Henry Maksoud
A REVOLUÇAO
QUE PRECISA
SER FEITA
AREVOLUÇAO
QUE PRECISA
SER FEITA
Idéias, ensaios, artigos
e conferências publicados
entre junho de 1979 e
março de 1980
e
alguns escritos
anteriores
São Paulo
Editora Visão Ltda.
1980
OBRAS DO AUTOR:
Sumário
COLETÂNEA de editoriais publicados de setembro de 1974 a
março de 1977. São Paulo, Ed. Visão, 1977. 149 p.
IDÉIAS para a nação progredir com liberdade e
empreendimento; coletânea de editoriais, de abril de 1977
a abril de 1978, artigos, conferências e entrevistas. São
Paulo, Ed. Visão, 1978. 136 p.
DEMARQUIA, um novo regime político, e outras idéias ... ; 3~
coletânea de editoriais, artigos e entrevistas (fevereiro de
1978 a maio de 1979). São Paulo, Ed. Visão, 1979. 160 p.
EDITORA VISÃO LTDA.
Rua Afonso Celso, 243
São Paulo - SP
Brasil
Primeira reimpressão: 1984
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
1. Sobre as revoluções que não aconteceram
13
2. "On revolutions that didn't happen"
26
<I)
3. A tal liberdade sindical
39
4. Como dissimular a inflação
43
5. Inflação: mitos e remédios
46
6. A·prioridade das prioridades prioritárias ...
50
7. Não adianta só falar
53
8. Tributação de heranças: forma suave de extorsão
58
9. O Presidente foi à feira
61
10. O logro na linguagem política
65
11. Impostura e equívocos dos imposteiros
68
12. O sisudo Marx está rindo de nós
72
13. Quem são os verdadeiros reacionários?
77
14. Mais partidos ou mais comida?
80
15. A nova roupagem do socialismo
84
16. Socialismo e democracia: amálgama impossível
87
17. O que é que você acha?
90
18. Os intelectuais e suas liberdades
93
19. Devemos ser pessimistas agora?
98
(1) Versão para o inglês, na íntegra, do· ensaio "Sobre as revoluções que não
aconteceram".
5
20. Somos todos extraordinários
101
21. É demagogia, ideologia ou apenas retórica?
104
22. Para que tanta escola de samba?
107
23. A opinião e a lei na demarquia
109
<2J
24. O princípio da separação de poderes existirá
efetivamente na demarquia
112
25. Por que demarquia e não apenas democracia?
115
26. Retrato em 3x4 da demarquia
126
27. O arbítrio da taxação progressiva
130
28. Ideologia do imposto progressivo
133
29. As falácias do tributo progressivo
137
30. Democracia, taxação e demarquia
142
31. CIPs e SUNABs que nada resolvem
147
32. Sindicalismo, mercado e as regras do jogo
150
33. Perigos e inutilidade do sindicalismo sem lei
155
34. Milagre Brasileiro-l/Ninguém sabia o que
estava acontecendo
160
35. Milagre Brasileiro-II/Não é possível fixar o rumo
nem dosar o ritmo do progresso desejável
166
36. Milagre Brasileiro-III/Será que não sabem o
que fazem?
170
37. O que é a inflação? Pode-se contê-la?
173
38., A meia-vitória que pode transformar-se numa
perda total
178
Resumo dos artigos
185
Apresentação
"A Revolução que precisa ser feita" é a quarta coletânea de escritos filosóficos, políticos e econômicos de Henry Maksoud. Ela
dá seguimento a "Coletânea de editoriais publicados de setembro
de 1974 a março de 1977", surgida em março de 1977, "Idéias para a nação progredir com liberdade e empreendimento", de março
de 1978, e "Demarquia, um novo regime político, e outras
idéias", de junho de 1979, todas elas editadas pela Editora Visão
Ltda., de São Paulo.
Esta quarta coletânea reúne os principais artigos e ensaios do
autor divulgados na revista VISÃO entre junho de 1979 e março
de 1980 e seu título deriva de ensaio que Henry Maksoud apresentou no I Encontro Internacional da Universidade de Brasília, em
setembro de 1979. Neste trabalho, aqui reproduzido em português
e inglês, Maksoud demonstra que as tristemente famosas "revoluções" latino-americanas possuem diminuto conteúdo revolucionário, não passando de insurreições, golpes ou rebeliões. As verdadeiras revoluções, como a Revolução Americana contra o domínio
inglês, a implantação do comunismo na Rússia a partir de 1917 ou
a implantação do comunismo em Cuba por Fidel Castro, são bem
diferentes das revoltas e sublevações da América Latina, pois têm
sempre profundo conteúdo ideológico, e causam sempre transformações permanentes, para o bem ou para o mal. Maksoud propõe
também para as nações latino-americanas uma revolução de verdade: qão a que conduz para o mal, como a russa ou a cubana,
mas aquela que trará o regime inequivocamente baseado na liberdade individual, com a decorrente instalação definitiva do progresso acelerado. Esta revolução ainda está por acontecer em qualquer dos países da América do Sul e Central, inclusive o nosso.
Além de escritos nunca anteriormente agrupados em um único
volume, esta quarta coletânea traz alguns já divulgados nas anteriores. Eles aparecem aqui com a finalidade de facilitar ao leitor a
apreensão dó essencial do pensamento do autor a respeito de demarquia, tributação, sindicalismo, inflação e desenvolvimento
econômico, sem que seja necessária a freqüente recorrência às outras três obras.
(2) Os artigos de números 23 a 38 já apareceram em coletâneas anteriores do
mesmo autor.
6
7
EXCERTOS
O que se pode dizer é que, salvo uma ou duas exceções, as
famosas 'revoluções' latino-americanas realmente não chegaram
a acontecer. ( ... ) Talvez se possa dizer que tenham ocorrido
diversos 'surtos' revolucionários, ou seja, violentos impulsos
com a 'intenção' de produzir mudanças político-institucionais
significativas e permanentes. A realidade, porém, é que esses
surtos não balizaram novos rumos, não efetuaram mudanças
permanentes; apesar de tudo que se passou e de todo o
sacrifício realizado, as 'revoluções latinas' foram, até agora,
nada mais que insurreições, rebeliões, revoltas ou sublevações
ou, se se preferir, 'movimentos anti-revolucionários' -mas as
revoluções que tantas vezes foram prometidas nos discursos
insurrecionais não ocorreram na prática.
Sobre as revoluções que não aconteceram, pág. 13
Os piquetes e as demais atividades coercivas sindicais são nada
mais que absurdos e perversos instrumentos de intimidação de
que os sindicatos lançam mão para forçar o consenso. Mostram
que, em verdade, não existe a tão reclamada 'liberdade
sindical'; ou, pelo menos, demonstram que essa liberdade só é
solicitada para os que exercem o poder sindical.
A tal liberdade sindical, pág. 39
Não é difícil dissimular a ação inflacionária. Basta dar asas à
imaginação popular e deixar que os demagogos ou os
economistas equivocados a ela insuflem nomes e conceitos
falaciosos tais como os de que a inflação é 'a especulação altista
dos preços', 'a ganância de intermediários', 'a ação dos
"tubarões" ou "baleias" ', 'a velocidade de circulação do
dinheiro', 'os lucros excessivos dos comerciantes', 'o aumento
no custo de vida', 'o aumento generalizado no nível de preços',
et cetera. A dissimulação é tão perfeita que poucos ficam
sabendo quando estas coisas ocorrem, que elas são efeitos e não
causas da inflação. São conseqüências, e não a própria inflação.
Como dissimular a inflação, pág. 45
8
9
Não adianta falar na importância da iniciativa privada, nem
falar em combater a pobreza, nem falar de melhor distribuição
de riqueza, nem falar em desestatização, nem falar em combate
à inflação, nem falar em desburocratização, nem falar em
prioridades para este ou aquele setor. Se o empreendedor grande ou pequeno, da cidade ou do campo - não se sentir
estimulado a 'pôr em marcha coisas novas' - o que só fará
num regime político e econômico aberto bem definido que o
estimule para tanto -, todas essas falas de nada valerão,
porque não ocorrerão mudanças significativas e permanentes e
portanto não haverá desenvolvimento de verdade.
Seja por equívoco, por tática política ou por simples logro
político, a questão é que, no ambiente de esquizofrenia política
e de total falta de cultura filosófica em que vivemos, não é
difícil propagar que é possível o amálgama de dois elementos
políticos totalmente incompatíveis e heterQgêneos: o do processo
democrático, que só pode funcionar numa sociedade livre e
aberta, com o do socialismo, cujo conceito é um só, a despeito
da numerosa adjetivação de que dispõe e cuja natureza é sempre
totalitária.
Socialismo e democracia: amálgama impossível, pág. 89
Não adianta só falar, pág. 57
Embora os usos que se podem fazer da liberdade sejam muitos a
liberdade é uma só; ela é individual. No ambiente de confusão de
linguagem em que vivemos, entretanto, a palavra 'liberdade' é
usada para exprimir muitos conceitos equívocos e ambíguos. ( ... )
Presume-se, por exemplo, a extensão do conceito de liberdade
pessoal a grupos de pessoas como um todo, ao povo, como se
i~so produzisse. um cert<;> tipo de 'liberdade coletiva'. Um povo
hvre nesse sentido coletlvo, abstrato, não é, entretanto
necessariamente um povo de homens livres.
'
O logro na linguagem política, pág. 66
Ninguém questiona que, numa sociedade moderna e complexa
todos os cidadãos devam contribuir financeiramente para que ~s
governos possam cumprir com as funções que lhes são próprias.
Os homens sabem há muitos séculos que a tributação é o meio
adequado para levantar receitas governamentais. Eles sabem
também (quando prestam atenção) que a aplicação de impostos
pode transformar-se numa terrível arma de tirania, arbítrio e
discricionariedade, principalmente quando a taxação adquire
ideologia socialista, deixando de ser igual para todos e passando
a funcionar, pela via do progressivismo fiscal, como artifício
(totalmente falacioso, aliás) para a chamada redistribuição de
renda.
O filósofo italiano Giovanni Battista Vico (1668-1744) já havia
dito que "o homem se tornou tudo que é sem compreender o
que aconteceu''. Esse pensamento significa muito, pois se refere
à descoberta de um método que permite ao ser humano superar
as limitações do conhecimento individual. A civilização
moderna possibilitou ao homem poderes inimagináveis
principalmente porque, sem compreender o que se passava, ele
desenvolveu métodos de utilização de mais conhecimentos e
recursos que os que poderiam estar contidos em qualquer mente
individual. Todas as instituições voltadas a este tipo de
possibilidade devem ser cultivadas, porque elas se basearão na
liberdade e na espontaneidade e constituirão uma socieade
-aberta.
Milagre Brasileiro - l/Ninguém sabia o que estava
acontecendo, pág. 164
Impostura e equívocos dos imposteiros, pág. 68
10
11
Sobre as revoluções que não aconteceram
Ensaio apresentado no Primeiro Encontro Internacional
da Universidade de Brasília, em setembro de 1979.
As repúblicas da América Latina foram sempre vistas como
países em que as mudanças de governo se realizam irregularmente,
por processos explosivos, inesperados e geralmente pela força militar e a violência. Os historiadores e analistas políticos costumam
ver e descrever esses países como áreas de contínua instabilidade
política, de 'golpes' militares, de fortes paixões políticas, de líderes com forte carisma e de acentuada tendência caudilhista.
O que tem sido lugar-comum nas análises dos fenômenos políticos na América Latina é a severa condenação das trocas de governo que se produzem ou são toleradas ou planejadas pelas forças armadas, que, por sua vez, se dizem representantes dos mais
legítimos interesses do povo e da segurança nacional. É absoluta
verdade que, em toda a história republicana das nações latinoamericanas, as sucessões governamentais sempre se fizeram e continuam a fazer-se, mais ou menos explicitamente, sob a mira das
armas. O que não tem sido, porém, devidamente destacado é que
as chamadàs 'revoluções latinas', tão acerbamente criticadas pelos
entusiastas da democracia. possuem insignifiéante importância
'revolucionária' quando confrontadas com as verdadeiras revoluções, de profundo conteúdo ideológico, que se processam nas suas
sombras.
O que se pode dizer (deixando de lado uma maior preocupação
semântica) é que, salvo uma ou duas exceções, as famosas 'revoluções' latino-americanas realmente não chegaram a acontecer. Não
ocorreram transformações permanentes. como, por exemplo, se
deu com
Revolução Americana de 1776 ou com a implantação do comunismo em Cuba a partir de 1958-59. Não acontece"
ram sequer, pelo menos, mudanças radicais com algum grau de
permanência, como as efetuadas no Chile durante o período
marxista-leninista de Salvador Allende (1970-73). Talvez se possa dizer que tenham ocorrido diversos 'surtos' revolucionários, ou
seja, violentos impulsos com a 'intenção' de produzir mudanças
político-institucionais significativas e permanentes. A realidade,
porém, é que esses surtos não balizaram novos rumos, não efetua-
12
13
ram mudanças permanentes; apesar de tudo que se passou e de todo o sacrifício realizado, as 'revoluções latinas' foram, até agora,
nada mais que insurreições, rebeliões, revoltas ou sublevações ou,
se se preferir, 'movimentos anti-revolucionários'- mas as revoluções que tantas vezes foram .Prometidas nos discursos insurrecionais não ocorreram na prática.
Quem tíver paciência e gosto, e a mente bastante esclarecida filosoficamente, por certo encontrará na análise das inumeráveis
ocorrências 'revolucionárias' na América Latina muitas curiosas
similaridades, coincidências e repetições ao longo das não muitas
décadas <1> de vida republicana nesse continente. O que mais ressalta nestas coincidências e repetições é a preocupação dos condutores vitoriosos dos movimentos rebeldes pelo domínio do Poder
Constituinte e das faculdades legislativas. Quando os autores da
'revolução' procuram ampliar a competência do presidente reduzindo a força do chamado poder legislativo e dos partidos políticos, resultam, normalmente, governos presidencialistas autocráticos e estatocráticos. No outro extremo, a 'revolução' enfatiza as
idéias da representatividade popular e da 'antiautocracia' que conduz à onipotência (simultaneamente constituinte, legislativa e administrativa) das chamadas assembléias de representantes do povo. Em qualquer dos casos, a 'revolução', pelos seus comandantes, resolve legitimar-se por si mesma e, 'em cumprimento de sua
missão histórica de salvaguardar os mais altos interesses do povo',
escolhe fixar, ela mesma, 'os objetivos políticos da Nação'. Mas,
mesmo com todo esse poderio legislativo e constitucional nas
mãos, a quase totalidade dos 'movimentos revolucionários' na
América Latina não resultou, de fato, no estabelecimento de novos rumos políticos - as Revoluções não se fizeram.
Se não foram reais ocorrências revolucionárias, teriam sido então inevitáveis as tantas centenas de movimentos insurrecionais
havidos desde que passaram a. existir, a partir do primeiro quarto
do século XIX, as repúblicas latino-americanas, e que continuam
ocorrendo até os tempos atuàis? E essas chamadas 'revoluções',
com todo o poder constituinte e legislativo que assumiram, terão
construído ou irão desenvolver bases institucionais suficientemente sólidas para salvaguardar as nações de outros períodos de estafa
e de ameaças à liberdade? Criarão elas as condições que propiciem
(1) Das 25 repúblicas latinas atuais, 11 têm entre 150 e 175 anos de vida republicana, 7 possuem entre 110 e 140 anos, o Brasil tem apenas 90 anos, o Panamá 76 e as demais, menos de 9 anos.
às jovens repúblicas escapar de;> inferno do subdesenvolvimento?
Tudo indica que talvez nada pudesse ter sido feito para evitar a
maior parte das reviravoltas políticas no ambiente latinoamericano: faltaram e, infelizmente, ainda faltam às relativamente jovens repúblicas os estames da vida constitucional -é chocante fazer constar que esses países nunca tiveram, de fato, uma filosofia política balizando claramente suas instituições governamentais; os sistemas de governo que pressupunham um regime político
definido sempre foram nada mais que corpos estranhos transplantados e sujeitos a rejeição. Foram contínuos equívocos de enfoque
político que fizeram com que essas nações supusessem estar desfrutando um estado de direito quando estavam, na verdade, num
quase estado de anarquia. (E, por felicidade, por não saberem exatamente o que se passava, essas nações livraram-se de viver pior
ainda do que viveram.)
As Repúblicas da América Latina foram todas implantadas a
partir de movimentos de libertação contra o colonialismo e a autocracia monárquica, similares na forma à Revolução que culminou
com a independência dos Estados Unidos da América. ü que parece ter ocorrido após a implantação das diversas Repúblicas foi a
intensificação de uma 'epidemia política' que poderíamos denominar 'democratite aguda', que é uma espécie de degeneração, pelo
positivismo e pelo socialismo, dos ideais originais de democracia.
Essa enfermidade política provém de um tipo de 'vírus psicossocial', geralmente ativado por intelectuais equivocados, demagogos, socialistas de todos os matizes e por fanáticos de todo tipo,
que leva a um fenômeno de rejeição constitucional, seme~hante ao
dos tecidos orgânicos frente a um transplante estranho. E um 'vírus' que existe endemicamente mesmo nos países que têm a felicidade de possuir sólidas tradições constitucionais, e de quem as nações mais jovens copiaram muitos de seus arranjos institucionais.
Em realidade, são pouquíssimos os países que possuem uma tal
profunda tradição constitucionalista: além dos Estados Unidos e
de outros países de língua inglesa, somente mesmo as nações da
Europa do Norte e a Suíça. Quase todos os demais países nunca
preservaram uma constituição o tempo suficiente para torná-la
uma tradição profundamente encravada nas suas instituições. A
estes também falta, geralmente, todo o 'back-ground' de tradições
e convicções que fez funcionar adequadamente as instituições naquelas nações venturosas mais evoluídas, a despeito de as suas
constituições não explicitarem tudo que pressupunham ou de, como no caso da Inglaterra, nem sequer existirem em forma escrita.
15
14
A inexistência desse 'back-ground' político-cultural é flagrante
nas repúblicas mais jovens e independentes da América Latina.
Nelas a tradição nem de longe se equivale aos ideais políticos do
Estado de Direito que certas nações da Europa e os Estados Unidos mantêm há tanto tempo. Acontece, porém, que esses países
jovens, inclusive o Brasil, a Argentina, o Chile, o Uruguai, aVenezuela, etc., passaram a adotar as instituições da democracia daquelas nações mais evoluídas politicamente, sem trazer com elas
certos princípios e crenças fundamentais que sempre estiveram subentendidos nas mesmas. Os paíSes mais jovens latino-americanos
vêm copiando os sistemas constitucionais representativos das nações mais adiantadas do Ocidente simplesmente pelo transplante
de certos órgãos ou arranjos institucionais mais aparentes dessas
chamadas 'democracias ocidentais', deixando porém de considerar os princípios subentendidos e não explicitados mas que constituem a verdadeira base ideológica dos sistemas de governo daquelas nações. São justamente esses princípios que têm preservado até
agora os regimes políticos çlas nações do Ocidente, a despeito do
fortíssimo e persistente ataque de 'democratite socialista' que
contra eles vem sendo perpetrado há bem mais de cem anos.
Na América Latina, inúmeros e freqüentes são os exemplos de
graves crises e insurreições que foram geradas sempre, no fundo,
por falta de explicitação inequívoca, nas constituições, dos princípios político-filosóficos que dariam o suporte ideológico ao regime e dos arranjos institucionais que permitiriam tornar viável a
realização de governos representativos que, a par de terem o endosso democrático (as graças do povo), representassem de forma
insofismável um sistema de salvaguarda da liberdade do indivíduo. Os fenômenos políticos que ocorreram durante a história republicana latina nos períodos de livre funcionamento do aparelhamento democrático e nos chamados períodos de 'abertura' ou 'redemocratização' são bem característicos da falta dessa explicitação.
As forças que acenderam os pavios das freqüentes e agudas crises institucionais sempre surgiram carregando bandeiras de reformas sociais radicais. Apresentando-se geralmente na forma de
partidos ou facções minoritários, procuravam freqüentemente
robustecer-se por meio de alianças, mesmo que precárias e eventuais, com o próprio poder governamental ou então com partidos
mais solidamente estabelecidos (porém indefinidos ideologicamente e apaziguadores}, formando com estes 'frentes', 'comitês' ou
'movimentos' que se autodenominavam 'reformadores', de 'ação
democrática' 'revolucionários', de 'ação popular', etc. Essas
alianças nun~a foram difíceis no ambiente latino-americano porque, devido a falsos conceitos de pluralismo democrático, ~multi­
plicidade de partidos ou facções sempre prevaleceu na região durante os períodos de 'abertura democrática' ou 'redemocratização' (em que os partidos não estavam banidos}, de mod~ qu~ s~m~
pre foi comum a formação de governos sustentados por maio~Ias
resultantes de coalizão partidária. Nesse ambiente de composição
política, caracterizado pelo hibridismo em term~s de idéia~, as facções e os partidos mais radicais sempre c~nsegm~am mampul~r ?~
mais conservadores por meio do falso dilema: reformas sociais
ou instabilidade e revolução. Ou seja, para evitar a perda do poder governamental ou o derramamento de sangue e o caos social,
teria que haver certas 'reformas de base'. Nem sempre porém essas
'reformas' foram levadas a termo pelos próprios 'reformadores';
elas, no entanto, não raro deram partida às freqüentes insurrei•
ções observadas na América Latina <2>·.
A pobreza a miséria e a frustração das 'classes menos favorecidas' foram se~pre os lemas de sustentação das teorias reformadoras. De acordo com elas, essas iniqüidades teriam que ser eliminadas por meio de medidas legislativas discricionárias e da intervenção do governo com o objetivo de realiz~ a ·~efo~ma soci.al'.
Além da sua missão original de fazer cumpnr a lei e dispensar JUStiça legal, os governos teriam que assumir (como efetivamente assumiram) o papel de redistribui dores da riqueza. e de reformador~s
da sociedade, acrescentando para si a prerrogativa de elaborar leis
de toda natureza. Essa situação caracteriza bastante bem a associação política das facções ou partidos 'progressistas', de 'ref~r­
ma' ou 'revolucionários', por exemplo, com os democratas cnstãos em muitos países; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o
Partido Social Democrático (PSD) no Brasil; o Partido Socialista
Cristão, o COPEI (Comité de Organización Política Electoral ln(2) Assim aconteceu, por exemplo, no famoso 'Com~cio das l!;eformas' d~ 1~
de março de 1964, no Rio de Janeiro, em que o pres1dente Joao Goulart, mcltado por facções (pr!ncipalmente. si'!d!catos trabalhis~~s) ~ parti~?s ;;eformad?,res', classificou a v1gente Const1twçao de ~~46 de a~t~quada .'. ,superada ,
"injusta" e "desumana" e que, por isso, era necessarw modij1ca-la profundamente para poder o governo efetuar as reformas de estrutura e (ie base ~~:
gidas pelo povo e reclamadas pela naçã?"· Foi ~gota de água que conduziU a
sua destituição e substituição por um s1stema m1l1tar de governo ,que p~sou a
ser denominado 'Revolução de Março de 1964', que perdura ate os d1as presentes.
17
16
dependiente) e a Acción Democrática na Venezuela; e, também,
embora soe paradoxal, com os governos militares (que geralmente
destituíram os 'reformadores' mais radicais) da Argentina, Brasil,
Peru, Cuba, Guatemala, Panamá, etc.
A característica mais notável dos regimes militares nos últimos
decênios na América Latina é o seu atrelamento a programas de
ação social e previdenciária. Esse papel reformista foi adotado por
eles por influência da onda socialista internacional e pela intensa
atividade marxista e positivista nos meios político, religioso, militar e universitário. Dos programas de ação cívica e de repressão
anticomunista, comuns nas etapas iniciais dos movimentos revolucionários, passaram as forças armadas governantes a acreditar em
programas estatizantes, de bem-estar social, de distributivismo e
no desenvolvimento econômico através de ação nacionalista, centralizadora, estatólatra e tecnoburocrática. Não encontrando solução para os problemas que se propuseram resolver com os movimentos 'revolucionários' e a fim de se manterem no poder, inclusive por não saberem como transferi-lo com segurança, os governos
militares encaminharam-se para o populismo, muitas vezes usando métodos demagógicos para tentar ampliar sua força junto ao
eleitorado nas ocasiões eventuais em que faziam funcionar o processo democrático. Daí se destacou um novo persodagem no mundo da política, o líder militar sócio-político que, na procura de
uma imagem de estadista frente à história e de caminhos encurtados de distribuição de riqueza e de autarquia nacional, se envolve
num emaranhado de equívocos e, às cegas, abraça programas
marxistas, embora sob outros nomes e a despeito da tradicional
hostilidade das forças armadas latino-americanas ao comunismo.
Todos esses eventos políticos possuem causas com raízes profundas localizadas nos países com mais vivência política independente. Na Inglaterra, séculos atrás, quando o governo era representado apenas pela figura do monarca, o que os homens queriam
era estabelecer uma limitação a seu poder absoluto. Conseguiram
isso com o desenvolvimento de um sistema de governo constitucional representativo, baseado numa série de princípios, doutrinas e
crenças, e, durante um certo tempo, desde o século XVIII até meados para o fim do século XIX, viveu aquela nação governada com
base na doutrina da separação de poderes e sob a égide do ideal
político do estado de direito fundado na liberdade individual, que
nada mais era que um 'governo da lei e não de homens'. A ênfase
dogmática à democracia, que surgiu quase que simultaneamente
com a intensa pregação socialista em meados do século XIX, fez
18
com que se passasse a associar a idéia da soberania do povo, em
substituição ao monarca soberano, à expressão organizada das carências desse mesmo povo, gerando daí um conceito de democracia ilimitada, uma espécie de 'democratismo', que tudo permitiria,
inclusive a legislação arbitrária e discricionária positivista, q?a?do
se tratasse de saciar a 'vontade popular' e de atender às elastlcas
demandas de uma atávica 'justiça distributiva', hoje denominada
'justiça social'. O regime político que, na ~nglat~rra, ~<?s tempos
do liberalismo clássico, possuía toda sua filosofia pohttca só em
forma subjacente e não explícita 'contraiu', assi~, o vírus da 'democratite', como se 'pega' uma forte pneumoma.
Com o democratismo virulento, a soberania autocrática do ditador ou do monarca é transferida para os 'órgãos representativos' do povo. O conceito de que 'todo o poder ~m.~na do po~o. e
em seu nome é exercido' passou a traduzir uma Ideia de dommw
supremo e ilimitado da maioria, profundamente enfática quanto à
representatividade popular sindical nas entida,d~s do gover?o.' e
com exagerado relevo ao partidarismo, ao sufrag~o co~?. ob]et)vo
político autárquico e, principalmente, a uma am,big~a Ideia de pluralismo ideológico. A questão fundamental porem e a de q?e o democratismo não estabelecia qualquer balizamento que onentasse
como os representantes do po~o. nos três po~e~es de,ve~iam legislar, julgar as disputas ou admimstrar os negocws pubhcos: Nem
dava qualquer atenção aos atributos da estrutura _le~al do sis~em_a
político subjacente. Pelo contrário: a representatividade,_ o smdi~
calismo o pluripartidarismo e a votação passaram a ser fms em SI
mesmo;, como se fossem partes complementares e exclusivas da
definição de um novo regime político (3)_ As leis (degeneradas em
seu conceito original pelo consórcio do democratismo. com o socialismo e o positivismo legal) passaram a ser tudo aqmlo que fosse determinado pela vontade da coalizão majoritária eventual ou
do poder dominante; tudo que era produzido pelas legislaturas ou
(3) o pluripartidarismo, por exemplo, é às vezes colocado co:rz~ se houvesse
no mundo um número infinito de opções de mteresses e objettvos humanos
que deveriam ter representação partidária. Em realidade, o que se observa são
uns tantos políticos, dirigentes e/assistas e afins que procuram. campo P_ara,
mais que propriamente atender a legítimos anseios de seu elettorado, JOgar
suas ambições pessoais de liderança no mercado do poder (ver "Precjsamos de
novos partidos ou de um regime político?", R,·. Maksoud, em_ ~!S"'!,O· 1~-1278, e em "Demarquia, um novo regime poltttco, e outras tdetas , Edttora
Visão Ltda., São Paulo, junho, 1979, página 88).
19
m~smo pelos governos passou a ser chamado de 'lei'; essas 'leis'
deixaram de ser normas gerais, prospectivas e abstratas de justa
conduta, como devem ser as leis no verdadeiro estado de direito.
(A corrupção do conceito original de Lei foi o mais fatídico efeito
da aplicação equivocada do método democrático com fortes aderências socialistas e positivistas.)
. Quando os r.epresentantes do povo passaram a agir dessa maneira no executivo e no legislativo, como se tivessem herdado as
prerrogat!~as reais, a sepa~ação de poderes desapareceu completam~n~e; ahas, ela sempre fm apenas formal. A verdade é que jamais
existiU em lugar algum uma assembléia exclusivamente legislativa
nos moldes da que tinham em mente os idealizadores da doutrin~
da separação de poderes; também nunca existiu um poder executivo governamental que não sofresse ação direta do órgão legislativo em suas atividades administrativas ou então que não atuasse
como se fosse também uma entidade legislativa. A separação de
poderes sempre existiu apenas formalmente, porque os fundamentos da doutrina original nunca passaram da teoria e esta foi completa!llente esquecida. Os órgãos legislativos concebidos pelos
1deahzadores do governo representativo constitucional como sendo e.nt!d.ades i~dependentes: sem atividade nem relação políticopart~dana, dedicadas exclusivamente à legislação e limitadas apenas, a. elabo!ação de normas universais de justa conduta (que são
as umcas leis de verdade), foram convertidos em órgãos legiferantes COJ? poderes ilimitados que, em geral, se entrelaçam com os
executivos governamentais, funcionando, praticamente, como se
fo~se~ uma entidade ~nificada (4l. De outro lado, observam-se,
pnncipalme~te ~os regimes mais autocráticos, os executivos gover~amentms deixando para segundo plano as atividades administrativas que lhes são próprias, passando também a 'legislar' abundantes regulamento,s, ~alsas leis, decretos e 'políticas', principalme~te e!ll causa propna, .tornando-se cada vez mais poderosos e
autarqmcos, com o crescimento exponencial do estatismo e tendendo gradualmente para o totalitarismo.
. Esses 'arranjos governamentais' onipotentes, desenvolvidos no
sew das democracias sem princípios definidos ou com falso balizam_ento, assumem prerrogativas discricionárias para aplicar ânus e
tnbutos ou conceder benefícios expressos a grupos ou pessoas;
(4) Essa situação pode ser visualizada com toda clareza nos sistemas parlamentares europeus, como por exemplo na Inglaterra, Itália, Espanha, etc.
20
adotam com freqüência medidas concretas referidas a casos específicos conhecidos, para atingir indivíduos, organizações, atividades, lugares ou objetos em particular; e autorizam a coerção a que
tais decisões obrigam. Entidades assim ilimitadas, que se ocupam
de 'construir' objetivos predeterminados e não de princípios gerais
de conduta, não conseguem suas resoluções mediante genuínos
acordos de maioria, mas somente através de coalizões majoritárias
eventuais, obtidas mediante 'arreglos', 'chicanas' e 'barganhas',
ou através da força.
Constatações de degeneração como essas são fartas também na
história política da América Latina. Os fatos obviamente não se
repetem sistematicamente nem podem ser idênticos. Mas o cenário
geral de equívocos de conceitos político-filosóficos se repete em
suas linhas gerais como num círculo vicioso: a opinião pública,
que num regime autocrático se torna influenciada por campanhas
intelectuais constantes contra a onipotência presidencial, se inclina
a favor da 'abertura política', representada pelo voto, pela participação, pelo sindicalismo, pela representatividade, pelo pluripartidarismo, pelo distributivismo, etc. Isso tudo, nas repúblicas latinas, desemboca num Congresso. Este, triunfante, assume o papel
de salvador das liberdades públicas e, para manter-se na crista do
poder, intensifica o fetichismo democrático procurando fazer crer
ao povo que a destruição da autocracia onipoterite do executivo
importaria automaticamente para a nação no começo de uma nova era de bem-estar, liberdade e justiça. A observação da realidade
mostra, porém, o desenvolvimento de uma nova forma de tirania,
representada, agora, pela onipotência dos Congressos, ou seja,
dos grupos de interesses (p. ex., os sindicatos) ou dos partidos políticos que controlam, predominam ou formam blocos majoritários nessas assembléias de representantes do povo. Sem qualquer
limitação por princípios e normas gerais de conduta, e por não haver uma real separação de poderes, o Congresso passa a produzir
leis que não são leis de verdade (para que, em última análise, os
grupos e as personalidades se mantenham no poder) e intervém cada vez mais na gestão governamental, chegando mesmo a querer
confundir-se com o executivo, dando partida a um novo processo
vicioso em que: a) ou os poderes legislativo e executivo se entrelaçam e tornam-se conjuntamente ilimitados; ou b) os dois poderes
se chocam, resultando vitorioso e, pois, onipotente um ou outro
deles. No primeiro caso, a liberdade individual passa a ser chamada de 'liberdade coletiva', a justiça passa a ser 'justiça social', deixa de existir a soberania da lei, voltando, como na autocracia, o
21
governo dos homens e não das leis, e a própria lei deixa de ser
igual para todos e passa a ser arbitrária, discricionária e, até, de
efeito retroativo. A nação não se verá mais feliz nem mais livre
que antes, pois apenas se libertaria de uma situação de domínio de
um senhor para cair na dependência de muitos. Tende rapidamente para o totalitarismo. No segundo caso pode ocorrer algum tipo
de 'movimento revolucionário' que resulta normalmente num governo presidencialista autocrático, geralmente sustentado pelas
Forças Armadas, e que "se legitima por si mesmo", pela força do
poder, e assume, como sempre, em todas as supostas revoluções, o
exercício de Poder Constituinte. Após algum tempo, o 'impulso
revolucionário' se esgota sem que se tenha realizado qualquer revolução de verdade e o processo de 'abertura' tem início outra vez,
como num círculo vicioso ...
Fenômenos como esses ocorreram, com leves variações e tonalidades locais, em praticamente todos os países latinos ao longo de
toda sua história republicana. As grandes crises nacionais constituem, no fundo, verdadeiras crises de rejeição constitucional. São
crises de reação imunizante aos arranjos e órgãos institucionais
transplantados sem qualquer 'back-up' ideológico. São, pois,
noutras palavras, crises decorrentes de tentativas de imposição de
procedimentos democráticos num ambiente social praticamente
desorientado em termos constitucionais, inclusive por não dispor
'a priori' de qualquer balizamento de tradições e convicções
político-filosóficas.
A adoção quase mecânica das instituições da democracia das
nações ocidentais mais evoluídas politicamente, sem adotar também, explicitamente, certos princípios e crenças fundamentais,
constitui a razão da incompatibilidade dos transplantes e a causa
das rejeições. As falhas nas tentativas de transplante, entretanto,
não provam que os conceitos básicos da democracia são inaplicáveis nas nações mais 'jovens' politicamente mas sim que aquelas
crenças e aqueles princípios, subentendidos nas constituições dos
países ocidentais mais evoluídos, devem ser tornados partes escritas das novas constituições como são as demais partes das mesmas. (Isso, principalmente por falta de tradições enraizadas dessas
crenças e pela ocorrência moderna de tremenda pressão degeneradora atuando sobre os ideais originais da democracia.)
É um grave e fatídico erro pensar que a democracia seja um regime político que contém objetivos próprios. A democracia é um
método de tomada de decisões, sendo, por isso, incapaz de ser um
fim em si mesma, independentemente de quais forem as decisões
que ela venha produzir em determinadas condições históricas. É
22
um engano terrível, também, pensar que certos conceitos não devam ser devidamente estabelecidos, por escrito, na Constituição;
muitas pessoas de boa fé costumam dizer que a democracia é um
"estado de espírito e um estilo de vida", fazendo com que se creia
que nas chamadas 'constituições democráticas' certos princípios
são automaticamente subentendidos. Esta é, hoje, uma perigosa
armadilha. E o estabelecimento nas constituições do 'capítulo das
liberdades', também conhecido como 'capítulo dos Direitos e Garantias Individuais', geralmente copiado das constituições francesa e americana, não dá o conteúdo ideológico ou, mesmo, uma base libertária ao 'regime político' supostamente descrito na constituição; inclusive porque aquelas 'liberdades' são condicionadas a
leis cujos atributos gerais não são definidos na constituição e que
serão elaboradas e/ou modificadas aleatoriamente no futuro.
Olhando através desse caleidoscópio político, qualquer pessoa
sensata quer saber o que pode ser feito para mudar essa maré de
insurreições, agitações e instabilidade constitucional que só serve
para preservar o subdesenvolvimento e para manter a liberdade do
indivíduo sob ameaça permanente.
Já que o diagnóstico é o de um fenômeno de rejeição constitucional de causa ideológica, nosso primeiro passo será reconhecer a
necessidade de conter a maré no 'front' ideológico. Isto significa
que o estabelecimento e a preservação de um regime de liberdade
exigem, em primeiro lugar, uma tarefa político-filosófica de reformulação das normas de organização dos nossos sistemas de governo. Para tanto, precisamos recuperar os conceitos perdidos na medida em que se fez mau uso dos princípios e ideais da separação
dos poderes, do estado de direito e do governo subordinado à lei,
que os teóricos e fundadores do sistema de governo representativo
constitucional pretendiam transmitir às futuras gerações.
Para salvar o que ainda não estiver perdido para o totalitarismo e para evitar a freqüente recorrência do violento processo de
rejeição constitucional, é necessário corrigir os sistemas existentes
naqueles aspectos que provocaram o desvirtuamento das idéias
originais tanto da democracia quanto do constitucionalismo representativo, fazendo a revolução que até agora não aconteceu em
qualquer república latino-americana. Isto levaria a uma reformulação constitucional realmente revolucionária, que permitiria o desenvolvimento de um novo sistema político, sensivelmente diferente dos que temos hoje nas chamadas democracias ocidentais <5>. As
(5) "Demarquia, um nova regime política, e outras idéias".
23
duas atribuições distintas, a da legislação, no seu autêntico sentido
clássico, e a do governo, no sentido de administrar, teriam que ser
executadas, nesta nova estrutura, por duas entidades democráticas
diferentes e totalmente independentes entre si, com funções inteiramente distintas e nitidamente separadas. Estas duas entidades
não seriam só duas assembléias representativas separadas apenas
formalmente, como ocorre hoje: seriam escolhidas e organizadas
com base em dois princípios completamente diferentes, e, pela primeira vez, existiria uma verdadeira separação de poderes.
A entidade executiva governamental seria algo mais ou menos
no gênero dos congressos ou parlamentos existentes, cuja organização e maneira de proceder se conformam à necessidade de governar (administrar) e não à necessidade de legislar. Algo muito
diferente seria necessário para a constituição de uma verdadeira
assembléia legislativa. O que se quer é uma assembléia que não leve em conta as necessidades ou os interesses de determinados grupos ou facções mas. os princípios gerais permanentes sobre os
quais estariam ordenadas as atividades da comunidade. Seus
membros e resoluções representariam não grupos específicos e
seus anseios particulares, mas a opinião predominante sobre o tipo
de conduta considerado justo. Para estabelecer as normas que deveriam vigorar por muito tempo, e que seriam iguais para todos e
sempre prospectivas, esta assembléia teria que ser 'representativa'
ou reproduzir uma espécie de corte transversal das opiniões predominantes sobre o certo e o errado; seus membros não poderiam ser
os porta-vozes de interesses particulares ou expressar a 'vontade'
de um setor específico da população. Seriam homens e mulheres
de elevada confiança e respeitados pelos traços de caráter demonstrados nos seus afazeres normais e não precisariam da aprovação
de grupos específicos de eleitores ou partidos políticos. A disciplina partidária, necessária para a unidade de uma equipe governamental, é, entretanto, evidentemente indesejável num organismo
legislativo que estabelece normas que limitam os poderes do governo. Pôr isso a eleição dos legisladores não teria qualquer relação
partidarista (6).
Algumas outras referências:
a) "The Quest for an Ideology", H. Maksoud, trabalho apresentado na reunião geral da Mont Pelerin Society em Hong Kong, setembro, 1978.
b) "A Ditadura Republicana,
Porto Alegre, Brasil, 1957.
egundo Augusto Comte", Jorge Logarrigue,
c) "The Mirage of Social Justice", F.A. Hayek, in Vol. 2, "Law, Legislation
and Liberty", Routledge and Kegan Paul, London, 1976.
d) "The Politicai Order of a Free People", F.A. Hayek, in Vol. 3, "Law,
Legislation and Liberty", Routledge and Kegan Paul, London, 1979.
e) Constituições de diferentes países centro e sul-americanos.
f) "Constitutions of the Countries of the World", Ed. A.P. Blaustein & G.H.
Flanz, Oceana Publications, Inc., USA.
(6) "Economic Freedom and Representative Government", F.A. Hayek, Londres, 1973.
24
25
On revolutions that didn't happen
English version of the paper "Sobre as revoluções que
não aconteceram'', presented at the First International
Meeting of the University of Brasília, September, 1979.
'attempts' have occurred, that is, violent impulses with the
'intention' of producing significant and permanent politicalinstitutional changes. The truth is, however, that these attempts
did not establish new directions or effect permanent changes:
despite everything that happened and ali the sacrifices made, the
'Latin revolutions' have been, until· now, nothing more than
insurrections, rebellions, revolts or uprisings, or, if one prefers,
'anti-revolutionary movements', but the revolutions so often
promised in insurrectionary rhetoric did not take place in practice.
If one is so inclined and has the patience anci a mind sufficiently
La~in
American republics were aiways viewed as countries in
wh1ch changes .of governments were accomplished irregularly, by
s~dden, explos1ve processes and,generally, by military force and
vwie~ce. Historians .and politicai analysts customarily see and
descn.b.e these countnes as areas of continuai politicai instability,
of ~1hta~y coups, of powerful politicai passions, of strongiy
chansmat1c Ieaders and of accentuated 'caudillist' tendency.
What has been commonplace in the analyses of these politicai
phenomena in Latin America is the severe condemnation of the
changes of government that are produced, planned or tolerated by
the armed forces who, in tum, name themselves as the
representatives of the most legitimate interests of the people and
of the nationai security. It is absolutely true that throughout the
republican history of the Latin American countries 1, governmentai
successions have aiways been and continue to be made, more or
less expiicitly, by means of force of arms. What has not, however,
been duly emphasized is the fact that the so-calied 'Latin
revolutions:, so bitterly criticized by enthusiasts of democracy,
possess insignificant 'revolutionary' importance when
confronted with the true revolutions, of profound ideological
content, that are taking piace in its shadows.
1
What may be said (leaving aside any special semantic concern) is
that, save one or two exceptions, the famous Latin American
revoiutions really never got to occur. Permanent politicai
transformations have not resulted as was, for example, the
consequence of the American Revolution ( 1776 ). or the
impiementation of Communism in Cuba after 1958-59.' Nor did
radical changes occur even with some degree of permanence as in
Chile during the Marxist-Leninist regime of Salvador AIIende
(1970-73). Perhaps one couid say that severa! revolutionary
26
enlightened philosophicaliy, he may certainly find,in analysis of
the innumerable 'revolutionary' incidents that have oecurred in
Latin America, many curious similarities, coincidences and
repetitions throughout the not so many decades{ll of republican
life on this continent. What is most outstanding in these
coincidences and repetitions is the preoccupation of the victorious
leaders of the rebel movements with .the domination of the
Constituent Power and of legislative faculties. When the authors
of the 'revolution' seek to expand the authority of the President by
reducing the force of the so-calied legislative power and of
politicai parties, the results usualiy are autocratic and statist
governments. At the other extreme, the 'revolution' emphasizes
the ideas of popular rt;presentativity and of 'anti-autocracy' that
lead to the omnipotence (simultaneously constituent, legislative
and administrative) of the so-calied peoples' representative
assemt>lies. ln any of these cases, the 'revolution', through its
leader, decides to legitimate itself and 'in fulfillment of its historie
mission of safeguarding the highest interests of the people'
chooses to establish, by itself, 'the politicai objectives of the
Nation'. But even with ali this legislative and constituent power in
its hands, practicaliy none of the 'revolutionary movements' in
Latin America did, in fact, result in new politicai directions - the
revolutions did not occur.
If they were not real revolutionary accurrences, then would the
many hundreds of insurrectionary movements, that took place
since the Latin American republics carne into being in the first
(1) Of the present 25 Latin republics, 11 h ave had republlcan forms of government
for 150 to 175 years, 7 between 110 and 140 years, Brazilforonly 90 years, Panama
for 76 years and the rest, less than 9 years.
27
quarter of the 19th Century and which are still taking place today,
have been inevitable? And these so-called 'revolutions', with all
the constituent and legislative power that they assumed, will they
have constructed or will they develop sufficiently solid
institutional bases to safeguard the nations from other periods of
strife and threats to liberty? Will they create conditions that will
permit the young republics to escape the hell of
underdevelopment?
All indications are that perhaps nothing could have been done to
avoid the great number of politicai reversals in the Latin American
environment: unfortunately, the relatively young republics have
always lacked, and stilllack, the stamina of constitutionallife- it
is shocking to have to state that these countries really never had a
clearly guiding politicai philosophy in their governmental
institutions; the systems of government that were supposed to
have a defined politicai regime were always nothing more than
foreign bodies, transplánted and subject to rejection. There were
continuous mistakes in the politicai focusing that made it appear
that these nations were under the Rule of Law, when in fact they
were practically in a state of anarchy. (And, fortunately, by not
knowing exactly what was happening, these countries freed
themselves from a life even worse than that which they had led.)
All of the Latin American republics were implemented as a restilt
of liberation movements against colonialism and monarchical
autocracy, similar in nature to the Revolution that culminated in
the independence of the United States of America. What seems to
have occurred after implementation of the various republics was
the intensification of a 'politicai epidemie', which we could call
'acute democratitis', a type of degeneration, through positivism
and socialism, of the original ideais of democracy. This politicai
infirmity derives from a type of 'psycho-social vírus', generally
activated by misguided intellectuals, demagogues, socialists of all
shadings and all types of fanatics, who induce a phenomenon of
constitutional rejection, similar to that which may occur in
organic tissues subjected to a foreign transplantation. It is a 'vírus'
that exists endemically even in those countries that have the good
fortune of possessing solid constitutional traditions, and from
whom the younger nations have copied many of their institutional
arrangements.
Actually, very few countries possess such a deep constitutional
tradition: aside from the United States and other English-speaking
28
countries, only Switzerland and the nations in the north of
Europe. Almost nane of the other countries preserved a
constitutional form of government long enough to establish a
deeply embedded democratic tradition in their institutions. These
countries also generally lack all of the background of tradition and
beliefs that made the institutions function adequately in those
more fortunate developed nations, despite the fact that their
constitutions did not spell out explicitly all that was presupposed,
nor, as in the case of Great Britain, did even exist in written form.
The inexistence of this cultural-politicai background is flagrant
m the younger and independent republics of Latin America. ln
these countries, tradition cannot even remotely approach the
politicai ideais of the Rule of Law that some European nations
and the United States have sustained for so long. It happens,
however, that these young countries, such as Brazil, Argentina,
Chile, Uruguay and Venezuela, began to adopt the democratic
institutions of those more politically evolved nations, without
bringing with them certain fundamental principies and beliefs that
were always presupposed in them. The younger Latin American
countries have been copying the constitutional representative
system of the more advanced Western nations, simply by
transplant of certain organs or more apparent institutional
arrangements of these so-called 'Western Democracies', failing
however to consider the subjacent and not spelled out principies
which constitute the true ideological foundation of the
governmental systems of those nations. It is exactly these
principies that have preserved until now the politicai regimes of
the Western nations, despite the powerful and persistent attacks of
'socialist democratitis' that has been perpetrated against them for
more than a hundred years.
Innumerable and frequent examples exist in Latin America of
grave crises and insurrections that, basically, were always
generated by a lack of unequivocal statement, in the constitutions,
of the political-philosophical principies that would have given
ideological support to the regime, and of the institutional
arrangements which would make feasible the development of
representative governments, which along with receiving a
democratic endorsement (the blessing of the people), would
represent, without any sophism, a system to safeguard individual
freedom. The politicai phenomena that h~ve occurred throughout
Latin republican history, in the periods of free functioning of the
29
democratic apparatus and in the so-called periods of
'redemocratization' and 'opening', are good indications of the
lack of this statement of principies.
The forces that kindled the flames of the frequent and acute
ínstitutional crises always arose carrying the banner of radical
social reforms. Presenting themselves generally in the form of
parties or minority factions, they frequently seek to strengthen
themselves by means of alliances, even though precarious and
conditional, with the governmental power itself, or with more
solidly established parties (although appeasing and ideologically
undefined), combining to fonn 'fronts', 'committees' or
'movements' that call themselves 'reformers', of 'democratic
action', 'revolutionaries', 'popular action', and so on. These
alliances were never difficult in the Latin American environment
because, due to false concepts of democratic pluralism, the
multiplidty of parties or factions always prevailed in the region
during the periods of 'democratic opening' or 'redemocratization'
(when parties were not banned), so that it was common to witness
the formation of governments sustained by 'majorities' resulting
from party coalitions. ln this environment of 'politicai
arrangements', characterized by hybridism in terms of ideais, the
more radical factions and parties always managed to manipulate
the more conservative by means of the false dilemma: 's"ocial
reforms' or instability and revolution. That is, to avoid the loss of
governmental power or bloodshed and social chaos, certain
'fundamental reforms' would have had to take place. These
'reforms',however, were not always carried out by the 'reformers'
themselves; nonetheless, they not infrequently gave impetus to the
in::~urrections so often observed in Latin America<2>.
The poverty, misery and frustration of the 'less fortunate classes'
have always been the basis of supporting slogans of reform
theories. According to these theories, such iniquities would have
(2) Thus it carne about, for exarnple, in the farnous 'Reforrn Rally' of March 13,
1964, in Rio de Janeiro, that President João Goulart, instigated by factions (rnainly
labor unions) and reforrner parties, scorned the Constitution of 1946, then inforce,
as "a.'ltiquated'; "outrnoded'; "injust"and "inhurnane'; and concluded that for this
reason "it was necessary to rnodify it profoundly, to enable the governrnent to
effect the structural and basic reforrns dernanded by the people and clairned by the
nation ': It was the last straw which led to his deposition and substitution. by a
rnilitary sistern of governrnent which carne to be denorninated the 'Revolution of
March 1964', which has endured to this day.
30
to be eliminated through discriminatory legislative measures and
government intervention with the intent of realizing 'social
reform'. Beyond their original mission of enforcing the law and
dispensing legal justice, the governments would have to assume (as
they have effectively done) the role of redistributors of wealth and
reformers of society, taking upon themselves the prerogative of
enacting laws of all types. This situation is quite symptomatic of
the politicai association of 'progressive', 'reform', or
'revolutionary' factions or parties with, for example, Christian
democrats in. many countries; the Brazilian Labor Party (PTB)
and the Social Democratic Party (PSD) in Brazil; the Christian
Socialist Party, COPEI (Committee of Independent Electoral
Politicai Organization) and the Democratic Action in Venezuela;
and also, although it may sound paradoxical, with the military
governments of Argentina, Brazil, Peru, Guatemala and Panama,
among others (which usually have deposed the more radical
'reformers').
The most remarkable feature of Latin American military regimes
over the last few decades has been their adherence to social action
and welfare programs. This reformist role was adopted by them
under the influence of the international socialist wave and of the
intense marxist and positivist activity in the politicai, religious,
military and university realms. From programs of civic action and
anti-communist repression, common during the initial stages of
the revolutionary movements, the armed forces .in power changed
over to believing in state-oriented programs of social welfare,
distributivism and economic development through nationalist,
state-centralist and techno-bureaucratic action. Finding no
solution for the problems which they proposed to solve by the
'revolutionary' movements, and to keep themselves in power (not
knowing how safely to transfer this power), the military
governments turned to populism, frequently using demagogic
methods in an attempt to increase their strength with the electorate
on the occasions in which the democratic process was made to
function. Thence a new personage has arisen in the politicai world:
the socio-political military leader who, in search of a statesman's
image in history and shortcuts to distribution of wealth and
national autarchy, becomes involved in a tangle of ambiguities
and blindly embraces marxist programs, albeit with other names,
despite the traditional hostility of Latin American armed forces
towards Communism.
31
All of these politicai events have deeply rooted causes in countnes
with greater independent politicai experience. ln the England of
centuries past, when the government was represented only by the
figure of the monarch, what men wanted was to establish a limit to
his absolute power. They achieved this by developing a
representative constitutional system of government based on a
series of principies, doctrines and beliefs, and for a time, from the
18th to the middle o r towards the end of the 19th century, that
nation enjoyed a government based on the doctrine of separation
of powers and lived under the aegis of the politicai ideal of the rule
of law founded on individual liberty, which was nothing more
than a 'government of law, not of men'. The dogmatic emphasis on
democracy which arose almost simultaneously with the intense
socialist preaching of the mid-19th century, gave rise to the
association of the idea of sovereignty of the people, replacing the
sovereign monarch, with the organized expression of the wants of
this sarne people, thereby generating a concept of unlimited
democracy, a species of 'democratism', which would permit
everything, including arbitrary and discriminatory positivist
legislation, when dealing with the satiation of the so-called 'will of
the people', and when attending the elastic demands of an atavistic
'distributive justice', today denominated 'social justice'. The
politicai regime which, during the era of classical liberalism in
England, contained its entire politicai philosophy merely in a
subjacent, non-explicit form, 'contracted'in this way the virus of
'democratitis', as one 'catches' a bad case of pneumonia.
With this virulent democratism, the autocratic sovereignty of the
dictator or monarch is tranferred to the 'representative organs' of
the people. The concept that 'all power emanates from the people
and in its name is exercised' carne to translate the idea of supreme,
unlimited majority rule, profoundly emphatic with respect to
popular union representativity in government entities, and with
exaggerated importance in partisanship, to suffrage as an
autarchic politicai objective, and principally, to an ambiguous
idea of ideological pluralism. The fundamental point, however, is
that democratism did not establish any guidelines which would
indicate how the representatives of the people in the three powers
should legislate, judge disputes, or administer public affairs. Nor
did it give any attention to the attributes of the legal structure of
the underlying politicai system. Quite the contrary:
representativeness, unionism, multi-partisanship and suffrage
32
became ends in themselves, as if they were the complementary and
exclusive parts of the definition of a new politicai regime(3). The
laws (degenerated in their original concept by the consortium of
democratism with socialism and legal positivism) carne to be all
that were determined by the will of eventual majority coalitions or
of the dominant power; all that was produced by the legislatures
o r even by the government executives carne to be called 'law';
these 'laws' were no longer general, prospective and abstract rules
for just conduct, as laws should be in a true rule of law. (The
corruption of the original concept of Law was the worst effect of
the mistaken application of the democratic method with strong
socialist and positivist adherences.)
When the representatives of the people began to act in this manner
in the executive and legislative bodies, as if they had inherited
royal prerogatives, the separation of powers disappeared
completely; indeed, it had always been a mere formality. The truth
is that an exclusively legislative assembly has never existed
anywhere in the mold which the idealizers of the doctrine of
separation of powers had in mind; nor has there ever been a
governmental executive power which has not been directly acted
upon by the legislative organ in its administrative activities, or else
which has not acted as if it were also a legislative entity. The
separation of powers has always existed only formally, because the
fundamentais of the original doctrine never went beyond theory,
and this theory was completely forgotten. The legislative organs
conceived by the idealizers of constitutional representative
government as being independent entities without any politicalpartisan activity or relationship, dedicated solely to legislation and
limited only to developing universal norms of just conduct (which
are the only true laws), were converied into legiferous organs with
unlimited powers which, in general, are intertwined with the
governamental executive, functioning practically as if they were a
(3) Multi-partisanship, for example, is at times seen as ifthere were in the wor/d an
infinite number of options of human interests and objectives which should have
partisan representation. ln reality, what is observed is a number ofpoliticians, class
/eaders and such, who, rather than really trying to attend the legitimate yearnings
of their electorate, seek an area through which to throw their personal leadership
ambitions into the politica/ power market. (See "Precisamos de novos partidos ou
de um regime político?"- "Do we need new parties ora politica/ regime?", H.
Maksoud, VISÃO, 11-12-78.)
33
unified entity<4>. At the sarne time it may be observed, particularly
in the more autocratic regimes, that the governmental executives
relegate to second place the administrative activities appropriate to
them, passing also to 'legislate' regulations in abundance, false
laws, decrees and 'policies', mainly for their own benefit, turning
ever more powerful and autocratic, with an exponential growth of
statism, tending gradually towards totalitarianism.
These omnipotent 'governmental arrangements', developed in the
bosom of democracies without defined principies or with false
guidelines, assume discriminatory prerogatives to apply burdens
and tributes upon, or to grant express benefits to groups or
individuais; they frequently adopt concrete measures referring to
knowingly specific cases to reach particular individuais,
organizations, activities, places or objects, and authorize the
coercion that such decisions oblige. Entities thus unlimited, which
are concerned with 'constructing' predetermined objectives and
not with general principies of conduct, do not achieve their
resolutions through genuine agreements of the majority, but only
through chance majority coalitions obtained through
'settlements', 'stratagems', and 'bargaining', or through force.
Evidences of degenerations such as these are also plentiful in the
politicai history of Latiu America. The facts obviously do not
repeat themselves systematically nor can they be identical. But the
general scenario of ambiguities of political-philosophical concepts
does repeat itself along general lines as in a vicious circle: public
opinion, which in an autocratic regime becomes influenced by
constant intellectual campaigns against pres,idential omnipotence,
is inclined in favor of 'politicai opening', represented by the
ballot, by participation, by unionism, by representativity, by
multi-partisanship, by distributivism, and so forth. All of this, in
the Latiu American republics, emerges in a Congress. This,
triumphant, assumes the role of s·aviour of public liberties and, to
maintain itself at the crest of power, intensifies the democratic
fetishism seeking to make the people believe that the destruction
of the omnipotent executive autocracy will automatically impart
to the nation the initiation of a new era of well-being, liberty and
justice. Realistic observation, however, identifies the development
of a new form of tyranny, represented now by the omnipotence of
the Congresses, that is, of the interest groups (e.g., the unions) or
the politicai parties which control, predominate or form majority
blocs in these assemblies of the peoples' representatives. With no
limitations imposed by principies or general rules of conduct, and
by not having a real separation of powers, the Congress comes to
produce laws that are not laws in fact (so that, in the final analysis
the groups and politicai personalities are maintained in power) and
increasingly interferes in governmental management, even
wanting to be confused with the executive pranch, giving rise to a
new vicious cycle in which: a) either the legislative and executive
powers interlace and become jointly unlimited; o r, b) the two
powers elas h and one o r the other, victorious, emerges
omnipotent. ln the first case, individualliberty comes to be called
'collective freedom', and justice becomes 'social justice'; the
sovereignty of law ceases to exist, the government of men and not
of laws returning, as in the autocracy, and the law itself ceases to
be equal for all and passes to be arbitrary, discriminatory and even
ex post facto. The nation does not become happier or freer than
before, because it is only liberated from the situation of being
dominated by one lord to fali into dependency upon the many. It
tends rapidly toward totalitarianism. ln the second case, some
type of 'revolutionary movement' can occur, which normally
results in an autocratic presidential government, generally
sustained by the armed forces, and which "legitimatizes itself"by
power of force and assumes, as always in all the supposed
revolutions, the exercise of Constituent Authority. After some
time, the 'revolutionary impulse' dissipates without having
realized any true revolution and the 'opening' process starts again
as in a vicious circle ...
Phenomena such as these have occurred, with slight variations and
local shadings, in practically all the Latiu countries throughout
their republican history. The great national crises constituted,
basically, true crises of constitutional rejection. They are crises of
immunizing reaction to the arrangements and institutional organs
transplanted with no ideological back-up. They are, then, in other
words, crises resulting from attempts to impose democratic
procedures in a social environment practically disoriented in
constitutional terms, including the absence of any a priori guidance
by way of politico-philosophical traditions and convictions.
{4) This situation may be visualized with complete clarity in European
parliamentary sistems, as, for example, in England, Italy and Spain.
34
35
The almost mechaniCal adoption of democratic institutions of the
more politically developed Western Nations, without also
adopting explicitly certain principies and fundamental beliefs,
constitutes the reason for incompatibility of the transplants and
the cause for the rejections. The failures of the transplant attempts
do not, however, prove that the basic concepts of democracy are
inapplicable in the politically 'younger' nations but that those
beliefs and principies, implied in the constitutions of the more
evolved Western countries, must become written parts of the new
constitutions as are its other parts. (This is especially true because
of the lack of rooted traditions of these beliefs and due to the
modem occurrence of tremendous degenerating pressure acting on
the original ideas of democracy.)
It is a serious and fatal error to think that democracy is a politicai
regime with its own objectives. Democracy is a method for making
decisions and is therefore incapable of being an end unto itself,
independent of whatever decisions it may produce in certain
historical conditions. It is a terrible mistake, also, to think that
certain concepts should not be duly established, in writing, in the
Constitution; many well-intentioned people have said that
democracy is a "state of mind and a way of life", making believe
that certain principies are automatically implied in the so-called
'democratic constitutions'. This is, today, a dangerous pitfall.
And the establishment in the constitutions of a 'chapter of
liberties', also known as the 'Chapter of Human Rights and
Guarantees', generally copied from American and French
constitutions, does not give ideological content, or even a
libertarian base to the 'política! regime' supposedly described in
the constitution, including because those 'liberties' are
conditioned to laws whose general attributes are not defined in the
constitution and which will be elaborated and/or randomly
modified in the future.
Looking through this politicai kaleidoscope, any sensible person
would like to know what can be done to change this tide of
insurrections, agitations and constitutional instability that serves
only to preserve under-development and to pose a permanent
threat to individualliberty.
Since the diagnosis is one of a phenomenon of constitutional
rejection of ideological cause, our first step will be to recognize the
need to contain the tide on the ideological 'front'. This means that
the establishment and preservation of a regime of liberty demands,
36
in the first place, a political-philosophical task of reformulation of
the rules of organization of our systems of government.
Therefore, we must recover the concepts that were lost by the
misusage of the principies and ideals of separation of powers, of
the rule of law and of government subordinated to the law, which
the theoreticians and founders of the system of constitutional
representative government intended to convey to future
generations.
To save that which is still not lost to totalitarianism and to prevent
the frequent recurrence of the violent process of constitutional
rejection, it is necessary to correct the existing system in those
aspects that provoke the distortion of the original ideas of both
democracy and representative cónstitutionalism, making the
r.evolution that until now has not taken place in any Latin
American republic. This will lead to a truly revolutionary
constitutional reformation, which will permit the development of
a new politicai system, appreciably different from those we have
today in the so-called Western democracies<5>. The two distinct
attributions, that of legislation, in its classical authentic meaning,
and that of government, in the sense of administration, must be
executed, in this new structure, by two different democratic
entities, totally independent of each other with entirely distinct
and clearly separated funcions. These two entities will not be only
two representative assemblies separated just formally, as happens
today: they will be chosen and organized based on two completely
different principies, and, for the first time, a true separation of
powers will exist.
The government executive entity will be something more or less of
the type of exísting congresses or parliaments, whose organization
and manner of procedure is pursuant to the need to govern
(administer) and not to the need to legislate. Something very
different will be necessary for the institution of a true legislative
assembly. What is wanted is an assembly that will take into
account not the needs or interests of certain groups or factions but
the permanent general principies upon which the community
activities will be ordered. Its members and the resolutions which it
(5) "Demarquia, um novo regime político, e outras i_déias". ('Demarch!, a new
politica/ regime, and other ideas"), H. Maksoud- Edttora VISao Ltda., Sao Paulo,
June, 1979.
37
formulates would represent not specific groups and their
particular wishes, but the predominant opinion on the type of
conduct considered just. To establish the norms that must be in
effect for a long time, and which would be equal for ali and always
prospective, this assembly would have to be 'representative' or
reproduce a type of cross-section of the predominant opinions on
right and wrong; its members could not be the spokesmen for
special interests, or express the 'will' of a specific sector of the
population. They would be men and women of high confidence,
respected for the traits of character shown in their normal affairs,
and would not need the approval of specific groups of electors or
politicai parties. Party discipline, necessary for the unity of a
government team, is, however, evidently undesirable in a
legislative body which establishes rules that limit the powers of
government. Therefore the election of legislators would have no
party relationship.<6l
(6) "Economic Freedom and Representative Government", F. A. Hayek, London,
1973.
Some Other References:
a) "The Quest for an ldeology", H. Maksoud, paper presented at the Mont Pelerin
Society general meeting in Hong Kong, September, 1978.
b) "A Ditadura Republicana, segundo Augusto Comte", by Jorge Logarrique,
Porto Alegre, Brasil, 1957.
c) "TheMirage of Social Justice", F. A. Hayek, in Vo/. 2, "Law, Legislation and
Liberty", Routledge and Kegan Paul, London, 1976.
d) "The Politica/ Order oj a Free People", F. A. Hayek, in Vo/. 3, "Law, Legislation
and f;iberl)!", Routledge and Kegan Paul, London, 1979.
e) Constitutions of various South and Central American countries.
f) "Constitutions oj the Countries oj the Wor/d", Ed. A. P. Blaustein & G. H.
Flanz, Oceana Publications, Inc., USA.
38
A tal liberdade sindical
Dando continuidade aos 'treinamentos' visando a uma próxima ação nacional conjugada de todos os trabalhadores, coube a
vez ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São
Paulo organizar um exercício de greve. Quem leu os jornais _(que
foram publicados a despeito da greve) na semana de 21 de maiO de
1979, viu fotografias e noticiário sobre piquetes e outros atos de
coerção levados a cabo contra os que, jornalistas ou não, preten·dessem trabalhar, e para tentar impedir a produção e circulação
dos jornais e revistas.
Os piquetes, as greves secundárias ou paralelas de apoio, os
boicotes e outras formas das chamadas 'atividades de organização' dos sindicatos são técnicas de coerção desenvolvidas pelos
sindicatos contra os indivíduos, sindicalizados ou não, para obter
a adesão total aos seus movimentos. A idéia subjacente é a da
inadmissão da liberdade individual, que se subordinaria sempre a
uma suposta vontade coletiva, representada, no caso, pelo poder
sindical.
Os piquetes e as demais atividades coercivas sindicais são nada
mais que absurdos e perversos instrumentos de intimidação de que
os sindicatos lançam mão para forçar o consenso. Mostram que,
em verdade, não existe a tão reclamada 'liberdade sindical'; ou,
pelo menos, demonstram que essa liberdade só é solicitada para_ os
que exercem o poder sindical. A mera existência do piquete ind~ca
que há trabalhadores que não querem submeter-se ao controle smdical e desejam ter o direito de escolher livre~ente se trabalham o_u
não. A coação, entretanto, faz coin que mmtos deles se atemonzem ou sintam como se estivessem traindo uma causa absolutamente nobre sendo, em conseqüência, induzidos a proceder de
maneira cont~ária a seus próprios interesses e a suas próprias crençu.
.
.
Embora em alguns países mais adiantados do ocidente os piquetes e outru atividades de organização grevista sejam admitidos
39
por regulamentos específicos - o que, por serem países mais desenvolvidos, não quer dizer que estejam neste caso no caminho
certo -, a verdade é que, no Brasil, eles são proibidos por lei, o
que, outrossim, não quer dizer que estejamos, nesta questão, no
caminho errado. A despeito de serem proibidos, entretanto, aí estão eles, amplamente noticiados e freqüenternente tolerados pelos
que juraram fazer cumprir as leis.
Isso tudo ocorre graças a um tipo de lavagem cerebral, uma espécie de persistente pressão meramente psicológica e moral, que
fomenta e explora o grande equívoco que é o de que os sindicatos
beneficiam a todos os trabalhadores <11. Assim, funciona um instrumento dialético muito eficaz que lança mão do mito de que o
rápido aumento do nível de vida da classe trabalhadora se deu devido à pressão sindical e que somente mediante a permanente pressão continuarão crescendo aceleradamente os salários. E, ao
lograr-se criar uma opinião favorável à idéia de que cada trabalhador deve, por interesse de sua própria classe, apoiar incondicionalmente a ação sindical, a coação passa a ser aceita como meio 'legítimo' de obrigar os 'recalcitrantes individualistas' a cumprir com
seu suposto dever.
A auréola de legitimidade que costuma ter a ação sindical pelo
f;;tto de seus objetivos gozarem geralmente de aprovação popular
não consegue esconder o importantíssimo fato de que os instrumentos sindicais de coação (embora chamados de 'meios pacíficos' de persuasão) constituem mecanismos de repressão organizada contra a pessoa humana, usados por entidades privadas, os sindicatos, e que em uma sociedade livre de modo algum deveriam ser
permitidos. Essas ações coercitivas somente são levadas à prática
pelos sindicatos e pelos grevistas, ou porque a autoridade deixa de
fazer cumprir a lei, ou porque a própria legislação, muitas vezes
discricionária, isenta os grupamentos de trabalhadores da responsabilidade por atos efetuados em conjunto, eximindo-os da obediência às normas gerais de justa conduta aplicáveis às demais pessoas e associações civis.
A tal 'liberdade sindical' de que se ouve falar com tanta ênfase
e persistência por esse mundo afora é, portanto, algo que, em realidade, nada tem a ver com a prÓpria liberdade. Quando os pregadores dogmáticos dizem que os trabalhadores têm o direito de for-
(1) H. Maksoud, "Perigos e inutilidade do sindicalismo sem lei", em VISÃO, 2711-78, e nesta obra.
40
mar livremente seus sindicatos, eles em verdade querem apenas
que os sindicatos tenham o direito de existir indepe~dentemente da
vontade dos próprios trabalhadores, quando considerados como
indivíduos. E o fato inegável de que os sindicatos possam ~~r como
um objetivo natural induzir todos os trabalhadores a filiar-~e- a
eles tem sido interpretado por esses dogmatas como uma co~diÇao
em que os sindicatos tenham o direito d~ fa7er qu<l:lquer _cmsa que
considerem necessária para lograr essa fmalidade, mclusive forçar
a obediência cega a suas deliberaçõe~ ou obrig<l:r.à sindicaliz<~:çã~.
Do mesmo modo, o fato de ser considerado legitimo que os ~mdi­
catos tratem de conseguir salários mais elevados é também mterpretado por essas pessoas como se lh:s fosse p~rll!itido fazer tudo
que lhes pareça necessário para atingir seus objetlvos.
,.
E, já que a greve tem sido aceita cegamente co~? arma l~glt~ma
dos sindicatos, faz-se crer que tudo deve ~er permlti~O aos ~m~Ic~­
tos e aos grevistas para que uma greve tnunfe. Os lideres smdicais
e os grevistas pedem imunidades para eles m<l:s ne~am-~as aos que
querem trabalhar. Aos trabalhadores são pedidas Imumdades apenas na medida em que se vinculem a movirpentos de massa; como
indivíduos não se reivindica para eles nenhuma salvaguarda a suas
esferas de ação privada e não são, em especial, imunes às pressões
do poder coercitivo sindical.
_ ,.
.
A idéia distorcida que hoje se tem da expr~ss~~ liberdade si_ndical' chegou a um tal ponto que passou a sig~Ificar que,. qu~IS­
quer que sejam os métodos àu os meios qu~ ~onsiderem os, smdicatos como indispensáveis para seus propositos, ~stes meto?os e
meios devem ser tidos como legítimos e automaticamente aJustados à 'legalidade'.
Os métodos e meios coercitivos utilizados crescentemente p~l?
sindicalismo moderno não são tolerados em nenhuma outra atlvidade numa sociedade livre. Eles ferem frontalmente o princípio indispensável da liberdade que pressupõe que o indiví?uo tenha assegurada uma certa esfera privada de ~odo que exista sempre um
conjunto de circunstâncias no seu ambiente pessoal com o qual os
outros não possam interferir.
A liberdade, inclusive a liberdade sindical de verdade, somen~e
existirá quando for impedida de maneira estrita toda coerção. A liberdade refere-se sempre à relação dos homens com outros homens; e a única violação a ela se dá pela coerção exercida pelos
próprios homens, como indivíduos ou qua_ndo estes, como no caso
dos sindicatos sem lei, se fazem confundir com o Estado. _Numa
sociedade livre, a coerção só pode ser exercida pelas autondades
41
legalmente constituídas e, mesmo assim, somente nos casos em
que se trate de exigir a observância de leis gerais, abstratas e prospectivas, aplicáveis a todos por igual.
Nossa nação está pretendendo ser uma nação livre e desenvolvida. Isso exige muita coisa: ilma delas, imprescindível, é saber exatamente o que significa o sindicalismo e fazer com que os sindicatos estejam sujeitos às mesmas normas gerais de conduta aplicáveis igualmente a todos os homens, grupos, associações e ao pró~
prio governo. Não se deve querer copiar outros países simplesmente por estarem mais desenvolvidos. Inclusive porque eles não estão
mais desenvolvidos por causa· dos sindicatos. Pelo contrário, o
crescente poderio coercitivo sindical está causando graves danos e
restrições ao progresso desses 'países mais avançados'.
Como dissimular a inflação
Quando a quantidade de dinheiro Ol circulante aumenta, o poder de compra da unidade monetária diminui, ou seja, diminui a
quantidade de artigos que se pode adquirir, por exemplo, com um
cruzeiro, um dólar, um franco ou um iene. Quando, no século
XVI, foram descobertas jazidas de ouro e prata no continente
americano e enormes quantidades desses recursos foram enviadas
à Europa, produziu-se nesta uma tendência geral altista de preços.
Assim, pois, quando o governo aumenta o estoque monetário e a
produção de bens e serviços não aumenta correspondentemente, o
poder aquisitivo do dinheiro começa a cair. É a esse fenômeno,
baseado, em essência, na 'impressão de papel-moeda', aqui exposto de forma 'simplificada e resumida para facilitar sua compreensão, que se denomina 'inflação' C2l.
Na nossa era tecnológica nada é mais fácil que imprimir pedaços de papel e inscrever sobre eles uma expressão monetária; principalmente desde que os países abandonaram o sadio princípio de
manter o ouro como padrão de resgate monetário. Nestes tempos
de tecnologia avançada e com crescente centralismo governamental, com enorme atividade pró-estatismo coletivista e antiliberdade
individual e com intensa pregação demagogo-equalitarista, é também muito fácil fazer-se intensificar a ação monopolista sindical,
(1) A expressão 'dinheiro' é usada no sentido amplo de 'moeda e crédito', ou
'base monetária' ou 'estoque monetário'.
(2) Um exame um pouco mais completo deste tema pode ser encontrado em
"O que é a inflação? Pode-se contê-la?", H. Maksoud, em VISÃO, 5-3-79, e
nesta obra. Para um tratamento com mais rigor cientifico, procure-se ver um
dos seguintes livros do grande economista e filósofo Ludwig von Mises
(1881-1973): "Human Action - A Treatise on Economics", 3.• Ed., Yale
University Press, 1966, ou "The Theory of Money and Credit", Nova Edição,
The Foundation for Economic Education Inc., New York, 1971.
42
43
impor-se formas de controle de preços, promulgar-se regulamentações restritivas à atividade privada e criar-se ambiente de repulsa
à liberdade de iniciativa. Simultaneamente a todas essas atividades
desestimuladoras à produção e à produtividade, as demandas a
bens e serviços são cada vez mais aguçadas e o pleno emprego é
exigido a qualquer custo. A conseqüência é geralmente, então, a
expansão da base mor•etária. Nessa conjuntura cheia de equívocos
e contradições, é gerada a multifacetada e virulenta doença da inflação que destrói a 'qualidade' do sistema monetário vigente (3J.
Se o governo utiliza papel impresso no mercado (a título de aumento da chamada demanda agregada e garantia do pleno emprego) <4>, em lugar de estimular ou ajudar a criar condições para fazer crescer a produção e a produtividade, aparece gente com mais
dinheiro que vai competir com os que já atuavam no mercado,
ocorrendo uma demanda adicional de artigos e serviços, sem que
haja, entretanto, pelo menos uma correspondente quantidade
maior destes produtos. O resultado, num mercado sem repressão,
é a tendência dos preços de subir, pouco a pouco; é o efeito da
ação inflacionária.
Quando se tem medo de acelerar o desenvolvimento, que exige
a liberdade de iniciativa e o respeito ao fundamentalíssimo direito
de propriedade; e se teme impor tributos adicionais aos cidadãos,
que, numa sociedade aberta, exige gravar a todos por igual, o que
constitui medida impopular, o que sobra - quando o governo receia o crescimento acelerado e não quer tornar-se impopular - é a
ação inflacionária (isto é, o aumento da base monetária), que, entretanto, precisa ser ocultada com astúcia.
Não é difícil dissimular a ação inflacionária. Basta dar asas à
imaginação popular e deixar que os dema~ogos ou ?s econ?mistas
equivocados a ela insuflem nomes e conceitos falacwsos tms como
os de que a inflação é 'a especulação altista dos preços', 'a ganância de intermediários', 'a ação dos "tubarões" ou "baleias" ', 'a
velocidade de circulação do dinheiro', 'os lucros excessivos dos comerciantes' 'o aumento no custo de vida', 'o aumento generalizado no nível de preços', et cetera. A dissimulação é tão perfeita que
poucos ficam sabendo quando estas coisas ocorrem, que elas são
efeitos e não causas da inflação. São conseqüências, e não a própria inflação.
(3) "Sinto muito ter que dizer que a atual inflação que grassa no mundo se
deve total e exclusivamente aos economistas, ou pelo menos à grande maioria
deles que abraçaram sem reservas os ensinamentos de Lord Keynes", in "lnflation - the Path to Unemployment", F. A. Hayek, IEA· Readings 14, Londres, 1974.
(4) "Não é de forma alguma verdade, conforme têm sugerido alguns economistas, que um aumento da demanda agregada só faz bem e nenhum mal,
desde que exista o desemprego. Isso pode ser verdadeiro num curto prazo mas
não ao longo do tempo. Não existe realmente a escolha entre inflação e desemprego. É como o comer demais e a indigestão: embora comer demais possa ser agradável enquanto se come, a indigestão se seguirá invariavelmente."
"New Studies in Philosophy, Politics, Economics anú the History of Ideas",
F. A. Hayek, Londres, 1978.
44
45
Inflação: mitos e remédios
O verdadeiro significado da inflação é ocultado da mesma forma como se dissimulam muitos outros complexos fenômenos políticos e econômicos: estimulando emoções primitivas e agregando a
elas doses de ingênua e simplista imaginação cartesiana. O resultado desse procedimento de ocultação é a multiplicação de mitos e
falácias sobre a inflação, que mascaram suas causas, enfatizam os
efeitos e impedem que se encaminhem com objetividade os remédios para curar a moléstia.
Muitos desses mitos e falácias, quando não são mais que malícia político-ideológica, são simplesmente erros de conceituação de
economistas desorientados. F. A. Hayek escreveu, em 1974 Ol, que
''a total responsabilidade pela atual inflação mundial é dos economistas, ou, pelo menos, da maioria dos meus colegas economistas
que abraçaram os ensinamentos de Lord Keynes". Foi, segundo
Hayek, devido ao ensinamento e à insistência de pupilos de Keynes
que os governos de todas as partes do mundo passaram a financiar
parcelas crescentes de seus orçamentos, criando dinheiro em escala
tal que qualquer economista antes de Keynes teria prognosticado
exatamente a inflação que ocorreu. Os keynesianos agiram assim
porque, por um grave equívoco, acreditavam que esse tipo de 'finan~iamento' era um método seguro, necessário e efetivo de garantir o pleno ·emprego e impedir a agitação social.
Dentre os inúmeros mitos que correm mundo, destaca-se o da
especulação, tão comumente considerada como uma das causas da
inflação. Esse mito, porém, oculta o fato de que a especulação somente sustentará os preços em elevação se houver um correspondente contínuo crescimento na base monetária. Não é possível sus-
(1) "Inflation; the Path to Unemployment", F.A. Hayek, "Daily Telegraph",
Londres, 15-10-74.
46
tentar qualquer ritmo de compra de bens ou materiais para fins de
lucro futuro especulativo, ou para guardar estoque por receio de
aumento posterior de preços, sem que haja simultaneamente, ou
logo após, injeção de mais moeda e crédito no sistema financeiro.
Num ambiente de virulência inflacionária, isto é, quando a
'qualidade' do dinheiro se encontra deteriorada, o valor da unidade monetária sofre queda por razões 'psicológicas' as mais diversas e complicadas, sempre, entretanto, também seguindo, ou se-.
guida de, expansão do estoque monetário. A chamada 'velocidade
de circulação', que juntamente com a quantidade de dinheiro é
muitas vezes também tida como causa da inflação, é, em realidade, uma conseqüência do medo da perda de valor ou 'qualidade'
da moeda ou, noutras palavras, da crença de que os preços irão subir. Isto faz com que as pessoas tratem de se livrar do dinheiro
trocando-o rapidamente por bens e mercadorias, inclusive até contraindo empréstimos (2).
Outra falácia muito difundida é a de que a inflação é devida não
por um aumento na quantidade de dinheiro mas pela 'falta de mercadorias' (3l. É óbvio que a 'subida nos preços' (que, conforme já
enfatizamos <4l, não deve ser confundida com 'inflação') pode ser
causada tanto por falta de mercadorias como por aumento na quantidade de moeda e crédito, ou por uma combinação desses dois fatores. Mas uma subida nos preços, "mesmo uma subida geral causa-
(2) Durante a fantástica inflação ocorrida na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial houve períodos em que os preços chegavam a duplicar diariamente, fazendo até com que as firmas pagassem os salários mais de uma vez ao
dia a fim de que os mesmos pudessem ser gastos antes que se desvalorizassem.
(3) No fim de 1923 o poder aquisitivo do marco chegou a reduzir-se a um bilionésimo de seu valor de antes da guerra. Durante esse tempo a política inflacionista do governo alemão fez com que a fabricação de papel-moeda jamais
parasse. Não houve, entretanto, uma 'falta generalizada de mercadorias', já
que a produção total permaneceu praticamente inalterada. No entanto, os tecnocratas, os políticos e boa parte do povo, estimulada por aqueles, culpavam
a 'falta de mercadorias', a 'especulação' e os 'lucros excessivos' por todo o
caos. A melhor prova de que não faltavam produtos é a de que, nesse período, estrangeiros de toda parte compravam, com ouro ou com suas próprias
moedas, mercadorias alemãs por preços mais baixos que os de produtos equivalentes nos seus respectivos países de origem.
(4) "O que é a inflpção? Pode-se contê-la?" e "Como dissimular a inflação", H.
Maksoud, em VISA O, 5-3-79 e 25-6-79, e nesta obra.
47
da, por exemplo, por uma falta de alimentos, devido a más safras,
não é necessariamente inflação. Nem poderia ser chamado, com
propriedade, de inflação um aumento geral de preços causado pela
falta de petróleo e de outras fontes de energia que tenha conduzido
a uma redução absoluta no consumo de energia -- a não ser que essa falta de energia venha a ser usada como desculpa para fazer crescer o volume de crédito e de dinheiro em circulação" (5l.
Mas, da mesma forma que o aumento geral de preço.s não significa necessariamente inflação, pode haver uma grande inflação
s~m qualquer aumento de preç~s, se este efeito for impedido por
sistemas de controle de preços. E a chamada 'inflação reprimida',
que, está provado, causa mais danos que a própria inflação aberta
porque torna completamente inoperante o mecanismo de preços
do mercado, conduzindo à falta de produtos, novas pressões inflacionárias, desemprego, racionamentos e substituição progressiva de
toda a atividade econômica privada por uma ação estatal centralizada, com o conseqüente esvaecimento da liberdade do indivíduo.
A fonte de todos esses mitos e falácias, e da própria ação equivocada no combate à inflação, foi nos últimos decênios a chamada
teoria keynesiana, que admitia que os estoques monetários dos
países pudessem 'inflar-se' o bastante para produzir o máximo de
emprego que pudesse ser garantido a curto prazo pela pressão monetária. E que, assim, seriam corrigidos os desajustes nos preços
relativos e na alocação de recursos e, pela manipulação da base
monetária, se estimularia o desenvolvimento.
Era a idéia de que todo nível elevado de desemprego (ou de tendência à pobreza) seria devido a uma insuficiência da 'demanda
agregada' e que poderia ser reduzido por um aumento dessa demanda; para conseguir isso, bastaria, por exemplo, aumentar-se
os gastos governamentais, 'inflando' suficientemente o estoque
monetário. Agora que se torna cada vez mais evidente que os níveis de emprego (e, pois, as possibilidades de progresso) não são
simplesmente uma função da demanda total, e que um aumento
no dispêndio monetário total faz com que cresça a dependência
dos empregos na inflação, forçando sua intensificação, como num
círculo vicioso, é vital que se relembre que a inflação acelerada
conduz à desorganização de toda atividade econômica e torna difícil escapar-se a um tipo qualquer de totalitarismo governamental.
Quaisquer que sejam os mitos e falácias que existam por aí; e
quaisquer que tenham sido as teorias ou as práticas mais em voga
para explicar a inflação ou diminuir o desemprego, ou combater a
recessão, o que sabemos hoje é que uma economia sadia e aberta,
que se traduz num clima político também sadio e aberto, somente
é possível num regime em que os arranjos institucionais e as leis vigentes permitam que o mercado funcione o mais livremente possível, sem o controle ou o dirigismo estatal, e sem as terríveis distorções causadas pelo crescente poder monopolista dos sindicatos
trabalhistas.
(5) "New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the_History of Ideas", F.A.
Hayek, Londres, 1978.
48
49
A prioridade
das prioridades prioritárias ...
"A grande diferença entre o verdadeiro e o falso estadista é que o primeiro
olha no sentido do futuro, enquanto o outro somente considera o presente; este vive no dia-a-dia e age com base em expedientes; o outro age com base em
princípios duradouros e para a imortalidade." Edmund Burke
A questão da energia fói posta há dias, pelo governo e para a
nação, em primeiríssimo plano na série dos problemas prioritários
mais importantes do país. Isto porque o cartel formado pelos Estados produtores de petróleo aumentou, mais uma vez, no fim de
junho, os preços do petróleo bruto Ol e o Brasil tem que importar
850Jo de seu consumo, ou seja, cerca de 1 milhão de
barris diários (2).
Foi uma espécie de 'acavalamento' das prioridades do 'setor
econômico', pois o assunto petróleo já estava no contexto das
prioridades governamentais, explícita e implicitamente, juntamente com os temas (também correlatas entre si) da inflação, do balanço de pagamentos, do "desaquecimento" da economia e, ultimamente, da agricultura. Quem não se lembra, por exemplo, da
forma dramática com que foram apresentados os contratos de risco no governo passado?
Na área da chamada 'abertura política', o pluripartidarismo é a
prioridade agora ressaltada. Alardeado com outros assuntos correlativos, como os da 'redemocratização', do 'pluralismo
político', da 'justiça social', da 'anistia' e do 'sindicalismo', o problema partidário é enfatizado como se fosse um ideal político autônonio e da maioria do povo; é declamado como se o partidarismo fosse um caminho prioritário para a solução de problemas prementes de liberdade e de melhoria do padrão de vida do povo; é
apresentado como se existisse um número ilimitado de opções de
interesses e objetivos humanos que devessem ter representação
partidária; e, maior dos equívocos, é o pluripartidarismo mostrado como se, para que a democracia fosse completa, os partidos devessem representar linhas ideológicas que existem na imaginação
das pessoas e que costumam ser chamadas de esquerda, centro, direita, centro-esquerda, extrema esquerda, etc., etc.
O que em verdade existe são, salvo honrosas exceções, uns tantos políticos e líderes sindicais que estão jogando suas ambições
pessoais de liderança no mercado do poder e o que lhes importa é
manter a clientela ou aproveitar um momentum de popularidade;
e há ainda outros. tantos 'estrategistas' da situação e da oposição
que igualmente apenas procuram manter o status quo ou alcançar
novas posições de mando. E o que também é certo é que não existem (exceto na fértil imaginação cartesiano-construtivista de muitos políticos e intelectuais) tantas linhas político-ideológicas quantas se pretende compor em termos partidários: há, isto sim, apenas
duas correntes político-filosóficas bem caracterizadas- uma voltada para o coletivismo e para o estatismo e a outra fundamentada
na liberdade individual e no direito à propriedade particular; oresto são matizes híbridos ou furta-cores inventados pela mente ignorante ou equivocada dos homens. Acontece, porém, que, a despeito do enfoque errôneo atual, a função partidária não é propriamente político-ideológica, mas sim político-administrativa (3).
Contemplando todos esses arranjos hierárquicos de prioridades, tanto os do campo econômico quanto os do chamado setor
político, sentimos com aflição que estamos num círculo vicioso,
pois não notamos a presença de qualquer vetor capaz de nos arrancar do encalacre em que nos metemos.
Não bastam os esforços deliberadamente organizados pelo governo para garantir o suprimento de petróleo, melhorar a posição
do balanço de pagamentos, conter a inflação ou estimular a pro-
(1) O barril passa a custar mais ou menos 20 dólares, o que corresponderia a
um acréscimo cumulativo da ordem de 10% ao ano desde o grande salto nos
preços do óleo em 1973-74.
(2) Países como Japão, Alemanha, França e Itália têm que importar pratica. mente tudo que consomem de petróleo; e os Estados Unidos, perto dos 50%.
50
(3) "Precisamos de novos partidos ou de um regime político?" e "O princípio
da separação de poderes existirá efetivamente na demarquia" (VISÃO, 11-1278 e 3-4-78, e em "Demarquia ... ", páginas 88 e 41). O segundo destes dois
artigos encontra-se reproduzido também nesta obra.
51
dução agropecuária. Há muitos países auto-suficientes em insumos básicos e corri. grandes estoques de divisas mas que são, no
fundo, fortemente subdesenvolvidos. Quanto ao posicionamento
político, quando não é inócua, tende a ser prejudicial toda essa
ação 'política' casuística que lança mão de um 'democratismo'
que não está longe de ser uma verdadeira roleta-russa política.
Não aparecem nesse contexto de prioridades as condições necessárias e suficientes para que saiamos do subdesenvolvimento e
marchemos para uma situação de real e generalizado progresso.
Pois não há nenhum apego explícito, definitivo e sincero ao único
rumo político-filosófico que mantém como princípio incondicional a liberdade do indivíduo, que é a mola mestra do progresso humano. Sem esse rumo e essa mola mestra, não será possível estimular o surgimento, e aumentar e garantir o suprimento, de mais
homens empreendedores e inovadores, sem os quais os fatores de
produção não podem ser efetivamente mobilizados e por isso pouco ou nada valem.
Não podemos cansar-nos de repetir, repetir e repetir- adespeito do desinteresse de muitos, da descrença de alguns e da idiotice insensata de outros - que, se considerações e ações humanas
baseadas nessa moral filosófica não forem levadas a cabo na devida medida, teremos um país continuamente tratando de crises (como agora), acumulando pobreza e frustração social (porque obrasileiro quer ter fartura e viver bem), dependendo dos sucessos e
dos azares dos países com quem negociamos, e, embora realizemos projetos majestosos, jamais seremos uma nação desenvolvida
como queremos e podemos ser.
E então? Continuaremos neste emaranhado de equívocos políticos, acavalando prioridades e fazendo com que o governo assuma poderes de 'tempos de guerra', que nos assustam a todos? Ou
vamos tomar vergonha e fazer a revolução pela liberdade humana,
que até agora não ocorreu, que crie condições favoráveis ao desenvolvimento de instituições em que frutifique livremente a capacidade empreendedora do indivíduo?
Não adianta só falar
Em abril de 1978 fui visitar em sua residência, nos arredores de
Paris, o conhecido escritor Bertrand de Jouvenel. Minha intenção,
além do amistoso contato com uma interessante figura humana,
era discutir, sob um enfoque político-filosófico, a situação européia, e da França em particular, e sentir a reação do pensador
francês a certas idéias que evoluíam em minha mente.
A reunião, porém, não se deu exatamente como eu imaginara.
Desde os primeiros momentos de nossa conversa e durante o almoço que me ofereceu, Jouvenel tudo fez para inverter o sentido do
tráfego de nossa interlocução, procurando insistentemente .fazer
com que eu falasse de minha própria pessoa e do que me movta em
meu trabalho, meus empreendimentos, minhas realizações. Queria, como disse, extrair insights de um empreendedor, um 'fazedor
de coisas', pois, insinuou-me ele, esse é um dos setores do pensamento humano mais pobres de dados e informações. Na despedida, após andarmos por sua casa, toda ela literalmente tomada por
livros, presenteou-me com uma dedicatória que apôs numa recente
edição de seu Du Pouvoir Ol, que concluía dizendo: " ... et dans
l'attente de la biographie par laquelle il nous fera connaitre ce
qu'est la vie d'un entrepreneur".
Não creio tenha sido desarrazoado o interesse dum filósofopolítico e pesquisador pela minha faceta empresarial. É, entretanto, um interesse um tanto 'fora de série' no meio intelectual contemporâneo. Nestes últimos cerca de duzentos anos de espúria revolução intelectual, tudo tem sido feito para ignorar a figura humana do empreendedor ou então para retratá-la como exploradora, torpe e ridícula.
(1) "Du Pouvoir - Histoire naturelle de sa croissance", B. de Jouvenel, Paris, Ed. Hachette, 1972.
52
53
Contrário aos intelectuais, os empreendedores não são eficazes
disseminadores de idéias. Eles geralmente não são suficientemente
introspectivos para conseguir explicar o que os faz vibrar. Aqueles
que conseguem algum insight de suas próprias atitudes e comportamentos não encontram o tempo ou a suficiente aptidão para escrever autobiografias; ou, simplesmente, crêem ser muito pessoais, individuais e, até, intransferíveis todos os seus complexos
'mecanismos' interiores.
Todos temos notícia do pouco que se sabe realmente a respeito
dos empreendedores. A literatura sobre eles é muito precária. Alguns sociólogos, psicólogos e professores de administração de empresas têm escrito sobre famosos homens empreendedores, empresários e sobre como muitos negócios foram criados. Grande parte
desse trabalho é ainda deficiente, não só devido à falta de informações fidedignas e completas mas também pela intenção de alguns autores de agredir esse tipo de homem. Existem, por exemplo, aqueles escritores, acadêmicos imaginosos, que teorizam condições psíquicas muito especiais para os empreendedores- principalmente os de primeira geração-, atribuindo-lhes desvios 'freudianos' e até a 'esquizofrenia' e a 'paranóia' como característica
da personalidade desses indivíduos.
Há, entretanto, outros estudiosos que os consideram pessoas
dotadas de temperamento especial (como são os artistas <2l, por
exemplo) mas certamente com mentes sadias para serem capazes de
perscrutar o futuro incerto; compreender a natureza humana; saber
avaliar a integridade, o talento e os conhecimentos nas pessoas; assumir riscos calculados; antecipar e provocar mudanças; coordenar
(2) Os intelectuais vêem com clareza a necessidade do direito de propriedade e
da liberdade de iniciativa quando aplicados à produção de jornais, livros, filmes, músicas, novelas e trabalhos de arte. Eles sabem do fundo de suas entranhas como são essenciais para o trabalho intelectual a criação, a inovação e a
propriedade individual. Mas eles não conseguem ver a individualidade criadora, imaginativa e inovadora e a propriedade individual no sentido mais amplo
que se aplica não só a eles mas também a outros setores da sociedade onde se
incluem os empreendedores. Eles deixam de ver que estas pessoas 'fazedoras
de coisas' também se entregam completamente, inclusive com toda a alma, em
suas ações de criação ou inovação de produtos ou serviços. O fato de os empreendedores não serem normalmente paradigmas de comiseração imaginativa,
nem dotados da meticulosidade de um administrador profissional ou de um
tecnocrata, nem serem campeões de simpatia, ou não se preocuparem muito
pela disputa de torneios de popularidade, não os faz, automaticamente, menos
'gente' ou menos interessados pelos problemas da comunidade e dos carentes.
e reunir fatos disparatados e conflitantes numa única e clara decisão; perceber que muitas vezes não sabem, e talvez nã~ possam_ saber, mas que, não obstante, devem agir; e para consegmr sobrevtver
às preocupações e às pressões da solidão e da incerteza.
Muita gente sensata sabe que os empreendedores geram ?portunidades de progresso para os indivíduos e, pois, desenvolvimento para a nação. De fato, a despeito do insidioso ataque de fun?o
ideológico contra a liberdade de iniciativa, e portanto contra~ n~­
divíduo iniciador de novos empreendimentos, uma das pouqmsstmas proposições da economia sobre a qual (nos países não tomados completamente pelo socialismo) todos parecem estar de acordo é a de que "sem empreendedores não há desenvolvimento".
É importante assinalar que os empreendedores são um dos fenômenos que distinguem os países desenvolvidos dos subdesenvolvidos (3). Os desenvolvidos os têm, os outros não. E, qualquer que
seja o motivo para não tê-los, o fato importante é que, se os subdesenvolvidos continuarem carentes de verdadeiros empreendedores, seus 'planos de desenvolvimento' continuarão ~endo. nada
mais que belos projetos de desperdício de recursos fmancetros e
humanos.
É provavelmente falso que os países subdesenvolvidos não tenham empreendedores ou, pelo menos, homens com capacidade
empreendedora latente que assumiriam esse papel, se encontrassem, diante de si, as condições político-institucionais m_ínimas favoráveis. A verdade é que a diferença entre o desenvolvimento e o
subdesenvolvimento se explica, em grande parte, pela atuação de
empreendedores individuais que surgiram aos borbotões na.s nações
hoje mais ricas, graças às características político-filosóficas que
existiram durante tempo bastante em seus sistemas de governo.
Este é um aspecto da história política de certos países - como a
Alemanha no período pós-1948 e os Estados Unidos no século XIX
- que nos deveria inspirar. Se fôssemos capazes de desenvolve~,
também entre nós, as condições favoráveis ao crescente florescimento da capacidade empreendedora, onde pudessem ocorrer es-
(3) Nestes últimos cinco anos escrevi diverso~ artigos sobre este tema. TJ_m dos
que mais me agradam, publicado em V/SAO de 16-12.·74 e rep;,oduz1do n~
"Coletânea de editoriais", Editora V1são Ltda., 1977, pagma 35 ( Desenvolvimento sem o empresário?"), transmite conceitos - de Joseph ~chumpeter e
de um ensaio ("Entrepreneurs: key to growth") de 1970 do lns!ltuto de Pesquisas de Stanford - que, pela sua atualidade, merecem ser relembrados e colocados sob enfoque atual.
55
54
pontaneamente a iniciativa individual e a cooperação voluntária em
todos os campos, então certamente deixaríamos de ser um país potencialmente rico, porém subdesenvolvido, que só viveu até agora
na instabilidade política, acumulando gente pobre desnecessariamente e só tapando furos na área econômica, para sermos uma nação
que marcha de verdade para a idade adulta, do desenvolvimento.
Sem empreendedores, portanto, não há desenvolvimento. Mas
quem são eles? Como são identificados esses homens? Como se
pode aumentar a quantidade deles? Estas três perguntas parecem
difíceis de ser respondidas, porque o empreendedor não se define a
partir de um currículo escolar que indique suas qualificações, não
se identifica por um diploma, pois nenhuma escola o fornece, não
possui nenhuma marca na testa e a produção desse tipo de homem
não está nos objetivos declarados de nenhum ministério, em parte
alguma do mundo.
Sem escola que o forme e sem diploma que o identifique, o empreendedor se distingue, simplesmente, pela capacidade de inovar
e de, como escreveu Schumpeter, "pôr em marcha coisas novas".
A imagem do empreendedor, tal como delineada por Schumpeter,
há algumas décadas, é suficientemente clara para compreendermos sua importância e apreciarmos corretamente seu papel.
Analisando os processos de mudança econômica, aquele
economista-político introduziu a distinção, hoje clássica, entre
'resposta adaptativa' e 'resposta criadora' para classificar as formas de reação da sociedade a alterações de situação. Pelo menos
três caraterísticas definem a 'resposta criadora'. Em primeiro lugar, ela não pode ser prevista de acordo com critérios ordinários, a
partir de dados preexistentes. Em segundo, introduz alterações definitivas, ou seja, "cria situações que nenhuma ponte pode unir
àquelas que teriam existido em sua ausência". Em terceiro,
relaciona-se: a) com a qualidade do pessoal disponível na sociedade; b) com a qualidade do pessoal disponível em cada setor, quando comparado com os demais; c) com as decisões, ações e esquemas individuais de comportamento.
"De acordo com isto", escreveu Schumpeter, "um estudo da
resposta criadora nos negócios é co-extensivo com o estudo da
ação empreendedora'', pois os mecanismos de mudança econômica num regime de liberdade se fundamentam na atividade empreendedora. O empreendedor <4J não se confunde com o executi-
vo empresarial, nem com o inventor, nem com o capitalista, ainda
que, em muitos casos, o mesmo indivíduo exerça mais de um desses papéis.
A habilidade de conduzir um negócio segundo certas regras, a
disponibilidade de um novo conhecimento, a destreza na aplicação
de determinadas técnicas e a posse do capital não bastam, isoladamente ou em conjunto, para produzir a mudança. A mudança depende de uma capacidade especial de perscrutar o futuro, de perceber oportunidades, de assumir certos riscos e de, sobrevivendo
às preocupações, enfrentar resistências e dificuldades que sempre
encontra a ação realizada fora dos caminhos já trilhados da práti·
ca estabelecida. Sem o empreendedor, todos os outros fatores são
insuficientes para gerar a mudança. Sem mudança, não tem sentido falar em desenvolvimento.
Há lugar para o empreendedor num país como o Brasil? O que
se pode responder de imediato é que há um papel que somente o
indivíduo empreendedor, o entrepreneur, pode cumprir. O que parece duvidoso é que nossos estudantes, nossos professores, nossos
jornalistas, nossos políticos, nossos artistas, nossos governantes e
até nossos empresários, já estabelecidos, estejam conscientes disso.
Não adianta falar na importância da iniciativa privada, nem falar em combater a pobreza, nem falar de melhor distribuição de riqueza, nem falar em desestatização, nem falar em comba~e ~infla­
ção, nem falar em desburocratização, nem falar em pnondades
para este ou aquele setor. Se o empreendedor - grande ou pequeno, da cidade ou do campo- não se sentir estimulado a 'pôr em
marcha coisas novas' - o que só fará num regime político e econômico aberto bem definido que o estimule para tanto <5> -,todas
essas falas de nada valerão, porque não ocorrerão mudanças significativas e permanentes e portanto não haverá desenvolvimento de
verdade.
O ensaio produzido em Stanford ressalta, outrossim, que uma
sociedade que queira aumentar seu "estoque de empreendedores"
precisa também fazer com que eles e o que eles fazem sejam motivo de respeito e admiração. E que o grande inovador no campo
dos negócios seja considerado quase tanto um herói nacion~l
quanto um cantor de música popular, um apresentador de televisão ou um craque de futebol.
(4) O empreendedor confunde-se com o empresário quando ele, além de pôr
(5) Vejam-se, por exemplo, diversas discussões sobre este tema em "Demarquia, um novo regime político, e outras idéias", H. Maksoud, Editora Visão
Ltda., 1979.
em marcha o novo negócio, é o seu dono e o gere.
56
57
Tributação de heranças:
forma suave de extorsão
Daqui a pouco tempo surgirá provavelmente uma nova tributação 'inventada' pela burocracia brasileira: trata-se da taxação de
heranças, doações e ganhos de capital.
Desde há alguns meses, circulam com certa freqüência, nos jornais, pequenas notas sobre a 'fabricação' de mais essa 'pílula' estimulante a ser administrada aos imbecis que, neste país, se metem a
trabalhar, são bem sucedidos e tornam-se prósperos- esses 'imbecis' constituem as chamadas 'classes mais favorecidas', conforme definição de inúmeros economistas, sociólogos e intelectuais
brasileiros e transnacionais que constituem a 'Academia Moderna
dos Grandes Mestres da Soberba'.
O que é curioso é que essas notícias surgem inesperadamente,
como se fossem 'teasers' de propaganda; no dia seguinte, o assunto parece estar morto, mas retorna algum tempo depois com o
lembrete de que a elaboração da 'lei' não parou e que, "apesar de
estar encontrando 'algumas objeções' por parte da iniciativa privada, a Secretaria da Receita Federal pretende entregar, até outubro, ao Ministro da Fazenda, o projeto para tributação de heranças e doações no Brasil, além dos ganhos de capital, 'como está
nas diretrizes gerais do atual governo' " Ol.
Vale destacar também que a imprensa e os políticos praticamente não tratam do assunto. Parece que para os jornalistas e os
políticos a matéria não tem a mínima importância. Há quem diga,
entretanto, que para muitos destes cavalheiros a questão é claramente reconhecida como de vital importância político-ideológica
mas que, por astúcia, o melhor é mesmo deixar o processo 'legislativo' andar silenciosamente para não 'levantar a lebre'.
A matéria, porém, é da mais alta importância e da maior gravidade. Atinge diretamente o sagrado direito à propriedade individual. Objetiva abolir gradualmente o direito de herança.
(I) Conforme publicado na "Gazeta Mercantil", 4-8-79, página 5.
58
Embora venha marcada com argumentos que procuram
caracterizá-la como coisa científica e eqüitativa, e que busca corrigir 'injustiças fiscais' existentes, a medida é puramente políticoideológica. Nada mais que puro marxismo.
O projeto que está sendo anunciado é, além de tudo, discricionário: a taxação será progressiva, isto é, haverá alíquotas crescentes para as heranças, doações ou ganhos maiores, como já ocorre
com o imposto de renda <2>. Quando surgir mais às claras esse projeto, dirão seus defensores que os pequenos proprietários não serão quase afetados e que mesmo as alíquotas mais altas serão relativamente baixas.
O fato de não serem muito elevadas as alíquotas inicialmente
propostas nos decretos de taxação progressiva foi sempre a tática
usada para impor com mais facilidade essa forma torpe e injusta
de tributação. As pessoas não sabem (ou fazem a vista grossa para
não saberem) que o principal perigo da progressividade, como já
dizia por volta de 1538 o estadista florentino Francesco Guicciardini, "jaz na própria natureza da coisa, que no princípio começa
pequenina, mas, se o homem não toma muito cuidado, ela se multiplica rapidamente e atinge logo um ponto que ninguém teria sequer imaginado".
É claro que foram os socialistas que primeiro advogaram a taxação progressiva. O objetivo francamente exposto por eles era o
de expropriar os ricos. Karl Marx e Friedrich Engels, no seu Manifesto do Partido Comunista (3), de 1848, propuseram <4> o "imposto fortemente progressivo" e a "abolição do direito de herança"
como duas medidas pelas quais o "proletariado utílizará sua supremacia política para arrancar, pouco a pouco, todo o capital à
burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas
mãos do Estado".
A essas propostas socialistas os filósofos-políticos liberais da
época reagiram mostrando que esse tipo de taxação rapidamente
tomaria contornos de demagogia, pois os governantes associados
(2) Quem estiver interessado neste assunto poderá referir-se aos artigos: "O arbítrio da taxação progressiva" (7-8-78); "Ideologia do imposto progressivo"
(4-9-78); "As falácias do tributo progressivo" (18-9-78); "Democracia, taxação e
demarquia" (2-10-78), também reproduzidos nesta obra.
(3) Ver K. Marx e F. Engels, "Textos", Vol. 3, Ed. Alfa-Ômega Ltda., São Paulo,
1977, página 37; ou K. Marx e F. Engels, "Cartas Filosóficas e Outros Escritos",
Ed. Grijalbo Ltda., São Paulo, 1977, página 103.
(4) Ver H. Maksoud, "Anticomunismo marxista", em VISÃO, 28-!1-77, e em
"Idéias ... ", Ed. Visão Ltda., São Paulo, 1978, página 55.
59
aos políticos passariam a prometer ao povo coisas ambíguas e vagas como a 'justiça social', a 'redistribuição da riqueza' e outros
infindáveis benefícios, estimulando a inveja nos homens e jogando
com ~ presunção de que apenas uma pequena parcela de ricaços
pagana por eles.
John Stuart Mill, na época, pintava o tributo progressivo como
"a mild form of robbery". Em bom português, podemos afirmar
que a ~ax~ção da herança, principalmente porque progressiva, nada mais e que uma descarada extorsão de caráter socialista para
acabar com a propriedade particular e, pois, com a liberdade individual.
O Presidente foi à feira
Todos os meios de comunicação deram ampla cobertura ao dia
(9·8-79) em que o Presidente da República passou em São Paulo
visitando o mercado da Cantareira, a feira livre do Bom Retiro,
chácaras de produtos hortigranjeiros de Mogi da Cruzes e no Jaguaré, o centro de comercialização da Ceagesp- Companhia de
Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo.
O Presidente João Figueiredo queria saber como funciona o
mercado no caso dos hortifrutigranjeiros. Procurou conhecer,
nesse dia, por quanto vendiam os chacareiros de Mogi alguns de
seus produtos e a que preço compravam nas feiras os consumidores desses mesmos produtos. Descobriu que o consumidor paga
bem mais que o preço cobrado pelo produtor. Mostrou-se impressionado com a significativa diferença. Perguntado sobre o porquê
dessa diferença e que medidas tomaria, disse o Presidente que
"nesse duelo entre produtor e consumidor" existe alguma coisa
errada que não sabe o que é, mas vai tentar responder depois de se
reunir com seus auxiliares. "O que eu quero identificar", confirmou o Presidente, "é justamente o que existe entre o início e o fim
da cadeia. Pode ser que seja o atravessador, mas pode ser também
que o culpado seja a nossa própria legislação. Só poderei saber
que medidas tomar quando conhecer o problema, suas causas e
puder responder sobre o porquê dessa diferença de preço entre o
produtor e o consumidor." Ol
Existem, todos sabem, entre o produtor e o consumidor, dependendo da mercadoria e das características de sua comercialização, diversos elementos intermediários (tais como o transporte, o
armazenamento, a estocagem e a refrigeração, além da incidência
de impostos e da própria intermediação normal no comércio) que
tendem a tornar menos simples as relações de preços entre as re(1) Transcrição livre de trechos de uma entrevista publicada pelo "Jornal do
Brasil" de 10-8-79, página 14.
60
61
giões de produção e as de consumo. As características dessas estruturas de comercialização obviamente poderão afetar não só os preços dos yrodut?s ~ as relações de preços dos produtores para os
cons~midores fma1s, mas também a regularidade e a garantia dos
supnmentos. Há, sem dúvida, em todo esse procedimento inúmeras oportunidades para abusos e especulações altistas. Ninguém,
entretanto, consegue ab.usar ou especular permanentemente, provocando aumentos contmuos e persistentes de preços a não ser em
condições de monopólio toleradas pelo governo. Dodtra forma os
aumentos sistemáticos de preços só ocorrem quando o merc~do
perde sua autonomia pela interferência tácita ou expressa do governo no processo de estruturação dos preços.
''Vou dar u~ j:!to para '!.ue .o consumidor gaste menos e o prod~tor ganhe mais. Este tena sido um desabafo do Presidente registrado por um jorn~lista.durante a visita às granjas de Mogi' das
Cruzes <2>. Isto seria quase o mesmo que dizer 'vou mudar as regras .do me~c~do e_estabelecer um novo sistema de preço'. Uma tal
~ed1da sena Imagmável apenas num regime de governo que deseJ~sse acabar de vez com o mercado pelo controle de preços. Há válidas esperanças de_ que este não é ainda o caso do atual governo.
.. <? que se passana num caso desses, entretanto, é que, uma vez
I~Icmdo o pr~c:~so de controle ~eyreços num dado campo de atividades= ele dificilmente conseguma parar aí; as novas pressões geradas disparam uma cadeia de eventos que conduzem fatalmente
ao completo controle do sistema de preços e à destruição do mercado,. como n~s mostra o grande economista e filósofo político
Ludwig von Mises na descrição que segue:
. "O governo passa a crer que o preço de um certo produto o
leite por e~e~plo, está demasiado alto. Ele quer que os pobres 'tenham possibilidade de dar mais leite a seus filhos. Recorre então
a u~a p.olítica de preço máximo e fixa o preço do leite nu~ nível
mais ba~xo que o que prevalece no mercado livre. O resultado é
que os produtore.s marginais, aqueles que se encontram produzindo aos c.ustos mais elevados, passam a ter prejuízo. Como nenhum
fazendeiro ou homem de negócios pode manter-se trabalhando
com prej~ízo, esses produtores marginais param de produzir e de
vender leite no mercado. Passarão a usar seu gado e suas habilidades n~utros n_~gócios mais rentáveis. Produzirão, por exemplo,
manteiga, q~eiJO ou carne. Haverá, pois, menos leite à disposição
dos consumidores, não mais como se pretendia. Isto, claro, é con(2) "Jornal do Brasil", 10-8-79, página 14.
62
trário às intenções do governo, que queria facilitar para certas pessoas a compra de mais leite. Como resultado de sua interferência,
caiu o ritmo de suprimento do produto. A medida se mostra abortiva do próprio ponto de vista do governo e dos grupos que ele estava ansioso para favorecer, provocando um estado de coisas que
-também do ponto de vista do governo -é ainda menos desejável que o anterior, que se visava melhorar.
"Então, o governo depara com duas alternativas. Uma é revogar seu decreto e abster-se de quaisquer outras medidas para controlar o preço do leite. Mas, se insistir em seu intento de manter o
preço do leite abaixo do índice determinado pelo mercado livre e
quiser, não obstante, evitar uma queda no suprimento do leite, deve procurar eliminar as causas que tornam não-lucrativo o negócio
do produtor que trabalha com margem apertada. Deve então
acrescentar ao primeiro decreto, relativo apenas ao preço do leite,
um segundo decreto, fixando os preços dos fatores de produção
necessários à produção do leite a um custo suficientemente baixo
para que os produtores marginais de leite não sofram mais prejuízos e, desse modo, não provoquem a escassez de oferta do produto. Acontece, porém, que a mesma história se repete num plano
mais remoto. O suprimento dos fatores de produção exigidos para
a produção do leite cai e, novamente, o governo está de volta ao
ponto de partida. Se não quer admitir seu fracasso nem abster-se
de qualquer ingerência nos preços, ele precisa prosseguir e fixar os
preços daqueles fatores de produção requeridos para a produção
dos fatores necessários à produção do leite. Dessa forma, o governo se vê forçado a ir mais e mais avante, fixando, um a um, passo
a passo, os preços de todos os artigos de consumo e de todos os fatores de produção - tanto os humanos (isto é, o trabalho) como
os materiais - e obrigando cada empresário e cada trabalhador a
continuar a operar com esses preços e salários. Nenhum ramo da
indústria pode ser excluído desse 'tabelamento' global de preços e
salários e desta obrigação de produzir as quantidades determinadas pelo governo. Se alguns setores fossem desconsiderados, pelo
fato de produzirem apenas mercadorias classificadas como nãovitais ou até mesmo supérfluas, o capital e o trabalho tenderiam a
convergir para eles e o resultado seria uma queda no suprimento
daqueles produtos cujos preços foram fixados pelo governo precisamente por considerá-los indispensáveis à satisfação das necessidades das massas.
"Quando esse sistema de total controle dos negócios for atingido, não restará nenhum vestígio de uma economia de mercado. Os
63
cidadãos não mais determinarão, comprando ou abstendo-se de
comprar, o que deve ser produzido e como. O poder de decisão
nessas questões terá passado à incumbência do governo. Não haverá mais capitalismo e sim total planificação governamental· socialismo, enfim.
'
"É verdade óbvia que esse tipo de socialismo preserva alguns
d_?s ~ótulos e~ aparência exterior de capitalismo. Mantém, na aparencla e nommalmente, a propriedade privada dos meios de produção, os preços, os salários, os juros e os lucros. Na verdade, entretanto, nada tem influência e importância a não ser a autocracia
ir.res~rita do governo. É ele quem determina aos empresários e capitahstas o que produzir e em que quantidade e qualidade, a que
preços comprar e de quem; a que preço vender e a quem. Ele dec:et~ os salári.osAe o.nde os trabalhadores devem trabalhar. As aparencms de ex1stenc1a dum mercado não passam dum simulacro.
To?os os preços, salários e taxas de juro são determinados pela autondade. São preços,. salários e juros apenas na aparência; são, de
fa~o, meras relações de quantidades nas encomendas governamentais. O go~erno dirige a produção, não os consumidores. O govern~ determma a renda de cada cidadão e atribui a cada um a posiç.ao em _que deve trabalhar. Isto é socialismo mascarado de capitahsmo. E o Zwangswirtschaft (economia de guerra ou economia dirigida) do Reich alemão de Hitler e a economia planificada da
ürã-Bretanha." (3)
. Queremos todos que a feira do Presidente tenha sido útil e proveitosa. Que no balanço que fará com seus auxiliares o saldo seja
r~ndoso de ensinamentos. Entretanto, rezamos todos para que
nao !~vem a Sua Excelência idéias de intervenção, como as acima
descntas, que pretendam dar ao povo mais leite ou mais verduras.
(3) Parte de uma palestra projeri~a em 8 de abril de 1950 no University Club
de l'f,ova. Iorque, mfltulada M1ddle-oj-the-Road Policy Leads to Socialism , L1bertanan Press, Illinois, EUA, 1952.
64
O logro na linguagem política
Temos destacado com freqüência que a confusão no uso das
palavras predomina no pensamento político moderno. A maior
parte dos fenômenos sociais de nossa época não é entendida pelo
homem comum (e também pela maioria dos 'não-comuns') por
causa dessa confusão da linguagem. Muitas divergências supostamente ideológicas se devem à falta de expressões inequívocas nas
discussões políticas. A despeito da origem atávica da maioria desses defeitos lingüísticos, grande parte das expressões usadas no
atual vocabulário político é fabricada com a intenção do logro
através da própria confusão.
São três as principais características dessa confusão semântica.
A primeira é a tendência de materializar e personalizar expressões
de sentido abstrato; a segunda é a de exprimir de forma abstrata e
coletivizada palavras que representam valores específicos e unos; e
a terceira é a de tornar ambíguas idéias tradicionalmente reconhecidas.
As palavras 'lei', 'Estado' e 'sociedade' podem exemplificar o
primeiro tipo de confusão. A expressão 'lei', a mais importante
palavra do sistema de governo constitucional representativo, que
na tradição da civilização ocidental sempre foi entendida como
sendo uma norma universal e abstrata de justa conduta, que somente poderia ser elaborada ou modificada por uma assembléia
legislativa com atribuições bem definidas para esse fim (1), passou
a ser usada abusivamente por quaisquer órgãos do sistema governamental para exprimir comandos arbitrários e discricionários visando a fins específicos e concretos. O positivismo legal materializou e personalizou o sentido abstraio, universal e prospectivo da
palavra 'lei', falsificando seus atributos originais com objetivo de
(1) "Demarquia, um novo regime político, e outras idéias", H. Maksoud,
Editora Visão Ltda., São Paulo, junho, 1979.
65
favorecer ou punir indivíduos, grupos ou associações de pessoas,
de forma aparentemente legal porém sem fundamento moral. As
palavras 'Estado' e 'sociedade' foram tão concretizadas que se
tornaram personagens quase-vivas. Para o homem comum dos
dias atuais, o 'Estado' é a fonte inesgotável de todos os bens, é feito responsável, é invocado e é objeto de queixumes como se fosse
um chefe de tribo, um senhor feudal ou um rei de outrora. A 'so~i~dade', p,or_ seu turno, adquiriu personalidade com princípios
eticos altrmsticos e dela tudo se espera graças à capacidade criativa
infinita que lhe é creditada. Toda essa embrulhada, que no fundo
não passa de um tipo de antropomorfismo, faz com que alguns
homens pensem poder 'construir' uma sociedade, toda ela fundada num conceito etéreo de 'responsabilidade coletiva'. Eles passa~ ~negar a re~ponsabilidade pessoal em favor de uma 'responsabilidade da sociedade'. Por equívoco presumem que seja obrigação da sociedade fazer a 'justa distribuição da riqueza e
bem-estar'. Para isso, 'materializam' a sociedade na forma de órgãos estatais que passam a determinar não só como mas também
quando e onde os indivíduos podem fazer uso de suas capacidades
e talentos.
A liberdade, fonte e pré-requisito de todos os demais valores e
princípio supremo da sociedade civilizada, é una e portanto indivisível. Embora os usos que se podem fazer da liberdade sejam muitos, a liberdade é uma só; ela é individual. No ambiente de confu~
são de linguagem em que vivemos, entretanto, a palavra 'liberdade' é usada para exprimir muitos conceitos equívocos e ambíguos,
onde se destaca, por exemplo, o da 'liberdade política', criado para fazer crer que a participação dos homens na escolha de seu governo, no processo legislativo e no controle da administração ficaria automaticamente garantida se houvesse apenas, ou principalmente, essa 'parcela' da liberdade. Presumem, ainda, a extensão
do conceito de liberdade pessoal a grupos de pessoas como um todo, ao povo, como se isso produzisse um certo tipo de 'liberdade
coletiva'. Um povo livre nesse sentido coletivo, abstrato, não é,
entretanto, necessariamente um povo de homens livres.
A palavra 'social', que objetivamente significa tudo aquilo que
é próprio da sociedade, é usada hoje, mais que qualquer outra palavra, para provocar ambigüidade lingüística no ambiente político .. O uso pleonástico desse adjetivo nas expressões 'justiça
social', 'democracia social', 'economia social de mercado', 'estado de direito social', 'turismo social', 'comunicação social', etc. é,
obviamente, confusionista com objetivo ideológico. Existem, por
66
acaso, 'justiça', 'democracia', 'mercado', 'turismo', 'estado de direito', etc. que não sejam 'sociais'? É claro que tudo é 'social';
mas a idéia doutrinária subjacente é a de que os problemas que
nesse enleio político-semântico são chamados de 'distribuição da
riqueza', de 'desordem do mercado', de 'capitalismo selvagem',
de 'bem-estar', etc. só poderão ser resolvidos através de mais e
mais controle do mercado, de mais e mais absolutismo sindical, de
mais e mais organização compulsória da vida social, ou seja, através do socialismo. O uso abusivo do adjetivo 'social' é acima de
tudo um excelente instrumento de demagogia, pois que das expressões onde ele é usado se pode extrair praticamente qualquer significado político que se queira e haverá nelas sempre uma simulação
de altruísmo, de comiseração, de desprendimento, de humildade,
de modéstia, etc. Nessa confusão toda, ninguém explica e poucos
se dão conta de que a tal "justiça social para as classes menos favorecidas" só pode ser feita metendo. a mão no bolso alheio, enchendo os cofres do governo e tirando a liberdade de todos. Essas
palavras não encherão barrigas, mas que enganam, enganam.
67
Impostura e equívocos dos imposteiros
A preservação da vida, liberdade e patrimônio de cada indivíduo foi o motivo principal que fez os homens se unirem em comunidades e nações e aceitarem a idéia de ter governos. O que eles
originalmente pretendiam era que o governo, subordinado a Leis
(normas gerais e duradouras de justa conduta), administrasse a
justiça entre os homens, de modo que as pessoas pudessem conduzir em liberdade seus negócios e afazeres. À medida que as comunidades se foram tornando maiores e mais complexas, os homens
passaram a aceitar que, além de fazer cumprir a Lei e tratar da defesa nacional, os governos também administrassem determinados
serviços públicos que não pudessem ou não devessem ser realizados pelo mercado.
Apesar do progresso conseguido ao longo dos séculos nas sociedades civilizadas, os homens ainda vivem inseguros em termos
de salvaguarda desses bens pessoais fundamentais, pois esse conceito verdadeiro de governo foi quase sempre mal compreendido
e, por isso, continuamente deturpado. Pretendendo viver numa
sociedade livre, os homens, ao se colocarem sob a proteção de um
governo, certamente imaginaram delegar uma 'autoridade' para
que, através de certos arranjos institucionais e pelo encargo de fazer respeitar as leis, grupos de indivíduos pudessem servir aos cidadãos e à nação, tratando de preservar aqueles bens fundamentais.
Não imaginaram essa delegação, entretanto, para que o oposto
viesse a ocorrer, isto é, que fosse substituída a autoridade-paraservir pelo poder ilimitado de -representação, a ponto de os próprios homens se esquecerem da razão de ser dos governos e passarem a considerá-los como entidades onipotentes e de poder ilimitado, a qHem todos deveriam apenas prestar obediência e render
tributos.
Ninguém questiona que, numa sociedade moderna e complexa,
todos os cidadãos devam contribuir financeiramente para que os
68
governos possam cumprir com as funções que lhes são próprias.
Os homens sabem há muitos séculos que a tributação é o meio adequado para levantar rt>ceitas governamentais. Eles sabem também
(quando prestam atenção) que a aplicação de impostos pode
transformar-se numa terrível arma de tirania, arbítrio e discricionariedade, principalmente quando a taxação adquire ideologia socialista, deixando de ser igual para todos e passando a funcionar,
pela via do progressivismo fiscal, como artifício (totalmente falacioso, aliás) para a chamada redistribuição de renda (I)_
Ao instituírem os sistemas de governo e suas respectivas organizações para garantirem a preservação de suas vidas, liberdades e
patrimônios e para terem prestados determinados serviços públicos (2), os homens sabiam que todos deveriam contribuir eqüitativamente a um fundo financeiro comum, administrado pelo governo, de acordo com a capacidade de cada um, isto é, em proporção
à renda que cada um respectivamente auferisse sob a proteção do
Estado. Seria como se todos os condôminos ou inquilinos pagassem as despesas comuns referentes à administração de uma grande
propriedade: todos estariam obrigados a contribuir em proporção
aos seus respectivos interesses na propriedade. A eqüidade dessa
contribuição para as finanças públicas está, pois, fundamentalmente ligada ao princípio da proporcionalidade da taxação.
O conceito sobre o que é certo e o que é errado no âmbito da
tributação é um dos campos mais abandonados do pensamento
político contemporâneo. Cada vez mais os juristas, os políticos, os
economistas e os estatocratas em geral consideram que a taxação e
as finanças públicas são nada mais que um simples problema 'prático' e 'técnico' de economia e de legislação. Esses 'fazedores de
impostos' tratam simplesmente de procurar, pragmaticamente,
meios de aumentar os impostos e de equilibrar o orçamento governamental. Procuram apenas, por exemplo, tentar descobrir quem
tem 'capacidade' de pagar mais; quem 'convém' isentar de pagar
mais; onde taxar mais e onde menos; quanto de impostos adicio-
(1) Sobre o tema "impostos", chamo a atenção dos leitores para os seguintes
artigos recentes meus, publicados na VISÃO e nas revistas "Dirigente Rural",
"Dirigente Construtor", "Dirigente Municipal" e "Dirigente Industrial" e
transcritos nesta obra: "O arbítrio da taxação progressiva", "Ideologia do imposto progressivo", "As falácias do tributo progressivo", "Democracia, taxação e demarquia" e "Tribuiação de heranças: forma suave de extorsão".
(2) Maksoud, Henry, "Ação econômica do governo na demarquia", em "Demarquia ... ", páginas 46 a 55.
69
~ais para ~elhorar o bala~ço orçamentário; como justificar 'politicamente o aumento do tmposto ou a nova tributação; ou qual a
melhor forma de dar 'legalidade' ao novo tributo. Ao considerarem a taxação, esses 'imposteiros' vêem o governo como um fim
em si mesmo. e não ~orno um meio descoberto pelos homens para
preservar a vtda, a hberdade e a propriedade dos indivíduos. Deixaram de enxergar que a tributação é uma questão extremamente
crítica que se situa na linha fronteiriça entre a Economia e a Política e que por isso pode gerar sérios pontos de conflito tanto numa
como noutra.
, ~o '~ackground' dessas _eleme~tares considerações 'práticas e
tecm_cas. do_ ~roblema da tnbutaçao encontra-se toda a ideologia
do dtstnbuhvtsmo com suas inúmeras falácias e crendices. Em toda a argumentaçã~ e nas dis~ussões sobre aumentos de impostos
ou sobre novos tnbutos, os mteressados nesses projetas sempre
tratam. de espalh_ar falsas idéias de que quem vai pagar são as 'classes mats favorectdas' ~não a maioria do povo. Esse logro político,
fundamentado na aphcação d~ taxas progressivas de impostos, fez
com que os povos fossem aceitando cargas gradualmente crescentes de impostos, muito mais pesadas que as que admitiriam se não
estivessem sob a influência d.e certas ilusões. Muita gente pensa,
por exemplo, que, sem a alta progressividade dos tributos isto é
s:m tax~ mai~ fortemente as chamadas 'classes mais privile~iadas':
nao sena posstvel manter as crescentes necessidades financeiras do
setor público onde se incluem os cada vez maiores gastos públicos
com 'benefícios soci~is'. Trata-se, realmente, de uma triste ilusão,
que qualquer pessoa tsenta e de bom senso saberá notar (3).
Outro aspecto curioso da falácia distributivista se refere às finanças dos Municípios e dos Estados no âmbito da questão fiscal
federal. A pretexto de corrigir as chamadas 'distorções econômicas regionais' e de 'simplificar' a máquina coletora de tributos
muitos economistas, políticos e também homens de negocws
deram-se as mãos no sentido de fazer com que grande parte dos recursos financeiros necessários ao funcionamento dos vários níveis
de governo fosse colhida pelo governo central e posteriormente
distribuída aos estados e municípios, de acordo com determinadas
fórmulas de redistribuição. Por detrás desses pretextos esconde-se,
porém, um grande equívoco de natureza política. A centralização
tributária não só acaba com todo o conceito de autonomia de uma
federação mas também, pelo paternalismo, elimina todo o senso
de iniciativa e de responsabilidade política dos cidadãos, principalmente no âmbito municipal.
Num sistema de governo em que se aplica o processo democrático para tomada de decisão, presume-se que os eleitores tenham
força e 'direito' de comando sobre o governo e os políticos que,
afinal, são seus delegados. É de se esperar, porém, que eles também assumam algum tipo de responsabilidade pelas ações desses
seus representantes. Pagar impostos na mesma proporção que todos os demais cidadãos é talvez a melhor forma que se poderia
idealizar para fazer com que cada eleitor sinta algum tipo de responsabilidade e exerça algum controle efetivo sobre as decisões tomadas pelos seus representantes (governo e políticos) em relação
aos impostos, aos gastos públicos e ao orçamento governamental
em geral.
Ao invés de estimular esse sentimento de responsabilidade entre
os cidadãos e eleitores, o que se observa hoje é justamente o oposto: procura-se destruir a idéia da responsabilidade pessoal,
difundindo-se superstições de que não serão eles - os cidadãos ou
os eleitores - mas sim outras pessoas 'mais habilitadas a pagar'
que irão ser tributadas pelas boas coisas que lhes estão sendo oferecidas pelo seu apoio ou seu voto.
'
(3) Em ";t.s falácias do tributo progressivo", citado acima, dissemos que "as
flslcas CUJOS classes de renda estão na alíquota máxima atual de 50o/o
contnbuem com seu imposto sobre a renda com apenas cerca de 2 5o/o da receita tributária federal, que corresponde a cerca de O,Jo/o da renda' nacional"
E, "~e a progressividade da taxação fosse aumentada a ponto de praticament~
c?nflsca~ todas as rendas acima de um certo nível, o aumento da receita tributana sena de apenas I o/o". O mais importante, porém, é que, além de pequeno, o eventual_ c:esc~mento d~ _receita tributária "seria mais do que contrabalanç~do _Pela m1b1çao de at1v1dades econômicas decorrentes do desestímulo
traz1do as pessoas mais empreendedoras pelo aumento da taxação sobre seus
proventos".
pesso~s
70
71
O sisudo Marx
está rindo de nós
Se alguém depois de morto puder continuar observando o desenrolar das coisas que deixou em vida, os ilustres senhores Karl
Marx e Friedrich Engels devem estar divertindo-se gostosamente
com os resultados da herança que deixaram com seu Manifesto
Socialista cu de 1848.
Nesse verdadeiro legado de equalização da miséria, eles propuseram a "violação despótica dos direitos de propriedade e das relações burguesas de produção pelo poder dominante, para arrancar,
pouco a pouco, todo o capital à burguesia e para centralizar todos
os instrumentos de produção nas mãos do Estado". Marx e Engels
enfatizaram que isso só poderia ser realizado aplicando-se um conjunto de dez medidas que, "para começar, parecerão insuficientes
e insustentáveis do ponto de vista económico, mas que no desenrolar do movimento ultrapassarão a si mesmas, acarretarão subse-
(1) Esse famoso panfleto foi realmente denominado 'Manifesto Comunista', embora, conforme escreveu Engels nos prefácios das edições inglesa de 1888 e alemã
de 1890, eles preferissem tê-lo chamado de 'Manifesto Socialista'. Não o fizeram
':arque, c?mo disse Engels nesses prefácios, "em 1847, entendia-se por
soctaltstas , de um lado, os adeptos dos vários sistemas utópicos: os owenistas na
Inglaterra e os fourieristas na França, ambos já reduzidos a simples seitas agonizantes; e, de outro, os vários curandeiros sociais, que, por meio de todos os truques, pretendiam eliminar os problemas sociais sem constituir perigo para o capital
e o lucro". f!mbora não tenham repudiado diretamente o nome comunista que der~m. ao ,manifesto, Marx e Engels gostariam de havê-lo denominado 'manifesto soctaltsta , pots, de acordo com Engels nesses mesmos prefácios, tratava-se, então
da "obra mais difundida e mais internacional de toda a literatura socialista ...
Pena, para eles, que a palavra socialista já havia sido apropriada anteriormente por
outros grupos que eles desprezavam. O manifesto de Marx é, portanto, socialista e
apenas foi apelidado de comunista, pois, na época, 'pegava' melhor. (Ver, por
exemplo,_ K. Marx e F. Engel~, "Cartas filosóficas e outros escritos", Ed. Grijalbo
Ltda., Sao Paulo, 1977, pdgma 75, ou edições em inglês da Penguin Books Ltd
Middlesex, England.)
.,
<
72
qüentes violações na antiga ordem social e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo de produção". As três
primeiras medidas desse decálogo são a "abolição da propriedade
da terra", a "imposição de impostos fortemente progressivos sobre as rendas" e a "abolição do direito de herança".
Todas as pessoas que possuem um mínimo de inteligência sobre
os eventos que ocorrem ao seu redor sabem que existem hoje duas
formas principais de tributação direta (2): a proporcional e a progressiva. A proporcional se fundamenta no princípio da eqüidade
fiscal, ou seja, na idéia de que as pessoas - pelo menos aquelas
com rendas acima de um nível mínimo de subsistência - devam
contribuir para o fundo comum, que mantém o governo e seus
programas, com a taxa única de xOJo sobre seus proventos, de modo que os que ganham mais pagariam mais na proporção que seus
rendimentos fossem maiores. O sistema de taxação progressiva
não possui nenhum princípio que permita sejam definidas taxas de
progressão, para cada nível de rendimento, que possam ser verdadeiramente eqüitativas. Essas taxas serão sempre arbitrárias· e
pior ainda, serão também discricionárias e facilmente utilizá~ei~
para fins tirânicos. E demagógicos também: em se tornando questão política, os impostos progressivos são propostos conjuntamente com benefícios infindáveis ao povo ou a determinadas causas ou
a regiões carentes, fazendo supor que apenas alguns ricaços, certos
setores de atividades ou as regiões mais ricas pagariam por eles.
Em verdade, todos são punidos, pois o arbítrio, a discricionariedade, a tirania e a demagogia só conseguem deter o progresso.
Ninguém pode contestar que a tributação progressiva transgride o princípio fundamental duma sociedade livre e do estado de direito que é o da eqüidade da lei. A tributação progressiva tem que
ser imposta por um comando arbitráno e d1scncwnáno que nem
sequer pode ser chamado de lei, pois não é uma norma universal
de justa conduta aplicável igualmente a todos. Mas o pior do progressivismo é a impossibilidade de se ter uma regra uniformt;: de taxação, pois ele mantém as pessoas completamente sujeitas a violações despóticas dos rendimentos de seu trabalho e de seus direitos
de propriedade. O principal perigo da progressividade, como já escrevia Francesco Guicciardini por volta de 1538, está na própria
natureza desse sistema, "que no princípio começa com taxas pe(2) O efeito da taxação indireta, que coloca uma carga maior nas rendas menores
é levado !m conta no meu artigo "Democracia, taxação e demarquia ", publicad~
em VISA O de 2-10-78 e reproduzido nesta obra.
73
queninas, mas, se o. homem não toma muito cuidado, elas se multiplicam rapidamente e atingem logo um ponto que ninguém teria
sequer imaginado,. Isso, porque, além de serem arbitrários ediscricionários, os impostos progressivos não têm atingido seus supostos objetivos de reduzir as desigualdades dos níveis de riqueza;
e, conforme já está mais que demonstrado naqueles países que há
dezenas de anos os vêm aplicando a altíssimas taxas, esses objetivos jamais serão atingidos por essa via. Acontece, porém, que não
há muitos homens de bom senso para compreender essa verdade;
esses impostos, então, passam a ser vistos como "medidas insuficientes e insustentáveis do ponto de vista econômico" e que, como
também dizia Marx no seu manifesto, "exigirão subseqüentes violações na antiga ordem social": já que a!i 'leis' fiscais vigentes não
conseguem seu objetivo putativo, a 'justiça social', novas 'leis' devem ser impostas com novas e mais pesadas·taxas - crescentemente progressivas, é claro.
O Brasil, que até agora em seus noventa anos de República somente soube transplantar, no âmbito das instituições políticas,
muita coisa errada daqueles países que considera avançados, vem
também copiando, com uma certa defasagem no tempo, os institutos tributários desses mesmos países. Enquanto estes já estão, há
anos, tentando desmanchar seus equívocos, nós estamos agora fazendo força para entrar cada vez mais no emaranhado da taxação
progressiva. Já temos o imposto progressivo sobre a renda que
atingiu a taxa-alíquota máxima dos 500Jo. Agora estão falando em
estabelecer a progressividade no lucro das empresas (passar do
proporcional de 30% para um progressivo com taxa mínima de
30% e máxima, inicialmente, de 40%) e também a tributação progressiva sobre heranças, doações e ganhos de capital.
Semana passada deram notícia da minuta de um projeto de
lei (!) elaborado por funcionários de um setor de uma divisão de
um departamento de um dos ministérios do executivo federal.
Nós, os súditos, juntamente com os analistas 'econômicos' de nossa imprensa e com os deputados e senadores nossos 'legisladores',
respiramos aliviados porque decidiram que a taxa máxima do progressivo das heranças seria módica, não muito pesada ... E, pelos
cálculos que já começaram a fazer, "somente uns 100 a 200 ricaços que morrerem por ano" serão atingidos pela taxa máxima. O
'pessoal da agricultura' vibrou porque as propriedades agrícolas
foram deixadas de fora desta 'lei', "como era justo, pois, afinal, a
agricultura é prioritária neste governo ... ". Um banqueiropolítico, um herdeiro 'progressista', um empresário distraído e ai-
74
guns outros por aí, ouvidos pela imprensa entusiasmada com o
evento, chegaram a classificar as novas medidas tributárias como
"corretíssimas", "justíssimas", "corretas como princípio" e, até,
''filosoficamente inevitáveis'' ...
Mas já que o Brasil está copiando o que outros países fizeram
vamos ver o que estamos copiando: a Inglaterra e os Estados Unidos adotaram o imposto progressivo sobre a renda (copiando a
Alemanha, que já o tinha implantado em 1891) nos anos de 1910 e
1913, com as taxas máximas de 8,25% e 7%, respectivamente. Em
menos de trinta anos essas cifras atingiram os valores de 97,507o na
Inglaterra e 91 OJo nos EUA. Atingiram "um ponto que ninguém
teria sequer imaginado", como diria o antes citado estadista florentino Guicciardini.
Com referência a impostos progressivos sobre herança ou espólios, a história se repete. Nos Estados Unidos, por exemplo, após
algumas tentativas anteriores repelidas, um imposto sobre espóliof
foi introduzido em 1916, sob a alegação de emergência, por estar o
país preparando-se para entrada na I Guerra Mundial. O que teve
início como uma arrecadação devido a uma situação de guerra,
que teria caráter temporário e seria essencialmente proporcional,
transformou-se num instrumento permanente, de 'política econômica e social'. Em 1916, havia uma isenção para os primeiros
50.000 dólares, uma taxa mínima de l OJo sobre a primeira alíquota
de 50.000 dólares do espólio tributável e uma taxa máxima de 10%
sobre os espólios tributáveis acima de 5 milhões de dólares. Nos
anos seguintes, achando "insuficientes e insustentáveis economicamente" as taxas vigentes, o governo efetuou subseqüentes violações nos direitos de propriedade e aumentou as taxas-alíquotas
máximas em 1917, 1918, 1921, 1932, 1934, 1935 e atingiu o valor
de 77% (setenta e sete por cento) em 1941, que é, praticamente, a
que ainda prevalece; a isenção correspondente é de 60.000 dólares,
a taxa mínima é de 3% sobre os primeiros 5.000 dólares e sobe até
o máximo de 77% sobre os espólios de mais de 10 milhões de dólares. Dizem e demonstram os especialistas que, a despeito desse tremendo aumento das taxas progressivas de tributação, esses tributos produzem apenas insignificante porcentagem das receitas fiscais e as 'desigualdades' que os impostos pretendiam resolver continuam existindo e têm, inclusive, se acentuado.
Segundo o Dr. John W. Robbins (3), o processo é dialético, isto
(3) Diretor da The Herítage Foundation, Washington, D.C. No prefácio de
"Death and Taxes", de Hans F. Sennholz, 1976, trabalho de onde vários elementos deste editorial foram extraídos. Robbins termina dizendo que, se o magnifico
ensaio de Sennho/z ''não mudar seu modo de pensar sobre a morte, ele cerü1mente
o fará a respeito de seu pensamenro sobre os impostos".
75
é, opera através da ocorrência incessante da tríade tese, antítese e
síntese. "A tese se dá quando o governo percebe o problema, no
caso a desigualdade da distribuição da riqueza. A antítese: o governo trata de 'corrigir' o problema, impondo um imposto progressivo sobre as heranças. A síntese: o problema se agrava devido
às ações do governo. O agravamento do problema se transforma,
então, na tese de uma nova tríade, e o processo continua até que se
dê a completa abolição de todos os direitos de herança.'' Nas palavras de Marx, as medidas tomadas ''ultrapassarão a si mesmas e
acarretarão subseqüentes violações na antiga ordem social".
E aí estamos nós, brasileiros, copiando os erros dos outros (que
já estão fazendo força para se livrar deles) e perseguindo a miragem distributivista chamada 'justiça social' (pela via da chamada
'justiça fiscal' que os outros já verificaram que não dá certo e só
traz retrocesso), ao invés de simplesmente aceitarmos os resultados da magnífica cibernética do mercado que funciona pela ação
espontânea e voluntária de homens individualmente livres e apenas obedientes a regras de justa conduta idênticas para todos, que
são as normas das leis de verdade, fundadas no ideal político do
estado de direito.
Alguns moços franceses, chamados de 'novos filósofos', dizem
que Marx morreu e estão reinventando o socialismo. Outros nem
tão jovens, como diversos acadêmicos (ex. Joan Robinson, querecentemente visitou o Brasil) da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, vêm procurando costurar uma nova teoria socialista distributivista com base, essencialmente, nas doutrinas de Marx e
Keynes.
Se Marx morreu de fato, nesta hora seu espírito deve estar
muito satisfeito com seus discípulos, convicto de que já não só
cumpriram à risca todo o decálogo do manifesto como já inventaram muitos outros mandamentos socialistas bastante eficazes para
desacorçoar seus adversários a ponto de estes considerarem o imposto fortemente progressivo e a abolição do direito de herança
como 'caminhos filosoficamente corretos, justos ou inevitáveis'.
Ele deve também estar dando gostosas gargalhadas de todos aqueles antimarxistas e anticomunistas que andam por aí fazendo o que
chamam de 'democracia social' ou algo no estilo, mas que não é
nada menos, mas sim muito mais, que tudo aquilo que Marx propôs para implantar o socialismo; que, em 1848, ele foi obrigado a
chamar de comunismo.
76
Quem são os verdadeiros reacionários?
. Grande parte do emaranhado de equívocos da linguagem política (I) atual tem origem atávica. Isto porque, em muitos aspectos
o equipamento biológico do homem não evoluiu com a rapide~
com que ele mudou (sem entender bem o que se passava) do estado
primitivo para a vida civilizada. É importante lembrar que o homem viveu durante muitíssimo mais tempo na forma primitiva de
pequenos grupos de caçadores e organizações tribais que na maneira civilizada qae agora conhecemos (2).
A despeito da extraordinária evolução ocorrida no pensamento
filosófico, principalmente a partir do século XVIII, a capacidade
humana de tradução verbal dos mais importantes eventos de nossa
época é obscurecida pelo uso inadequado das palavras, que ainda
reflete um modo de pensar anterior e que procura dar interpretação antropomórfica, ou seja, personificada, às instituições sociais.
Os instintos do homem moderno ainda estão em boa parte dominados pelas emoções inatas que eram vitais para a sobrevivência
das ~ordas primitivas de caçadores; sua linguagem política, outrossim, espelha flagrantemente a 'solidariedade' de natureza tribal, caracterizada em nossos dias principalmente pelo ordenamento autoritário e coletivista da vida em sociedade, pela compulsoriedade dos deveres de alguns em relação a um vago 'bem-estar social' e por um pseudonacionalismo que advém atavicamente darepulsa tribal à invasão estrangeira de seus domínios.
A confusão lingüística é, entretanto, um útil instrumento para
a dialética socialista. As discussões viciadas pela vaguidade das
palavras-chave são uma excelente vantagem a favor da linha cole(I) "O logro na linguagem política", H. Maksoud, em VISÃO, 17-9-79, e
nesta obra.
(2) "A f~!eia-vitória que pode transformar-se numa perda total", H. Maksoud,
em VISAO, 28-5-79, e nesta obra.
77
tivista. Essa ambigüidade dá ampla margem para que os socialistas se autodenominem 'progressistas' e atribuam a suas doutrinas
títulos altruísticos e humanitários. Os que não aceitam o autoritarismo coletivista ou não vagueiam pela 'onda social' são qualificados de 'reacionários'.
'Reacionários' e 'progressistas' são pois mais duas palavras na
série da confusão lingüística que infesta o mundo político moderno. Embora praticamente todas as tendências políticas pretendam
ser descritas como 'progressistas', a expressão é usada pela chamada 'Esquerda' como força de argumentação na sua pretensão de
indicar que caminha para a frente no sentido da mudança, da reforma, da revolução. Quem se opõe a esse pretenso progresso, isto
é, às ações da 'Esquerda', é logo classificado como 'radical', de
'Direita' ou 'reacionário'; ou seja, que resiste ou é contra as 'reformas progressistas socialistas'.
Todos querem ser 'progressistas' e ninguém quer ser 'reacionário' porque todos aceitam intuitivamente que Progresso é bom.
Não é à toa que os socialistas se apropriaram da palavra 'progressista' - lhes é útil. Mas é aqui justamente onde desembocam certas verdades que toda essa confusão da linguagem não consegue
esconder: os partidários do socialismo é que são, de fato, os úni·
cos 'reacionários', pois, no final das contas, o que eles propõem
nada mais é que o retrocesso ao estado primitivo.
As palavras 'progresso', 'cultura' e 'civilização' são praticamente sinônimas e constituem expressões de valores humanos que
servem para contrastar a barbárie, a rudeza e o estado selvagem de
antigamente. A história da cultura e da civilização é a história do
progresso. do homem desde um estado quase animal até uma sociedade aberta balizada por um sistema de normas universais e abstratas de justa conduta. É a história da ascensão do homem de um
estágio primitivo, em que predominavam os instintos inatos e o
uso inadequado da razão, para um estágio da civilização em que
ele passou a controlar seus instintos, a cultivar a inteligência e as
artes todas, a exercitar criticamente sua razão consciente e a adotar os valores culturais abstratos que a humanidade aprendeu gradualmente durante toda essa evolução.
É justamente todo esse Progresso que o 'progressivismo' socialista pretende fazer retroceder apelando intensamente para toda a
confusão lingüística de que puder lançar mão a fim de atingir os
pontos fracos das emoções humanas, sabendo que existem a seu
favor muitos vestígios atávicos dos longos séculos vividos pelo homem na forma de hordas de caçadores e de tribos selvagens. Osso-
78
cialistas e seus amigos trabalham, pois, para o retorno ao passado
primitivo. Fazem-se passar por 'progressistas' para confundir os
incautos; eles são, no entanto, nada mais que 'reacionários' mascarados de 'progressistas'.
79
Mais partidos
ou mais comida?
Quem estiver prestando um mínimo de atenção certamente notará o tremendo alarde que se faz nos últimos tempos em torno da
questão da reforma partidária.
O governo e seus acompanhantes querem que se faça agora
uma 'reforma partidária', enquanto que a oposição e mais outros
não a desejam neste momento. Há, também, nos ambientes do governo e da oposição, os que aguardam o amadurecimento da que·
rela para se definir.
Ano passado e anteriormente eram os oposicionistas que apregoavam novos partidos. Já perguntávamos então: precisamos de
novos partidos ou de um regime político? (1). E continuamos querendo saber: é de novos partidos ou de instituições que nos dêem
mais chances de progresso que necessitamos?
A oposição e seus simpatizantes acusam o governo de pretender
com a reforma tão-somente quebrar a 'unidade oposicionista' pela
criação de focos de incompatibilidades entre os diversos morubixabas e pajés das tribos, isto é, entre os vários líderes das diversas
facções que compõem o conglomerado das oposições, e pela criação de facilidades de adesão ao pretendido 'partido único' de suporte ao governo. Existem inúmeras e variadas outras razões e interpretações contrárias ao atual projeto de reforma partidária, inclusive a severa acusação de que se trata apenas de mais um 'pacote' casuística que nada mais visa que às eleições municipais e estaduais que se estão aproximando.
O governo e sua torcida lançam mão de um astucioso arrazoado para justificar o projeto de lei de reforma partidária elaborado
pelo chamado poder Executivo e remetido ao chamado poder Legislativo para exame e aprovação. Não faltam nessa exposição de
(1) H. Maksoud, "Precisamos de novos partidos ou de um regime político?", em VISÃO, 11-12-78, e em "Demarquia... ", página 88.
80
motivos todos os mesmos argumentos usados há muito tempo pelas chamadas oposições, como por exemplo os de que •Arena e
MDB foram criados de cima para baixo'; de que 'as atuais agremiações não são verdadeiros partidos, pois nem sequer levam a
palavra 'partido' em suas denominações'; de que 'é preciso acabar
com o monopolismo partidário e favorecer o multipartidarismo';
de que 'é necessário criar-se partidos de idéias e organizados de
baixo para cima, tão insistentemente reclamados pelos doutrinadores políticos mais categorizados'; e de que 'é preciso, na atual
fase de abertura e distensão, que se proporcionem condições mais
favoráveis de participação e militância política, abrindo-se a estrutura partidária para dar liberdade de opção a todos, inclusive para
que a oposição possa organizar-se sem qualquer interferência do
governo'. Há também do lado situacionista muitas outras explicações, desde, por exemplo, a de que o projeto de reforma é um formidável 'pacote liberalizante' até a de que 'esse é o jeito de conter
a crescente penetração dos comunistas'.
Há, portanto, os que são a favor e os que são contra a reforma
partidária agora pretendida pelo governo. O que não se ouve é
uma só voz que diga que o problema fundamental brasileiro não é
um problema de reforma de partidos ou de pluralidade partidária.
Por melhores que possam ter sido as intenções dos autores do projeto de reforma e por mais bem elaborado que se possa considerálo a despeito de todas as críticas, essa voz deveria ser ouvida em toda essa balbúrdia.
A questão, porém, é que há muita confusão entre sistema político de governo, democracia e partidarismo. Já enfatizamos bastante nestas páginas sobre a diferença entre democracia e regime
de governo (2). De outro lado, muita gente equivocada pensa que o
processo democrático não funcionará sem a existência de partidos
ou que a representatividade popular não ocorreria sem algum tipo
de pluripartidarismo. Por isso, traduzem o conceito de que 'todo
poder emana do povo e em seu nome é exercido' numa idéia exageradamente enfática quanto ao partidarismo como um fim libertário em si mesmo e profundamente equivocada quanto ao pluralismo ideológico como meta democrática (3).
(2) Veja-se, por exemplo, o livro "Demarquia, um novo regime político, e outras idéias",
Editora Visão, São Paulo, junho, 1979.
(3) H. Maksoud, "Degeneraçtio e regeneração da democracia", em VISÃO, 14-10-78, e
em "Demarquía ... ", "op. cit." em (2), página 78.
81
O que acontece, infelizmente, é que os que estão no poder ou os
que lutam para alcançá-lo sempre crêem ser 'politicamente impossível' pensar no amanhã, como sempre fizeram os verdadeiros estadistas. É mais fácil e mais conveniente eleitoralmente falar em
coisas ambíguas, como 'liberdades democráticas', 'ser a favor do
povo', 'participação de baixo para cima', do que lutar pelo alicerçamento da vida nacional na supremacia de leis gerais, prospectivas e iguais para todos. É mais simples e mais útil para aliciar reforços partidários falar em coisas vagas, como a necessidade de
urgentes 'reformas sociais de base', do que mostrar que o que faz
falta é um sistema de governo sob a égide do ideal político do estado de direito (fundado em normas universais de justa conduta e
não na vontade arbitrária dos homens) onde todos possam efetivamente desenvolver livremente suas potencialidades. Traz mais rendimento político falar em 'distribuição de renda' e prometer a miragem da 'justiça social' do que ensinar que, embora a organização partidarista seja necessária para a unidade de uma equipe executiVa governamental e também para fiscalizar a ação do governo,
é, todavia, indesejável numa assembléia legislativa, que estabelece
as leis gerais que limitam os poderes coercitivos de todos os homens e do governo também.
Todo esse alarde em torno do partidarismo, da forma como a
questão é colocada por todos, só nos leva a concluir que aprendemos pouco com a história e com todo o sofrimento que experimentamos nos longos períodos de crises durante toda a nossa vida republicana. Estamos acendendo novos pavios para novas crises institucionais- verdadeiras crises de rejeição constitucional, conforme discutimos num recente ensaio (4) - , que continuarão carregando, como lemas de sustentação dos movimentos insurrecionais
que delas surgirem, a pobreza, a miséria e a frustração dos que estão em pior situação na vida material.
Fala-se de partidos (inclusive como se eles fossem sinônimo de
democracia), fazendo crer que com eles virão automaticamente a
'melhor distribuição da riqueza', a 'participação do povo na solução de seus problemas prementes' e, principalmente, a grande panacéia chamada 'justiça social'. Pretende-se fazer crer que com
mais partidos, com um leque de opções partidárias, haveria menos
pobreza e mais comida para o povo.
Puro logro. O distributivismo dessa tal justiça social só tem in-
chado, ao longo de muitos decênios, os governos de todos os países do mundo, inclusive o nosso, e só tem estropiado o que havia
de bom nos regimes das chamadas 'democracias ocidentais' e aumentado a pobreza, o desassossego e a fome nos países subdesenvolvidos como o Brasil. Nenhuma pessoa bem informada pode
continuar ignorando que, por causa dessa grande onda de soberba
coletivista, um cada vez maior número de homens de boa índole e
com boas intenções vem perdendo gradualmente sua fé naqueles
princípios que foram para eles os ideais inspiradores da democracia nas suas origens.
É importante, entretanto, destacar que o logro não está, em si,
na quantidade de partidos, nos procedimentos eleitorais e muito
menos na democracia; esta, é bom repetir, é o melhor método descoberto até hoje pelo homem para tomada de decisões políticas e
administrativas que exijam consenso, para educar politicamente o
povo, para conseguir mais opções de pessoas nas escolhas governamentais e para realizar mudanças pacíficas de governos. O logro
está na inconsciência dos homens que confundem pluralismo partidário e ideológico com democracia e a somatória destes com um
regime político de governo que automaticamente fará todos os homens iguais e curará todos os males da fome, da pobreza e do subdesenvolvimento.
É o caso de se perguntar, então, o que é mais urgente: novos
partidos apenas para vestir novas fantasias nos velhos logros do
distributivismo, do justicialismo social e do dirigismo estatal? Ou
um sistema político de governo onde possa predominar, de verdade e pela primeira vez, o mercado de livre oportunidade de progresso e, portanto, com mais trab;;tlho, mais comida e menos pseudopolítica para todos?
(4) "Sobre as revoluções que não aconteceram", apresentado no I Enc'!ntro Internacional
da Universidade de Brasília em setembro, 1979, e reproduzido em VISAO, 15-10-79, página 49, e nesta obra.
82
83
A nova roupagem do socialismo
Não sou assim tão pessimista para acreditar no lugar-comum
de que o socialismo é inevitável. Talvez não seja uma questão de
pessimismo ou otimismo, mas apenas a percepção de que um tão
grande equívoco não pode servir de princípio norteador permanente da vida humana.
Mas, se não é inevitável e se é um equívoco, por que discutir o
socialismo e por que temê-lo? É preciso discutir, criticar e temer o
socialismo justamente porque é um equívoco filosófico e os equívocos dessa natureza podem ser difíceis de desfazer e por isso podem tornar-se duradouros e se prestarem a manobras políticas ardilosas para iludir as pessoas.
É difícil desfazer o equívoco socialista porque a maioria da
gente não sabe bem o que realmente significa socialismo. Muita
gente, por exemplo, pensa que socialismo e comunismo são duas
doutrinas completamente diferentes. A confusão conceituai sobre
o socialismo é em grande parte devida e, mesmo, estimulada pela
numerosa quantidade de expressões usadas para configurá-lo
ideologicamente e pela variedade de denominações partidárias que
lhe dão guarida no ambiente político.
Os comunistas ortodoxos em geral falam num 'socialismo científico' que promete a criação revolucionária de uma economia
com tal abundância que faria desaparecer todos os 'interesses e
apetites individuais'. Os exemplos práticos desse socialismo são os
que se observam, por exemplo, na Rússia e nos demais países socialistas do leste europeu.
O socialismo 'não-ortodoxo' se apresenta como um movimento
político pacífico, quando em verdade ele é sempre violento (inclusive porque é sempre arbitrário e discricionário); se mostra, com
todos seus dogmas, como defensor dos 'humildes', dos 'oprimidos' e dos 'explorados', quando em verdade ele só serve para fazer
perdurar e generalizar a pobreza e criar privilégios tirânicos; e se
84
autodenomina democrático, quando em verdade é um sistema político que só quer usar o métoêlo democrático para acabar com a
própria democracia.
Além do Partido Socialista propriamente dito, os chamados
Partido Social Democrata, Democrata Cristão, Trabalhista e outros afins em geral apregoam um 'socialismo democrático' que seria um tipo modernizado de 'socialismo utópico', ou seja, conforme definições marxianas, um sistema que pressupõe a existência
deletéria dos 'interesses e apetites individuais', mas que seriam dominados e modificados por uma 'correlação de forças democráticas' sobre os meios de produção, a propriedade particular e o modo de vida individual.
O Partido Socialista (às vezes 'acusado' de Trotskista ou de ligação com a Internacional Socialista) se apresenta como se nada
tivesse a ver com o totalitarismo marxista, mas apenas com a onda
'social', 'popular' e 'coletivista-sindical' que estaria abalando o
mundo em busca da chamada 'justiça social' pela via do redistributivismo e do igualitarismo. Essa 'justiça social' ou 'justiça distributivista' seria conseguida quando se completasse (pela 'ação de
forças democráticas antimonopolistas') a destruição das 'relações
de produção capitalistas'.
Esse chamado 'socialismo democrático' faz as aparências de algo assim como um marxismo bonzinho, um comunismo menos
cruento, menos 'fascista' que os socialismos até agora implantados. É extremamente importante para os socialistas durante sua
'fase democrática' esconder toda e qualquer similitude ou intenção totalitária ou violenta. Daí a ênfase dogmática à democracia
(o democratismo, que confunde um método usado para tomada de
decisões políticas e administrativas com um sistema político de governo) e o agressivo ataque ao autoritarismo e a outras experiências totalitárias socialistas anteriores, tais como o nazismo hitlerista, o fascismo mussolinista Ol e inclusive também o comunismo
russo.
Como não convém mais hoje aos 'comunistas' falar claramente
em Marxismo ou em Comunismo ou em Ditadura do Proletariado, eles falam de 'justiça social', de 'redistribuição da renda', da
'necessidade de mai-or igualdade entre os homens' e dão nova rou(1) Muita gente até hoje não sabe que tanto o nazismo como o fascismo foram nada mais que a culminação de um longo processo de ação política socialista. O livro "O Caminho da Servidão", de F. A. Hayek, Editora Globo,
possui um excelente capítulo sobre este tema.
85
pagem ao socialismo, adjetivando-o de 'democrático' para dar a
ilusão de que não se trata do mesmo socialismo marxista totalitário que tanto vem perdendo popularidade desde que foi corporificado na Rússia pela Revolução de Outubro de 1917 e principalmente desde o chamado 'período fascista' de Stalin.
Socialismo e democracia:
amálgama impossível
Embora o mito seja de que o socialismo é uma fatalidade, poucos são os políticos ou intelectuais em geral que se apresentam apenas como socialistas. O que ocorre em abundância é o disparate
dos que se dizem 'sociais e democratas' (ou seja, socialistas porém
democratas) e se camuflam sob as mais diversas e ambíguas denominações partidárias (tais como as do trabalhismo e da social democracia) que contêm em seus programas e slogans nada menos
que as mais ortodoxas receitas marxistas.
Essa escamoteação constitui a chamada 'via democrática' para
o socialismo. A falta de balizamento filosófico-crítico no meio político tornou tão furta-cor a bandeira ideológica que é comum
ouvir-se a afirmação de que 'o socialismo de verdade está sempre
ligado à democracia mais perfeita'. A confusão existente é, para
os socialistas de todos os partidos, muito útil para fazer cr~r que
exista uma identidade entre a pregação socialista e os ideais democráticos.
Trata-se de equívoco, tática política ou simples logro político?
Há de tudo.
Há os que se equivocam quando, por ignorância políticofilosófica ou por ambição política imediatista ou para 'ficar bem'
com seus paroquianos (é o caso de certos religiosos), passam a agir
e a pregar tão dentro da linha socialista que se tornam mais do que
'simples aliados t;m torno de certos ideais' para se confundirem
completamente com o comuna-socialismo e com ele se comprometerem profundamente.
Há obviamente todos aqueles socialistas que não querem ser
chamados de comunistas e que tudo fazem para esconder sua tendência totalitária, mostrando sempre a fachada pseudocaritativa
do distributivismo e do popularismo através da promessa dessa
coisa vaga e indefinida denominada 'justiça social' que é atualmente o principal mote de todos os comuna-socialistas travestidos
de democratas·.
86
87
Os socialistas que não se importam ou até mesmo preferem ser
chamados de comunistas em nada diferem dos demais na associação que pretendem fazer entre democracia e socialismo. Há poucas semanas, por exemplo, o líder socialista brasileiro, Luiz Carlos
Prestes, secretário-geral do antigo Partido Comunista Brasileiro,
declarava em entrevista a um jornal paulista Ol que " ... o socialismo
é inerente à democracia. Não pode haver socialismo sem democracia . ...
Lenin já dizia em 1905 que a única forma de se chegar ao socialismo é
através do "democratismo" absoluto . ... Nós lutamos pela democracia
económica, política, social que abra caminho para o socialismo. Essa é a
nossa bandeira estratégica. Mas a tática é a democracia atua!. É a luta pelas liberdades democráticas. . .. A tática do PC pode ser modificada da
noite para o dia . ... Quer dizer: de um momento para o outro, se houver
uma explosão popular no Brasil, o que não é inviável, nós teremos que
mudar a tática. E a tática será de chamar as massas para empunhar armas,
para derrubar a reação ".
Algum fator psíquico faz com que os socialistas já abertamente
caracterizados como tais (como é o caso dos que se confessam filiados ao partido comunista) não consigam esconder que a democracia é nada mais que um trampolim, uma 'tática', como dizem,
que utilizarão para chegar ao fim colimado que é o socialismo (2l.
Veja-se, por exemplo, quão similares são essas declarações do líder comunista Prestes com as de Santiago Carrillo, secretáriogeral do Partido Comunista Espanhol, que em 1977 escreveu (3):
forças trabalhistas e culturais não seja obtida somente através de uma
ação política e de medidas democráticas de governo; pode ser que, em um
determinado momento, se faça necessário reduzir pela força resistências
de força ... ". O dirigente do Partido Comunista da Espanha conclui
dizendo que se o socialismo "tiver o apoio popular, conquistado em
boa lide democrática, e se tiver jeito uma política inteligente de democratização do aparelhamento do Estado, tanto da situação quanto da oposição, ele se encontrará em condições favoráveis para consumar sua obra e
varrer os resíduos da hegemonia oligárquica". O que ele quer dizer é
que, assim, ficarão sós, 'democraticamente', os socialistas. É a in-
questionável tentação totalitária de toda e qualquer facção do socialismo.
Seja por equívoco, por tática política ou por simples logro político, a questão é que, no ambiente de esquizofrenia política e de
total falta de cultura filosófica em que vivemos, não é difícil propagar que é possível o amálgama de dois elemeqtos políticos totalmente incompatíveis e heterogêneos: o do processo democrático,
que só pode funcionar numa sociedade livre e aberta, com o do socialismo, cujo conceito é um só, a despeito da numerosa adjetivação de que dispõe e cuja natureza é sempre totalitária.
As pessoas responsáveis que não querem vir a ser escravos e
não querem escravizar os outros precisam tratar de compreender
que jamais poderá existir um sistema de governo que possa ser socialista e democrático. O amálgama é impossível.
''... os grupos sociais dominantes esforçam-se em fazer acreditar na noção
ideológica de que democracia = capitalismo e, ao inverso, de que socialismo = dominação soviética . ... Certamente, a via democrática ao socialismo supõe um processo de transformações económicas distinto do que poderíamos considerar de modelo clássico. Isto é, supõe a coexistência de
formas públicas e privadas de propriedade durante um longo período ... O
sufrágio universal, entretanto, não é a panacéia que vai remediar todos os
males; ... Pode ser que, na transformação do Estado atual em um Estado
apto para o exercício de hegemonia das forças socialistas, a aliança das
(1) "Folha de S. Paulo", 18-11-79, página 8.
(2) Os socialistas sabem perfeitamente bem que a democracia é um processo, um
método político para tomada de decisões, e não um regime político com balizamen·
to filosófico definido. Eles sabem que a democracia é um meio e não um fim e por
isso tratam de usá-la abusivamente, inclusive fazendo com que a opinião pública se
confunda pensando que ela seja um fim em si mesma.
(3) Santiago Carril/o, "Eurocomunismo y Estado", Barcelona, 1977.
88
89
O que é que você acha?
O Brasil ganhou nos primeiros dias deste mês de dezembro
mais um grosso 'pacote' de medidas na área econômica. Desde
1974, principalmente, isto é, desde que o chamado 'milagre brasileiro' deixou de acontecer, o país vem recebendo sucessivos 'pacotes', 'sacos', 'pacotões' e afins, todos visando a resolver os já crônicos problemas de inflação, balanço de pagamentos, capitalização das empresas privadas, racionalização do uso de combustíveis,
controle de empréstimos externos, etc., etc.
A freqüência de ocorrência dos pacotes é tão grande que mal se
tem tempo de digerir um quando outro já está sendo elaborado.
Mal acaba o ruído provocado pelo último e a zoeira do novo já se
mistura com a confusão provocada pelo anterior. Se é difícil estar
tranqüilo com tanto barulho, é muito mais penoso trabalhar, produzir e ter ânimo para empreender.
Quem empreende está participando de um verdadeiro jogo que
é o jogo do mercado. Como qualquer outro jogo, é preciso que
existam regras, que elas sejam conhecidas e que, se de todo possível, elas não sejam arbitrariamente e/ou inesperadamente modificadas durante o desenrolar da peleja.
O chamado sistema de mercado corresponde a uma ordem social essencialmente espontânea e responde plenamente à definição
de 'jogo', pois se trata realmente de um jogo tanto de destreza como de sorte, e que serve 'para obter de cada partícipe a máxima
contribuição a um fundo comum de onde cada qual obterá uma
parte incerta'. O mercado funciona, como em todos os jogos, de
acordo com regras conhecidas, iguais para todos, aplicáveis a um
número indeterminado de eventos futuros e que balizam as ações
dos indivíduos participantes. As intenções dos partícipes, suas perícias e graus de conhecimento e percepção das coisas que acontecem durante o jogo são diferentes para cada indivíduo, sendo,
portanto, imprevisível o resultado, havendo, pois, normalmente,
90
vencedores e perdedores. A base racional do jogo do mercado é a
de que o que deve ser justo é a conduta dos pa_rtícipes face às re~
gras do jogo e não o resultado. O resultado do JOgo do mercado e
função da aptidão e da sorte dos participantes, não podendo, portanto ser classificado nem como justo nem como injusto.
Es'sa rememoração de conceitos sobre o que é o mercado é suficiente para insinuar o quanto absurdas são as interferências que
continuamente pretendem transformar a ordem espontânea do
mercado por meio dos já famosos 'pacotes' de medidas econômicas.
Uma das características das fases imediatamente 'pós-pacotes'
é que todos perguntam uns para os outros: "O que V. achou das
últimas medidas?". Obviamente, todos nós sempre 'achamos' alguma coisa, isto é, temos sempre algo a dizer, inclusive se conhece.
mos pouco ou nada da questão em pauta.
Se me perguntarem 'o que achei' das medidas do mais recente e
quase drástico 'pacote', receio sentir-me tentado a responder, com
palavras que aqui já usei muitas vezes nos últim~s anos, q~e:_
1. Não creio que qualquer 'pacote' desses na area econom1ca
possa realmente resolver nossos problemas mais prementes. Daqui
a pouco surgirá a necessidade de um novo 'pacote' para 'corrigir'
as distorções do que atualmente vigora. E haja pacote para embrulhar a economia e nossas vidas ...
2. Não acredito que o crescimento econômico possa ser graduado significativamente, pois o progresso não pode ser dosado deliberadamente pelos homens. O progresso poderá ser estimulado ou
refreado por certas medidas governamentais, mas não é possível
avaliar com razoável precisão os efeitos dessas medidas.
3. Não creio que possa existir inteligência humana ou centro de
pesquisas ou quem quer que seja que possa gerar qualquer plano
de ação ou conjunto de medidas de ação econômica governamental capaz de substituir o único verdadeiro milagre da vida comunitária, que é o da cibernética do mercado, que funciona espont~­
neamente sem que os participantes saibam de tudo o que se_ e_s~eJa
passando. O homem somente conseguiu chegar ao grau de CIVIlização a que chegou porque, sem compreender o que se passava, ele
desenvolveu métodos de utilização de mais conhecimentos e recursos que os que poderiam estar contidos em qualquer mente individual ou em qualquer 'pacote' de medidas racionalmente elaboradas. O filósofo italiano Giovanni Battista Vico compreendia bem
isso quando, no século XVIII, disse que "o homem se tornou tudo
que é sem compreender o que aconteceu".
91
O que os homens, inclusive os do governo, deveriam fazer com
mais fervor e afinco era criar condições que favorecessem o desenvolvimento de instituições fundadas no ideal da liberdade individual e na espontaneidade do mercado, onde todos estejam subordinados às mesmas normas gerais de justa conduta. As instituições
voltadas a este tipo de ordem social certamente trarão mais chances de progresso, pois haverá mais probabilidade de ocorrerem
coisas novas melhores, graças à ação de maior número de homens
empreendedores. O pesado piano da vida na Grande Sociedade
moderna seria carregado por um muito maior número de vohmtários.
Acho, portanto, que o único 'pacote' que nos tiraria do embrulho seria aquele que nos mostrasse horizontes político-filosóficos
claros e definidos no sentido do verdadeiro e único sistema de mercado, que é aquele que se fundamenta na liberdade individual de
iniciativa.
Os intelectuais e suas liberdades
<I>
Atribuir a cada ano o título de Homem de Visão significa para
mim muito mais que destacar numa pessoa todas aquelas qualificações, já por ela provadas, de pioneirismo, coragem cívica, descortino, tenacidade e capacidade inovadora e empreendedora. São
todas elas qualidades essenciais a um Homem de Visão, mas a escolha que anualmente fazemos possui conotações que transcendem essas marcas adjetivas e passam a conter símbolos especiais
nem sempre fáceis de serem explicitados, principalmente em poucas palavras.
O que não é difícil destacar é que o título de Homem de Visão
representa, antes de tudo, a caracterização de uma atitude
político-filosófica que trata o indivíduo, isto é, a pessoa humana,
como o valor mais importante e a liberdade de ação individual como a condição mais essencial da vida em sociedade. Não haveria
Homens de Visão se deixasse de existir a individualidade e os homens perdessem a liberdade de iniciativa.
A escolha do empresário-jornalista Roberto Marinho para Homem de Visão neste 1979, fim de década, contém uma rica árvore
simbólica que nos permitiria enganchar vários temas de ensinamento num pequeno discurso como este.
Vejamos, por exemplo, como é visto, tratado e avaliado no
meio intelectual em geral o homem que faz e em especial o que faz
em grande escala. Aqui, é preciso lembrar que se não fosse a iniciativa desses homens empreendedores de produzir bens e serviços
em larga escala, o que se deu a partir da revolução industrial, que
coincidiu com os primórdios do chamado capitalismo, seria impossível ter a humanidade conseguido chegar aos níveis de pro-
(1) Íntegra do discurso pronunciado em 19-12-79, por ocasião da entrega, ao jorna-
lista Roberto Marinho, do título de Homem de Visão de 1979.
92
93
gresso a que chegou e a situação de miséria, fome e penúria, que
sempre foi o lugar-comum nos séculos anteriores, mesmo com populações muito menores (situação, aliás, que ainda existe infelizmente pelo mundo afora), seria extremamente mais grave que a
que se observa atualmente.
,
A terminologia usada para falar ou escrever sobre os capitães
da indústria e homens que lideram grandes negócios é comumente
enganosa. Chamam-nos de "o rei da soja", "o imperador docafé", "o rei das comunicações", "o dono de um império", "o rei
disso" e "o rei daquilo", insinuando que não existe praticamente
nenhuma diferença entre os modernos homens de negócios e as
atividades monopolistas dos senhores feudais de antanho. E que
por isso é preciso temê-los, controlá-los· e, sempre que possível,
tirar-lhes o estímulo. Não há o menor interesse em mostrar a enorme diferença que de fato existe, pois esses reis modernos em realidade não governam, mas servem. Como disse Roberto Marinho,
em sua entrevista a VISÃO, "Servir, em si, já é um ato gratificante". O que em verdade acontece é que qualquer desses 'reis' do
mundo dos negócios não possui reinado de espécie alguma. Ao
contrário, são 'reis' que precisam estar sempre às boas com seus
súditos, os consumidores, pois perderão seus reinados logo que
não mais puderem prestar melhores serviços e a custo compatível
com os de outros com quem eles têm que competir no sistema de
mercado. Creio que Roberto Marinho tinha em mente algo dessas
idéias quando disse há poucos dias a VISÃO que: " ... de quando
em vez, há quem fale em 'monopólio da Rede Globo'. De fato, só
concebo uma forma admissível de monopólio: a de confiança e respeito da opinião pública. Desse monopólio, só posso orgulhar-me".
Outro símbolo subjacente no evento deste ano do Homem de
Visão é a liberdade da imprensa. A liberdade da imprensa é uma
das características fundamentais de uma nação de cidadãos livres.
Mas livre imprensa só pode existir quando houver o controle privado dos meios de produção, ou seja, quando houver liberdade individual de iniciativa.
É desolador constatar, de fato, que muito pouca gente sabe ou
se importa em saber o quanto importante é a liberdade de ação individual. Poucos são os que efetivamente reconhecem que as oportunidades de trabalho, e, pois, o progresso de cada um e da nação,
dependem da mobilização por número crescente de indivíduos empreendedores dos fatores de produção, por meio do crescimento
dos negócios existentes e pela criação de novas empresas.
Outra grande tragédia contemporânea- que já leva entretanto
94
quase dois séculos - é a verdadeira guerra que se processa contra
a verdadeira liberdade. Uma guerra desencadeada não pelos chamados proletários e 'classes menos favorecidas' ou pela gente mais
rude mas sim pelos intelectuais. Os intelectuais sempre foram por
dem~is presunçosos para enxergar as contradições evidentes em
suas próprias crenças.
Muitas ocorrências, fatos e manifestações não chegam normalmente ou só chegam abafados ao grande público. Todos os que
questionam dogmas 'esquerdistas' ou apóiam idéias consideradas
'capitalistas' ou discutem com simpatia o problema da liberdade
individual são virtualmente 'cassados' por uma espécie de 'caixa
acústica' que controla os meios de comunicação de massa, não
permitindo que suas idéias permeiem normalmente pelos meios de
comunicação. Também muitos autores de novelas, crônicas, peças
teatrais e cinematográficas, caracterizados como de natureza 'social', são imbuídos de preconceitos contra o que eles chamam de
'as classes mais favorecidas' ou 'a burguesia'. Retratam a pobreza, a penúria, a ignorância, a sujeira e as enfermidades das chamadas 'classes exploradas' como se tudo isso fosse a conseqüência
inevitável do que chamam de capitalismo. E ao mesmo tempo castigam o luxo, a estupidez e a corrupção moral das 'classes favorecidas'. O que está errado não é o fato de eles escolherem como tema a miséria e a ignomínia, pois um artista pode mostrar seu talento escolhendo qualquer tipo de assunto. Seu erro grave consiste
na tendenciosidade da representação e na interpretação errônea
das condições sociais que eles retratam como se fossem típicas e representativas do que chamam de capitalismo, ou seja, dum sistema político em que predominaria a liberdade individual e não algum tipo de coletivismo.
Esses intelectuais, que em geral são homens ou mulheres que
não estão mal de vida, tão críticos com a chamada burguesia, são,
entretanto, os primeiros que se revoltam contra qualquer ação que
reduza sua liberdade de expressão. Os escritores, artistas, políticos, cineastas, jornalistas, sociólogos, filósofos, músicos, professores, pastores religiosos, etc. querem a liberdade para usar o intelecto na mídia impressa, na crítica, na arte, no cinema, na religião,
na música, na TV, no rádio e nas salas de aula, mas infelizmente
muitos perderam noção da amplitude da causa geral da liberdade e
por isso advogam apenas os aspectos que lhes tocam de perto. Estes setores intelectuais da sociedade, com. os quais se deveria mais
contar para estudar e defender a causa mais abrangente da liberdade, somente darão seu apoio a essa causa se isto lhes trouxer inte-
95
resse direto ou imediato. O combate à censura, a defesa da liberdade absoluta para a expressão artística, a pregação pela liberdade
para religiões, crenças e seitas e a luta pela liberdade total de expressão são seus dogmas de fé libertária porque os intelectuais sabem pelas suas entranhas quão importantes são essas liberdades
para suas próprias atividades. Mas eles deixaram de reconhecer a
causa mais ampla da liberdade que se aplica não só a eles mas também a outros setores da sociedade - os empreendedores, os comerciantes, os fabricantes, os agricultores, os médicos, os financistas, os lojistas, os construtores, os publicitários, os engenheiros, os operários, etc. -que desejam ter liberdade para fazer coisas em vez de dizê-las ou escrevê-las.
Quantas vezes não vemos, por exemplo, o governo aguçado e
até estimulado através dos meios de comunicação, das cátedras,
das assembléias políticas e até dos púlpitos no sentido de intervir
nos negócios dos outros, taxar os negócios e os salários dos outros
e controlar as remunerações e os preços dos outros. Os negociantes, os vendedores em geral e todos os que estão bem na vida são
sempre os melhores bodes expiatórios da economia e, infelizmente, também, excelentes ganchos para notícias sensacionalistas.
Não há solidariedade dos pensadores para com os fazedores e
por isso há omissão quando se trata da liberdade dos que querem
fazer coisas, dos que querem escolher suas ocupações e afazeres,
dos que querem inovar no campo dos negócios, dos que querem
criar, desenvolver e dirigir seus próprios empreendimentos. O que
é assustador, porém, é que esses mesmos homens - intelectuais e
políticos que são os mais eficazes disseminadores de idéias-, uma
vez atendidas suas próprias reivindicações libertárias, tendem a
querer enquadrar o resto da sociedade numa bitola idealista e teórica por eles criada e geralmente incluem nas suas formulações
simplistas o Estado como o instrumento perfeito para tornar reais
suas idéias. Esses mesmos campeões da luta pela liberdade de expressão conseguem, pelo seu talento disseminador de idéias, justificar, com roupagem de causa pública e de sentimentos caritativos, a intervenção direta e o controle governamental em atividades
que, numa sociedade livre, deveriam ser de livre iniciativa.
O nosso Homem de Visão, Roberto Marinho, parece sentir
muito de perto toda essa questão, quando diz: "O sucesso não se
improvisa nesse terreno delicado e extremamente sensível que é a
comunicação. E por isso mesmo considero uma aberração qualquer tentativa de cercear ou punir as atividades desenvolvidas nesse campo. Sou um empresário que cresceu lutando com armas
96
leais, armas que estão ao alcance de todos, para criar, produzir,
crescer. E a lei não pode nem deve punir quem cresceu, pois a boa
lei é aquela que é feita para todos. Seria inconcebível que o Estado
enveredasse pela punição da eficiência, retardando e tolhendo os
passos dos que caminham com segurança e criatividade ... ".
97
Devemos ser pessimistas agora?
No raiar de 1980 muita coisa vem sendo dita para analisar e criticar os anos 70 e para tentar avaliar os próximos dez anos. Muita
retrospecção ruim tem sido feita do decênio que passou. Aqui e
também no resto do mundo. Parece até que o pessimismo tomou
conta do sentimento das pessoas neste começo dos anos 80.
Se, no caso brasileiro, juntarmos a essas severas críticas as referentes aos demais anos da 'Revolução de 64', que sempre estiveram presentes no ambiente intelectual nacional, será possível traçar um quadro parecido a 15 anos de terrível guerra civil. Sem entrar no mérito desse panorama intelectual, a verdade é que dele resultam expectativas sombrias para os anos vindouros e quase nenhum pensamento inspirador que ajude a entender os erros do
passado e permita entrever melhores perspectivas futuras.
Poderia tentar fazer aqui, agora, considerações diversas acerca
dos efeitos que pudesse ter tido esse difícil período sobre a vida
dos homens, sobre a criação artística, sobre o desenvolvimento
tecnológico ou sobre a educação das crianças. Já que discordo
bastante das opiniões reinantes por aí, estou seguro de que muita
coisa nessa minha análise não seria compatível nem semelhante ao
que se tem dito e escrito neste país sobre os problemas nacionais.
Minha preocupação neste artigo, entretanto, é indagar se os infortúnios dos anos 70 foram bastantes para gerar suficientes estímulos que fizessem pelo menos alguns homens de pensamento e capacidade de liderança trazer à luz certas verdades e idéias que há
muito se encontram desaparecidas nas trevas do equívoco intelectual.
Não é difícil perceber que a onda social-demagógico-coletivista
que invadiu o mundo há mais de cem anos criou complicadas e viciosas condições sócio-políticas em todas as nações que ainda não
se fizeram totalitárias. A situação nessas nações- onde se inclui o
Brasil -, de quase beco-sem-saída, que quase todos enxergam
98
mas não sabem explicar, talvez seja ou venha a ser esse elemento
de estímulo que possibilite mostrar quantas idéias concretas sobre
a liberdade, o progresso dos homens e as finalidades dos governos
vêm sendo desprezadas por falsas noções e equívocos intelectuais
nos campos da filosofia, da sociologia, da economia, da psicologia, do direito e até da teologia.
A verdade, todavia, é que nesse encalacre "tão cheio de superstições antiindivíduo e pró-coletivismo há um crescente punhado de
homens espalhados pelo mundo que vem mostrando cada vez
maior desejo de querer compreender o que significa realmente o
modo de vida fundado na verdadeira liberdade e também como
deveria ser o sistema de governo compatível com esse modo de vida. Esse fato é bom indício de que do ambiente onde reinem o
mal, o declínio político e econômico e até a degeneração moral é
possível extrair boas coisas, principalmente lições e idéias esclarecedoras sobre as possibilidades de o homem viver em liberdade e
sobre as vantagens da liberdade individual.
Eu me daria por satisfeito se alguns poucos brasileiros, capazes
de disseminar idéias - como foram os poucos dentre os chamados
Pais Fundadores (Founding Fathers) da civilização estadunidense
no século XVIII, ou os poucos que fizeram da Inglaterra o centro
e a origem da Revolução Industrial e do Liberalismo Clássico, ou
mesmo os poucos Discípulos que disseminaram o Cristianismo-,
se dispusessem a enfrentar certos preconceitos políticos e inúmeros
obstáculos intelectuais numa luta para desfazer todos os perversos
equívocos que existem no ambiente social a respeito: do conceito
real de democracia; do significado verdadeiro do ideal político do
estado de direito e do que realmente é 'lei' e do que não é lei; do
papel dos partidos políticos numa sociedade livre; da liberdade
sindical e do monopólio sindicalista; da função do mercado e das
peias do dirigismo gevernamental; das causas da inflação e dos
controles sobre as atividades econômicas; do planejamento estatal
e da liberdade de iniciativa; e da distribuição de renda e da igualdade entre os homens.
Não se trata de querer desvendar todos os erros da humanidade
para descobrir algo que seja perfeito, porque todos sabemos que
tal coisa não se encontra entre os homens. o·que se busca é uma
forma de governo que seja constituída com o menor número possível de defeitos ou, pelo menos, com as mais toleráveis inconveniências. É preciso, pois, de alguma forma, ter noção do que é
bom e do que é mau.
Se os anos de adversidade já foram suficientes para mostrar os
99
defeitos, os inconvenientes e os prejuízos que nos causam certas
visões errôneas e falaciosas da vida em sociedade; certamente surgirão homens de talento e boas idéias para nos recolocar na trilha
da civilização. Não será isso que também querem dizer quando falam que há males que vêm para o bem? Sendo assim, não há por
que simplesmente aceitar uma postura pessimista quanto ao futuro, face aos males que há muito nos afligem.
Somos todos extraordinários
Você já notou que grande parte da humanidade ainda vive muito mal? Vive ainda tão miseravelmente como vivia a maioria da
gente há muitas e muitas décadas. Vive mal, a despeito de estarmos já quase entrando no século XXI; de já termos viajado para a
Lua, assistido a andanças de homens nela pela televisão e 'inspecionado' de perto planetas importantes; ou de estarmos já produzindo 'bebês de proveta' e de já usarmos raios laser até em ferramentas ou equipamentos mais ou menos comuns.
Se você não notou isso ou prefere 'achar' que 'não é bem assim' ou que a miséria hoje é bem diferente daquela de tempos remotos (porque hoje há mais higiene, todos têm televisão, a 'qualidade da vida' é superior ou não sei o quê), sugiro que observe o
noticiário sobre certas partes mais ou menos distantes do mundo;
veja certos livros-documentários produzidos por 'cientistas sociais' com o objetivo de fotografar e de 'denunciar' a miséria e a
ignomínia (não são fotografias falsas; o que é falso neles são o
diagnóstico e as recomendações de cura que propõem); ou então
simplesmente ande por aí observando: aqui mesmo no Brasil, nas
ruas das capitais, nas periferias - não é preciso procurar nos Estados mais pobres ou nas cidades mais longínquas.
Se você admitisse que eu não estivesse exagerando, aceitasse
que existe aí um problema importante e quisesse saber minha opinião sobre o porquê de tanta pobreza, eu diria que grande parte
dessa situação se deve a que os homens não aprenderam ainda o
suficiente sobre si mesmos como indivíduos e sobre como se governarem para viver melhor em sociedade.
Eu também diria que há muita desinformação dificultando esse
aprendizado, pois sei que há uma persistente campanha intelectual
que está martelando há muitas décadas que o problema é de 'injustiça social', que a questão é a de que existem certas 'classes mais
favorecidas' e outras 'menos favorecidas' que são 'exploradas' pe-
100
101
las primeiras. Essa gente está permanentemente procurando disseminar a idéia de que o que falta é o que hoje chamam de 'justiça
social' - antes o termo usado era 'justiça distributiva', o que dá
no mesmo, exceto que 'justiça social' é mais vago e 'pega' melhor.
'politicamente'. O que propõem, em suma, é que a sociedade deva
ser justa. Mas já que a sociedade é um ente abstrato, e que portanto não pode fazer justiça nem injustiça, há que atribuir-se a um ente concreto- o governo- a obrigação de realizar essa 'justiça social'. Em realidade, o distributivismo pretendido por essa 'justiça
social' é um conjunto de medidas arbitrárias que só serve para dar
poder coercitivo crescente aos governos e que de justiça nada tem
exceto o nome 'justiça social' espertamente usado. Graças ao distributivismo, os gastos governamentais em bens e serviços têm
crescido rapidamente nos últimos 20 anos em todos os países ocidentais, acompanhados por crescentes déficits orçamentários e inflação galopante.
No fundo, essa 'justiça social ou distributiva', e todo o mal que
dela decorre, tem como fundamento a teoria da uniformidade da
natureza humana. É a teoria que diz que todos os homens são
iguais. Dela decorre o igualitarismo e o conceito coletivista dosocialismo. Trata-se de uma teoria que, na superfície, parece 'democrática' e 'liberal', mas a realidade é outra: é o caminho mais direto para o totalitarismo. E até que se chegue a isso a pobreza e o
subdesenvolvimento são os lugares-comuns.
A verdade é que os homens não são iguais. Eles não nascem
iguais. O que existe é uma 'individualidade bioquímica', isto é, cada um de nós é construído de uma forma altamente diferenciada
em cada particular, o que constitui a base de nossa individualidade. Roger 1. Williams, um bioquímico estadunidense, estudou
bastante esse assunto e escreveu dois livros - que valem a pena ser
lidos (I) - sobre como as pessoas são diferentes e, pois, verdadeiros indivíduos. No segundo destes livros, Williams mostra com dados de longa pesquisa quão variáveis são as pessoas na conformação, características e funcionamento de seus inúmeros órgãos,
apresentando exemplos, para seres normais, de variação biológica
em corações, estômagos, fígados, artérias, dutos torácicos, constituição química do sangue, padrões de respiração, sistema nervoso,
além de inúmeros outros dados sobre variabilidade anatômica
bem como sobre as conseqüências das diferenças biológicas no
comportamento das diferentes pessoas.
Williams não pretende propor que pelo fato de sermos todos
indivíduos desiguais uns aos outros possamos, cada um de nós,
nos meter a fazer tudo 'que nos der na telha'. Para vivermos em
comunidade não podemos ignorar a individualidade dos outros.
Dessa forma nos guardaremos contra o perigo do excessivo individualismo egotista. Williams alerta para o fato de que, embora ele
enfatize as desigualdades humanas, há aspectos de semelhança entre os homens que não podem ser desprezados para que eles possam viver como membros de uma grande família. Paradoxalmente, diz ele, "somente poderemos entender e realizar a verdadeir~
harmonia da humanidade quando reconhecermos a tremenda diversidade exibida pelos membros individuais da família humana':.
É possível que tanta gente viva tão mal porque não consegUImos ainda compreender o suficiente sobre as pessoas como elas
realmente são - embora semelhantes num lado do quadro humano tremendamente diferentes no outro lado. Devido à ignorância
de~sas diferenças grita-se muito por uma vida melhor sem saber
como atingi-la. Williams enfatiza em seus livros que, em lugar da
falácia do igualitarismo, o reconhecimento e firme aplicação do
princípio da variabilidade humana é condição sine qua non para a
construção de uma civilização duradoura.
(I) "Free and Unequa/, lhe Biological Basis oj Individual Liberty", University oj Texas Press,
Austin, 1953; e "You Are Extraordinary", Random House, New York, 1967.
102
103
É demagogia, ideologia ou apenas retórica?
Após ter sido consumada a chamada reforma partidária (I),
passaram os políticos brasileiros a constituir os seus partidos. Já
há diversas agremiações sendo alinhavadas hoje: PDS, PP, PTB,
PMDB, PT. As siglas lembram bastante o período, a partir de
1946, posterior à ditadura Vargas. Só falta uma UDN; não pode
haver porque agora partido não pode mais começar cóm U, pois
tem que começar com P.
É óbvio, e ninguém esconde, que o objetivo dos homens de cada partido é conquistar o poder e, através dele, "executar o programa do partido". Visando a essa conquista, cada núcleo partidário trata de conquistar o maior número possível de 'bons-devoto', ajuntando políticos que pareçam 'afinar-se' mais ou menos
entre si. Dizem os grão-mestres e sacerdotes da nossa política que
assim se constrói 'de baixo para cima', ou seja, das bases para a
cúpula, uma verdadeira estrutura democrática; e que isso é bom
para o País e é ótimo para o povo.
Tudo se passa como se os partidos e os políticos que os comandam fossem os instrumentos definitivos e imprescindíveis para
conseguir tudo o que nos faz falta e para terminar de vez com a
miséria, a fome, a doença, o desemprego e assim por diante. Bastaria conquistar o poder e executar o programa do partido ...
Quem, por curiosidade, vier a conhecer os programas partidários irá notar sem muito esforço intelectual que eles serão todos
praticamente idênticos. Promessas virão para todos os gostos e todas as crenças, pois, no final das contas, como imaginam quase todos os políticos, partido é para isso mesmo - satisfazer a todos
para tentar conquistar todos os votos. Depois dos votos ... Bem,
depois dos votos o tempo é outro.
(1) H. Maksoud, "Mais partidos ou mais comida?", em VISÃO, 12-11-79, e nesta
obra.
104
A pregação partidária varia também com a inclinação do orador ou com o momento político. Na atual conjuntura todos são
'sociais-democratas', ou seja, são socialistas, embora suas marcas
e logotipos sejam os mais diversos. Como dizia um deles: "Como
estamos na época de dar preferência aos pobres ... ".
(Lembro-me agora da resposta dada a um jovem deputado por
um calejado político do antigo PSD mineiro, após ter-lhe sido perguntado sobre sua longa sobrevivência política: "Nestes dias, meu
filho, é útil sempre misturar a democracia com algumas pitadas de
comunismo ... ".)
Ainda noutro dia, lendo declarações de um dos líderes do futuro partido governista (que os 'populo-esquerdistas' classificam como de 'direita'!!), destaquei estas preciosas palavras: "O nosso
partido irá colocar-se como reformista, aproveitando as grandes
mudanças atuais. A nossa doutrina será a social-democrática. Nós
achamos que a democracia hoje não pode completar-se apenas
formalmente, pelas liberdades subjetivas, mas, sobretudo, com liberdades sociais. Defenderemos a liberdade contra (o grifo é meu)
a fome, contra (grifo meu) a doença, contra (grifo meu) os desníveis de oportunidade de emprego, o direito à alimentação, a uma
vida digna. Enfim, lutaremos pela verdadeira 'justiça social' "(2).
(O manifesto de lançamento do PDS- publicado em 26-1-80 em
todos os jornais -fala de "direitos e garantias sociais contra a fome, o medo, as doenças, o desemprego, a miséria, a perseguição
religiosa e a violação da privacidade dos cidadãos".)
Trata-se de uma listagem de 'liberdades' que não é novidade no
ambiente político moderno, pois listas como essa começaram a
surgir quando o furor intelectual socialista se abateu sobre o mundo e se passou a acrescentar à clássica declaração dos direitos civis
uma série de chamados 'direitos humanos, econômicos e sociais'.
Essa nova onda adquiriu ímpeto renovado com a demagógica proclamação do Presidente F. D. Roosevelt sobre as "Quatro liberdades" (3) e posteriormente com a "Declaração Universal dos Direitos Humanos" de 1948, das Nações Unidas, uma peça híbrida de
composição derivada dos clássicos direitos civis individuais (enu-
(2) VISÃO, 4-2-80, página 14.
(3) 'Four Freedoms - jreedom from want, jreedom from jear, jreedom of
speech, jreedom of worship. Roosevelt acrescentou às clássicas liberdades de expressão e de culto as que ele chamou de "liberdade contra a carência" e "liberdade
contra o medo".
105
me:a?os nos primeiros 21 artigos) e da concepção marxistalemmsta representada nas sete últimas cláusulas.
O supra~sumo da ambigüidade (falsidade ideológica, se quiserem .ser ma1s severos) está, porém, na conclusão do manifesto do
;.arttd? Democrático Social, q~e em certa parte diz que o partido
lutara pelo Homem na sua dtmensão humana e social. Buscará
concili~r a liberdade individual com a liberdade social e, nessa síntese, cnar um Estado Social de Direito".
Afinal, qual a outra dimensão do Homem que não é humana?
E o que quer dizer 'dimensão social'? Não é 'social' toda a vida do
Homem em sociedade? E o que é 'liberdade social'? 'Estado Social de Direito' eu sei o que é: é logro socialista. Ou será que neste
caso a expressão é apenas usada como figura de retórica para
atrair freguesia eleitoral?
Será que o velho político mineiro que mencionei acima andou
fazendo ser!linário~ por aí? Uma coisa é certa: a demagogia é mesn:_o ~m peng,os~ vtrus que cada vez põe mais em xeque a sobreviveneta da propna democracia (4).
(4) H. Maksoud, "Por que demarquia e não apenas democracia?" em VISÃO J07-78, e nesta obra.
'
106
Para que tanta escola de samba?
Num dos dias do carnaval que há pouco terminou, lembrei-me
daquela frase popular que diz que "o país vai pra frente à n,oite e
nos dias em que o governo descansa". E acrescentei na minha
mente que os homens são mais felizes e a sociedade mais próspera
quando o governo descansa mais, promete menos e controla pouco, porém possui autoridade fundada na lei, suficiente para assegurar a paz e salvaguardar a vida, a liberdade e a propriedade de
cada um.
·
Ao desfilar pelas avenidas do Rio, Recife, São Paulo ou Bahia,
perante muitos milhares de assistentes e milhões de telespectadores
de todo o País, as escolas de samba e os foliões participam livremente de uma acirrada competição num grande mercado que, sob
muitos aspectos, não é diferente do mercado que existe na vida cotidiana numa sociedade livre. Apesar de os tentáculos da máquina
do Estado já terem começado a envolver até mesmo a nossa maior
festa popular- bitolando, enquadrando, subsidiando-, nodesfile do carnaval tanto os indivíduos como as sociedades carnavalescas ainda são deixados com alto grau de liberdade para pôr em
ordem seus próprios interesses e para realizar a competição.
Pode-se dizer que o desfile carnavalesco ainda nada mais é que
uma competição sujeita a regras conhecidas e na qual decidem a
maior habilidade, a força e a sorte. Nessa competição, igual ao
que ocorre no jogo do mercado da sociedade livre, interagem a aptidão com a sorte, de modo que, embora cada associação ou indivíduo contribua o máximo ao espetáculo geral, a parte que cada
qual conseguirá como resultado será incerta. Como na vida.econômica cotidiana, alguns conseguirão necessariamente mais e outros
menos do que se possam considerar merecedores.
No sistema de mercado, o homem, desfrutando sua liberdade
individual e com direito às mesmas leis que cabem aos demais, garante a sua vida, lutando pela sua sobrevivência e extraindo do
107
produto que ajudou a criar a parcela que lhe çabe para satisfazer
os seus anseios. Nesse sistema, o homem jamais terá segurança absoluta de que o seu quinhão corresponderá.sempre às suas expectativas. A parte de cada partícipe dependerá dos esforços, da capacidade e das circunstâncias específicas pessoais e estará sujeita ainda
a fatores aleatórios ditados pelo mercado e geralmente fora do
controle de qualquer um. No mercado livre, os resultados colhidos
pelos indivíduos ou por seus empreendimentos serão desiguais;
porque diferentes são as pessoas, suas perspectivas, suas habilidades e os bafejos de sorte que cada um recebe. Iguais serão somente
as oportunidades de participação.
Se o folião não quiser mais jogar com os apartes pessoais e os
riscos usuais da competição, se o homem quiser anular os fatores
aleatórios relativos ao seu sucesso na vida, então ele terá de abrir
mão de sua liberdade, aceitando que o estado, por meio do governo, desenhe sua fantasia, fixe seu quinhão de felicidade. A verdade, porém, é que os resultados ainda assim continuarão sendo desiguais: se no sistema de mercado a aptidão e a sorte decidem
quem mais ganha, no regime dirigista e planificado os privilegiados são escolhidos pelo arbítrio de um punhado de pessoas.
Esse arbítrio é mortalmente contrário a toda e qualquer espécie
de ação competitiva que possa ter conotação econômica e não ter
caráter coletivista. Para esse regime a competição significa desperdício, resulta em 'injustiça social' e, principalmente, representa o
individualismo. Nesse regime o governo não descansaria nem nos
feriados e nem à noite, e o carnaval, se existisse, teria uma única
escola de samba, estatal.
A opinião
e a lei na demarquia
Na demarquia (ll, a assembléia legislativa é o poder supre~o do
sistema. Mas esse poder não é ilimitado porque essa assembleta somente pode fazer leis no seu verdadeiro e original sentido de serem
regras universais de justa conduta.
..
, .
Ela não possuiria autoridade para emitir comandos especificas,
pois qualquer privilégio ou discriminação que ela. pretendesse
transformar em lei não teria força de lei. Qualquer tipo de pod~r
ilimitado, que pudesse tornar-se arbitrário como nos Siste~as hoJe
vigentes simplesmente não existiria no regime demárqmco porque, pa;a exercer o poder supremo, a a~~e~bléia legislativa terá
que provar, à opinião pública, a legitimidade de seus atos,
submetendo-se, pelos seus membros individuais e como um todo,
a regras universais de justa conduta.
Não haverá, pois, na demarquia, necessidade de ter-~~ um_ outro poder superior para limitar as faculdades da assembleia ~egisla­
tiva. Só será preciso um 'tribunal constitucional', que sena u~a
espécie de corte de justiça, sem nenhuma vinculaçã? com quaisquer atividades ou objetivos de governo, que ~ossa dizer se ~s atos
do legislativo possuem ou não aquelas propnedad_es formms bem
características que toda lei válida tenha que possmr.
Esse tribunal, entretanto, não tem que deter nenhum poder positivo para emitir comandos e fazer-se imp_o~. Basta ser co~pleta­
mente independente e imparcial para decidir sobre o carater do
que for resolvido pelo legislativo, de modo a estabelecer se se trata
ou não de lei que a todos deve obrigar.
.
.
.
O poder da instituição legislativa dem.á~qmca. re~ide, no fmal
das contas, naquilo que os pensadores pohtlcos classicos, em espe( J) Ver editoriais "Demarquia é o regime para uma democra~ia viável" -
I e~~
em VISÃO de 6-2-78 e 20-2-78; e "Demarquia: a reforma pol!t!ca que buscamos ,
em VISÃO de 6-3-78, e em "Demarquia ... ",páginas 29-32 e 33-38.
108
109
cial os do século XVII, chamavam de opinião. Pois a opinião não
admite nenhum poder mais forte que aquele poder que demonstra
sua crença na justeza de suas próprias deliberações ao submeterse, a si mesmo, às normas universais de conduta, cuja aplicação a
casos particulares nem mesmo ele, o autor delas, pode controlar.
David Hume (1711-1776) assim se expressou sobre a força da
opinião: ... "embora os homens sejam grandemente governados
pelo interesse, o próprio interesse e todas as atividades humanas
são inteiramente governados pela opinião. E, como a força está
sempre do lado dos governados, os governantes somente possuem,
para apoiá-los, a opinião. É portanto apenas na opinião que o governo se baseia; e esta máxima se estende tanto ao mais despótico
governo militar quanto ao mais livre governo popular".
De acordo com F. von Hayek, a substituição por Rousseau,
Hegel e seus seguidores da palavra 'opinião' pelo termo 'vontade'
foi "provavelmente a inovação terminológica mais fatídica na história do pensamento político". Esta substituição teve fundamento
no cartesianismo de Rousseau e foi o produto de um 'racionalismo
construtivista' que imaginava que todas as leis foram 'inventadas'
como expressões de vontade para um dado fim ao invés de serem o
'descobrimento' ou a 'articulação' ou a 'formulação aperfeiçoada' de práticas que haviam prevalecido porque, de acordo com a
opinião dos membros de uma comunidade, elas produziram valores mais viáveis que os que vigoravam noutras sociedades.
A vontade sempre se refere a ações específicas buscando determinados fins, concretos; e a vontade cessa quando a ação é tomada e o fim atingido. É falaz, portanto, qualquer definição de lei
que pretenda ser a expressão de uma vontade qualquer (seja vontade popular, vontade geral, etc.), porquanto as leis de verdade, que
se referem à justa conduta dos homens, são apenas aquelas regras
gerais 'aplicáveis a um número desconhecido de casos futuros,
abstraídas, portanto, de quaisquer circunstâncias específicas de
tempo e de lugar e referindo-se apenas a condições que possam
ocorrer em qualquer lugar ou a qualquer tempo'. Ninguém pode
ter uma vontade, referida a um número desconhecido de casos futuros ...
As opiniões, de outro lado, não visam a objetivos conhecidos a
quem as mantém; são 'disposições' permanentes, ou duradouras,
referentes a valores que guiam as ações das pessoas pela maior
parte de sua vida, e não a fins concretos, específicos, que governam suas ações em determinados momentos. Essas disposições são
elementos abstratos (mais ou menos permanentes) compreendeu-
110
do sistemas hierárquicos altamente complexos contendo regras
embutidas no ser da pessoa, que dizem não só quais tipos de ação
conduzem a um certo tipo de resultado, mas também indicam
quais tipos de ação devem ser geralmente evitados. Estas disposições negativas contra tipos de ação que podem causar danos ao indivíduo ou grupos são uma das mais importantes adaptações que
os indivíduos vivendo em sociedade devem possuir para tornar a
vida possível. Por isso, nesse estrito sentido, os tabus e as inibições
são uma base tão necessária à vida correta em sociedade quanto
são os conhecimentos positivos sobre que tipos de ação produzirão
um dado resultado.
Os valores visados pela opinião comum dos indivíduos não se
referem, portanto, a pessoas, eventos ou objetos em particular
mas a atributos que muitas pessoas, eventos ou objetos diferentes
podem possuir em diferentes lugares e diferentes ocasiões. Se procurarmos descrever esses valores, geralmente faremos isso por
meio de normas (leis) gerais, às quais essas pessoas, eventos ou objetos se ajustam.
As leis da demarquia serão, portanto, fundamentadas na opinião sobre valores abstratos comuns à maioria dos cidadãos, e não
em fins concretos, como ocorre, infelizmente, nas atuais instituições democráticas, mais dedicadas a satisfazer a vontade dos diversos grupamentos de interesses que formam momentaneamente
a maioria. Só assim será possível uma sociedade aberta.
A possibilidade de uma sociedade aberta depende, pois, de que
seus membros possuam opiniões, valores e normas comuns, e sua
existência torna-se impossível se insistirmos em que haja uma vontade comum emitindo comandos, a título de lei, que ordenem seus
membros a determinados fins concretos. Quanto maiores forem os
grupos dentro dos quais pretendemos viver em paz, tanto mais
abstratas e gerais devem ser as normas de conduta que confinam
os valores comuns almejados. Os membros de uma sociedade
aberta podem ter em comum somente opiniões sobre valores abstratos e nunca uma vontade comum em relação a fins concretos.
Por isso, para conseguir-se uma ordem onde predominam a paz e
o entendimento geral, especialmente quando se pratica a democracia, é preciso limitar os poderes de coerção do governo a fazer
cumprir normas abstratas de justa conduta aplicáveis igualmente a
todos, inclusive a ele, governo. Assim seria na demarquia.
111
O princípio da separação
de poderes existirá
efetivamente na demarquia
A demarquia <1> é uma notável e original proposição porque
permite articular em um sistema político inédito os ideais do constitucionalismo liberal, do governo representativo e da democracia
que, nos tempos modernos, passaram a se entrechocar e a simultaneamente sofrer o insidioso impacto da evangelização socialista,
provocando os instáveis, confusos e perigosos regimes híbridos
que observamos hoje na quase totalidade dos países.
Os ideais do constitucionalismo liberal e do governo representativo baseavam-se na liberdade individual. A democracia também
continha em suas origens o ideal da liberdade pessoal, mas, com o
tempo, se sobrepôs a este ideal o conceito do domínio da maioria
com aderências socialistas.
A separação dos poderes foi o instrumento de salvaguarda que
os teóricos e os fundadores do constitucionalismo liberal imaginaram para garantir a liberdade individual e prevenir contra a opressão e a arbitrariedade. O que esses homens tinham em mente era
que o poder de coerção sobre uma pessoa - pelo governo ou por
qualquer outra ou outras pessoas - somente seria permitido para
fazer valer normas universais de conduta individual sancionadas
por um poder legislativo efetivamente independente e dedicado exclusivamente à elaboração de leis gerais que expressassem a opinião sobre o que é justo e não a vontade comum sobre objetivos
específicos do governo ou de grupos.
Quando os democratas exigiram que esse poder de elaboração
de normas gerais de justa conduta fosse entregue a entidades representativas democráticas, ele foi colocado nas mãos de parlamentos ou assembléias já existentes. Estes órgãos, porém, estavam
(I) Ver editoriais em VISÃO de 6-2-78, 20-2-78, 6-3-78 e 20-3-78, e em "Demarquia ... ",páginas 29, 3I, 33 e 39; o editorial de 20-3-78, "A opinião e a lei na demarquia", também está reproduzido nesta obra.
112
estruturados para a finalidade de governar com base em vincu~a­
ções partidárias e interesses concretos de pessoas. e_ grupos e ?a,o
para fazer leis gerais, uniformes, prospectiva~, defmttlv~s e aph;aveis igualmente a todos. Desde o começo, pms, essas enttdades legislativas' já estavam lotadas com os absor~en~es problemas de
governo propriamente ditos, que e~volvem pru_lct~almente o atendimento de fins concretos dos partldos, de mawnas ou de grupos
de interesses.
Uma assembléia exclusivamente legislativa, como a que tinham
em mente os idealizadores do princípio da separação de poderes,
portanto, jamais existiu.
. .
Os regimes democráticos existentes são moldados. I?tetrament_e
pelas necessidades intrínsecas dos governos dem~cr~ttcos qu~ VIsam à realização de objetivos concretos das mawr~as. Por tsso,
pouco ou nenhum esforço foi dedicado ao descobnment? ou ao
aperfeiçoamento de sistemas apropria~os onde, ~redommem as
normas gerais de conduta como entendtam os teoncos da separação de poderes.
. .
..
A demarquia, que agora é proposta, ehmma as dtftculda~es
inerentes aos atuais sistemas democráticos e assegura uma efettva
,.
separação entre os poderes legislativo e governamental.
O sistema de eleição democrática dos membros da assembleia
legislativa demárquica por coetâneos (que em ~er~l são o:_ melh~­
res juízes das qualificações de uma pessoa), a?~~ vmculaçao partldária, a duração dos mandatos, a não reeleg~bth~ade e _outro_s aspectos fazem deste órgão algo que se aproxtmana mms d? t_deal
imaginado pelos teóricos políticos (um senado de homens sabws e
honrados) que qualquer outro sistema até agora tentado pelas ~~­
ções. Essas características e a restrição do poder dessa assemblet_a
à legislação no seu verdadeiro sentido tornarão possível, pela pnmeira vez, que ocorra uma verdadeira separação de pode~e~ e,
com ela, um governo e um regime de liberdade realmente suJeitos
à lei e pois, um efetivo estado de direito.
A ~orporação governamental·demárquica é compos_ta por _um
órgão executivo e por uma câmara de deputados que senam elelt~s
pelo método dem?crático co~vencional_, ~en~ro de esquemas pa~t.t­
dários em essêncta como hoJe se faz. E obvw que se a assemb~eta
legisla~iva, a corporação governamental e todos ~s cidadãos estiverem sujeitos igualmente às mesmas normas gera~s de conduta, d_efinidas nas bases da demarquia, também os partldos a elas estarao
amarrados. Isso também resolveria algumas questões críticas, de
natureza ideológica, sobre formação partidária, que pairam sobre
113
as ~emocracias sem rumo hoje existentes.
. , E pr?vável que as chicanas ou os jogos de interesses políticos,
Ja re~end.o~ c?mo comuns nos atuais sistemas, sejam até certo
grau mevi~aveis num regime democrático do tipo dos hoje vigentes. Esse t~po de ~overno nãc> pode provavelmente evitar que existam. pressoes de mt~resses das mais variadas naturezas, que se orgamzam e se compoem, em grupos ou em maiorias eventuais ou
não, busca?do a r~alização de programas e projetos concretos. Ist~ talvez seja algo I?Ipossível de eliminar no âmbito das administraço7s governam~ntms, mas não deveria poder suceder no órgão legislativo que teoncamente estaria encarregado de fazer as leis destinadas a pr?teger os indivíduos da opressão e da arbitrariedade.
No siste~a de.márquico, a corporação governamental certamente so,frera m,mto menos o. ii_npacto de pressões ilegítimas porque ela so podera operar se SUJeitando sempre a leis gerais que não
pode alterar e que são elaboradas por um outro poder superior
c?~pletamente separado e independente e que, pelas su~s caraete~
r:stlcas, não ~oder.ia estar jamais submetido à ação dessas pressoe~. Graç~s a efetlva. separaç.ão de poderes, que assegura a soberama ?as leis ~ubstantlvas, o sistema demárquico será o único regime a~e a?or~ de~cobert~' pelo homem em que todas as salvaguard~s, mstit~cwnais e de liberdade individual, já serão parte e estarao embutidas no âmago do próprio regime.
Por que demarquia
e não apenas democracia?
A demarquia representa uma evolução institucional política
que precisamos buscar se quisermos restaurar ou, pelo menos, salvar o que resta dos ideais de liberdade que os homens comuns, de
boa fé, vêm julgando, desde há muito, ser, simplesmente, 'os
ideais da democracia'.
A democracia não é uma ideologia nem uma doutrina e nem
mesmo, de per si, um sistema político. A democracia é, conforme
define Joseph A. Schumpeter Ol, "um método político, isto é, um
certo tipo de arranjo institucional para chegar a uma decisão política (legislativa ou administrativa), e, por isso, incapaz de ser um
fim em si mesma, independentemente de quais forem as decisõt>s
que ela venha produzir em determinadas condições históricas".
Por mais forte que seja a lealdade que se lhe atribua- que muitas
vezes é apenas lealdade a certos interesses ou ideais que se espera
servidos por ela - , a democracia não representa um valor em si
mesma e deve ser julgada pelo que vai realizar. Como qualquer
outro método, a democracia não produz sempre os mesmos resultados nem favorece sempre os mesmos interesses ou os mesmos
ideais.
Os argumentos sobre o bom ou o mau funcionamento da democracia somente farão sentido se forem referidos a determinadas
situações, lugares e épocas. O conceito que hoje se faz da democracia, de domínio da maioria como ideal absoluto, é, pois, falho,
pelo fato de pretender-se aplicar, sem qualquer balizamento doutrinário, a unidades complexas e imperfeitas, como são os estados
modernos, um conceito desenvolvido a partir de uma comunidade
homogênea ideal. A lealdade verdadeiramente racional à democracia pressupõe, isto sim, a aceitação pela sociedade de certas
condições nas quais a democracia possa operar adequadamente e
(1) ln "Capitalism, Socialism and Democracy" (Nr;w York, 1942).
114
115
preservar seus ideais originais de liberdade.
Embora a democracia não seja um fim em si mesma, ela é provavelmente o melhor método de que o homem dispõe para alcançar alguns objetivos. Destacam-se dois desses objetivos: o da mudança pacífica em assuntos de governo e o da elevação do nível geral de compreensão dos negócios públicos. O primeiro se refere a
que a democracia é o único método já descoberto pelo homem para efetuar, pacificamente, mudanças políticas. Somente pelo uso
do método democrático pode a maioria remover, sem violência,
um governo que não quer. A democracia não é uma instituição revolucionária; pelo contrário, é o meio de evitar revoluções e guerras civis, pois quando for necessário que prevaleça uma entre várias opiniões conflitantes e quando uma tem que prevalecer, mesmo que seja pela força, é menos danoso determinar-se qual tem o
maior apoio pela contagem de números em vez de pela luta.
O segundo objetivo, ressaltado por Alexis de Tocqueville, em
seu Démocratie en Amérique (1835-40), se refere a que a democracia é o único método efetivo de educar a maioria. A democracia, acima de tudo, conduz a um processo de formação de opinião.
Sua vantagem principal, pois, não está no método de selecionar
aqueles que governam, mas no fato de que, com a participação ativa de grande parte da população na formação da opinião, se pas~a
a dispor de correspondentemente maior número de pessoas no
processo de escolha. Conforme diz Friedrich Hayek em The Constitution of Liberty (1960), é possível admitir que "a democracia
não coloca o poder nas mãos dos mais sábios e mais bem informados e que, num dado momento, a decisão de um governo de elite
possa ser mais benéfica para o todo; isto, por~m, não deve
impedir-nos de darmos preferência à democracia. E na sua dinâmica e não em seus aspectos estáticos que fica provado o valor da
democracia. Como também para a liberdade, os benefícios da democracia despontarão somente a longo prazo, enquanto suas realizações mais imediatas poderão ser inferiores àquelas de outras
formas de governo que não utilizem o método democrático".
A liberdade é um outro objetivo que historicamente tem sido
considerado próprio da democracia. É que, desde os primórdios
da formação das idéias democráticas, a democracia foi sempre tomada como importante salvaguarda da liberdade individual, como, por exemplo, quando o escritor John Culpepper, em 1643,
afirmou que "o bom da democracia é a liberdade, e a coragem e a
iniciativa que a liberdade gera". Acontece, porém, que ter a democracia não é ainda ter a liberdade; o que é certo é que o sistet11a
116
de governo que usa adequadamente o método democrático tem
mais possibilidades de produzir liberdade do que qualquer ?ut:~·
O método democrático pode dar fundamento para que os mdi~I­
duos se vejam protegidos contra a coerção por parte de outros Indivíduos, pois dificilmente a maioria poderá encontrar vantagem
na ação coercitiva arbitrária de alguns indivíduos_ sobre ou~ro~.
Mas a proteção do indivíduo contra a ação colet!va _da propna
maioria não encontra a mesma ressonância na democracia absoluta.
Isso tudo quer dizer que, embora as perspectivas d~ li?erda~e
individual sejam melhores onde se aplique a democracia, Isto nao
significa que elas estejam asseguradas. Os h~~en~ sensatos sa_?em
que a liberdade teria pouca chance de sobreviv~~cia se dependess~­
mos da simples aplicação do método democratico '?ara preservala. As perspectivas de liberdade dependem, num regi~le em que se
aplique a democracia, de a maioria fazer ou não da libe:dade seu
objetivo deliberado. Isto insinua que, par~ assegurar a liberdade,
a democracia precisaria possuir um balizamento fundado em
ideais de liberdade.
Os ideais do constitucionalismo liberal e do governo representativo, que evoluíram desde os velhos tempos no combate a? absolutismo, baseavam-se na liberdade individual. A democracia também possuía, em suas origens, o ideal da _liberdade pessoa~. Mas,
em épocas recentes, o conceito de soberama popular, assoCiad~ ao
movimento coletivista, sobrepôs-se a este ideal, causando ternvel
desgaste às instituições que vinham sendo desenvolvidas pelos homens ao longo dos séculos para preservar e desenvolver sua
liberdade.
A separação de poderes foi o princípio doutrinário de governo
que os fundadores do constitucionalismo liberal e do go~er~o representativo desenvolveram a partir do século XVI~ para lim~ta~ ~s
poderes monárquicos, visando à salvaguarda da liberdade_I~dlVI­
dual. Os três fundamentos dessa doutrina eram: 1) que a atividade
legislativa não deveria ser levada a cabo pelas mesm~s pessoas q~e
executassem as leis; 2) que somente seriam reconhecidas como leis
aquelas que fossem 'normas gerais de conduta in~ividual, idênticas para todos e aplicáveis a um número desconheCido de casos futuros'; e 3) que a coerção (pelo governo ou por qualquer outra pese
soa ou grupo) somente seria admitida para fazer valer ou executar
a lei. Essa versão <2> mais pura do princípio da separação de pode(2) W.B. Gwyn, "The Meaning oj the Separation oj Powers" (New Orleans,
1965).
117
res contém, portanto, o sentido do estado de direito, pois se os
homens devem ser governados por leis imparciais (as normas universais de justa conduta), aqueles que fazem as leis não podem
também julgar nem punir as violações das leis; e se aqueles que
executam as leis também possuem poder legislativo para mudar as
limitações legais sob as quais eles agem, então eles estarão, para
todos os efeitos, desvinculados da lei, sendo, portanto, nada menos que soberanos arbitrários.
A doutrina pura da separação dos poderes envolve três elementos caracterizadores. O primeiro elemento é a asseveração de uma
divisão das 'agências' ou 'órgãos' principais do governo em três
categorias: o legislativo, o executivo e o judiciário. Este aspecto da
doutrina é o padrão fundamental de todo o sistema de governo
constitucionalista representativo do Ocidente. A difusão da autoridade entre diferentes centros de decisão é a antítese do absolutismo e do totalitarismo. Nos estados totalitários cada aspecto da
máquina estatal é tido como mera extensão do aparelhamento partidário e subordinado a ele. O 'ideal' do estado totalitário é conseguir uma única e todo-abrangente agência governamental. O segundo elemento da doutrina é a asserção de que existem três poderes ou 'funções' específicas de governo, a legislativa, a executiva e
a judiciária, cada função confiada somente ao órgão próprio do
sistema governamental. O terceiro elemento é o da separação de
pessoas, que estabelece que os três ramos do sistema sejam compostos de grupos bem separados e distintos de pessoas, sem nenhuma sobreposição entre os membros desses grupos. A simples separação de órgãos e funções não é, pois, suficiente; tem que haver
também diferentes pessoas para cada uma das funções, se se pretende assegurar a liberdade. O elemento conclusivo da doutrina é a
idéia de que, se forem obedecidas essas recomendações referentes
aos órgãos, funções e pessoas, cada setor do sistema de governo
funcionará como um controle (check) ao exercício do poder arbitrário dos outros e, por estar cada um deles restrito ao exercício de
sua própria função, estará impedido de exercer um controle indevido ou influência sobre os demais. Haverá, então, uma limitação
ao exercício do poder do governo sobre 'o povo', porque qualquer
tentativa de exercer coerção indevida por parte de qualquer setor
do sistema com certeza falhará.
Um elemento adicional, extremamente importante, sobretudo
na perspectiva que temos hoje, é o de que o poder legislativo não
pode ser organizado sobre bases político-partidárias. Os teóricos
do século XVIII condenavam as vinculações dos legisladores a
118
"facções" ou interesses partidários, porém nunca enfatizaram esse aspecto suficientemente.
A teoria pura da separação de poderes, entretanto, nunca chegou a ser realizada na prática. A abordagem 'negativa' do controle
entre órgãos, baseada na idéia de completa independência e não
interferência entre eles, fez com que fossem introduzidos controles
'positivos' ao exercício dos poderes, o que levou a diferentes modificações, variações e, mesmo, deturpações na doutrina original.
Surgiram, então, três principais sistemas modificados. O primeiro
deles é uma espécie de amálgama da doutrina pura da separação
de poderes com a teoria dos checks and balances que deu origem à
Constituição dos Estados Unidos, onde, por exemplo, o executivo
possui poder de veto à legislação, ou o legislativo o poder de impeachment. O segundo, que caracteriza o constitucionalism_o inglês no século XVlll, é representado por uma 'separação parc1al de
funções', onde uma função, a legislativa, é compartilhada e as demais mantidas separadas. A outra modificação se refere à 'separação parcial das pessoas', em que algumas pessoas poderiam fazer
parte de mais de um setor governamental, embora a ampla identidade do quadro de pessoal fosse proibida. Este terceiro caso caracteriza o sistema parlamentar de governo que teve origem em meados do século XIX (Jl.
Embora a interpenetração fosse apenas parcial e tivesse havido
ao longo do tempo sempre uma certa preocupação com o 'grau' de
separação de pessoas e funções, a verdade é que essas doutrinas ou
teorias modificadas exerceram muito mais influência nos sistemas
de governo que a doutrina da separação de poderes na sua forma
pura. E é também evidente que essas 'adulterações' tornaram o
princípio - que em sua origem visava a proteger a liberdade individual - mais vulnerável aos ataques que com mais insistência e
força passaram a ocorrer a partir do século XIX com o advento do
democratismo, associado à onda socialista que marca os tempos
modernos como 'a era do coletivismo'.
Estes ataques de agora também eram voltados contra o poder e
os privilégios, como aqueles, contra as monarquias, que caracterizaram o mundo em meados do século XVII. Porém, agora era uma
revolta democrática com um diferente impulso ideológico, a 'justiça social'. Não era mais um ataque que carregava a bandeira da liberdade individual e do estado de direito contra o soberano arbi(3) M.J.C. Vile, "Constitutionalism and the Separation oj Powers" (London,
1967).
119
trário e opressor; era uma demanda para que o governo passasse a
agir mais, a governar mais, para tratar de todos os problemas económicos e sociais prementes. As exigências para 'harmonia' entre
os poderes eram um lugar-comum. O argumento, então, era que os
problemas sócio-económicos dos tempos modernos pediam ação
combinada dos poderes governamentais, ao passo que a separação
de poderes havia não só tornado impossível essa ação combinada,
mas também tornou tão obnubilada a responsabilidade ao ponto
de fazê-la desaparecer totalmente. A idéia agora era a de um sistema de governo que desse expressão às crescentes demandas de
ação governamental onde a 'unidade' dos poderes governamentais
se apresentava, pelo menos, tão importante quanto as considerações sobre sua separação. A 'justiça social' passou a exigir que, na
determinação da parte de cada indivíduo no produto social, quem
deveria ser justa era a 'sociedade' e não os indivíduos; e para realizar essa 'justa distribuição' do produto social tornou-se necessário
exigir que o governo dirigisse os indivíduos em tudo que eles quisessem ou devessem fazer,
O conceito de Rousseau, em seu Contrato Social (1762), que associou ao povo a idéia da soberania suprema e ilimitada, em substituição ao monarca, traduziu-se numa democracia profundamente enfática quanto à representatividade popular no governo, porém não deixou (a não ser o ambíguo conceito da 'vontade geral')
princípios balizadores que indicassem como o povo deveria legislar. Característico do democratismo rousseauniano que imperava
em fins do século XIX é a seguinte parte de um discurso demagógico do político inglês Joseph Chamberlain (1836-1914), proferido
em Londres em 1885: "Quando o governo era representado apenas pela autoridade da Coroa e pelas opiniões de uma determinada
classe, posso compreender que era o dever primeiro dos homens
que davam valor a sua liberdade restringir sua autoridade e limitar
seus gastos. Mas tudo isso está mudado. Agora, o governo é a expressão organizada das vontades e das carências do povo e, portanto, devemos deixar de olhá-lo com suspeita. A suspeita é o produto dos velhos tempos, de circunstâncias que desapareceram há
bastante tempo. Agora é nossa obrigação estender suas funções e
verificar de que maneira suas operações podem ser vantajosamente ampliadas".
A falta desses princípios balizadores causou a mais profunda
confusão nos sistemas governamentais que passaram a vigorar nos
países ocidentais. Na ausência de normas constitucionais baseadas
em conceitos político-filosóficos bem definidos, o 'povo sobera-
120
no', democrático, tomou a si os atributos da monarquia e delegouos aos órgãos representativos do povo disponíveis, ou seja, aos sistemas governamentais existentes. A suposição era de que os poderes da monarquia tivessem passado para o povo e de que cada homem era um rei. Como disse o jurista francês Léon Duguit
(1859-1928), "tudo que era necessário era substituir o rei pela nação. O rei era uma pessoa, de direito, portadora de poder soberano; como ele, a nação será uma pessoa, de direito, portadora de
poder soberano". E então, após desenvolverem a teoria da 'soberania popular', os homens transferiram a soberania governamental a uma assembléia de representantes do povo.
Quando os representantes do povo passaram a governar como
se tivessem herdado as prerrogativas reais, logo começaram a ser
produzidos os mesmos males de que os homens se queixavam no
regime absolutista monárquico: arbitrariedade, discricionariedade, corrupção, ineficiência, parasitismo, gigantismo, irresponsabilidade e, acima de tudo, crescente limitação da liberdade individual. Os esforços que por séculos vinham sendo realizados para
tornar realidade os ideais da separação de poderes e do estado de
direito, para limitar os poderes coercitivos dos governos e salvaguardar a liberdade individual, foram anulados pelo conceito de
que não havia mais necessidade de limitação desses poderes, já que
o controle do governo se faria automaticamente na democracia,
uma vez que o governo era o próprio povo.
Ressurgiu, assim, por uma falsa via de busca da liberdade, uma
nova espécie de governo tirânico, baseado numa 'democracia ilimitada', sem balizamento ideológico. Todas as chamadas democracias do Ocidente sofrem hoje, em diferentes graus, desse terrível mal que as conduz, gradual porém firmemente, no sentido do
totalitarismo.
O mais fatídico efeito da aplicação equivocada do método democrático com fortes aderências socialistas foi o de corromper o
conceito original de Lei. A pretexto da sinistra falácia de 'justiça
social', e baseado na tradição do construtivismo-racionalista de
Hobbes, Descartes, Voltaire e Rousseau, ou nos conceitos (ex.
egalité de fait em vez da mera egalité de droit) que remanesceram
da Revolução Francesa; do messianismo-historicista de Hegel ou
Marx; do construtivismo-utilitarista de Jeremy Bentham
(1748-1832) ou John Austin (1790-1859); ou do construtivismopositivista de Auguste Comte (1798-1857), passou-se a ter c~:m~o
lei tudo aquilo que fosse aprovado pelos representantes da ma10na
nos órgãos 'legislativos', não importando se essas 'leis' fossem dis-
121
criminatórias e arbitrárias em relação a determinados grupos ou
pessoas. A soberania da lei passou assim a se subordinar à soberania popular por falta de adequado balizamento ideológico, graças
ao sofisma de que o estado de direito (um pseudo-estado de direito
chamado 'estado de direito social') continuaria prevalecendo sempre que quaisquer disposições legais fossem dalguma forma aprovadas por uma 'representação democrática majoritária'.
A separação de poderes foi mantida apenas formalmente, pois
os fundamentos da doutrina original foram completamente olvidados. Os órgãos legislativos, concebidos pelos idealizador~s do
governo representativo constitucional como sendo entidades independentes, sem atividade político-partidária, dedicadas exclusivamente à legislação e limitadas apenas à elaboração de normas universais de justa conduta (leis no verdadeiro sentido), foram convertidos em órgãos legiferantes com poderes ilimitados que, em
geral, se entrelaçam com os executivos governamentais, funcionando, praticamente, como se fossem uma entidade unificada. De
outro lado, observam-se, principalmente nos regimes mais fechados, os executivos governamentais deixando para segundo plano
as atividades administrativas que lhes são própria~. passando também a 'legislar' abundantes regulamentos, 'leis', decretos e 'políticas', principalmente em causa própria, tornando-se cada vez mais
poderosos e autárquicos, com o crescimento exponencial do
estatismo.
Essas entidades onipotentes, desenvolvidas no seio das 'democracias' sem princípios definidos ou com falso balizamento, assumem prerrogativas discricionárias para aplicar ônus e tributos ou
conceder benefícios expressos a grupos ou pessoas; adotam com
freqüência medidas concretas referidas a casos específicos conhecidos, para atingir indivíduos, organizações, atividades, lugares
ou objetos em particular; e autorizam a coerção que tais decisões
obrigam. Entidades assim ilimitadas, que se ocupam de 'construir'
objetivos predeterminados e não de princípios gerais de conduta,
jamais conseguirão suas resoluções mediante genuínos acordos de
maioria, mas somente através de apoio majoritário eventual obtido mediante 'tratos', 'chicanas' e 'barganhas' ou através da força.
A democracia, quando confundida com forma simples autônoma de governo representativo, infelizmente conduz ao poder ilimitado que os homens sensatos sempre quiseram evitar para proteger
a liberdade individual. Como método de decisão política que demande consenso, ela é sem dúvida o melhor arranjo institucional
que o homem até agora descobriu. Mas a aplicação desregrada do
122
método democrático, confundindo meios com fins, na suposição
de que a constituição de um estado seja um simples problema de
aritmética (por contagem de votos) e de justiça distributivista, só
pode gerar a crise política atual, de tendência totalitária, traduzida
por conflitos permanentes entre lei e liberdade, legislação e justiça, opinião e vontade, fins e valores, controle social e liberdade
individual.
Embora os filósofos e políticos nos últimos quase dois séculos
não tenham definido uma forma de conciliá-los, esses conflitos entre a democracia e a liberdade individual não são inconciliáveis. Se
a democracia é um meio para se preservar a liberdade, a liberdade
individual constituirá também uma condição essencial para o funcionamento da democracia. Portanto, um bom sistema de governo
de caráter democrático deverá ter, como corolário indispensável à
representatividade social, um modo particular de governança que
proteja a liberdade individual.
As idéias originais para desenvolver esse modo particular de
governo foram expostas pelos teóricos do constitucionalismo representativo no século XVII e se basearam nos princípios da separação de poderes, do estado de direito e do governo subordinado à
lei; e nas leis substantivas definidas como normas universais de
justa conduta. Acontece, porém, que os fundamentos dessas doutrinas nunca foram respeitados. Assim, por exemplo, uma assembléia exclusivamente legislativa e também independente de influências de facções Oll partidos, como Çt que tinham vislumbrado
os idealizadores do princípio da separação de poderes, jamais existiu. Quando, portaóto, com o democratismo, no século XIX, foi
exigido que o poder de elaboração de leis fosse confiado a assembléias democráticas, ele foi entregue nas mãos de parlamentos ou
de assembléias representativos já existentes e que, no entanto, estavam estruturados mais para tomar decisões em questões de administração governamental do que para formular e aperfeiçoar as
verdadeiras leis. Desde o começó, pois, essas entidades, que funcionavam com base em vinculações político-partidárias e interesses concretos de pessoas e grupos, já estavam absorvidas comprementes problemas de governo propriamente ditos, que incluíam
principalmente o atendimento de 'fins' específicos relacionados
com as 'vontades' dos partidos, das maiorias ou de grupos de interesses. Mesmo notáveis teóricos da lei e da organização dos governos como Locke, Montesquieu e os próprios Pais da Constituição
dos Estados Unidos fizeram 'vista grossa' à natureza inadequada
dessas entidades, permitindo a si próprios crer que elas fossem 'le-
123
gislaturas' que se dedicassem apenas àquelas leis que, bem administradas pelo estado, confinariam a coerção.
Desta situação decorre a crise hoje observada nas 'democracias
ocidentais', em que o poder de fazer a lei e o p_oder diretor do govenw se encontram num mesmo conjunto de entidades representativas. Como conseqüência, o poder supremo do governo nunca está subordinado à lei, porque esse poder maior está sempre nas
mãos de um órgão livre para fazer a lei que quiser a fim de atingir
os objetivos que se propõe.
A democracia, nessa 'versão ilimitada', não é nada melhor que
qualquer outro governo arbitrário. O segredo do bom governo,
entretanto, está precisamente em que o poder supremo seja limitado; e em que este possa estabelecer normas limitadoras de todo outro poder, inclusive do poder soberano da maioria; e, em conseqüência, proibir, porém não comandar, os cidadãos. Toda autoridade se baseia então no acatamento de certos princípios que todos
os cidadãos reconhecem, ainda que não tenham sido por eles elaborados diretamente; e é este reconhecimento de determinados
princípios - e a exclusão daqueles que não os aceitam - que distingue uma sociedade livre.
Por isso, num bom sistema de governo, embora o poder mais
alto continue sendo o da maioria, esse poder estaria limitado pelo
princípio de que sua força coerciva somente se estenderia até o
ponto em que a maioria estiver disposta a submeter-se às normas
gerais de justa conduta. Nesse sistema, outrossim, não é admissível que a assembléia legislativa- que seria o órgão eleito supremo
do sistema- tenha mais poderes que o de fazer as leis, no sentido
clássico de normas gerais de conduta; nem que ninguém possa
obrigar os cidadãos a algo que não seja a obediência às normas de
conduta assim estabelecidas; nem que a assembléia legislativa ou
qualquer de seus membros tenham vinculações partidárias ou relações com grupos específicos de interesses; e nem que haja qualquer
setor do sistema, inclusive o executivo, não submetido estritamente às leis ditadas pela assembléia, a quem cabe, com exclusividade,
a autêntica tarefa legislativa ..
Tais são os pressupostos da demarquia, um bom sistema de governo no qual o povo (demos) não dispõe de força bruta (kratos)
mas é limitado a governar (archein) por 'leis estabelecidas vigentes
tornadas públicas e conhecidas pelo povo e não por decretos extemporâneos' 14 >; e mantendo na memória os equívocos que, con-
forme lembra Hayek, cometemos ao afastarmos (pela aplicação
inadequada da democracia) todas as salvaguardas pelas quais havíamos aprendido a circunscrever a monarquia constitucional,
'sob a ilusão de que, com a vontade do povo governando e legislando, não havia mais necessidade de a maioria ter que provar que
eram justas as suas decisões'.
(4) John Locke, "Two Treatises of Government" (London, 1960).
124
125
Retrato em 3x4 da demarquia
São três os 'órgãos' ou 'agências' principais do governo demárquico: a assembléia legislativa, a corporação governamental e o
judiciário. Suas 'funções' são, respectivamente, a de legislar em
termos de normas gerais de conduta; administrar os negócios públicos dentro dos limites das normas gerais de conduta; e administrar a justiça sob a luz das leis e a inspiração do estado de direito.
Cada um dos órgãos será composto de pessoas completamente distintas das que integram os demais, não podendo haver nenhuma
superposição entre os indivíduos que compõem cada um deles.
Ao órgão superior do sistema - que denominamos assembléia
legislativa - cabe tratar, com dedicação exclusiva, da elaboração
das leis civis e criminais necessárias à condução da nação, leis essas
sempre com caráter de normas universais de justa conduta conforme definição constitucional. A Constituição, além de estabelecer
as regras de organização do sistema demárquico, definirá as propriedades que essas normas tenham que ter para terem validade de
Lei, tais como a de serem normas de conduta uniformes e gerais;
de caráter definitivo, embora sujeitas a revisão sob circunstâncias
especiais; aplicáveis a qualquer pessoa ou grupo de pessoas, inclusive ao governo e ao legislativo e seus membros; aplicáveis a número desconhecido de casos futuros, abstraídas, portanto, de quaisquer circunstâncias específicas de tempo e de lugar e referindo-se
apenas a condições que possam ocorrer em qualquer lugar e a
qualquer tempo.
Para verificar se os atos da assembléia legislativa possuem ou
não essas propriedades formais caracterizadoras da verdadeira lei,
basta um tribunal constitucional, que decidiria, também, sobre os
conflitos de competência entre a assembléia legislativa e os outros
setores do sistema. Este tribunal não necessita deter nenhum poder
positivo para fazer-se impor. Só tem que ser completamente inde-
126
pendente e imparcial (I) para decidir sobre o caráter do que for resolvido pelo legislativo, de modo a estabelecer se se trata de lei que
a todos deve obrigar. Uma condição fundamental e determinante
da demarquia é a de que o órgão legislativo não seja organizado
sobre bases político-partidárias. Além de não serem vinculados a
partidos políticos, os membros da assembléia legislativa não pode~ ser ;ee!eitos. Isto, para livrar a instituição legislativa do jogo
de mfluenctas, pressões, trocas de apoio e conflitos de interesses
que podem afetar, como se observa nos dias atuais, a natureza do
produto legislativo, deformando a propriedade das leis.
Os membros da assembléia legislativa são escolhidos, em processo democrático, por coetâneos. Aos candidatos não se admite
filiação partidária, mas exige-se uma certa idade mínima (45 anos
por exemplo) e qualificações que os próprios eleitores, individual~
mente, medirão, ao escolher seus candidatos, levando em conta as
responsabilidades e as características das tarefas exclusivamente
legislativas que serão a eles atribuídas. Os mandatos são por longo
período, de, digamos, quinze anos, ao fim do qual os membros da
assembléia são irreelegíveis, embora possam ser aproveitados em
funções de magistratura, sendo porém inelegíveis para quaisquer
funções na corporação governamental. De qualquer maneira terão suas condições de vida asseguradas a partir do términ; do
mandato na assembléia legislativa.
Cada cidadão votaria, para a composição do legislativo uma
vez na vida (n~ caso do nosso exemplo, ao completar 45 ano~), escolhendo candidato, com a mesma idade, a legislador. Estas eleições democráticas poderiam ser anuais, renovando-se um quinze
avos dos membros.
A corporação governamental constitui outro setor do regime
demárquico e compreende um órgão executivo e uma câmara de
deputados, ambos compostos de membros eleitos pelo método democrático convencional, nos moldes dos atualmente adotados inclusive obedecendo a esquemas partidários. As gestões pode;iani
durar de quatro a cinco anos, como é hoje.
. ~a corporação governamental estarão todos os órgãos que admmtstram os recursos materiais e pessoais à sua disposição para
prestar serviços aos cidadãos ou estabelecendo regulamentações
gerais sobre muitas de suas atividades, atendendo inclusive a interesses concretos da maioria, ou seja, à vontade geral. Nisso não
(I) H. Maksoud, "A opinião e a lei na demarquia", em VISÃO, 20-3-78, e
nesta obra.
127
haveria praticamente diferença com os regimes atuais. A diferença
fundamental está no princípio básico da demarquia que deve ser
obedecido pela corporação governamental ao prestar seus serviços, elaborar regulamentações ou atender a interesses específicos:
subordinar-se sempre às normas gerais de conduta, decorrentes de
um consenso de opiniões esclarecidas e não da miragem da chamada 'justiça social' <2l. E, como já foi enfatizado, essas normas gerais serão elaboradas sempre e unicamente pela assembléia legislativa e jamais poderão ser influenciadas ou modificadas pela corporação governamental ou pela vontade de grupos ou maiorias eventuais.
Para executar as suas obrigações, a corporação governamental
demárquica, como em qualquer outra forma de governo democrático, dependerá do apoio de uma maioria organizada e comprometida com um programa. Sua ação, por outro lado, deverá estar sujeita à fiscalização de uma oposição independente e também organizada, capaz de, a qualquer tempo, tornar-se governo. Daí a necessidade de, na demarquia, haver, pelo menos, dois partidos.
A demarquia contaria, ainda, com o poder judiciário. Que, ao
administrar a justiça, considera toda a estrutura legal permanente
e a doutrina meta-legal que constitui o estado de direito da demarquia. O judiciário será, também, obviamente, completamente separado e independente dos demais órgãos do sistema.
A demarquia é um sistema inédito muito simples, mas que vai à
raiz dos problemas - vale a pena ser estudado e compreendido
por todos aqueles que realmente prezam a liberdade e amam sua
pátria (3).
Sua implantação não necessita ser feita de uma só vez. O importante é escolher o rumo certo e estabelecer um balizamento correto, para começar a reforma demárquica, isto é, a reforma em
que o governo continue sendo representativo do povo (demos),
porém limitado a governar (archein) subordinado a Leis verdadei"
ras, as normas universais de justa conduta. No Brasil não será difícil realizar suaves alterações no atual sistema que permitirão adentrar o caminho da demarquia: poder-se-ia, por exemplo, dar ao
atual Senado atribuições exclusivamente legislativas, tirando-lhe
as vinculações partidárias, estabelecendo-se constitucionalmente a
definição de Lei e elegendo-se novos legisladores, dentro das normas demárquicas aqui descritas, para complementar o atual quadro e também à medida que os atuais mandatos fossem vencendo.
(2) H. J.!aksoud, "Sacrifício da liberdade a pretexto de uma justiça social",
em VISAO, 23-1-78, e em "Idéias ... ", página 62.
(3) H. l'vfaksoud, "Demarquia: a reforma política que buscamos", em VISÃO,
6-3-78, e em "Demarquia ... ", página 33.
128
129
O arbítrio da taxação
progressiva
Os feiticeiros do grande logro chamado 'justiça social' estão
'
mais uma vez, excitados no terreiro.
Desta vez, estão receitando doses suaves de impostos progressivos sobre a propriedade privada, a pretexto de introduzir mágicos
efeitos saneadores sobre o atual "caos urbano".
Agora mesmo, em São Paulo, numa das sessões da XXX Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
ouviu-se que a prática especulativa no mercado imobiliário precis~
~er "-~~u~ralizada': pela_ "adoção de imposto sobre transações
m~ob~hanas .--: mms efetlvo do que o imposto de renda - e pela
cnaçao de dtflculdades para a cQncretização de transações imobiliárias". Segundo o 'scholar' responsável por esse raciocínio cartesiano, os efeitos negativos da 'especulação imobiliária', bem como
a própria 'prática especulativa', devem ser contidos para que se
possa "pensar na racionalização da construção habitacional".
Afirmou o conferencista desta reunião que este é o momento
oportuno para a adoção dessas medidas, "uma vez que nos períodos ~e !ecessão o~ ganhos s:om tais negociações são menores,
consti~m~do-se asstm numa ~xcelente oportunidade política".
Comctdentemente, a 'Central de Planejamento', em Brasília
anun~iava à imprensa (14-7-78) que a 'solução' para os problema~
da_s c1dades está na "cobrança de imposto progressivo para imóvets _de alto custo e terrenos vazios ou subutilizados", e que esta
medtda se!á "um dos principais instrumentos da nova política de
des~nvolvtmento urbano", não só para favorecer a construção de
habttações para populações de baixa renda mas também para ''dotar os municípios de recursos à altura de seus grandes problemas".
No conclave da SBPC, a mesma tese que defendeu os novos
ânus procurou mostrar que a aplicação de capital nacional em terras e _im~vei~ prej_udica os investimentos produtivos na agricultura
e na mdustna, cnando uma falsa sensação de riqueza pela grande
130
valorização dos imóveis e desnacionalizando a produção, pois
conduz o "capital estrangeiro a cuidar da produção, o governo da
infra-estrutura e o capital nacional do terreno". Para explicar esta
situação, destacou o autor da tese que "o imóvel urbano ou rural é
a mais importante reserva de valor no Brasil", porque a moeda é
corroída pela inflação, o mercado cambial é restrito, o setor financeiro é fortemente instável, as regras do jogo no sistema monetário
são continuamente alteradas, o sistema judiciário brasileiro é moroso, reduzindo o valor das dívidas a cada ano que passa, restando, pois, apenas o imóvel como elemento de aparente salvaguarda
nessa barafunda.
Entretanto, ao explicar-se dessa forma o porquê do uso do instrumento imobiliário terra como reserva de valor no Brasil, e criticar aqueles que assim o fazem ao invés de arriscar em setores produtivos, são esquecidas as causas e apenas lembrados os efeitos.
Esquece-se, por exemplo, que em nosso país a liberdade de iniciativa é tão-somente formal. Na prática ela não existe; não há setor
produtivo que não seja controlado ou pelo menos dependente, e
de forma aleatória, do governo. Não existe, praticamente, por
exemplo, um mercado de capitais privado, de livre acesso, onde se
possa aplicar poupanças ou reservas das famílias e das empresas
em condições comparáveis às das aplicações em terras. Quanto à
tomada de capitais par~ investimentos, basta apenas lembrar que,
conforme estudos divulgados em 1977, "dos empréstimos realizados em 1976 pelo mercado financeiro do Brasil, 68!1Jo (sessenta e
oito por cento) o foram por entidades financeiras estatais" <1l.
E agora, para fazer 'justiça distributivista', hoje chamada de
'justiça social', e para, mais uma vez, tentar resolver os problemas
de falta de recursos nos municípios para enfrentar seus enormes
problemas - acumulados por decênios de omissão e ineficiência
-, volta-se ao injusto procedimento da taxação progressiva ediscricionária: inventam-se fórmulas do tipo 'solo criàdo' para introdução de novos impostos; e trama-se a aplicação de diferentes aliquotas de taxação para que os imóveis chamados de "alto custo"
e os "terrenos vazios ou subutilizados" sejam onerados de maneira progressiva. Esse 'justicialismo social' se baseia no injusto conceito igualitarista de que se deve tratar desigualmente as pessoas
para torná-las iguais - à força.
(1) H. Maksoud, "A ação do Estado, o mercado de capitais e a capitalização da
empresa privada nacional", em VISÃO, 19-9-77, e em "Idéias ... ", página 77.
131
Estas medidas, que abandonam o principiO fundamental da
igualdade perante a lei, o mais sagrado princípio da igualdade, são
racionalizações cartesiano-positivistas de criaturas que julgam estar tirando dos ricos para distribuir aos pobres e que pretendem ao
mesmo tempo corrigir 'distorções na estrutura urbana' para melhorar a qualidade da vida nas cidades.
·
Procura-se justificar que os que possuem mais têm mais 'capacidade de pagar' e que taxando progressivamente os mais bem sucedidos se consegue 'equalizar o sacrifício'. Também, quando se
propõe a progressividade de impostos, fala-se de taxas 'suaves' ou
'moderadas' de progressão, de modo que todos terão 'condição de
pagar'. Essa progressividade, entretanto, é totalmente arbitrária e
não há nenhum padrão objetivo que permita verificar qual o limite
superior de progressão que se atingirá, embora a experiência neste
século de 'democratismo social' mostre que a taxa progressiva do
imposto de renda, por exemplo, inicialmente introduzida com pequenos valores, de menos de um por cento a poucos por cento, foi
crescendo, sempre 'apenas um pouco mais que antes' e também
sempre sob a justificativa de que eram 'justos e razoáveis' os aumentos, até chegar hoje, em muitos países, a taxas de praticamente lOOOJo, verdadeiros confiscos, para rendimentos acima de certos
valores arbitrariamente determinados.
A pequenez relativa dos valores que normalmente os teóricos
da progressividade fiscal propõem ao implantar novos sistemas é a
tática usada para neutralizar qualquer tentativa de reação que tenha por base o princípio da igualdade perante a lei. E, não havendo reação ideológica, passa-se a discutir apenas questões técnicas e
pormenores sobre os valores a serem aplicados nas proposições de
taxação progressiva.
O único obstáculo à usurpação da propriedade privada, que é a
estrutura legal permanente fundada em normas gerais de conduta (2)
idênticas para todos e aplicáveis a número desconhecido de casos
futuros, cai, assim, no esquecimento, passando a imperar o arbítrio do positivismo fisco-legal da 'justiça social', em substituição
ao estado de direito.
(2) H. Maksoud, "A opinião e a lei na demarquia", em VISÃO, 20-3-78, e nesta
obra.
132
Ideologia
do imposto progressivo
É aceito por todos que os cidadãos devem contribuir com impostos para que os governos disponham de recursos financeiros
para realizar suas funções. A idéia do imposto sobre a renda e outros proventos, por exemplo, é bastante antiga, tendo inclusive sido discutida e advogada por muitps dos liberais clássicos dos séculos XVIII e XIX.
Estes homens, entretanto, falavam de uma taxação 'proporcional' e não de impostos 'progressivos'. Eles também imaginavam a
tributação como um meio 'eqüitativo' para levantar receitas governamentais necessárias e não como tim artifício para a redistribuição de renda. Adam Smith, por exemplo, ao conceituar, em
1776, em seu The Wea/th of Nations, as premissas referentes à taxação sobre a renda privada dos indivíduos, escreveu que "os súditos de cada estado devem contribuir para apoiar o governo, tanto quanto possível em proporção a suas respectivas capacidades;
isto é, em proporção à renda que eles respectivamente auferem sob
a proteção do estado. As despesas do governo referentes aos indivíduos de uma grande nação são como os gastos comuns de administração referentes aos condôminos ou inquilinos de uma grande
propriedade, os quais são todos obrigados a contribuir em proporção aos seus respectivos interesses na propriedade. Na observância
ou na negligência a este con~eito residem, respectivamente, as chamadas igualdade ou desigualdade da tributação".
A eqüidade deste conceito está intrinsecamente ligada ao princípio da proporcionalidade. A idéia cte que uma pessoa mais rica
pagasse mais impostos em proporção à sua riqueza constituía a
síntese da eqüidade. Isto quer dizer, em termos muito simples, que
uma taxa única de x% sobre as rendas de todas as pessoas- pelo
menos aquelas com rendas acima de um piso mínimo de subsistência - teria como resultado que os mais ricos pagariam mais na
proporção que seus rendimentos fossem maiores.
133
A taxação progressiva assumiu as suas atuais características de
importância inicialmente insinuando-se na vida das nações democráticas do ocidente sob falsos pretextos que não o da redistribuição de renda - da mesma forma como surgiram muitas outras
medidas similares de abuso da eqüidade legal.
Os que, no século XIX, primeiro advogaram uma taxação progressiva da renda em substituição à proporcional eram todos socialistas e seu objetivo, francamente exposto por eles, era o de expropriar os ricos. Em 1848, em seu Manifesto do Partido Comunista Ol, por exemplo, Marx e Engels propuseram o "imposto fortemente progressivo" como uma das medidas pelas quais o "proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar, pouco a
pouco, todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado".
A essas proposições socialistas, os liberais de então reagiram,
inclusive com firmeza: ao passo que, em 1848, em Paris, L. A.
Thiers dizia: "La proportionnalité est un príncipe, mais la progression n 'est qu'un odieux arbitraire", em Londres John Stuart
Mill pintava a progressão como "a mild jorm oj robbery". A argumentação desses liberais era de que a prática da tributação progressiva logo se transformaria em questão puramente política pela
impossibilidade de se definirem taxas de progressão que pudessem
ser classificadas de eqüitativas; e que, em se tornando questão política, ela rapidamente tomaria contornos de demagogia, pois os
políticos passariam a prometer benefícios infindáveis ao povo na
suposição de que apenas uma pequena parcela de ricaços pagaria
por eles.
A reação, entretanto, não foi suficiente, principalmente quando desabou sobre o mundo o democratismo ilimitado associado ao
igualit~rismo. A argumentação dos liberais clássicos foi, porém,
profética: os órgãos legislativos democráticos e os executivos governamentais, funcionando como se fossem uma só entidade (2)
passaram a ter crescente poder legiferante para atender a exigên~
cias de interesses partidários, tornando os governos, com o intenso
ritmo de estatização resultante, cada vez mais poderosos e autár-
(1) H. Maksoud,
"Anticomunismo marxista", em VISÃO, 28-11-77, e em
"Idéias ... ", página 55.
(2) H. Maksoud, "Por que demarquia e não apenas democracia?", em VISÃO, 107-78, e nesta obra.
134
quicos. À.medida que os gastos governamentais (facilitados também pelas grandes guerras deste século) passaram a crescer exponencialmente e os impostos proporcionais se tornaram conseqüentemente mais pesados, os liberais (que agora eram antes de tudo
'democratas' e portanto se colocavam à mercê das 'vontades' das
maiorias) esqueceram-se do princípio de que a lei deveria ser igual
para todos e passaram a encontrar atrativos na idéia da taxação
progressiva. E, para adotá-la, foram buscar novos argumentos
que pudessem caracterizá-la como forma 'eqüitativa', e não 'igualitária' ou redistributivista, e que lhe dessem respeitabilidade científica face às críticas anteriores de arbitrariedade.
O argumento encontrado foi posto em termos de 'igualdade de
sacrifício' e se baseava num conceito teórico utilitarista que dizia
haver uma 'utilidade marginal decrescente nos atos sucessivos de
consumo', o que quer dizer, em palavras mais simples, que, à medida que as pessoas se tornam mais ricas elas só podem gastar dinheiro em coisas frívolas, uma vez que só se pode gastar até um
certo tanto para atender às 'necessidades básicas'. Essa pseudoeqüidade utilitarista exigia, portanto, que o dinheiro que pudesse
ser gasto 'frivolamente' deveria ser submetido a uma taxa de imposto maior que o dinheiro ganho e gasto 'seri(!.mente' em coisas
básicas como alimento, moradia e vestuário. A taxação progressiva se baseou, portanto, para esses liberais que não queriam falar
em distributivismo, no credo utilitarista simplista que rezava que
um cruzeiro 'extra' é mais 'valioso' ou 'trará mais utilidade' a um
homem pobre que a um homem rico.
Embora ainda seja marcante seu efeito sobre muitos economistas, o próprio tempo encarregou-se de mostrar o grande equívoco
da teoria da 'utilidade marginal'. Além de ignorar a questão da
poupança, investimento, acumulação de capital e, portanto, crescimento econômico, a lógica da argumentação dessa teoria desviase fatalmente da 'eqüidade' inicialmente pretendida para o conceito 'equalitário' que vinha sendo mascarado; pois, enquanto existisse qualquer desigualdade de renda, os gastos marginais nunca
seriam iguais em utilidade e, portanto, seriam subseqüentemente
necessárias novas taxas desiguais de impostos para atingir-se apretensa 'igualdade de sacrifício'.
O crescimento desenfreado das taxas progressivas de imposto
de renda neste século tornou difícil aos 'democratas liberais' e aos
'social-democratas' continuar defendendo a progressividade da taxação com base nessa 'teoria' científica. Passaram então a aceitar
abertamente o que vinham escondendo há tempos: que a única ba-
135
se possível para justificar a taxação progressiva arbitrária é a vontade de mudar a distribuição da renda. E que, não podendo
fundamentá-la em qualquer argumento científico, a taxação progressiva só pode ser colocada francamente, como fizeram Marx e
Engels em 1848, como um postulado político-ideológico ou, em
termos políticos modernos, como uma 'tentativa de impor à sociedade um padrão de distribuição de renda determinado por decisão
majoritária, em repúdio à desigualdade'.
Esse repúdio, entretanto, é, em verdade, uma miragem distributivista chamada 'justiça social', que destruiu o conceito de 'norma de justa conduta idêntica para todos' da verdadeira lei, que a
demarquia pretende fazer renascer.
136
As falácias do tributo progressivo
A ilusão de que a carga de impostos que a sociedade precisa tolerar para atender às necessidades e carências coletivas poderia ser
substancialmente transferida para as costas da gente rica é a principal razão política pela qual a taxação cresceu tanto e tão rapidamente e fez com que os povos aceitassem uma carga muito mais
pesada que a que aceitariam se não estivessem sob a influência dessa ilusão. A resultante dessa mitologia política, entretanto, tem sido apenas a premiação da inveja dos que se consideram menos favorecidos, pela imposição de severa e punitiva limitação nas rendas dos mais bem sucedidos.
Julgam muitos dos 'menos favorecidos', ou seus 'defensores',
que a progressividade está atingindo apenas uma classe de indivíduos milionários que eles imaginam serem os Matarazzo, os
Rockefellers, os Onassis ou então os donos e executivos das grandes empresas. Ficarão, entretanto, chocados quando descobrirem
que, hoje, é sobre eles mesmos que a progressividade está também
incidindo. Os 'ricaços' que são taxados nas alíquotas mais elevadas são, na sua maioria, indivíduos e famílias da chamada classe
média. São, provavelmente, o médico, o jornalista, o artista preferido, o advogado, o dentista, o engenheiro, o editor do jornal, o
gerente da loja, e talvez o próprio "menos favorecido" ou seu 'defensor'. Essa confusão de perspectiva sócio-econômica (que é causada por um bando de demagogos que andam soltos por aí, ajudados pelo resto da gente que não se importa em prestar atenção inteligente ao que realmente se passa à sua volta) conduz à curiosa
situação política que começa com o feitiço da 'justiça social' de
'taxar mais os ricos' e termina com uma 'rebelião da classe média',
como a que está ocorrendo atualmente nos Estados Unidos.
Muita gente pensa, também, que, sem a alta progressividade
dos impostos, isto é, sem taxar pesadamente os 'ricos', não seria
possível manter os crescentes gastos públicos considerados impres-
137
cindíveis nos dias modernos. Deixando de lado, por ora, quaisquer considerações sobre esses 'crescentes gastos públicos', é importante informar que qualquer exame isento mostrará (para qualquer país) que é pequena a contribuição da progressividade fiscal,
principalmente a contribuição das altas taxas punitivas aplicadas
às rendas maiores, para a receita tributária total. Os dados disponíveis indicam, por exemplo, para o caso brasileiro, que as pessoas
físicas cujas classes de renda estão na alíquota máxima atual de
500Jo contribuem com seu imposto sobre a renda com apenas cerca
de 2,50Jo da receita tributária federal que corresponde a cerca de
0,30Jo da renda nacional. Se a classe de renda correspondente à alíquota máxima atual fosse desdobrada em outras faixas com alíquotas de imposto ainda mais elevadas, por exemplo, equivalentes
a uma alíquota média de 750Jo (a tributação se apoderaria de todas
as rendas líquidas acima dos 100 mil cruzeiros por mês), a contribuição dos que estavam no exemplo acima na alíquota mais alta
passaria a cerca de 3,50Jo da receita tributária federal. Isto quer dizer que, se a progressividade da taxação fosse aumentada a ponto
de praticamente confiscar todas as rendas acima de um certo nível,
o aumento da receita tributária seria de apenas 1OJo. Embora os dados a que se tem acesso não permitam pretender nenhum grau de
precisão nos cálculos efetuados, não há dúvida de que a ordem de
grandeza dos valores comparados mostra muito bem que não seria
a progressividade crescente da taxação que resolveria as crescentes
necessidades financeiras do setor público. Além do mais, é provável também que mesmo esse pequeno benefício aparentemente trazido pelo aumento da receita tributária seria mais do que contrabalançado pela inibição de atividades econômicas decorrentes do
desestímulo trazido às pessoas mais empreendedoras pelo aumento da taxação sobre seus proventos.
Mas como a justificativa da progressividade se apóia, no fundo, numa presumida 'justiça social', que não considera nenhuma
limitação, pois tem objetivo ideológico socialista (ou comunista,
se preferem o termo), o teto da progressão será o confisco de todas
as rendas acima de um certo valor e a liberação daquelas que estiverem abaixo desse limite. Esse valor limite constitui o que aqueles
que defendem dogmaticamente a progressividade fiscal denominam 'renda apropriada', que seria, para eles, a única forma legítima e 'socialmente' desejável de remuneração. Acima dessa 'renda
apropriada' tudo seria confiscado. Para eles (socialistas ou comunistas, conscientes ou inconscientes), ninguém precisa ganhar acima dessa tal renda máxima. Na Rússia, é mais ou menos assim. É
138
claro que, quanto mais pobre o país, menor seria essa renda máxima permissível. E a triste constatação é de que não pode haver dúvida alguma de que, ao evitar-se, principalmen.te nos países mais
pobres, que os indivíduos possam tornar-se mais ricos, se reduzirão também o ritmo e as possibilidades de crescimento geral da riqueza.
O fato, porém, é que não há justiça verdadeira onde há discriminação e arbitrariedade. Toda ação, seja ela individual ou coletiva, para ser justa, tem que ser guiada ou balizada por normas gerais de conduta, idênticas para todos e aplicáveis a um número
desconhecido de casos futuros, como se propõe na demarquia. A
progressão jamais poderá ser considerada uma regra geral aplicável igualmente a todos, pois não há como demonstrar que é igual
taxar em 200Jo a renda de uma pessoa e em 400Jo outra pessoa por
ser sua renda maior. Além do mais, a progressão produz, sob o
efeito da inflação, um aumento de impostos maior que o aumento
proporcional na receita do indivíduo resultante da desvalorização
da moeda. O que se observa é uma espécie de 'promoção' nas alíquotas do imposto, mesmo corrigindo-se os efeitos inflacionários;
noutras palavras: mantendo-se a renda igual em termos reais, a
tendência é fazer a todos subir para as alíquotas mais altas. Assim,
por exemplo, mantendo uma renda líquida real equivalente a 62
mil cruzeiros, a valores de 1967, uma pessoa no Brasil teria essa
renda 'promovida' da alíquota de 400Jo na declaração de 1968 para
a alíquota de 480Jo na declaração de 1978. O imposto real aumentou. Este tipo de promoção, entretanto, vigora apenas para as faixas de renda mais altas. Para as faixas mais baixas, a tendência é
oposta. Tanto assim, que o limite de isenção do imposto de renda
tem crescido em termos reais.
A impossibilidade de se ter uma regra uniforme na taxação progressiva faz com que ela desregule completamente o mercado de
trabalho, tornando variáveis e aleatórias as relações entre as remunerações líquidas referentes a diferentes tipos de trabalho. Assim,
por exemplo, antes dos impostos, se um arquiteto recebe tanto pelo planejamento de uma casa quanto um cirurgião por uma operação, ou um vendedor recebe para vender dez carros tanto quanto
um fotógrafo para fazer cinqüenta retratos, a mesma relação perduraria .se a taxação fosse proporcional. Mas, se ela for progressiva, a relação pode variar bastante. Quem lida no mercado de trabalho sabe perfeitamente como essa situação dificulta tremendamente a política salarial, sendo inclusive, no fim, também um foco
de inflação.
139
A taxação progressiva altera, outrossim, substancialmente, esta relação ao tornar a remuneração líquida por um serviço dependente de outras rendas do indivíduo durante o período fiscal considerado. Se, por exemplo, dois advogados conduzirem um mesmo
tipo de causa e cobrarem honorários iguais é possível, se a taxação
for progressiva, que um deles tenha um ganho-após-impostos bem
menor que o do outro, se ele tiver outras receitas em função de sua
maior atividade.
Dessa forma, a taxação progressiva transgride o princípio universalmente aceito de 'igual paga por igual trabalho'. Um homem
que se esforçou bastante, ou que é mais solicitado por alguma razão, pode, assim, receber uma recompensa muito menor, por
qualquer esforço adicional, que outro que se manteve ocioso ou
teve m"nr , sorte. Isso também quer dizer que quanto mais valorizado
n os serviços de um homem, pelos consumidores dos
mesn1
~o menos vale a pena para esse homem empenhar-se
em fazei ....:tis.
A taxação progressiva também só pode reduzir a disposição das
pessoas de envolver-se em esforços que representem longo prazo
de investimento e altos riscos. É óbvia a discriminação da progressividade contra os empreendimentos de alto risco que somente valem a pena se, em caso de sucesso, trouxerem retornos suficientemente grandes para compensar os riscos de perda total. E é difícil
encontrar justiça nos casos, por exemplo, do ato r, do pintor, do
autor, do inventor ou do esportista profissional, que, ao colherem
em poucos anos os frutos de talvez décadas de esforço, vêem seu
sucesso financeiro reduzido drasticamente pelo imposto progressivo que não considera o período da semeadura mas apenas a época
da colheita. É curioso lembrar, neste ponto, que são justamente os
intelectuais como esses citados que muitas vezes disseminam idéias
discricionárias contra a 'burguesia capitalista', defendendo apenas
a parte da liberdade que lhes toca <1> e fazendo vistas grossas ao fato de estarem usufruindo ou tentando usufruir do pretenso 'mundo capitalista' que querem destruir.
Muitas das estórias que se ouvem nos tempos atuais sobre
'exaustão das oportunidades de investimento', nos países mais
avançados e sobre 'espaços vazios' e 'falta de capital privado nacional' em países como o Brasil são motivadas em boa parte também pela política fiscal estatizante que favorece um mercado de
capitais centralizado e fechado. Muitas iniciativas privadas provavelmente floresceriam se não prevalecesse hoje no espírito de muitos homens de responsabilidade um conceito similar ao expresso
pelo economista americano A. H. Hansen em 1956, de que estamos atualmente "numa situação na qual o 'dólar marginal do imposto' poderá sem dúvida produzir uma utilidade social muito
maior que o 'dólar marginal do envelope de pagamento' ".
A respeito do 'envelope de pagamento' e o estímulo ao trabalho, veja-se o caso da Inglaterra, em que, em 1976, o saláriodesemprego era, líquido, de 949 libras anuais, valor comparável
ao salário de alguém que, trabalhando, ganhasse 2.000 libras por
ano mas que, com todos os impostos e taxas, somente levaria para
casa menos de 1.000 libras.
Todos esses efeitos danosos da progressividade fiscal sobre o
incentivo ao trabalho, sobre os investimentos, sobre as disponibilidades de poupanças privadas, sobre o mercado de trabalho e sobre
os vários aspectos de eqüidade e justiça nas relações entre os homens não são os únicos, embora sejam os mais aparentes. Há, todavia, vários outros efeitos não menos importantes, como por
exemplo a restrição ou redução da divisão do trabalho ilustrada
por um autor inglês, quando diz que "um ~xperiente escritor taxado em 19s 6d por cada libra (i.e., 97 1/2 por cento) precisa ganhar
200 libras para poder dispor de dinheiro para pagar 5 libras para
ter uns serviços feitos em sua casa. Ele poderá decidir fazer ele
mesmo o serviço doméstico ao invés de escrever. Só será lucrativo
para ele estender a divisão do trabalho, trocando o trabalho doméstico pelo trabalho de escritor, se ele for quarenta vezes mais
produtivo na escrita que nó serviço doméstico". A taxação progressiva pode, pois, chegar às raias do absurdo quando uma pessoa que deseja dedicar-se a atividades mais produtivas tenha que
ganhar por hora algumas dezenas de vezes mais que outra, cujo
tempo valha menos por hora, para poder pagar pelos seus serviços.
O problema da taxação progressiva, como se vê, é muito mais
grave do qtfe possa parecer aos menos avisados. É provável que, se
a mé\ioria das pessoas entendesse melhor como funciona esse sistema, muita gente passaria a rejeitá-lo e apoiaria um sistema proporcional que fosse igual para todos - ou, pelo menos, para a maioria, pois não há razão por que a maioria não possa, conscientemente, dar um alívio a uma minoria economicamente fraca, na
forma de uma taxação proporcionalmente menor.
(1) H. Maksoud, "Por toda a liberdade", em VISÃO, 7-2-77, e em "Coletânea: .. ", página 142.
141
140
Democracia, taxação e demarquia
É interessante observar que, neste nosso século, pouquíssima
gente ousa sequer questionar a filosofia da taxação progressiva. O
que no máximo se discute são os valores das taxas gradativas a serem aplicadas, os objetivos iniciais a serem atingidos e outros pormenores técnicos. Para evitar qualquer tentativa de reação
político-ideológica, as proposições de novos sistemas de taxação
progressiva são introduzidas com alíquotas de valores bem pequenos, dando mesmo a impressão de serem quase insignificantes.
Jamais, porém, poderá haver moderação na progressão porque
os argumentos ~m seu apoio são, no fundo, de natureza ideológica
igualitário-coletivista e podem ser usados demagogicamente nos
regimes autoritários e nas democracias degeneradas (I) que abastardaram as propriedades da Lei verdadeira para justificar, dependendo das circunstâncias políticas, qualquer grau ct'e progressão
fiscal. A tradição histórica mostra insofismavelmente que, sob
pretextos os mais variados, a taxação progressiva começa levemente, medra nos espíritos, toma o corpo produtivo da sociedade
e, como se fosse um câncer, o consome. Um relato extraordinário
sobre discussões a respeito da tributação progressiva nos séculos
XV e XVI, transcrito por F. A. Hayek de trabalhos do historiador
e estadista florentino Francesco Guicciardini (1483-1540), mostra muito bem o verdadeiro sentido político discricionário desse
sistema de taxação: no século XV, a·república de Florença, que
por duzentos anos gozou de um regime de liberdade individual sob
o império da lei, tal como não se tinha conlrecimento desde os velhos tempos de Atenas e Roma, caiu sob o domínio da família Mediei, que adquiriu, por um apelo demagógico às massas, crescentes
poderes despóticos. Um dos instrumentos usados.para este fim foi
(I) H. Maksoud, "Por que demarquia e não apenas democracia?", em VISÃO, 10-7-78, e nesta obra.
142
a taxação progressiva. Os nobres e os mais ricos, que já vinham
sendo sujeitos à opressão pelos assedas dos governantes, passaram a receber uma taxação especial, que, embora nunca assim admitido pelos Mediei, se constituía num instrumento de destruição
com toda aparência legal, porque estes déspotas sempre reservaram para si mesmos o poder de derrub;:u arbitrariamente qualquer
um que eles quisessem. Guicciardini escreveu por volta de 1538
que os que advogavam a taxação progressiva eram para ele "suscitatori del popolo, dissipatori della libertà e di buoni governi delle
repubbliche''. Para ele, o principal perigo da progressividade ''jaz
na própria natureza da coisa, que no princípio começa pequenina,
mas, se o homem não toma muito cuidado, ela se multiplica rapidamente e atinge logo um ponto que ninguém teria sequer imaginado".
Esse relato poderia muito bem servir aos dias de hoje, Sob os títulos de 'justiça social', de 'redistribuição de renda' e com outros
slogans de fácil consumo populista, os ideais democráticos originais foram deixados de lado, pervertendo as democracias ocidentais em crescente demagogia liberticida, que só busca fins que tenham fácil apelo popular e que só resulta em governos cada vez
mais autárquicos. Isso não significa que a democracia e as instituições que lhe são peculiares sejam em si mesmas um erro, mas quer
dizer que a aplicação do método democrático <2> de tomada de decisões políticas tem sido realizada por trilhas falsas ou equivocadas. Pode-se dizer, mesmo, que, com o democratismo sem balizamento ideológico, a demagogia socialista tem imperado, causando
a degeneração dos ideais originais da democracia.
A mais importante conseqüência dessa via errônea é a que levou a democracia, com seu correspondente governo ilimitado, a
corromper o antigo e verdadeiro conceito de Lei. Passou-se a sustentar a legitimidade e ter como 'lei' tudo aquilo que fosse aprovado pelos chamados representantes das maiorias eventuais nos executivos governamentais ou nos órgãos 'legislativos', não importando se as disposições dessas 'leis' fossem discricionárias ou discriminatórias a favor ou contra determinados grupos ou certas
pessoas. Dessa forma, passou-se a aceitar como bom o sofisma de
(2) É sempre útil relembrar que democracia não é um sistema político mas sim
um método para chegar a decisões políticas e, por isso, não pode ser um fim
em si mesma, independentemente de quais forem as decisões que ela venha
produzir. Ver editorial de VISÃO de 10-7-78, também reproduzido nesta obra.
143
que o estado de direito continuava prevalecendo sempre que quaisquer disposições legais fossem dalguma forma aprovadas por uma
maioria. Esse é, em verdade, o mais terrível golpe que se aplicou
na justiça, pois é princípio fundamental que a lei deve ser igual para todos.
O que a maioria, na democracia, precisa aprender é que, para
ser justa, ela deve ser guiada em suas ações por princípios iguais
para todos e aplicáveis em número incerto de casos futuros, ou seja, por normas abstratas de conduta. O que é aplicável para a ação
individual é também verdade para a ação coletiva; exceto que uma
maioria (que é uma entidade coletiva sem qualquer identidade fixa) é menos passível de considerar o significado duradouro de suas
decisões e portanto necessita mais de princípios balizadores.
Quando, como ocorre no caso da progressividade, o 'princípio'
adotado nada mais é que um convite à discriminação e, o que é
pior, um convite para que a maioria discrimine contra uma dada
minoria, o pretenso princípio de justiça transforma-se no pretexto
para a pura arbitrariedade.
O que é necessário para resolver esse problema de eqüidade e
justiça é uma regra balizadora que - embora deixe aberta a possibilidade de a maioria taxar-se mais a si mesma para aliviar uma
minoria economicamente mais fraca - não admita a imposição,
sobre uma minoria, de qualquer carga que a maioria considere
correto aplicar. A maioria, simplesmente por ser maioria, não poderá jamais ter condições de aplicar a uma minoria uma norma
que não se aplique a ela mesma sem infringir um princípio muito
mais fundamental que o da própria democracia, que é o princípio
do estado de direito baseado na liberdade individual, onde a lei é
igual para todos. Se se pretende conseguir um sistema de taxação
que seja razoável, é preciso que todos aceitem, como questão de
princípio, que a maioria, que determina qual deve ser o valor total
da taxação, deve também estar disposta a suportá-la em seu valor
máximo. E essa mesma maioria poderá decidir suportar uma carga
adicional para poder conceder, sob forma de taxação proporcionalmente menor, algum alívio a uma minoria economicamente débil.
O grande mérito da taxação proporcional é que ela fornece
uma regra que permite chegar-se mais facilmente a um acordo entre aqueles que irão pagar mais em valores absolutos e entre aqueles que irão pagar menos em termos absolutos e que, uma vez aceita a regra, não haverá maiores problemas ao estabelecer-se uma
outra regra, separada, aplicável somente àquela minoria mais carente.
144
Nenhuma regra válida, entretanto, poderá ser estabelecida sem
levar em conta os efeitos da taxação indireta. Todos sabem - embora· não exista qualquer estudo isento e suficientemente preciso
sobre o assunto - que há a tendência de muitos impostos indiretos colocar uma carga proporcionalmente maior nas rendas menores. Este é o único argumento válido a favor da idéia da progressão nos impostos individuais, especialmente no imposto sobre a
renda. A regra geral eqüitativa que se procura certamente admitiria um determinado nível de graduação, digamos, no imposto sobre a renda, por uma boa razão, qual seja, a de compensar os efeitos da taxação indireta. Essa progressividade se aplicaria, entretanto, a apenas certos impostos individuais como parte de uma dada estrutura fiscal, de base taxativa fundamentalmente proporcional, e não poderia ser estendida sob nenhuma justificativa ao sistema fiscal como um todo. A questão é saber se é possível estabelecer uma regra geral que fosse aceita e que efetivamente evitasse as
tentações inerentes ao sistema de taxação progressiva que tendem
a levá-lo para o arbítrio.
Tal regra geral poderia ser a que determinasse uma limitação
para a taxação máxima direta, estabelecendo uma relação entre esta e a carga total de impostos. F. A. Hayek sugere que seria possível adotar como taxa máxima admissível para tributação direta o
valor da porcentagem da renda nacional que o governo capta na
forma de impostos. Assim, se o governo arrecada 300Jo da renda
nacional, na forma de impostos diretos e indiretos, 300Jo seria ovalor da taxa máxima de tributação das rendas individuais. Esta porcentagem seria também uma espécie de taxa padrão de taxação direta de rendas; que seria reduzida das rendas mais altas para as
mais baixas na mesma proporção em que essas rendas fossem, em
média, taxadas indiretamente. O 'resultado seria, primeiro, uma
taxação direta algo progressiva em função da variação da taxação
indireta e limitada pela taxa máxima admissível; e, segundo, uma
taxação total (somatório dos tributos diretos e indiretos) levemente progressiva, ou seja, quase proporcional, porém também tendo
como limite máximo a taxa padrão acrescida da taxação indireta
correspondente.
A adoção de uma regra fixa de taxação, preestabelecida como
norma geral de conduta igualmente aplicável a todos, além de reduzir o arbítrio e a discricionariedade da taxação progressiva, traz
uma importante conseqüência diretamente relacionada com a limitação do poder coercitivo do governo e com o controle pelos cidadãos da máquina governamental.
145
A aplicação de uma regra geral que conduz à tributação quase
igualmente proporcional para todos (exceto àquela minoria mais
carente já mencionada) faz com que a maioria dos cidadãos permaneça sempre atenta aos planos de ação e às características de
funcionamento, eficiência e expansão da máquina governamental,
pois estes dependerão de orçamentos que terão de ser obrigatoriamente precedidos por uma avaliação daquela porcentagem da renda nacional que o governo propõe arrecadar na forma de impostos, porcentagem que constitui a taxa padrão de tributação a ser
imposta igualmente a todos.
Conforme já foi amplamente exposto nestas páginas, na demarquia a corporação governamental administraria os recursos
materiais e de pessoal postos a sua disposição para prestar inúmeros serviços aos cidadãos em geral. Para financiar estes serviços, o
governo decidiria sobre o total de recursos a arrecadar anualmente. A determinação da parte com que cada cidadão estivesse obrigado a contribuir para esse total, entretanto, seria baseada numa
norma geral de conduta obrigatória, uniforme e igual para todos,
que só poderia ser est.abelecida pela assembléia legislativa.
A norma geral referente à tributação é, pois, na demarquia,
produzida pelo órgão legislativo que não possui nenhuma ação administrativa; o orçamento e portanto o valor da taxa a ser aplicada
aos cidadãos são, no entanto, determinados pelos órgãos da corporação governamental (executivo e câmara de deputados); o governo não pode modificar a lei e o legislativo não pode intervir nos
planos do governo que, por seu turno, é obrigado a operar no âmbito da lei.
É difícil conceber um sistema de controle não só dos gastos publicas mas também de toda a máquina estatal, por parte dos cidadãos, que seja mais saudável e que possua caracte~ísticas mais verdadeiramente democráticas e justas que este. Cada membro da assembléia legislativa que participa da elaboração da norma geral;
cada elemento do executivo que prepara e executa os programas de
ação governamental; cada deputado representante de parcela do
povo, da situação e da oposição, que aprova, debate e fiscaliza esses planos; cada um deles sabe que, não só eles, mas também seus
eleitores, terão que contribuir, para cada gasto, cada novo investimento, cada novo benefício social, ou para o crescimento ou inchaço da máquina administrativa, com base numa taxa de tributação praticamente igual para todos.
146
CIPs e SUNABs que nada resolvem
Poucos se dão conta de que o desenvolvimento da civilização e
o simultâneo surgimento da sociedade aberta se tornaram possíveis, prinéipalmente a partir do século XVII, pela substituição gradual dos atas arbitrários visando a fins concretos por regras abstraías de justa conduta iguais para todos e aplicáveis em número
desconhecido de casos futuros. Foi quando, também, o jogo regulamentado do mercado passou a tomar o lugar da ação gerada pela
voz única de comando.
A grande vantagem desta substituição foi a de fazer com que as
informações bastante dispersas sobre os negócios e afazeres dos
homens pudessem chegar a comunidades dos mais variados tamanhos sob a forma de símbolos que passaram a ser chamados de
'preços de mercado'.
A forma pela qual os preços são estabelecidos num mercado
não obstruído faz com que a produção se dirija normalmente (espontaneamente) para os canais em que ela melhor serve os desejos
manifestados no mercado pelos consumidores. Isto só não acontece, em parte, no caso de preços de monopólio, em que os monopolistas podem desviar a produção para onde lhes pareça haver mais
benefício. O monopólio, entretanto, numa sociedade livre, é a exceção e não a regra. O monopólio é o lugar-comum, a regra, quando predomina o estatismo, isto é, quando a sociedade é fechada.
Os preços são um fenômeno do mercado. Eles são gerados pelo
mecanismo do mercado e são o ponto essencial, o cerne, do chamado 'sistema de mercado'. Não existe o 'preço fora do mercado'.
Os preços não podem ser construídos sinteticamente, como pretendem os fazedores de 'políticas de preços' dos CIPs e das
SUNABs que existem por aí. Eles resultam de uma constelação de
dados resultante da ação e reação de todos os membros da sociedade atuando no mercado. O fator determinante no mercado é o
empenho de cada indivíduo em buscar satisfazer suas necessidades
147
e carências da melhor forma possível. Comprando, ou deixando
de comprar, os consumidores determinam não somente a estrutura
de preços do mercado mas também o que deve ser produzido, em
que quantidade, em qual qualidade, e por quem.
Mas, se o fenômeno do mercado trouxe imensos progressos e
satisfação para os povos, muitas pessoas e grupos, sem saber bem
por que - talvez ainda afetados por sentimentos atávicos tribais,
que modernamente são denominados 'justiça social' e 'distributivismo' -, reagem às regras não escritas do mercado livre e insistem em tirar-lhe autonomia por meio de medidas de controle de
preços pelo governo.
Ao lançar mão de tais medidas, o governo pretende ou favorecer o comprador - quando estabelece preços máximos - ou o
vendedor - quando estabelece preços mínimos. O preço máximo
é usado para tornar possível ao comprador adquirir o que ele pretende a um preço mais baixo que o do mercado livre. O preço mínimo é usado para tornar possível ao vendedor dispor de sua mercadoria ou de seus serviços a um preço mais alto que aquele do
mercado desobstruído, isto é, sem controle de preços. Quem será
favorecido e quando, dependerá das forças políticas em jogo e da
conjuntura econômica. Nos períodos de maior preocupação com a
inflação, por exemplo, e principalmente quando há eleições à vista
ou necessidade de mobilizações demagógicas para quaisquer fins,
os órgãos de controle de preços são excitados pelo governo e pelos
políticos mais voltados ao populismo ou às esquerdas. Passam então a agir em setores da agricultura, no comércio de alimentos e de
certos bens de consumo e em determinados ramos de serviços privados (hotelaria, por exemplo), estabelecendo tabelamentos compulsórios e, pois, 'preços' máximos. Verdadeiras polícias são implantadas para, à força, fazer cumprir os comandos arbitrários e
discricionários desses 'justicialistas sociais'.
Quem quer saber fica sabendo, porém, que o controle de preços não funciona; atrapalha os que querem trabalhar, desmantela
o mercado, torna crônica a inflação, mascara os índices de custo
de vida, produz conflitos, causa inquietação, mas não atinge os
objetivos de seus idealizadores de dar acesso permanente de certos
bens e serviços a certas pessoas ou de forçar a 'redistribuição' de
renda a determinados grupos.
O que realmente acontece é que, uma vez iniciado o processo de
controle de preços num dado setor de atividades, ele dificilmente
pára aí; os equívocos em cadeia e as pressões levam fatalmente ao
circuito completo do controle total de preços. Não é possível apli-
148
car os princípios do socialismo para o benefício de somente um
grupo; se isso for tentado, não se pode esperar que seja possível resistir às exigências de outros grupos que quererão ser favorecidos
pelos mesmos supostos princípios de justiça e ter suas rendas também determinadas e 'aumentadas' pelo poder coercitivo da autoridade.
Nunca é demais repetir que a experiência já demonstrou insofismavelmente que os controles de preços somente podem tornarse eficazes se as autoridades também assumirem o controle direto
da produção, decidindo e determinando, portanto, o quanto as
pessoas ou as empresas poderão produzir, comprar ou vender. Isto quer dizer, noutras palavras, que o governo precisará, para tornar eficaz o controle de preços, restringir o direito à propriedade,
limitar a liberdade de empreendimento e acabar com a liberdade
de escolha e decisão quanto ao investimento, à poupança ou ao
consumo dos recursos financeiros gerados pelos indivíduos e pelas
empresàs em suas atividades profissionais, empresariais e pelo trabalho assalariado.
Quando se aproxima de um tal nível de controle sobre os negócios dos indivíduos, o regime há muito deixou de ser o do mercado
e foi substituído por um sistema de planejamento centralizado,
também chamado de socialismo ou comunismo. Obviamente totalitário, queiram ou não queiram, gostem ou não gostem todos os
que apóiam os CIPs e as SUNABs desta terra.
149
Sindicalismo, mercado e as regras do jogo
Os filósofos britânicos do século XVIII conseguiram algo notável ao mostrar o grave erro do pensamento racionalista construtivista de períodos anteriores, que interpretava todas as instituições
político-sociais como sendo produtos de projetas deliberadamente
elaborados para atingir fins previsíveis e prefixáveis. Eles substituíram esse racionalismo construtivista ingênuo por um raciocínio
crítico e evolucionário que levava em conta as condições e limitações do uso efetivo da razão consciente no desenvolvimento do
ambiente social.
Essa nova compreensão se baseava na verdade fundamental de
que todo esforço voltado intencionalmente para 'construir' uma
ordem social se dará sempre dentro de uma ordem muito mais
~bran~ente que não é resultante de um esforço intencional, sendo,
Isto sim, o resultado de um desenvolvimento empírico, nãosistemático, espontâneo. Entretanto, a tentação existente no sentido de considerar toda ordem social como 'arranjo' ou 'organização' intencional da ação humana sempre dificultou a compreensão
de que nem toda ordem que resulta da interação dos homens é produto de um desígnio O>. Uma ordem existente, ou que se formou
independentemente de qualquer desejo humano, constitui uma ordem espontânea ou urp 'cosmos'. 'Cosmos' é a denominação advinda do grego antigo que alguns filósofos políticos modernos recomendam para distinguir a ordem espontânea da ordem artifi(i) Esta tentação advém de conceitos filosóficos da chamada 'tradição francesa'
imbuída nos racionalismos de René Descartes e Thomas Hobbes, e tendo como representantes clássicos mais conhecidos Spinoza, Voltaire, Rousseau, Saint-Simon e
o fundador do positivismo Auguste Com te.
150
cial, 'construída', 'projetada', 'sistemática' ou não-espontânea,
que chamam de 'taxis' (2).
A operação desimpedida do mercado leva à criação de uma ordem política. Essa ordem, entretanto, não tem o caráter de uma
'organização', mas sim o de uma estrutura ordenada espontânea,
um 'cosmos'. Por isso, a 'ordem do mercado' difere fundamentalmente, em muitos aspectos, do 'arranjo' ou 'organização' que
usualmente se denomina 'economia'. Daí terem Ludwig von Mises
e F. Hayek proposto, há já anos, o termo 'catalactica' (do grego
katallactein) para denominar a teoria do mercado, em substituição
à expressão 'economia' usada enganosamente para esse fim.
Hayek usa a palavra 'catalaxia' para descrever a ordem ou o 'jogo' do mercado.
A razão primordial do neologismo é para enfatizar que a 'catalaxia', ou o jogo do mercado, não deve e nem pode ser usada para
servir a uma hierarquia determinada de objetivos concretos e que,
portanto, seu desempenho não pode ser avaliado em termos de um
somatório de resultados específicos, como se faz com a economia
propriamente dita. O jogo do mercado ou 'catalaxia' representa
uma ordem espontânea, ao passo que a 'economia' se refere mais
a algo no sentido de um arranjo deliberado de recursos a serviço
de uma unidade organizacional (uma família, uma empresa ou o
governo, por exemplo) ou no sentido da estruturação de muitas
(2) Quando se trata de usar recursos limitados conhecidos, para atender aos objeti·
vos de uma dada unidade hierárquica, o método mais efetivo será o de um 'arran·
jo' ou 'organização', ou seja, um 'taxis'. Mas, quando a tarefa envolve o uso de
conhecimentos dispersos entre milhares ou milhões de indivíduos separados entre
si, e acessíveis somente a eles, o uso de forças espontâneas de ordenação ('cosmos')
será superior. Melhor dito: as pessoas que não possuem objetivos em comum, especialmente as que não se conhecem ou que não sabem das circunstâncias, umas das
outras, poderão formar uma ordem espontânea.mutuamente benéfica e pacífica se
se submeterem às mesmas normas abstraias; a formação de uma 'organização', ou
seja, um 'taxis', poderá dar-se, entretanto, se todos se submeterem à vontade concreta de alguém. Para formar um 'cosmos' comum as pessoas só precisam, .pois,
concordar com regras abstraias (normas gerais de conduta aplicáveis em número
incerto de casos futuros), enquanto que para formar uma organização elas preci·
sam ou concordar ou ser forçadas a aceitar uma hierarquia de objetivos predeterminados. Portanto, somente um 'cosmos' pode constituir uma sociedade aberta,
enquanto que uma ordem política concebida como uma organização ('taxis') será
fechada, tribal. ("The Confusion of Language in Politicai Thought", F. Hayek,
Londres, 1968.)
151
economias inter-relacionadas, tais como as chamadas 'economia
nacional' e 'economia mundial' (3l.
A ordem espontânea do mercado responde plenamente à definição de 'jogo' que se encontra nos bons dicionários e que designa
''uma competição sujeita a regras e na qual decidem a maior habilida~e, a força e a sorte". Trata-se, pois, no caso do mercado, de
um JOgo tanto de destreza como de sorte, e que serve 'para obter
de cada partícipe a máxima contribuição a um fundo comum de
onde cada qual obterá uma parte incerta'.
O mercado funciona, como em todos os jogos, de acordo com
regras que todos conhecem, iguais para todos, aplicáveis em número incerto de ocasiões futuras e que guiam as ações dos indivíduos participantes. São regras universais e abstratas. Os intentos
dos partícipes, suas perícias e graus de conhecimento e percepção
das coisas são diferentes para cada um, sendo, pois, imprevisível o
resultado, havendo, assim, normalmente, vencedores e perdedores. E já que, como em qualquer jogo, será exigido que ele seja leal
e franco e que ninguém trapaceie, não faz nenhum sentido exigir
que o resultado seja justo para quaisquer dos diferentes jogadores.
A base racional do jogo do mercado é a de que o que deve ser justo
é a co~duta dos partícipes e não o resultado. O resultado é função
da ap~1dão e pa sorte dos participantes, não podendo, pois, ser
classificado nem como justo nem como iniusto (4)
Esse sumário de conceituação filosófíca: do mer~ado é suficiente para mostrar o absurdo das interferências que procuram transformar o 'cosmos' da ordem espontânea do mercado num arranjo
('taxis') visando à chamada 'redistribuição de renda' ou 'econo-
(3) ~~;?ntram-se nos l~~ros !númeras definições da ciência da economia. Eis algumas. e o estudo da uttl!zaçao de mews escassos para a realização de determinados
fins"; :'~o estudo da maneira pela qual a humanidade realiza a tarefa de organizar
suas attVtdades de consumo e produção"; "é o estudo de como melhorar a sociedade"; o~, "é o estudo de como os homens e a sociedade decidem empregar recursos
p~od~ft~os escassos para produzir diversas mercadm:ias ao longo do tempo e
dtstnbut-las para consumo, entre diversas pessoas e grupos da sociedade. Ela analisa os custos e os benefícios da melhoria das configurações de alocação de
recursos".
(4)_ Ver editoriais "Sacrifício da liberdade a pretexto de uma justiça social", em VISA O, 23:)-78, e em "Idéias ... ", página 62, e "A opinião e a lei na demarquia",
em VISAO, 20-3-78, e nesta obra.
152
mia previdenciária' ou 'do bem-estar social', lançando mão de um
conceito demagógico e intelectualmente espúrio de justiça chamado 'justiça social' ou 'justiça distributiva'.
Mas, quando se trata das interferências no mercado, nem sempre se menciona a coerção sindicalista que é a mais poderosa força
de pressão que se desenvolveu nas sociedades ocidentais desde o
começo da era industrial. Nas análises sociológicas sobre seu papel, os sindicatos são vistos tão-somente como simples organizações preocupadas com a melhoria dos padrões de vida dos que se
encontram em pior situação. São comuns os enunciados que insistem que os níveis.salariais no mundo atual devem ser determinados muito mais por considerações 'sociais' de eqüidade e 'justiça'
que pelas forças de oferta e demanda do mercado. Nos textos típi.cos de economia, sugere-se que, na ausência de reivindicação coletiva, uma parte da remuneração do trabalho é, ou pode ser, transferida para remunerar outros fatores de produção; e que, pela
atuação coletiva, o trabalho adquirirá uma parte da remuneração
normal de algum outro fator de produção, graças ao maior 'poder
de barganha' que a ação combinada traz ao fator trabalho. Esse
'poder de barganha', entretanto, só faz sentido aos apologistas do
chamado 'sindicalismo livre' se o sindicato dispuser do poder soberano e monopolista da greve. Poder que será sempre usado, 'como arma escondida debaixo da mesa do jogo', não só para as 'negociações' salariais mas também para conseguir toda uma série de
reivindicações conflitantes e contraditórias, como 'nãointerferência nas manifestações coletivas', 'nenhum desemprego',
'estabilidade assegurada', 'maiores auxílios previdenciários', 'casa
própria para todos', 'mais investimentos', 'baixa nos preços' e,
como não podia deixar de ser, 'redução dos lucros'. O que o poder
descontrolado da força sindical monopolista tem produzido de
mal para o mercado e, acima de tudo, para os próprios trabalhadores soaria como absurdo e formidável demais para ser acreditado por uma opinião pública há tanto tempo colocada sob a ilusão
da chamada 'justiça social' e paralisada pelo mito da 'desvantagem reivindicatória' do trabalho. A verdade, porém, é que os únicos beneficiários dessa 'nova ordem' têm sido os políticos aproveitadores e as lideranças sindicais, para quem a pobreza constitui a
mais rendosa situação.
Quando as pressões para que haja interferência no mercado
abrangerem todos os preços, salários e juros, o sistema de mercado já terá sido substituído pelo socialismo.
Nesta ocasião, o mercado, o intercâmbio pessoal, a proprieda-
153
de privada, a capacidade empreendedora, a iniciativa privada e,
pois, toda liberdade individual terão virtualmente desaparecido.
Não serão mais os consumidores, mas o governo, quem decidirá o
que deverá ser produzido e em que quantidade e qualidade. Ostrabalhadores trabalharão em fábricas e obras que lhes forem determinadas pelas autoridades; seus salários serão determinados por
decretos governamentais. O governo será supremo, ilimitado e ilimitável em seus poderes e determinará a renda e o padrão de vida
de cada cidadão.
Num regime socialista como o de Hitler <5>, os empresários serão reduzidos a gerentes ou dirigentes de fábricas (ou Betriebsjührer, como diziam os nazistas) e obedecerão a ordens de um conselho central de gestão da produção. No regime socialista do tipo
russo, o 'partido' será o órgão supremo. Num regime socialista,
que o futuro não distante poderá trazer às desregradas democracias ocidentais, os homens serão comandados por um governo
controlado pelo que será a mais poderosa e ilimitada ação totalitária até hoje desenvolvida no seio da huJllanidade: o monopólio
sindical trabalhista que cada vez mais se coloca acima e além das
regras do jogo.
(5) Muita gente não sabe que o regime nazista era um regime socialista.
154
Perigos e inutilidade
do sindicalismo sem lei
Estamos há tanto tempo sendo impregnados por certas idéias a
respeito da chamada 'justiça social' que já quase não conseguimos
notar o absurdo, a violência e, principalmente, a futilidade contidos no mais importante fenômeno da vida pública moderna que é
a ascensão crescente das massas, via manipulação sindicalista, ao
total poderio social. Aliás, aqueles que vêem os perigos, e sabem
da inutilidade do sindicalismo desregrado, ou se calam para não
perder o filão político, ou se fazem confusos e não enxergam alternativa, ou então não têm coragem de enfrentar a eventual ira dos
que exploram ideologicamente esse filão.
O que ocorre, sem que em geral o notemos com preocupação, é
o esforço no sentido da dominação completa da vida pública pelas
massas, em todos os âmbitos - político, intelectual, moral, econômico e religioso. Como as massas, por definição, conforme escreveu José Ortega y Gasset em sua obra 'A Rebelião das Massas',
"não devem nem podem dirigir sua própria existência e muito me. nos dirigir a sociedade em geral", o que se passa hoje com as nações é nada menos que uma gravíssima crise, onde os fatos de real
destaque são os movimentos sindicais (VISÃO, 13-11-78) dirigidos
por uns poucos que mobilizam forças políticas, físicas e econômicas tão poderosas que equivalem a ditaduras tão fechadas quanto
qualquer regime totalitário. São movimentos que se caracterizam
geralmente pela busca, por meio da greve ou sua ameaça, de aumentos salariais e do controle de certas condições de trabalho.
Os sindicatos surgiram no início da 'era industrial' porque os
trabalhadores passaram a aceitar a idéia de alguns intelectuais de
que, como indivíduos, suas chances seriam quase nulas numa sociedade livre e competitiva, por lhes faltarem, diziam os intelectuais, os dons necessários para conseguir dar-se bem na vida por
conta própria. Aceitando essa idéia, eles instintivamente passaram
a ser parte de massas coesas e cada vez mais fortes até se tornarem
155
virtualmente invencíveis em determinadas condições na tecnologicamente interdependente economia moderna.
Os sindicatos são, hoje, o grupo dominante da sociedade. Seus
valores e modos de pensar e agir caracterizam o ambiente político
atual da mesma forma como os valores e o pensamento burguês
determinaram a cultura política no século XIX. Mas, ao contrário
da burguesia do século XIX, que entendeu e valorizou a liberdade
individual Gá que seus membros eram conscientes de que podiam
fazer bom uso dela), a massa do século XX, representada pelo sindicato trabalhista, não possui essa compreensão e apreço, pois
seus membros, por definição, são pessoas que foram profundamente conscientizadas de que são incapazes de fazer uso da liberdade individual e também de que seu interesse material depende da
negação dessa liberdade (IJ.
Os melhores caldos de cultura para fermentação desses movimentos de força, contrários à liberdade individual e ao mercado
espontâneo de trabalho, são as épocas eleitorais ou de instabilidade político-eleitoral e, principalmente, as fases inflacionárias da
vida econômica nacional.
Uma das colocações mais freqüentes para justificar a ação sindical ilimitada é a de que se trata de movimentos 'representativos'
da maioria 'menos favorecida' do povo e que, portanto, se enquadra perfeitamente no espírito de uma reclamada 'democracia'. O
que se observa, entretanto, normalmente, são decisões de deflagração grevista de apenas uns poucos líderes ou de uma minoria
insignificante que dificilmente poderia ser considerada representativa de uma maioria esclarecida. Acontece, também, que o conceito original (e o único verdadeiro) da democracia continha uma generosa dose de entusiasmo pela liberdade individual, pela qual os
sindicatos não se interessam, e de respeito pela lei, que para os sindicatos simplesmente inexiste quando assim decide a 'maioria' sindicalizada.
Quando adotava aqueles princípios, o indivíduo obrigava-se a
manter uma severa disciplina sobre si próprio. Os limites de sua liberdade faziam fronteira com a liberdade do outro indivíduo. A
responsabilidade imperava por respeito às normas universais de
justa conduta, isto é, à lei. As minorias podiam, assim, viver e fazer coisas, sob o amparo do princípio da liberdade individual e do
(1) Ver citação em "A busca de uma ideologia", H. Maksoud, em VISÃO, 14-10-
estado de direito. Nos tempos em que predominaram esses princípios, a democracia e a liberdade individual conviviam como se fossem sinônimos, sob o espírito dominante de que a vida em comum
estaria sempre subordinada à lei <2>.
Hoje, entretanto, assistimos ao triunfo de uma situação (que
Ortega y Gasset chamou, em 1929, de "hiperdemocracia") em que
a massa atua como força bruta direta, sem lei e sem princípios, dirigida por quem "não quer dar razões e nem quer ter razão" mas
tão-somente quer impor suas aspirações e seus desejos pela ilimitada e_ ilimitável ação coercitiva da greve ou de sua constante ameaça. E o que chamam, paradoxalmente, de 'liberdade sindical', que
se caracteriza, entretanto, pela ausência de liberdade individual,
pela coerção, pela coação, pelo monopólio do poder e pelo desprezo à lei.
É um momento de grandes incertezas. Nem os indivíduos nem
os governos sabem o que fazer. Ou se sabem não querem ou não se
atrevem a fazer. A perplexidade predomina porque por muito
tempo nos estão ensinando noções e infundindo mitos sobre a
'longa e amarga luta dos trabalhadores' pela justiça econômica.
As lendas mais persistentes são aquelas sobre a opressão e o empobrecimento dos trabalhadores no século passado, antes de eles se
organizarem em sindicatos para ganhar a chamada 'igualdade de
poder de negociação'. Essas lendas se baseiam em antigas interpretações (contestadas há décadas por pesquisas baseadas em evidências históricas, porém ainda em voga popular) de que a industrialização deprimiu ao invés de elevar os padrões gerais de vida dos povos.
Essa 'igualdade' de poder de barganha foi conseguida e o que
se vê nos encontros de 'negociação' é que um dos lados ou já está
com o revólver apontado (com a greve deflagrada) ou está com a
arma, pronta para engatilhar, debaixo da mesa.
A longa pregação usando a pobreza relativa e a 'injustiça da espoliação das massas menos favorecidas' conduziu não só ao fortalecimento de um sindicalismo espúrio mas também deu asas ao racionalismo construtivista dos economistas, cientistas sociais e políticos que só conseguem ver na ação direta do Estado os instrumen(2) A aemocracia nunca foi mais que um método político de tomada de decisão. A
liberdade individual, entretanto, representava uma postura ideológica que caracterizava filosoficamente os regimes que utilizavam o método democrático para suas
decisges (ver H. Maksoud, "Por que demarquia e não apenas democracia?", em
VISA O, 10-7-78), e nesta obra.
78, e em "Demarquia ... ", página 135.
157
156
tos para realização dos ideais coletivistas contemporâneos, comumente denominados 'justiça social'. Isto significa, na prática, que
os interesses da mão-de-obra organizada serão supostamente protegidos a qualquer custo, e os direitos do indivíduo e a propriedade particular serão sacrificados, enquanto que o poder do Estado
será realçado em todos os aspectos, exceto naqueles que possam
interferir com o trabalhismo sindicalizado.
Assim, toda uma filosofia social relacionada com o problema
da pobreza relativa se baseia numa cega e dogmática crendice na
eficácia de um sistema de fixação salarial pelo Estado e/ ou pela
ameaça grevista dos sindicatos. Por isso, não se consegue mais
atentar para certas verdades que alguns poucos homens estudiosos
e politicamente independentes têm procurado transmitir-nos. Um
destes é W. H. Hutt (3), que vem tentando mostrar enfaticamente,
desde 1930, que os sindicatos, desde o início da era industrial, lançando mão de crescente poder de paralisação grevista, têm buscado obter vantagens particulares para seus membros por métodos
que, no final das contas: 1) têm prejudicado os trabalhadores em
outras ocupações, sindicalizados ou não, e os trabalhadores nãosindicalizados nas mesmas ocupações; 2) têm reduzido os níveis
gerais médios dos salários; 3) têm prejudicado os investidores que,
quando investiram (quando decidiram manter, substituir ou aumentar os recursos usados em suas atividades), deixaram eventualmente de levar em consideração as possibilidades de greves; 4) têm
prejudicado os consumidores; 5) têm produzido uma distribuição
de rendas muito mais desigual e errática que a que seria determinada no mercado livre; 6) têm criado pobreza evitável; 7) têm provocado pioras nas relações industriais e desestímulo ao esforço individual; 8) têm provocado muito menor grau de segurança e mais
baixo nível de oportunidades de emprego que os que se teria com o
mercado sem restrições; e 9) têm sido responsáveis pelo expediente
político da inflação, usado pelos governos para manter o pleno
emprego ao mesmo tempo em que (também por razões políticas)
aquiescem com a coerção grevista sindical para forçar a subida salarial.
Por mais incríveis que possam soar essas conclusões, elas permitirão, pelo menos, questionar o que se pensa ser tabu; e, queira
Deus, farão os homens responsáveis pensar no que aparenta ser
impensável por parecer 'politicamente impossível'.
Não é possível continuar com a cegueira, deixando de enxergar
que numa sociedade aberta não há sucedâneo para o mercado na
determinação de todos os preços, sejam eles preços do trabalho,
preços dos serviços dos patrimônios e dos empreendedores, ou
preços das mercadorias e matérias-primas. Não é possível continuar aceitando uma arma de guerra - a greve - como substituto
da disciplina social e das pressões coordenadoras espontâneas do
mercado competitivo.
(3) W. H. Hutt, "The Theory of Col!ective Bargaining, 1930-1975", London,
1975.
158
159
MILAGRE BRASILEIRO - I
Ninguém sabia o que estava acontecendo
Num país onde se glorifica o Plano e onde se espera tudo da
ação do Governo, não é de se estranhar que, a cada ano, quando
se 'contabilizam' os resultados, normalmente diferentes daqueles
previstos na planificação, surjam análises justificando as falhas,
críticas a enfoques técnicos específicos e, até, a autocrítica por
parte dos responsáveis pelo planejamento. O que não falta nessas
ocasiões são argumentos sutis e sofismas que procuram explicar o
inexplicável.
Na terceira semana de dezembro de 1978, foi apresentado pelo
ministro responsável pela Secretaria de Planejamento (Seplan) um
"balanço preliminar da execução do II PND, até o corrente ano".
De acordo com o chefe do órgão central de planejamento doBrasil, "para se avaliar o PND é necessário distinguir o que é essencial
no Plano daquilo que nele não é essencial". Duas coisas "essenciais", disse o relatório da Seplan, medem com um "saldo global
favorável" a 'performance' do II Plano Nacional de Desenvolvimento: a primeira foi o avanço "na consolidação de um modelo
neocapitalista", que permitiu "mostrar ser possível desenvolver o
Brasil através de uma economia de mercado (o grifo é meu, com as
entranhas em rebuliço) capaz de dar papel de destaque à empresa
privada nacional, evitando (o grifo também é meu) os perigos da
desnacionalização e da estatização; e que revelasse grande preocupação social, com atenção crescente ao problema da distribuição de
renda; a segunda coisa "essencial" foi o acerto da "estratégia de desenvolvimento para o período 1975-79" ... "com as suas prioridades básicas" ... tendo como "ponto fundamental o ajustamento à
crise do petróleo", que fez com que o governo adotasse uma "opção básica'' que consistiu em ''uma desaceleração gradual da economia, em lugar de uma queda abrupta, ou de uma recessão".
Com referência a esses aspectos "essenciais" do Plano, não é
preciso dizer, por enquanto, mais do que o seguinte: o tal "modelo
160
neocapitalista" não mostrou nenhum sinal de real apreço pelo mercado, pois foi mais estatocrático e estatizante que nunca; introduziu
o controle de preços em setores antes livres, embora tenha dado 'liberdade vigiada' a outros; aplicou amplamente o casuísmo fiscal
positivista; intensificou o monopólio estatal no mercado de capitais;
usou a recomendação marxista do progressivismo fiscal (I) para fazer a demagógica 'justiça distributivista'; tornou a inflação uma
doença multivirulenta, de dificílimo controle; inventou terríveis instrumentos de intervenção nos negócios privados, como por exemplo
a 'teoria do tripé', que desnacionalizou e estatizou muito mais do
que propriamente ajudou a empresa privada nacional; estiolou, pelo centralismo e pela chamada 'desaceleração', a atitude dos indivíduos no sentido de empreender mais, produzir mais, criar mais e
aprender mais; e deixou-nos mais vulneráveis que antes às crises e
sucessos dos países com quem negociamos.
O que o atual balanço do PND considera "não essencial" é "a
parte relativa a quantificações", pois "a metodologia adotada, de
propósito, relegou a um plano secundário os aspectos de quantificações". E "quis-se, deliberadamente, evitar ficasse o Governo
preso a quaisquer projeções quantitativas, e isso foi dito desde o
primeiro momento", acentua, em sua avaliação, o ministro r~s­
ponsável pelo Plano. E continua: "Diante, principalmente, da_I~­
certeza mundial, a coisa mais importante a preservar era a flexibilidade, para poder ser fiel ao essencial do Plano, ou seja, o regime
neocapitalista e a estratégia de ajustamento à crise do petróleo, para poder alcançar o máximo em termos de resultados globais, sem
criar uma rigidez em coisas não essenciais''.
Neste ponto e tempo é curioso e útil verificar-se por que foram
transformadas em "não essenciais" as quantificações nos Planos
que, anteriormente, eram consideradas fundamentais,
'essenciais', pelos mesmos homens, pelos mesmos planejadores
que hoje repudiam as "camisas-de-força numerológicas". (Deveriam aprender a repudiar o próprio planejamento econômico centralizado, que é, isto sim, nada mais que uma camisa-de-força
contendo toda liberdade.)
Em princípios de 1967, o governo fez circular um Plano Decenal de Desenvolvimento Económico-Social (2), no qual o cresci(1) Ver "Anticomunismo marxista", em VISÃO, 28-11-77, ou em "Idéias... ",
H. Maksoud, Editora Visão, março, 1978, página 55.
(2) Este plano foi publicado em versão preliminar e restrita, pelo então
IPEA/Ministério do Planejamento e Coordenação. Circulou até aproximadamente fins de 1969, quando 'desapareceu' misteriosamente...
161
menta do produto real previsto para o período de 1967 a 1976 foi
'calculado' em taxas anuais que variavam desde 5°7o até 60Jo no fim
do decênio considerado. Para seus autores (dentre eles o atual ministro do Plano), seria uma temeridade crescer em ritmo mais
acentuado (3)_ Para esses economistas, um ritmo de desenvolvimento mais intenso seria inseguro e cheio de "problemas cumulativos". Consignavam-se, assim, sérias preocupações em relação
aos riscos do desenvolvimento acelerado, principalmente devido
ao receio de que a aceleração do crescimento imporia a expansão
dos investimentos públicos, em particular, e da oferta monetária,
em geral, o que agravaria o processo inflacionário e as tensões sociais decorrentes. Essa atitude negativa em relação ao desenvolvimento era estimulada também pelos temores de que a intensificação do crescimento poderia acentuar o desequilíbrio da balança
comercial com o aumento das importações de bens e serviços, e pelas dúvidas, geralmente mal explicitadas, quanto ao impacto da
aceleração do crescimento no chamado processo de distribuição de
renda, que agravaria sua concentração em detrimento dos programas considerados de 'cunho social' (4)_
Nesse contexto de preocupações os planejadores se viam também embaraçados em liames econométricos relacionados com a
proporção de poupança de capital físico que seria necessário acumular para explicar ou prever determinados níveis de crescimento.
(Esses técnicos geralmente utilizam em suas previsões certos modelos econômicos, bastante difundidos, do tipo Harrod-Dommar,
em que a taxa de crescimento da economia resultaria, basicamente, da divisão da taxa agregada de poupança pela relação
capital-produto, que é o acréscimo de capital necessário para gerar uma unidade adicional de produto. Já que, por falta de maior
conhecimento e experiência, a relação capital-produto tem sido
(3) Note-se que as taxas efetivamente ocorridas nesse decênio foram:
4,8% (1967), 11,2% (1968), 10,0% (1969), 8,8% (1970), 13,3% (1971), 11,7%
(1972), 14,0% (1973), 9,8% (1974), 5,6% (1975) e 9,0% (1976). A média é de
9,8%.
(4) Num artigo em VISÃO, 10-10-69, pág. 11, o professor Octavio Gouvêa de
Bu/hões escreveu que " ... o desenvolvimento de um país requer trabalho e muita renúncia. É impossível atender, simultaneamente, ao consumo e aos investimentos. Entretanto, a dosagem pode ser menos drástica, em proveito de um
ambiente social mais saudável. O ritmo de progresso será menor, mas provavelmente mais seguro e isento de problemas cumulativos. Em lugar de uma taxa de crescimento de 9%, podemos nos satisfazer com 7%, ou menos".
162
tomada pelos planejadores como um valor constante, a opção para elevar a taxa de crescimento se resumia em aumentar a taxa
agregada de poupança.) Por isso, sempre foi difícil para os 'planejactares do desenvolvimento econômico' imaginar, principalmente
numa sociedade supostamente aberta, taxas de crescimento de
10% ou 15% do produto nacional, pois as taxas de poupança teriam que ser fantasticamente altas, de 25% ou 37,5%, respectivamente, supondo uma relação capital-produto igual a 2,5.
Acontece, entretanto, que, além dessa camisa-de-força econométrica da relação capital-produto, modernamente se admite (S)
como indispensável, para suprir as insuficiências da acumulação
de capital físico convencional na formação das taxas de crescimento, computar o papel dos investimentos capazes de provocar modificações qualitativas nos fatores de produção: investimentos em
capital humano; investimentos em tecnologia; e o progresso e generalização dos conhecimentos. Tais investimentos, entre outros,
são fontes não convencionais de crescimento, o que indica que o
desenvolvimento, na sua concepção moderna, é, essencialmente,
um processo de realização de ganhos de produtividade. O desenvolvimento e a utilização das fontes não convencionais de crescimento permitem almejar taxas de crescimento elevadas, a despeito
de eventuais limitações nas disponibilidades de capital físico. Elas
representam, por isso, importante fator para atenuar as desigualdades de renda pessoal sem prejuízo dos objetivos de crescimento,
por meio da política educacional, de saúde, de nutrição, de migração e de desenvolvimento tecnológico; elas constituem, digamos,
um elo de conciliação entre os chamados objetivos 'econômicos' e
'sociais'. A contínua e plena utilização dos fatores não convencionais de desenvolvimento, entretanto, exige um clima de liberdade,
de iniciativa, onde o mercado funcione sem quaisquer restrições
'planísticas'.
Ainda em 1967, o Ministério do Planejamento e Coordenação
produziu um documento-plano para o triênio 1968-70, intitulado
"O Desafio Brasileiro e o Programa Estratégico", que, embora fizesse a ressalva de que o índice proposto era apenas um ponto de
referência, propunha um crescimento de 6% ao ano para o produto no período. Em 1968, porém, o crescimento já era de 11,2%,
foi de 10% em 1969 e de 8,8% em 1970, surpreendendo, obvia(5) Ver "O remédio saudável do desenvolvimento", H. Maksoud, em VISÃO,
27-10-76, também publicado na "Coletânea de Editoriais", Editora Visão,
março, 1977, página 124.
163
mente, os planejadores estatais. A taxa de inflação, que em 1964
fora de 91,90Jo, havia baixado para 25,4% em 1968 e 19,2% em
1970.
A central de planejamento continuou, entretanto, cheia de dúvidas quanto às possibilidades brasileiras de crescimento acelerado, pois, no documento-plano "Metas e Bases para a Ação do Governo", de setembro de 1970, projetava um crescimento econômico para o período 1971-73 a uma taxa que "alcançasse, no mínimo, 7% a 9% ao ano e evoluísse para 10%"' errando grosseiramente mais uma vez ante as taxas ocorridas de 13,3% (1971),
· 11,7% (1972) e 14,0% (1973) (6), que foram as taxas de crescimento do chamado 'milagre brasileiro'. A taxa de inflação em 1973
havia baixado para 15,7%.
A comparação entre as estimativas de crescimento com
base nesses planos governamentais e as taxas efetivamente
verificadas no Brasil, no período de 1968 a 1973, indica a grande
divergência entre o racionalismo intervencionista e o jogo do mercado, ou seja, entre as forças espontâne~s da iniciativa privada e
as 'camisas-de-força' do planejamento econômico. Essa divergência entre os planos e a realidade é a única coisa que justifica o termo 'milagre', pois o que ocorreu naquele período aconteceu sem
ninguém saber que estava acontecendo.
O fato em si de não se ter sabido o que se estava passando não
deve ser motivo de desespero ou vergonha. O erro está na presunção de que o homem possa 'organizar' sua sorte por meio de cons. truções racionalistas como aquelas que todo sistema de planejamento estatal engloba. O filósofo italiano Giovanni Battista Vico
(1668-1744) já havia dito que "o homem se tornou tudo que é
sem compreender o que aconteceu". Esse pensamento significa
muito, pois se refere à descoberta de um método que permite ao
ser humano superar as limitações do conhecimento individual. A
civilização moderna possibilitou ao homem poderes inimagináveis
principalmente porque, sem compreender o que se passava, ele desenvolveu métodos de utilização de mais conhecimentos e recursos
que os que poderiam estar contidos em qualquer mente individual.
Todas ~s instituições voltadas a este tipo de possibilidade devem
se~ cultivadas, porque elas se basearão na liberdade e na esponta·
neidade e constituirão uma sociedade aberta.
(6) A aplicação do índice de 2,5 da relação capital-produto daria um valor
de 35% para a taxa de acumulação de capital físico em 1973, número que espantaria qualquer economista-planejador que simplesmente usasse, como sói
acontecer, um modelo tipo Harrod-Dommar. Igualmente ter-se-iam 29,25%
(1972) e 33,25% (1971). Os dados correspondentes da Fundação Getúlio Vargas são 22,8% (1971), 22,9% (1972) e 23,0% (1973).
164
165
MILAGRE BRASILEIRO - II
Não é possível fixar o rumo nem dosar o
ritmo do progresso desejável
Enquanto o 'milagre brasileiro' vinha acontecendo, era elaborado o I PND, que foi lançado em novembro de 1971 para abranger o período de 1972 a 1974. Objetivava, entre outras coisas,
"elevar a economia, em 1974, às dimensões resultantes de um crescimento anual do produto interno bruto entre 80Jo e lOOJo". Os números efetivamente ocorridos são os já conhecidos de 11,70Jo
(1972) e 14,00Jo (1973); e de 9,80Jo em 1974. A inflaçã? ex_n 1974 foi
de mais do dobro da observada em 1973 (15,70Jo), atmgmdo ovalor de 34,50Jo.
Até aqui, nem o natimorto "Plano Decenal", apresentado em
1967, nem o "Programa Estratégico" para o triênio 1968-70,
nem o "Metas e Bases" para o período 1971-73 e nem o I PND
para o período de 1972 a 1974 conseguiu 'projetar' taxas de crescimento que sequer se aproximassem das que realmente ocorre~am
ou, mesmo, das que vinham acontecendo durante suas respectivas
elaborações. Um observador irônico poderia dizer que, num país,
não se consegue quantificar o andamento das vendas ou da produção nacional da mesma forma como se pode fazer num só escritório ou numa só fábrica ... Não é possível, por isso mesmo, diria o
observador, planejar toda a vida nacional como se faz com as atividades de uma fábrica.
As experiências anteriores, entretanto, não serviram de lição,
Quando foi lançado o "II PND", apresentado em setembro de
1974, seus autores mantiveram prognósticos quantitativos das metas do desenvolvimento para o período 1975-79. Como até então
vinham subestimando o ritmo de crescimento, resolveram adotar
uma taxa anual de 100Jo, próxima à média observada nos últimos
166
anos (Il. O país, entretanto, viu-se a braços com outra realidade <2>,
que situou em 5,60Jo a taxa de crescimento de 1975, em 9,00Jo a de
1976, em 4,70Jo a de 1977 e uma estimativa de 50Jo a 60Jo para 1978.
E as taxas de inflação foram de 29,40Jo (1975), 46,30Jo (1976),
38,80Jo (1977) e cerca de 41,00Jo em 1978.
.
Quaisquer que tenham sido os fatores do expressivo cresc1men~
to da economia brasileira nos anos de 1968 a 1974 (que, como f01
visto, aconteceu sem que os planejadores do governo soubessem o
que se estava passando), um fato muito importante a observar é
que não ocorreram, em intensidade digna de nota, os tais 'problemas cumulativos no ambiente social', ligados ao ritmo de crescimento, que eram temidos pela maioria dos homens que 'planejaram' nossa vida político-econômica nestes últimos qumze anos (3)_
Ocorreram sérios problemas na área estritamente política, onde o
clima foi de séria repressão. Decorreram daí crescentes dificuldades para o pleno exercício da liberdade individual e cresceu, também, em conseqüência, a onda estatizante e centralizadora da economia e da vida política. Mas ninguém pode dizer que havia proc
blemas generalizados no ambiente social por causa do ritmo acelerado de crescimento. Pelo contrário: olhando apenas sob esse ângulo, houve sempre novas e crescentes oportunidades de trabalho
e o clima era de progresso.
A queda do ritmo de crescimento a partir de 1975 (ocorrida por
efeitos da conjuntura internacional, por causa do centralismo econômico e também por força do 'desaquecimento' estimulado pelo
governo receoso da inflação e do 'déficit' no balanço de pagamentos i' e a chamada 'reabertura' trouxeram à tona partes dum 'iceberg' que estavam submersas durante o período do 'milagre', produzindo grande agitação política e pondo a nu toda a confusão filosófica e de linguagem que medra no pensamento político nacional.
O que tem ficado patente e cada vez mais claro para todos os
observadores atentos é a crescente insatisfação em todo o 'ambiente social', devido ao baixo ritmo de desenvolvimento, que traz
consigo diversas moléstias ao corpo nacional, destacando-se dentre elas a doença da inflação que se torna cada vez mais complexa,
(1) A taxa média do período 1968-74 foi de cerca de 11,3%, com os números
revisados pela FG V, e de 10,0%, com os números provisórios anteriormente
disponíveis.
(2) Convém lembrar que o preço do petróleo foi multiplicado em 1973, antes
portanto da apresentação do II PND.
(3) Ver "Milagre Brasileiro - I, Ninguém sabia o que estava acontecendo", H.
Maksoud, em VISÃO, 22-1-79, e nesta obra.
167
com o enfraquecimento e a vulnerabilidade do corpo afetado. Já
ficou provado nos vários anos do 'milagre' que o país pode crescer
a elevadas taxas sem problemas anormais sérios. O crescimento
acelerado é, talvez, a única solução real para os problemas brasileiros, inclusive o da inflação.
É difícil aceitar que possa haver uma contenção duradoura da
inflação apenas por meio de medidas governamentais 'técnicas'
(como, por exemplo, as várias intervenções monetaristas, cambiais e, mesmo, as salariais) e nem que a virulência inflacionária
possa ser debelada naturalmente pela ocorrência, por exemplo, de
condições climáticas que favoreçam a agricultura. A inflação, em
última análise, é efeito e não causa do subdesenvolvimento. Ela
adquire aparência de causa devido à sua virulência, isto é, por
transformar-se num fenômeno vicioso. Os gráficos, referentes a
quase 20 anos de observação no Brasil e nos Estados Unidos, mostram clara e insofismavelmente a tendência de queda do ritmo de
inflação com o aumento do índice de crescimento.
Mas, então, se o subdesenvolvimento não é bom para a nação e
se o baixo ritmo de progresso econômico acumula coisas ruins para os homens, por que planejar crescer menos?
Talvez seja porque, olhado por um certo prisma, o progresso
esteja ocorrendo rapidamente demais para a humanidade e os homens o queiram mais lento para poder digeri-lo melhor.
Acontece, porém, que, quando o progresso estagna, a civilização declina. E, mesmo que fosse vantajoso deter o crescimento
econômic'o, o homem não conseguiria graduá-lo, pois o progresso
não pode ser dosado. Ele poderá ser estimulado ou refreado por
medidas governamentais, mas ninguém conseguirá jamais saber
com razoável precisão os efeitos dessas medidas.
Pretender ou pretextar saber o rumo ou a medida do progresso
desejável para uma nação é, portanto, um ato extremo de soberba.
Ou, então, de pura mistificação.
O que o homem pode e deve fazer é criar condições favoráveis
ao desenvolvimento de instituições onde frutifiquem o ideal da liberdade individual e a espontaneidade fundada na tradição cultural e onde todos estejam subordinados às mesmas normas gerais
de justa conduta <4l. O mercado livre, então, predominará no seio
dessas instituições e, graças a isso, haverá mais chances de progresso, pois haverá mais probabilidade de ocorrerem coisas novas
melhores.
(4) "Demarquia:, a reforma polftica que buscamos",
em VISÃO, 6-3-78, e em "Demarquia... ",página 33.
168
H.
Maksoud,
BRASIL:
CRESCIMENTO DO PIB "VERSUS" INFLAÇAO
%
,.
1~
6
20
'\
,
4
~--
<
'-~-- ... ,lnflaçAo
/r--.. ~
11
/ Creaclmento
\.
4
1\
2
1
/
-... 1--
10
v
j'r-
r- ...v
"'
...
'
\.. /
L
60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77
EUA:
CRESCIMENTO DO PNB "VERSUS" INFLAÇAO
%
10
\
I
I
8
6
I
4
I
2
.
r- ..1-- 1-
-
o 60-6'1 6~· 63
%
6
,
.
/ r. . "
..... '\
\
I
·,
1--
1/
I
l
'
I
Crescimento \
t-
vI\
J
I
I K
I
I
I
o
-2
I
"'
I
64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77
I !\l/v ~
4
2
,
\,
I
lnflaçAo
i
\
I
I
'
1-
169
MILAGRE BRASILEIRO - III
Será que não sabem o que fazem?
Para um país como o Brasil, o crescimento econômico acelerado corresponde, antes de tudo, à necessidade de superar situações
decorrentes da pobreza geral da nação, estendendo a parcelas cada
vez maiores da população as oportunidades de trabalho que permitam satisfazer as carências básicas de alimentação, vestuário,
saúde e moradia. Mesmo que ultrapassada essa etapa, como ocorre em certas áreas do centro-sul do país, porém, o objetivo do crescimento continuará sendo perseguido para satisfazer aspirações
crescentes geradas pelas próprias etapas anteriores.
Não existem níveis de riqueza e bem-estar que, uma vez alcançados, justifiquem planificar a desaceleração do crescimento Ol. A
evolução da economia funciona como a evolução da cultura: ela
não pode permanecer estacionária e, quando estagna, logo entra
em declínio.
A abdicação, geralmente forçada pelo dirigismo estatal, mesmo que por curtos períodos, dos objetivos de crescimento e da simultânea incorporação de crescentes camadas da população à riqueza (como produtores, investidores e consumidores), via um
mercado interno amplo com empresas privadas nacionais vigorosas, concorre para criar e agravar insatisfações, abalar tradições
morais, além de servir de caldo de cultura para manifestações políticas espúrias ou equivocadas que só servem para confundir a opinião pública.
De outro lado, entretanto, o desenvolvimento auto-sustentado
e acelerado somente terá chance de ocorrer se for mantido por um
sistema político que assegure a liberdade individual. Esta é uma
condição sine qua non para debelar a pobreza, para elevar o nível
(1) Ver "Milagre Brasileiro -
II, Não é possível fixar o rumo nem dosar o
ritmo do progresso desejável", H. Maksoud, em VISÃO, 5-2-79, e nesta obra.
170
geral de bem-estar e de riqueza, para obter mais segurança pessoal, para melhorar a saúde, para possibilitar crescente igualdade
de oportunidades, para evoluir na educação e, portanto, para atingir maior nível cultural e, pois, mais civilização.
O desenvolvimento constitui uma tarefa que envolve o uso de
uma multiplicidade de conhecimentos que jamais poderiam ser
contidos em qualquer mente. Esses conhecimentos e os fatos concretos que os acompanham estão dispersos entre milhões de pessoas separadas entre si, que não possuem objetivos em comum,
que não se conhecem e que não sabem das circunstâncias da vida,
umas das outras. Jamais, pois, qualquer tipo de 'arranjo' ou 'organização' intencional das atividades humanas, visando a fins específicos igualitários e distributivistas, como é o caso de todo 'plano nacional de desenvolvimento', ou de qualquer ação 'corretiva'
lançada sobre o mercado (como, por exemplo, os controles de preços), será capaz de substituir ou melhorar a fabulosa cibernética
da competição, representada pela operação desimpedida do mercado <2l.
Para formar uma ordem social espontânea pluralmente benéfica e pacífica, as pessoas só precisam concordar em se submeter todas às mesmas leis, ou regras abstratas (que são as normas gerais
de conduta, iguais para todos e aplicáveis em número incerto de
casos futuros), enquanto que para formar uma ordem social planificada, racionalmente concebida, elas têm que concordar ou precisam ser forçadas a aceitar uma hierarquia de objetivos predeterminados, que representa a vontade concreta coatora de alguém, de
um partido ou de algum grupo.
Portanto, somente uma ordem não deliberada, de tentativa e
erro, evolucionista, espontânea, pode constituir uma sociedade
aberta, enquanto que uma ordem política concebida para ser uma
organização intencional da ação humana, uma ordem artificial,
'construída', 'racionalística' ou planificada será fechada, discricionária, tribal.
Não há inteligência humana ou grupo de trabalho ou instituto
de pesquisas que possa gerar um planejamento ou qualquer plano
de ação governamental capaz de substituir a fantástica cibernética
espontânea do mercado que, como um milagre, funciona sem que
os participantes saibam de tudo o que se esteja passando.
(2) "Sindicalismo, mercado e as regras do jogo", H. Maksoud, em VISÃO,
13-11-78, e nesta obra.
171
Qualquer tentativa de querer fazer com que, pela ação intenciona,l, _os be~efí~ios ~o ~ese~volvi~ento correspondam à concepção
atavica da JUStl!~ distnbuti~a (hoJe denominada justiça social) certa~ente destr~ura o mecamsmo do mercado, pois impedirá a interaçao espontanea e auto-reguladora dos conhecimentos individuais dispersos e acabará com o que pretendemos seja uma sociedade pluralista.
Ora, se já está mais do que provado que o progresso não pode
ser do~ado; que ~le ~:orre sem que sua evolução seja geralmente
entendid~ pelos mdlVlduos participantes; que qualquer tentativa
de plane~a.~ento da ec~nomia jamais funcionou (mesmo nos países totah_tanos) como mstrumento para o desenvolvimento, por
que ~ontmuar com os planos nacionais de desenvolvimento? Por
que Impedir pelo dirigismo o funcionamento do mercado? Será
que os que propõem o planejamento, o dirigismo ou o controle de
pre!os nã? sabem o que fazem? Ou será que é para tentar racionar
ou Impedir o desenvolvimento?
O que é a inflação?
Pode-se contê-la?
Quem é que não sabe que a inflação é coisa ruim? Quase ninguém. E quem é que sabe, hoje, precisamente, o que é a inflação?
Quase ninguém também. Por que isso? Porque, como no caso de
tantos outros fenômenos da vida do homem na sociedade moderna, estamos envolvidos por um emaranhado de equívocos semânticos que não nos permite entender os eventos sociais Ol como eles
realmente são. Nosso modo de pensar tem sido em grande parte
guiado por uma linguagem que ainda reflete o racionalismo construtivista ingênuo de tempos primitivos da vida do homem, que interpretava todos os fenômenos sociais como sendo produtos de
projetos intencionais para atingir fins previsíveis.
A despeito do extraordinário êxito dos filósofos políticos do século XVIII (que substituíram o racionalismo ingênuo por um racionalismo evolucionário que examina criticamente as condições e
limitações do uso efetivo da razão consciente), os problemas importantes de nosso tempo são ainda obscurecidos pelo uso inadequado de palavras que espelham um modo de pensar anterior, tribal, e encerram conotações antropomórficas das nossas instituições. Essas conotações, entret~nto, escondem a verdade fundamental de que todos os esforços dirigidos intencionalmente para
(1) Muita gente escreveria 'eventos políticos, econômicos e sociais' em vez de
apenas 'eventos sociais'. O uso pleonástico da palavra 'social' é uma das principais fontes de confusão lingüística no pensamento político atual. 'Social' é,
em verdade, aquilo que pertence ou é característico da estrutura e das operações da sociedade. Entretanto, o uso abusivo desse adjetivo nas expressões
'justiça social', 'democracia social', 'estado de direito social', 'comunicação
social', 'economia social de mercado', 'retorno social', etc., para tirar delas
praticamente qualquer significado político que se queira, levar-nos-á ao ponto
em que a própria palavra 'linguagem', por exemplo, não terá mais significação
'altruístico' se não for chamada de 'linguagem social'. Não é o que acontece
com a palavra 'justiça' e outras aqui citadas?
172
173
desenvolver uma ordem social têm lugar sempre dentro de uma ordem espontânea, muito mais abrangente, que não é o resultado de
qualquer projeto ou plano intencional do homem. O uso equivocado da linguagem faz, portanto, com que os homens imaginem
que todo o ordenamento do ambiente social em que vivem é nada
mais que o produto deliberado da ação humana. E é por isso que
os homens aceitam, tantas vezes, passivamente, a imposição de
sistemas de governo de tendência totalitária, que, aliás, são todos
de base racionalista e natureza messiânica e 'altruística'.
O ambiente de confusão semântica nos abrange de tal maneL"a
que são muito poucos os eventos e fenômenos da sociedade moderna que podem ser descritos por expressões inequívocas (2l. O fenômeno da inflação não foge a essa regra.
Todos sabemos que, desde há muito tempo, vêm os economistas estudando e debatendo as causas e os efeitos da inflação. Quase todos, ou pelo menos a grande maioria deles, concordam que os
efeitos da inflação são geralmente perniciosos. É verdade que existem aqueles que consideram que um pouco de inflação não faz
tanto mal C3l ••• "que é preferível 5o/o de inflação que 5% de desemprego" C4l. E há também os que vêem a inflação como instrumento
útil para seus objetivos políticos: um bom caldo de cultura para
fermentar as paixões e o tumulto na sociedade.
Os homens estudiosos sensatos concordam todos que os efeitos
da inflação acarretam o empobrecimento daqueles que possuem
receitas fixas. Concordam todos que esses efeitos são devastadores
no planejamento e na contabilidade das empresas e das famílias.
(2) Por isso, temos destacado bastante, ultimamente, em nossos escritos, o
problema terminológico. Notar, por exemplo, as definições que adotamos para
as palavras 'democracia', 'liberdade', 'liberalismo', 'mercado', 'justiça', 'economia', 'lei', etc. e o destaque que fazemos a certos neologismos tais como
'demarquia', 'catalaxia', 'cosmos', 'taxis', etc., extremamente importantes para
tornar inequívocos certos fenômenos sociais. Ver, p. ex., "Sindicalismo, mercado e as regras do jogo", H. Maksoud, em VISÃO, 13-11-78, e nesta obra.
(3) É curioso observar que uma inflação de 10% num país desenvolvido é
considerada calamidade pública, enquanto que aqui, e .noutras partes, conseguir ficar nos 20% é motivo até de ufanismo.
(4) Para os 'Keynesianos' e os monetaristas puros 'Friedmanitas', existe sempre (Keynes) ou a curto prazo (Friedman) uma compensação entre inflação e
desemprego. Há, modernamente, quem discorda completamente de ambos (ver
VISÃO, 1-8-77, página 48).
Estão todos de acordo em que a inflação prejudica as relações industriais ao propiciar um campo de luta selvagem em torno da folha de pagamentos, não só para manter o valor aquisitivo dos sal~­
rios como também para antecipar as mudanças em seu poder aqUIsitivo. E todos concordam também nos efeitos inquietantes e crescentemente perturbadores da inflação sobre a moral e o ânimo do
povo.
.
Com referência às causas da inflação não tem havtdo o mesmo
grau de concordância, embora alguns homens mais cla~i~ident~s
venham denunciando graves erros nas políticas monetanas e financeiras dos governos, principalmente daqueles governos que se
dizem partidários do mercado mas que n_ão permitem su~ o~era­
ção com grau suficiente de liberdade. Mmtos preferem atnbmr os
males da inflação a causas internacionais tais como o aumento do
preço do petróleo e manobras das multinac~onais ou a des~q~ilí­
brios estruturais e outras interpretações mats ou menos elastlcas
que permitem ampla faixa de discussão para os técnicos perplexos
e dão boa margem de manobra demagógica para os políticos e para as autoridades governamentais fustigadas pelo fenômeno. E há
também muitos que demonstram o papel das pressões sindicais
desregradas no estímulo à inflação. Todos, porém, são unânimes
em declarar que o aumento da base monetária numa int:ns~dade
maior que o ritmo de crescimento do produto bruto constttUI uma
.
_
condição para a manutenção da inflação.
Essa unanimidade se deve a que sempre se soube que a mflaçao
é um processo em que se dá um grande aumento na quantidade de
'dinheiro' em circulação. Ela é produzida e mantida quando todos
tentam comprar mais que o que há no mercad? ~· simultaneam_e~­
te insistem ein que lhes seja dado dinheiro suftctente para posstbtlitar a compra, a preços correntes, daquilo que pretendem adquirir.
A inflação resulta sempre numa tendência geral e duradoura de
aumento de preços. Os que recebem as quantidades adicionais de
moeda e crédito geralmente aumentam suas demandas por bens e
serviços vendáveis. E uma demanda adicional (se as de?Iais condições dos bens disponíveis para venda per~anec~rem_ t?alteradas)
forçará a subida geral dos preços. Esta e uma mev~tav~l conseqüência da inflação que nenhum sofisma e nenhum stlogtsmo po..
derá conjurar.
A confusão semântica, tão comum no pensamento pohttco em
nossos dias, entretanto, conseguiu obscurecer e dar caráter ambíguo ao fato de que a subida de preços é conseqüência e não causa
175
174
da inflação. O termo inflação passou, assim, a ser usado com uma
nova conotação (5l. O que hoje se chama inflação não é inflação,
ou seja, não é o excesso de suprimento monetário; é a subida geral
dos preços das mercadorias e dos salários que, em verdade, nada
mais é que uma conseqüência da inflação.
Esse equívoco semântico é mais danoso do que aparenta ser à
primeira vista, pois é impossível lutar contra um mal que não tenha um nome reconhecido. A confusão de linguagem não deixou
nenhum termo disponível para denominar o que a inflação sempre
foi e realmente é. Por isso, os homens públicos e os estudiosos não
podem mais dispor de uma terminologia simples, aceita e entendida de imediato por todos, quando pretendem, por exemplo, expor
suas idéias contra uma política referente ao meio circulante a que
se opõem. Eles precisam entrar em análises pormenorizadas, rebuscar na descrição e repetir a descrição do fenômeno a cada sentença que tiverem que usar para tratar do assunto.
O dano maior, entretanto, está em que aqueles que se envolvem
em tentativas fúteis e sem esperança de combater as inevitáveis
conseqüências da inflação, as altas nos preços, estão usando no
seu empenho a máscara da luta contra a inflação. Enquanto brigam com os sintomas, pretextam combater as causas fundamentais do mal. E como não compreendem (ou fazem que não compreendem) a relação causal entre, de um lado, o aumento do dinheiro em circulação e a expansão do crédito e, de outro, a subida
dos preços, o resultado prático é que as coisas tendem a piorar.
Se não é sob a justificativa da 'luta contra' ou do 'controle' da
inflação, o governo muitas vezes se mete a fazer controle de preços
visando à miragem distributivista da chamada 'justiça social' <6>.
Acontece que o controle de preços não pode funcionar numa economia baseada no mercado. Os esforços para fazer esse controle
funcionar exigem o contínuo alargamento da gama de mercadorias sujeitas ao controle, até que os preços de todas as mercadorias
e serviços sejam regulados por decretos discricionários e o mercado deixa de existir.
(5) Quantas vezes não dizem por aí, p. ex., que "inflação quer dizer aumento
do custo de vida" ou "inflação é filha do lucro excessivo", "dos juros
altos", "da ganância", etc.
(6) Ver "C!Ps e SUNABs que nada resolvem", H. Maksoud, em VISÃO, 3010-78, e nesta obra.
176
Não há dúvida que determinadas ci.rcunstâncias econômicas
podem elevar os preços de certas mercadorias e serviços e que uma
crise importante (uma guerra, por exemplo) pode aumentar temporariamente o preço de todos os bens e ~erviços .. Mas o aumento
geral, duradouro e acelerado dos preços e, essen,cialmente, um fenômeno político-governamental, e somente se da quando ? governo passa a gastar e/ou permite que os cidadãos gaste~ ma,Is 9-uantidade de 'dinheiro' que a quantidade de produtos dispomveis para aquisição a preços estáveis (?).
O trocadilho semântico que leva à doutrina espúria da luta contra a inflação pelo controle do mercado é um perigo real. Enquanto os políticos e os intelectuais exigem maior dirigismo estatal nas
atividades econômicas e, simultaneamente, demandam novas realizações 'sociais' ou 'distributivistas' dos órgãos da administ~~ção
pública que se destacam gloriosamente nas manchetes, as atividades dos homens de negócios e dos empreendedores são cada vez
mais menoscabadas e perseguidas com apupos pelos meios de "comunicação social", o mercado é cada vez mais distorcido pelo
controle estatal e os dados estatísticos relativos ao aumento dos
meios de pagamento são relegados, quando muito, a lugar incons, .
pícuo nas páginas financeiras dos jornais.
A inflação é, basicamente, excesso de moeda e credito_ confrontado com poucos bens produzidos. Para contê-la não adianta tentar controlar os preços. E não basta reduzir o ritmo da expansão
monetária. Uma proposta válida para combater a inflação, principalmente num país com alto potencial de desenvolvim_ento como o
Brasil, terá que, simultaneamente com o controle do r~tmo de crescimento do suprimento monetário, buscar acelerar o ntmo de crescimento do produto real e procurar diminuir o desemprego., Proposta completamente distinta da que usualmente se faz por ai. Ela
só é viável, porém, se as forças naturais do mercado puderem trabalhar em sua capacidade máxima normal; o que só pode acontecer num regime de liberdade de iniciativa e de forte estímulo aos
empreendedores. A alternativa é o subdesenvolvimento, com uma
inflação crônica inevitável.
{7) Sobre a importância do crescimento acele!ado da produção para curar a
'doença' inflacionária, ver editoriais em VISAO, 22-1-79, 5-2-79 e 19-2-79, e
nesta obra.
177
A meia-vitória que pode
transformar-se numa perda total
Observando com espírito aberto, embora crítico, o que se diz e
o que se faz a respeito dos problemas de nosso povo, neste Brasil
de 1979, destaca-se, no discurso político e na ação administrativa a
preponderância do apelo aos instintos, em contraposição aos valores culturais acumulados pela civilização.
Nestes tempos, como acontece com parcela cada vez maior da
população do mundo ocidental, brasileiros em número crescente
têm suas vidas girando em função de grandes organizações e encontram seu horizonte de compreensão limitado ao que lhes é requerido pela estrutura interna dessas organizações. E o modo de
pensar dos homens mais influentes e poderosos da sociedade moderna gira em torno da idéia da 'organização', ou seja, da unidade
hierárquica de objetivos, do arranjo deliberado, do racionalismo
construtivista cartesiano. A evolução da técnica da organização,
com a conseqüente ampliação (muito além de tudo aquilo que antes era imaginável) da gama de tarefas que podem ser levadas a cabo por meio da organização em larga escala, desenvolveu a crença
de que não há nada que a organização não possa conseguir. Com
isso, as pessoas perderam a perspectiva do fato de que o sucesso
dessas mesmas organizações, de todas elas, depende de uma ordem social muito mais abrangente, que é movida por forças espontâneas de ordenação que possuem natureza completamente distinta das que constituem as grandes empresas e as grandes organizações burocrático-administrativas.
Para toda essa gente, o jogo do mercado é algo incompreensível. Para eles, que nunca praticaram diretamente as regras desse
jogo, o mercado é algo arbitrário mantido por forças sinistras e
seus resultados são não apenas 'irracionais' mas principalmente
injustos. Como conseqüência desse desentendimento, estimulado
pelo violento ataque socialista e por terríveis equívocos intelectuais, todas as regras do jogo do mercado, que tornaram possível
ao homem viver na forma de uma grande sociedade aberta, são ig-
178
noradas, voltando à tona demandas fundadas em instintos inatos
que haviam sido há tanto tempo restringidos pela evolução cultural.
A parte mais fundamental da evolução cultural foi a da domesticação do selvagem, que se completou muito antes de haver começado qualquer registro histórico sobre a humanidade. E é justamente esta evolução cultural básica, pela qual somente o ser humano passou, que o distingue agora dos outros animais. O que,
entretanto, hoje conhecemos por evolução cultural, isto é, o rápido e acelerado desenvolvimento da civilização, teve lugar apenas
durante o último um por cento do tempo de existência do Homo
sapiens Ol. Nesse processo de evolução, o homem foi aprendendo e
acumulando um repertório de 'regras de conduta' que passou a
constituir uma tradição, independentemente de qualquer ação premeditada. Estas regras balizavam seu caminho indicando-lhe a
forma certa e a errada de ação em diferentes circunstâncias. Esse
'sistema' de normas de conduta que ele foi adquirindo por aprendizado, na base de tentativa e erro, deu-lhe crescente capacidade
de adaptação a condições em contínua mutação e de cooperação
com os demais membros de sua comunidade.
Em lugar de dar vazão a emoções apenas perseguindo instintivamente as necessidades mais sentidas ou certos objetos mais diretamente percebidos, o homem civilizado descobriu que a obediência a certas regras abstratas de conduta que ele aprendeu ao longo
do tempo se tornou necessária para restringir aqueles instintos naturais que não se enquadravam na ordem social de uma sociedade
livre. Mas é justamente contra esta espécie de 'disciplina', isto é,
contra esse sistema de normas abstratas de comportamento, que o
homem ainda se revolta. As persistentes exigências _por uma 'justa
distribuição' ou 'justiça social', que reclamam o uso arbitrário e
discriminatório de poder coercitivo organizado (do governo ou
dos sindicatos) para alocar rendas e múltiplos 'benefícios sociais'
conforme critérios de mérito, são exemplos de atos de revolta fundamentados num puro atavismo de sentimentos tribais.
Para melhor entendermos a origem desse atavismo, é preciso
que nos lembremos de que, anteriormente aos últimos dez mil e
tantos anos (durante os quais se desenvolveram a agricultura, as
cidades e por fim a grande sociedade atual), o homem viveu, durante pelo menos cem vezes mais tempo, em pequenos bandos de
caçadores, compreendendo no máximo algumas dezenas de indiví(1) "The Three Sources of Human Values"; F. A. Hayek, Londres, 1978.
179
duos que compartilhavam o alimento caçado, se sujeitavam a uma
estrita ordem hierárquica e defendiam o território comum que
ocupavam contra quaisquer estranhos à horda. Eram bandos nos
quais a persecução em comum de um certo objetivo, sob a direção
do chefe do bando, era uma condição tão importante quanto a
alocação de diferentes porções da presa aos diferentes membros,
segundo sua importância para a sobrevivência do grupo.
Foram as necessidades deste tipo de organização social que determinaram muitos dos sentimentos morais que ainda nos governam e que ainda buscamos encontrar nas outras pessoas. Dizem os
estudiosos que provavelmente grande parte dos sentimentos morais então adquiridos não tenha sido objeto de mero desenvolvimento cultural pelo aprendizado ou pela imitação, mas que eram
adaptações para esse tipo de vida de instintos inatos ou geneticamente determinados.
Ao passar da moral da horda caçadora (na qual a raça humana
viveu a maior parte de sua história) à que tornou possível' a ordem
de mercado da sociedade aberta, houve o longo estágio intermediário da sociedade tribal, mais breve que o vivido pela espécie humana naqueles pequenos grupos, porém de muito maior duração
que a que teve até agora a sociedade urbana, comercial e indu~­
trial. A sociedade tribal representa em muitos aspectos uma etapa
de transição entre a ordem concreta da sociedade primitiva de caçadores, na qual todos se conheciam e serviam a determinados fins
comuns, e a sociedade aberta e abstrata na qual impera uma ordem resultante da observância por todos os indivíduos das mesmas
regras de conduta, à vez que usam de seus esforços, conhecimentos e sortes pessoais na busca de seus próprios objetivos.
Na sociedade tribal a raça humana não ganhou muito em termos de evolução cultural. Continuaram prevalecendo os instintos
inatos simplesmente adaptados às circunstâncias, mas o uso da razão consciente também passa a ter destaque na construção de unidades sociais maiores porém ainda 'solidárias' e, pois, fundadas
na concepção de um fim único e de uma participação dos indivíduos baseada nesse mesmo fim comum e em uma idéia comum do
mérito individual. O indivíduo continuava privado da decisão moral quanto à maneira como deveria viver sua própria vida e, em lugar de ter reconhecida para si uma esfera de ação independente, é
dirigido, alimen~ado, agasalhado, entretido e treinado como uma
peça que serve a uma ordem hierárquica de necessidades e sujeito
ao poder autocrático de um chefe ou de uma oligarquia.
Embora nossos instintos estejam ainda governados pelas emo-
180
ções mais propícias ao êxito da pequena horda de caçadores, nossa
linguagem política espelha fortemente a 'solidariedade' de origem
tribal, representada pela ênfase ao ordenamento deliberado do
ambiente social, pelos deveres em relação ao 'próximo' (ou seja,
ao 'membro da tribo'), ao 'bem-estar social' (ou seja, aos interesses da tribo, fixados pelo seu cacique), e em grande parte (como
acontecia nas hordas e nas tribos) ainda considera o estrangeiro
excluído do círculo abrangido pelas obrigações morais. Nesse ambiente, dominado por uma mistura de instintos primitivos com um
racionalismo construtivista ingênuo, medram hoje as mais perigosas ameaças para a civilização livre: o socialismo, o falso nacionalismo e o sindicalismo sem lei.
O que tornou possível o desenvolvimento da civilização e conduziu a humanidade à sociedade aberta foi a substituição gradual
de uma estrita ordem hierárquica de necessidades visando a fins
obrigatórios e concretos por uma ordem espontânea baseada em
regras abstratas de justa conduta. Um tipo de jogo regulamentado, o do mercado, passou a substituir a ação concertada sob uma
única voz de comando. A grande vantagem que a humanidade
conseguiu com essa substituição foi a de tornar possível que certas
informações amplamente dispersas entre multidões de pessoas separadas entre si, que não se conhecem e que não possuem objetivos em comum, pudessem ser transmitidas por um mecanismo
auto-regulador (a cibernética do mercado) sob a forma de símbolos denominados 'preços de mercado'.
O jogó do mercado passou a conduzir o desenvolvimento e a
prosperidade das comunidades que dele lançavam mão porque,
sendo um i9go aberto à participação detodos, aumentava as oportunidades de todos. Isso se dava, porém, porque as remunerações
dos diferentes indivíduos participes dependiam de dados objetivos
que ninguém conhecia totalmente e não da opinião que alguém tivesse sobre o que devia corresponder a cada um. Significava, também, que, embora a capacidade e o esforço melhorassem as oportunidades do indivíduo, estes atributos não lhe garantiriam determinadas rendas. Significava, outrossim, que o processo impessoal
que utilizava todo esse conhecimento disperso lançava os sinais
dos preços para indicar às pessoas o que fazer, mas não tinha nenhuma relação com as necessidades ou os méritos de cada um.
O resultado do jogo do mercado é função da aptidão, do esforço e da sorte dos participantes e serve para obter de cada partícipe
a máxima contribuição a um fundo comum de onde cada qual obterá uma parte incerta. Como no caso cte qualquer jogo, se as re-
181
gras forem por todos conhecidas e respeitadas, o resultado poderá
ser sempre classificado de bom ou mau, porém nunca de justo ou
injusto.
Como as rendas derivadas de um mercado livre são muito diversas das remunerações relativas que caracterizavam o modelo de
organização social no qual a espécie humana viveu durante muito
mais tempo, e que em conseqüência infelizmente ainda governa os
sentimentos dominantes, os homens deixaram de aceitar que os
preços e os demais resultados do mercado fossem devidos a circunstâncias desconhecidas, e os governos começaram a crer que,
ditando-os, poderiam conseguir efeitos benéficos. Quando começaram a falsificar os sinais, cuja idoneidade não estavam em condições de julgar (porque nem os governos nem ninguém possuía
toda a informação da qual os sinais eram a resultante), na esperança de ajudar a grupos que se julgavam mais merecedores, as coisas
passaram a ir irremediavelmente mal. Passou-se a desprezar o fator eficiência no uso dos recursos e, pior ainda, desprezaram-se as
perspectivas de ver cumpridas as expectativas de vender ou comprar, baseadas na coincidência da demanda e da oferta.
O resultado é a confusão e o caos em que vivemos. O que nos
mantém a salvo até agora da completa destruição é a meia-vitória
da evolução cultural sobre os instintos inatos e o racionalismo positivista construtivista, conseguida a partir do século XVII até
meados do século XIX e que tornou possível a civilização aberta e
a liberdade individual. Foi a meia-vitória da norma geral e abstrata de conduta sobre o fim comum e concreto como método de
coordenação social que o consórcio fatídico deste século entre o
socialismo, o sindicalismo, o falso nacionalismo e o democratismo
irrefreado vem tentando transformar numa perda total.
Quando as palavras cultura e civilização surgiram e foram difundidas no século XVIII, eram expressões de valores humanos usados para contrastar o barbarismo, a rudeza ou a selvageria <2l. A história da cultura e da civilização é a história da ascensão do homem
de um estado quase animal a uma sociedade disciplinada por um
sistema de normas gerais de conduta onde ele passou a controlar
suas emoções instintivas inatas, a cultivar as artes, a exercitar livremente sua razão e a adotar valores da civilização. Da mesma
forma como evoluiu a cultura e em conseqüência progrediu a civilização, ambas podem declinar e se perder. Há muitos profetas
(sociólogos, políticos, filósofos e intelectuais cartesianos, construtivistas e positivistas) por aí apelando para as emoções primitivas
do homem a fim de fazer suceder seus planos salvadores para a
criação deliberada de um novo tipo de sociedade que não explicam
bem qual será. Aqueles que ainda não desconfiaram, devem
lembrar-se de que esses profetas têm a seu favor o apoio atávico
resultante dos instintos herdados pela civilização dos tempos dos
bandos de caçadores e das tribos primitivas.
(2} E. H. Gombrich, "ln Search of Cultural History:', Oxford, 1969.
182
183
Download

a revoluçao que precisa ser feita arevoluçao que precisa ser feita