. Ele não é um escravo, e ela não é uma princesa, não importa se pensa ser uma. Ele é um milhão de vezes melhor do que ela. De repente ela apressou Starlight e seguiu à frente sobre o solo molhado. Nunca tinha ouvido Sarah falar daquele jeito. Como eu nunca havia reparado no carinho em 99 seus olhos e no brilho do rosto sempre que falava com ele? Tentei lembrar das vezes em que os vi juntos no semestre passado. Ele estava lá embaixo, nos estábulos, sempre com o mesmo sorriso descontraído e o corpo gracioso e atlético sob a roupa surrada de montaria, mas não o via dando atenção especial a Sarah. Talvez ele ainda pensasse nela como uma criança ou achasse que as alunas de Wyldcliffe fossem inacessíveis, muito arrogantes e esnobes para se interessarem por um menino da roça. Seja lá qual fosse a razão, agora percebia claramente que Sarah gostava dele e que sofria por isso. Esperava estar enganada sobre a admiração que observei em seus olhos ao olhar para mim. Não estava interessada em Josh e odiaria ver Sarah chateada. Provavelmente não significava nada, disse a mim mesma. Esqueça isso. Chegar até Uppercliffe era tudo o que importava. Apressei meu pônei para alcançar Sarah e, enquanto corria sobre as colinas cheias de névoa, o Talismã batia contra o meu coração. 100 F azenda Uppercliffe. Não era muito mais do que uma casa de campo em ruínas, escondida na solitária encosta e coberta de grama alta e urtigas. O vento girou sobre os montes de neve que resistiam num canto ou outro. Era fácil imaginar como era tudo aquilo nos velhos tempos: a quilômetros de distância de qualquer coisa, os únicos ruídos vinham dos pássaros e do balido das ovelhas. Aqui, em Uppercliffe, Lady Agnes havia escondido seu maior tesouro… a pequena Effie, com seus cachos ruivos, a filha de Agnes, a minha tataravó. Sarah e eu descemos dos pôneis e fomos até os restos da casa. O símbolo do Talismã, a herança preciosa, havia sido inscrito na pedra sobre a porta muitos anos atrás. Aquele parecia ser o lugar certo para escondê-lo. Torcia para que a congregação não pensasse em procurá-lo ali. Tinha certeza de que as mestras não sabiam da ligação de Agnes com a velha fazenda. — Encontraremos um bom esconderijo lá dentro — falei. — Tudo bem, mas tenha cuidado. O teto está caindo e ainda há algumas vigas de madeira um tanto perigosas. 101 — Terei cuidado — prometi. Passei pela arcada de pedra da porta e entrei na casa em ruínas. De repente, uma auréola de luz ofuscante me deixou zonza e meu estômago pesou como se eu estivesse caindo de um lugar muito alto. Num piscar de olhos, eu estava em pé em um pequeno salão. Uma mulher corpulenta vestindo uma longa saia estava debruçada sobre uma lareira fumegante. Sabia quem era. Era Martha, a antiga babá de Agnes, que vivera na fazenda há muito tempo. Ela enxugou o rosto com seu avental e se virou para balançar um berço de madeira, onde um bebê com um cacho de cabelo brilhante dormia enrolado em um cobertor muito simples. Martha cantava baixinho enquanto embalava o bebê. Logo depois, olhou para o canto da modesta sala, onde Agnes estava sentada diante de uma mesa pequena, escrevendo em um caderno preto com capa de couro. Era seu diário. Eu havia lido cada palavra daquele livro sob o olhar ansioso de Sebastian, enquanto ele tentava me explicar a confusa teia que ligava a todos nós: Agnes, Sebastian, Effie e Evie. Agnes interrompeu sua escrita e olhou diretamente para mim, e então percebi que ela me reconhecia. — Estou aqui! — tentei gritar, mas as palavras não vinham. — Estou aqui! — E então acordei do feitiço, gemendo. — Aqui, aqui, aqui… — É aqui que você quer escondê-lo? — Sarah perguntou, preocupada. — Aqui mesmo? Sem ter me dado conta, havia agachado no canto da casa destruída, bem onde Agnes estava sentada à mesa. Eu cavava a terra fria com as próprias mãos. — Sim, aqui — respondi, ofegante. — Aqui, este é o lugar… 102 — Espere, Evie, Helen logo estará aqui — Sarah argumentou. Ela se aproximou e pôs a mão em meu braço. — Você a viu agora mesmo? Você viu Agnes? Ela acha que estamos fazendo a coisa certa? — Não sei. Só sei que preciso cavar aqui, neste canto… Lá fora, um dos pôneis relinchou assustado e pensei ter escutado o som de cascos de cavalos. Levantei tremendo e saí para ver o que estava acontecendo, na esperança de encontrar Helen. Mas não era ela. Fiquei imediatamente em estado de alerta. Aquilo não podia estar acontecendo justo naquele momento. Do outro lado de uma depressão das campinas, duas garotas de Wyldcliffe estavam a cavalo e conversavam com dois cavaleiros. Os forasteiros não vestiam roupas apropriadas para cavalgar, apenas suéteres e calças jeans rasgadas. Uma delas parecia uma menina de oito ou nove anos em um pônei felpudo. Um garoto mais velho, talvez seu irmão, andava com um cavalo malhado sem sela. Ele desceu ao chão e, com ar protetor, permaneceu ao lado da garota. Parecia mal-humorado, como se a conversa tivesse se transformado numa discussão. Sarah apareceu e ficou ao meu lado enquanto eu os observava. — Parece ser Celeste e India. Espero que não venham fuçar por aqui. — Mas com quem elas estão conversando? — perguntei. — Podem ser jovens da região — Sarah franziu a testa. — Ou talvez… sim, Josh disse que chegaram algumas famílias no acampamento dos viajantes do outro lado da vila, aquele pedaço de terreno baldio do lado da estrada. Acho que esses dois são de lá. 103 — Você quer dizer que eles são… — hesitei. — Viajantes, você disse. Você quis dizer… ciganos? — Acho que sim. Adoraria conversar com eles, se um dia tivermos a oportunidade. Sarah tinha muito orgulho do seu sangue cigano e guardava uma foto de estimação dos seus antigos ancestrais ao lado da cama. Celeste, no entanto, não parecia muito cordial com os dois jovens desconhecidos. Ela falou de repente de forma agressiva com eles, puxou a cabeça do cavalo e seguiu adiante, acompanhada por India em seu alazão inquieto e de pernas compridas. O garoto deu de ombros e falou algo para a menina, depois montou em seu cavalo com rapidez e força incríveis. Eles não se pareciam em nada com as visões românticas que eu tinha sobre os ciganos. Era como se fossem… não sei, meio durões, como se fizessem parte da natureza, menos arrumados e refinados que as alunas de Wyldcliffe, com suas roupas caras, e mais despreocupados. Eles cavalgaram para longe. — Venha — falei —, vamos sair daqui. — Arrastei Sarah para dentro da casa em ruínas novamente. — Não podemos perder mais tempo. Se Helen se atrasou por algum motivo, teremos de começar sem ela. Voltei ao local onde cavava e tentei retirar ainda mais terra. Alguns minutos depois, o ar se agitou e ficou luminoso, e Helen surgiu na minha frente, soprada como uma folha ao vento. Já estava me acostumando às suas aparições repentinas. — Você está bem? — perguntou Helen. — Parece preocupada. — Não é nada, fique tranquila. Mas há outras pessoas andando a cavalo sobre as colinas. Acho que encontramos o lugar apropriado, mas não podemos ser vistas. 104 — Trouxe uma pá e algumas outras coisas — ela falou, mostrando o saco de lona grossa que carregava no ombro. — Peguei isso do barracão do jardineiro. Posso vigiar lá fora se você prefere continuar cavando. Ainda estava tremendo muito para ser de alguma utilidade. Havia visto Agnes, aqui, nesta casa abandonada, e não conseguia afastar a sensação de que algo ruim estava prestes a acontecer. As palavras que escutei ela dizer na gruta voltaram rapidamente para mim, e me senti enjoada e zonza. “Siga meu caminho… elas estão chegando…” — Eu faço, se você quiser — disse Sarah. Concordei, agradecida, e tentei recobrar o fôlego enquanto minha amiga ficava de joelhos e examinava o chão. As tábuas velhas haviam apodrecido e ela sentia a crueza da terra, como se estivesse acariciando algo precioso. “Terra para Sarah…” — Tem alguma coisa aqui embaixo — ela disse, animada. — Posso senti-la sob a terra, nos chamando. Dê-me a pá. Sarah, com destreza, começou a retirar a camada superior do solo, depois jogou a pá para o lado e começou a raspar a terra cuidadosamente com os dedos, sentindo algo em meio à lama. — É uma caixa velha — falou, enquanto tirava a sujeira da caixa com as mãos. — Abra você, Evie. Deve ter pertencido às pessoas de Uppercliffe algum dia. Ela me passou a caixa preta. Era feita de latão e estava toda enferrujada. Não tinha cadeado, apenas um fecho rudimentar para mantê-la fechada. Abri-a com um solavanco. 105 — Uau — murmurou Sarah. Um aroma de pétalas de rosa emergiu da pequena caixa, seco e empoeirado, mas, ainda assim, doce. — Elas devem ser tão antigas — afirmou Helen. — E o que é isso? Levantei uma bolsa de pano e vasculhei seu interior. Meus dedos pegaram em algo duro e frio. Era um pequeno medalhão de ouro quebrado e amarrado com um pedaço de fita. Abri, desajeitada, a joia. Dentro havia um único cacho de cabelo vermelhobronze, macio e fino como o de uma criança. Uma garotinha de cachos brilhantes, sentada na soleira da porta em Uppercliffe… — Deve ser dela… da Effie — falei, maravilhada. — Martha deve ter guardado o cacho nesta caixa, em um lugar seguro debaixo do assoalho — falou Helen. — Mas por que isso foi mantido aqui durante todo esse tempo? — Talvez tenham esquecido da caixa depois que ela morreu — respondeu Sarah, que examinava o medalhão atentamente. — Nunca saberemos o que realmente aconteceu. — Não acham estranho estarmos aqui para esconder um colar e de repente encontrarmos outro? — perguntei, ansiosa. Será apenas uma coincidência? — Não sei se acredito em coincidências — Sarah respondeu, calmamente. — Talvez a Agnes queira que você o use. Por que não o coloca? Tirei o Talismã e coloquei o medalhão no lugar. Fiquei imóvel por alguns segundos, apenas esperando. Nada aconteceu. 106 O que eu estava esperando? Visões? Presságios de desastres? Uma aparição de Agnes avisando que eu não poderia me afastar do Talismã, nem mesmo por um segundo? Mas não havia nada. Nada de ruim estava para acontecer. — Então, está pronta, Evie? — Sim, estou pronta. Enfiei o Talismã na bolsa de pano e a coloquei sobre as pétalas de rosa, finas e secas como papel, fechando a caixa com um estalo. Logo depois, enfiei a caixa no buraco do chão e a cobri com a terra escura. Sarah alisou a região onde a terra havia sido remexida e recolocou as pedras no lugar. — Assim — ela disse. — Deixe a terra escondê-la bem. — Deixe o Talismã repousar em paz — afirmou Helen, fazendo um sinal no ar com as mãos. — Deixe que a terra o segure e nossas memórias o guardem e que os ventos o assoprem levemente. Deixe-o adormecido o tempo que for necessário. Eu não disse nada. Logo, jurei, voltaria para buscá-lo, quando fosse poderosa o bastante para dominar o Talismã e operar milagres. Até lá, o pequeno medalhão quebrado ao redor do meu pescoço serviria como uma espécie de conforto para mim. Do mesmo jeito estranho que chegou, Helen foi embora. Sarah e eu retornamos em silêncio para a escola. Quando chegamos ao pátio do estábulo e descemos dos cavalos, minhas pernas estavam congeladas de frio. Levei Bonny de volta para sua baia enquanto Sarah cuidava da Starlight. Meu corpo inteiro doía depois da longa cavalgada. Comecei a escovar o pelo resistente do pônei, retirando a lama do seu corpo. 107 — Ei, você! — disse alguém atrás de mim. Era Josh com um arreio pendurado no ombro e um pedaço de palha no cabelo. — Pensei em dar uma passada para ver como se saiu depois de cavalgar pelas campinas, já que agora você é oficialmente minha aluna. Não está exausta? — Vou sobreviver. — Estranhei o sorriso espontâneo que lhe dei, mesmo sem querer. — Meus músculos estão reclamando um pouco. Josh se aproximou um pouco mais, deixando Bonny esfregar o focinho na sua mão enquanto lhe oferecia um pouco de cenoura cortada em pedaços. Olhou para mim meio intrigado. — Sinto que você não está tão empolgada em aprender a montar. Importa-se de responder por que está fazendo essas aulas? — Foi ideia do meu pai. Acho que ele pensou ser a coisa certa a se fazer em Wyldcliffe. — Você não parece ser a típica aluna de Wyldcliffe. — Não sou mesmo. Estou aqui por causa de uma bolsa de estudos. Se dependesse de Celeste e suas colegas, eu estaria trabalhando na cozinha. — Ah, Celeste. — Deu de ombros e riu. — Não daria muita atenção a ela. Então, para onde você foi essa tarde? — Atravessei a campina — respondi com certa relutância, pois não queria contar a ninguém por onde estive, mas Josh não parecia desistir facilmente. — Você chegou até Uppercliffe? Há bons passeios por lá. — Você conhece Uppercliffe? — perguntei, surpresa. 108 — Claro. Minha família sempre morou por essas bandas. Já fomos os donos da fazenda de Uppercliffe, muitos anos atrás. Meu coração deu um pulo. Outra ligação. Nada era simples em Wyldcliffe, nada era o que parecia. Não sabia o que falar, mas, antes de eu conseguir dizer alguma coisa, uma garota chamada Julia Symons invadiu os estábulos. — Nós todas temos de ir até o refeitório agora mesmo — falou em tom cerimonioso. — A Srta. Raglan quer a presença de todas imediatamente. — Ela saiu correndo, mas ainda pude ouvi-la gritando: — Todo mundo para o refeitório! — O sino começou a tocar a distância. — É melhor você ir — falou Josh. — Deixe que eu termino de fazer isso. — Ele gentilmente pegou a escova que eu estava esfregando no pelo da Bonny e nossas mãos se tocaram por alguns segundos. — Vejo você na semana que vem? — Er, sim… obrigada… — Dei meia-volta e voei até o refeitório. Seriam as notícias que estávamos aguardando? A Sra. Hartle estava viva ou morta? 109 P ermanecemos em filas silenciosas enquanto aguardávamos o início do discurso da Srta. Raglan, a Alta Mestra substituta. Harriet Templeton e Julia Symons estavam de pé ao lado dela. As duas pareciam aborrecidas. — Temos péssimas notícias, meninas — começou a Srta. Raglan. — Nesta tarde, enquanto vocês aproveitavam o seu tempo de lazer, alguém demonstrou não ter nenhuma consideração pelo conforto ou bem-estar da nossa comunidade. — Suas palavras eram sombrias, mas ela parecia agitada, até mesmo entusiasmada. — Estão ocorrendo uma série de roubos. Estas duas alunas perderam algo de valor hoje à tarde, joias que estavam guardadas em seus dormitórios. Como este fato é extremamente lamentável, devo lembrá-las de que joias não são permitidas, e todas as peças de valor devem ser entregues às professoras no início do semestre. Dessa forma, poderemos evitar esse tipo de incidente desagradável. Fez uma pausa e olhou ao redor. Será que apenas imaginei que seu olhar cruzara o meu por um instante? Senti meu medalhão recém-adquirido queimar na pele sob o suéter, mas a encarei sem pestanejar. Não iria desistir desta recordação da Effie tão 110 facilmente. Quanto ao Talismã, que permanecia em seu leito de barro frio, a Srta. Raglan jamais o encontraria. — As professoras estão vasculhando os dormitórios neste exato momento, e quaisquer outras peças de valor encontradas ficarão sob nossa proteção. Qualquer garota que ainda estiver usando algum item de bijuteria deve entregá-lo agora mesmo, e nada mais será dito. Porém, se alguma de vocês continuar a infringir esta regra, certamente terá de lidar com as consequências. Houve um breve silêncio. Logo depois, algumas garotas começaram a desatar as correntes que usavam por debaixo das camisas. A Srta. Scratton andou pelas filas com uma cesta onde, um por um, os colares íam sendo colocados. Ela passou por mim sem me lançar nem mesmo um único olhar. — Devo dizer que, se alguém tiver alguma informação sobre esse incidente, deverá falar comigo mais tarde — declarou a Srta. Raglan. — Os itens perdidos são um pingente de diamante Tiffany e um pequeno coração de prata pendurado numa corrente. — Este era meu — Harriet gritou. — Minha mãe me deu. É meu e eu o quero de volta. Algumas garotas riram baixinho do seu rosto vermelho e dos olhos que piscavam sem parar, mas foram poucas. Se havia alguma coisa de que as estudantes de Wyldcliffe entendiam era da importância de ter bens. — E tenho certeza de que vamos reavê-los muito em breve — a mestra falou calmamente. — Não podemos tolerar ladrões na escola. 111 A Srta. Raglan nos dispensou e Harriet desatou a chorar, sumindo dali. As alunas se separaram em pequenos grupos e começaram a fofocar sobre o último drama do internato. — Sinto pela Julia, mas não entendo por que alguém iria perder tempo roubando aquele pedaço de sucata da Harriet — India zombou, enquanto cruzava seu braço com o de Celeste. — Como se aquilo tivesse realmente algum valor. Meu Deus, um coraçãozinho cafona em uma corrente barata. Harriet provavelmente encontrou aquilo em algum pacote de cornflakes. Ela e Celeste deram uma risada cruel e estridente. — Você não sabe o que tem valor para as pessoas — rebateu Sarah. — Nem tudo o que é bonito vem com uma etiqueta de preço. — Sim — continuei, cansada da India e de suas amigas esnobes —, Harriet tinha carinho pelo colar, que ganhou da mãe. Já não é motivo suficiente para vocês? India ficou furiosa, mas torceu a boca e deu um falso sorriso. — Como se você pudesse reconhecer o que é belo ou valioso, Johnson. Não creio que esteja escondendo uma joia preciosa no armário, não é mesmo? Você tem alguma peça de herança guardada junto com suas meias reservas? — Suas palavras eram zombeteiras, mas comecei a me embaraçar. — Claro que não… — Vamos, Indy, não perca mais tempo com essas fracassadas — falou Celeste. — Quero me certificar de que Josh cuidou direitinho da Sapphire. — Ela arrastou India para longe. 112 — É melhor irmos também — disse Helen. — Vamos ver se a Harriet está bem. Caminhamos pelo corredor em direção à escadaria de mármore. Sarah abaixou o tom da voz. — Não pode ser uma coincidência, todo esse papo sobre entregar as joias. Eu me pergunto se não foi um tipo de plano. Tenho certeza de que a Raglan está envolvida nisso. Ela deve estar procurando pelo… — Ela parou e olhou em volta, apreensiva. — Bem, pelo menos ele está seguro agora — falei. — E temos mais tarefas hoje à noite. — O quê? Lá na gruta? Mas não podemos, a congregação estava por lá ontem à noite, pisando em tudo. — Não, lá não — sussurrei. — Me encontrem na escadaria dos criados à meianoite. Meia-noite. Não tinha como ser mais rápido que isso. Tinha uma coisa — me lembrei —, uma coisa que estava louca para fazer. Fechamos cuidadosamente a porta que dava para o corredor e ficamos no alto da escada dos empregados. Apontei a lanterna para o painel quebrado no qual já havia reparado. Sarah e Helen se entreolharam, surpresas com a minha descoberta, e me ajudaram a retirar o restante da madeira apodrecida. Fizemos o máximo de silêncio possível, e logo tínhamos um grande buraco negro, grande o suficiente para chegarmos aos degraus escondidos e subirmos até o sótão. Os degraus eram estreitos e o ar cheirava a mofo e a 113 umidade. Hesitei por um momento, mas Sarah gentilmente me deu uma cabeçada por trás, então segui em frente, segurando a lanterna e me agachando para evitar as teias de aranha. Subimos os degraus podres e deparamos com um lugar amplo, como uma plataforma de madeira. Numa ponta havia um gablete6 em formato de torre com uma janela encardida que deixava entrar um borrão da luz do luar. Na direção oposta, em vez de um grande sótão, como era de se esperar, um emaranhado de salas desertas parecia se alastrar sob o beiral da casa, se estendendo além do que conseguíamos ver. A poeira era grossa como um tapete no chão vazio, e havia um silêncio profundo. Era quase um sacrilégio quebrar o feitiço do lugar. Tempos atrás, as empregadas vitorianas — jovens como nós — dormiam neste local após o trabalho na grande casa. Elas trabalhavam, sonhavam e tinham segredos, mas agora não havia nenhum vestígio disso tudo. Segurei na maçaneta mais próxima e abri a porta: um pequeno aposento repleto de troncos velhos e malas surradas, talvez abandonadas ao longo dos anos pelas alunas mais antigas de Wyldcliffe. Não havia espaço para trabalharmos ali, então seguimos em frente e tentamos abrir outra porta, que estava trancada. — Espero que nem todas estejam trancadas — falei com certa impaciência, sacudindo a maçaneta, e foi aí que reparei numa coisa. Não havia nenhum buraco na fechadura e, ainda assim, a porta estava bem fechada. — Talvez esteja emperrada depois de tantos anos — sugeriu Helen. 6 Adorno triangular disposto sobre janelas, portas ou fachadas de edifício. Muito utilizado na arquitetura gótica. (N.E.) 114 Tentei empurrar a porta, apoiando com força meu ombro contra ela, mas não consegui. — Está parafusada por dentro. — Deixe-me ver — falou Sarah. Ela colocou as mãos na porta, sentindo tudo, silenciosa e atentamente, como se escutasse a madeira que um dia havia crescido na terra, quando ainda era uma jovem árvore. — Há dois parafusos de metal na parte de dentro. E tem mais uma coisa… uma vibração estranha, algo que não consigo decifrar. — Mas como pode estar trancada por dentro? — indaguei, intrigada. — E por quê? — Para deixar todos de fora, é claro — respondeu Helen. — Vou entrar e dar uma olhada. — Tem certeza? — Claro. E se tiver apenas malas ou colchões velhos vocês podem rir da minha cara depois. — Tome cuidado. — Apertei sua mão rapidamente enquanto ela concentrava seus poderes e pensamentos. No instante seguinte ela já estava dentro de um redemoinho, desaparecendo no ar e surgindo no outro lado da porta. Silêncio. — Helen? — chamei. Nenhuma resposta. Sarah bateu com força na porta e, de repente, ouvimos um ruído abafado de parafusos rangendo e a porta sendo escancarada por Helen, que olhava triunfante para nós. 115 Era um quarto minúsculo, com paredes inclinadas sob o teto e coberto por uma seda violeta já quase sem cor, como uma tenda, e no chão havia um suntuoso tapete persa. Uma mesa de madeira entalhada no meio da sala e prateleiras logo atrás, repletas de garrafas grossas de vidro com o que parecia ser ervas e plantas secas dentro. Possuíam etiquetas desbotadas: Malva, Hissopo e Arruda. — Mas a letra é da Agnes! — eu disse quase sem ar. — Esta deve ter sido sua sala secreta de estudos antes de fugir para Londres — falou Sarah, entusiasmada. — Onde ela fazia experimentos e estudava o Caminho Místico. Ela deve ter trancado este lugar com seus poderes — acrescentou Helen —, para que ninguém pudesse entrar. — Ninguém… além de nós — falei, admirada. Debaixo das prateleiras havia grandes jarros de barro enfileirados. — Tem óleo aqui — Sarah avisou. — E água e areia, e um monte de outras coisas. E pacotes de velas… todas de cores diferentes… brancas, roxas, verdes e vermelhas. — É perfeito! — Olha! — Helen havia arrastado com os pés o tapete carcomido pelas traças e viu, meio escondido debaixo dele, um intrincado círculo prateado pintado no chão, decorado com estrelas, luas, flores e símbolos elaborados. Todo o quarto e tudo o que havia nele parecia estar vivo e repleto de infinitas possibilidades. 116 — Isso é um sinal — eu disse ao olhar tudo à minha volta, maravilhada. — Agnes queria que entrássemos aqui para aprender ainda mais, como ela mesma fez. Podemos começar agora mesmo. Existe algo que desejo fazer há muito tempo. — O que é? — perguntou Helen. — Você não se lembra quando Agnes descreveu em seu diário como havia invocado uma chama quando estava em Londres, e com isso conseguiu ver a imagem de Sebastian distante, em Wyldcliffe? Por que eu não seria capaz de canalizar meus poderes de água para fazer algo parecido e ver a imagem de Sebastian agora, seja lá onde ele estiver? Talvez isso nos dê uma pista de onde ele está escondido e do que está lhe acontecendo. — Tudo bem, vamos tentar — Sarah concordou. — Do que você precisa? Vasculhamos a coleção de materiais que lotavam o pequeno aposento e encontramos uma bacia rasa de bronze. Coloquei a água dos jarros dentro dela e a posicionei no meio do círculo. Helen acendeu algumas velas e começou a entoar um cântico. Sentei-me de pernas cruzadas ao lado da bacia, descansando a ponta dos dedos na superfície da água. Fechei os olhos e me deixei levar pelo som da voz da minha amiga, deixando a mente vagar por onde bem entendesse. Lembranças começaram a surgir por trás dos meus olhos. Estava sentada com Sebastian na beira do lago, observando o reflexo da lua oscilar sobre a superfície da água. “A água da vida… o sangue das nossas veias…” Minha mente regrediu no tempo ainda mais. “Eu sei o que quero fazer… Quero nadar com você, garota do mar…” 117 Nadávamos no lago, lado a lado; logo depois eu estava em pânico, alguém me puxava para baixo. Estava me afogando… caindo nas águas negras e profundas da memória. Sebastian! — chamei em pensamento. Onde você está? Diga para mim onde você está! Abri os olhos num sobressalto e me vi agachada sobre a bacia, ainda segurando sua borda. Olhei para meu reflexo na água e no instante seguinte a superfície transparente havia se transformado no rosto de Sebastian. Ele estava deitado, tão pálido e imóvel que por um momento fiquei aterrorizada com a possibilidade de que estivesse morto. Não, isso não está certo — pensei. Ele não pode morrer, ele nunca morreu… Sebastian abriu os olhos. Eu o observei erguer-se pelos cotovelos e passar a mão no rosto. Havia um monte de papéis e cartas ao seu redor, que ele rapidamente empurrou para o lado. Levantou-se hesitante e começou a andar, como se cada passo doesse em seu corpo. Cambaleou para mais longe e a imagem começou a sumir. Ele estava me deixando. — Não vá embora, por favor! Arremessei a bacia para o outro canto da sala e desatei a chorar. Sarah me segurou com cuidado, como uma mãe que quer acalmar o filho, enquanto eu chorava sem parar. Depois de um tempo, senti-me envergonhada. Não iríamos conseguir nada com lágrimas. Era necessário ter atitude, força e conhecimento, e não fracas emoções. Ao menos vi Sebastian, disse para mim mesma. A imagem dele permanecia nos meus 118 olhos, embora eu ainda não tivesse descoberto onde estava. Tinha de trabalhar mais e ser mais rápida. Precisava me concentrar mais. Não havia mais tempo para lamentações. Tinha de me entregar com determinação ainda maior aos nossos experimentos. Prometi a mim mesma que iria subir a escada secreta às escondidas todas as noites para trabalhar no esconderijo de Agnes, me empenhando cada vez mais para desvendar os mistérios que libertariam Sebastian e o trariam, finalmente, de volta para mim. 119 O s dias passaram rapidamente, como num sonho, e as noites eram como vultos, enquanto trabalhávamos duro, perdendo horas de sono e com a preocupação constante de não sermos descobertas. Ninguém parecia saber da escadaria que dava acesso ao sótão, então estávamos a salvo por enquanto. Francês, biologia, matemática, música… todos esses assuntos se chocavam em minha mente, junto com os nossos experimentos do Caminho Místico. Numa certa noite, Helen fez uma pilha de livros subir pelo ar e levitar pela sala. Depois foi a vez de Sarah, que segurou um amontoado de barro nas mãos e o transformou num esboço delicado de árvore apenas com a força do pensamento e da vontade. Éramos especiais, dizia a mim mesma com fervor; em breve poderíamos fazer o que quiséssemos. Tínhamos um dom, éramos escolhidas, especiais… Mas a cada dia eu ficava mais cansada. Meus membros doíam e minha cabeça fervilhava. Continuava por amor — e medo — a Sebastian. Era difícil acreditar que Celeste e as outras não sabiam de nada do que fazíamos. Elas ainda passavam o tempo tentando descobrir quem havia recebido um pacote caro de um pai generoso ou quem faria um solo no grupo de coral, ou quem fazia parte do time de lacrosse. A vida da escola transcorria normalmente, mas quase não fazíamos 120 parte dela. Tentei evitar qualquer tipo de contato com as outras alunas. Era mais fácil não acreditar em ninguém, a não ser em Helen e Sarah. Eu não queria revelar quem era num comentário desatento ou numa conversa qualquer. Ainda assim, não conseguia evitar Harriet totalmente. Ela sempre aparecia de repente, como um cahorrinho perdido, disposta a correr e buscar para mim um copo d’água na hora do almoço, ou pegar minha caneta quando ela caísse no chão, ou me ajudar com as tarefas. Havia algo de patético em sua devoção de cachorro, e eu queria com todas as minhas forças que ela fizesse alguns amigos por conta própria. Finalmente outro domingo havia chegado, depois de uma semana de estudo extenuante. Acordei quente e indisposta, mas me forcei a levantar, como sempre. Enquanto esperava o término da longa missa, mal ouvia o que estava sendo dito. A igreja parecia estar repleta de vultos, povoada por uma congregação há muito tempo extinta que balbuciava orações e hinos sombrios: “Vou para o lugar de onde não voltarei, à terra da escuridão e à sombra da morte…”. Aquelas formas fantasmagóricas eram mais reais para mim do que as alunas entediadas de Wyldcliffe sentadas em suas fileiras organizadas. “O passado, não se pode fugir do passado aqui, em Wyldcliffe…” Tentei sair daquele entorpecimento, dizendo a mim mesma que estava apenas muito cansada, mas não conseguia relaxar enquanto caminhávamos de volta para a escola, açoitada pelo vento que passava sobre as colinas. Parecia existir algum tipo de tensão no ar, como se algo estivesse prestes a acontecer, como se alguém estivesse me observando. 121 — Evie, você está pronta? Pisquei os olhos e olhei, surpresa. Estava sentada na beirada da cama e Sarah me esperava na porta. — Pronta para o quê? — Cavalgar, é claro. Olhei para minhas botas e calça jodhpur com espanto. Não me lembrava nem de ter trocado de roupa depois do culto na igreja, de tão perdida que estava em meus próprios pensamentos. — Cavalgar? — perguntei, distraída. — Vamos cavalgar hoje? — Você tem aula, Evie — ela falou impaciente. — Você sabe… sua aula de equitação com Josh. Josh. É claro, o bom rapaz que estava tentando me ensinar a montar. Gostava dele, mas ainda assim não queria ter de passar uma hora em sua companhia. Gostaria de não ter de continuar com as aulas de equitação. “Você pode se machucar… É perigoso… Você pode cair…” Um sentimento desconhecido de pavor estava se apoderando de mim, quase me paralisando. Lembrei-me do que haviam dito sobre Agnes. “Foi um acidente a cavalo… um acidente… ela morreu… aquele lugar amaldiçoado…” — Você está bem, Evie? — perguntou Sarah. — Você ficou quieta o dia inteiro e está tão pálida. — Não é nada, de verdade. — Fiz um esforço tremendo para bancar a otimista. Nada iria acontecer. Josh era perfeitamente capaz de perceber que eu não iria me 122 machucar trotando ao redor do campo. E havia Sarah, a querida Sarah, tão preocupada e prestativa. Não queria que ela se preocupasse comigo. — Desculpe, Sarah, ando muito cansada, só isso. Melhor eu ver onde Josh está agora. Vejo você depois da aula. Alguns minutos depois, lá estava eu levando Bonny até a pista circular. — Evie! — alguém me chamou. Era Harriet, envolta por um pesado casaco e por um cachecol, o nariz, longo e fino, vermelho de tanto vento. — Posso assistir, Evie? Posso assistir à sua aula? Minha cabeça começou a doer novamente. Não a queria lá, me observando. Até as janelas do edifício cinza da escola pareciam me encarar com olhos hostis. — Não, Harriet, hoje não. Você não vai querer ficar aqui nesse frio. Vá para dentro. — Não estou com frio. Por favor, deixe-me ficar, Evie. Não tinha mais forças para argumentar. Que ela assistisse, se assim desejava. O que importava? Talvez, se eu começar a ignorá-la, ela perderá o interesse e irá embora. Montei no cavalo e comecei a andar lentamente com Bonny pelo círculo marcado no chão. — Está melhor — falou uma voz amável e alegre atrás de mim. — Você já está melhorando. Josh. Forcei um sorriso e ele retribuiu com outro. Havia uma luz em seus olhos, era como uma pequena chama… 123 Ele me fez trabalhar duro e, ao final da aula, estava exausta. Todos os músculos novos que eu descobria aos poucos gritavam e me pediam para parar. Ao descer das costas de Bonny, meus joelhos quase bambearam. Cambaleei um pouco, mas rapidamente Josh ficou ao meu lado para me ajudar, pondo o braço na minha cintura. — Evie, qual é o problema? — Minhas pernas ficaram meio bambas. — Ele continuou me segurando e me dei conta do seu corpo colado ao meu e da avidez do seu olhar. Fiquei sem graça e me desvencilhei daqueles braços, rindo. — Certamente não estou em boa forma para esse lance de montaria. — O que está realmente acontecendo, Evie? — ele perguntou, com um olhar intrigante e preocupado. — Algo me diz que você… bem, que você está preocupada com alguma coisa. Reparei que Harriet me observava do outro lado do campo. Ela ainda estava lá, como uma velhinha envolta em um monte de roupas desconfortáveis. As gralhas pousavam nas árvores antigas do gramado, seus gritos eram agudos e urgentes no crepúsculo. O curto dia de inverno já estava morrendo. Por um instante fugaz quis conversar com Josh. Ele parecia tão… simples, tão distante do mundo que eu habitava no atual momento. Mas não havia sentido nenhum naquilo. Não podia descarregar nele minhas aflições só porque ele era gentil e carinhoso. Não precisava de uma muleta para me apoiar. Podia lidar com aquilo sem ele. — É uma tarde melancólica, só isso. Escute o uivo do vento! Isso está me causando arrepios o dia todo. 124 Josh olhou bem fundo nos meus olhos. — Cuidarei de Bonny para você — disse ao tirar as rédeas das minhas mãos. — Vá e descanse um pouco. E Evie… — ele começou a falar, mas pareceu mudar de ideia, ocupando-se com o pônei. — Espero que você se sinta melhor. O mesmo horário na semana que vem? — Sim. Voltei lentamente aos estábulos. O vento passava veloz pelos edifícios sombrios da Abadia, parecia me puxar por todos os lados como se eu fosse tão leve quanto uma folha morta, e sem nenhuma vontade própria. Afastei-me do pátio do estábulo e segui pelo terraço. Fiquei parada um tempo, olhando o gramado cheio de neve que levava ao lago. O lago. Água muito, muito profunda. As profundezas negras da água. Tão fria, tão pesada, tão serena e convidativa. Ele estava me chamando… eu precisava chegar mais perto. Comecei a caminhar pelo gramado, mas havia algo de errado. Tudo estava diminuindo, escurecendo… eu estava fria como uma pedra de gelo… Evie… Evie… onde você está? Era Sebastian, tinha certeza, ele estava nas ruínas e me chamava. Lá estava ele. Olhando para mim. Ele finalmente havia voltado. Nada mais importava. Nada mais existia. Meu corpo se encheu de energia e corri sem me preocupar, deslizando pelos atalhos congelados e falando baixinho: — Estou 125 aqui. Estou chegando, espere por mim, Sebastian. — Corri para debaixo dos arcos negros da capela em ruínas e fui derrapando até parar subitamente. Seis mulheres, encapuzadas e vestindo capas, estavam reunidas no monte de terra onde outrora havia um altar. E num piscar de olhos eu já estava cercada por suas mãos estendidas e ávidas. Uma delas falou com voz abafada e sinistra: — Ah, que bom que você atendeu ao nosso chamado… — Não! — Um grito intenso rasgou o ar e uma parede de luz surgiu entre mim e aquelas mulheres, como um escudo. Caí no chão e tudo girou ao meu redor; observeias dar meia-volta e se afastar, os mantos negros balançando ao vento. Em seguida, a luz se modificou e o forte cheiro de velas preencheu minha mente como um incenso letárgico. Delicadas vozes cantavam, tão tristes e profundas quanto a canção do mar. Ainda estava na capela, mas o teto não era mais aquele céu tingido de preto. Vigas douradas esculpidas pairavam sobre mim, e o vitral atrás do altar brilhava com centenas de cores cintilantes. Fileiras de mulheres em trajes brancos, irmãs santas, cantavam à luz de velas, os rostos elevados em êxtase sagrado. Reconheci os olhos de uma delas, que olhava para mim… As velas se apagaram. A música parou subitamente. A capela voltou a ser uma concha insignificante e em ruínas, com as estrelas do céu brilhando sobre minha cabeça. As mulheres ameaçadoras nos seus mantos escuros haviam ido embora, assim como as freiras que cantavam. Tive a impressão de que muito tempo se passara. — Evie… Evie… 126 A voz surgiu novamente, mas não era Sebastian. Momentos depois Sarah chegou correndo, sem fôlego e com ar preocupado. — Evie, você está bem? Josh falou que você terminou a aula faz tempo. Procurei você por toda a parte. Contei rapidamente tudo o que havia presenciado. — Então, as Irmãs das Trevas estavam aqui? — ela perguntou, horrorizada. — E outras mulheres, de tempos antigos, mas acho que reconheci uma delas. Ah, Sarah, tenho certeza de que Sebastian esteve aqui também. Você sente… você pode sentir alguma coisa? — Não sei… a atmosfera está confusa. Sinto o cheiro de perigo… medo… e esperança. — Ele esteve aqui, juro. Ouvi sua voz! — Pode ter sido uma armadilha da congregação, algum tipo de plano para atraíla até aqui, sozinha — Sarah afirmou, sem muita certeza. — Evie, realmente acho que você não deveria sair sozinha depois do pôr do sol, nem mesmo pelos jardins, como fez hoje. E é melhor voltarmos para dentro agora mesmo. Você ficou aqui fora durante horas e acabou perdendo o jantar. E está tão pálida! Olhei uma última vez para os pilares destruídos e as paredes tombadas da antiga igreja, relutando para sair dali. Fiquei aqui fora por tanto tempo assim? Pareciam apenas alguns minutos, e, ainda assim, talvez tivesse embarcado em alguma outra dimensão e perambulado por lá sem ter a noção de onde estava. Não conseguia tirar da cabeça aqueles rostos cantando na capela. Teriam sido as freiras dos tempos 127 antigos? Para onde haviam ido as outras mulheres encapuzadas? E era a voz de Sebastian que me chamava ou teria sido tudo uma armadilha cruel? — Evie, vamos. Está gelado aqui fora e você está tremendo. Sarah puxou meu braço e voltamos para a escola, minha mente fervilhava. Entramos por uma porta lateral e seguimos até a escadaria de mármore no hall de entrada. Algumas alunas estavam paradas diante do fogo que, como de costume, queimava na lareira de pedra. Meus dentes batiam de tanto frio e comecei a sentir um mal-estar. — Fique aqui e se aqueça um pouco. — Sarah parecia nervosa e me levou para mais perto do fogo. As chamas dançavam e lutavam, vermelhas, roxas e douradas. Ao estender minhas mãos, um grito quebrou a escuridão da noite. A pesada porta da frente se abriu completamente e uma menina rechonchuda de uns doze anos de idade e com o rosto rosado invadiu a sala. Ela chorava compulsivamente. — Eu o vi, eu o vi — gemia e chorava, agarrando as garotas que estavam mais perto. Foi quando a Srta. Scratton emergiu das sombras. — O que está havendo? Constance, quem você viu? Mas a garota só conseguia chorar e esconder o rosto com as mãos. A Srta. Scratton a fez levantar os olhos e disse: — Agora, conte-me o que aconteceu. Está tudo bem, estou aqui. Não há mais nada com o que se preocupar. — Foi ho-horrível. — A menina do rosto vermelho gaguejava e soluçava, ofegante. — Estava em frente ao portão com a minha câmera porque Emma Duncan falou que tinha visto uma coruja-branca voando na alameda algumas noites atrás… 128 sabe, aquelas brancas que aparecem ao pôr do sol… e eu queria tentar tirar uma foto e… e… — Ela caiu no choro novamente. — Continue — falou a Srta. Scratton. — O que aconteceu depois? — Escutei um barulho, como se fosse um gemido, alguém que sentia muita dor. Vinha do outro lado dos portões, e foi aí que olhei e vi… vi algo branco e pensei que pudesse ser a coruja, mas não era. Era um homem com uma longa capa preta e seu rosto estava todo branco e era assustador. Acho que ele estava morrendo. — Ela irrompeu em soluços desconexos. — Foi tolice da sua parte perambular pelos lados mais distantes do jardim no escuro, Constance. Não me admira que você tenha se assustado. Provavelmente era um dos fazendeiros voltando para casa. Você deve tê-lo assustado muito também. Agora venha comigo — a Srta. Scratton falou bruscamente. — Vamos pegar um pouco de chocolate quente e esquecer essa história. — Ela varreu Constance e as outras garotas do corredor, mas não sem olhar e ver onde eu estava. Seus olhos negros e afiados pareciam guardar uma mensagem para mim. Sebastian. Só podia ser Sebastian. Meu coração disparou. Ele estava lá fora, procurando por mim. Se ao menos soubesse, se ele tivesse me esperado na beira do lago… e então as palavras da garota me invadiram. “Acho que ele estava morrendo”. Em um flash vi seu rosto embranquecido, seus olhos vermelhos. Ouvi sua penosa respiração. Ele não estava morrendo, ele não podia morrer… No entanto, eu sabia o que aquilo significava. Sebastian devia estar nos últimos estágios do desvanecimento. Restava apenas um fino véu entre ele e seu terrível 129 destino. Em breve deixaria este mundo para ficar eternamente aprisionado nas sombras. O tempo estava se esgotando. Sebastian estava cada vez mais fraco, mal conseguia respirar. Eu mal podia respirar… estava tão fraca… tudo estava desaparecendo. Os azulejos em xadrez flutuavam diante dos meus olhos, as pernas tremiam e eu caí na mais completa escuridão, uma escuridão tão sombria e estreita quanto um túmulo. 130 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax E stou de volta ao meu túmulo de estar. Minha força está sumindo… mas preciso te contar… Eu realmente tentei encontrá-la; acredite, minha querida amada… você precisa acreditar em mim. Tentei vê-la, Evie… me esforcei tanto. A visão que tinha de você me fez mais forte. Pensei que seria possível chegar até você. Achei que, se pudesse encontrá-la, estaria curado, então juntei minhas energias para fazer esta viagem. Durante uma única e breve hora senti o vento no rosto mais uma vez. Observei o sol afundar no céu de inverno e as primeiras estrelas piscarem lá em cima. Respirei o 131 ar úmido e frio do lago, onde nadamos juntos uma vez, nossos corpos querendo alcançar um ao outro. Esperei por você sob os arcos das antigas ruínas, enquanto o dia morria e a noite avançava. Fechei os olhos e caí no chão, exausto da viagem e sem enxergar nem ouvir nada, pensando apenas em você. Evie, te chamei e você veio! Mas tudo se transformou em cinzas e percebi que a tinha levado a uma armadilha. Algumas das minhas primeiras servas esperavam por você, prontas para tripudiar em cima de uma presa inocente. Gritei para alertá-la e usei o que restava dos meus poderes para protegê-la, e foi assim que elas se dispersaram, como formigas chacoalhadas por uma vara. Eu vi você. Estava lá e eu tentei… tentei… E, então, algo aconteceu; algo que eu não esperava: a elevação de uma canção sagrada, cores e luzes brilhantes, e a visão de um forte e raro poder. Tudo parecia vir de você, podia jurar, mas ao mesmo tempo você estava distante e acima de qualquer ajuda que eu pudesse lhe dar. Eu não podia estar junto daquela companhia radiante… precisava ir embora. Alguém me viu, uma garota. Ela se encolheu toda quando me viu, pensando que eu era um monstro. E, então, como um monstro, retornei à minha escuridão. Perdoe-me, Evie. Tentei encontrá-la e falhei. Oh, Deus, deixarei de falhar algum dia? Agnes morreu por minha causa. E foi também por minha causa que as primeiras mulheres da congregação deixaram suas casas simples para prosseguir com minhas perversas aspirações. É por minha causa que elas se tornaram as Irmãs das Trevas. É 132 por minha causa que você corre perigo. E agora, com apenas um fino véu entre mim e meu destino, será tarde demais para tentar me redimir? Não haverá nenhum gesto de bondade pelo qual eu poderei ser lembrado quando for embora? Nunca conseguirei me curar? Talvez seja tarde demais. Talvez seja esta a minha única realidade agora. Sinto muito, Evie. Perdoe-me. Sinto muito por tudo… menos por amar você. 133 D — esculpe — murmurei. — Sinto muito. Levantei a cabeça ainda meio zonza e abri os olhos. O rosto da enfermeira do internato foi ficando nítido aos poucos. Sarah andava para lá e para cá, ansiosa. — Você está bem, Evie? — perguntou a amiga. — O que aconteceu? — Minha cabeça… devo ter desmaiado. Tolice minha. — Você tem essa predisposição, não tem? — perguntou a enfermeira bruscamente. — É o que acontece quando se está exausta após cavalgar no frio congelante e depois ficar perto do fogo. — Seu tom era sério, mas ela me tocou carinhosamente. Desconsiderei sua recomendação para que eu passasse a noite na enfermaria e implorei para que ignorasse o que havia ocorrido. — Eu não estou doente — jurei. — Foi como você disse: o fogo estava muito quente e senti tudo muito abafado depois de ficar tanto tempo lá fora. Não é nada sério. No fim das contas, ela acabou me levando até o dormitório e me fez prometer que relataria qualquer tipo de tontura. Sarah relutou em me deixar na porta do quarto para procurar Helen e contar o que havia acontecido, enquanto a enfermeira se 134 certificava de que eu estava confortável na cama. Assim que ela saiu, Celeste, que estava recostada no assento da janela pintando as unhas dos pés, falou em tom de gozação: — Está bancando a perfeita heroína com esses desmaios, não é mesmo, Johnson? — É apenas uma triste tentativa para tentar ficar mais interessante — acrescentou India. — Totalmente patético. Não valia a pena morder a isca e discutir com elas. Puxei a cortina ao redor da cama, mesmo com a certeza de que não conseguiria descansar. A enfermeira tinha razão quando disse que eu estava exausta, pois bastaram alguns minutos para meus olhos pesarem e eu cair num sono agitado. Não sonhei. Só me lembro de ter ouvido alguém caminhando calmamente pelo andar do dormitório. Sentei na cama e fiquei ouvindo. Talvez fosse Helen. Abri a cortina com cuidado e olhei para o quarto mal iluminado. Fiz um esforço tremendo para não gritar. Estava acontecendo de novo. Eu observava uma outra Wyldcliffe, não a do tempo distante do velho convento, mas a do rico e esplêndido apogeu do século XIX, quando a Abadia havia sido a adorável casa de Agnes. Eu estava no mesmo quarto, com as janelas em arco e o assento almofadado logo abaixo. As paredes, no entanto, não eram brancas e tampouco vazias, e eu não via mais as camas das minhas colegas de quarto. Em meio ao que parecia uma névoa, vi tapetes e papéis de parede finos e supercoloridos, cortinas de veludo e tapeçarias, uma 135 cama com lençóis de seda, móveis talhados a mão, e luz de velas. Era o quarto de Agnes e ela estava bem na minha frente, andando para lá e para cá. Era como se ela tivesse virado e me visto, mas eu não estava certa disso. Logo depois, jogou um xale nos ombros, abriu a porta e saiu do quarto. Sem parar para pensar, saí da cama. Meus pés sentiram o já conhecido linóleo desgastado do piso, mas meus olhos enxergavam o tapete esplendidamente tecido. Estava flu-tuando entre dois mundos. Segui Agnes pelo corredor, até o topo da escadaria de mármore. O patamar era decorado com uma série de quadros e espelhos e samambaias exóticas em vasos ornamentais, mas a escadaria de mármore branco era exatamente igual à que conhecia. Segui Agnes lentamente pelas escadas, como se estivesse hipnotizada, sem conseguir falar nada. Porém, a cada passo sua imagem ficava mais fraca, e logo não conseguiria mais vê-la. — Espere, Agnes, espere! — minha voz voltou, mas as cortinas e os quadros desapareceram. Fiquei sozinha com os degraus brancos e vazios, que me levavam para baixo, cada vez mais para baixo… Vi uma garota deitada no primeiro degrau, parecia uma boneca quebrada. Não era Agnes. Eu estava inevitavelmente de volta ao meu tempo presente e a menina inconsciente no começo da escadaria era Harriet Templeton. Consegui a permissão de vê-la na enfermaria alguns dias depois. 136 — Ela teve muita sorte de não ter tido nada mais sério do que um pulso quebrado e uma concussão depois de uma queda tão terrível — repreendeu a enfermeira. — Por que você não nos avisou de que tinha propensão ao sonambulismo, Harriet? — Eu…er… não achei que fosse importante. — Com todas essas escadas, voltas e meias-voltas desse velho edifício? Você precisa ter mais cuidado. Enfim — continuou, um pouco mais serena —, aqui está sua amiga para lhe fazer um pouco de companhia, então não pareça tão infeliz. Foi bom Evie ter escutado seus passos durante a noite e me procurado, sendo que ela caiu desmaiada no outro dia. Que belo par vocês fazem, hein! — Estou muitíssimo bem agora, prometo — falei. — Mas você só pode ficar, no máximo, dez minutos aqui. Não queremos que Harriet se canse demais. — A enfermeira saiu apressada, deixando-nos sozinhas. — Como está seu pulso, Harriet? — Não foi nada, mas minha cabeça está doendo. Nos olhamos de um jeito estranho, embaraçoso. Não podia deixar de me sentir culpada por não ter feito Harriet ir até a enfermaria da primeira vez que a encontrei sonâmbula, andando pelos corredores, e ao mesmo tempo estava brava com ela. Tive uma sensação estranha de que agora estávamos unidas por causa daquele segredo, mas não queria me aproximar ainda mais dela. Não queria que o pessoal da escola pensasse que éramos grandes amigas. — Muito obrigada por ter me encontrado e avisado a enfermeira quando eu… er… caí. — Harriet corou de vergonha. 137 — Sim, bem, você deveria ter avisado antes sobre seu sonambulismo… podia ter ficado em algum quarto no térreo ou algo assim — resmunguei. — Você podia ter morrido! — Eu sei. — ela brincava sem parar com as franjas da borda dos cobertores, franzindo a testa para si mesma. De repente, inclinou-se e agarrou meu braço, os olhos grandes e assustados. — Evie, você a viu? — Como assim? — Aquela mulher, você sabe, naquela noite na escadaria? Olhei atônita para ela, sem saber o que dizer. Estaria falando da Agnes? Seria possível que ela também tivesse visto? — Er… que tipo de mulher? Harriet franziu a testa novamente. — Não sei, não consigo me lembrar direito. Lembro-me da sua voz guiando meus passos… e agora não consigo me livrar disso. — Livrar-se do quê? — Da voz dela dentro da minha cabeça. — Ela começou a chorar baixinho, como uma criança exausta. — Às vezes tenho vontade de adormecer na neve e nunca mais acordar. — Acho que é melhor eu ir embora, Harriet. — Fiquei preocupada com seu estado de espírito, frágil e delicado. — Você precisa descansar um pouco. — Saí para chamar a enfermeira e fui embora rapidamente para tentar desvendar o mistério. Talvez Harriet tenha pressentido de alguma forma a presença da Agnes nas escadas e isso 138 tenha lhe causado um choque emocional, fazendo-a escorregar e cair. Ou talvez ela realmente tivesse ligação com Agnes, que agora tentava entrar em contato com ela, assim como fez comigo? Por alguma razão não gostava nem um pouco daquela hipótese. Minha relação com Agnes era especial, única. Não queria ninguém se intrometendo. Aquilo era tão mesquinho… como eu podia ter ciúmes da pobre Harriet? Voltei calmamente para o dormitório. Nem tudo o que aconteceu em Wyldcliffe tinha alguma explicação misteriosa, tentava me convencer disso. Era provavelmente muito simples. Harriet teve um acesso de sonambulismo, caiu e bateu a cabeça, e agora estava confusa e chateada. Porém, os problemas de Harriet não eram os meus. Seu mundo não era o meu. E no meu mundo eu tinha de me concentrar no trabalho a ser feito, e não me desviar do que era importante a cada drama que o internato despejava em mim. Corri pelo corredor. Precisava encontrar Helen e Sarah e voltar ao trabalho. 139 O — lhem! — Fiz um movimento com a mão e uma grande nuvem de neve cobriu todo o sótão. As prateleiras empoeiradas resplandeciam com pingentes de gelo cintilantes. Sarah substituiu a neve por um tapete de primaveras. Helen fez o vento ressoar pelos pingentes, que ecoaram como sinos de prata. Rimos e arrumamos o quarto como antes; e então nos entreolhamos, saindo de repente daquele estado de descontração. — Queria que fosse sempre assim… divertido — Sarah falou entre um suspiro e outro. — Eu sei, mas agora estamos preparadas para algo muito maior do que diversão. Não percebem? — perguntei. — Não estamos preparadas para tentar usar o Talismã novamente antes que seja tarde demais? — Acredito que sim — respondeu Helen calmamente. — E quanto a você, Sarah? Sarah hesitou por algum tempo e, finalmente, balançou a cabeça. — Sim, estamos prontas. 140 O domingo, nosso único dia de liberdade, finalmente havia chegado. Enviei uma mensagem para Josh dizendo que estava com gripe e que me sentia indisposta para a aula de equitação. Encontrei-me com Sarah nos portões da escola junto com os pôneis para que pudéssemos partir em direção a Uppercliffe. — O Josh não irá se perguntar por que você está bem o suficiente para cavalgar comigo, mas não está bem para sua aula? — Ele provavelmente não irá notar que saímos. Tenho certeza de que ele não se importa com o que faço ou deixo de fazer. — Mas não era verdade. Sabia que seus olhos castanhos me seguiam sempre que eu estava nos estábulos, e sabia que o estava evitando por esse mesmo motivo. — De qualquer modo, Sarah, não posso me dar ao luxo de perder tempo fazendo aula de equitação quando temos tanto a fazer. Helen já deve estar em Uppercliffe uma hora dessas. É isso o que importa. Sarah parecia preocupada, mas eu me virei e fiz Bonny avançar o mais rápido que pudesse. Talvez meu amor por Sebastian estivesse me transformando em uma pessoa egoísta, deixando Josh e Harriet e todo o resto de lado, como se fossem coisas insignificantes. Não queria que fosse assim, não queria magoar ninguém, mas não podia desapontar Sebastian. Ele tinha de ser minha prioridade. Iria me acertar com todos depois, prometi a mim mesma, desde que encontrasse Sebastian antes. Quando chegamos a Uppercliffe, Helen já nos esperava. Ela havia desenterrado o Talismã e estava examinando-o atentamente. Não pude deixar de pensar que ela já tivesse descoberto como usá-lo, já que estava cuidando do Talismã até aquele 141 momento. Tive novamente um leve e preocupante acesso de ciúme ao tirar a joia das mãos dela. — Está tudo bem? — ela perguntou. — Podemos começar? Não é necessário discorrer sobre o fracasso das nossas tentativas. A frustração, a crescente raiva, a terrível impotência… são suficientes para dizer que nada funcionou. O Talismã continuou parado, orgulhoso e inútil na sua corrente de prata. — O que vamos fazer? — explodi, tentada a arremessá-lo para longe só de raiva. Estava furiosa, mas não com o Talismã, Agnes ou minhas amigas. Estava com raiva de mim mesma. Por que não conseguia despertar os poderes de Agnes? O que havia de errado em mim? Tudo o que havia tentado e aprendido parecia insuficiente. Mas trabalhei tanto. “Siga meu caminho”… Tentei, não tentei? E, então, tudo ficou claro. A resposta era absurdamente, claramente óbvia. Não sabia se ria ou se chorava. — Fizemos tudo da maneira errada — falei sem rodeios. — O que você quer dizer, Evie? — perguntou Sarah. — Estamos invocando o Talismã por meio de nossos próprios poderes, mas o elemento de Agnes era o fogo, não água, terra ou ar. Se quisermos libertar o poder dela de dentro do Talismã, temos de fazer por meio do seu elemento, não dos nossos. — Olhei para elas, convencida de que estava certa. — Precisamos canalizar o poder do fogo. Ela disse que eu tinha de seguir seu caminho… pensei que estivesse apenas falando sobre o Caminho Místico, mas devia estar fazendo menção aos seus próprios poderes especiais. O fogo é o único caminho possível para o Talismã. 142 — Mas você consegue fazer o que quiser com o fogo? — perguntou Sarah imediatamente. — Não sei, nunca tentei. — Então tente agora — Helen sugeriu. Sarah encontrou alguns pedaços de madeira apodrecida e fez uma fogueira nos escombros da casa velha. A madeira crepitava e soltava fumaça, mas uma fina chama laranja começou a tremular e a brilhar. Fiquei tensa, ansiosa. Dessa vez iria dar certo; tudo faria sentido, finalmente. Agnes iria me ajudar, eu tinha certeza. — Veja se consegue controlar a chama com o poder do pensamento — falou Helen. — Foi uma das primeiras coisas que Agnes aprendeu a fazer. — Tudo bem. Vou tentar. Formamos um círculo e demos as mãos, iniciando o canto. Enquanto deixava minha mente flutuar pelas doces palavras encantadas, as vozes do mar distante, dos rios subterrâneos e das nuvens de chuva no alto das montanhas começaram a me chamar, mas precisava tentar bloqueá-las. Fogo. Era do que eu precisava agora. Precisava pensar em calor, cor e vida. Segurei o Talismã com as duas mãos e me concentrei nas chamas dançantes que lambiam fragmentos de madeira. Fogo. Calor. Vida. “O fogo dos nossos desejos…” Fechei os olhos e tentei me concentrar. Enxerguei o clarão das labaredas como se fossem foguetes em chamas. Houve um lampejo de calor e vi, de repente, uma menina de cabelos ruivos, de pé, em um quarto miserável. Era Agnes. Ela estava cercada por luzes dançantes e flamejantes. Balançou o 143 pulso para controlá-las e formas brilhantes giraram ao seu redor, estrelas, libélulas e aves-do-paraíso. Ela olhou fixamente para mim e estendeu as mãos. Você consegue, Evie. Meu rosto e minhas mãos ficaram ainda mais quentes. Estava quase sem fôlego. Abri os olhos e estendi a mão para o fogo que cintilava no chão de terra da casa. Com toda a força da mente desejei que as chamas se transformassem, e ordenei para que me obedecessem. Nada aconteceu. — Eu… eu não consigo. — Dei alguns passos para trás, sentindo-me fraca e trêmula. — Desculpem, não consigo. Sarah e Helen se entreolharam e um silêncio constrangedor cresceu entre nós. — Talvez você aprenda a fazer isso aos poucos — falou Helen calmamente. — Mas quanto tempo levaria? E não é apenas saber controlar uma simples chama. Os poderes de Agnes eram muito mais complexos do que isso. — Eu sei — berrei. — Eu sei, eu sei, eu sei. — Corri para fora, louca por um pouco de ar fresco. Encostada na áspera parede externa da casa, deixei o vento soprar nos meus cabelos, mas queria mesmo era que ele varresse para longe o peso do meu desespero. Olhei por todo o vale até enxergar onde a vila estava escondida por entre as dobras da terra. Podia ver as torres da Abadia atrás de um cenário de árvores desfolhadas. Lá embaixo, as garotas aproveitavam o descanso de domingo que até mesmo a Wyldcliffe permitia. Escreviam cartas para a família, liam, conversavam, tinham aulas de música ou aprendiam a cavalgar… Por um momento me vi caminhando para longe do Talismã e de tudo o que ele representava. Eu podia 144 escondê-lo novamente aqui em cima e ninguém jamais saberia da sua existência. Helen e Sarah não disseram que eu havia tentado de tudo para ajudar Sebastian? Elas entenderiam se eu desistisse agora? Naqueles breves momentos, enxergava uma outra Evie, caminhando de mãos dadas com um garoto de cabelos cor de palha e de olhos castanhos e tranquilos, rindo sob o sol… Não. Espantei aqueles pensamentos. Sebastian havia escolhido viver nas sombras, mas eu iria encontrá-lo e trazê-lo de volta à luz, por mais impossível que aquilo parecesse. Não iria desistir nem me cansar. Não iria traí-lo. 145 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax V ocê se cansou do seu pobre amigo? Eu te vi, Evie. Você estava rindo… sorrindo… tão linda. Foi tão bom vê-la daquele jeito, mas seus sorrisos não eram para mim. Você sorria para um garoto alto com cabelo cor de milho, e parecia tão feliz. Como se nunca tivesse me conhecido. Já se esqueceu de mim? Ou foi mais uma crueldade tramada pelos meus algozes, enquanto aguardam hora após hora até que eu caia finalmente em suas garras? O fim está cada vez mais próximo… Talvez estivesse louco por pensar que você poderia continuar fiel a mim, já que só trago perigo e desespero àqueles que amo. Meus pais, meus amigos… desprezei todos. 146 Corrompi as mulheres que me serviram e logo depois as abandonei. Até mesmo a querida Agnes, a quem apreciava mais do que todas as outras, minha amada Agnes, a quem amava como uma irmã… eu com certeza a matei, como se a tivesse estrangulado com as próprias mãos. Depois de tudo, como posso esperar que você continue fiel a mim? Tudo está me abandonando. Tudo está desaparecendo na névoa. Escute. Vou lhe dizer algo muito importante. Você precisa me escutar, querida, enquanto ainda posso escrever essas difíceis palavras… escute… Nossa história pode terminar bem. Até mesmo agora, ainda há uma centelha de esperança, como uma vela na tempestade. Um dia, poderei ser salvo. Um dia, ainda poderei vê-la frente a frente. E, então, direi a você… direi tudo o que existe no meu coração. Mas há outro fim possível, e talvez já o tenha vislumbrado. Você perdeu a esperança. A estrada é muito difícil. Você deu meia-volta, mas há outra pessoa do seu lado. Ele caminha ao ar livre, um jovem de olhos castanhos e com um sorriso luminoso. Você reconhece essa história? É esse o caminho que escolheu? Se for, não se culpe por isso. Escuro… tão escuro… tão cansado… Desejo você. Rabisco palavras para você: “Minha querida, minha amada, meu amor, saudade…”. Essas palavras, no entanto, estão desgastadas e esgotadas, utilizadas em mais de mil cartões banais de Dia dos Namorados. Como posso contar nossa 147 história? Como posso dizer? “Por algum tempo caminhamos juntos pela terra, e isso nos bastou.” Quais palavras podem verdadeiramente demonstrar tamanha felicidade? Estou tão exausto, minha força está sumindo… Não tenho palavras para dizer o quanto sinto falta do seu toque e do perfume do seu cabelo, e do seu olhar inocente. Mas preciso lhe dizer: Caso você decida conceder esses encantos a outro, eu entenderia. Jamais irei culpá-la, Evie. Tudo o que mais quero agora é que você caminhe sob o sol. E se, em algum momento da sua nova vida, você se lembrar de Sebastian James Fairfax, lembrese dele com um sorriso, e não com lágrimas. Muitas pessoas já derramaram lágrimas por minha causa. Tudo acaba. Minha história deve terminar em breve, mas a sua precisa continuar, e seu caminho deve ser trilhado com todas as alegrias possíveis. 148 E ra o começo de mais uma semana infeliz sem Sebastian. Não havia nem sinal do sol naquela manhã. Durante a noite tinha caído muita neve e o mundo lá fora estava tão frio quanto um coração insensível e miserável. Me arrastei para fora da cama e fiquei um tempo no banheiro frio, tentando conseguir um pouco de energia para enfrentar o dia. Meu reflexo, cansado e hostil, me encarou no espelho. Fiquei acordada a maior parte da noite tentando encontrar um modo de aprender a controlar o elemento fogo, mas não encontrei nenhuma solução. Depois de alguns suspiros, coloquei o robe e voltei ao dormitório, mas as outras garotas já tinham saído para o café da manhã. O sinal tocou e eu precisava me apressar. Peguei rapidamente a saia e a blusa e comecei a me vestir. Ao amarrar a gravata do uniforme, me dei conta de que não estava mais usando o medalhão de ouro com o fio de cabelo da Effie. — Ah, não! — procurei rapidamente entre os lençóis amassados da cama. Como pude perdê-lo? Deixei cair no banheiro ou perdi durante a cavalgada? Pense, Evie, pense… Não me atrevia a perguntar se alguém o tinha encontrado, já que a Srta. 149 Raglan poderia ouvir. Ela não pensaria duas vezes em me obrigar a entregar a joia e eu odiava a ideia de vê-la pôr as mãos em qualquer coisa que tivesse ligação com Agnes. Desci as escadas zangada comigo mesma por ter sido tão descuidada e perdido esse elo com meu passado. Sentei ao lado de Helen e Sarah no refeitório. — Você soube o que aconteceu na vila ontem à noite? — perguntou Sarah. — Não… o que houve? — Uma coisa sinistra, horrível, na verdade. Desci cedo aos estábulos hoje de manhã e Josh me disse que alguém da vila havia encontrado, pregada à porta da frente de sua casa, uma raposa morta. E que havia sangue por todos os lados. — Mas isso é totalmente… — Doentio. Eu sei… é nojento. Ouvi as mulheres que trabalham na cozinha conversando sobre isso também. Sarah abaixou o tom da voz: — Você acha que pode ter algo a ver com… a congregação? Parecia alguma espécie terrível de magia negra. — Mas por que fariam isso? O que significa? O que você acha, Helen? Helen deu de ombros. — Não sei, mas elas são capazes de qualquer coisa. Elas não se importariam com uma raposa morta. 150 — Pode ter sido algo completamente diferente — falou Sarah. — Uma briga local, um vandalismo idiota, qualquer coisa. Josh acha que pode ter sido algo relacionado ao acampamento dos ciganos. Josh não me dera a impressão de ser o tipo de pessoa que dava ouvidos a boatos preconceituosos sobre os ciganos. — Por que ele presumiu que os ciganos estariam por trás disso? — perguntei, indignada. — Não! Ele não quis dizer isso. Parece que o homem que vive naquela casa ajudou os ciganos permitindo que eles acampassem naquele pedaço de terra da vila. Josh acha que, talvez, algumas pessoas que não os querem em Wyldcliffe tenham feito isso para protestar. — Ou para tentar pôr a culpa nos ciganos — acrescentou Helen. — Exatamente. Existem muitas pessoas que não aceitam o povo cigano ou seu estilo de vida, que os consideram ladrões e parasitas que vão de um lugar a outro causando problemas. Isso me deixa furiosa — Sarah desabafou. — Gostaria que os ciganos soubessem que nem todos pensam dessa forma. Era como se existisse outra batalha acontecendo em Wyldcliffe, e não apenas a nossa, mas a conversa foi interrompida quando a Srta. Raglan entrou na sala. Ela permaneceu sobre a plataforma elevada e duzentas garotas se levantaram em silêncio. A mestra não ergueu os olhos e fez a oração com voz suave. — Amém… amém. — A resposta obediente ecoou pela sala. Sentamos e me servi de ovos e torradas, mas Sarah afastou sua comida, indiferente. 151 — Escuta, Sarah, por que não tentamos visitar o acampamento e ver o que está acontecendo, se é o que você quer? Seu rosto se iluminou. — Você faria isso? — Claro. Assim que pintar a oportunidade, prometo. Depois do café da manhã, voltamos pelo hall de entrada rumo à nossa primeira aula do dia. Harriet estava em volta da mesa olhando para a correspondência das alunas, deixada lá todas as manhãs. Não a via desde o dia na enfermaria. Ela levantou os olhos e sorriu, como se estivesse feliz e ao mesmo tempo ansiosa em me ver. Fui invadida por uma certa irritação, e pela enésima vez desejei que ela não tivesse se sentado ao meu lado no trem naquele primeiro dia de aula. Porém, respirei fundo e me obriguei a falar com ela de forma gentil. — Está se sentindo melhor, Harriet? Como está seu pulso? — Muito melhor, não está tão dolorido — respondeu ao balançar o pulso enfaixado. Segurava na outra mão um grande envelope retangular. — Isto é para você. Peguei o envelope e senti repulsa ao tocar seus dedos, como se tivesse encostado em algo morto. — É alguma coisa importante? — perguntou. — O quê? Ah… er… não, não é nada. — Enfiei a carta no bolso. — Fico feliz em saber que você está bem, Harriet. Até logo. 152 Meu coração disparou. Já havia lido os nomes impressos na frente do envelope: Carter, Coleman e Tallen. Conhecia esses nomes e soube na hora qual era o assunto da carta. A Srta. Raglan caminhava atrás de nós. — Você deveria estar na minha sala uma hora dessa, fazendo a tarefa de matemática, e não se preocupando com a correspondência — falou rudemente. — Temos muito o que estudar esta manhã e os exames estão logo aí. Faça o favor de se apressar. — Sim, Srta. Raglan, me desculpe, Srta. Raglan. A carta teria de esperar. Assim que o sino tocou avisando a hora do intervalo, agarrei o braço de Sarah e seguimos para os estábulos. Helen estava em apuros por causa de uma nota baixa num trabalho e teve de ficar para trás conversando com a Srta. Raglan. — O que está acontecendo, Evie? — perguntou Sarah enquanto corríamos pelo pátio de paralelepípedos até a baia de Bonny. — Quem escreveu essa carta? — Os advogados da Frankie. Só pode ser algo relacionado ao seu testamento. Não quero seu dinheiro ou qualquer coisa parecida. Por que escreveram para mim e não para meu pai? — Assim que nos escondemos com segurança dentro do estábulo, abri o envelope, mas não consegui passar das primeiras linhas: Querida Evelyn, estamos lhe escrevendo para falar a respeito de sua falecida avó… 153 Eu não queria fazer parte daquilo. Não queria ser lembrada por ninguém de que Frankie não estava mais entre nós. Entreguei a carta para Sarah com um nó na garganta. — Leia você, por favor. — Querida Evelyn — ela começou. — Hum… depois tem uma série de introduções. Quem eles são e por aí vai… você sabe de tudo isso… Ah, espere… aqui diz: “Você deve saber que sua avó deixou alguns objetos pessoais em um cofre no banco. Um deles está endereçado a você. Seu pai, como testamenteiro oficial, nos deu permissão para lhe enviar diretamente o item em questão. É um documento, que agora temos o prazer de anexar”. Depois pede para você confirmar o recebimento seguro do envelope, meus cumprimentos e condolências, blá-blá-blá… — Então, que documento é esse? — Eu estava muito nervosa. No semestre passado, eu havia recebido uma carta que mostrava a ligação da minha família com a filha de Agnes, Effie: uma carta que mudara minha vida. O que esse novo documento me mostraria agora? Sarah puxou um papel selado e dobrado do envelope. — Parece algo bem antigo — ela disse, ao entregá-lo para mim. Meus dedos tremeram ao tocar o papel amarelado. Reconhecia aquela pequena letra inclinada, escrita com tinta preta desbotada. Dizia: 154 Peço que minha filha entregue este documento sem ler à sua filha, e assim por diante, até que a menina de cabelos vermelhos e olhos cinzentos — a garota do mar — possa recebê-lo. Rezo para que isto seja feito conforme meu pedido. A.T.H. — Veja as iniciais — Sarah falou. — A de Agnes! As duas letras iniciais tinham de ser de Agnes Templeton. Puxei na memória os detalhes da história que Agnes contara em seu diário. Qual era mesmo o nome de seu marido? Francis… Francis Howard. A.T.H. Tudo se encaixava. No final da folha alguém havia acrescentado algumas linhas a lápis. Para ser entregue a Evie em seu aniversário de dezoito anos, ou após minha morte, o que vier primeiro. Amada Evie, guardei esta curiosa relíquia familiar para você. Cuide bem dela, minha ovelhinha, e de você também. Com amor sem fim, Frankie. Beijei o local onde ela havia escrito seu nome, e me virei para Sarah. — Devo abrir? Ela balançou a cabeça. — Sim. Abra agora. Retirei com cuidado o círculo vermelho do lacre de cera e desdobrei o papel. Dentro havia outro fragmento da escrita de Agnes. “Uma lembrança do presente que um dia recebi e que agora está escondido na Mansão Fairfax.” Essa mensagem estava 155 presa a uma folha de pergaminho ainda mais antiga. Era fina e desgastada, e tinha a borda rasgada, como se tivesse sido arrancada de um livro. As palavras estavam impressas em letras pretas e apertadas, e ao redor havia desenhos com tintas coloridas — estrelas, flores e símbolos exóticos. — O que diz? — Para a cura da cegueira e para dar boa visão àqueles que necessitam… — Parei, espantada, e comecei a rir. — Cega! É claro, eu estava tão cega! Mas agora já sei o que devo fazer! — O quê? Do que você está falando? — perguntou Sarah. — Você não percebe, Sarah? Essa é uma página arrancada do livro que Sebastian encontrou e deu a Agnes. O Livro do Caminho Místico! Ela o descreveu em seu diário e disse que grande parte do que sabia veio dele. Agnes está dizendo que, se eu quiser aprender a controlar o fogo, preciso encontrar o Livro e estudar o que ela estudou. Ah, por que não pensei nisso antes? — É claro! O livro foi um presente, e depois Sebastian o pegou de volta. Ele supostamente o levou para a mansão. Tudo faz sentido, mas, se Agnes realmente queria te ajudar, por que ela não deu um jeito de enviar o livro inteiro, e não apenas esse pedaço de papel? — Não sei, talvez o livro não estivesse mais em suas mãos quando ela se deu conta de que um dia eu estaria envolvida com tudo isso. De qualquer forma, não acredito que seja algo tão simples assim. Quero dizer, por que Agnes não aparece para mim e me dá todas as respostas? 156 — Bem, isso certamente ajudaria — Sarah respondeu com um sorriso torto. — Sim, mas não acho que deva ser assim, tão fácil. Temos de nos esforçar, chegar até a resposta por mérito próprio. O Caminho Místico é apenas mais uma ferramenta para nos ajudar no decorrer da vida, não é uma varinha mágica para solucionar todos os nossos problemas. É isso o que Sebastian não entendia. Quando ouvi o seu nome, minha animação foi por água abaixo. Ainda havia tantos obstáculos a ultrapassar. Mesmo se conseguíssemos chegar até a Mansão Fairfax, como teríamos certeza de que o livro estaria lá depois de tantos anos passados desde que Agnes me enviara aquela dica? E se tivesse sido roubado… ou destruído? 157 S rta. Scratton, lembra-se de que não conseguimos entrar na Mansão — Fairfax no semestre passado por causa do assalto que ocorreu lá dentro? — perguntou Sarah. Estávamos de pé ao lado da mesa da Srta. Scratton, logo após sua aula de história, tentando transparecer verdadeiro entusiasmo. — Bem, estávamos pensando se poderíamos voltar lá para ver direito a casa dessa vez. — Por quê? — A sobrancelha da mestra levantou e ela lançou um leve olhar de censura. — Estamos… er… muito interessadas na história — falou Helen. — Na história local — acrescentei. — Ah, certo. Eu ainda não havia reparado que você tinha interesse especial por alguma matéria escolar, Helen. Helen ficou sem graça. Ela frequentemente se complicava por sonhar acordada nas aulas e esquecer de entregar as tarefas. A Srta. Scratton nos encarou com um olhar cortante e, depois, pareceu ceder. 158 — Admiro a curiosidade de vocês, mas receio não podermos fazer nenhuma visita no momento. O tempo está muito ruim para isso. — A Srta. Scratton olhou para a janela, e a neve tinha recomeçado a cair. — É como se estivéssemos desligadas do mundo lá fora — acrescentou em voz baixa. — Enclausuradas dentro dos muros da Abadia, como nos velhos tempos. Ela voltou a nos olhar, e imediatamente meu coração deu um salto com uma estranha sensação de familiaridade. “Eu já a vi antes em algum lugar”, pensei. “Onde? Onde poderia ter sido?” Minha memória retornou àquela noite na cripta. Foi lá que a vi, entre as mulheres da congregação que berravam sem parar? Não podia acreditar. Não queria acreditar naquilo. Ainda assim, havia algo de familiar nela, tão rigorosa, tão disciplinada, tão reservada… — Agora preciso me preparar para a próxima aula. Boa tarde, meninas. A Srta. Scratton saiu rapidamente, com um vestido acadêmico preto que ondulava ao seu redor. — Bem, valeu a tentativa — disse Sarah. — Mas ela não estava gostando muito da ideia. — Não importa. Nós não queremos andar por lá junto com um monte de turistas. Precisamos entrar quando a mansão estiver fechada e sem ninguém lá dentro. — Eu posso ir até lá — sugeriu Helen. — Já me imaginei lá dentro uma vez. Vou e tento encontrar o livro. — Você não pode ir sozinha — falou Sarah. — E se você entrasse em apuros e não conseguisse voltar? Precisamos ficar juntas. 159 — Hoje à noite então — murmurei. — Vamos nesta noite. A Abadia podia estar fechada devido à neve, mas isso não nos impediria. Tínhamos outros meios para chegar até lá. Um frio congelante. O céu sobre nossas cabeças, negro e brilhante, estava salpicado de estrelas. Sarah e Helen estavam paradas no silencioso pátio do estábulo, vestiam seus casacos mais grossos e olhavam para mim com apreensão. — Está pronta? — perguntou Helen. — Sim, vamos lá — respondi, tentando não transparecer nervosismo. — Bem, se você está certa disso — retrucou a amiga. — Nunca fiz isso antes, mas acho que vai dar certo. Tudo bem, vamos tentar. Helen ficou no meio de nós duas, pôs os braços ao redor de nossas cinturas, fechou os olhos e murmurou alguma coisa consigo mesma. Tentei me preparar para o que estava por vir. Por uma fração de segundos, vi Helen no topo de uma colina sombria levantando os braços para o céu, seu cabelo translúcido voando ao vento. De repente, a ventania parecia estar dentro de mim, uma força absurda e perturbadora que me faria em pedaços. Ouvi o pensamento de Helen ecoar dentro da minha cabeça: “Aguente firme, aguente firme”. Parecia não sentir mais meus pés e o chão do pátio do estábulo saiu debaixo de mim. As gabletes e torres da Abadia começaram a girar e as estrelas piscavam luzes vermelhas, roxas e douradas. Estava em um túnel de luz e som, viajando mais rápido que meu próprio pensamento, enquanto nos lançávamos impetuosamente contra o 160 vento. A respiração ia sendo espremida para fora de meus pulmões. Ouvi a voz de Helen, “Não desista…” Agarrei-me a ela até sentir que não suportaria nem mais um minuto; de repente, nós três caímos num estrondo no chão de madeira polida. — Isso foi… incrível — exclamou Sarah, quase sem ar. — Foi insano — falei. — Mas conseguimos — disse Helen. — Estamos na Mansão Fairfax. Ela se levantou, tirou uma lanterna do bolso e nos ajudou a ficar em pé. Eu ainda estava sem ar e atordoada enquanto olhava tudo ao redor, admirada. Era um elegante aposento repleto de pilares e decorado com sofás cobertos de seda e pequenas mesas com pernas compridas de ouro. Mansão Fairfax. Mal podia acreditar. Um minuto atrás conversávamos no pátio do estábulo e agora eu estava realmente dentro da mansão, dentro da casa de Sebastian. Helen fez um sinal para que a seguíssemos; deixamos a elegante sala de estar e entramos num corredor sombrio. — Se alguém nos achar aqui estaremos numa grande enrascada — falou Sarah. — Nunca invadi um museu antes. — Não há razão para voltarmos agora — Helen retrucou. — Sigam-me. — Para onde estamos indo, Helen? — perguntei, tentando manter a voz calma. — A Srta. Scratton disse que a casa está arrumada exatamente da mesma forma que nos velhos tempos, quando a família de Sebastian ainda vivia aqui. E há uma biblioteca repleta de livros antigos. Parece meio óbvio, mas bem que podíamos começar por lá. Você sabe como é esse livro, Evie? 161 — Tudo o que sei é que o livro foi um presente de Sebastian a Agnes depois que ele o encontrou em um bazar no Marrocos. No diário, ela o descreveu como antigo e desgastado, com uma capa de couro verde. — Então venha — chamou Helen. — Vamos encontrar a biblioteca. Seguimos Helen pela casa-fantasma. A lanterna revelava relances de estátuas brancas fantasmagóricas e quadros com moldura dourada. Era como se a escuridão tivesse vida própria, como se as paredes pudessem nos ver passar. Sebastian viveu aqui, repetia para mim mesma. Ele conhecia esses quadros, andou por esses corredores, entrou e saiu desses aposentos quando criança. Toda essa mobília cara e antiga era tão familiar para ele quanto minha humilde casa era para mim. Enquanto me arrastava como um ladrão, me senti realmente feliz. Estava na casa de Sebastian. Aquele único momento já me bastava. E, então, imaginei ouvir uma voz ecoando pela casa silenciosa. “Você está cansada, Evie… a estrada é muito difícil… há outra pessoa…” Eu me virei, assustada, mas Sarah me puxou enquanto Helen abria algumas portas duplas entalhadas. — Uau! Olhe só para isso — Sarah sussurrou. Vimos uma sala ampla e cavernosa, carregada de escuridão. Avistei estantes altas, sofás de couro e duas escrivaninhas enormes. Estava tudo incrivelmente silencioso, como se a sala inteira estivesse em um sono encantado, à espera de alguém para abrir os livros e dar vida nova às páginas empoeiradas. Adentramos a sala, e Helen iluminou as estantes com a luz da lanterna. Havia romances, livros de poesia e peças francesas; 162 havia também livros de direito e história; livros sobre pescaria e jardinagem; livros sobre tudo o que já causou interesse à família Fairfax. Meu coração se entristeceu. Como conseguiríamos vasculhar tudo aquilo em tão pouco tempo? Era uma tarefa impossível. — Jamais o encontraremos aqui. — Fiquei paralisada no exato instante em que Helen incidiu luz sobre um par de retratos pendurados sobre a lareira. Sr. Edward Fairfax, Lady Rosalind Fairfax, diziam as etiquetas impressas. Eles nos encaravam, parados no tempo, confortáveis e serenos, sem saber ainda que perderiam o querido filho em circunstâncias escandalosas — o boato de suicídio, um corpo nunca encontrado. Sr. Edward era vermelho e sem graça, o típico fazendeiro, com seus cães e cavalos; mas Lady Rosalind era linda. Seus olhos, azuis como centáureas, cheios de vida, eram os olhos de Sebastian olhando para baixo e me chamando… me pedindo ajuda antes que fosse tarde demais. — Ele caminha ao ar livre… um jovem de olhos castanhos… ele está do seu lado… — Pare! — Eu vou entender… jamais irei culpá-la… — O que acontece, Evie? — Helen perguntou. — Vozes… na minha cabeça. Não, Sebastian, não, não é assim! Não há mais ninguém. Você precisa acreditar em mim! Peguei a lanterna da mão de Helen, saí cambaleando da biblioteca e corri em direção à escadaria, que era forrada com um carpete supermacio. Elas seguiram atrás 163 de mim. Coloquei as pernas para trabalhar e subi cada vez mais rápido, sem saber ao certo para onde estava indo, guiada apenas pela voz na minha cabeça. “Desejo você… anseio pelo seu toque… você escolheu outro…” — Não, só quero você, Sebastian — eu soluçava baixinho. — Sempre quis apenas você. Sebastian estava perto, tinha certeza disso. Aquela havia sido sua casa e talvez fosse agora seu esconderijo. Fiquei desapontada comigo mesma por não ter ido até lá antes para procurá-lo e corri feito louca por todos os quartos, empurrando portas que revelavam quartos vazios e requintados. — Onde você está? Onde você está? — eu gritava desesperada. Mas a casa se recusava a revelar seus segredos. Era tudo antiquado, inerte e sem vida, um museu, e não uma casa. Não havia sinais de nenhum morador, nem no passado e tampouco no presente. — Isso não é nada bom — falei enquanto caía exausta em uma poltrona baixa. — Ele não está aqui. E então, de repente, ouvimos um som fraco e vibrante sobre nossas cabeças. — O que é isso? — perguntou Helen enquanto olhava para cima, assustada. Congelamos. Silêncio. E mais um barulho baixo e abafado. — Está vindo lá de cima — murmurou Sarah. — Vou dar uma olhada. — Não, Evie, espere… 164 Não dei ouvidos. Não tinha mais medo. Ao final do largo patamar havia outro conjunto de escadas que faziam curvas e subiam cada vez mais alto. Corri até elas e uma estranha e inexplicável alegria tomou conta de mim. Ao chegar ao topo da escadaria, percebi que estava no andar dos criados. Um corredor simples percorria todo o comprimento da casa, com portas baixas se estendendo em linha reta. A primeira porta que abri levava a um quarto vazio com tetos inclinados, mobiliado com uma cama de ferro e um simples jarro branco em uma estante. A luz da lanterna iluminou um cartaz do museu na parede: Um exemplo do quarto de uma criada, por volta de 1875. Outro beco sem saída. Segui em direção a outra porta, empurrando-a com força. Havia uma exposição de fotografias antigas da mansão e de seus inúmeros criados. Annie May, criada da lavanderia, 1895-1914; John Hall, mordomo, 1906-1925… As outras portas estavam trancadas. Corri com impaciência até a última porta do corredor. Ao girar a maçaneta, uma sensação de formigamento subiu até meu braço, como num choque elétrico. Podia ouvir a batida do meu próprio coração, e então escutei novamente aquele barulho, o eco de um gemido abafado. Abri a porta e iluminei o quarto com a lanterna. Estava completamente vazio, exceto por um único objeto. 165 E u me curvei para pegar o objeto redondo e prateado que brilhava no chão empoeirado. Senti-o frio e liso na minha mão e o reconheci imediatamente: um antigo relógio de bolso preso a uma corrente escurecida. Apertei sua parte lateral e ele se abriu. As iniciais S.J.F. estavam gravadas no interior da caixa, com uma data: 1883. Foi um presente pelo aniversário de dezoito anos de Sebastian. Eu estava segurando algo que havia sido tocado por ele também. Minha vontade era gritar e cantar. E, então, aquela voz dentro da minha cabeça novamente: “Lembre-se de Sebastian James Fairfax… lembre-se dele…” — O que é isso? O que você encontrou? — Sarah e Helen vieram para junto de mim para ver o antigo relógio e suas inscrições. — Estamos tão perto — falei. — Ele está aqui, em algum lugar. Sarah começou a examinar o quarto vazio, investigando vestígios na poeira do chão. Em seguida, colocou as mãos nas paredes e foi tateando até chegar ao outro canto do quarto. Seus dedos localizaram um nó retorcido na madeira do lambril. Ela o 166 empurrou bruscamente e uma porta se abriu, revelando degraus sinuosos que levavam até o beiral da casa. Sem pestanejar, subi os degraus até chegar a uma cortina de veludo em farrapos que pendia em uma arcada. Abri a cortina e deparei com um pequeno aposento cheio de jarros espalhados, pergaminhos e curiosos instrumentos de latão, além de pilhas de livros empoeirados. Parecia a sala de estudos secreta de Agnes, mas não havia nenhum ar de esperança aqui, apenas uma forte atmosfera de decadência e decepção. Tudo estava se desfazendo, como em um abandonado castelo de um sonho semiesquecido. Um sonho. Um fraco gemido. O eco de um suspiro. Alguém estava debruçado sobre uma mesa no canto mais escuro, examinando alguns papéis. — Sebastian! Ah, Sebastian! Atravessei o quarto rapidamente e logo já estava ao seu lado, nos seus braços. — Evie… eu te chamei… O resto do mundo não existia enquanto nos abraçávamos. Nada mais importava. Mas, quando finalmente larguei seu corpo, vi um Sebastian tão desfigurado e tão belo quanto uma estrela agonizante. Ele estava pálido e esquelético, seus dedos, manchados de tinta, tremiam, e os olhos estavam arregalados de dor. Beijei sua testa e seus olhos, enquanto meu coração se enchia de piedade. — O que estão fazendo com você? Como posso suportar isso? — Sei que estou mudado — gemeu, afastando lentamente o longo cabelo do rosto. — Tenho vergonha da minha atual aparência. — Não diga isso… 167 — Queria ser mais forte, queria poder caminhar, cavalgar e viajar com você, ter uma vida ao seu lado, só nós dois, jovens e livres. Mas agora é tarde demais. Tudo é tarde demais. Tudo está destruído e acabado. — Não está, Sebastian. Ainda podemos fazer essas coisas, e muito mais. — Beijei suas mãos e tentei não chorar. — Vim para te ajudar. Prometo. — Ninguém pode me ajudar agora. Tudo o que eu mais queria era vê-la novamente. Estive pensando em você, escrevendo para você… tentando me comunicar com você. — Ele começou a tossir baixinho. Acenei para Helen e Sarah, que relutavam em entrar no quarto. Elas me ajudaram a colocar Sebastian em um sofá surrado, mas ele fez careta quando o tocamos, como se todos os ossos do seu corpo estivessem pegando fogo. Seus olhos se fixaram sobre minhas amigas e um temor passou pelo seu rosto. — Você se lembra delas? — perguntei carinhosamente. — Helen e Sarah são como irmãs para mim. Elas têm conhecimento sobre o Caminho Místico, sobre tudo. Elas já viram você antes, estavam na cripta naquela noite, no fim do semestre passado, e nos ajudaram a escapar. Você se lembra? — Na verdade, não. Tudo está indo embora, tudo está me deixando… tudo, menos você. — Ele agarrou minha mão. — Você me encontrou, Evie. Achei que não conseguiria. — Era tudo o que eu mais queria desde que voltei para Wyldcliffe. E agora estou aqui. Tudo ficará bem, prometo. 168 — Não… não… é tarde demais. Desci até a Abadia e vi aquela garota. Ela me reconheceu pelo que sou: um monstro. E vi o garoto também. Ele te ama, Evie. Sei que ama. E você… você precisa me esquecer… Caminhe com ele sob o sol… — Não diga isso! Ele é apenas um amigo… não é ninguém. Eu só amo você, Sebastian, você precisa entender isso. Não quero mais ninguém. Nunca amarei ninguém além de você. — Mas você precisa amar outra pessoa — insistiu. — Você precisa viver, amar e ter filhos. — Tossiu novamente e puxou o ar para respirar. — Você deve viajar, trabalhar e conhecer o mundo, e fazer todas as coisas que nunca poderei fazer. — Só quero fazer essas coisas todas com você. — Está tudo acabado para mim. É tarde demais. — Sebastian tocou meu rosto e tentou enxugar minhas lágrimas. — Não chore, minha querida — ele fechou os olhos e se jogou novamente nas almofadas cheias de mofo, exausto depois de tanto falar. — Quero que você se liberte de mim. — Não quero esse tipo de liberdade. Não posso deixá-lo, Sebastian — falei em meio às lágrimas. — Ainda não está tudo acabado. — Você não pode parar isso. O processo de desvanecimento está quase no fim. Estou por um fio. — Fez uma pausa para recobrar o fôlego. — Em breve não serei mais eu mesmo. Quando vier a próxima lua nova, temo não estar mais entre os humanos… — Isso não vai acontecer, Sebastian, não pode acontecer. Vou reverter o processo. Vou utilizar os poderes deixados pela Agnes para impedir isso. Só precisamos de um pouco mais de tempo. 169 — Não há mais tempo. — As sombras do quarto pareciam se agitar, cada vez mais escuras e profundas, como demônios dançando e tagarelando nas terras perdidas do mundo das sombras. Vi seus rostos hediondos, senti o odor fétido da sua respiração e seus desejos vis por tormento e desgraça. Sebastian não podia se tornar um deles, jamais. — Vou conseguir mais tempo — falei, decidida. — Já esqueceu o que a congregação fez por você? Cada uma das Irmãs das Trevas deu um ano de suas vidas para que sua força voltasse. Posso fazer o mesmo. — Não! — sua voz era áspera, mas nítida. — Não haverá mais roubo de almas. Quero que você viva por mim, e não morra por mim. Aquela garota… Laura… eu a matei por causa disso… e mereço tudo o que está acontecendo comigo agora. — Você não a matou, foi a Celia Hartle — Helen falou em voz baixa. — Minha mãe matou a Laura. Você não deve se culpar por isso. — Eu me culpo por tudo — ele gemeu. — Peguei a beleza do Caminho Místico e a distorci. Foi errado. Quebrei o coração da Agnes. — Sim, o que você fez foi errado — retrucou Helen. Ela estava tão severa quanto um juiz, envolta por sua beleza altiva, mas havia piedade em seus olhos. — A Agnes te perdoa, Sebastian. Ela quer nossa ajuda. — Agnes… — suspirou. — Eu a vejo cercada de luz, e Evie está ao seu lado… — Sebastian, você tem de me escutar — falei. — Agnes mandou encontrarmos o Livro. Ela quer que a gente aprenda os segredos para poder te salvar. Eu vou me tornar uma curandeira como ela. Você está com ele? 170 — O Livro. É claro. Eu tinha me esquecido dessas coisas — Sebastian olhou para Helen com os olhos turvos de tanta dor. — Sua mãe… ela pegou o livro quando eu estava fraco. Ela queria saber de tudo, como eu quis um dia. — Riu amargamente, depois se curvou e tossiu baixinho por um bom tempo antes de se levantar com dificuldade. — O Livro está na Abadia, com a Alta Mestra. — Ela não está mais lá. Ela foi embora — eu disse. — Não acredito nisso. Sinto que ela está me procurando, como uma chama no escuro, tentando achar um jeito de me enganar. Não tenho mais forças para lutar contra ela. Estou ferido, Evie, até a alma. Nem mesmo Agnes pode me curar. Sebastian fechou os olhos e começou a murmurar para si mesmo: — Eu tinha medo de morrer… queria viver para sempre. E agora morrer não é o pior de tudo. Perdi a mim mesmo. Logo serei um escravo, um demônio perdido para a humanidade. — De repente ele gritou: — Evie, Evie, cadê você? — Estou aqui — sussurrei, assustada e horrorizada, mas ainda feliz por estar ao seu lado. — Estou aqui, Sebastian. Vou cuidar de você… — Ah, Evie — ele falou, mais calmo —, como eu gostaria de morrer e ir para onde Agnes foi antes de mim. Só quero passar para o outro lado, nosso verdadeiro lar, onde até mesmo o mendigo mais miserável é bem recebido pela morte na soleira da porta de Deus. Não quero ficar exilado nas sombras como um rejeitado. Mas o caminho está barrado. Não posso seguir Agnes. Não posso nem mesmo pôr um ponto final na minha vida miserável e, agora, estou caindo na escuridão eterna. — Você não pode se atormentar dessa forma. Precisa descansar até eu voltar. 171 — Sim, descansar… descansar — suspirou. — Descansar… dormir… e morrer… Estou queimando… queimando… Olhei em volta para ver se encontrava água em meio à bagunça daquele quarto abarrotado, mesmo que estivesse empoeirada e envelhecida. A água da vida… Notei um pequeno béquer de vidro semiescondido pela parafernália na escrivaninha e o pedi a Sarah. O béquer estava vazio. Envolvi o copo com as mãos, fechei os olhos e focalizei na minha mente o lago silencioso e misterioso ao lado das ruínas. Por um instante eu estava lá novamente, nadando na água fria com Sebastian, meu corpo entrelaçado ao dele, sua pele molhada nos meus lábios. A água de nossas veias… os rios de nosso sangue… a água da vida… Ao abrir os olhos, o béquer estava cheio d’água, tão fria e pura quanto gelo derretido. Umedeci os lábios de Sebastian e lavei seu rosto da forma mais doce possível. Por um momento vi seus olhos brilharem claros e azuis, em direção ao meu coração. Nos abraçamos e nos beijamos, como se nossa vida juntos estivesse só começando, e não chegando ao fim. — Evie, está na hora — Helen me avisou. — Temos de ir embora. Eu me soltei do seu abraço. — Eu voltarei. — Você não deve voltar! — ele gritou. — A não ser que possa me curar de verdade. Não quero que você me veja no fim de tudo. Me prometa, Evie. Faça isso por mim. Não volte. — Ele ficou ainda mais descontrolado. — Você precisa me prometer. Prometa! 172 — Sim, sim, tudo bem — balbuciei. — Prometo. Ele pareceu aliviado e, com grande esforço, levantou minhas mãos em direção aos seus lábios. — Deixe que esse seja nosso adeus, garota do mar — ele disse, com dificuldade. — Deixe que esta seja minha última lembrança de você, antes que eu perca tudo. Mas eu não ia deixar aquilo acontecer. No momento em que Helen gentilmente me afastou de Sebastian, eu sabia que não estava pronta para dizer adeus. 173 O tempo estava se esgotando. O relógio de prata que Sebastian deixara cair do lado de fora de seu esconderijo marcava as horas silenciosamente no meu bolso. Eu o havia encontrado, mas ainda não era o bastante. Aquele momento passou e agora o tempo era meu inimigo, tanto quanto as Irmãs das Trevas e sua líder ausente. “Quando vier a próxima lua nova, temo não estar mais entre os humanos…” Cada dia e hora eram valiosos na busca pelo Livro, e eu ficava impaciente com qualquer coisa que atrapalhasse nossa procura. Examinamos sorrateiramente quase todos os volumes da biblioteca, mas não encontramos nada. Tempo… tempo… tempo… Os dias sumiam, implacáveis, e mais uma semana havia sido engolida pelo passado. Quando a tarde de domingo chegou novamente, com suas preciosas horas livres, desci relutante até os estábulos. Havia recebido uma carta do papai perguntando sobre as aulas de equitação. Por causa dele me sentia obrigada a continuar, mas achava as aulas uma total perda de tempo. Eu podia estar procurando o Livro, fazendo algo de útil — pensei com raiva, enquanto tirava a sela de Bonny do lugar. 174 — Acho que isso é seu. Josh entrou na sala de arreios e me entregou um pequeno embrulho. Gelei. Não queria nada vindo dele. Não podia aceitar o que ele tinha a oferecer. Porém, estava cada vez mais difícil ignorar o brilho de seus olhos ao falar comigo ou a dor no rosto de Sarah quando nos via juntos. “Ele não é ninguém” — eu havia dito a Sebastian, e, apesar de ter sido sincera, estava com vergonha da minha insensibilidade. Eu não era a única com sentimentos. Procurei esquecer minhas próprias preocupações por alguns minutos. — Oh… er, obrigada Josh. Que ótimo. — Acho que não poderemos ter aula hoje. O chão está tão congelado que os pôneis podem escorregar. Uma forte geada transformou a neve num gelo duro e compacto e a escola num palácio encantado de gabletes brancos e torres cintilantes. — Tudo bem, não se preocupe com isso — respondi, aliviada por dentro. — Você não vai abrir seu embrulho? Eu me atrapalhei toda para abrir o embrulho de papel pardo e senti uma coisa brilhante e dura nas mãos. Demorei alguns segundos para reconhecer o pequeno medalhão da Fazenda Uppercliffe, polido carinhosamente até brilhar como o tesouro de um pega-rabuda7. — Ah, muito obrigada! Pensei que tivesse perdido isso! Onde você o encontrou? — No chão do estábulo. A fita estava desgastada. O medalhão deve ter caído sem você perceber. Coloquei uma corrente nele. 7 Pega-rabuda é uma espécie de ave muito comum na Europa que tem o hábito de roubar objetos brilhantes, principalmente metálicos, e escondê-los. (N.T.) 175 — Que gentil. Não precisava… — Eu sei, mas quis fazer — respondeu com tranquilidade. Josh pegou o medalhão da minha mão, virou gentilmente meu corpo e amarrou a corrente em volta do meu pescoço. Foi um momento de intimidade e senti seu corpo atrás de mim, alto e protetor. “Ele te ama, Evie. Sei que ama.” Espantei aqueles pensamentos. — Muito obrigada — falei depressa. — Preciso ir agora, já que não teremos aula hoje… — Espere um pouco, Evie. Tem mais uma coisa. — Ele se aproximou com um sorriso cálido e luminoso. — Vamos caminhar um pouco. — Ah, mas não posso… — Por que não? Pensei que as tardes de domingo eram livres… — Mas… — Você vai ficar sem aula hoje, então vou discursar sobre a nobre arte da equitação enquanto andamos pelo lago — falou rindo. Logo depois, disse em tom sério: — Por favor, Evie, preciso falar com você. Apenas por alguns minutos. Não podia negar. Ao atravessarmos juntos o pátio congelado, temia pelo que ele poderia dizer. O sol de inverno estava baixo no céu claro e frio. Algumas das meninas mais novas jogavam bolas de neve umas nas outras, rindo com as bochechas vermelhas. Pareciam tão normais, gritando e deslizando no ar congelante. Com certeza, alguma mestra as censuraria a qualquer momento por serem tão desordeiras, 176 mas por um instante as invejei. Queria poder ter onze anos novamente e brincar na neve, despreocupada. Passamos por elas e chegamos ao lago. Do outro lado das águas cristalinas, as ruínas estavam envoltas por uma beleza pálida e fria. — Então, sobre o que você queria conversar? Josh puxou um pedaço de cartão do bolso e me entregou. Olhei para baixo e vi que se tratava de uma velha fotografia, o retrato de uma mulher corpulenta com uma saia longa e uma touca de renda. Ela não era mais uma jovem, e seu rosto humilde olhou para a câmera com uma expressão franca e direta. Uma garotinha estava agarrada à saia da mulher e escondia o rosto, mas seus cachos brilhantes e volumosos estavam à mostra. Seja boa agora, meu docinho… minha ovelhinha — uma voz ecoou na minha cabeça. Debrucei-me sobre a imagem em preto e branco e reparei que a mulher usava um pequeno medalhão no pescoço. Era o mesmo que Josh me devolvera minutos atrás. Já tinha visto aquela mulher antes. Eu a conhecia. — Martha! — Não conseguia parar de dizer seu nome. Era Martha… a antiga babá da Agnes, que cuidou de Effie em Uppercliffe depois que Agnes morreu. E a garotinha ao lado dela era a própria Effie. — Onde você pegou isso? — Como você sabe o nome dela? — perguntou Josh no mesmo instante. — E por que você tem o mesmo colar? — Eu… er… — minha mente girava. Como poderia explicar? — Não sei. Achei o colar quando fomos cavalgar em Uppercliffe. — Aquilo até que era verdade, mas sei 177 que não pareceu sincero. Me senti culpada, como se tivesse sido pega com mercadorias roubadas. — Então… é o mesmo nome. Martha viveu em Uppercliffe. Ela foi uma parente distante da família da minha mãe, há muitos anos. Temos várias fotos antigas em casa da velha fazenda e das pessoas que moraram lá — ele me lançou um olhar curioso. — Até entendo que você possa ter encontrado o medalhão lá em cima, mas como sabe o nome dessa mulher? — Fiquei interessada na… er… na história de Wyldcliffe quando cheguei aqui pela primeira vez. Procurei por todo o tipo de material sobre os Templetons… Lady Agnes e sua família. Há um livro sobre isso na biblioteca da escola — falei sem parar, inventando cada vez mais conforme ia explicando. — Tinha uma foto sobre os antigos criados de Wyldcliffe, e ela estava nela… Martha, eu quero dizer. Dizia que ela foi a antiga babá de Lady Agnes. E eu me lembrei do seu rosto e nome assim que você me mostrou a foto. Parei para recobrar o fôlego. Josh me encarou franzindo de leve a testa. — Você é uma péssima mentirosa, sabia, Evie? O que aconteceu de verdade? — Nada — afirmei. Olhei para as montanhas distantes e indiferentes, onde o céu começava a escurecer, para evitar o olhar de Josh. Desejei de repente estar livre de segredos e em um lugar claro, quente e seguro. Estremeci. — De qualquer modo, não é nada que eu possa lhe dizer. 178 — Evie, eu vivi na vila minha vida toda e conheço esse lugar. As pessoas sempre disseram coisas absurdas sobre Wyldcliffe, sobre fantasmas, tragédias, vinganças e todo o tipo de bobagem. No entanto, o lugar realmente possui um passado estranho, e existem outros boatos sobre a escola também. Muitas coisas foram ouvidas e presenciadas, coisas sinistras durante a noite. E uma garota morreu aqui no ano passado. Afogada no lago. — Sim, eu sei — minha voz era quase inaudível. — As pessoas estão começando a comentar sobre o modo como a escola está sendo dirigida, principalmente agora que a Alta Mestra partiu daquele jeito. Alguns dos mais antigos na vila juram que ouviram o fantasma dela gemendo e chorando no cemitério da igreja. E agora esses animais mortos. O povo está insinuando que existe algum tipo de estranho ritual de magia negra e de sangue. Tentei tratar aquilo como algo sem importância. — Eles estão levando tudo isso muito a sério, não acha? Provavelmente foi apenas um maluco que matou as raposas. — Talvez, mas você ainda não respondeu minha pergunta. — Já te disse, acabei encontrando um velho colar. Não há nenhum mistério nisso, né? Josh pegou a foto e a pôs novamente no bolso, sem se convencer. — Coisas estranhas costumam acontecer em Wyldcliffe, Evie. Tome cuidado. — Posso cuidar de mim mesma, fique tranquilo. Mas o medalhão… devo devolvêlo a você, afinal pertence à sua família. 179 Fiz o movimento para tirar o colar do pescoço, mas Josh me interrompeu. — Fique com ele. Gostaria que ele ficasse contigo… fica tão bem em você. — Obrigada. Muito obrigada mesmo. — Ele estava sendo tão gentil, e eu retribuía com mentiras e artifícios. Eu me senti péssima. — Olha, você percebeu algo diferente? — Josh pegou o medalhão e pressionou o fecho, tirando o pequeno cacho que Martha guardara por todos aqueles anos. Ele o posicionou ao lado do meu cabelo desgrenhado. — É exatamente da mesma cor que o seu cabelo. E agora, Evie? Existe algum mistério nisso? Não havia nada que eu pudesse dizer. Escondi o fio de cabelo dentro do medalhão novamente e o coloquei embaixo da camisa, longe da vista de todos. — É melhor eu ir. — Fui embora esmagando a neve no caminho. Tudo estava se complicando ainda mais. Não era bom sinal. Tinha de escrever ao papai e pedir para ele cancelar as aulas de equitação. Diria que sentia medo dos cavalos, que não conseguia lidar com aquilo… Ele jamais saberia que, na verdade, eu não estava era conseguindo lidar com as mentiras que andava contando a um garoto de quem gostava e que merecia muito mais do que eu poderia dar. — Espere! — Josh me alcançou. — Olhe, desculpe se pareço bisbilhoteiro ou se faço alarde por nada. É que… bem, gosto de você, Evie, e não quero que você seja infeliz por qualquer motivo. — Não estou infeliz. — Não era bem uma mentira, mas também não era bem a verdade. 180 — Tudo bem, acredito em você, mas quando quiser conversar, estou sempre por aqui, OK? — OK. — Ótimo. Então chegamos ao final da palestra. Vamos esquecer tudo isso. — Ele me deu um sorriso tão animado que não pude deixar de sorrir de volta. Caminhamos lentamente em direção à escola. Grandes sombras roxas se rastejavam pelo chão. Josh não fez mais menção ao medalhão, mas falou sobre sua família, a equitação e os planos de estudo. Perguntou sobre minha família e, de alguma forma, era fácil contar a ele sobre papai, mamãe e Frankie e sobre a saudade que sentia de todos eles. Ficamos embaixo dos abetos8 carregados de neve e conversamos despreocupadamente. Quando voltamos aos estábulos já era quase noite. As garotas que brincavam na neve já tinham ido embora. — Por onde esteve, Evie? — perguntou Sarah, que me esperava há tempos. — Tínhamos combinado de ir à biblioteca depois da sua aula de equitação, esqueceu? — Desculpe, a culpa foi minha — explicou Josh. — Não, foi minha. Deveria ter me lembrado — falei. Pela segunda vez no dia, tive uma sensação desconfortável de culpa. Como pude me esquecer de que Sarah e eu iríamos vasculhar outro corredor da biblioteca à procura do Livro? — Vamos agora mesmo para lá. Ainda temos tempo antes do jantar. — Claro, vamos — Sarah falou serenamente. — Boa noite, Josh. 8 Árvores coníferas mais comuns na América do Norte e na Europa. (N.T.) 181 Vi a dor nos olhos dela e, então, tive a certeza de que Sarah, devido à sua intuição, já estava começando a perder as esperanças de um dia também passear com Josh ao entardecer. 182 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax Q uantos dias e quantas noites ainda ficarei aqui antes de virem me buscar? Costumava odiar este lugar como uma verdadeira prisão, mas, desde que você veio me visitar, seu espírito parece assombrar essas paredes. Não há nenhum outro lugar no qual eu gostaria de estar agora. Como é intrigante o amor! Maior que as tempestades, a riqueza, a ciência e as guerras… Na época em que morei nesta casa, nunca dei importância ao amor. Eu estava acima dessas fantasias tolas. Não amava Agnes, apenas desejava sua beleza e sua força… mas você conhece os meus segredos mais vergonhosos. E perdoa todos eles. 183 Meus pais me amaram, mas fui impaciente com suas regras e convenções. Nunca parei para tentar entender que tipo de pessoa eles realmente eram. Meu pai vivia ocupado com suas terras, seus cavalos e cães. Minha mãe era linda, mas nunca enxerguei além da sua beleza. Nunca me questionei se eles realmente se amavam ou apenas precisavam um do outro, ou como se tratavam quando estavam sozinhos. Será que eles sentiram uma única vez o que sinto por você? Teria meu pai abdicado de sua vida por minha mãe, como abdicarei da minha por você? Farei isso. Vou desvanecer e definhar para que você possa viver. Apesar da tentação se arrastando por cada canto da minha cabeça… sei que há um modo de evitar o que está prestes a acontecer. Há um caminho. Um caminho, no entanto, que a destruiria. Mataria você. Falei para você esconder o tesouro que guarda, para que eu não ficasse tentado a pegá-lo. Prometi não tocar no Talismã, nem mesmo se ele estivesse aos meus pés, se com isso eu ferisse um fio do seu cabelo… um único fio do seu lindo cabelo. Não volte para cá… você não pode voltar… Mas não estou tentado. Não estou. Não desejo o Talismã. Você diz que irá usá-lo para me curar, que irá encontrar o Livro e fazer tudo o que estiver a seu alcance… para me salvar. Ah, Evie, doce Evie, não acredito mais nisso. É tarde demais e tudo está desaparecendo, todos estão me deixando… até você. Quando eu não estiver mais aqui, você será a única que ficará de luto. As outras almas que foram bondosas o bastante para sentir afeição pelo Sebastian Fairfax já passaram por esses vales. Talvez a irmandade cruel da qual um dia fiz parte se lembre 184 de mim… sim, deverão se lembrar. Ainda assim, por que deveriam? Não fui um bom companheiro para eles durante muitos anos. Que eles se esqueçam também. Que a escuridão me cubra. Que todos se esqueçam. E que eu esqueça que o Talismã chegou a existir. Ninguém pode me ajudar neste momento. 185 N os dias que se seguiram, procuramos pelo Livro na biblioteca e em todas as salas de aula e prateleiras, assim como no sótão secreto, mas não encontramos nada. Restava apenas uma pessoa que talvez pudesse me ajudar. Agnes. Eu ainda tinha seu diário e talvez encontrasse alguma pista nele, algo para me guiar… Numa noite depois do jantar, tivemos um último ciclo de estudos. A turma marchou em direção à sala da Srta. Scratton, todas as alunas meio cansadas e entediadas, mas obedientes como sempre, seguindo seus afazeres sem reclamar. Olhei em volta. Sarah fazia anotações de forma metódica e o rosto de Helen estava semiescondido pelo cabelo, mas podia jurar que seus pensamentos estavam bem longe dos meandros da história inglesa. — Helen Black, punirei com uma detenção todas as alunas que não completarem esse exercício de forma satisfatória — afirmou a Srta. Scratton, de forma rude. Helen suspirou e tentou se concentrar. Escrevi rápida e claramente, discorrendo sem parar sobre um monte de coisas a respeito do rei Henrique VIII e a dissolução dos 186 mosteiros, quando ele rompeu as antigas ordens religiosas e tomou as terras da igreja com seus comparsas. Era estranho pensar que a própria Wyldcliffe já havia sido uma grande casa religiosa, para onde jovens garotas aristocratas foram enviadas aos cuidados das irmãs até que estivessem em idade de casar. Talvez não tivesse mudado tanta coisa desde então. Olhei ao redor. Celeste fazia a tarefa com confiança e segurança. India, Sophie, Rachel Talbot-Spencer — cuja mãe era realmente Lady alguma coisa — Lucy Lambton, Caroline e Katie e Charlotte — todas estavam lá para se tornar perfeitas damas inglesas, refinadas, educadas e levemente mortas. Vivíamos lado a lado e, mesmo assim, pouco sabia sobre elas. Lembrei-me do que Josh dissera sobre os boatos em torno de Wyldcliffe e me perguntava se algum dos pais das garotas as levaria embora. Provavelmente não. Eles veriam apenas o que quisessem ver: meninas bem-educadas, com o sotaque, o código de vestimenta e as habilidades sociais corretas. Uma educação em Wyldcliffe era mais importante do que se preocupar com fofocas na vila. Rabisquei mais algumas frases, apressando o fim do meu exercício. Assim que terminei, levantei a mão. — Por favor, posso ir até a biblioteca? — Terminou tão rápido assim, Evie? — perguntou a Srta. Scratton secamente. — Muito bem, pode ir. Segui pelo corredor, meus passos ecoavam no chão encerado, atravessei o hall de entrada ladrilhado e entrei na biblioteca. Havia apenas meia dúzia de estudantes folheando revistas antigas e bocejando uns para os outros. 187 Peguei o primeiro livro que encontrei na pilha mais próxima e me sentei numa cadeira vazia na mesa do canto. Olhei em volta para me certificar de que ninguém estava me vendo e puxei um livro preto e pequeno do bolso. Era o diário de Agnes. Queria lê-lo novamente para encontrar qualquer pista, por mais insignificante e pequena que ela pudesse parecer. Escondi o diário dentro da capa do entediante livro didático que havia escolhido e comecei a ler, meus olhos deslizavam rapidamente por aquelas páginas já conhecidas. 13 DE SETEMBRO, 1882 A novidade é que o amado S. voltou de suas viagens finalmente, depois de meses peregrinando no exterior… é tão bom rever meu amigo de infância… tão alto e bonito… o mesmo ar ávido, o mesmo desejo de dividir tudo comigo, o mesmo olhar de um azul intenso... ele é realmente o irmão que nunca tive… teve febre no Marrocos… está terrivelmente doente… e em apuros…. Este ano de 1882 tem sido tão enfadonho, longo e melancólico sem ele… preciso me lembrar de que sou Lady Agnes Templeton… levada à perplexidade... Mamãe… uma boneca enfeitada… senti mudanças em mim… vibrando com um poder invisível e desconhecido… chamas dançam como folhas cintilantes ao vento… Estou com medo e ao mesmo tempo empolgada… minha infância atrás de mim… meu destino à frente… 188 — Oh! — Dei um pulo. Alguém se aproximara em silêncio e estava lendo sobre meu ombro. Fechei o livro bruscamente para esconder o diário e me virei. Era Harriet. — Não vi que você estava aí. — Tentei ser o mais natural possível. — Você me assustou. — O que você está lendo? — Harriet parecia mais tensa que um animal encurralado, mas era eu que me sentia presa em uma armadilha. — Er… — mostrei a ela a capa do livro. “Biologia Intermediária…” Harriet se debruçou sobre mim. — O que você está realmente lendo? — Colocou a mão sobre o livro e tentou arrancá-lo de mim. — Não! — gritei, e uma garota que lia revista levantou os olhos e franziu a testa. — É particular — murmurei, desesperada. — Por favor, não olhe, Harriet. É meu diário. — Não acredito em você — resmungou. Olhei para ela, espantada. Toda aquela estranha timidez havia desaparecido. Lembrei-me de um bêbado que vi uma vez do lado de fora do pub local, com os olhos cheios de fogo e autopiedade. — Preciso do livro. Quero este livro. Me dê agora mesmo. Ela largou o livro de ciências subitamente, ergueu a mão e me deu um tapa na cara. Gritei, perplexa, e as garotas no sofá viraram para nos encarar. — O que está havendo? — perguntou uma delas. Harriet se deixou cair numa poltrona e começou a chorar compulsivamente. 189 — Sinto muito, Evie, sinto muito. — Está tudo bem — respondi. — Ela está chateada… com saudades de casa, só isso. — Não entendia muito bem por que a estava protegendo, mas não queria que ninguém soubesse o que havia realmente acontecido. — Vocês podem chamar a Srta. Barnard? Harriet é aluna dela. Elas concordaram e saíram de lá. Harriet segurou minha mão. — Sinto muito, Evie — repetiu. — Gosto de você e quero que seja minha amiga. Você é legal comigo… ninguém mais é. Agora você vai me odiar. — Sua voz foi sumindo, até virar um soluço desconexo. — Não te odeio, Harriet, apenas não entendo… — Tenho tantas dores de cabeça — lamentou. — Não chore… chorar só vai piorar. — Mas não havia nada que eu pudesse fazer ou falar para confortá-la. A porta se abriu e a Srta. Barnard entrou. Ela era mais jovem que a maioria das professoras e parecia preocupada. — O que aconteceu? Jenny disse que houve algum tipo de incidente. — Não, não foi bem isso — hesitei, sem saber direito o que dizer. — É que Harriet não está se sentindo muito bem. — Receio ser esta a época do ano para gripes e febres — disse a professora enquanto estendia a mão para sentir a testa de Harriet, que deu um pulo para trás como um animal feroz. — Não toque em mim — ela gritou com um olhar selvagem queimando em seus olhos novamente, mas no instante seguinte caiu debilmente na 190 poltrona mais uma vez, exausta. — Está tão escuro aqui dentro — sussurrou. — Tão escuro. Olhei apreensiva para a Srta. Barnard. — O que ela tem? É por causa do acidente? — Ela já devia ter se recuperado daquilo, mas o internato não é para todas. Parece que Harriet está com muita dificuldade de adaptação. Acho que teremos de entrar em contato com sua família. — Não! Por favor, não diga nada a minha mãe. Por favor! — Harriet cessou o choro e assoou o nariz. — Desculpe. Fiquei chateada e fiz besteira por causa de uma terrível dor de cabeça. Estarei melhor amanhã, prometo. Por favor, diga para ela, Evie. Hesitei. Uma parte de mim sabia que, se eu contasse que Harriet explodiu e me bateu, a Srta. Barnard iria fazer com que ela fosse embora para casa. Estava tentada a fazer isso. Seria um grande alívio não ter Harriet em volta de mim, com sua presença estranha, carente. Porém, seus olhos amedrontados suplicaram aos meus. — Deve ser horrível ter enxaquecas desse tipo — falei com um certo esforço. — Pobre Harriet. Ela está apenas muito cansada. Ficarei de olho nela, se quiser. — Como se já não tivesse muito com o que me preocupar. Harriet me olhou sem jeito, mas agradecida. — Obrigada, Evie. Você é minha amiga, minha única amiga. Sorri de volta, não sem sentir um certo incômodo. Se ela gostava tanto de mim, por que me olhava minutos atrás com tanto ódio? Por que diabos me deu um tapa na cara? E por que estava tão desesperada para ler o diário de Agnes? 191 No relógio da igreja, na vila adormecida, bateu meia-noite. Mais uma noite interminável. Tentei tirar Harriet da cabeça, mas não consegui relaxar. As palavras do diário de Agnes me assombravam enquanto permanecia deitada no dormitório branco e silencioso. Ele ainda possui o mesmo ar ávido, o mesmo desejo de dividir tudo comigo, o mesmo olhar de um azul intenso... terrivelmente doente… e em apuros… faz novas descobertas a cada dia… passa horas estudando as páginas do Livro… eu faria qualquer coisa por ele… Havia lido o diário inteiro outra vez, escondida no banheiro, mas não senti que estava mais perto de encontrar o que precisava saber. Me revirava na cama e tentava imaginar pela centésima vez onde poderia estar o Livro. Helen conseguia passar por portas trancadas e contou que não havia nada na sala de estudos da Alta Mestra, que agora era ocupada pela Srta. Raglan. Repassei mentalmente todos os lugares pelos quais havíamos procurado e surgiu novamente na minha mente a biblioteca e o acesso de fúria da Harriet. Seu rosto parecia flutuar por trás das minhas pálpebras e novamente experimentei a sensação de pânico no momento em que ela surgiu atrás de mim e fechei o livro rapidamente. Mantenha o diário fechado… esconda o livro… guarde-o como um segredo… Sentei, de repente. Aquilo já havia acontecido aqui em Wyldcliffe. Um livro havia sido fechado e escondido. Vi acontecer… vi os rostos alarmados e os movimentos bruscos para esconder o precioso objeto. 192 Eu me lembrei, me lembrei de tudo. Meu coração batia com euforia. No primeiro semestre, eu era tão nova naquele lugar que não sabia nem mesmo andar pelo prédio, e entrei por engano na sala privada das professoras. Havia seis ou sete mestras reunidas em torno de uma mesa lendo um livro que parecia uma bíblia antiga. Vi a Srta. Raglan e a Srta. Dalrymple lá dentro. Cobriram o livro com um tecido refinado assim que me viram e a Srta. Raglan ficara furiosa. Agora sabia o porquê. Sem saber, havia avistado o Livro, a relíquia do Caminho Místico. Estava aqui, em Wyldcliffe, apenas a alguns metros de mim, escondido no andar de baixo. Não parei para pensar. Procurei meu robe no escuro e saí do quarto em direção ao corredor, olhei por cima do corrimão da escadaria de mármore e escutei atentamente. A casa inteira permanecia imóvel e em silêncio. Uma pequena lâmpada brilhava fracamente. Achei que poderia arriscar usar a escada principal para descer até o segundo andar. Se alguém me visse, diria que me sentia mal e estava a caminho da enfermaria. Ah, eu não me importava com o que teria de dizer ou que tipo de história seria obrigada a inventar. Tudo o que importava era ter o Livro nas mãos. Uma vez com o Livro, nada me impediria de devorar seus segredos. Conhecimento era poder. Em breve, muito em breve, prometi a mim mesma, saberia o bastante para despertar o Talismã e acabar com aquele pesadelo de uma vez por todas. 193 E ntrei na sala das professoras tão silenciosa como um fantasma, fechando a porta atrás de mim. Havia duas janelas altas com vista para a entrada da frente. As venezianas estavam abertas e uma brisa fria do luar se espalhou pela sala. Havia também uma grande mesa de madeira no meio e algumas poltronas em volta da lareira. Foi deixada sobre a mesa uma pilha de trabalhos e periódicos acadêmicos, ao lado de uma sacola de tricô. Era uma sala calma e organizada, tudo o que você esperaria de um grupo de professoras tradicionais. Avistei, entre as janelas, uma estante baixa com portas de vidro e corri para vasculhar o que tinha lá dentro: dicionários, livros de referência e um volume curioso de palavras-cruzadas. Ouvi vozes no corredor, cada vez mais perto, se aproximando como uma nuvem negra. Dei um pulo e olhei ao redor, em pânico. Vi um grande armário, como um guarda-roupa, na parede em frente à lareira. Abri rapidamente a porta e entrei. Estava cheio de mantos acadêmicos que as mestras vestiam. Fechei a porta, deixando apenas uma fresta, e prendi a respiração. 194 Podia sentir a movimentação de cinco ou seis mulheres se reunindo ao redor da mesa, de costas para mim, na escuridão. Uma delas pôs um pesado castiçal no meio da mesa e acendeu suas quatro velas pretas, entoando: “Fogo do sul, ar do leste, terra do norte, água do oeste, proteja nossa reunião. Permita que a luz não seja luz, permita que a escuridão seja nossa guia, permita que nossos corações possam falar, mas que nossas línguas guardem os segredos”. A mulher que acendera as velas foi até a lareira e puxou o que parecia ser um bloco de mármore talhado no centro da elaborada abóbada. Ouvi o som raspante de pedra contra pedra, e o bloco se moveu, revelando um espaço negro. Ela tirou de lá um objeto envolto em tecidos com franjas. Olhei pela fresta, ansiosa para ver o que estava acontecendo. A mulher retirou os panos e tive de abafar um suspiro. Era o Livro, antigo e místico, exatamente como o havia imaginado. Ela o colocou sobre a mesa e cantou: “Pela palavra que aprendemos, pela palavra que amaldiçoamos, pela palavra que iremos conquistar”. Depois, todas se curvaram e saudaram o Livro e uma delas deu um passo à frente, em direção à luz. — Obrigada, irmã. — Era a Srta. Raglan. Então estávamos certas a seu respeito todo aquele tempo. Ela fazia parte da congregação secreta de Wyldcliffe. A Srta. Raglan estava de pé de costas para a lareira e as mãos sobre a mesa. De onde eu estava podia ver seu rosto sob o fraco brilho das velas. — Obrigada a todas vocês, por terem respondido ao meu chamado nesta noite. Vocês servem à nossa congregação há muitos 195 anos e sempre com lealdade. E, agora, devem nos ajudar a decidir o próximo passo da congregação. — O que há para decidir? — falou uma voz desagradável e enjoativa. Meu coração se espremeu dentro do peito. Srta. Dalrymple. Exagerada, sorridente, e completamente traiçoeira. — Nosso caminho é claro — ela dizia. — Lord Sebastian, seja lá onde estiver escondido, não sobreviverá muito tempo na forma humana. Ele está a um passo do fracasso e da destruição. Se não agirmos agora, será tarde demais para ele conseguir alcançar a imortalidade e nos levar junto para a glória eterna. Nossa Alta Mestra também nos desapontou. Ela nos deixou de mãos vazias. — Mesmo assim, a garota ainda está aqui, entre nós — murmurou nervosamente a mulher que acendera as velas. Não consegui ver seu rosto nem reconhecer sua voz, mas ela parecia estar profundamente irritada. — Ela ainda deve estar com o Talismã, mas o que estamos fazendo a respeito? Enviei aqueles avisos, mas nada parece assustála. Ela até conseguiu escapar quando a cercamos nas ruínas. — Você não devia tê-la abordado na minha ausência! — retrucou a Srta. Raglan. — Foi imprudente da sua parte. — Precisamos do Talismã e eu estava pronta para me arriscar a tentar pegá-lo. — Mas você fracassou! — Mais uma razão para cortarmos a escola — e a garota — em pedacinhos e, finalmente, encontrarmos a joia — pediu a outra mulher. — Nós já vasculhamos a escola inteira quando encenamos aqueles roubos como desculpa para procurar os bens das garotas — afirmou a Srta. Raglan com visível 196 irritação. — Não podemos fazer mais nada no momento, nem todas as mestras fazem parte da nossa irmandade secreta. Elas desconhecem nosso real objetivo e algumas já reclamaram da minha nomeação e dos meus métodos. Wyldcliffe pode ser rígida, mas não é uma prisão, e quaisquer medidas ditatoriais em relação às estudantes sofrerão resistência. — Então não envolva as outras estudantes! — falou a mulher, irritada. — Elas não importam. Pegue essa garota sozinha e acabe com ela! Devemos obrigá-la a revelar o esconderijo do Talismã e fazê-la nos levar até o nosso suposto senhor antes que seja tarde demais. A Srta. Raglan fez uma pausa. — Talvez você tenha razão, irmã. Chegou a hora de uma ação decisiva. — Mas o que podemos fazer contra a garota sem a presença da Alta Mestra? — Outra voz surgiu, dessa vez apreensiva e lamentosa. Meu estômago revirou outra vez. Tinha certeza de que aquela era a voz da mulher de aspecto cansado da cozinha da escola. Conversava e trabalhava com ela sem suspeitar nem por um segundo que ela estava envolvida com tudo isso. — Ela nos atacou no semestre passado na cripta quando achávamos que seria fácil vencê-la — dizia. — Por que nos arriscar de novo? — Porque sem risco não há vitória! — respondeu a Srta. Raglan. — Percebo que chegou a hora de uma nova abordagem. Se ficarmos sentadas esperando nossa preciosa Alta Mestra voltar, continuaremos aqui até a velhice e a enfermidade tomarem conta de todas nós. Insisto que Celia Hartle está morta e uma nova Alta 197 Mestra deverá tomar seu lugar. Precisamos agir agora mesmo! — Bateu o punho na mesa e encarou as outras. Seu olhar passou pela porta do armário e recuei, apavorada com a ideia de que pudesse me ver. — Como saber se ela está morta? — falou uma voz tranquila e seca. Tive de me segurar para não gritar. Era a Srta. Scratton, ali naquela sala, naquele encontro odioso. Não queria acreditar, não iria acreditar, aquilo não podia estar acontecendo; ainda assim, teria reconhecido sua voz em qualquer lugar. Fiz o que pude para me manter imóvel e calada e ouvir o que ela dizia. — Vejo que você está muito interessada em nomear uma nova Alta Mestra. Imagino que você mesma queira ocupar esse cargo... — continuou a Srta. Scratton. — E quem mais você indicaria? — a Srta. Raglan questionou, em tom sarcástico. — Nós todas sabemos de suas ambições. Você mal disfarçava a rivalidade que tinha com Celia Hartle quando ela estava entre nós, então não finja ser devota à sua pessoa agora que ela foi embora. — Uma das primeiras regras de qualquer irmandade é a lealdade — lembrou a Srta. Scratton. — Nunca traí minhas irmãs ou minha superior. Não gostaria de estar no seu lugar quando a Alta Mestra voltar e encontrar você usando os mantos dela. — Fez uma pausa e continuou em voz baixa. — E acredite, ela vai voltar. — Então por que ela não dá nenhum sinal? — perguntou a Srta. Dalrymple com impaciência. — Ela não precisa mais de nós? — Se ela realmente voltar, talvez perceba que não precisamos mais dela — retrucou a Srta. Raglan. — O Livro está sob nosso poder há algum tempo e temos 198 estudado seus mistérios. Nós não estamos sem poderes… então por que usá-los apenas para servir à Alta Mestra, quando na verdade ela nos abandonou? Por que não aproveitar o momento e forçar Sebastian a fazer o que ordenamos? O Livro vai nos ajudar a procurar por ele e pelo precioso Talismã, se assim permitirmos. — O Livro não foi feito para aqueles que procuram servir a si mesmos, ainda que por uma causa nobre. Você distorce as palavras dele a seu próprio modo — afirmou a Srta. Scratton. — Então, o que você sugere? — perguntou a Srta. Dalrymple com uma voz tão sedosa e suave quanto uma bebida envenenada. — Você é tão sábia, irmã, tão paciente, cheia de astúcia. O que sugere, agora que Sebastian está a um passo do mundo demoníaco e tudo pelo que temos trabalhado está prestes a ser arrancado de nós? Após uma longa pausa, a Srta. Scratton continuou: — Não sou uma líder, por isso esperaria que a verdadeira Alta Mestra nos mostrasse… — Esperar? Esperar? — a Srta. Raglan interrompeu, furiosa. — Não posso esperar. Estou ficando velha. Não podemos simplesmente esperar até morrer, como fizeram nossas mães e avós. Não tenho uma filha para tomar meu lugar. Quero a recompensa pelos trabalhos que fizemos e que Sebastian Fairfax nos prometeu, aqui e agora, sem mais delongas. Nada irá me deter… nem você, nem Celia Hartle, e muito menos aquela ruivazinha idiota. Ela tem a chave de tudo isso. — Não podemos abordá-la diretamente. Ela não faz ideia de quem somos e devemos manter dessa forma. — E ela possui poderes extraordinários — afirmou a mulher da cozinha. 199 — Aquilo foi apenas sorte de principiante. Ela não resistirá a nós novamente — a Srta. Raglan sorriu friamente. — Temos de esquecer nossos receios, separá-la de suas amiguinhas e sequestrá-la. Então poderemos usá-la para reanimar Sebastian até que nossos planos sejam concretizados. Roubaremos sua alma e depois nos livramos dela, dando o Talismã a Sebastian como um último presente. Assim, ele não poderá nos rejeitar. Conquistaremos o que a Alta Mestra não conquistou. Minha perna estava desconfortavelmente encolhida, mas eu me sentia muito assustada para me mexer, até mesmo para respirar. Tinha certeza de que elas ouviriam a batida do meu coração, a me denunciar e me trair. — Mas e se ela morrer… como ocultaremos sua morte? — perguntou a mulher, apreensiva. — Um acidente. Uma amazona novata caiu do seu cavalo. Qualquer história irá servir. Ela não é ninguém. — E Laura também não era ninguém? — perguntou a Srta. Scratton. — As pessoas estão começando a comentar. — Então você deve silenciá-las! Reivindico a liderança da congregação — declarou a Srta. Raglan. — Sou a Alta Mestra agora. Usaremos nossa energia para tirar Sebastian do seu esconderijo e, na próxima lua nova, reuniremos nossa Irmandade inteira e exigiremos que todas aprovem minha reivindicação. E, aí sim, serei forte o suficiente para enfrentar diretamente a garota. — Que assim seja. — A Srta. Dalrymple se prontificou no mesmo instante. Uma a uma, todas concordaram. 200 — Que assim seja. — Que assim seja. A Srta. Scratton hesitou, mas concordou. — Que assim seja. — Enquanto isso, a garota precisa ser observada — continuou a Srta. Raglan. — Precisamos saber se ela está tentando se comunicar com Sebastian e onde está escondendo o Talismã. Você fará isso — disse, ao se virar para a Srta. Scratton. — Isso irá impedi-la de se intrometer em assuntos alheios. — Ficarei feliz em realizar essa tarefa, Irmã. Creio que ela confia um pouco em mim. Ficarei de olho. Evelyn Johnson não vai dormir, respirar ou até mesmo se mexer sem meu conhecimento. — Muito bem, então esse encontro se dá por encerrado até nos reunirmos novamente na lua nova, daqui a duas semanas — falou a nova Alta Mestra, com ar satisfeito. — Que as sombras da noite sejam nossa sabedoria e que a escuridão nos proteja. — Ela apagou as velas e pude escutar o som do Livro sendo escondido. Ouvi os pés se arrastando pelo chão — estavam indo embora — e, finalmente, o estalo da porta se fechando. Silêncio. Esperei, apavorada, mas nenhuma delas voltou. 201 S ilêncio. Elas tinham ido embora. Abri a porta devagar e saí do meu esconderijo. Minhas pernas tremiam e minha boca estava seca. Finalmente descobrira toda a verdade. Há tempos suspeitava de que as Srtas. Raglan e Dalrymple fossem minhas inimigas, mas a Srta. Scratton — correta, séria e justa —, como ela podia fazer parte daquele mundo perverso? Fiquei enojada, mas precisava aceitar aquilo. A Srta. Scratton era uma das Irmãs das Trevas e jurou me vigiar. Qualquer fio de esperança que eu tivesse na escola, que supostamente deveria ser meu lar, foi totalmente aniquilado. Um fogo queimava por dentro e seu combustível era o ódio. Sim, odiava aquelas mulheres que deveriam nos ensinar e proteger, mas que nos consideravam meros fantoches em seu jogo insano. Minha vontade era atacar e destruir tudo ao meu redor, quebrar suas estantes e seus quadros e sua escola. Iria à polícia, pensei. Contaria a eles tudo o que vi e ouvi, como a Sra. Hartle havia matado Laura, sugando sua força vital para prolongar a existência de Sebastian; e como planejavam fazer o mesmo comigo. 202 À medida que os pensamentos se formavam na minha mente, sabia que tudo seria em vão. Ninguém me daria ouvidos. Ninguém acreditaria em mim. Aquele não era o caminho, disse a mim mesma. Precisava me manter calma e bolar um plano antes que a lua nova se pendurasse no céu como um ramo de fogo branco. Tudo estava caminhando para aquilo. Pense, Evie, pense… Eu me aproximei da lareira toda trabalhada e toquei de leve e com cuidado suas folhas e frutos esculpidos no mármore até encontrar o lugar secreto e pressioná-lo com força. A câmara estreita se abriu totalmente. Procurei pelo Livro, mas antes minha mão tocou em algo frio e duro, feito aço. O punhal de prata. A Sra. Hartle o havia deixado cair durante nosso embate na cripta e suas irmãs devem tê-lo trazido de volta ao esconderijo, por uma medida de segurança. Depois de um minuto de hesitação, enfiei-o no bolso. Logo em seguida peguei o Livro e, ao tocá-lo, ouvi uma voz dentro da cabeça, cantando um antigo verso: “Leitor, se não és puro Para e não lê mais; Os Mistérios Antigos aqui proclamados Não devem ser pelo Mal manchados.” Sabia que deveria sair de lá e voltar ao dormitório o mais rápido possível, mas estava louca para abrir o Livro e devorar seus segredos. Coloquei-o com cuidado sobre a mesa. A capa de couro verde era exatamente como Agnes descrevera, com as 203 palavras “O Caminho Místico” brilhando sob a luz fraca e prateada ao luar. Quantas pessoas haviam colocado as mãos naquele objeto ancestral? Quantos foram levados ao desespero por causa de suas palavras? “O Caminho Místico é um caminho de cura” repeti a mim mesma. “Busco a cura para Sebastian… para Wyldcliffe… para todos nós…” Comecei a folhear as páginas aleatoriamente. As folhas estavam secas e mofadas, dificultando a leitura. Algumas páginas, decoradas com tintas vermelha e verde, eram exatamente iguais à página que Agnes deixara para mim, e algumas foram escritas em latim, grego e outras línguas que eu não conhecia. Eu estava com muita pressa e não conseguia absorver o que lia, e o Livro parecia ter vontade própria. Algumas folhas estavam grudadas e não abriam, e às vezes se abriam sozinhas, como se tivessem sido sopradas por algum vento invisível. Vi de relance uma série de encantamentos e feitiços: Para Encontrar um Verdadeiro Amigo; Para Prever o Tempo; Para Produzir Veneno com um Sapo; Para Fazer Chover; Para Curar Reumatismo; O Dom da Visão; O Dom da Morte… O Dom da Morte. Aquelas letras em negrito pareciam me encarar e perfurar minha cabeça. O restante da página estava decorado com algum tipo de xilogravura, mostrando uma figura sombria da Morte ao lado de um anjo luminoso. O Dom da Morte.Por alguma razão queria saber mais. Tentei virar a página para ler os detalhes do feitiço, mas as folhas estavam grudadas. Essa parte do Livro havia sido selada contra mim. 204 O sino da igreja soou à distância, seu repique fino e claro e agudo na noite de inverno. Meia-noite. Em poucos segundos, nasceria um novo dia. Uma leve brisa passou pela sala e as folhas do Livro bateram ao vento, para logo em seguida pararem, revelando uma nova página. Olhei para baixo. As letras da página tinham a forma de línguas de fogo vermelho. Para Invocar o Fogo Secreto. O sino da igreja bateu uma última vez. O fogo secreto, a chama sagrada, a fonte de luz e poder — Agnes havia seguido fielmente tudo aquilo. E quando quis selar seus poderes dentro do Talismã, convocou a chama e introduziu o pingente de prata no seu centro flamejante. Lembro-me das palavras do diário. “Minha força vital parecia ser arrastada para fora de mim e para dentro da joia de prata… Meus poderes estão selados em seu coração prateado…” Tudo parecia tão claro e simples agora. Sabia o que precisava ser feito. Se eu conseguisse convocar o fogo sozinha, colocaria o Talismã nas chamas místicas novamente e destrancaria seus poderes mais uma vez. E, então, os poderes de Agnes seriam meus e eu poderia me munir de sua força e lutar para libertar Sebastian do seu destino. Apertando o Livro contra meu coração, sussurrei: — Obrigada. Obrigada, Agnes. Eu havia encontrado o que tanto buscava. 205 N a manhã seguinte, Helen precisou me acordar com um chacoalhão. — Evie, o sinal tocou. Por que você não se levantou ainda? — O quê…? Hum… estou tão cansada. — Sentei-me na cama e bocejei, então tudo o que acontecera na noite anterior veio à tona. Agarrei o braço de Helen, agitada. — Tenho tanta coisa para te contar. — Eu também. Acabei de ouvir duas mulheres da limpeza conversando no corredor. Parece que está acontecendo de novo. — O quê? — Um novo ataque na vila. Outro animal jogado na soleira de uma porta. Dessa vez foi uma galinha com a cabeça cortada e penas para todos os lados. Horrível. Os moradores da região estão cada vez mais furiosos com isso, falam em expulsar os ciganos da terra deles. Sarah não vai gostar nada disso. Olhei em volta. Sophie estava se vestindo devagar e Celeste continuava deitada na cama. 206 — Não é só disso que Sarah não vai gostar — falei em voz baixa para não ser ouvida. — Precisamos conversar. Vesti rapidamente a roupa e descemos apressadas as escadas para encontrar Sarah nos estábulos antes que o sinal tocasse avisando a hora do café da manhã. Era uma manhã clara e luminosa, a geada brilhava no chão com cem pontos minúsculos de luz. Sarah estava limpando Starlight, com as bochechas rosadas de cansaço, mas voltou a ficar branca quando contei sobre o que havia encontrado e presenciado. — Não posso acreditar. Qualquer uma, menos a Srta. Scratton — falou Sarah. — Eu a vi e escutei o que disse. Ela é tão má quanto todas as outras. — Mas não faz sentido — insistiu Sarah. — Não parece ser possível. — Qualquer pessoa é capaz de fazer algo errado, Sarah. A imortalidade é uma tentação poderosa. Pessoas já roubaram e mataram por muito menos — afirmou Helen. — A Srta. Scratton jamais faria uma coisa dessas. — Gostaria que não fosse verdade, mas é. De qualquer modo, não faz a menor diferença. Sempre soubemos que estávamos sozinhas nisso. Seja como for, ela não poderia ter nos ajudado, e é melhor saber quem são nossos verdadeiros inimigos. — Inimigos? — falou uma voz fina e anasalada. — Quem tem inimigos? — Viramo-nos e vimos Harriet parada na entrada do estábulo. — Falávamos sobre… o… próximo jogo de lacrosse — desconversei. — Planejando táticas. — Ah. Pensei que você odiasse lacrosse. 207 — Sim, bem… já que não posso me livrar disso, então é melhor tentar… er… você está bem, Harriet? Ainda sente dores de cabeça? — Não… não. — Olhou em volta, preocupada, e saiu correndo. — O que foi aquilo? — perguntou Helen assim que ela foi embora. — Será que ela ouviu muita coisa? — Não sei — respondeu Sarah. — Precisamos ter mais cuidado. Embora não acredite que tenhamos de nos preocupar com isso. Foi apenas mais uma esquisitice da Harriet. Eu não estava tão certa disso. Enquanto Harriet se afastava, notei algumas manchas de terra avermelhada na sua saia, parecidas com lama ou ferrugem. Ou até mesmo, quem sabe, sangue. O jantar havia terminado. Era nossa hora oficial de escrever cartas. Um dever que cumpríamos uma vez por semana. Algumas garotas lamentavam não poderem ligar para casa. “Elas nunca ouviram falar em celular?”, reclamavam. No entanto, a Wyldcliffe tinha seu estilo próprio de fazer as coisas. As alunas de Wyldcliffe tinham de escrever cartas elegantes, expressivas e educadas da mesma forma que as estudantes de cinquenta anos atrás faziam. E assim, lá estávamos de cabeças inclinadas, rabiscando palavras, agarradas a mais um costume antiquado, fingindo que podíamos encobrir facilmente o mundo moderno, assim como a neve, que encobria a grama lá fora. 208 A Srta. Scratton caminhava lentamente pela sala, para lá e para cá, devolvendo redações e assinalando caligrafias malfeitas, observando tudo com seus olhos negros e cortantes. Senti seu olhar sobre mim e meu estômago se encheu de repulsa. Ela realmente achava que eu iria ser tola a ponto de mencionar Sebastian nas minhas cartas para papai? Ela realmente achava que iria me pegar tão facilmente? Baixei a cabeça e tentei escrever a carta. Odiava a Srta. Scratton; e nunca deixaria de odiá-la, e aquele ódio queimava na minha cabeça como uma verdadeira obsessão. No entanto, precisava fingir que estava feliz, que era uma aluna sem preocupações, escrevendo para casa, conversando sobre coisa alguma. Querido Pai, Estou bem e estudando bastante. Acho que até começo a compreender o que a professora de química está tentando dizer. Estou pensando… talvez estudarei medicina na faculdade. Parece ser algo bom, curar as pessoas. Em história estamos aprendendo sobre os antigos monastérios e as grandes casas religiosas, antes de serem destruídas por Henrique VIII. Não gosto de imaginar as freiras de Wyldcliffe sendo expulsas de suas casas centenas de anos atrás, coitadas. Às vezes consigo imaginá-las cantando nas ruínas da capela, e sinto, de um jeito estranho, que ainda vivemos como elas, trancadas e excluídas do resto do mundo. O tempo ainda está frio… não temos neve igual a essa na casa à beira-mar! 209 Estou indo bem nas aulas de equitação, mas acho que nunca serei boa o bastante. Meu professor é bom e está sempre me encorajando. Muito obrigada por bancar tudo isso. Estou realmente agradecida. Amado Pai, sinto tanto a sua falta. Estou fazendo o meu melhor, eu prometo. Com muito amor, Evie Enfiei a carta em um envelope. Infelizmente não podia dizer o que realmente queria: Querido Pai, Hoje à noite vamos traçar nosso Círculo e tentar convocar o elemento fogo. Não sei o que vai acontecer. Pode ser perigoso e um completo fracasso, mas uma alma depende de mim, então preciso tentar. Uma alma perdida e desesperada. É engraçado, as pessoas não falam mais de almas, não é? E, ainda assim, este já foi um lugar onde as freiras pensavam e oravam por elas, e apenas por elas. Uma professora na qual confiava se revelou minha inimiga, e fico enojada só de pensar nisso, mas não vou permitir que elas vençam essa batalha. Não posso. Há outra coisa me incomodando, pai. O garoto que me ensina a cavalgar é tão legal, mas tenho medo de magoá-lo. Ele lança um olhar diferente quando me vê, me olha com uma espécie de ternura. Se o conhecesse antes de tudo isso começar, talvez tivesse algum significado, mas agora é tarde mais. Sou do Sebastian e nada vai mudar 210 isso. Ah, pai, tenho tanto medo. Nunca imaginei que essas coisas fossem acontecer comigo. Nunca pensei em me apaixonar… Havia algumas coisas impossíveis de serem ditas. Não dormi naquela noite. Uma por uma, Helen, Sarah e eu saímos dos dormitórios e fomos em direção ao sótão secreto. Fui a última a chegar, com um pequeno embrulho escondido sob o robe. Minhas amigas me rodearam ansiosas enquanto eu tirava o Livro e virava as páginas, até encontrar o feitiço desejado. Para Convocar o Fogo Sagrado Existem aquelas Almas raras que são chamadas a ministrar a Chama Sagrada, que é uma centelha da grande fornalha da Criação. Essas mulheres, apenas elas conseguem isso, não necessitam de Instruções ou Rituais. Elas entrarão em contato com seu Elemento da mesma forma que um pássaro entra em contato com o ar ou uma criança com sua mãe, ou seja, através da Natureza, simplesmente. Mesmo assim, é possível alcançar o Fogo por meio de estudos e perseverança, se o Coração for puro. — Olhem! Na margem! — falei. Alguém havia feito anotações a lápis na borda da página. — Sebastian… é a letra dele. Tenho certeza. Helen aproximou ainda mais a vela para decifrar aquelas palavras desbotadas. 211 — “Tentei isso diversas vezes” — ela começou a ler lentamente. — “E toda vez falhei e fui rejeitado pelos Poderes. Mesmo assim, ainda vou dominar isso, mesmo que tenha de deixar cair todas as gotas do meu sangue.” — Ele nunca conseguiu — eu disse. — Apenas Agnes tocava o fogo sagrado, e não precisava do Livro para fazer isso. — Você está preparada para tentar, Evie? — Estou pronta. Helen distribuiu as velas em um círculo à nossa volta. — Que todas as nossas ações satisfaçam a Luz das Luzes. Que sejam tão claras e puras quanto o ar das montanhas. Sarah colocou uma série de folhas frescas de eucalipto entre as velas oscilantes. — Permita que nossos pensamentos sejam tão fortes quanto as árvores que crescem sobre a terra. Que eles frutifiquem tudo o que é bom e sadio. Coloquei nas mãos um pouco de água de um dos jarros de pedra e deixei as gotículas brilhantes cair sobre as plantas. — Que nossas vidas sejam purificadas. Que nossas mentes permaneçam imaculadas. Demos as mãos e cantamos juntas: — Que este seja nosso círculo de proteção e conhecimento. Que tenham início os Rituais Místicos. Não posso revelar os segredos de tudo o que fizemos, mas, quando tudo estava pronto, queimamos os óleos e as ervas prescritas no Livro e observamos a fumaça subir 212 até o teto. Fechei os olhos e Sarah pressionou o punhal de prata em meu braço descoberto e deixou que uma única gota de sangue caísse na mistura fumegante. “O sangue de nossas veias… o fogo de nossos desejos…mostre-nos o fogo… o fogo da vida…” Eu estava caindo. O vento passou por mim como a batida das asas de um anjo. Eu rodava na escuridão e não ouvia mais as vozes de Sarah e Helen. Estava totalmente sozinha no universo inteiro. Foi aí que avistei uma luz na minha frente e tudo foi diminuindo de velocidade. Havia chegado ao coração de uma profunda caverna, e a luz diante de meus olhos era tão ofuscante que mal suportava olhar em sua direção. Mas não tive escolha. Consegui me aproximar e ver que a luz nascia de uma coluna de fogo faiscante, chamas enormes mudando de prata para vermelho, azul, laranja, roxo e branco, como diamantes vivos. O calor era muito intenso e tive medo de queimar como uma folha seca, mas ao mesmo tempo sabia que tinha de alcançar a chama. No entanto, quando tentei me aproximar ainda mais, fui jogada para longe pela força do fogo, e uma voz parecia me dizer: “Você não pode se aproximar do fogo sagrado; não é para você… A água cheia de vida te chama, irmã. Volte, você não pertence a esse lugar”. — Não — gritei em desespero —, você precisa deixar eu me aproximar. Fui enviada para cá, Agnes me enviou… E então a voz — ou os pensamentos da minha cabeça, não sabia ao certo — surgiu novamente: “Há luz em sua alma e coragem em seu coração, mas estes mistérios são profundos e poucas pessoas são bem-vindas. Você não pode passar pelas chamas sem 213 um totem de pertencimento. Um totem de fogo. Traga-o da próxima vez e os poderes quem sabe sejam mais benevolentes”. Logo depois tive a sensação de que a luz e o calor fossem me destruir por completo e queimar cada partícula do meu ser, e então gritei à medida que as chamas iam me cercando. — Evie! Evie, está tudo bem! Volte! — alguém espirrou água no meu rosto e acordei no sótão, esparramada sobre o tapete desbotado. As folhas e ervas estavam espalhadas no chão e o círculo foi quebrado. Sarah e Helen estavam debruçadas sobre mim e me olhavam com apreensão. Sacudi a cabeça, exausta. — Não pude fazer nada. Não pertenço ao reino do fogo. Eu me senti tão arrasada e estúpida, sofrendo com aquele vazio. Estava tão certa de que aquilo iria funcionar. Por que Agnes não apareceu para mim? Para onde ela foi? Sentia falta dela, parecia que a estava perdendo, assim como a Sebastian. Eu havia falhado... não conseguia fazer aquilo… — O que aconteceu, afinal? Você não pode tentar de novo? — perguntou Helen. — Não sei ao certo. Disseram, ou foi como se alguém falasse, que sim, mas teria de levar algo comigo, algo da Agnes, acho. — O quê? — Não sei… um totem de fogo, seja lá o que isso quer dizer. — Será que é o Talismã? — Não… não é isso. Não sei exatamente como disseram, mas preciso encontrar alguma coisa. O totem — bati no chão com a mão, totalmente frustrada. — Eu estava 214 tão perto! Só precisava alcançar as chamas… e agora não tenho a menor ideia do que fazer. — Encontraremos um jeito, Evie, prometo — Sarah disse ternamente. — Mas quando? Como? Se a Srta. Raglan for nomeada Alta Mestra até a próxima lua nova, provavelmente será forte o bastante para agir diretamente contra nós. E Sebastian não suportará por muito mais tempo. — Vamos tentar ao menos mais uma vez — Helen falou, seus olhos verdeamarelados brilhavam sob a luz das velas. — Um totem de fogo. Precisamos encontrar esse objeto antes de qualquer outra coisa. — Vou encontrá-lo — afirmei com raiva. — Eu o encontrarei, custe o que custar! “Vou dominar o fogo, mesmo que isso custe cada gota do meu sangue…” Eu daria meu sangue, minhas lágrimas, minha esperança. Ah, seguiria adiante sem parar, até o juízo final, até não ter mais nada para dar. 215 N unca tinha visto a Srta. Raglan tão brava. — Isso não pode ser tolerado. — Seu rosto estava manchado e vermelho, e ela examinava a fisionomia apreensiva das alunas de Wyldcliffe com algo muito próximo a repugnância. — Alguém roubou um antigo abridor de cartas e um livro muito valioso. Os dois objetos são propriedade da escola e eu os terei de volta! Confesso que uma parte de mim queria rir da sua raiva impotente enquanto cuspia palavras como um ditador que perdia inesperadamente o controle de seu exército. Na verdade, aquilo não tinha a menor graça. Agora que a Srta. Raglan e a congregação haviam se dado conta da falta do Livro e do punhal, eu sabia que seria a primeira da sua lista de suspeitos. — Nunca, em nossa longa história, tivemos ladrões em Wyldcliffe — vociferou. — Não vou tolerar esse tipo de atitude enquanto for a responsável pela escola. É a segunda vez no semestre que um incidente dessa natureza ocorre. O livro em questão era um volume raríssimo e de grande interesse. Se o culpado não der um passo à frente, serei obrigada a chamar a polícia. 216 “Sim, claro”, pensei. Era muito improvável que a Srta. Raglan recorresse à polícia com tudo o que tinha para esconder. Ela blefava e eu sabia que ainda estávamos a salvo. O Livro fora guardado no sótão secreto de Agnes, assim como o punhal de prata. Deixa ela berrar o quanto quiser, pensei. Enquanto ela continuasse brava, sabia que estaria de mãos atadas. A Srta. Raglan saiu desnorteada do refeitório e as garotas se dividiram em pequenos grupos, um pouco chocadas com a cena que acabávamos de testemunhar. Senti pena delas. Aquelas Lucys, Camillas e Carolines, lindas e loiras, jamais sonhariam em pegar algo que não as pertencesse, e mesmo assim acabavam de ser tratadas como simples crianças de rua. Primeiro, o desaparecimento da Alta Mestra; agora, havia um ladrão em Wyldcliffe. O pequeno mundo delas estava começando a mostrar rachaduras. Celeste e India comandavam a corte, dando opiniões com suas vozes suaves e cheias de veneno. — Bem, não poria a mão no fogo pela Helen Black — dizia Celeste. — É completamente maluca e todo mundo sabe que não tem dinheiro nenhum. Se esse livro idiota realmente custa uma fortuna, ela ficaria muito feliz em tomá-lo para si. Eu pessoalmente não teria essas bolsistas em Wyldcliffe — olhou na minha direção. — Isso abaixa o nível, não acha, Sophie? Sophie ficou vermelha na mesma hora e murmurou: — Não acredito que alguém de Wyldcliffe seja capaz de roubar objetos da escola… realmente não acredito. — Acho que você está certa, Sophie — falou India calmamente. — Helen Black e sua turma são tolas demais para armar um golpe como esse. Acho que a culpa é dos 217 forasteiros. Tenho certeza de que o livro roubado está nesse exato momento naquele acampamento horrível dos ciganos. Todos sabem que eles são ladrões, e pior… vejam o que andam fazendo com aqueles animais mortos pregados na entrada das casas das pessoas. É totalmente doentio. Sarah escutava tudo com raiva e não conseguiu mais se conter. — Como ousa dizer isso? Não há nenhuma prova de que esses atos estejam ligados aos viajantes. Só porque as pessoas são diferentes de você, e graças a Deus que algumas são, você simplesmente as despreza. India riu. — Oh, escutem a Santa Sarah, sempre defendendo os mais fracos. Mas acredito que os fracos tenham apenas a si mesmos para culpar. — Venha, Sarah — falou Helen. — Não vale a pena discutir. — Ela nos arrastou para longe e seguimos em direção à próxima aula. Era história, com a Srta. Scratton. Tomei meu lugar na conhecida sala da ala antiga, com as janelas estreitas e gradeadas e as paredes pintadas com cal. O pôster das bruxas de Macbeth ainda pregado atrás da mesa da Srta. Scratton. Que ironia, pensei amargamente. Ela era pior que qualquer outra bruxa. Não conseguia mais ter interesse em suas aulas, apesar de antes terem sido minhas favoritas. Queria sair dali e do seu campo de visão o mais rápido possível. — Quando Henrique VIII dissolveu os monastérios e as grandes casas religiosas no século XVI, houve um período de grande agitação e incerteza, até mesmo rebeliões… — Sua voz monótona era como um zumbido enquanto tomávamos nota. — Para as pessoas comuns, lugares como a própria Abadia foram, por muitos anos, fonte de 218 educação, caridade e medicina… as irmãs cuidavam de qualquer um que precisasse de ajuda. Uma onda de exaustão me invadiu. Mal conseguia me concentrar. — É claro que até nos tempos pagãos as pessoas valorizavam seus curandeiros. Muito antes de a Abadia ter sido construída, os antigos colonos que prestavam cultos a Deus nos templos dos cimos das colinas também tinham suas mulheres sábias. A luz da sala escureceu. Fiquei com a coluna ereta e agarrei o canto da mesa, torcendo para que não acontecesse, mas tudo estava se transformando novamente, como da outra vez, quando avistara Agnes pela primeira vez em sua antiga sala de aula. As cores e os sons se misturaram, formando um borrão confuso… Estava acontecendo de novo… As janelas baixas e gradeadas e as paredes pintadas com cal se dissolveram e sumiram. Eu estava em uma construção simples de madeira, praticamente um abrigo. Uma criança envolta em um manto surrado de lã se deitou no chão coberto de palha e seu rosto estava cinza de tanta dor. A mãe segurou em sua mão e tentou não chorar. Uma outra mulher, que usava um amuleto de prata no pescoço e um véu na cabeça, cuidava da criança. Ela enxugava o rosto do menino e dava a ele pequenos goles de uma mistura com aspecto horrível, enquanto repetia orações secretas. A dor do menino diminuiu e ele caiu num sono profundo. A mulher com o amuleto virou para mim e, apesar de o véu ter escondido metade de seu rosto, vi seus olhos iluminados por uma intensa sabedoria e compaixão… uma curandeira… uma sábia… uma irmã santa… 219 A voz áspera da Srta. Scratton me lançou de volta ao presente. — Assim como as freiras de Wyldcliffe, as mulheres sábias eram muito respeitadas, como se fossem professoras e irmãs santas… — Não! — Não pude deixar de gritar. Como ousava falar em irmandade depois de trair qualquer tipo de ideal de aprendizagem, amor e lealdade? — O que foi, Evie? — perguntou a Srta. Scratton. — Você discorda das minhas opiniões? — Sin… sinto muito — gaguejei, ao tentar encobrir minha confusão e para tentar encontrar algo a dizer. — É que…er… na minha antiga escola, er… a professora disse que antigamente as mulheres não eram importantes… Elas serviam apenas para ter bebês, cozinhar… coisas do tipo… — E ter bebês e cuidar de uma família não é importante? De qualquer forma, acredito que você irá descobrir se pesquisar mais a fundo que as mulheres sempre fizeram muito, muito mais. Ah, sim, as mulheres sempre exerceram um grande poder — acrescentou suavemente —, mesmo que esse poder tenha passado despercebido na maioria das vezes. Poder invisível… a grande irmandade… o Caminho Místico… Fiquei zonza ao ver seus olhos me encarando sem parar. — Mas esse seria um tema interessante para discussão numa outra hora. — Ela pareceu perder o interesse em mim e virou as costas bruscamente. — Agora, quero que vocês leiam o texto da página 32 do livro didático e façam o esboço de suas resenhas. 220 Minha cabeça explodia. O que eu havia acabado de ver? Havia alguma pista naquela visão? Talvez eu tivesse de estabelecer contato com aquelas mulheres do passado profundo e desconhecido… talvez elas tivessem algum conhecimento ancestral que pudesse ajudar Sebastian. Talvez ele precisasse beber a mistura de ervas, assim como o garoto. Mas como aquilo estava ligado ao totem de fogo? Se ao menos eu soubesse o que tudo aquilo significava! Debrucei-me sobre os livros e fingi fazer a tarefa, mas fiquei escrevendo tudo o que pudesse responder à minha pergunta: Fogo — calor — chama. Vermelho — rosa vermelha? Rubi? Um anel de rubi. Vermelho — sinal de sangue. Poções de cura — procure no Livro. Para limpar sangue? Papoulas. Rubro. Escarlate. Fogo. Um totem. Um totem de amor. FOGO. Pense, Evie, pense — mas minha mente estava vazia, tão vazia quanto as colinas sombrias e o céu cinza. 221 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax U ma lembrança se agita na escuridão… Cavalgávamos sob o céu cinzento, não muito longe daqui. Galopando como um trovão, ríamos ao atravessar o vale, cavalgando para fugir, para esquecer. Meus irmãos estavam comigo. Os Fairfax estão mortos e enterrados, e eu era o único filho dos meus pais, mas eles me pediram para chamá-los de irmãos… Minhas lembranças desaparecem, menos esta. Dor… a dor está me consumindo. Estou me afogando em dor e em fogo… Preciso me ater à memória. Não posso deixá-la ir. Preciso lutar. Lutar pela Evie… Estou tão sozinho. 222 Há muito tempo, tinha meus irmãos. Viajamos juntos… Niko, Stefan, Tamas e todos os outros. Seus cavalos robustos. Suas lindas mulheres. Por que voltavam para mim agora? Eles percorriam minha cabeça como chamas brilhantes. Preciso lhe dizer… senti o vento na cara ao cavalgarmos de um lugar para outro. Escutei risadas e cantorias. Vi o brilho de seus olhos negros e o lampejo de suas lanças afiadas. Senti o cheiro de fumaça de madeira. Provei o caldo quente e salgado; o sol se pôs. Comemos, cantamos e contamos histórias. Preciso lhe dizer… o final da história… Quando foi isso? Vinte, trinta, sessenta verões atrás? Por que isso retorna à minha mente agora? Minha mente… o Talismã paira em minha mente… me chama, me tenta… Não. Não. Se pudesse escolher… se pudesse encontrá-la novamente, Evie, eu cavalgaria com você pelas campinas como fiz um dia com meus irmãos, selvagem, livre e seguro. Vejo você cavalgando como fogo… uma rosa vermelha… um pedaço rubro de seda… o fogo… Estou caindo... caindo… dor e escuridão. Tudo está escondido e perdido. Escrevo estas palavras… Minha voz falha… preciso chegar até você. Escrevo meu nome na poeira… sou consumido pelo fogo… 223 Meus irmãos vão te ajudar. Ajude-me, Evie. Minha história está quase no fim. Ajude-me. 224 N o meu sonho está nevando e estou lá fora no ar cintilante, tão confortável quanto uma raposa ou um cervo nos bosques escuros. Estou vestindo uma longa e pesada saia e um xale brilhante em volta dos ombros. Uma fogueira brilha em um círculo de pedras enfiadas na terra fria. As chamas aquecem uma panela com caldo que pende de um tripé de metal sobre o fogo. Atrás de mim, um amontoado de cabanas e carroças de madeira, e dois meninos maltrapilhos brincando na neve. Observo e espero, o cheiro do fogo se mistura ao cheiro dos pinheiros altos. Estou esperando alguém, esperando ele voltar para mim. E, então, lá está Sebastian, correndo na neve. O rosto jovem e forte, cheio de alegria. Ele me pega nos braços e nos beijamos, nossas bocas são quentes e doces como o mel. O mundo branco desaparece e o sol vermelho queima baixo no horizonte. Mas há algo de que preciso, algo que estou procurando. Tento me lembrar. Sebastian — falo com urgência —, você precisa me ajudar a encontrar o totem de fogo. O que é isso? Onde está? Ele me olha com tanta ternura e acaricia meu cabelo. Em seguida uma voz áspera grita: — Prala! Av akai! — Irmão… meu irmão… Três cavaleiros de 225 cabelos escuros, homens desconfiados, com rostos fortes e orgulhosos, esperavam por ele sob as árvores e seguravam as rédeas de seus cavalos negros. Um deles se aproxima com o cavalo e fala rapidamente com Sebastian. Logo em seguida ele se afasta de mim e sobe na sela. “Não posso ficar. Meus irmãos vão ajudar, mas preciso seguir em frente, seguir em frente, seguir.” Ele galopa para longe com os outros homens. Fico sozinha enquanto o sol se põe e o mundo se inflama. Ao acordar, o sonho ainda estava vivo e luminoso, como um quadro na minha cabeça. Olhei para o pequeno relógio ao lado da cama e suspirei. Três da manhã. Eu só queria voltar a dormir, voltar ao meu mundo de sonhos onde os beijos de Sebastian eram reais. O sonho. Sentei-me de repente, ereta, o coração disparado. “Meus irmãos vão ajudar.” Mas Sebastian não tinha irmãos. Era filho único. Seus irmãos, os cavaleiros na neve… aqueles homens sobre cavalos selvagens, o que me lembravam? Meus pensamentos se misturavam e lutavam para fazer algum sentido, enquanto fragmentos de conversas esquecidas emergiam das camadas da minha mente. “Espero que ela assombre você”, Celeste havia dito. “Mas não acredito em fantasmas, você acredita, Sarah? Sim… acho que sim… as antigas crenças… Os mortos podem voltar; os mortos podem voltar para assombrar os vivos; é o que o povo cigano diz...” Era isso, era essa a conexão… aqueles homens no sonho, eles me lembravam do rapaz viajante, o cigano que havíamos visto em cima do pônei felpudo sobre as campinas. E os irmãos de Sebastian… o que Sebastian havia me dito sobre sua 226 existência longa e incansável desde a morte de Agnes? “Vivi com alguns andarilhos ciganos por um tempo. Foram bons para mim, como irmãos.” Era uma ligação? “Meus irmãos irão ajudar”, Sebastian disse no sonho. Talvez estava apenas me agarrando a qualquer ideia maluca. Ontem minha cabeça estava cheia de imagens da mulher com o amuleto, agora me ocupava dos sonhos com Sebastian. Tudo isso era uma bobagem sem sentido por causa das minhas preocupações e falta de sono? Ou meu sonho realmente guardava algum tipo de mensagem? Havia apenas uma forma de descobrir. No domingo seguinte, Harriet correu atrás de nós assim que nos aproximamos dos portões da escola. Imaginei que estivesse andando por lá, esperando nossa chegada. — Ei, Evie — disse, ofegante. — Para onde vocês estão indo? — Lá para fora — respondi, de forma breve. — Posso ir com vocês? — As mais jovens como você não estão autorizadas a sair sem uma mestra — respondeu Helen. — Mas não é justo. De qualquer forma, elas nunca saberiam. Posso andar atrás de vocês. — Seu rosto se contorceu todo, como se ela estivesse se esforçando para não chorar. — Só quero sair daqui por algum tempo. — Não seja tola, Harriet. É impossível — falei. — Vamos indo. 227 — Olha, talvez possamos perguntar à Srta. Scratton se você está autorizada a nos acompanhar numa próxima vez — Sarah falou gentilmente. — Mas não será hoje. Por que você não volta logo para a escola e se ocupa com um livro ou algo assim? Nos vemos mais tarde. Os olhos negros de Harriet ficaram revoltos de decepção. — Ah, tudo bem — ela disse, mal-humorada, enquanto passávamos apressadas pelos portões e seguíamos pela pista acidentada que levava até a vila. Senti seus olhos perfurando minhas costas enquanto a deixávamos para trás. — Pobre Harriet — murmurou Sarah. Senti uma dor na consciência. Eu seria mais legal com Harriet assim que voltássemos, prometi a mim mesma. Brincaríamos de Scrabble9 depois do jantar sempre que ela quisesse. Deixaria ela pensar que sou sua melhor amiga. Faria qualquer coisa, mas naquele momento eu precisava chegar ao acampamento dos ciganos. Caminhamos com pressa e não demorou para atravessarmos o cemitério da igreja e chegarmos ao outro lado da vila. O campo ao lado da estrada tinha um aspecto triste e sujo. Quatro ou cinco trailers e alguns carros batidos estacionados, aparentemente de forma aleatória, na beira do campo, e aqui e ali pilhas de sucata de metal, uma cadeira quebrada e uma moto depenada aumentavam a sensação de transitoriedade e confusão. Alguém havia pendurado algumas roupas para secar num varal, e as peças batiam duras e geladas ao vento frio. Não havia carroças de madeira alegremente coloridas nem mulheres exóticas em saias brilhantes, nada parecido com a imagem 9 Jogo de tabuleiro em que os jogadores marcam pontos formando palavras interligadas por meio de pedras com letras. (N.T.) 228 dos contos de fada do povo cigano antigo. Um baixo zunido de música popular vinha de um dos trailers, e também um leve cheiro de comida. Três cavalos, amarrados à cerca com cordas grossas, fuçavam pacientemente uns aos outros, à espera de seus donos. — Você realmente acha que seremos bem-vindas? — Helen perguntou à beira do portão. Fiquei feliz por não estarmos usando o distinto uniforme da escola. Vestimos jeans e jaquetas para a nossa caminhada vespertina de domingo até a vila. — Logo vamos descobrir isso — respondi ao abrir o portão e entrar no campo. Um cão latiu e uma garota abriu a porta de uma das vans, descendo os degraus. Ela parou e nos encarou, sem dizer nada. Era a menina que tínhamos visto cavalgando. — Olá — arrisquei. — O seu… er… irmão está por aí? A garota continuou nos encarando, e então se virou e voltou para dentro do trailer. Ouvimos vozes e logo a porta se abriu novamente. O garoto saiu e nos olhou com cautela. Imaginei que ele tivesse uns 17 anos. Tinha cabelos castanhos despenteados, ombros largos e uma expressão fechada, defensiva. Cutuquei Sarah nas costas. — Sastipe — ela disse, meio hesitante. Sarah fizera um esforço para aprender algumas palavras em romani antes da nossa visita, e nos convenceu a fazer o mesmo. — Devlesa avilan. Saudações, meu amigo. Foi Deus quem o trouxe… O garoto olhou surpreso e resmungou: — Eu sei falar a língua de vocês, sabiam? — Ele nos encarou por mais algum tempo e em seguida abriu um sorriso indeciso. — 229 A pronúncia de vocês é horrível, mas valeu a intenção. Devlesa araklam tume… Foi com Deus que encontrei vocês. — Obrigada — retribuiu Sarah alegremente. — Então… podemos falar com você? — Claro. Eu não mordo. — Ele sorriu novamente. — Vi você cavalgando outro dia. Você não é ruim. É muito boa, na verdade. Sobre o que quer conversar? Sarah hesitou por alguns instantes. — Talvez pareça idiota… — Espere um segundo. — Voltou ao trailer, trocou algumas palavras com as pessoas lá de dentro, levantou o zíper da jaqueta e caminhou ao nosso lado. — Vamos para outro lugar. Minha mãe está descansando e não quero incomodá-la. Ela não gosta muito… quero dizer, será melhor assim. Descemos pela estrada, nos afastando da vila. Estávamos de repente fazendo o caminho que levava até o pequeno rio, pouco mais que um córrego, que seguia até Wyldcliffe desde as colinas. O garoto se apresentou como Cal, e dissemos nossos nomes também. — Então, o que as trouxe até o acampamento? A maioria dos moradores locais evita contato com a gente, como se fôssemos uma praga, principalmente depois de todos aqueles problemas com os animais encontrados mortos. Nunca fizemos isso — acrescentou em voz baixa. — Temos muito respeito pelos animais. — Não achamos que foram vocês. Sinto muito pelos tempos difíceis pelos quais vocês têm passado. 230 O rosto de Cal se anuviou e ele parou para se encostar na antiga ponte de pedra que abarcava o leito raso do rio. — É, bem… não me importo com o que as pessoas falam sobre mim, mas algumas garotas metidas daquela grande escola na Abadia estão aborrecendo minha irmã menor. Elas têm perturbado Rosie quando ela está com o pônei, lhe dando apelidos, tirando sarro. Passaram do limite. — Lançou um olhar desconfiado. — Vocês não são de lá, são? — Somos, mas nem todas agem dessa forma, lhe garanto — Helen respondeu. — Não gostamos muito dessas meninas também. Cal não parecia totalmente convencido. Ao saber da novidade — que éramos da Abadia —, ficou em alerta novamente. — É fácil falar. Talvez seja melhor eu ir embora. — Começou a se afastar, mas Sarah correu atrás dele. — Por favor, Cal, por favor, olhe para isto. Olhe — falou ao tirar algo do bolso. — Essa é uma foto da minha bisavó, Maria. Ela era uma cigana, como você. E esses eram seus pais. — Mostrou-lhe outra foto de um jovem e belo casal de pele escura sentado do lado de fora de um vardo10, ou vagão tradicional, uma pequena casa de madeira com rodas, bem perto de uma fogueira de acampamento. As névoas do meu sonho surgiram na cabeça novamente… — Maria foi adotada por uma família gajemuito rica — Sarah continuou. — As garotas da Abadia tornaram seus dias muito difíceis enquanto esteve por lá. Ela sabia como era se sentir assim, e eu nunca me esqueci dela. 10 Vagão típico do povo cigano, puxado por cavalos. (N.E.) 231 Nunca me esquecerei. É por isso que não somos como aquelas meninas que foram cruéis com sua irmã. O garoto pegou a fotografia em tom sépia desbotada e a examinou. Fitou Sarah por um instante. — Desculpe-me — falou em voz baixa ao devolver a foto. — Deveria ter notado. Deveria ter visto em seus olhos. De qualquer maneira, és bela o bastante para ser uma cigana. T’ave baxtalo. Você é bem-vinda aqui. Sarah ficou vermelha. — Obrigada. — Tudo bem. Vamos conversar. O que vocês querem saber? Eu me aproximei, ansiosa. — Sua família tem feito esse caminho há muito tempo? — Desde que me conheço por gente essa tem sido uma das paradas de inverno. Não faz sentido para mim, já que fica a quilômetros de distância de qualquer outro lugar. Normalmente ficamos mais próximos às cidades no inverno. No entanto, existe uma espécie de tradição na família para não se deixar passar muitos anos sem retornar a Wyldcliffe. Tem alguma coisa a ver com uma antiga promessa. — Você conhece alguém chamado Sebastian? — perguntei, com o coração na boca. Cal refletiu por alguns instantes e logo balançou a cabeça. — Não consigo me lembrar de ninguém com esse nome. 232 — Ah. — A decepção tomou conta de mim. Agarrava-me a qualquer coisa que pudesse me dar esperança ultimamente, mas é que estava muito convencida de que meu sonho tinha algum significado. — Tem certeza? Sebastian Fairfax? Um lampejo de surpresa passou pelo rosto de Cal. — Fairfax? Você quer dizer Fairfax James? — Eu… eu não sei… pode ser. Quem foi ele? Cal olhou em volta, cauteloso. — Meu pai me falou a respeito dele antes de morrer. Disse que precisava passar a tradição adiante. Fairfax James foi, bem, uma espécie de lenda para nós. Ele foi um feiticeiro, um tipo de bruxo andarilho. — Ai, meu Deus… — Fairfax viajou com a nossa família por algum tempo, nos velhos tempos, muito antes de eu nascer, se apresentando em feiras e espetáculos. Depois se meteu em alguma encrenca… não sei o que foi… e desapareceu, mas não antes de ajudar nossa família. Uma atitude digna de um irmão, meu pai falou. — Um irmão… foi exatamente isso o que Sebastian disse! Quando foi que ele conheceu sua família? — perguntei, agitada. — Isso é o que eu acho estranho. Papai lembra-se de ver Fairfax quando criança apenas, e Fairfax já tinha uns 20 anos, mas meu pai disse que meu avô também o conheceu, muitos anos antes, e Fairfax tinha a mesma idade. Ele nunca muda, se transforma por um tempo e depois desaparece. Dizem que cada geração da nossa família está destinada a conhecê-lo em algum ponto de suas vidas. É por isso que 233 continuamos voltando para cá, se porventura ele precisar de nós. — Cal lançou um olhar desafiador. — Caso ele retorne do mundo dos mortos. — É ele… Fairfax James é Sebastian. Só pode ser ele! — Mas o que ele tem a ver com você? — Cal perguntou, perplexo. — Sei que parece absurdo, mas nós o conhecemos — falou Sarah. — E ele me enviou um tipo de mensagem — acrescentei rapidamente. — Ele disse que seus irmãos ajudariam, e acho que isso tem a ver com sua família. Preciso encontrar um sinal de fogo, algo que esteja relacionado ao fogo… um totem, símbolo ou objeto. Você tem ideia do que possa ser? Cal franziu a testa e sacudiu a cabeça. — Sinto muito, não consigo pensar em nada. — Lançou-nos mais um olhar cauteloso. — Vocês têm certeza de que isso é verdade? Não estão me enrolando? — Prometo Cal, não é nada disso — Sarah se defendeu. — Juro por tudo que é mais precioso, pela memória de Maria… A expressão dele amoleceu. — Tudo bem, menina cigana. Que tal se você conhecesse minha irmãzinha? Você pode mostrar sua foto e me contar mais sobre tudo isso. Se Fairfax realmente voltar para nossa família, quero estar preparado para esse encontro. Ele estendeu o braço para Sarah, que hesitou, mas logo pegou em sua mão. — Obrigada, eu adoraria. Cal se virou em nossa direção. 234 — Não se preocupem. Eu a levarei de volta à escola antes de escurecer. — Eles caminharam em direção ao acampamento dos ciganos, e voltei com Helen para a escola. Não parava de pensar, furiosa. Foi bom falarmos com Cal e ver a luz nos olhos de Sarah ao conversar com ele, mas ainda não estava nem perto do que precisava. Chutei uma pedra no meio do caminho, completamente frustrada. Sebastian conhecera um dia os viajantes ciganos — aquilo já estava claro —, mas como podiam ajudar? E o que era o totem de fogo? Meu estômago se contraía de medo. Procurei não pensar no que poderia estar acontecendo com Sebastian: como a luz dos seus olhos estava sumindo, como os fios que o seguravam nesta vida podiam estar prestes a se romper. Eu precisava fazer algum progresso… e rápido. Havia pouco mais de uma semana para a lua nova. E aí, então, todas as minhas esperanças seriam atendidas ou aniquiladas por completo. 235 T entei de tudo. Todas as noites arriscava um feitiço diferente do Livro. Para curar doença, Para trazer chuva em tempos de estiagem, Para melhorar a memória… Sabia, porém, que enganava a mim mesma. Essas coisas talvez tivessem me impressionado há um ano, mas agora eram como brinquedos vazios. Sem o totem de fogo meus poderes eram insignificantes e o Livro não me oferecia nada, a não ser maneiras de matar o tempo. Tempo… tempo… tempo… Cada dia que passava era um novo fracasso. Não conseguia achar o totem, tampouco um jeito de parar a passagem veloz das horas. Segunda… terça… quarta… quinta… a última semana antes da lua nova estava quase no fim. Na manhã de sexta-feira, escutei um burburinho ao redor da longa mesa no hall de entrada. As garotas observavam animadas as pilhas de correspondência, conversando e rindo como gralhas ansiosas. Um enorme ramalhete de rosas vermelhas fora colocado no vaso de cristal no meio da mesa, além de fitas vermelhas fixadas ao redor de todo o hall. 236 — Para que tudo isso? — perguntei a Sarah ao passarmos pela multidão de meninas. Ela respondeu com uma careta. — O Dia dos Namorados, é claro. Elas sempre fazem um alvoroço por causa disso. — Jamais imaginei que Wyldcliffe pudesse promover essas bobagens. — A Sra. Hartle já teria exterminado esse tipo de coisa se pudesse, mas sabemos como a escola se apega às suas tradições. Nos velhos tempos, as garotas faziam pequenos buquês e poemas para seus professores preferidos, e a distribuição das flores era um ritual elaborado. Nós não temos mais isso, graças a Deus, mas as alunas ainda consideram importante ganhar cartões de Dia dos Namorados de garotos bem relacionados de Londres ou da Eton College. Celeste vai se sentir em casa. Celeste estava realmente no centro da multidão, balançando alegremente uma pilha de envelopes coloridos e falando sobre seu conteúdo. Um bando de garotas se pendurava ao redor, gritando e rindo, mas não pude deixar de notar que Sophie não estava lá e India parecia meio aborrecida. Talvez os mauricinhos que conhecia a decepcionaram. Enquanto observava aquelas garotas sorridentes, uma esperança desesperada, maluca e ridícula de que Sebastian pudesse ter me enviado uma mensagem de Dia dos Namorados me invadiu como uma flecha. Caminhei até a mesa para examinar as cartas. — Não sei por que desperdiça seu tempo olhando, Johnson — Celeste gritou, passando por mim com um empurrão triunfante. Ela estava certa, é claro, era tudo em vão… 237 — Ei… estes não são para você? — Uma garota chamada Fiona Hamilton balançou animadamente um pequeno pacote e um simples envelope branco bem debaixo do meu nariz. — Sorte a sua. Sorte a minha. Agarrei as correspondências e senti o coração afundar. Não era a letra de Sebastian… como poderia ser? Que idiotice imaginar mesmo que por um segundo que aquilo poderia ser dele. Sarah estava ao meu lado, olhando com curiosidade para o pacote e a carta. — Por que você não abre logo? — Aqui não. Vamos lá para fora. Não importava o conteúdo das correspondências, mas senti que não queria que Celeste ou qualquer outra pessoa visse do que se tratava. Sarah e eu caminhamos até o terraço. O dia estava frio e muito claro, e nossa respiração se elevava pelo ar límpido, formando pequenas nuvens. Assim que abri o envelope, uma tira de papel caiu ao chão. LADRÕES SERÃO PUNIDOS — Parece que o autor da carta misteriosa resolveu entrar em contato comigo novamente. Algo perfeito para o Dia dos Namorados — eu disse, em tom de piada, amassando a carta e jogando-a fora. — Evie, você precisa tomar cuidado — disse Sarah, em voz baixa. 238 Tentei brincar e mostrar uma confiança que não sentia realmente. — Bem, o ladrão precisa ser pego antes de ser punido, e elas não conseguiram isso ainda. — Mas ainda assim… — Então, o que será que tem nesse aqui? — perguntei brincando. — Veneno de rato? Uma carta-bomba? — Rasguei a embalagem e um objeto pesado e pequeno feito de madeira polida caiu na minha mão. Era a escultura de um cavalo, selvagem, livre e delicado. — Mas isso é lindo! — falou Sarah. — E tem um cartão também. O cartão tinha uma flor simples na frente e dentro estava escrito: “Para Evie. Feliz Dia dos Namorados. J.P.” — J.P. Então foi o Josh quem escreveu — Sarah falou baixinho. Nos entreolhamos por uma fração de segundos. — Sarah, escute… sinto muito. Nunca quis… — Não importa, não sou boba. Percebo o quanto ele gosta de você — suspirou. — Acho que no fundo sempre soube que Josh me enxerga como uma criança. Já tive tempo suficiente para aceitar que nada vai acontecer entre nós, nunca. Só porque nós dois gostamos de cavalos e ele era o único garoto por perto, e ficamos amigos e conversamos às vezes… Bem, não foi o bastante. Como disse, simplesmente não sou o tipo de garota em que os rapazes prestam atenção. — Eu não teria tanta certeza disso. Cal pareceu prestar bastante atenção em você. Sarah baixou os olhos com uma expressão misteriosa e envergonhada. 239 — Talvez sim. Não se preocupe, Evie, meu coração não está partido, apenas machucado. — Ah, Sarah… Ela me deu um forte abraço e forçou um sorriso. — Não dizem que o que não te mata, te faz ainda mais forte? Está tudo bem, juro. — Tem certeza? — Tenho sim. — Logo ficou séria novamente. — Mas... e Josh? Ele não ficará chateado? Eu não queria machucar nem partir o coração de ninguém. — Provavelmente não é nada demais. Acho que ele gosta de mim, e eu gosto dele. Ele é um cara legal, mas esse cartão de Dia dos Namorados… ele deve estar sendo apenas… — Sendo o quê? Educado? Não se engane, Evie. Tenho observado o jeito como ele te olha. Olhei para a escultura do cavalo que segurava. Deve ter levado horas para ser feita, pensei. Não era um presente qualquer. Lembrei-me do estado em que ele havia encontrado o medalhão de Martha e da corrente que colocou nele para mim, de como inventava qualquer desculpa para falar comigo sempre que eu ia aos estábulos, o modo como me olhava… Não podia mais fingir para mim mesma que Josh estava apenas sendo gentil, mas também não podia aceitar seu presente. — Por que tudo é tão complicado? — resmunguei. — Preciso conversar com ele. Se alguém perguntar por mim, diga que fui ver a enfermeira por causa de uma dor de cabeça? 240 — Claro. Caminhei lentamente pelo pátio do estábulo, torcendo para que Josh não estivesse lá e ao mesmo tempo me xingando por ser tão covarde. Eu diria a verdade, agradeceria o presente e explicaria com calma que já tinha um namorado, só isso. Porém, seria apenas uma parte da verdade e eu odiava mentir para ele. — Você está com os pensamentos longe. Levantei os olhos e lá estava Josh, bem na minha frente. Conduzia uma linda égua branca pelo pátio, com seu sorriso dourado e acolhedor. — Ah… Josh… oi… quero dizer, que linda égua. — Não fui muito convincente. — Ela é realmente muito especial. Estou cuidando muito bem dela. — De quem ela é? — perguntei, feliz por conversar sobre qualquer coisa que não fosse o Dia dos Namorados. — De uma das professoras. A Srta. Scratton. — Ah. — Então, no fim das contas, a Srta. Scratton andava a cavalo. Ela provavelmente arranjou esse cavalo para nos seguir e vigiar sempre que cavalgássemos. Tomara que quebre o pescoço. Josh amarrou o cavalo e lhe deu de beber com um balde. Depois se aproximou. — Você está bem, Evie? — Sim… claro. — É que sinto que você está me evitando ultimamente, inventando desculpas para não fazer aulas comigo. Você realmente não gosta de andar a cavalo. — Aproximou-se ainda mais e acrescentou — ou sou eu o problema? 241 — Não! Não quero que você pense isso. Eu… eu recebi seu cartão, e a escultura. É linda! — É linda, mas… não é isso o que você ia dizer? Então, qual é o “mas” em tudo isso, Evie? — Já tenho um namorado — murmurei. Josh fez uma pequena pausa e sorriu. — Isso não me surpreende. Quem é o sortudo? Alguém que já voltou para casa? — Não. — Ele é daqui? — Josh perguntou com um olhar de espanto. — Devo conhecê-lo então. — Er… não… você não irá conhecê-lo; ele… er… é difícil explicar… — Fiquei em silêncio, sem conseguir convencê-lo. — Tem certeza de que esse cara existe, Evie? Você não precisa inventar um namorado imaginário para me dispensar, sabe. Se não está interessada, posso entender uma indireta. — Não é isso! Eu realmente gosto de você, Josh, mas… — Mas você ama outra pessoa — ele disse, calmamente. — É isso? Fiz que sim com a cabeça, melancolicamente. — Me desculpe. A escultura foi um presente tão encantador. Gostei muito, de verdade. — Bem, fique com ela de qualquer forma. Talvez te traga sorte. Mais sorte do que eu tive. 242 — Josh, eu… — Acho que nós dois já dissemos o bastante. Olha, não é nada demais. Não vou importuná-la novamente, prometo. De qualquer modo, minha mãe vai voltar em breve e você não precisará mais me aguentar como seu professor durante muito mais tempo. — Vou lamentar muito, pois você tem sido ótimo. — Você também. — Ele fez que ia embora, mas voltou. — Fico preocupado com você, Evie. Seja lá quem for este cara, não me parece que está te fazendo feliz de verdade. Lágrimas saltaram inesperadamente dos meus olhos. Sebastian me proporcionou alguns momentos preciosos da mais pura felicidade, algo que nunca sentira antes, mas amá-lo também me ensinou sobre dor e medo. Como aquilo tinha acontecido? Como um único encontro casual com um garoto de olhos azuis e risonhos tinha me trazido até aqui? Ah, era muita fragilidade e egoísmo da minha parte, mas num momento de fraqueza desejei voltar a ser a sensata Evie Johnson, que ria de histórias sobre fantasmas, vampiros e espíritos do mal, e sabia que esse tipo de coisa jamais poderia existir. Queria poder contar tudo a Josh. Ele era bom, inteligente e tranquilo, e eu estava tentada a contar com sua força. No entanto, não podia revelar os segredos de Sebastian, muito menos os meus. Precisava ser forte sem a ajuda de mais ninguém. — Estou bem, de verdade. — Bem, se algum dia você não estiver, sabe onde me encontrar. Quero ser seu amigo, Evie, simples assim. Sem amarras, sem pressão. Apenas amigos. 243 — Ah, Josh, você é tão gentil. Não mereço isso. — Ei, não chore, Evie, por favor. — Ele pôs a mão no meu ombro e tentou me acalmar. — Ah vai, isso não pode ser tão ruim assim — Borrou meu rosto com seu toque e sorriu para mim. — Até chorando você fica linda. Tentei esquecer tudo aquilo e me recompor, mas Josh me segurou nos braços, o rosto estava mudado, intenso e ávido. — Alguém já disse alguma vez que seus olhos têm a cor do mar? — sussurrou. — E que seu cabelo é como fogo? Você é linda, Evie. — Estou atrasada para a aula — enxuguei o rosto e assoei o nariz. — Sinto muito por ter sido tão tola. Josh baixou os braços e se afastou. — Sinto muito também. Acho que “apenas amigos” não falam esse tipo de coisa. Esqueça. Não vou agir assim novamente. Hesitamos, nós dois, constrangidos e indecisos. — Bem, é melhor eu ir — tentei falar naturalmente. — Sim, claro. Então… vejo você na próxima aula? — É claro. Você é um bom professor… e um bom amigo. Josh sorriu mais uma vez, com uma leve tristeza nos olhos. — Combinado. Vejo você em breve. — Até mais. — Fiquei lá por um instante, observando-o ir embora, quando dei um pulo de susto. Alguém nos observava, havia uns minutos, no canto do pátio cercado do estábulo. Era Harriet, com seus estranhos olhos de idosa me encarando fixamente. Ela 244 esteve lá o tempo todo. A culpa tomou conta de mim. Eu ainda não tinha passado algumas horas com ela, como prometido. Eu me aproximei com um sorriso alegre e falso. — Oi, Harriet, o que está fazendo aqui? — Mas ela fingiu não me ver e saiu correndo. Estava tão irritada comigo mesma. Chateara Harriet e magoara Josh, tudo ao mesmo tempo. Josh. Foi aí que me dei conta. O que foi que ele dissera? Olhos da cor do mar e cabelo da cor do fogo… cabelo vermelho… o cabelo vermelho que tinha sido passado aos descendentes de Agnes. Senti sob a blusa o medalhão escondido com a mecha de cabelo da Effie, tão brilhante quanto uma chama ardente. O totem de fogo. Era isso. Josh havia me ajudado, em tempo, a solucionar o mistério. A esperança veio desabando sobre mim como a onda do mar rolando sobre a praia. Dessa vez iria dar certo. Eu iria invocar o fogo sagrado. O círculo já estava preparado e os encantamentos ditos. Segurei as mãos de Sarah e Helen enquanto as velas cintilavam no sótão como luzes no pântano. Os poderem estavam vindo ao meu encontro. Senti um choque elétrico por toda a espinha. Estava libertando minha mente, desejando ir além das dimensões do cotidiano e entrar nos reinos secretos e desconhecidos… Agnes, me ajude neste momento… Estava caindo, caindo no centro de todas as coisas. 245 Helen e Sarah sumiram do meu campo de visão. Agachei-me no chão e levantei os olhos. Estava dentro do santuário novamente, na caverna de cristal branco onde a coluna de fogo vivo queimava sem parar nem diminuir. Eu me aproximei das chamas e senti o calor me tocar, prestes a me engolir. — Deixe-me chegar até o fogo! — pedi, e a voz misteriosa ecoou novamente nos vãos do meu pensamento. Volte… volte… você não pertence a esse lugar… Abri o medalhão e tirei a mecha de cabelo. — Eis aqui minha reivindicação — falei com firmeza. — Estou aqui em nome de Lady Agnes, irmã do fogo. Este é seu símbolo, seu totem de fogo… um cacho do cabelo da sua filha. Sou filha desse sangue e tentarei alcançar agora a chama sagrada. Cobri os olhos e joguei o cacho dentro da coluna de fogo, que ardeu alto, com um brilho vermelho, bronze e laranja, igual a todos os outonos que o mundo já conhecera, e então vi a imagem de Agnes no centro do fogo, o cabelo balançando, os braços abertos como saudação. Finalmente ela se mostrava para mim; finalmente estava do meu lado mais uma vez. Provei ser merecedora do seu dom. Ao me aproximar alegremente, as chamas não me queimavam mais, e me enchiam de força e de uma luz ofuscante. Queria ficar lá para sempre, cintilando como uma estrela no céu, mas ouvi a voz de Agnes dizendo: — Vá, minha irmã, cumpra seu dever. Caí no chão e por um momento fiquei num sonho inebriante, mas logo ouvi vozes. — Evie, você está bem? Não a perturbe… deixe-a… — Levantei a cabeça e olhei em volta, meio zonza. O sótão sob o beiral parecia tão pequeno e escuro depois da 246 imensa luz e energia que acabara de testemunhar! Helen estava ajoelhada ao meu lado, sentindo meu pulso. Afastei-me dela gentilmente e me pus de pé. — Renasci. — Estendi as mãos, maravilhada. Minúsculas chamas brancas dançavam sobre as palmas das minhas mãos estendidas. Joguei as mãos para o alto e as chamas se dispersaram e se transformaram em estrelas, pássaros e flores, brilhando como joias na noite. — Você pode fazer isso… — Sarah sussurrou. Ri, muito afobada. — Posso fazer qualquer coisa agora. Vi Agnes de novo e agora ela está em mim para sempre. Nós duas tocamos o fogo e agora estou pronta para usar o Talismã. 247 O s pássaros estavam começando a chamar uns aos outros quando Sarah e eu partimos a cavalo até a Fazenda Uppercliffe na primeira luz da manhã. Iríamos buscar o Talismã. Havia uma brisa fresca e estimulante e pequenos e novos botões de flor começavam a brotar das sebes. Eu sentia cheiro de mudança no ar. A primavera não estava tão longe. Há muito tempo meu coração não estava tão leve. Pela primeira vez eu me permitia relaxar enquanto corríamos, e pensava sobre o que o futuro poderia nos reservar assim que Sebastian estivesse livre. Imaginei-o cavalgando ao meu lado em seu cavalo negro, o vento balançando seus cabelos escuros e amarrotando sua camisa. Vi seu sorriso gozador me desafiando a galopar sobre as colinas. Nós dois sem fôlego caindo dos cavalos e deitando juntinhos sobre a grama áspera, protegendo um ao outro do vasto mundo e de toda a sua crueldade... — Ei! — uma voz atravessou meus devaneios. — Espere! Paramos e olhamos em volta. Reconheci os dois cavaleiros que se aproximavam: Cal e sua irmã, Rosie. Olhei para Sarah. 248 — Eles saíram cedo. — Bem, nós também. Não há nada de errado nisso. Cal se aproximou com seu cavalo e percebi que estava feliz com aquele encontro inesperado. — Oi, Sarah. Não imaginava que você estaria de pé tão cedo. — Queríamos ver o amanhecer antes do início das aulas. Podemos cavalgar e exercitar os pôneis contanto que voltemos a tempo para o café da manhã. — Sarah sorriu. — Tudo bem com você, Cal? Sar’ shan? Viu só, estou praticando. — Você está indo muito bem. — Ele sorriu de volta. Sarah desmontou do cavalo e foi conversar com Rosie, que estava tímida e mais distante. Cal ficou contente e logo se dirigiu a mim. — Tenho uma mensagem para você. — O que é? — Imaginava que ele pudesse ter ouvido alguma coisa sobre Sebastian. Minha voz era urgente. — O que é? Conte-me! — Minha mãe… ela estava observando você da janela do trailer e disse: “Avise aquela gaje com o cabelo da cor das folhas de outono que ela corre perigo”. — Diga a sua mãe… diga que a gaje agradeceu pelo aviso, mas agora preciso ir. Há algo que preciso fazer — chamei Sarah. — Não podemos mais ficar aqui. Tchau Rosie, espero voltar a vê-la. A garotinha me encarou com um olhar direto, franco e selvagem. — Você ficou sabendo sobre ontem à noite? — perguntou de repente. — Eles voltaram… e mataram mais uma raposa. — Isso é tão doentio — falou Sarah. — Quem faria uma coisa dessas? E por quê? 249 — Todos botam a culpa na gente — respondeu Rosie. — Mamãe disse que talvez tenhamos de ir embora logo. — Mas vocês não podem! — adverti Cal. — Você disse que tinha de ficar, caso… você sabe… o que nos disse… caso Fairfax James esteja te procurando. — Precisamos cuidar da nossa gente também — resmungou Cal. — Você não imagina o que as pessoas são capazes de fazer com os ciganos quando querem eles longe. Trailers queimados. Ataques durante a noite. Não podemos pôr a vida da Rosie em risco. — Vamos torcer para que nada disso aconteça — disse calmamente Sarah. — Tenho certeza de que a polícia não vai… — A polícia? — retrucou rispidamente. — O que ela pode fazer para impedir um ataque noturno? Você precisa abrir os olhos para enxergar como é a vida real para nós, menina cigana. Vamos, Rosie, vamos embora daqui. Começaram a galopar para longe, levantando a terra macia; mas de repente Cal deu a volta fazendo um grande círculo, e parou perto de Sarah, corado e chateado. — Sinto muito, não foi minha intenção dizer aquilo. Não foi justo da minha parte, mas é que preciso proteger minha família. Preciso ser o homem da casa agora que meu pai não está mais aqui. — Entendo — disse Sarah. Cal deu um sorriso e tirou a expressão preocupada do rosto. 250 — Você compreende muita coisa. Venha ver Rosie novamente, se puder. Será bem-vinda. — Então olhou diretamente para mim. — Você não disse que precisava fazer algo? Não espere nem mais um minuto. O tempo não está do seu lado. Partiu a galope, e aquele alerta nos bastou. Cavalgamos o mais rápido possível, acompanhadas tão somente do som dos pássaros piando em saudação à alvorada. O dia estava clareando e precisávamos correr. Logo as ruínas da Fazenda Uppercliffe surgiriam à nossa frente. Descemos dos pôneis e corremos até a porta. — Algo parece diferente — Sarah comentou, ao parar na entrada da casa abandonada. — Então vamos pegá-lo o mais rápido possível e voltar para perto de Helen. — Passei por ela e fui para o canto da sala, onde tínhamos enterrado o Talismã. Fiquei de joelhos e comecei a cavar o solo, e em poucos minutos minhas mãos tocaram a lateral da caixa de lata enferrujada. Eu a puxei da terra pegajosa e forcei sua abertura. Uma chuva de pétalas de rosa empoeiradas e uma bolsa de pano caíram sobre a terra. Não havia mais nada. A caixa estava vazia. O Talismã havia desaparecido. Mais do que tudo, me senti envergonhada. Havia tomado decisões erradas e desapontado a todos. Por que imaginara que o Talismã estaria seguro em Uppercliffe? O objeto poderia ter sido roubado por qualquer uma: Srta. Raglan, Srta. Scratton ou qualquer outra mulher que nos cercava e observava todos os nossos passos. Podia ter sido tomado por montanhistas, remexendo, curiosos, as ruínas sobre as campinas. 251 Podia, ainda, ter sido encontrado por crianças que acabavam de descobrir um tesouro, como fazem as pega-rabudas, afinal achado não é roubado. Eu me odiava por ter sido tão idiota. Helen e Sarah tentaram me confortar, dividiram a culpa comigo e criaram planos para recuperar o colar, mas me sentia estranhamente distante delas. Nossa irmandade não podia me ajudar naquele momento. Era um fracasso meu, e não delas. Eu tinha traído a confiança que Agnes depositara em mim ao me legar o Talismã. E traído as esperanças de Sebastian, e também as minhas. Não havia modos de salvarmos Sebastian sem o Talismã. Não havia tempo para segundas chances. Era tarde demais, e tudo por minha culpa. Quando tudo isso acabasse, Sarah e Helen lamentariam e sofreriam, mas eu era a única que teria de carregar o peso da angústia: hoje, todos os dias, para o resto da minha vida. Para sempre. Aquele dia pareceu transcorrer como um filme antigo, lento e surreal, um borrão de sons e imagens. As pessoas conversavam e andavam ao meu redor como marionetes. As horas passavam despercebidas. Fui até a biblioteca e fiz alguns exercícios de francês para o dia seguinte. Vi Harriet, ansiosa e cansada, e a ajudei com sua tarefa de matemática. “Ah, obrigada, Evie, o que eu faria sem você?” — as marionetes flutuavam, falavam, escutavam e respondiam, mas o tempo todo eu pensava “Perdi o Talismã, perdi o Talismã, é tudo minha culpa…”. — Poderíamos ir até o sótão hoje à noite — Sarah disse após o jantar. — Procurar alguma coisa no Livro, ter ideias. Pode nos ajudar. 252 Sacudi a cabeça. O Livro e seus mistérios não poderiam mais me ajudar. Estava tudo acabado, terminado. Era o fim da história. Havia apenas uma única coisa que eu ainda precisava fazer: ver Sebastian, relatar meu fracasso e implorar pelo seu perdão. Mas tinha de ser sozinha. 253 Retirado dos documentos pessoais de Sebatian James Fairfax E stou sozinho. À beira da eternidade. Essa é minha recompensa. Meu castigo. Sozinho… sozinho na noite interminável. Em breve os Invictos chegarão para me levar. Deixe-me ir! Eu imploro… Não. Não há ninguém para me ouvir. Não há ninguém para ter pena de mim. Eu não sou nada. Dor, fogo, tristeza. Isso não é nada. Demônios na cabeça e no coração. Tentações. 254 Meu coração morreu. Restaram apenas os demônios. Minhas sombras. Meus irmãos. Estou sozinho. Havia alguém. Uma garota. Eu me lembro… Ela se foi. Eu esqueço… Seu nome, seu rosto, sua voz. Tudo perdido na escuridão. Não restaram alternativas. Nenhuma esperança. Nenhum caminho pela frente. Estou destruído. Quando eu for embora, amada minha, não cante canções tristes para mim… Minha amada. Minha querida. Uma garota de cabelos luminosos. Perdida para sempre agora. Sobraram-me apenas palavras. Esperança. Vida. Alegria. Apenas palavras. Apenas a dor e o medo são reais. Dor para sempre. Eterna. Interminável. Tudo desapareceu. É assim que termina. Sozinho no escuro… o fim… finalmente o fim… 255 F oi assim que tudo começou, descendo as escadas dos criados à noite para me encontrar com Sebastian às escondidas. E era justo terminar dessa forma também. Ao descer lentamente as escadas dos fundos, todas aquelas horas fugidias com Sebastian voltaram à minha memória: horas de amor, risadas e descobertas. Ouvi sua voz e senti o encanto dos seus olhos azuis e o carinho do seu olhar intenso. “Você parecia uma ninfa d’água dizendo suas orações… quero saber tudo sobre você… Por favor, venha me ver novamente… Quero esse momento perfeito junto de você, apenas nós dois… Nunca quis te machucar… Eu te amo, garota do mar…” Passei sorrateiramente pelo corredor empoeirado e saí para o pátio do estábulo. Não iria cavalgar, já que não poderia correr o risco de ser ouvida ou de ter uma queda. Caminharia, e para isso estava preparada, com roupas grossas e sapatos, um mapa e uma lanterna. Tinha até escondido o punhal de prata no bolso, embora não soubesse ao certo o que faria com ele. Mas aquele objeto já havia pertencido a Sebastian, e parecia oferecer uma espécie de proteção contra qualquer outro andarilho na noite. 256 Tão prática. Tão sensata. “A sã e sensata, Evie.” Pensei que a tivesse deixado para trás para sempre. Saí rápido do terreno da Abadia e fiquei em meio às sombras, me controlando para não iniciar uma corrida frenética. O céu estava encoberto por um monte de nuvens lentas. “Sobrevivo até a lua nova”, Sebastian me dissera. Amanhã à noite a lua nova surgiria e a Srta. Raglan assumiria o controle da congregação, pronta para me atacar. “Que venham”, pensei. Não possuía mais o que elas queriam. Não poderia lhes dar o Talismã agora. Mas não queria perder nem um segundo pensando na congregação. Não as deixaria fazer parte desta noite, a noite em que Sebastian e eu diríamos adeus. Ao caminhar pelas touceiras ásperas da campina íngreme, os caminhos conhecidos brilharam à luz das estrelas, selvagens, solitários e livres. Deveria sentir medo lá fora sobre as campinas, sozinha à noite, mas não sentia. Agora, eu fazia parte desse lugar. Não temia ou odiava mais essas colinas desertas onde Agnes, Effie e Martha caminharam um dia. Agora, de um jeito profundo e único, Wyldcliffe era minha casa e Sebastian, o fim da minha jornada. De repente, um grito alto e desumano rasgou o ar, vindo da vila, o grito desesperado de um animal em sofrimento. Abaixei instintivamente, o coração disparado. O que seria aquilo? Uma raposa pega em uma armadilha ou um filhote de coelho apanhado por uma coruja? Ou algo ainda mais sinistro? Um ritual de matança: sangue, pele, ossos dilacerados e espalhados durante a noite? 257 Agora eu sentia medo. Esperei agachada e com dores no corpo pelo que pareceu durar uma eternidade, mas o único som que ouvia era o do vento na grama. O céu sobre mim parecia interminável e a terra parecia girar sob meus pés, o ventou cantando sua canção de saudade sem fim. Não podia esperar para sempre. Precisava continuar. Olhos me observavam no escuro, alguém atrás de mim me seguindo pelas campinas… Comecei a correr, seguindo em frente até minha respiração se transformar em facas nos pulmões e minhas pernas tremerem. Corri até avistar as árvores majestosas que cercavam o hall. Consegui. Tinha chegado, finalmente. Passei pelo monumento de granito feito para Sebastian, semienterrado na encosta sobre a sua casa. Não parei para olhar. Não queria ler aquelas palavras novamente: “Em memória de um filho amado… Deus o abençoe”. Parei para respirar fundo o ar frio e tentei me acalmar. Forcei-me a olhar para trás. Não, não havia mais ninguém ali. Estava sozinha e pronta para encarar essa última tarefa. Um muro baixo separava o terreno das encostas vizinhas. Era fácil pulálo e contornar o lago para chegar aos fundos da casa, onde já estiveram um dia as antigas cozinhas e os escritórios domésticos. Rangendo os dentes, peguei uma pedra e quebrei a vidraça de uma das janelas baixas, depois forcei sua abertura e pulei para dentro. Liguei a lanterna e segui tateando as coisas, ao longo do corredor silencioso. Ao subir devagar a escadaria atapetada, os retratos empoeirados me encaravam com ar de reprovação. Eu era uma ladra, uma intrusa, uma estranha, mas meu coração pertencia 258 àquele lugar. Adentrei mais e mais o escuro e finalmente cheguei ao pé da escada secreta que levava ao esconderijo de Sebastian. — Sebastian? — chamei, carinhosamente. — Sebastian, sou eu, Evie. O silêncio era tão profundo e gelado quanto um poço. Comecei a subir, iluminando tudo à minha frente até alcançar o topo. O minúsculo espaço do sótão estava cheio da mesma desordem, com cortinas, mobília e equipamentos quebrados, mas o pequeno sofá estava vazio e o ar, parado. Apontei o feixe de luz para o canto do quarto. Sebastian não estava lá. Havia uma pilha de papéis sobre a mesa. Percebi que havia páginas e mais páginas dedicadas a mim: lindas cartas de amor aos pedaços, o diário do seu tormento. Examinei-as ansiosa. Eu te amo e por isso devo lhe contar a verdade. Você sabe de tudo agora, Evie… Li aquelas folhas avidamente, sofregamente, e logo fui até a última página. A letra era irregular e mal escrita, como se tivesse sido muito doloroso para Sebastian até mesmo segurar a caneta: Sobraram-me apenas palavras. Esperança. Vida. Alegria. Apenas palavras. Apenas a dor e o medo são reais. Dor para sempre. Eterna. Interminável. Tudo desapareceu. 259 É assim que termina. Sozinho no escuro… o fim… finalmente o fim… Enquanto meus olhos devoravam aquelas palavras, meu coração se quebrava em dois. No fim das contas, era tarde demais. 260 A gora a casa parecia cheia de perigos ameaçadores e anônimos. Estava sozinha e Sebastian tinha ido embora. Onde ele estaria? Teria já partido para o fim de sua jornada tortuosa e desaparecido deste mundo completamente? Eu não podia acreditar nisso… não queria acreditar. Eu teria percebido, certamente teria recebido algum sinal, alguma mensagem. Talvez ele tenha, como um animal, rastejado e se enfiado em algum canto solitário para enfrentar o fim, seus momentos finais antes de ser condenado à servidão eterna pelos seus mestres. Ou talvez o fim ainda não tivesse chegado e ele estava deitado e doente em algum dos outros quartos, desvanecendo enquanto os espíritos demoníacos pairavam sobre seu corpo desamparado, preparando-se para o ataque final. Tirei o punhal do bolso, segurando firme, e desci lentamente as escadas. — Sebastian? Sebastia-a-an! — Minha voz falhou e foi engolida pela escuridão. Desci até o térreo e passei rapidamente pelos imponentes salões: uma sala de desenho com espelhos cobertos por lençóis brancos e um brocado de ouro fosco; uma opulenta sala de jantar vermelha com uma longa mesa de mogno, onde ninguém nunca mais 261 jantaria; uma sala de música, onde um piano aguardava o toque de mãos há muito tempo mortas; e a biblioteca, revestida com mil livros. A biblioteca. Hesitei por alguns instantes na porta, que estava entreaberta, uma luz oscilante brilhava lá dentro. Abri a porta lentamente e entrei. O fogo queimava na lareira. Os livros, as mesas, as poltronas de couro, tudo permanecia igual. Me aproximei do fogo e olhei os retratos dos pais de Sebastian que pendiam sobre a abóbada esculpida da lareira. — Se vocês puderem me ouvir, por favor, me ajudem — implorei. — Eles não podem te ouvir. Sufoquei um grito na garganta e girei o corpo. Lá estava Sebastian, parado do outro lado da sala, os olhos ardendo. Havia sangue em seu rosto e sua respiração estava agitada. Ele parecia emitir uma sombra, uma aura negra que sugava vida, luz e esperança. Porém, ali estava ele, ainda havia tempo… — Sebastian! — falei aos soluços e dei um passo em sua direção, mas ele levantou o braço, como se fosse um escudo. — Não me toque! Não se aproxime. — Por que não? O que está acontecendo? — Meu destino. Em breve, muito em breve serei… um demônio. Estou quase lá. Pensei que enlouqueceria de tristeza, medo e culpa, e me atirei em uma das poltronas baixas em frente ao fogo. — Sinto muito, Sebastian, sinto tanto. Vim lhe dizer que tentei e fiz o que pude, mas falhei. 262 — Você falhou — repetia com uma voz cadavérica, fantasmagórica. — Você sente muito. — Olhou ao redor e seus olhos diminuíram. — Minha memória… havia uma garota… como você… uma garota do mar. Ela ia me salvar. É tarde demais. Até a meia-noite de amanhã não serei mais deste mundo. — Cambaleou para frente, protegendo os olhos, suspirando como uma criança. — Tenho tanto medo. Não suportava vê-lo daquele jeito. Estava tão convencida de que iria salvá-lo que não tinha me permitido pensar que falharia. Até mesmo agora, não aceitava desistir. — Vou salvá-lo, Sebastian. Vou encontrar um jeito, temos mais um dia… temos o amanhã. — Era você então? — Seus olhos se fixaram nos meus. — Você é… aquela garota? — Sim, sou eu, Evie. Ah, Sebastian, não se lembra? Ele pôs a mão na cabeça e soltou um grito medonho: — Evie… Evie, é você… — Logo em seguida voou pela sala e me tomou nos braços, agarrando meu corpo como se nada mais fosse nos separar. — Você está aqui, você voltou. Ah, meu Deus, não me deixe nunca mais. — Não vou deixá-lo, prometo — respondi alegremente, mas a visão de seu rosto esquelético me trouxe de volta à realidade. — Sebastian, preciso lhe contar uma coisa. É sobre o Talismã. — Não fale sobre isso! Se você soubesse como isso tem atormentado meus sonhos, mas fiz uma promessa, não fiz, Evie? Vou desvenecer para que você possa viver. Eu jurei. Escravidão eterna em troca da sua vida. — Beijou minha testa e se afastou com um sorriso torto. A luz vermelha da lareira parecia brilhar em seus olhos e logo seu 263 rosto se modificou. Encarou-me de um jeito estranho, não havia mais reconhecimento em seus olhos. — Um belo acordo, de fato. — Sebastian… — Sebastian, Sebastian — repetiu, em tom de deboche. — Você veio para assistir aos meus últimos momentos? Para se regozijar por eu ter mantido minha promessa? — ele riu. — Mas eu não vou mantê-la, não quero desvanecer. Dê-me o Talismã. — Não posso, não estou com ele, era isso o que eu tinha para lhe dizer. O Talismã se perdeu… — Mentirosa! — Prendeu-me contra a parede, como se estivesse possuído por uma grande fúria. — Entregue-o para mim! Minha última e única esperança. Escaparei desse tormento, ainda que só agora, na minha última e derradeira hora. Serei o destruidor e não o destruído. Vou matá-la para poder me salvar. — Não, Sebastian — supliquei. — Não! — Eu não compreendia até então — falou rispidamente. — Não conhecia esse tormento, mas, agora que consigo ver dentro do abismo, não escolho ser um escravo. Não condenarei a mim mesmo, não vou definhar e desvanecer. Eu me tornarei um dos poderosos Invictos e viverei como um rei na noite eterna. E você vai me ajudar, como havia prometido. Me dê a herança que Agnes lhe deixou. — Não posso… — Você quer dizer que não vai me entregar? Deveria ser meu, de qualquer forma, Agnes gostaria que o colar ficasse comigo… 264 Sebastian colocou as mãos no meu pescoço, procurando pelo Talismã e me segurando de forma cruel. — O que é isso? — gritou ao ver o medalhão de Martha. — Onde está o Talismã? Como você… você se atreve a me enganar… a me trair? Desesperada, procurei o punhal no bolso para tentar me defender, mas ele era rápido demais para mim. Logo tirou o objeto da minha mão com um puxão violento e aflito e pressionou a lâmina contra minha garganta. — Você vai me entregar o Talismã, não esse lixo inútil. — Sebastian arrancou o medalhão do meu pescoço e o atirou com raiva sobre as brasas da lareira. De repente uma chama estonteante saiu da lareira e uma voz reverberou: — Estou com você, minha irmã… Enxerguei um círculo de fogo branco e brilhante na minha mente e ouvi Agnes dizer a palavra de poder. E então a repeti em voz alta e uma barreira de chamas surgiu ao redor como árvores luminosas. Sebastian foi jogado para o outro lado da sala. Ele estendeu a mão para mim novamente, gritando: — Não, não, não! Volte! — Mas o fogo me lançou para longe dele como uma estrela cadente, enquanto era levada para além dos limites do mundo e para um mar infinito de luz… Ao abrir os olhos, me vi encolhida ao lado dos portões de ferro batido que levavam até a escola. — Não, não, não… — eu soluçava. Não, não, não… Volte, volte, volte… 265 Mal sabia onde estava e o que dizer. A única coisa que sabia era que Sebastian finalmente me traíra e que nosso amor estava no fim. Existem muitos tipos de traição. As pequenas: a palavra indelicada, a risada pelas costas, as pequenas mentiras. E as traições que destroem corações, arruínam mundos e transformam a poderosa e encantadora luz do dia em poeira amarga. 266 O s pássaros já estavam acordados e o céu clareava. Obriguei-me a levantar e ouvi o som leve de cascos na pista. Por um segundo delirante imaginei que fosse Sebastian se aproximando para me encontrar, mas avistei a figura conhecida de Josh, cavalgando até a escola com seu cavalo cinza para o começo de um novo dia. Ele desceu rapidamente do animal ao me ver. — Evie, que raios você está fazendo aqui? Qual é o problema? Atirei-me em seus braços e comecei a chorar, como se me afogasse em tristeza. — Calma, calma, Evie, está tudo bem. Estou aqui. — Ele me embalou carinhosamente, como se faz com uma criança, e aos poucos a tormenta foi passando. Minhas lágrimas secaram. — Eu… eu sinto muito, Josh — balbuciei. — É melhor eu voltar para a escola. Estarei encrencada se descobrirem que não estou lá. 267 — Você já não está em encrencas maiores que essa? O que está acontecendo, Evie? Acho que você anda às escondidas para ver esse seu namorado. Se ele estiver te chateando… — Não — interrompi imediatamente. — Não é nada disso. Ele… ele não tem culpa. — Então qual é o problema? — Queria poder te contar, mas você vai me achar maluca. — Tente. Observei seu rosto sincero e reparei que havia uma real preocupação em seus olhos. Desejava poder abrir meu coração. — É que… estou preocupada com meu namorado. Ele… bem, ele está doente, e ando muito preocupada. Não sei o que vai acontecer. — Sinto saber que ele está doente, mas não está recebendo nenhuma ajuda? Os pais não estão cuidando dele? Eu não disse nada. Não queria mentir para Josh, mas era impossível contar a verdade. Caminhei em direção à escola, com frio, cansada e infeliz. Josh me seguiu com seu cavalo. — Eu sei que você não quer me contar, Evie, mas gostaria que não tivesse que manter segredo de tudo, como agora. — Olhou para as colinas que circundavam a escola. — Este lugar sempre esteve repleto de segredos, e não estou falando apenas das histórias sobre Lady Agnes e seu fantasma. Há outros boatos também. Coisas sinistras. Porém, a verdade acaba aparecendo, mais cedo ou mais tarde. 268 — Não é apenas uma simples fofoca? — perguntei, exausta. — Não tenho tanta certeza. Dizem que existe um tipo de culto misterioso instalado aqui… mulheres fiéis que seguem uma mestra pagã, como se fosse uma congregação. — Uma c-congregação? — Olhei para ele, corada e surpresa. — Evie, tenho razão, não tenho? Você está envolvida nisso tudo? Você corre perigo? — V-você não pode acreditar em todas essas coisas — gaguejei, tentando esconder minhas emoções. — Vivi nessas colinas minha vida inteira, e sei que estão cheias de mistério, como as estrelas, a chuva e o mar. Sabemos tão pouco, na verdade. Aprendi que tudo é possível. — Sim — sussurrei. — Então, quem é esse garoto que você está visitando? Ele tem alguma coisa a ver com essas mulheres? Sentia-me tão dividida. Queria contar a ele, mas não podia. — Claro que não — gritei. — Olhe, realmente preciso voltar para a escola. Se alguém me vir, direi que levantei mais cedo para caminhar. Muito obrigada Josh, vejo você mais tarde. Havíamos chegado ao pátio do estábulo. Virei-me para ir embora, mas ele pegou na minha mão e delicadamente me puxou para perto. 269 — Olhe, Evie, sei que seu coração está em algum outro lugar, mas quero que saiba que você pode me procurar se precisar de ajuda. — Ele me olhou como se quisesse ler meus pensamentos e sorriu. — Percebi que ainda está usando o medalhão. Coloquei a mão automaticamente no pescoço. — Ah… sim… Mas eu tinha visto a joia ser lançada ao fogo e manchada pelo calor. A corrente havia se quebrado, mas agora estava inteira novamente, e o pequeno medalhão estropiado repousava tranquilamente sobre minha pele. Mais um mistério. — Evie… ah, Evie, graças a Deus… por onde você esteve? — Sarah e Helen chegaram correndo. — Você está bem? — Ela está cansada e chateada — Josh logo disse. — Deixarei que cuidem dela. — Ele partiu depressa, assobiando baixinho. Sarah me levou até o estábulo aquecido da Bonny. — Acordei cedo e simplesmente tive a certeza de que você não estava na escola. — Estávamos muito preocupadas com você. O que aconteceu? — Helen perguntou. Contei tudo, revivendo cada momento doloroso da cena com Sebastian. — No fim das contas, Sebastian não me quis. Ele só queria saber do Talismã. — Eu tentava não falar com voz trêmula. — E agora, hoje é o último dia dele. Pensei que seria diferente, mas foi tudo em vão. O que aconteceu entre nós… ele esqueceu de tudo, esqueceu até mesmo que já me amou um dia. E agora… agora vai acontecer 270 exatamente como ele disse. Sebastian vai se tornar um… — Não consegui dizer aquela palavra e comecei a chorar novamente. Helen pegou na minha mão. — Lembre-se de que existem outras forças atuando. Não conseguimos enxergar a situação toda. Ainda não é tarde demais. — Como a Agnes disse, até mesmo a morte não é o fim de tudo — Sarah acrescentou. — Mas não estamos falando da morte, estamos? — perguntei, quase esmagada pela dor. — Agnes morreu, mas sabemos que continuou sua jornada. Ela vive com luz no outro mundo, como havia planejado o Criador. Mas Sebastian… — Respirava com dificuldade, mas me forcei a dizer aquelas terríveis palavras. — Sebastian irá se transformar em um demônio por toda a eternidade, e isso está acima das orações e esperanças. Noite eterna, sofrimento eterno, perdido para Deus, para a humanidade. Perdido para mim. Não fale comigo sobre a morte! A morte é um presente, uma passagem e uma libertação. Mas isso… isso é um mal superior à morte! Ficamos em silêncio e mais uma vez fiz um esforço para falar. — Desculpem-me, mas não há razão para falarmos de Sebastian. A lua nova irá surgir e tudo estará acabado. Pensei que ele me amasse e que eu poderia salvar sua alma imortal, mas me enganei duas vezes. Obrigada por tentarem me ajudar. Vocês foram incríveis. — Ainda estamos aqui para te ajudar, Evie, se tiver algo que possamos fazer — falou Sarah. 271 — Irmãs até o fim — acrescentou Helen. Não havia mais nada a dizer. Atravessei o pátio do estábulo e segui até o quarto para me trocar. As outras garotas já tinham saído para o café da manhã. Chegaria atrasada na aula, mas não estava nem aí. O que importava agora? Precisava aprender a viver novamente sem Sebastian, sem esperança, sem amor. 272 T udo estava calmo no terceiro andar, a não ser pelo ruge-ruge de uma vassoura enquanto uma das faxineiras varria o chão do corredor. Passei por ela e fui direto ao meu quarto. Abri a porta e parei, espanyt6666666666b vvvvvvvvvvvvvvvvvvvvastada. Alguém estava inclinado sobre o pequeno armário ao lado da minha cama, mexendo em todas as minhas coisas pessoais. Era Harriet. — O que você…? Sobre a cama havia uma pilha de cartas do papai, minhas preciosas fotografias de casa, e várias folhas de papel com letras pretas e pequenas — a letra de Agnes. Seu diário havia sido rasgado em pedaços e espalhado como folhas ao vento. — Ei! Pare! O que você pensa que está fazendo? — Corri para perto de Harriet e a afastei. — Estava procurando meu colar — choramingou. — Disseram que foi você quem o pegou de brincadeira daquela vez que ele sumiu. Encarei Harriet com espanto. 273 — Por que diabos eu faria uma coisa dessas? É claro que não estou com seu colar! Quem lhe disse isso? — Celeste. Ela disse que viu você escondendo o colar no armário. — Celeste? Celeste?! — berrei. — Você prefere acreditar nela depois de tudo o que fiz por você? — Todo o meu medo e toda a minha tristeza transbordaram e se derramaram como um veneno. — Como se atreve a mexer nas minhas coisas sem perguntar? E olhe o que você fez com esse livro… isso é totalmente insubstituível. Nunca vou te perdoar por isso! — Juntei os pedaços do diário de Agnes com as mãos trêmulas e tentei tirar as dobras das páginas rasgadas. Harriet se sentou na cama com os ombros caídos e a cabeça baixa. — Desculpe-me, Evie. Não sei o que me deu. — Ela começou a se queixar, cheia de autopiedade. — Eu realmente não me sinto bem: escuto coisas, não consigo dormir. Tem essa voz na minha cabeça o tempo inteiro… — Ah, fique quieta! — Interrompi, rispidamente. Nunca, jamais eu tinha ficado tão brava com alguém. — Mas, Evie… Saí do quarto ainda tremendo de raiva. Nunca tinha gostado daquela garota, mas me forcei a ser gentil, a ajudá-la, e como ela me retribui? Depois de todo aquele papo de querer ter alguma ligação com a Agnes, de ser minha amiga, de ser sozinha e de ouvir vozes… tudo isso era um monte de lixo de autoindulgência e busca de atenção. Já estava cheia daquilo. Ela veio atrás de mim. — Por favor, Evie, preciso te contar. Está piorando… estou assustada… 274 — Me deixe em paz! — Mas preciso falar com você, e você disse que eu podia… Olhei para ela com ódio do seu rosto tímido e pálido, e dos seus olhos assustados. — Não quero falar com você nunca mais. — Como assim? — perguntou, perplexa. — É isso mesmo. Vá encontrar as coisas de outra pessoa para destruir, Harriet, não quero que você se aproxime de mim nunca mais, está claro? Seu queixo caiu e sua pele sem cor ficou corada com manchas vermelhas. Ela estava franzida, imprestável e completamente patética. Quando minha raiva começou a diminuir, ela caiu em lágrimas, me empurrou e desceu correndo e meio atrapalhada a escadaria de mármore. — Harriet, espera… Era tarde demais. Eu estava esgotada e secretamente envergonhada de mim mesma. Me lembrei do diário rasgado que eu ainda segurava e fui tomada por uma onda de autopiedade. Não aguentaria ir para a sala de aula naquele momento. Corri até a alcova acortinada que dava para as escadas secretas e me tranquei nos aposentos dos antigos criados, isolada do resto da escola. Tateando no escuro, subi os degraus estreitos até o sótão e entrei no local secreto de estudos da Agnes. Me sentei à mesa e apoiei a cabeça com os braços; permiti sair deste mundo ao cair no abraço de um sono profundo e sem sonhos. Não sabia onde estava quando acordei, e por um momento pensei estar de volta ao lar, na casa de campo, mas ao tentar acender uma vela eu me lembrei de tudo. O fardo 275 da infelicidade se instalou novamente, como um grande peso. Fiquei observando a chama dançante da vela e percebi que não tinha poder sobre o que estava sentindo. Era obrigada a viver assim agora, com toda essa dor. As mãos trêmulas, os olhos irritados e o estômago doendo, mas eu precisava continuar vivendo. Tinha de comer, dormir, estudar e conviver com outras pessoas. Não tinha escolha. Eu havia lido livros e revistas sobre garotas que “não podiam viver” sem seu namorado perfeito, mas sabia que não era assim que funcionava. Até mesmo nos momentos em que você está tão infeliz que nada mais parece real, a vida não para. Olhei ao redor do pequeno aposento entulhado de objetos da Agnes e imaginei se voltaria lá algum dia. Os frascos de ervas, velas e ingredientes secretos não me deram o que eu buscava. O Caminho Místico falhou comigo, ou talvez eu tenha falhado com o Caminho Místico. Encontrei um pedaço de seda brilhante em uma das prateleiras e cobri os fragmentos do diário da Agnes com ele. Não precisava mais daquilo. Ao abrir a gaveta da mesa para esconder o pequeno embrulho, lembrei que tínhamos escondido o Livro naquele mesmo lugar. Hesitei por alguns instantes, mas peguei aquele volume pesado e encadernado com couro. As letras prateadas da capa pareciam brilhar como pedaços de luar. Um caminho de cura e poder… e eu precisava tanto de cura. Folheei as páginas e o Livro abriu-se em uma determinada página por conta própria. Observei a imagem de um anjo lado a lado com um esqueleto encapuzado. O dom da morte… Por um único e terrível instante, a imagem de Harriet deitada e ferida na base da escadaria de mármore surgiu na minha mente. Eu podia escolher pular e cair sobre o azulejo preto e branco, me lançar como um peão sacrificado em um grande jogo de 276 xadrez. E, então, logo a dor terminaria. Eu nunca mais machucaria ninguém. Fechei o Livro com força e o enfiei na gaveta junto com o diário de Agnes. Não. Jamais faria isso. Aquele não seria o fim da minha história. Precisava continuar vivendo, não importava o tamanho da dor, e Sebastian também tinha de enfrentar seu destino agora. Olhei o relógio. Eu havia dormido o dia inteiro. Já estaria escuro lá fora, a noite mais escura da minha vida. A lua nova nasceria como uma promessa prateada. À meia-noite, Sebastian entraria no mundo das sombras para sempre, e não havia nada que eu pudesse fazer. Levantei e desci as escadas lentamente, voltando para a escola. Voltando para a realidade. Sarah e Helen conversavam baixinho em frente ao fogo no hall de entrada quando cheguei à base da escadaria de mármore. Elas olharam ansiosas para mim e me levaram até a lareira incandescente. — Você está tão gelada! — falou Sarah. — Dissemos que você foi até a enfermaria por causa de uma dor de cabeça hoje de manhã. Tomara que não verifiquem nada em relação a isso. Ah, Evie, sentimos tanto… A grande porta da frente se abriu de repente e uma rajada de vento e de chuva respingou por toda a soleira. Uma tempestade se formava lá fora e as árvores balançavam com a força do vento. — Feche aquela porta, Evie! — ordenou a Srta. Hetherington, que passava pelo hall naquele exato instante. — Vai ser uma noite e tanto. Fechei a porta, mas não antes de vislumbrar o fino arco da lua, voando alto por trás das nuvens deslizantes. 277 Andamos sem rumo por um tempo e depois fomos até a biblioteca na esperança de encontrar um lugar silencioso para conversar antes de o sino tocar avisando a hora de dormir. Fiquei contente em ver a biblioteca vazia e me lembrei vagamente de um recital de música que estava sendo realizado na escola naquela noite. Imaginei que a maioria das alunas tivesse ido para lá depois do jantar. — Você não comeu o dia todo, Evie. É melhor comer um pouco disso. Sarah me deu uma barra de chocolate. Não sentia fome, mas tentei comer um pouco para agradá-la, enquanto Helen olhava distraída para o vazio. Não havia nada a dizer, nada a fazer, e nenhum lugar aonde ir. Era como esperar por más notícias em um hospital ou ficar ao lado do telefone temendo seu primeiro toque. A cada minuto que passava, uma pequena voz na minha cabeça começava a sussurrar: “Você vai ficar aqui mesmo? Ainda há tempo. Tempo suficiente para um milagre. Tempo para fazer alguma coisa”. “Não há nada que eu possa fazer” — respondi desanimada para mim mesma, mas a voz surgiu novamente, em um ciclo interminável. “Mas você vai mesmo ficar sentada aqui? Ainda há tempo… tempo… tempo…” O relógio da biblioteca bateu nove horas e finalmente acordei do devaneio. Notei que o som do vento lá fora havia aumentado, parecia uma fera raivosa espreitando a escola. Ouvimos um estrondo abafado. Sarah olhou para cima. — Parecem telhas caindo. É uma tempestade bem forte. 278 A porta se abriu e uma jovem menina entrou agitada e olhando tudo ao redor, procurando por alguém. Ela usava um uniforme igual ao da Harriet — Er… você é Evie Johnson? — Sim, sou eu. — Então isso é para você. — Ela me entregou um bilhete dobrado e saiu apressada. Um poderoso estrondo de trovão sacudiu o edifício e as luzes piscaram e se apagaram em seguida. Ouvíamos os sons de vozes assustadas e gritos nos corredores e nas salas afastadas no instante em que a escola foi tomada pela escuridão total. — É uma falta de energia — falou Helen. — Espere. — Procurou na bolsa por uma lanterna pequena e a ligou. — Agora sim, está melhor. Acho que os funcionários vão providenciar velas e outros utensílios até a energia voltar. — Devemos ir até lá e ver se precisam de alguma ajuda com as menores? — perguntou Sarah. — Algumas delas devem estar com medo. — Espere, deixe-me ler este bilhete primeiro. — Iluminei o papel com a lanterna da Helen e examinei aquelas palavras rabiscadas. Querida Evie, Depois do que você me disse nesta manhã não posso mais continuar vivendo. As vozes na minha cabeça estão cada vez piores e eu não sei mais como continuar. Lembra quando eu disse que queria ir até as colinas, adormecer na neve e não acordar nunca mais? A neve foi embora, mas ainda é frio ao lado do túmulo de Agnes. Tenho uma faca. Dizem que você só precisa fazer um pequeno corte e isso é suficiente. 279 Depois é só esperar pelo fim. Adeus. Não vou importuná-la mais. Sinto muito tê-la desapontado. Harriet Templeton — Ah, meu Deus… — Eu não podia acreditar. Quase desmaiei ao ler o bilhete novamente, tentando encontrar sentido naquilo tudo. Harriet não podia continuar vivendo… Agora me arrependia amargamente das duras palavras que disse a ela, mas como poderia imaginar que ela ficaria tão desesperada? — Ai, meu Deus… precisamos fazer alguma coisa. Preciso ajudá-la. — Devemos chamar a polícia? — perguntou Helen, seus olhos redondos e aflitos sob a luz da lanterna. — Ou alguém, um médico talvez? — As linhas de telefone não vão funcionar sem energia — alertou Sarah. — E quanto aos funcionários… alguma mestra… — Não! — falei com firmeza. — Não podemos confiar em ninguém. Elas não se importam com as garotas e explicar o que aconteceu só vai causar ainda mais atraso. Nós mesmas devemos ir. Se Harriet saiu há pouco tempo talvez a gente consiga impedir que ela faça algo estúpido. Podemos trazê-la de volta à escola antes que alguém descubra alguma coisa, ainda mais com toda essa confusão por causa da tempestade. Depois entraremos em contato com sua mãe, afinal é dela que Harriet realmente precisa. De repente eu também precisava da minha mãe. “Por favor, me ajude”, pedia em silêncio enquanto andávamos apressadas pelos corredores sem luz até uma das muitas 280 entradas laterais. Passamos pela chapelaria e pegamos alguns casacos aleatoriamente dos pregadores e seguimos depressa para fora. A chuva açoitou meu rosto e o vento gelado me deixou sem ar. A tempestade estava devastando tudo ao nosso redor enquanto avançávamos pela longa alameda que dava para os portões de ferro batido e para a vila mais à frente, onde estava o túmulo de Lady Agnes, debaixo dos teixos do cemitério. Todos os corajosos mensageiros da primavera que se anunciaram nos últimos dias — os minúsculos brotos verdes, as primeiras folhas trementes — ficariam em pedacinhos depois daquela noite. “Por favor, faça com que cheguemos a tempo”, implorei. Não fui capaz de salvar Sebastian, mas talvez pudesse ao menos alcançar Harriet, a pobre e triste Harriet com sua mente doente e perturbada. Assim que nos afastamos o bastante da escola, Helen nos envolveu com seus poderes e logo em seguida já pisávamos no cemitério solitário. As árvores negras balançavam com a violenta ventania e as pequenas casas da vila mais à frente estavam cobertas pela escuridão. — Harriet? Harriet! Apenas o lamento do vento e o gemido das árvores como resposta. Passamos pelas fileiras de lápides inclinadas e chegamos a uma sepultura isolada, afastada de todas as outras. Era um túmulo antigo feito de pedra, e sobre ele havia a estátua de um anjo. O rosto do anjo foi se desgastando ao longo dos anos, e agora olhava para baixo com uma expressão vazia, segurando um rolo de pergaminho esculpido com uma simples inscrição: 281 LADY AGNES TEMPLETON, BEM-AMADA DO SENHOR Harriet estava em pé na chuva de costas para nós e encarava, imóvel, o anjo. Caído aos pés da estátua como um moribundo, e olhando para ela com horror, estava Sebastian. 282 S — ebastian? Ele ergueu a cabeça e mostrou seu rosto branco e desfigurado para mim. Não sabia o que pensar, sentir ou fazer. Fiquei paralisada por alguns segundos. Sebastian levantou a mão e apontou para Harriet, balbuciando: — Não… não… não… — Harriet, o que está acontecendo? — gritei. — O que você está fazendo? — Harriet me olhou com um sorriso estranho no rosto. Ela segurava o punhal de prata de Sebastian e o pressionou levemente contra o pulso. — Não… espere! — Sarah gritou, mas Harriet deixou a lâmina cortar sua pele. Uma única gota de sangue caiu e tocou o túmulo de Agnes. O rosto dela começou a se contorcer, os olhos girando, e um ruído abafado saiu das profundezas de seu ser: — Eu não sou a Harriet… — O ar que saiu da sua boca se espiralou e ficou denso com o vento, feito fumaça. — Eu sou a Celia… Hartle. A fumaça cresceu até virar uma bolha cheia de fogo cintilante. Harriet gritou e caiu inconsciente no chão, e então a Sra. Hartle surgiu em meio à densa nuvem, 283 terrivelmente magra e com muitas cicatrizes, mas absurdamente real. Ela estalou os dedos e o punhal de prata voou das mãos de Harriet para as dela. — Então, cá estamos novamente — disse, com voz suave. — A Alta Mestra e suas alunas dedicadas. Cambaleamos para trás, atordoadas e horrorizadas. Chamei por Agnes mentalmente, com fervor, na tentativa de invocar o fogo e atacar nossa inimiga, mas a Alta Mestra riu como se pudesse ler meus pensamentos. Balançou o punhal com rapidez, formando desenhos no ar, que se transformaram em cordas e amarraram nossas mãos atrás das costas. Ficamos de joelhos diante dela, e uma névoa pareceu sufocar minha mente e minha vontade. Tanto o fogo quanto a água estavam fora do meu alcance, eu estava impotente diante do olhar hipnótico da Sra. Hartle. — Querida Evie — ela murmurou —, tão gentil, atenciosa, tentando salvar a pobrezinha da Harriet… quando esse tempo todo ela era minha serva, e não sua amiga. Ah, você me enfraqueceu no semestre passado, admito. Foi muito bem naquele dia, foi algo impressionante. — Falava calmamente, mas sentia sua raiva escondida, como uma serpente, enquanto acariciava a cicatriz do rosto. — Mas mesmo tendo me enfraquecido, consegui permanecer em esconderijos da Wyldcliffe até você voltar, trazendo essa garota patética com você. Foi muito fácil entrar na sua mente fraca e no seu corpo e deixar suas vontades à mercê das minhas ordens. Ela me alimentou sacrificando animais que usei em antigos rituais e bebendo o sangue deles até minha completa recuperação. E a querida Harriet foi uma espiã muito competente, pois descobriu onde você havia escondido isso. 284 A Sra. Hartle rasgou o ar com seu punhal e no instante seguinte o Talismã estava pendurado na lâmina, cintilando debaixo da luz tremulante da lua. — Harriet teria te matado sob minha ordem, enquanto dominava sua mente, mas quis guardar sua morte pare este momento. — A Alta Mestra riu, exultante. — Deixeme contar como te enganei durante todo esse tempo, Srta. Johnson. Segui seus passos na noite passada até a Mansão Fairfax e você me levou até Sebastian. Há tempos o procurava, mas sua única força — o amor nauseante por você — me repelia. Porém, tendo lhe virado as costas, suas defesas foram destruídas e, assim, foi fácil dominá-lo. Ele não é mais meu mestre. Agora sou eu quem o governa, e não o contrário. Depois, operei por meio da Harriet para destruir os papéis que Agnes lhe deixou … sim, sei tudo sobre eles. Eu sabia que isso a irritaria acima de qualquer outra coisa e faria você se virar contra sua pobre e frágil amiga. E, então, fiz com que ela escrevesse aquele bilhete suicida, sabendo também que a boa, gentil e nobre Evie não resistiria ao seu pedido de ajuda. Uma típica heroína martirizada, não é mesmo? Sempre tentando salvar os outros, mas agora você precisa salvar a si própria. Ela parecia se elevar sobre mim, e então recuei, temendo seu toque. Com um movimento rápido e ágil, ela se aproximou de Sebastian e passou o Talismã sobre sua cabeça, rindo ao vê-lo se contorcer de dor. — Sebastian não irá mover um dedo para ajudá-la agora, Evie. Ele jamais voltará para seus braços pegajosos. Ele vai te destruir, despertar o Talismã e livrar a mim e às minhas Irmãs da morte, para sempre. — Não… não… não… — Sebastian gemeu. A Sra. Hartle o ignorou e caminhou até Helen. 285 — Ah, minha filha, enfim nos encontramos novamente, aqui na sepultura da Traidora — provocou. — Por que não cumprimenta sua mãe? Helen sacudiu com força a cabeça. — Você não é minha mãe! Nunca foi uma mãe para mim. Minha mãe é o ar, o vento e as estrelas. Eu te desprezo. O rosto da mestra se tornou ainda mais ameaçador. — Até o fim desta noite você irá me reconhecer como mãe e mestra, e serei obedecida e temida. Tenho tudo o que preciso. Só falta meu círculo das Irmãs das Trevas… gostaria que estivessem aqui para presenciar e compartilhar esse momento comigo. Todas vocês virão comigo, para o lugar onde minhas Irmãs aguardam. — Olhou ao redor ensandecida e gritou ao vento: — Estou chegando, minhas Irmãs, estou chegando! Naquele momento Sebastian levantou a cabeça e murmurou: — Meus irmãos… meus irmãos… Ele olhou diretamente para mim e percebi que seus olhos estavam claros, azuis e transbordavam um oceano de arrependimentos. Ele sorriu e seu sorriso não era mais amargo ou de deboche, mas iluminado e calmo como um dia de verão. — Sebastian! — tentei alcançá-lo, mas a Alta Mestra gritou e riscou o ar com sua faca, e fomos então arrastadas para longe do cemitério em um turbilhão assustador de barulho, velocidade e estrelas negras e rodopiantes. 286 F omos lançados para fora do redemoinho, caindo no topo de um morro improdutivo. Uma paisagem hostil e devastada ao nosso redor. Reconheci o lugar com dor e espanto. Já havia sido um forte, construído há centenas de anos pelos povos do vale para servir como um porto seguro contra seus inimigos. E antes disso fora um templo pagão, o mais próximo dos céus que os adoradores antigos conseguiam chegar. Foi aqui que me sentei com Sebastian um dia sob o céu intenso da meia-noite e tudo levava a crer que seria aqui que a Alta Mestra exibiria seu momento de triunfo. O vento atravessava rapidamente as colinas e dividia as nuvens, revelando o brilho do límpido e alto arco da lua nova. Atrás de nós, milhares de figuras vestidas com mantos e capuzes entoavam cânticos em círculo, como um enxame de abelhas. Elas não pareciam nos ver. Estávamos escondidas pelo desejo paralisante da Sra. Hartle, e ainda não conseguíamos falar, nos mexer ou pensar claramente. Enquanto ela permanecia envolta em uma névoa e observava suas Irmãs, tudo flutuou na frente dos meus olhos, como um sonho mal-assombrado. 287 — A hora é essa — entoava uma das mulheres. Era a Srta. Raglan. Ela deu um passo à frente, se destacando das fileiras da congregação, e levantou os braços à lua. — Nosso destino está bem diante de nós. — Somente a Alta Mestra pode conduzir a congregação ao seu destino — retrucou uma voz fria e seca, e então reconheci a Srta. Scratton sob o véu de seu manto. — Sem dúvida você quer essa honra para si — a Srta. Raglan vociferou. — Mas nossas Irmãs já se deram conta das suas conspirações. Você jamais irá comandar essa congregação. Aqui e agora, à luz da lua, e cercada pelos elementos selvagens, vou me tornar a nova Alta Mestra e acabar com nossa longa busca. A multidão atrás dela começou a bradar a favor da sua aprovação e logo entoaram um canto frenético, mas a Srta. Scratton gritou: — Tola! Você não percebeu que essa congregação ainda tem uma Alta Mestra? E que ela está aqui, entre nós? A cantoria hesitou e outro estrondo muito forte de relâmpagos pôde ser ouvido, pareceu rasgar o véu que nos escondia da vista das mulheres. Elas gritaram ao ver a Sra. Hartle, fria, orgulhosa e terrível na escuridão da noite. — Sou eu. Finalmente voltei. Houve um momento de confusão, com muitos gritos vindos da multidão. — A Alta Mestra! Ela voltou! — Por que vocês não se curvam diante de mim? Não há lealdade entre vocês? Em tão pouco tempo já esqueceram quem é sua verdadeira mestra? 288 — Seja bem-vinda, seja bem-vinda, esperávamos muito por esse momento — falou efusivamente uma das mulheres. Reconheci a voz bajuladora da Srta. Dalrymple, que mais que depressa abandonou sua antiga aliada e se jogou aos pés da Sra. Hartle. — Eu… Nós… — balbuciou a Srta. Raglan, enquanto as Irmãs das Trevas faziam longas reverências à sua rival. — Achamos que você estivesse morta! A Alta Mestra riu descontroladamente enquanto os raios rebentavam no céu e a chuva açoitava a terra. — Celia Hartle jamais conhecerá a morte! Depois da nossa derrota na cripta, confesso que fiquei ferida. Os poderes elementares se voltaram contra mim e tiraram minhas forças. Então me escondi, escolhi não me mostrar no meu estado enfraquecido. No entanto, não passei todos esses anos estudando os rituais secretos para nada. E agora aqui estou, de volta, para reivindicar minha vitória. — A Sra. Hartle se aproximou da Srta. Raglan e sua voz se tornou um rio caudaloso de ameaças. — Não vai ser você quem irá finalizar os nossos trabalhos. Ah, eu tenho te observado. Presenciei sua falta de fé em mim. Respondo lealdade com recompensas, e traição… com maldições. — Ela estalou os dedos e a Srta. Raglan cambaleou para trás e gemeu como se tivesse sido golpeada brutalmente. A Sra. Hartle se dirigiu à Srta. Scratton. — Você foi muito bem, estou bastante surpresa. Sua recompensa será de outra natureza. — A Srta. Scratton não se moveu nem disse nada, apenas curvou a cabeça e baixou os olhos. 289 — Mas os julgamentos podem esperar. A noite avança rápido e à meia-noite tudo estará terminado. As garotas tolas que ousaram me enfrentar agora são prisioneiras e estão aos meus pés. E lhes trago mais um prêmio… nosso antigo mestre. Ele está pronto para realizar o que pedimos. — Ela chutou Sebastian com violência e o forçou a ficar de joelhos. O Talismã balançou pesadamente em seu pescoço, como um enorme fardo. — Prepare a garota. As mulheres encapuzadas arrastaram Helen e Sarah. A Srta. Scratton se aproximou rapidamente e me obrigou a ajoelhar de frente para Sebastian. Agora nos encarávamos como se fôssemos nos casar em uma espécie de cerimônia mística. Evie e Sebastian, finalmente juntos de novo, mas agora apenas um de nós dois poderia sobreviver. A chuva chorava por nós. Os últimos minutos do dia estavam morrendo e em breve o sino badalaria meia-noite. A cabeça de Sebastian pendia para baixo e ele se balançava levemente. Não conseguia ver seu rosto, mas era melhor assim, pensei, melhor não ver o fim. Minha mente estava lenta e nublada, como se eu tivesse sido privada do meu próprio ser pela vontade opressora da Alta Mestra. Estava impotente diante de sua presença. Celia Hartle venceu e eu fui derrotada, e não havia nada que eu pudesse fazer a respeito. Ela empurrou o punhal de prata para Sebastian pegá-lo. Segurando aquelas mãos enfraquecidas nas dela, a mestra levantou o punhal sobre meu corpo. — Quando isso atingir seu coração, o Talismã será dele, e a imortalidade será nossa! — Então se dirigiu a Srta. Scratton para dar sua última ordem. — Irmã, prepare-a para o fim. 290 A Srta. Scratton se abaixou e abriu minha camisa, revelando meu pescoço nu para o corte da faca. Ao se inclinar, pensei ouvir o sussurro “Seu colar, Evie, dê a ela seu colar…”. Olhei para ela, finalmente livre da letargia e do desespero no qual me encontrava. Meu colar… o pequeno medalhão… continuava pendurado, pequeno e insignificante, no meu pescoço. Olhei fundo nos olhos da Srta. Scratton. “Não posso acreditar”, Sarah dissera. “Qualquer uma delas, menos a Srta. Scratton.” E ao ver aqueles olhos tranquilos e piedosos, finalmente a reconheci. Uma mulher sábia, uma irmã santa, uma curandeira… — Venha! Saia do caminho — a Sra. Hartle ordenou com impaciência. — Que o golpe seja desferido! — Seu colar, Evie, seu colar… — sussurrou novamente a Srta. Scratton. Sem parar para pensar, agarrei a correntinha e a torci até quebrar, atirando em seguida o medalhão em direção à Sra. Hartle. A joia cruzou o ar fazendo um longo arco e explodiu em chamas, emitindo uma luz ofuscante. A Sra. Hartle gritou e sua vontade e concentração sumiram por alguns instantes. As cordas ao redor de nossos pulsos se derreteram e Sebastian se esforçou para ficar de pé. — Meus irmãos — gritou. — Cavalguem, meus irmãos! Cavalguem! De repente o ar estava animado com o som de cascos batendo no chão. Olhei para trás e vi Cal galopando furiosamente sobre a encosta, guiando um grupo de cavaleiros-fantasma. Seus cavalos sobrevoaram o gramado como sombras encantadas, 291 foi como um sonho que tive um dia… um sonho muito distante. Os selvagens cavaleiros ciganos estavam de volta da morte para assombrar os vivos, e mantinham seus antigos votos de serem leais ao irmão Fairfax James. As Irmãs das Trevas começaram a uivar de raiva enquanto Sarah e Helen saudavam os cavaleiros com grande entusiasmo. — Como se atrevem? — A Sra. Hartle gritou feito louca. — Voltem! Voltem! Sebastian se manteve de pé, sem medo. — Cavalguem, meus irmãos! Venham nos ajudar! — Sua beleza brilhou através daquela máscara de dor e os olhos azuis cintilaram como estrelas. Este é o momento, você pode fazer isso, Evie. Você pode fazer qualquer coisa… Agnes me chamava, minha mãe e Frankie também, dizendo para eu acreditar em mim mesma, me encorajando a lutar pelo que amava. Abri os braços e saudei a chuva, que desceu com força ao meu comando, como um enxame de flechas urticantes que cegaram a Sra. Hartle por um único e precioso instante. Avancei sobre ela e consegui fazer com que o punhal caísse de suas mãos, e logo depois puxei Sebastian para perto de mim. Apanhando a lâmina do chão, cortei o gramado sob nossos pés, até nos encontrarmos dentro de um círculo protetor, apenas nós dois. O barulho e a confusão do alto do morro desapareceram, como se uma cortina de água estivesse nos isolando do resto do mundo. Era como se o tempo tivesse parado. Estávamos sozinhos. Sebastian ficou de joelhos à minha frente, exausto depois de tanto esforço. 292 — Me perdoe, Evie — implorou. — Não consigo explicar a loucura que se abateu sobre mim ontem à noite. Sei apenas que aquilo é passado agora, e para sempre, aconteça o que acontecer. Quando você virou o poder do fogo contra mim na noite passada, o medo da minha alma foi queimado. Fui eu mesmo novamente. Chamei meus irmãos para te ajudar. — Ele arrancou o Talismã do pescoço e o apertou na minha mão. — Isso… isso pertence a você. Proteja-se com isso. Me perdoe. Ajoelhei-me ao seu lado. — Não há nada a ser perdoado, Sebastian. Nada. Ele segurou minha mão em seus lábios durante alguns segundos. — Tudo o que posso fazer é dizer adeus… antes que meu mestre apareça. — Sua voz era como um suspiro. — Estou contente… tão contente… por você estar aqui, comigo, minha garota do mar. Sebastian caiu no chão e fechou os olhos. Levantei sua cabeça carinhosamente e a coloquei sobre meu colo. Sua vida neste mundo se esgotava e caminhava para um último suspiro, mas eu me sentia mais viva do que nunca. Aquele era o momento em que eu salvaria Sebastian e nada iria me impedir. 293 S egurei o Talismã no alto e gritei: — Senhor de toda a criação, me escute! Invoco seus elementos sagrados! Deixe que seus poderes sejam os meus poderes, deixe que sua justiça seja minha justiça, deixe suas luzes brilharem sobre mim! Uma descarga elétrica irrompeu da joia cintilante. — Sirvo às águas existentes e ao fogo eterno. Reivindico meu direito de alcançar a chama sagrada! — Tudo começou a girar e foi como se eu caísse sem parar em um poço sem fim. De repente, me vi sozinha na caverna profunda de cristal que enxergara antes. A coluna de fogo se contorceu e se transformou à minha frente, e uma voz saiu das suas profundezas. — Você é bem-vinda, irmã. Pode se aproximar. Mergulhei o Talismã no centro da chama e gritei: — Eu te liberto! E então… eu era luz, ar e fogo. Era todo o meu passado e todo o meu futuro. Era eu mesma e, ainda assim, era Agnes também. Ela estava de pé ao meu lado, e eu tinha suas lembranças, seus pensamentos, seu conhecimento. Cenas de sua vida passaram 294 pela minha mente em alta velocidade. Como Agnes, era como se eu sentisse novamente a alegria do retorno de Sebastian de sua jornada no exterior. Eu o vi colocar o Livro nas minhas mãos; senti o toque de seu beijo; a dor que Agnes sentira ao vê-lo descer à escuridão. Enxerguei tudo através de seus olhos. Compreendi tudo, e perdoei tudo, como Agnes fizera antes de mim. O fogo queimava dentro de mim. Agora eu sabia cada um dos seus segredos; compreendia seus poderes, que curam e purificam, trazendo vida e força. Sabia ainda mais. “O fogo dos nossos desejos… o poder do amor… maior que a vida… maior que a morte…” Agora eu sabia o que Agnes havia guardado dentro do Talismã. Ela não tinha raiva das fraquezas e dos erros de Sebastian, apenas amor e benevolência. Olhei para a garota ao meu lado e disse, maravilhada: — Seu real poder… é o amor, não é? O tempo todo, todo esse tempo, era isso… — Sim. O amor é o maior poder de todos, e jamais pode ser corrompido. Você não pode afastar Sebastian dos Invictos dando-lhe vida imortal, pois isso só o tornaria tão amaldiçoado quanto eles. Eu não poderia fazer isso. Você não pode fazer isso. Não é esse o caminho. O Talismã concede outros dons. — Mas o que posso fazer para salvá-lo? — supliquei. — Ame-o — falou, simplesmente. — É o suficiente. Deixe que seu amor mostre o caminho. Amor. Uma luz na escuridão que jamais pode ser destruída. A única realidade. Minha realidade. 295 No instante seguinte, eu estava ajoelhada ao lado de Sebastian sobre o chão gelado, e sabia o que tinha de fazer. — Sebastian, me escuta. Eu vou te ajudar, vou te dar uma coisa. Seus olhos se abriram lentamente e ele tentou focalizar meu rosto. — Tenho um presente para você. Por favor, aceite-o — percebi que Sebastian entendia minhas palavras, e teve medo. As Irmãs das Trevas tinham agido por vontade própria, na esperança de conseguir algo maior em troca. Laura havia sido obrigada a fazer aquilo, e pagou com sua vida. Eu, no entanto, queria fazê-lo; ninguém estava me forçando e eu não esperava receber nada em troca. Era algo voluntário, do fundo do meu coração, fazia-o por Sebastian. Agora era minha vez de alimentá-lo com o sangue da minha vida, da minha alma. — Deixe-me fazer isso por você, Sebastian. É a única forma. — Não — gemeu. — Não aceito este presente. Não vou permitir que você sacrifique sua vida por mim. — Não estou falando da minha vida. É apenas por um dia, um dia será suficiente. — Suficiente para quê? Olhei fundo no azul de seus olhos e sorri. — Suficiente para eu te dar meu verdadeiro presente. Por favor, Sebastian, se você me ama, permita que eu faça isso. Segurei firme o Talismã com meus dedos trêmulos e sua luz preencheu minha mente. Palavras desconhecidas soaram na minha cabeça. Vi nós dois caminhando juntos na beira de um rio de luz infinita. O fogo ardia dentro de mim. Eu me debrucei 296 e beijei Sebastian. Naquele momento, sabíamos cada segredo da mente um do outro; conhecíamos nosso passado e nosso futuro; vimos a eternidade se estendendo ao nosso redor. Conhecíamos a verdade: “O maior de todos os poderes é o amor…” — senti uma parte do meu ar vital me deixar e fluir até ele. Com um beijo longo e suave, eu havia dado um dia da minha vida a Sebastian. Abri meus olhos e percebi que o cansaço e a dor haviam desaparecido do rosto dele, que estava jovem e forte novamente, apenas por mais um dia. Estávamos prontos para enfrentar o que viesse. Saímos juntos do círculo e retornamos ao barulho e à confusão da colina devastada pela tempestade. Uma batalha violenta acontecia e estava no seu auge. Helen e Sarah, juntamente com Cal e seus cavaleiros, lutavam por suas vidas contra a congregação. Sarah havia rasgado a terra, que revelou antigos dolmens de rochas desgastadas, que Helen lançava violentamente com o vento, como uma chuva de granizo, em direção às nossas inimigas. Mas as Irmãs das Trevas continuavam a lutar, lideradas por sua Alta Mestra. Ela estava furiosa, com o cabelo caindo no rosto, cheia de cólera e loucura. No exato instante em que viu Sebastian, gritou: — Agarrem-no! Assim que aquelas palavras enlouquecidas saíram dos seus lábios, o leve badalar de um sino começou a flutuar por todo o vale, a partir da pequena igreja cinzenta. A meia-noite finalmente havia chegado. Um frio mortal se espalhou pelo topo da colina e um forte nevoeiro se ergueu do chão. A batalha cessou e todos ficaram em silêncio ao ver um vulto negro emergir das sombras. Era a figura imensa de um rei que brilhava na noite, como se estivéssemos 297 vendo um anjo negro refletido num lago escuro e profundo. Suas longas vestes giravam em torno do seu corpo como fumaça e ele estava coroado com línguas de fogo vermelho. Seu rosto, que já fora gloriosamente belo, agora estava completamente corrompido, desfigurado pelo desprezo e pelo ódio. Aquele era o rei dos Invictos, e ele estava prestes a reivindicar sua presa. — É chegada a hora. Sebastian falhou em sua busca e estou aqui para submetê-lo ao mundo das Sombras, como nosso escravo. A Alta Mestra foi a primeira a se manifestar. — Não… não, você não pode levá-lo ainda — protestou furiosamente. — Ele é meu… deixe-o comigo. Vou fazer com que ele alcance e agarre a imortalidade. Aí, então, a eternidade também será minha. Por favor, me dê um pouco mais de tempo, eu lhe imploro… O Invicto moveu ligeiramente a cabeça em direção a ela. — Silêncio! Você não vai me privar da minha presa. — Mas eu já fiz isso — eu disse, calmamente. — Você? — Ele me lançou um olhar terrível. — O que você poderia ter feito que pudesse me preocupar? — Sebastian não está mais desvanecendo. — Tentei não demonstrar medo. — Você não pode levá-lo. Dei a ele um dia da minha vida. Ele está curado. — Um dia! Um dia! O que pode conseguir com isso? Em meras 24 horas retornarei e tomarei ele de você. 298 — Não, você jamais tocará nele novamente. Sendo um de vocês ou apenas um escravo… os dois são igualmente ruins. Você é mau, mas Sebastian não é. Ele não pertence ao seu mundo. — Segurei novamente o Talismã no alto e sua luz brilhante fez o rei sombrio cambalear para trás. — O presente que dei a ele é maior do que você pode imaginar, e sou mais forte que você. Sempre serei, pois não esqueci como amar. Em seguida, o Invicto se inflamou de ódio e desgosto. Faíscas caíam de suas vestes sombrias e sua fúria fazia a terra tremer. — Amor! Amor! Como se atreve a falar de amor comigo? — De que servirá esse frágil amor quando a morte chegar e te levar, no fim de tudo? — perguntou a Sra. Hartle, com amargura. — Ah, você é jovem e pensa que a vida vai continuar infinitamente, mas não vai. — Era como se ela tivesse entrado em colapso na nossa frente, transformando-se em nada mais do que uma mulher triste e frustrada, agarrada a um sonho impossível. — Dei minha vida inteira por esse momento — lamentou. — Queria viver para sempre, e você me prometeu, Sebastian Fairfax, disse que isso iria ocorrer… você nos prometeu… — A morte é a porta de entrada para a vida imortal, e não essas magias distorcidas. — Eu me enganei… e você se engana ao se manter agarrada a essa obsessão, que está envenando a única vida que possui. — De que serve a vida se a morte irá destruir todas as coisas pelas quais tanto lutei? — Você tem uma filha — Sebastian falou. — Depois da sua morte, a vida dela honrará a sua, e depois a filha dela fará o mesmo… 299 — Ah, me poupe dessa baboseira sentimental — falou em tom de deboche. — Você pode morrer e apodrecer, e suas crianças tomarão seu lugar, como pequenas flores brotando sob a luz do sol. Não quero ninguém tomando o meu lugar! — a Sra. Hartle reverenciou o senhor Invicto, de repente. — Já que não posso viver eternamente neste mundo, leve-me com você, imploro. Leve-me ao seu reino e serei sua serva. Serei fiel aos seus poderes absolutos. Terei vida imortal por meio da sua grandeza. — Não! Mãe… não! — Helen correu e tentou arrastar a Sra. Hartle para longe do Invicto. Mas a Alta Mestra se desvencilhou da filha com uma gargalhada amarga. — Não preciso do seu amor, minha filha. Você escolheu seu caminho e eu escolhi o meu. Sou a Alta Mestra… agora e para sempre. — Ela entrou nas sombras que circundavam o rei sombrio e se jogou aos seus pés. Logo em seguida, soltou um gemido pavoroso ao sentir a mão de aço dele agarrar sua garganta. — Vou levá-la no lugar dele — ele riu. — Que assim seja! Você será de grande utilidade! Ela caiu para trás, já sem vida. Um vulto pálido, como cinzas, emergiu do seu corpo e pairou ao lado do Invicto, sendo logo absorvido pela escuridão dele. Desapareceram em seguida. Apenas o corpo da Sra. Hartle foi deixado para trás, tão imóvel quanto o coração do silêncio, seus olhos vazios fitando a eternidade. 300 A tempestade chegara ao fim. As mulheres da congregação tinham ido embora, desaparecendo em meio às colinas, e os espíritos dos cavaleiros ciganos retornaram ao seu lugar de descanso. Nos abraçamos, choramos e oferecemos apoio uns aos outros na calada da noite, tentando absorver tudo o que aconteceu e consolar Helen. Fiquei ao lado de Sebastian, e Sarah apoiou sua cabeça no ombro de Cal, enquanto a Srta. Scratton e Helen se ajoelhavam diante do corpo da Sra. Hartle e lamentavam. Não nos movemos ou falamos por um bom tempo. — E então, ela está morta? — Helen perguntou finalmente, com o primeiro raio da aurora penetrando as colinas. A Srta. Scratton soltou um suspiro e falou: — Seu corpo está morto, mas sua alma está acorrentada aos lugares malignos que seu novo mestre habita. Sinto muito, Helen. Os olhos de Helen estavam vermelhos de tanto chorar. — Há alguma esperança para ela? — Sempre há esperança. — A Srta. Scratton ficou perdida em pensamentos durante um tempo e depois acenou para nós três, para que a seguíssemos colina 301 abaixo, deixando Cal e Sebastian abraçados como irmãos e conversando tranquilamente. Paramos por algum tempo para observar todo o vale lá embaixo, onde ficava a Abadia, com toda aquela neblina da manhã. — A noite terminou — a Srta. Scratton disse —, e mesmo que o caminho a seguir ainda seja nebuloso, uma sombra acaba de nos deixar. Minha esperança agora, Helen, é que isso não te deixe amarga. Você já tem de suportar muita coisa. — Só queria… só esperava… que ela me amasse — falou com raiva — Não restou mais ninguém… que possa fazer isso. A Srta. Scratton colocou as mãos de Helen sobre as dela. — Suas irmãs te amam, Helen. E você tem um pai, e um dia ele vai te encontrar. Depois disso, outra pessoa te amará, não sua mãe, nem seu pai, ou irmã ou irmão, e ele vai amá-la além dos limites deste mundo. Eu lhe garanto isso. É o seu destino. — Como você sabe tudo isso? Quem é você? — Eu vi você — interrompi. — Vi você no passado, há muitos anos, Srta. Scratton… cantando, curando e orando… — Sim, você me viu, Evie. Você tem o dom de pressagiar o passado, através do rio do tempo. — Então você estava lá, tantos anos atrás… — Estava lá… e estou aqui. — Mas ainda não compreendo — disse Helen. 302 — Algumas coisas nós nunca conseguimos compreender verdadeiramente. Quem entende o milagre da criação? Quem entende as profundezas dos oceanos e a vida das estrelas? E o coração humano, quem de nós realmente o compreende? — Mas como você pode ter vivido em épocas diferentes? — perguntei. — Depois de tudo o que aconteceu com Sebastian, sabemos que é errado humanos buscarem a vida eterna, não é possível… — Para os humanos não, concordo — ela sorriu. Quando fui olhar novamente para seu rosto magro e liso, percebi que ela estava diferente, cheia de uma luz interna e radiante, como a pintura de dentro de uma igreja, como um anjo. — Sou uma Guardiã, Evie, enviada pelo Grande Poder para o que for necessário. Esse vale é sagrado e, ao mesmo tempo, amaldiçoado. O caso de Agnes, Sebastian e Evie é apenas um entre tantos outros em sua longa história. Você sabe que as colinas sob os nossos pés são cortadas por túneis e cavernas. Pois bem, em uma delas há uma fenda entre este mundo e o mundo das sombras. O vale já presenciou grandes maravilhas por causa disso, boas e más. E eu estive aqui para ver algumas delas, para cumprir o papel que fosse possível. Conheci o fracasso e o sucesso, mas a batalha entre a luz e a escuridão nunca termina. Por enquanto, basta vocês saberem disso. — Mas o que você vai fazer agora? — Sarah perguntou. — Vai ficar aqui? — Pelo menos por um tempo. A congregação está dispersa, com raiva e medo, e isso pode torná-la perigosa. Espero que não suspeitem de mim, mas não estou certa disso. Celia Hartle nunca confiou totalmente em mim, e me enviou para uma missão solitária na noite em que Laura morreu. — Fez uma pausa, olhou para longe e 303 continuou calmamente. — Aquilo foi realmente um fracasso. Depois daquele dia, tive de fingir ser a defensora mais fervorosa da Alta Mestra. Foi muito útil fazer parte das Irmãs das Trevas, para ajudar a proteger as outras alunas, além de outros propósitos. — Então olhou para nós três e riu calorosamente. Era a primeira vez que a via rindo. — Mas vocês não precisam de uma guardiã. Se permanecerem verdadeiras umas com as outras, serão fortes o suficiente para qualquer desafio que a vida lhes enviar. — E a pobre Harriet? — perguntei, ansiosa. — Ela ficará bem? — Harriet vai se recuperar, se for isso o que te preocupa. Ela agora dorme ao lado do túmulo de Agnes, o que — ainda bem que Celia Hartle nunca soube disso — lhe dá uma espécie de proteção. Vou assegurar que ela acorde sem lembranças dessa noite e que não sinta nada além de frio por estar fora da escola. No entanto, Harriet foi possuída por uma mente mais poderosa que a dela, e o processo de cura vai ser demorado. Devemos cuidar dela. — Olhou para o corpo da Sra. Hartle e o cobriu com seu manto, e então deu um grito alto e claro. Logo em seguida, seu magnífico cavalo branco saiu galopando das sombras e parou ao seu lado, balançando a cabeça e batendo as patas no chão. A Srta. Scratton se inclinou e levantou o corpo da Sra. Hartle com uma força surpreendente, colocando-o delicadamente sobre as costas do cavalo. — Precisamos cuidar desse assunto também, mas você não, Evie. — Por que não? Eu… eu quero ajudar. — O novo dia está começando. Esse é o dia de vocês… seu e de Sebastian. Vá até ele, Evie. Faça bom uso desse dia. E se conseguir estar nos jardins da Mansão Fairfax durante o pôr do sol, suas irmãs estarão lá para saudá-la. 304 Beijei Helen e Sarah e caminhei até a colina, onde um garoto de cabelos escuros e olhos azuis me esperava. Sebastian James Fairfax. Meu primeiro, meu único amor. 305 H oje é o dia. É agora. É a manhã perfeita. A tempestade havia passado e tudo começava novamente. Mesmo não sendo março ainda, o ar está agradável, o céu é de um azul suave e tranquilo, e a terra está quente sob o sol. Debaixo das árvores, os botões de campânulas brancas e açafrões polvilhados pela chuva revelam suas pontas novamente, determinados a viver. Sebastian me dá um sorriso e me envolve em seus braços. — Você me deu um dia, então quero te dar esse dia em troca. Um dia perfeito que vai durar para sempre. E depois… receberei seu presente final. É um daqueles dias em que todas as coisas se encaixam e fazem sentido. Um dia para guardar, como uma joia preciosa. Um dia que poderei relembrar com prazer: Sebastian e eu juntos, felizes e abençoados. Meu coração se enche de gratidão por Agnes, Sarah e Helen, que me ajudaram a chegar até aqui. Eu amo… sou amada… e é apenas por um dia. Caminhamos por um bom tempo sobre as altas colinas, o mais perto do céu que conseguíamos chegar. O sol brilha e a terra gira sob nossos pés, e a vida segue com seu 306 fluxo infinito ao nosso redor. Tudo o que temos é o aqui e o agora, e isso nos basta. Cada minuto. Cada segundo. Uma vida inteira de amor e risadas resumida em algumas horas. É a primeira e única vez que Sebastian e eu nos encontramos à luz do sol, ao ar livre, longe da escuridão e das sombras. Não precisamos mais nos esconder. Vejo o céu azul e límpido refletido nos olhos dele; vejo o mundo inteiro no seu sorriso. Caminhando demoradamente sobre as campinas, conversando sobre tudo, fazendo perguntas, confissões, buscando explicações. — Não podia abandonar esta vida com você achando que eu era seu inimigo. Esse foi o maior tormento de todos para mim, maior do que todas as outras coisas pelas quais eu estava passando. Você não sabe o quanto te amo, Evie. — Te amo desde o primeiro dia em que nos vimos — digo. — Mentirosa! — ele ri. — Não pode ser. Fui péssimo com você. — Bem, talvez desde o segundo — sorrio, pegando sua mão e o puxando para mais perto de mim. — Sempre te amarei, Sebastian, você sabe disso. — Eu sei. Ele inclina a cabeça e me beija, e nossas almas se tocam. Nos abraçamos e tentamos memorizar o rosto um do outro, tentando fazer com que aquele momento dure para sempre, tentando nos esconder do que está por vir. Lembranças. Você se lembra de quando caminhamos pela primeira vez nas campinas… você se lembra da lua… e da noite em que remamos pelo lago… você se lembra? 307 Eu me lembro de tudo. Vou sempre me lembrar. Vou passar minha vida inteira relembrando. Uma nuvem cobre o sol, de repente. — Não vamos mais pensar no passado — digo. — O passado está acabado. Quero pensar no futuro. Nosso futuro. Ah, planejamos tudo. Falamos sobre os lugares que visitaremos juntos: Paris, Itália, Índia… tantos lugares! Conheceremos templos, museus, rios e oceanos imensos. Vamos deitar ao sol, preguiçosos depois de tanta comida, vinho e felicidade. Vamos escalar montanhas e descobrir novos lugares, estudar e escrever livros, fazer descobertas e dar algo em troca para o mundo. Faremos tudo isso juntos, dia após dia, passo a passo, e o tempo inteiro nosso amor estará nos embalando ao redor, como um cobertor de estrelas. E nossos filhos — serão adoráveis, digo a ele. Vejo-os brincando em meio às pedras cinzentas de Uppercliffe: uma menina doce e misteriosa e um garotinho de cachos dourados. Eles dão risada, caem e correm até Sebastian e o agarram como se nunca mais fossem deixá-lo. Vemos tudo isso acontecendo através do rio do tempo… Tempo. Estamos correndo contra o tempo. As horas passam depressa, o sol começa a afundar no oeste e o ar está frio. O dia luminoso está sumindo e se transformando em uma névoa escura de luz noturna. Passamos pelas árvores e jardins da Mansão Fairfax e subimos a encosta até o 308 monumento de granito que os pais de Sebastian deixaram em memória ao filho que jamais poderia morrer. Em memória de um filho amado… em memória do meu amado… adoráveis lembranças. Tantas lembranças. Nosso dia dourado está quase no fim. Helen está lá, Sarah também, esperando ao lado do memorial de pedra. Fico feliz em vê-las perto de mim, agora que o fim chegou. — Você vai mesmo fazer isso por mim, Evie? — ele pergunta. Balancei lentamente a cabeça. É tudo o que posso dar a ele agora, o significado de tudo o que vi no Talismã. Mas dói, dói muito. — Obrigado — ele aperta com força minha mão. — Queria saber o que dizer. Lembra daquele poema que tentei escrever para você? As palavras são inúteis, não é mesmo? Estou muito grato. Eu te amo. Mas não é o bastante, não é? — Não importa. Você não precisa dizer nada. Já dissemos tudo. Estou chorando agora. Não consigo conter as lágrimas. Sebastian estende a mão e toca um fio do meu cabelo, da mesma forma que fez no dia em que nos vimos pela primeira vez. — Não chore, Evie. Não vai doer para sempre. Você precisa confiar em mim. Quero que você faça isso. É o único jeito. Jogo meus braços em volta do seu pescoço, como se nunca mais fosse deixá-lo ir embora. Mas tenho de deixar, porque confio verdadeiramente nele. Sempre confiarei nele. Farei isso. Sou forte o bastante. 309 — Tudo bem, vou fazer isso. Apenas por você. — Ensaio um sorriso. Queria que ele se lembrasse de mim sorrindo. — Tem mais uma coisa que eu gostaria que você fizesse por mim. — Claro. Qualquer coisa. — Viva, Evie. Viva, simplesmente. Não gaste sua vida com sofrimento. Não quero que você pare de amar porque eu… porque nossa história não foi como imaginávamos. — Nunca amarei outra pessoa — falo, com paixão. Sebastian sorri, e percebo apenas um vestígio de tristeza nos seus olhos claros. — Ah, sim, Evie, você vai amar. Você deve. Você deve amar e se casar e ter uma filha com cabelo da cor do fogo e olhos como o mar. E dirá a ela que nenhuma vida é em vão, não importa o quão breve for, se for tocada pelo amor. Ah, Evie… Um último abraço. O último beijo. — Adeus, garota do mar — sussurra em meu ouvido. — Todo fim é também um começo. Nos encontraremos novamente, prometo. Sebastian solta minha mão e caminha até o monumento, que recebe os últimos raios de sol. Ele se deita sobre a grama brilhante com a cabeça encostada na enorme pedra, fecha os olhos e cruza as mãos sobre o peito. — Você está pronta, Evie? — Sarah me pergunta delicadamente. Meu coração está em chamas, mas sim, estou pronta. Eu desato o Talismã e o coloco no peito de Sebastian, brilhando como uma estrela, depois estendo as mãos; elas se enchem de água cristalina, que espalho em um círculo 310 à nossa volta, sobre a grama. Sarah risca o chão com o punhal de prata, seguindo o círculo que fiz, e cortando a terra úmida e macia. E então Helen convoca o vento, que corre ao nosso redor em um anel de força inesgotável, nos ocultando dos olhos do mundo. Água, terra e ar. Três elementos. Três irmãs. Precisamos de mais uma. A água das nossas veias… a terra dos nossos corpos… o ar da nossa respiração… o fogo dos nossos desejos… venham até nós agora. Concentro-me e vejo o fogo sagrado se erguendo como um pássaro brilhante e selvagem. Estalo os dedos e minúsculas chamas dançam nas margens do nosso círculo. Parecem flores dançando na grama. Agora o quarto elemento, o poder de Agnes, está presente em mim. Água, ar, terra e fogo. Estamos prontas para seguir o Caminho Místico, o caminho da cura. Helen me entrega o Livro. Sinto-o pesado nas mãos enquanto procuro a página de que precisamos. O dom da morte. É a única coisa que posso dar a Sebastian agora. A morte, por tanto tempo temida e evitada, é o que pode salvá-lo neste momento. Sou a única que pode abrir essa porta. É o meu último presente a Sebastian. As páginas que antes haviam se recusado a revelar seus segredos agora se abrem rapidamente ao meu toque, e eu conheço suas estranhas verdades. Que a morte não é o fim. Que o Criador dá a vida eterna a todos que verdadeiramente a buscam, não nesta vida, mas depois do nosso sono final… Proferimos os feitiços e espalhamos as oferendas. Fizemos tudo o que era necessário, secreto, belo e sagrado. E uma quarta garota se juntou a nós, nossa irmã 311 Agnes, no coração do mistério. Seu lindo cabelo vermelho todo solto e caindo sobre o vestido branco; os braços estendidos com alegria para mim, os olhos cheios de amor. — Eu vim pelo meu irmão. Está na hora. Coloco o punhal de prata na mão de Sebastian, que põe sua outra mão em cima da minha, entrelaçando nossos dedos para que o seguremos juntos. — Receba nosso irmão em seu descanso eterno… Receba-o em direção à sua luz. — Helen, Sarah e Agnes proferem as palavras do mistério, mas meu coração está tão cheio que mal consigo falar. — Receba-o em direção à sua luz — suplico em silêncio. Ao sentir a lâmina deslizar no seu coração, Sebastian abre os olhos e olha para o céu, seu rosto é banhado por uma luz radiante, tão ofuscante que não conseguimos enxergar mais nada. E quando a luz enfim se apagou, ele tinha ido embora. A terra em frente ao memorial de pedra está nova e macia, como uma sepultura recém-cavada. Apenas o Talismã continua o mesmo, uma joia brilhante sobre o chão. Eu me inclino para pegá-lo. É tudo o que me resta para provar para mim mesma que isso realmente aconteceu. Nossa história. E agora está tudo terminado. Se os demônios dos reinos dos Invictos vierem procurar por Sebastian Fairfax novamente, não o encontrarão mais. Ele está bem longe deles agora. Aceitou meu presente e cruzou o limiar da morte, para viver um novo começo. Eu me levanto e olho em direção às colinas. O sol se põe e meu coração está em pedaços, mas Sebastian finalmente está em paz. 312 A os poucos eu voltava à vida normal, assim como tudo ao meu redor. A escola se recuperava lentamente, habituando-se com a notícia chocante de que o corpo da Sra. Hartle fora descoberto nas campinas. Voltamos a uma espécie de rotina, com a única diferença de que a Srta. Raglan não estava mais entre nós. As alunas foram informadas de que ela teve de se ausentar de repente por motivos familiares. Ninguém sentiu sua falta. A Srta. Dalrymple e as outras mantinham silêncio, envergonhadas ou constrangidas. Ou ganhando tempo, talvez. Os dias passaram devagar e a Wyldcliffe Abbey School for Young Ladies continuou do jeito como sempre foi — com regras e ordens e a tranquila autodisciplina inglesa. Pela primeira vez eu estava gostando da rígida rotina que permitia à escola sobreviver por tanto tempo em um mundo de mudanças. Isso me ajudou a atravessar cada dia com o mínimo do que se pode chamar de normalidade. No entanto, era difícil ignorar as visitas e as investigações da polícia e da imprensa, enquanto se estudava abrir um inquérito sobre a morte da Sra. Hartle. O funeral seria realizado mais tarde, quando terminadas todas as investigações. 313 Demos um jeito de pegar os jornais e ler tudo o que podíamos sobre o caso. As autoridades insinuavam que a Alta Mestra havia sofrido uma espécie de colapso nervoso. Ela devia ter ficado escondida nas cavernas das campinas por semanas — especulavam —, e sofrera um ataque cardíaco fatal ao andar sem rumo durante a tempestade. Às vezes a realidade é muito dura para as pessoas aceitarem. Essa história serviria como qualquer outra para alimentar as manchetes, até a próxima novidade aparecer. Algo sobre o que Celeste, India e as outras possam fofocar e logo esquecer. Naqueles dias pacatos e incertos, Helen, Sarah e eu permanecemos juntas, unidas na dor e no amor. Seja lá o que tivesse acontecido, e o que tivéssemos perdido, tínhamos umas às outras, e nada poderia quebrar esse laço. O tempo ficava mais quente e brilhante a cada novo dia, e os morros ecoavam o som dos cordeiros recémnascidos que berravam para saudar o mundo misterioso e iluminado. No fim de semana seguinte, a mãe de Harriet veio buscar a filha e levá-la de volta para casa. Fui me despedir no hall de azulejos em preto e branco enquanto elas esperavam o táxi chegar. O fogo crepitava na lareira e um vaso de rosas brilhava na longa e elegante mesa. — Mãe, essa é a Evie, a garota de quem lhe falei. Ela era minha amiga aqui. A Harriet parecia diferente, magra e cansada, mas sem o olhar tenso e histérico de antes. Ela não sabia que tinha sido controlada por uma mente perversa e usada como um peão em um jogo maluco. Ela não se lembrava dos caminhos pavorosos pelos quais a Sra. Hartle a conduziu. Sabia apenas que fora enviada para o internato e não se 314 adaptou, e que estava nervosa, ansiosa e dominada pela saudade de casa. Os olhos dela brilharam ao apresentar a mãe para mim. A Sra. Templeton era um pouco como Harriet, pálida, magra e querendo agradar a todo momento. — Muito obrigada por ter sido tão gentil com Harriet — ela disse, como se estivesse se desculpando. — Não imaginava que ela fosse sentir tanta saudade de casa e ficar tão triste, e ainda por cima ter aqueles acessos de sonambulismo novamente. Eu me senti uma fraude. Não tinha sido tão amável, mas a mãe de Harriet ignorou minhas negativas embaraçosas. — Não, a Srta. Scratton disse que você foi maravilhosa. É engraçado — ela acrescentou, ao olhar para os degraus de mármore, os armários com troféus e as gravuras antigas nas paredes —, a escola não mudou nada, mas estar de volta… bem… me faz lembrar do quanto ela pode ser solitária. — Pois é — concordei. — Wyldcliffe pode nos dar, às vezes, a impressão de estarmos muito longe de casa. — Você não sabe, Evie! Minha mãe vai começar a trabalhar meio período para ficar em casa comigo e vai me enviar para uma escola local em Londres. Não é o máximo? Não que eu não vá sentir sua falta, é claro — ela fez questão de acrescentar. — E você vai escrever para mim, não vai? — É claro que vou. — Obrigada! E me conte se vir o fantasma da Lady Agnes — ela riu e puxou a mãe pela manga da camisa. — Vamos, o táxi chegou. Não vejo a hora de chegar em casa. 315 Entraram apressadas no carro e foram embora. Por um segundo, desejei voltar aos meus doze anos e ver minha mãe chegando e fazendo tudo dar certo. Lembrei-me do quão próxima de mim ela parecia estar naquela noite, no topo da colina. Tentei enviar-lhe uma mensagem. Estou bem, mãe. Vou sobreviver… — No que está pensando, Evie? Dei um pulo e me virei. Era a Helen. — Mães — falei calmamente. Nossos olhos se cruzaram e pude ver o lampejo de dor no seu rosto. — Você ainda sente falta dela? — É claro, e sinto falta da Frankie também, mas estou bem. Estou bem de verdade. — Eu sei… e você tem seu pai também. Isso faz toda a diferença. Olhei para minha amiga com curiosidade, pois ela segurava uma carta. — A Srta. Scratton me entregou isso. Foi enviado a ela para que me entregasse depois. Querida Helen, Mal consigo acreditar que estou escrevendo esta carta. A Srta. Scratton me rastreou por meio dos jornais, depois de toda a repercussão sobre a morte da sua mãe. Parece que existe um parentesco entre mim e você. Na verdade, ela acha que eu posso ser seu pai. Não sei se essa é uma boa notícia para você ou apenas um choque terrível, Helen, mas fiquei muito feliz em saber da sua existência. Eu me perguntava constantemente se essa foi a razão pela qual Celia desapareceu de repente quando 316 ainda éramos muito jovens. Gostaria que ela tivesse confiado o suficiente em mim para contar a verdade. Mas tudo isso é passado agora. Espero que possamos nos conhecer… em breve. Por favor, me escreva. Tony Black Dei um forte abraço em Helen. — Estou tão, tão feliz — eu disse. Ela sorriu e sua frágil beleza brilhou como uma flor se abrindo sob o sol. — Eu também. Vou responder a carta agora mesmo. Para onde você está indo? — Ah… tenho uma aula de equitação agora. Preciso ir. Saí da escola e tomei o caminho em direção aos estábulos. Aquela seria minha última aula com Josh antes de sua mãe voltar a trabalhar. Meu estômago estava se revirando todo. Há alguns dias eu havia lhe entregado os pedaços rasgados do diário da Agnes para que ele lesse, e Sarah prometeu contar todo o resto. Ele merecia saber a verdade, mas eu não sabia se me acharia uma mentirosa ou uma louca. De qualquer modo, precisava olhá-lo nos olhos. Josh esperava por mim no pátio enquanto segurava Bonny pelo cabresto. Subi na sela e ele deu um largo sorriso. — Minha mãe vai ficar impressionada. Eu te transformei numa cavaleira razoável. Qualquer um pensaria que você está em Wyldcliffe há anos. — Obrigada — sorri. — Bom, pelo menos encarei isso como um elogio. 317 — Onde está Sarah? — perguntou, enquanto cavalgava ao meu lado na pista circular. — Ela está cavalgando nas campinas com o Cal. A Srta. Scratton disse que não havia problema. — Então a família dele vai ficar aqui em Wyldcliffe? Sacudi a cabeça. — Não sei ao certo. Ainda existem tantos boatos e fofocas sobre eles… todos aqueles assassinatos terríveis de animais nos quais a Sra. Hartle estava envolvida. — Hesitei por alguns segundos e o encarei. — Quer dizer, isso se você acreditar no que Sarah te falou. Josh pousou de leve sua mão na minha. — Acredito em você, Evie. Conheço esse vale, sei que ele guarda muitos segredos. Além disso, o tempo todo eu sabia que você corria perigo. E esse rapaz, Sebastian… ele está… — Ele está morto. Está tudo acabado. — Existia um buraco enorme no lugar do meu coração, mas eu não ia chorar. Sebastian não iria gostar disso. “Quando eu estiver morto, amada minha, não cante canções tristes para mim.” Josh apertou minha mão. — Evie, sei que você ainda não quer ouvir isso, mas eu… eu não consigo parar de pensar se algum dia poderei ter esperança. Senti uma onda de pânico tomar conta de mim. 318 — Não posso, é muito cedo. Não acho que conseguirei… amar… novamente. O que você está dizendo… me assusta. — Não estou pedindo amor, mas é que eu gosto mesmo de você, Evie. — E eu de você — Me senti estranha ao dizer aquilo. — Bom, já é um começo, não é? Podemos ser amigos. O amor não precisa ser doloroso, Evie. Não precisa ser essa paixão enorme e angustiante. Pode ser simples e fácil, como o sol pela manhã ou como caminhar na praia e ouvir as ondas. Senti um nó na garganta. Sebastian e eu nunca fizemos nada disso na praia, naquele lugar de sol e calor. Nunca veríamos o crepúsculo nascendo no oceano. Sebastian havia se entregado às trevas, mas agora ele finalmente tinha escapado da escuridão, e eu poderia fazer o mesmo. — Eu gostaria… gostaria que fôssemos amigos. — Então seremos os melhores amigos. Vamos viver o dia de hoje, depois outro, e mais outro. E quem sabe, com o tempo, o sol sorrirá para nós. Apertei a mão dele, com gratidão. — Você é tão bom, Josh. — Não, não sou. Sou é louco por você. — Ele levantou minha mão e a beijou carinhosamente, depois deu um passo para trás e sorriu para mim. — Pronto. Não foi tão horrível assim, foi? Olhei para o seu rosto e me senti cheia de vida, esperança e coragem. Não tinha a menor ideia do que o futuro me reservava, mas percebi que não tinha mais medo. Não, não tinha mais nem um pouco de medo. 319 A inda restavam algumas semanas antes do fim do semestre. Tínhamos provas pela frente, concertos e a entrega de prêmios e distinções de classe. Mas antes havia um outro ritual pelo qual precisávamos passar. O funeral foi grandioso e pomposo. Alunas, pais, mestras e diretores de escola, o prefeito local e outros dignitários se amontoavam na pequena igreja de pedra para dizer adeus à Sra. Celia Hartle, a Alta Mestra de Wyldcliffe. Sentei-me bem atrás, com Sarah. Não queria olhar para o caixão, colocado no alto e repleto de lírios caros. Fiquei olhando para Helen, que estava sentada com a cabeça inclinada lá na frente, acompanhada de um lado pela Srta. Scratton e do outro por um homem alto e loiro, que fitava seu rosto pálido com admiração. Todo fim é também um começo… O vigário falou sobre perda e esperança. As palavras rolaram sobre mim como uma onda de purificação. — Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e aquele que vive e crê em mim nunca morrerá… 320 Levantei em silêncio e saí da igreja sem ser notada. Ainda estava cedo e havia um lugar que eu precisava visitar. Enquanto subia e passava pela vila adormecida naquele tão conhecido caminho sobre as colinas, alguém chegou para me acompanhar. Caminhamos em silêncio e paramos apenas para recolher as primeiras flores silvestres que cresciam ao abrigo das sebes. Um pássaro cantava no alto e os cordeiros chamavam por suas mães. Ao passarmos pelo topo da cordilheira em direção à antiga mansão, eu sabia que jamais voltaria a ser aquela garota inocente que chegara em Wyldcliffe meses atrás. Conheci a escuridão e jamais conseguiria esquecer o que vi; mas também descobri o amor, e aprendi que conhecer o coração de outra pessoa era a maior aventura que a vida poderia nos oferecer. Sabia o que era acordar de manhã e me alegrar só porque Sebastian havia estado sobre a terra. Olhei para o céu imenso e azul e percebi que o sol brilhava especialmente para mim, porque eu o amava. E agora, finalmente, estava pronta para dizer adeus. Ajoelhei-me sobre o seu túmulo. Em breve a terra próxima à lápide não estaria mais vazia, e sim entremeada por delicadas raízes verdes e limo. Eu, carinhosamente, contornei o seu nome na pedra com os dedos. “Em memória de um filho amado, Sebastian James Fairfax.” Meu amado. Eu sempre o amaria. Meu primeiro, meu precioso amor. O vento assobiou sobre as colinas como se fosse o eco distante do mar. Coloquei minhas flores simples na lápide e me levantei. Não havia necessidade de dizer nada, nenhuma palavra ou promessa. Eu havia sido fiel a Sebastian. Não houve traição entre 321 nós. Quando o encontrasse novamente — e sabia que esse dia iria chegar —, nos olharíamos como seres de luz eterna. Não restaria nenhum vestígio de sombra. A escuridão havia acabado. Ele estava livre. Eu também estava livre. Livre para sofrer e para viver. Precisava viver pelo bem de Sebastian, pelo meu próprio bem. Meu coração tinha de ser grande o bastante para o que viesse. Não podia permitir que ele se quebrasse. Eu era Evie Johnson, tinha dezesseis anos e minha vida ainda não tinha chegado ao fim. Era apenas o começo. — É hora de ir embora, Evie — Josh falou baixinho. Eu me virei para ele e sorri. — Sim. Vamos embora. Descemos a colina juntos, voltando para a escola onde minhas irmãs estariam me esperando. Era um novo dia e nossos rostos estavam em direção ao sol, e nós não olhamos para trás.