Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão, Presidente Prudente, 22 a 25 de outubro, 2012 1109 SISTEMAS APOSTILADOS DE ENSINO: IMPLANTAÇÃO E IMPLICAÇÕES SOBRE A AUTONOMIA DOCENTE Mayara Faria Miralha; Mariana Padovan Farah Soares; Elba Geovana de Sousa Pinto; Silvio Cesar Nunes Militão. Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP – Campus de Presidente Prudente. PIBIC/CNPq; PIBIC/Reitoria‐UNESP; e Programa RENOVE‐UNESP. E‐mail: [email protected]. RESUMO Este trabalho, parte integrante de uma pesquisa maior, tem por objetivo precípuo identificar as consequências de um abrupto processo de municipalização do ensino, onde os municípios paulistas desprovidos de estruturas físicas/pedagogias/financeiras, acabam por ter dificuldades em gerir o Ensino Fundamental. Tais dificuldades levaram os municípios a aderirem recentemente às parcerias público‐privada por meio da compra de “sistemas apostilados de ensino”, As consequências de tal adoção no âmbito pedagógico não se fez esperar, tais materiais não passam pela avaliação no MEC, geram duplo pagamento por materiais didáticos, já que há distribuição de materiais por meio do PNLD, possuem acompanhamento pedagógico e determinam passo a passo as atividades de classe, são materiais de segunda linha que adentram as escolas controlam/manipulam toda gestão escolar, bem como o trabalho docente, retirando quase que totalmente o direito a autonomia, esta garantida pela LDB. INTRODUÇÃO O presente trabalho é decorrente de pesquisa maior, intitulada “Organização do trabalho pedagógico na escola pública: limites e possibilidades num sistema apostilado de ensino”, coordenada pelo Prof. Dr. Silvio César Nunes Militão e desenvolvida no âmbito da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP ‐ Campus de Presidente Prudente, congregando diversos alunos bolsistas (PIBIC/CNPq; PIBIC/Reitoria‐UNESP; Programa Núcleo de Ensino‐ UNESP; e Programa RENOVE‐UNESP). O projeto supracitado tem como principal objetivo identificar/compreender/discutir, o contemporâneo e abrupto processo paulista de municipalização do ensino fundamental, ressaltando suas decorrentes implicações na adoção dos sistemas apostilados de ensino privado pela rede pública, bem como compreender e analisar os impactos/desdobramentos da aquisição de tal sistema sobre a organização do trabalho docente no âmbito escolar. Para tanto, a pesquisa proposta de natureza qualitativa e que se encontra ainda em andamento, se valeu até o presente momento de levantamento e análise bibliográfica acerca da temática em estudo, em andamento, ainda contemplará a realização de entrevistas semi‐ estuturadas. Colloquium Humanarum, vol. 9, n. Especial, jul–dez, 2012 Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão, Presidente Prudente, 22 a 25 de outubro, 2012 1110 MUNICIPALIZAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL NOS MUNICÍPIOS PAULISTAS: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO. A municipalização do Ensino Fundamental foi alvo de desejos desde 1834, onde por meio do Ato Adicional, as Províncias ficaram incumbidas da pesada tarefa de atender o ensino primário (Ensino Fundamental). Em 1920, a tendência norte‐americana influenciou fortemente a municipalização do Ensino Fundamental, a qual era defendida por Anísio Teixeira. O Governo Militar em 1970, por meio da Lei n. 5.692/1971 transfere o Ensino Fundamental Estadual para as redes municipais de ensino, porém a transferência dependia da aceitação por parte dos municípios. Com assunção de Covas (1995) a municipalização do Ensino Fundamental tornou‐se objetivo central de sua política educacional. O Governo de Covas estabeleceu duas medidas estaduais que antecederam o FUNDEF, visando fomentar a municipalização do Ensino Fundamental. A primeira medida instituída foi a reorganização das escolas públicas separando as quatro primeiras séries das demais, visando a assunção das primeiras séries pelos municípios, no intuito de aliviar a sobrecarga do Estado que atendia a todo Ensino Fundamental. A segunda medida estabelecida pelo Governo de Covas, consistia‐se na criação do Programa de Ação de Parceria Educacional Estado‐município, o qual visava à parceria entre Estado e município, estimulando os mesmos a municipalizar o Ensino Fundamental. A política educacional de Covas ganhou forte aliado com o advento do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF) a partir Emenda Constitucional nº 14/96 e regulamentado pela Lei nº 9.424/96, o qual induziu fortemente o abrupto processo de municipalização do ensino fundamental. O FUNDEF – natureza contábil e de âmbito estadual retinha 60% dos 25% de impostos e transferências (FPE, FPM, ICMS, IPI ‐ Exportação), redistribuindo os mesmos de acordo com os números de matrículas municipais. Como enfatiza Arelaro (2007, p. 909): [...] Com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF), remunerou‐se, pela primeira vez na história da educação brasileira, o serviço público educacional, pelo número de atendimentos que as esferas públicas estaduais e municipais realizavam. Assim, por não contemplar toda a educação básica devido a sua focalização apenas no Colloquium Humanarum, vol. 9, n. Especial, jul–dez, 2012 Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão, Presidente Prudente, 22 a 25 de outubro, 2012 1111 Ensino Fundamental, o FUNDEF passa a se tornar alvo de diversas críticas, sendo substituído pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), criado pela Emenda Constitucional n. 53 de 2006 e regulamentado pela Lei n. 11.494 em 2007, como uma espécie de “cura” para vários dos problemas educacionais do país. O novo fundo abrange toda a educação básica, o qual retém 80% de importantes recursos estaduais e municipais, oportunizando maior flexibilidade quanto à redistribuição dos mesmos, sendo que esta é realizada de acordo com a quantidade de matrículas em toda a educação básica da rede municipal de ensino. Entretanto, no que se refere especificamente à questão da municipalização do ensino fundamental, o novo Fundo apenas prolonga a lógica do Fundo anterior, pois: [...] tal qual o FUNDEF, o FUNDEB também se configura como mecanismo fortemente indutor da municipalização do ensino fundamental, pois, além de incidir sobre um percentual ainda maior (80% de 25%) de recursos vinculados constitucionalmente à educação, continua a fazer do aluno uma espécie de “unidade monetária” uma vez que os recursos do Fundo vigente retornam para os entes federados em valores proporcionalmente relativos ao número de alunos matriculados nos respectivos sistemas/redes de ensino (MILITÃO, 2011. p. 93). Os municípios desprovidos de estruturas materiais, físicas, humanas, financeiras, administrativas e pedagógicas para implantar políticas educacionais locais e dar continuidade a elas, sem experiência/preparo para gerir sistemas/redes de ensino fundamental e sem contar com a devida assistência por parte do governo estadual para materializar o processo de municipalização, os municípios paulistas passaram a buscar, cada vez mais, alternativas/apoio no setor privado para o atendimento das novas e crescentes demandas educacionais assumidas (ARELARO, 2007; OLIVEIRA et al, 2006; ROSSI, 2009). Em suma, o abrupto processo de municipalização do Ensino Fundamental nos municípios paulistas acabou por induzir/impulsionar/aliciar a crescente tendência da adoção de sistemas apostilados de ensino. SISTEMAS APOSTILADOS DE ENSINO PRIVADO: CONTEXTUALIZAÇÃO E INSERÇÃO Os sistemas apostilados de ensino têm início a partir de cursinhos pré‐vestibulares que posteriormente vieram a se difundir em material didático para escolas da rede privada, formando os sistemas apostilados, para o Ensino Médio e depois para o Fundamental e Infantil. Colloquium Humanarum, vol. 9, n. Especial, jul–dez, 2012 Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão, Presidente Prudente, 22 a 25 de outubro, 2012 1112 Na mesma época, década de 1980, a rede particular passou a ter mais procura, pois o ensino público estava em decadência, juntamente com a formação do professorado, e o sucesso dos cursinhos se iniciou, pois a ideia de ter todo o conteúdo de anos em apenas algumas páginas era atrativa. Entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000, o setor privado passou a buscar novas clientelas por conta da crise de inflação, assim encontrando socorro nas escolas públicas, desconsiderando que o setor público já investisse em material didático, para cada aluno por meio do PNLD – Programa Nacional do Livro Didático, do governo federal. Os materiais didáticos dos sistemas privados passaram a serem usados nas redes municipais, as apostilas, acompanhadas de orientação pedagógica e muito marketing investido. LELLIS (2007, p. 06) questiona: “O que levaria as prefeituras a gastarem uma verba tão necessária à melhoria das condições de trabalho do professorado e das instalações escolares no material didático dos sistemas, cujo custo atinge centenas de reais por aluno a cada ano?”. Estes sistemas são elaborados de tal maneira que determinam exatamente cada passo do professor, incidindo consideravelmente na sua autonomia enquanto educador, botando em dúvida o real objetivo do ensino, seja privado ou público. Entre os anos de 1997 e 2006, foram feitas pesquisas sobre parcerias entre o poder público e empresas privadas com o objetivo de implementar seus sistemas de ensino (apostilados) e suporte aos professores também. Porém não se configura apenas uma compra dos sistemas, pois esta mudança é refletida na política educacional das unidades escolares, por isso o termo parceria. Esta parceria implica numa organização das responsabilidades e das políticas públicas. O “APOSTILAMENTO” DE ENSINO: IMPLICAÇÕES E CONSEQUÊNCIAS Com a adoção dos sistemas apostilados, vêm embutidas também algumas mudanças, como o treinamento dos profissionais, na formação continuada dos educadores e até nos processos de avaliação, desta forma mudando também a gestão da unidade escolar. Ao alterar o projeto pedagógico na escola, o trabalho do professor na sala de aula e fora, também é alterado uma resistência nos educadores e o recurso usado para a padronização do trabalho pedagógico nas escolas são as parcerias com o setor privado e com isso se obterá um único referencial pedagógico, tornando o ensino tecnicista novamente. E ainda, tal padronização inibe a autonomia dos profissionais educadores em geral das unidades escolares; Colloquium Humanarum, vol. 9, n. Especial, jul–dez, 2012 Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão, Presidente Prudente, 22 a 25 de outubro, 2012 1113 Esta parceria público‐privada, que resulta na compra de materiais didáticos que esse mostra como um maior investimento do setor público sobre o setor privado e resulta numa padronização do ensino. Tendo em vista os procedimentos adotados sob regência dos sistemas privados, fica claro que na realidade este não é tem um respaldo legal, já que a Constituição Federal destaca que o ensino público deve ser regido pelo princípio da gestão democrática o qual também comparece na LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que inclusive reafirma “a relevância do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas e da participação” (GARCIA; CORREIA, 2011, p. 12). A organização do trabalho na escola se baseia em uma série de fatores como projeto pedagógico e coordenação pedagógica, direção escolar e outros. A adoção de um sistema de ensino implica em todos estes fatores, tornando favorável somente ao capitalismo, como comparado a uma fábrica, onde há uma “lógica de produção” (GARCIA; CORREIA. 2011, p. 12). Em suma, os sistemas apostilados de ensino não abrangem somente a aquisição de apostilas, mas trata‐se de materiais que incidem sobre toda a organização do âmbito escolar e acabam por comprometer a limitar a autonomia limitar e docente. Muitos dirigentes municipais do Estado de São Paulo que se valem do uso dos sistemas apostilados privados ressaltam que a principal justificativa para a sua aquisição é a “[...] falta de condições técnicas para organizar, por conta própria, a estrutura de seus respectivos sistemas ou redes de ensino, daí que os produtos oferecidos pelas empresas privadas de educação atenderiam a esse objetivo”. (GARCIA; CORREA, 2011. p. 3). Portanto, vale enfatizar que dentre as limitações ocasionadas pela adoção de material apostilado ofertados à instituições municipais de ensino se apresentam da seguinte forma: (1) Padroniza‐se o ensino, deixa‐se de contemplar as diferentes realidades das escolas e dos interesses dos professores, os quais, não podendo escolher o instrumento de trabalho que se adapte a sua maneira de ensino e a seus alunos, dificilmente serão bem sucedidos (...) (2) Os sistemas apostilados custam, no mínimo, dez vezes mais que os livros fornecidos pelo MEC. É fato grave, porque o município gasta verba que deveria ser usada na melhoria das instalações escolares e das condições de trabalho do professor, para oferecer material didático comprado com dinheiro público se submeta à avaliação. (3) Usa‐se um material que pode conter sério deslizes porque não passou pela avaliação dos especialistas, como é o caso dos livros didáticos distribuídos pelo MEC. A Abrale defende que todo e qualquer material didático comprado com dinheiro público se submetam à avaliação (LELLIS, 2007. p.11). Colloquium Humanarum, vol. 9, n. Especial, jul–dez, 2012 Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão, Presidente Prudente, 22 a 25 de outubro, 2012 1114 Diante do exposto, os dirigentes e docentes da educação acabam limitados de sua verdadeira e real função de conceptores do seu próprio trabalho e tornam‐se meros aplicadores de um material apostilado de qualidade duvidosa. CONSIDERAÇÕES FINAIS Cabe salientar, que a polêmica e crescente tendência à aquisição de sistemas de ensino por parte dos municípios paulistas acabam por direcionar à um cenário onde se restringe a autonomia escolar e docente, sendo que tais materiais controlam não somente a prática docente, mas incidem também sobre o desenvolvimento das políticas educacionais escolares. A implantação dos sistemas apostilados de ensino, que tem por base a padronização, acaba por restringir, na prática, a efetivação de tais princípios constitucionais afeito à educação, configurando‐se como uma ingerência sobre a organização escolar e docente. Conforme os estudos realizados por Silveira e Mizuki (2011, p.86) consideram que: A restrição à autonomia da escola e do professor pode torná‐lo dependente do material. Além disso, o método pedagógico utilizado pelo “sistema de ensino privado” pode não ser a concepção pela qual o professor se identifica, tornando‐o um mero executor de uma proposta, ou seja, simplesmente um objeto do processo educativo, retirando‐lhe a especificidade de sua função, de ser sujeito/ator desse processo, com a capacidade de planejar e refletir sobre a sua ação. Vale enfatizar, que a elaboração de materiais faz parte da função do professor, consistindo em um exercício de autonomia pedagógica, ou seja, as iniciativas privadas ao procurar padronizar com seus materiais “engessados” retiram toda a autonomia das escolas públicas, e seu direito de elaborar o projeto político pedagógico, de estabelecer o envolvimento dos profissionais da educação e comunidade no âmbito escolar. Desse modo, considera‐se que diante do exposto um dos maiores problemas da adoção de sistemas de ensino privado nas redes municipais de ensino seja a cessão de poder ao setor privado de intervir no setor público de ensino, pois o mesmo está fortemente relacionado a uma estratégia a fim de ampliar seu mercado, controlando e monitorando o uso de materiais apostilados, ressaltando a “qualidade” dos seus serviços e de seus produtos. Colloquium Humanarum, vol. 9, n. 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