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CONTRIBUIÇÃO AO ENCONTRO DA FORANIA DE PARANAIBA-MS
PROFETISMO E PODER
SELVINO HECK
Movimento Fé e Política
INOCÊNCIA-MS, 6 DE ABRIL DE 2006
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O PROFETISMO E O PODER
Selvino Heck
“...Eu diria a nós, como educadores e educadoras: ai daqueles e
daquelas, entre nós, que pararem com a sua capacidade de sonhar,
de inventar a sua coragem de denunciar e de anunciar. Ai daqueles e
daquelas que, em lugar de visitar de vez em quando o amanhã, o
futuro, pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e o agora;
ai daqueles que em lugar desta viagem constante ao amanhã, se
atrelam a um passado de exploração e de rotina.”
(Paulo Freire)
Quero fazer este texto/reflexão há tempos, mas confesso que, além
do pouco tempo para leituras complementares a respeito, tenho sentido
dificuldade de me acercar do tema. Talvez porque estou no centro do poder
(ou do governo) e, portanto, segundo Pedro de Oliveira, talvez esteja entre os
‘companheiros e companheiras que abrandaram o discurso profético e
adotaram o pragmatismo político’ (texto ‘Profetismo no Exercício do Poder’).
Ou então porque todos nós pouco conversamos e debatemos sobre a relação
entre profetismo e poder. Ou porque a nossa experiência de relação direta
com o poder no campo político, os que vêm do meio eclesial, e mesmo por
parte da esquerda brasileira, ainda seja relativamente recente (não é o caso
da Igreja católica, onde a disputa pelo poder já aconteceu desde os apóstolos,
por exemplo entre Pedro e Paulo). Mas o fato de a experiência ser de pouco
acúmulo não absolve ninguém. No máximo, explica, sem justificar.
Assim que, finalmente, resolvi tentar escrever e colocar no papel
algumas idéias, mais no sentido de contribuição e provocação que o de fazer
uma reflexão mais conclusiva, mais em cima da prática que a partir da teoria.
O texto fica, fundamentalmente, no campo do poder político, ou no âmbito da
política, mas serve, e se fazem eventuais referências, com as devidas
ressalvas, para o exercício do poder no campo eclesial, comunitário, dos
movimentos sociais e sindicais, ou mesmo no plano familiar e profissional.
Nestes espaços também existe poder, é exercido e merece análise e reflexão.
O profeta anuncia o novo e denuncia a injustiça. O profeta não realiza,
mas usa a palavra para o anúncio e a denúncia. Portanto, olha para o futuro,
para o que virá, ou desvenda o presente, o que está acontecendo de injustiça,
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de corrupção, de tirania. O poder é, fundamentalmente, o exercício da
realização, do fazer. O poder concretiza, realiza (ou não) a profecia. Está,
pois, no campo da ação, da obra, da execução do projeto. Como então se
aproximam profetismo e poder? Que relações estabelecem?
O PODER
Sempre estranhei essa ‘coisa’ do poder. Fui deputado com poder de
propor e votar leis, dirigente partidário, estive em diferentes postos do Poder
Executivo, e sempre me perguntei de onde vinha a força do poder e como ela
se sustenta. O que garante que eu possa fazer uma lei, que ela entre em
vigor, que ela seja observada e cumprida? Por que uma lei tem esta força?
Por que o governante tem poder e recursos para fazer tais e tais obras e não
outras, contratar e demitir funcionários? E a força da palavra de um líder, que
muitas vezes não é governante, nem foi eleito, como explicar que acabe sendo
respeitada e seguida, demonstrando poder? Como se explica a voz e a decisão
de alguém poderem mandar pra tortura ou começar uma guerra com a força
das armas? Se isso tudo é verdade, o que controla o poder do poder e aponta
seus erros e desvios, corrige seus rumos? E o poder que destrói, que mata,
como dar-lhe limites? O poder pode conviver com o bem, pode ser partilhado,
distribuir seus frutos, promover a justiça? Ou o poder é sempre perigoso,
deve ser evitado, rejeitado tanto quanto possível? É sempre destrutivo,
excludente, governa ‘de cima pra baixo’, como tantos na história?
Poder e serviço
“Os reis das nações comportam-se como donos delas e os que
governam fazem-se chamar de benfeitores. Vocês não devem ser assim. Ao
contrário, o mais importante entre vocês se comportará como se fosse o último,
e o que manda como o que serve” (Mc. 10, 41-46).
O poder, ao longo da história, na sociedade e muitas vezes mesmo
na Igreja católica, tem sido visto e praticado como o poder de mando e de
dominação sobre o outro e de países e nações sobre países e nações. Pelo
jeito, já era assim nos tempos de Jesus, que propôs o poder como serviço
para os seus discípulos. Quem é o maior seja o menor. Quem manda deve
fazê-lo como quem serve. Isso significa que ninguém que esteja no poder é
dono de nada e de ninguém. Os resultados do poder exercido são os resultados
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de quem fez-se servidor e não ditador ou ‘benfeitor’ que merece aplausos do
povo. Jesus não rejeita o poder nem o faz inexistente. Mas propõe uma maneira
de exercê-lo.
Os profetas, na Bíblia, sempre denunciaram o poder destruidor que
não respeita especialmente os fracos e pobres, o poder que compactua com
a injustiça, o poder que oprime, o poder que se julga dono de tudo e de todos
e que se isola do povo e da sociedade.
Poder e autoridade
Todo poder, para ser poder, precisa ter autoridade. Mas esta é diferente
do autoritarismo, onde um decide e ordena e todos obedecem, de acordo
com o dito popular: ‘manda quem pode, obedece quem precisa’.
O poder só se sustenta se ele tiver autoridade de propor políticas, de
implementar programas de governo, de criar o consenso necessário na
sociedade e de, em situações onde isso se fizer necessário, usar o seu poder
de coerção, impondo limites às ações e cerceando determinados interesses
da sociedade ou vontades individuais. Isso é feito através das leis, como pode
ser feito através de forças específicas, como as militares, mas que estão dentro
de um regramento legal e democrático.
O profeta insurge-se contra os abusos, o desrespeito aos direitos, a
autoridade que se torna autoritária e ditatorial. O verdadeiro poder é aquele
que vem da palavra certa dita na hora certa, da decisão correta e não
discriminatória, da capacidade de escutar e não apenas de ouvir.
A sedução do poder
O poder, no seu espaço de mando e autoridade, abre oportunidade
para os privilégios e a mordomias. Não raro o mais simples vereador torna-se
acha-se ‘dono do campinho’ e se perde nas zonas nebulosas do salário e das
assessorias à disposição, dos extras das diárias de viagem nem sempre feitas,
das assessoras a serviço de outros fins que não os parlamentares, dos
parentes empregados à farta . Ou o juiz que se acha o dono da lei. Ou do
governante que manda e desmanda, como se rei ou imperador fosse.
O poder seduz facilmente e não só no meio político. Também no
futebol, nas sociedades, nos clubes, nas empresas, nas escolas e
Universidade, até nas igrejas. Padres, leigos ou mesmo bispos, antes de serem
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servidores, fazem-se proprietários do ministério como se possuíssem ações
que dão lucro ou terras que não podem ser distribuídas para a reforma agrária.
Os exemplos são muitos. Em 2003, início do governo Lula, foi dada
uma orientação na Casa Civil de não se aceitarem presentes, convites de
empresas, etc. Chegou o carnaval, em fevereiro, e descobriu-se que os
detentores de cargos de confiança tinham sido convidados por uma
multinacional para os camarotes do carnaval do Rio, com tudo ‘de grátis’, e
que muitos tinham aceito. Mesmo com a ordem de recuarem na decisão,
alguns acabaram usufruindo das benesses dos camarotes.
O poder já levou muita gente boa a desvios e ao descaminho. E para
se manter ou aumentar o poder, recorre-se a artifícios, à compra de votos e,
no limite, a exclusões ilegais e anti-éticas e até mesmo a assassinatos, como
há tantos exemplos na história. Os fins acabam justificando os meios.
Como disse Frei Betto, em entrevista: “Por que, no poder, as pessoas
tendem a se despersonalizar, preferindo encarnar mais a função que ocupam
do que a pessoa que de fato são? Por que a identidade sócio-política passa a
ter mais importância que a identidade pessoal? Que enfermidade é essa que
leva as pessoas a ficarem embevecidas com o poder, algumas até numa
tendência de autodivinização por ocuparem uma instância de poder?” (JB,
12.02.06, A2).
O profeta com sua radicalidade é um dos antídotos da sedução do
poder, quando permanentemente anuncia o novo, a boa nova, o futuro, o
diferente e, principalmente, denuncia os malfeitos, as injustiças, as tropelias,
a corrupção.
Poder, estrutura e burocracia
“Quem diz organização, diz oligarquia”, afirma Robert Michels em
estudo publicado em 1911. E criou a expressão ‘Lei de ferro da oligarquia’,
para caracterizar o risco inerente a qualquer partido político de que os eleitos
tomem o lugar dos eleitores e a estrutura administrativa da organização deixe
de ser um meio para se tornar um fim autônomo.
O poder, mesmo o ditatorial, apóia-se em estruturas, organização e
burocracia. Seu exercício exige rotinas, regramentos, leis. Daí que facilmente
tende à rotinização, à burocratização. As decisões são tomadas de forma
quase automática e mecânica, perdendo seu vigor e sua capacidade de ver
as circunstâncias, as relações sociais e pessoais. Ou então esvazia seus
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conteúdos democráticos, tornando-se cada vez mais unipessoais e
autoritárias.
A burocracia ajuda a concentrar o poder.
Este problema, segundo Michels e afirmado em artigo de Ricardo
Abramovay, atinge também os movimentos sociais quando “conquistam
legitimidade e se organizam de forma claramente reconhecida, com uma
estrutura política e administrativa profissional, e perdem o encantamento em
que nasceram, deixando-se devorar pela rotina e reduzindo seu poder de
contestação, tão importante para a construção da democracia e do
desenvolvimento” (FSP, 02.02.06).
O PROFETISMO
Profecia e autoridade
O profeta, se profeta, tem autoridade. Sua palavra é ouvida, seguida,
ou temida por dizer a verdade. Ou se segue o profeta e sua palavra, ou se
procura eliminar sua mensagem ou o próprio, fisicamente.
O poder teme a autoridade do profeta, porque este arregimenta
respeitabilidade e eventualmente seguidores, que ampliam sua voz e praticam
o que ele propõe.
A coragem da denúncia
Nenhum profeta é profeta sem ser corajoso. A coragem da voz
profética é inerente à sua capacidade de anunciar e denunciar. Ainda que,
sabendo disso, muitos profetas bíblicos tenham querido fugir da sua missão e
pedido a Deus que os liberassem e deixassem em paz.
Ser profeta exige sair de casa, do seu mundo, da sua vidinha e rotina.
Exige enfrentar o poder de forma desarmada, apenas com seu discernimento
e capacidade de antever as coisas e o seu destemor de dizer o que pensa e
de propalar a verdade.
O poder não quer ser incomodado. Por isso procura seduzir o profeta,
afastá-lo de sua missão, produzir nele o medo, emudecê-lo. Se não consegue,
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elimina-o, como a tantos na história, seja da Bíblia, seja no Brasil de hoje,
com os assassinatos recorrentes de lideranças, o mais rumoroso e recente
da Irmã Dorothy Stang pelo poder do latifúndio.
A luz do profeta
O profeta tem o poder de iluminar a verdade. Toda vez que a história
está nebulosa, o povo não sabe o que quer ou para onde ir, surgem os profetas
para abrir claridade, mostrar caminhos. Ou quando ninguém tem coragem de
falar e tornar transparentes a injustiça e a opressão, os profetas tornam visível
a verdade, desmascaram a mentira, desnudam o poder, seus desmandos e
tirania. Como diz Paulo Freire, “os profetas são aqueles ou aquelas que se
molham de tal forma nas águas da sua cultura e da sua história, da cultura e
da história de seu povo, dos dominados do seu povo, que conhecem o seu
aqui e seu agora e, por isso, podem prever o amanhã que eles mais do que
adivinham, realizam”.
O novo é a luz, o futuro, a esperança, a utopia, o que está por ser ou
deve ser realizado pelo poder. Anuncia o que deve ser e denuncia o que não
realiza o novo.
O poder teme a luz e a verdade que o profeta joga sobre as coisas, a sociedade
e o próprio poder.
O PROFETISMO NO EXERCÍCIO DO PODER
A pergunta é: profetismo e poder se cruzam? Pode-se ser profeta
estando no poder? O profetismo no exercício do poder é possível? Ou são
duas instâncias diferentes, cada uma no seu nível, o profetismo no seu poder
de anúncio e denúncia, o poder na sua capacidade e missão de realizar, de
fazer?
Por um lado, o poder sendo serviço, tendo autoridade sem
autoritarismo, não se deixando seduzir, pode ser profético ou ter elementos
proféticos. Se for participativo, se for transparente, se estiver voltado para a
maioria do povo, não perderá sua condição profética.
Por outro, cabe ao profeta e ao profetismo iluminarem o poder. Para
isso, precisam distanciar-se dele, não se confundir, para ter capacidade de
sugerir caminhos, de apontar para o utópico, para denunciar as tropelias do
poder, desnudá-lo quando necessário, e recolocá-lo no bom caminho.
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O exercício do poder, portanto, não deve abrandar o profetismo, nem
cair no pragmatismo político. O poder não é necessariamente mau ou sujeito
a desvios. Nem todo exercício de poder leva à corrupção, ao afastamento do
povo, à perda da referência utópica. Embora o poder sempre esteja no contexto
de circunstâncias concretas e reais. O poder é exercido num determinado
momento da história, em meio a determinados avanços civilizatórios, em meio
a forças políticas, econômicas, culturais e ideológicas dominantes. O poder
não está fora do mundo. Tem compromissos concretos e imediatos. Não pode
sonhar apenas com o futuro nem depende apenas da vontade e da intenção,
por mais generosas que sejam. Diferentes forças e projetos de poder estão
em disputa em cada sociedade ou organização. A análise do poder exercido
será sempre a realidade, os acontecimentos, as ações e seus resultados, as
relações estabelecidas. O poder é um processo em construção.
O profetismo não pode estar atrelado ao poder, para não perder sua
força e contundência. O papel do profeta é ser uma pedra no sapato do poder,
de qualquer poder. Todo profeta está sempre além do presente, está mais no
futuro que no presente, ainda que o denuncie, está mais na promessa que na
realidade, está mais no vir a ser que no ser.
Profetismo e poder, portanto, se encontram, mas também estão
separados. O profeta anuncia e denuncia. O poder realiza. Ambos devem ser
julgados à luz desta sua missão: saber e avaliar se o profeta profetiza e se o
poder age. Mas o profeta, ao anunciar e denunciar, também está munido de
poder e em certa medida submetido às suas intempéries. E o poder instalado
e constituído incorpora, se quiser e tiver coragem, elementos e instrumentos
proféticos.
ELEMENTOS DA RADICALIDADE PROFÉTICA
ESTANDO NO PODER
Como saber se quem está no poder não se rendeu ao pragmatismo
político? Como se prevenir das malhas da sedução do poder? Onde estão os
limites? Quais os referenciais?
A experiência de poder/governo que se vive hoje no Brasil, com muitos
companheiros e companheiros ligados ou oriundos de pastorais populares,
de movimentos sociais, do Movimento Fé e Política está imersa nesta espécie
de contradição, por um lado, e esta exigência, por outro, de exercer o poder/
governo sem perder a radicalidade profética. Para muitos com certeza há
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momentos em que é dolorosa a experiência, quando confrontados com as
opções cotidianas, pessoais e coletivas, e as contradições com aquilo que se
sonhou sempre, sonha-se ainda. Há os limites que a realidade impõe. Há as
estruturas seculares e mastodônticas que impedem muitas vezes ações mais
arrojadas. Há coletivos que vão muito além das individualidades e que se
sobrepõem às vontades pessoais. Há atores nacionais e internacionais com
diferentes pensamentos e que em geral não podem ser ou não foram
escolhidos. Há diferentes instâncias de poder que em geral, em vez de se
complementarem, chocam-se nos seus interesses, como o Poder Executivo
e o Poder Legislativo, e muitas vezes o Judiciário.
Há processos em curso com maturação no tempo e no espaço, nem
sempre no imediato. Há os interesses econômicos dominantes, seus
tentáculos, força política e material e atração ideológica. Há uma democracia
muitas vezes incompleta e historicamente pouco amadurecida. E há,
principalmente, quem se perca no meio do caminho ou resolva deixar de
avançar rumo ao pretendido e proposto originalmente.
Há uma travessia a fazer, tal como a dos hebreus no deserto, saídos
da escravidão do Egito, rumo à Terra Prometida, durante a qual acontecem
desvios, negações, dúvidas, traições. Javé, através de Moisés, vivia
admoestando-os, corrigindo-os em suas opções, formando-os como povo.
Ao ponto que levaram quarenta anos de travessia e mesmo assim só seus
filhos chegaram no final da jornada e entraram na Terra Prometida, pois Javé
disse que os que saíram do Egito não estavam preparados e não o obedeciam,
traindo-o inúmeras vezes.
Em todo Antigo Testamento, os profetas estiveram presentes antes
os desmandos recorrentes dos que estavam no poder. E foram exilados,
presos, mortos. Mas sua voz profética nunca se calou. Tampouco a história
acabou.
A experiência brasileira das últimas décadas é cheia de avanços e
recuos. Há os governos e mandatos populares, e há quem se perca no caminho
vítima da corrupção ou da perda de referência utópica. Há o Orçamento
Participativo, por exemplo, e há governos supostamente populares tão ou
mais autoritários que os conservadores. O poder popular está sendo construído
através de governos, de mandatos, de organizações do povo, aprendendo e
errando, avançando e recuando. Os profetas, que continuam a anunciar o
novo e denunciam os desvios de rota, estão presentes e vivos, às vezes mais
otimistas, glorificando as vitórias, às vezes desesperados vendo que o povo,
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ou parcelas dele, perdeu-se do rumo, vendeu os valores e a ética, abdicou da
esperança.
Sem a luta, porém, e a conquista do poder, em seus diversos níveis,
não se avança na transformação do mundo ou deixa-se o poder na mão dos
poderosos de sempre. Não há como não entrar no ninho de cobras. Não há
como não se envolver, com todos os seus riscos. Nem todo poder é corrupto,
como já há tantos exemplos inclusive no Brasil, nem todos os que estão no
poder são corruptíveis.
Muitos companheiros e companheiras assumiram espaços de poder,
neles permaneceram e saíram tão íntegros quanto entraram. Aliás, ajudaram
a democratizar o poder. Quanto não se pode ter a atitude de esperar que
alguns se ‘sujem’ e outros, de fora, assistindo de camarote, apenas fiquem
fazendo a crítica ou a denúncia. Não há os puros, os que não estão nos
espaços de poder e, portanto, não se contaminaram, e os impuros, os que
inevitavelmente vão ser, mais ou menos, picados pela mosca azul, usando o
título do livro de Frei Betto. Todos têm responsabilidade de enfrentar o desafio
de manter a radicalidade profética no exercício do poder
O amor aos pobres e ao povo
O espaço de poder permite ou pode levar a um distanciamento do dia
a dia da vida e da realidade do povo. Cria novas rotinas, desenha novas
relações sociais e pessoais, aproxima de outras pessoas. Quem quer fazer
do poder um serviço, não pode afastar-se de suas raízes. A presença no
meio do povo, a convivência com a pobreza, a proximidade com as dificuldades
que os mais pobres entre os pobres vivem, além de fortalecer o compromisso
de libertação, acende permanentemente a luz vermelha quando outros perigos
se tornam presentes.
Os compromissos não são apenas teóricos ou intelectuais. Eles têm
que ser vividos, precisam tornar-se carne e cumplicidade.
O amor aos pobres e ao povo precisa ser constantemente afirmado e vivido,
para que “a permanência no poder não venha a ter maior importância do que
o vínculo com o movimento social” (Frei Betto, JB, 12,02.06, A2).
A presença em lutas do povo, em ocupações, em greves, em reuniões
de base, em protestos, o contato direto com a fome, a miséria e a exclusão
social, a presença física em vilas, acampamentos, favelas e assentamentos
torna real e vivenciado o compromisso, ressignifica a opção de vida, reacende
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a mística da doação e do amor à causa dos pobres, especialmente os mais
pobres entre os pobres.
As mordomias e os privilégios
No Brasil há estruturas de poder, consolidadas com mordomias e
privilégios também consolidados e incorporados ao cotidiano e aos costumes.
Resistir à sua sedução não é fácil. Começam com as facilidades que os cargos têm inerentes, com os salários recebidos, com as equipes de trabalho
existentes, as vantagens adquiridas ao longo do tempo. Mesmo o trabalhador
mais consciente acaba tornando-se vulnerável. Acontece no meio sindical,
nas organizações sociais quando se tornam poderosas, nas igrejas e seus
recursos acumulados.
A vigilância permanente e crítica é fundamental, seja de grupos
organizados da sociedade, grupos de apoiadores de mandatos populares,
seja da imprensa livre. E trata-se de buscar vida simples, de não se acostumar
aos restaurantes mais caros, da presença nas festas mais badaladas, de
sentar no banco da frente ao lado do motorista do carro para conversar com
ele de igual para igual, de não aceitar presentes e quitutes inconvenientes, de
não se acostumar a ser servido, de não aceitar ser chamado de ‘doutor’, de
recusar dinheiro indevido ou que vai além do normal de cada trabalhador, de
lutar sempre por melhoria de salário dos que ganham menos em detrimento
dos que ganham muito, ainda que isso prejudique a si próprio, de nunca
compactuar com falcatruas ou silenciar sobre malfeitorias, ainda que praticadas
por companheiros e companheiras.
Estar apoiado em um grupo ou coletivo, desde que este não se torne
exclusivista ou corporativo, participar de um grupo de base de Fé e Política
pode ser um apoio para resistir às tentações de facilidades, de convites
sedutores, de companhias menos recomendáveis, de más influências.
A radicalidade contra qualquer mordomia e privilégio é fundamental
em qualquer lugar: no parlamento, no executivo, nas organizações sociais,
nas igrejas, nas ONGs. Da mesma forma, não pode haver nenhuma
condescendência com irregularidades, com atitudes anti-éticas, com a
corrupção, seja com quem for ou em que circunstâncias. Os fatos sempre
devem ser denunciados, apurados e tomadas as providências cabíveis. Não
cabe tolerância nem concessões, seja com amigos, companheiros, aliados
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ou adversários. Qualquer vacilo no campo das mordomias, privilégios e desvios
éticos cria a impunidade e leva, com o tempo, à incapacidade de enfrentá-los
com severidade. “A ocasião faz o ladrão”. Os primeiros e pequenos roubos,
quando não descobertos e punidos, são a fonte da delinqüência progressiva
e continuada.
O serviço ao outro e à sociedade
Poder é serviço, é estar à disposição, é repartir. Quem detém o poder,
em qualquer nível que for, não o detém para prestígio pessoal, para auferir
vantagens, para ganhar dinheiro, para subir na vida.
Se a sociedade é quem paga o governante e o servidor, a esta devese prestar contas. Por isso, instrumentos como o Orçamento Participativo e
conselhos de controle social, além da transparência sobre a origem e o destino
dos recursos públicos, permitem a democratização do poder e diminuem a
possibilidade de manobras de bastidores, a influência de interesses excusos
ou patrimonialistas. O poder fica visível e transparente.
Ser igual e companheiro
O poder não confere status especial a ninguém. Confere tarefas e
responsabilidades. Com ou sem poder, todos são iguais e companheiros. A
todos deve-se dirigir a palavra, respeitando-os na diferença. Estar num carro
oficial não torna ninguém diferente. Fazer um discurso na tribuna não torna
ninguém mais importante. Usar gravata não dá status.
O trabalhador rural, o operário, o varredor de rua, o sem-terra, a dona
de casa, o jovem, o idoso, todos têm os mesmos direitos, a mesma voz. Cada
um tem um voto e o voto de ninguém tem mais peso que o do outro.
Mais. É preciso sentir-se e comportar-se como companheiro, na mesa
do bar, na reunião, no campo de futebol, na reunião dentro do Palácio. A
mesma fila vale para todos, assim como é preciso ser solidário na dor e na
alegria, mesma que se esteja no poder ou se tenham encargos diferenciados
uns dos outros.
No início de 2006, voltando de uns dias de férias, fui cumprimentar o
garçom William, estendendo-lhe a mão para desejar-lhe feliz ano novo. Ele
estranhou e hesitou. Os garçons do Palácio são invisíveis para muitos, muitos
não lhes dirigem a palavra. Daí sua surpresa em ser cumprimentado por um
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Assessor Especial do Presidente.
O poder não pode e não deve mudar ninguém de atitude, de
companhias, de valores, de modo de ser.
A coragem da renúncia
O poder não pode ser exclusivo nem eterno. Todos têm direito a ocupar
espaços de poder. O dirigente sindical e o líder popular devem ter a alegria de
fazer surgir novas lideranças que possam substituí-lo, assim como o vereador,
o prefeito, o deputado. Aliás, os detentores de mandato parlamentar ou os
que estão no Executivo também não devem ser eternos, os mesmos que por
décadas ocupam as funções quase em revezamento, não permitindo o
surgimento de novos rostos e carismas.
E se o poder corrompe, é ou está corrompido, é preciso denunciá-lo
ou a ele renunciar. Os fins não justificam os meios, nem se pode ficar agarrado
ao poder igual carrapato, quando este apodrece.
O carguismo, cada vez mais presente, com o apego ao cargo que se
torna emprego e salário bem remunerado, é um dos nefastos instrumentos
de se eternizar, de cair na rotina e na burocracia ou de ficar refém de favores.
Se o projeto e o programa praticados tornam-se irreconciliáveis com
a utopia e com os compromissos assumidos com o povo e a sociedade, é
preciso ter coragem de denunciar o desvio ou a traição e se afastar, ainda
que à custa de amizades, histórias e construções pessoais e coletivas de
vida. Mas esta, de preferência, tem que ser uma atitude não apenas pessoal
e menos ainda personalista, mas coletiva, para que dê seus devidos frutos, e
leve em conta as circunstâncias e o contexto do exercício do poder, dê-lhe
tempo e oportunidade de consolidação, como Javé, através de Moisés, deu
mais de uma vez ao povo hebreu durante a longa travessia, apesar da
inconstância do povo. A transformação não acontece num dia ou ano, é feita
de avanços e recuos, de erros e acertos. Os exemplos históricos são muitos.
É difícil indicar critérios para o rompimento e os limites da permanência.
Como saber que é o momento de abandonar o governo, por exemplo, se este
pratica uma política econômica e social distante do programa segundo o qual
foi eleito ou se enreda na teia da corrupção? Quando saber que o ponto é de
não mais retorno? Ou como medir a necessidade de sair de um projeto
partidário para outro, porque aquele tornou inviável seu programa e
irrecuperável sua utopia?
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Como combinar a necessária tolerância, a percepção e análise dos
erros com a busca da correção de rumos e da recuperação do instrumento
de luta? Como saber que determinado movimento social já esgotou todas as
suas possibilidades?
A permanente crítica e autocrítica, a relação organizada com outras
pessoas, o estudo da dinâmica dos processos históricos trazem elementos
para avaliar as perspectivas de futuro. A energia e visão do profeta permitem
equilibrar as dubiedades do presente com a potencialidade e a regeneração
do amanhã e enxergar se há ainda, ou não mais, um fio condutor ou uma luz
no fim do túnel.
A sociedade nova, a utopia
A perspectiva do novo, do futuro que se constrói nunca pode
abandonar quem está no poder. A burocracia tende a engolir ideais. O poder
se cristaliza facilmente em estruturas e rotinas.Toda vez que os hebreus
começavam a gostar do deserto e começavam a se instalar, Moisés lembravaos da Terra Prometida, ‘onde correm o leite e o mel’. Assim não se acomodavam
aos bezerros de ouro. Ou, para chegar nos tempos atuais, para evitar que
aconteça “a permuta de um projeto de nação por um projeto de eleição” (Frei
Betto, JB, 12.02.06, A2).
Há sempre algo mais a buscar. O poder constituído e exercido precisa
de constante auto-renovação, para não se perder no monólogo e na
incapacidade do diálogo. O poder cristalizado tende ao autoritarismo ou à
burocratização. No horizonte do novo, as utopias devem ser vertentes de
rejuvenescimento do poder em todas as suas formas, no campo político, no
campo social e comunitário, no campo econômico, no campo cultural, mesmo
no campo das relações familiares e interpessoais.
Ricardo Abramovay (‘Movimento social e lei de ferro da oligarquia’FSP, 02.02.06), diz que devolver aos movimentos sociais seu poder
transformador é um dos desafios mais importantes para que a crise do PT (e,
digo eu, da esquerda em geral e dos governos populares) não desemboque
em um ceticismo generalizado, na descrença da capacidade da vontade social organizada de transformar o mundo. E ele aponta que um dos desafios
básicos a ser enfrentado hoje é o da “reconstrução crítica das próprias utopias e dos valores dos quais se organizam” movimentos sociais, pastorais,
partidos, governos populares, etc. “As utopias e os valores dos movimentos
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sociais (e da esquerda, digo eu) não estão e nunca estarão prontos, mas
devem ser permanentemente reconstruídos como resultados de suas lutas e
do avanço do próprio conhecimento”.
O chamado socialismo real acabou, mas não acabou o sonho. A utopia se renova e se recoloca em novos patamares. Assim como a palavra de
Jesus, propondo a construção do Reino de Deus já a partir deste mundo. Se
fôssemos ficar presos às realidades históricas, de como as igrejas, em especial a católica, tentaram concretizar o Reino, nos pouco mais de dois mil anos
de sua pregação, talvez ficássemos fora de qualquer instituição eclesial. Mas
seguimos vivendo a fraternidade, a solidariedade, o amor ao próximo como a
nós mesmos, apesar das estruturas e do poder instalado.
A mística e a espiritualidade
O poder costuma ser duro, senão cruel, avesso ao mistério. Talvez
porque seu mistério seja o próprio exercício do poder, com seus meandros,
suas esquivas, seus roteiros pouco transparentes. Quanto mais obscuro o
poder, mais anti-democrático. Quanto mais transparente, mais aberto ao povo,
tanto mais poder-serviço com democracia.
Um poder disponível à espiritualidade permite que a mística do outro
o atravesse e que se abra para a humanidade, para os pobres, os humilhados
e ofendidos. O poder concentrado é dominador e só permite a religiosidade
da dominação. Então não circula no meio do povo, não permite a celebração,
a não ser a aduladora, e recorre ao tacão para se proteger a si mesmo.
A contemplação e mesmo a oração ajudam a fugir do ativismo pragmático e
contribuem para construir um ambiente de construção do Reino e da
transformação pessoal e coletiva.
O poder realizado para o bem e para a justiça prepara o ágape da
celebração dos povos e da humanidade, sempre profético, sempre
companheira/o, sempre a serviço do irmão e da irmã.
Selvino Heck
Assessor Especial do Presidente da República
Movimento Fé e Política - 13/02/2006.
Organização e Diagramação: Diác. Carlos Alberto dos Santos Dutra
Email: [email protected]
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Profetismo e poder