A ética da psicanálise – seus princípios, meio e direção ao real
Helia Mascarenhas1
Resumo:
A ética da psicanálise aborda as categorias do real, do simbólico e do
imaginário, instrumentos da experiência analítica e do ensino de Lacan. O termo ética
está ligado à obra e a experiência freudiana que dão testemunho de algo novo, geral e
particular. Particular de cada sujeito numa demanda de análise, cuja resposta é não
adulterar seu sentido inconsciente. No avanço da interrogação ética, abordam-se outros
campos do saber: Ciência, Filosofia, Literatura, Religião e Arte e, como conseqüência,
as questões morais, que incidem sobre o discurso analítico. Necessidade de revisão
ética, a partir do próprio discurso do analista, princípio da ação com o desejo, ação de
uma escuta reduzida a puros significantes.
Palavras-chave:
ética. princípio do prazer. princípio de realidade. inconsciente. símbolo. signo. rastro.
pista. verdade. moral. imperativo. supereu. lei. dever. prazer-realidade. pulsão de morte.
falta. Das ding. gozo. real . recalque.
Princípio do prazer
SUJEITO
Princípio de realidade
Seu bem
?
PROCESSO
Pensamento
Percepção
OBJETO
Inconsciente
Conhecido (palavras)
Na Ética da Psicanálise, 1959-1960, Lacan percorre o termo ética, como forma
de abordar as categorias real, simbólico e imaginário, dimensões do ser falante, que o
seu ensino instrumentaliza e, ao mesmo tempo, referenciar esse termo ética à obra e à
experiência freudiana, que salientam algo novo que é, ao mesmo tempo, muito geral e
particular. Esse particular vem articulado à demanda inicial num começo de análise,
cuja resposta impõe-nos não adulterar o seu sentido inconsciente. Ao se falar em ética,
mergulha-se, mesmo sem saber, nos problemas morais e no interesse de sua
investigação e articulação na tentativa de extrair alguma direção, meio e fim para o
discurso psicanalítico.
A experiência moral na análise pode ser resumida na formulação freudiana Wo
Es war, Soll Ich werden. A raiz desse imperativo original pode ser nomeada de
experiência moral e está situada na própria entrada do paciente em análise. Nessa
formulação já há um je que se interroga sobre o que quer isso. Cita Lacan: “Esse (eu) je,
que deve advir lá onde isso estava e que a análise nos ensina a avaliar, não é outra coisa
senão aquilo cuja raiz já temos nesse (eu) que se interroga sobre o que quer”2. No seu
percurso, essa interrogação virá em substituição aos imperativos estranhos, paradoxais e
cruéis sugeridos na sua morbidez. Irá ele ou não se submeter a esse dever que sente
mais estranho em si mesmo, indo mais além, ou vai submeter-se ao imperativo do
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supereu, paradoxal, mórbido, semi-inconsciente e que se revela cada vez mais cruel na
progressão da tarefa analítica? Seu verdadeiro dever não é ir contra esse imperativo?
O dever que interessa ao discurso analítico não é simplesmente o pensamento
que tem sobre esse termo o filósofo cuja ocupação é justificá-lo. O prazer governando a
atividade subjetiva está na idéia do bem que é sua base, razão da justificativa filosófica
em identificar os termos prazer e bem tão distantes entre si. A justificação do que se
apresenta como dever, do que se formula como um sentimento de obrigação, não só
como em um julgamento ou em outro, mas em sua imposição, é o centro de uma
interrogação universal. Exemplo disso é o conflito obsessivo e sua manifestação, em sua
forma imposta como sentimento de obrigação ou a justificação de um dever como tal,
nos apontando o enigma em torno do termo dever já formulado, antes mesmo do pedido
de ajuda que procura numa análise.
Um fato incontestável em Freud, a partir de sua leitura, é sua posição ética
ímpar, onde há um todo deslizamento e uma mudança na questão moral. Sua ética
referencia o homem em relação ao real - o verdadeiro do verdadeiro. O inconsciente
como verdade. Verdade particular que só começa a funcionar a partir da linguagem e de
suas duas posições em relação à sua função: o sujeito que fala e, por não saber o que
fala, dá o testemunho desse outro sujeito o do inconsciente, bem como o da sua divisão.
O que encadeia o homem é o prazer que se encontra do lado do fictício,
estrutura que aponta a verdade. É no interior da oposição entre ficção e realidade que o
movimento da experiência freudiana vem situar-se, e também a de Lacan quando este
diz que toda verdade tem estrutura de ficção.
Que o inconsciente seja estruturado em função do símbolo, que aquilo
que o princípio do prazer faz o homem buscar seja o retorno de um signo,
que o que há de distração naquilo que conduz o homem, sem que ele
saiba, em seu comportamento seja aquilo que lhe dá prazer por ser de
alguma forma uma eufonia, que aquilo que o homem busca e reencontra
seja seu rastro em detrimento da pista – é a importância disso que é
preciso medir no pensamento freudiano, para também conceber qual é
então, a função da realidade3.
Na Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder, 1958, Lacan já tinha
como base de ensino, a posição do analista, sua direção no trabalho, sua ação e seus
efeitos. Pode-se entender esse princípio de poder, em algumas direções como sendo,
maligno (Malan), termo que pode, também, significar “malicioso”, “ardiloso” etc.,
passível de uma direção cega. Porque ao se pretender poder fazer o bem, cujo fim é o
poder, chega-se a um poder que pode não ter fim. Os ideais analíticos podem encontrar
nesse lugar uma ocupação em torno de dar alívio ao sofrimento, de encaminhar ao amor
ideal, da busca da autenticidade, da não dependência, etc. Ao ocupar esse lugar, pode-se
interrogar se não se estará numa posição como supereu. Lugar que é tomado como
modelo numa situação de pretenso exercício de poder. Quando o que está em primeiro
plano na análise, são os efeitos da verdade, extraídos do texto do paciente, nossa fiança,
caminho numa direção de renúncia ao poder.
O seminário ordena-se a partir de introduzir e conceituar das Ding - a Coisa –
objeto inominável – vizinhança do real do gozo, de seus paradoxos e do enigma de sua
relação com a Lei, causa de relevância estranheza, já que a existência dessa Lei é
fundada no Outro. Dentre as inúmeras referências à Coisa, objeto perdido para Freud,
reachado para Lacan, surge o vaso como metáfora, criado a partir de uma matéria,
representando esse objeto o vazio central do real – vazio no centro da construção do
aparelho psíquico feito a partir do nada, início da criação significante. É a partir desse
significante modelado que é o vaso, que o vazio e o pleno entram no mundo. Vaso que
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se representa nihil, como nada, surgindo a partir do nada. Nessa metáfora topológica,
das Ding está no vazio central circunscrevendo o gozo no próprio campo das
representações do sujeito e, no corpo do vaso, em continuidade, o sistema de
representações simbólicas e imaginárias. Essa continuidade do interior com o exterior
mostra que o gozo é ao mesmo tempo o mais estranho e o mais próximo ao sujeito,
porém fora do significante, no real.
No lugar da Coisa o sujeito reencontra objetos substitutivos, da fantasia,
representado por outra coisa. Ação que o conduz a reencontrar as coisas nos signos
sendo só pela via significante que a perda do objeto primordial terá significação
retroativamente.
Nessa interrogação ética, a busca parte não só da experiência analítica, mas
também de investigar outros campos, à procura de ampliar esse conceito, sob o ponto de
vista da: filosofia, literatura, tragédia, arte, religião e ciência, reconhecendo a
onipresença em toda experiência analítica do imperativo moral, até aquilo na outra
extremidade o prazer que, paradoxalmente, podemos observar, em outro grau, no
masoquismo moral que tem como conseqüência a primeira formulação de Lacan, nessa
obra, sobre o gozo: “Minha tese é de que a lei moral, o mandamento moral, a presença
da instância moral, é aquilo por meio do qual, em nossa atividade enquanto estruturada
pelo simbólico, se apresenta o real – o real como tal, o peso do real”4.
O real que não é de imediato acessível, Lacan o põe em relação ao pensamento
de Freud que parte da oposição entre princípio de prazer e princípio de realidade, para
chegar, após várias mudanças e oscilações, ao além do princípio do prazer e sua face
opaca que se chama instinto de morte. Entre os dois princípios está a satisfação a ser
alcançada, mas o princípio de realidade está para mostrar que algo nesse intervalo se
perde para que a destruição não se dê, o que se daria se não houvesse perda. Há que se
perder algo para não morrer e há que se morrer um pouco para viver – limite do prazer,
proporção que sustenta o desejo. Limite e também drama de todo ser vivente. O limite
do entre duas mortes. Algo está além do princípio do prazer. Evidência de que na pulsão
de morte em Freud o gozo já se fazia presente. O prazer e dor no relato do Homem dos
Ratos denunciam esse gozo. Lacan avança no estudo desse campo e demarca-o como
campo lacaniano: o campo do gozo.
Na experiência de satisfação, introduz-se a noção da ação específica. A sua
finalidade é buscar o objeto relacionado ao princípio do prazer, sendo seu pano de fundo
o que aparece como trama e tecido nessa experiência prática. Ação como meio de
reprodução que vai permitir uma primeira aproximação com o que a neurose pode nos
trazer como tentativa de compreender, o seu correlativo, o seu termo regulador, já que
essa ação pode motivar-se de todas as maneiras e de fundamentos tomados ao nível do
pré-consciente. Se o fim da ação específica que visa à experiência de satisfação é de
reproduzir o estado inicial de reencontrar das Ding – o objeto – pode-se esperar
compreender as diversas reações de alguns comportamentos da estrutura histérica,
obsessiva e da paranóia. Esse das Ding original relaciona-se à primeira orientação,
escolha e assento subjetivo, denominado neurosenwahl – a escolha da neurose –
primeiro suco regulador que ajustará daí em diante, toda a função do princípio do
prazer.
Na histérica, conduta que é uma recriação, cujo centro é o objeto das Ding, o
suporte de uma aversão – objeto de insatisfação que a sua experiência como vivência
específica ordena. Não há melhor exemplo para mostrar que no desencadeamento dos
fatos é uma contingência correlativa, não sendo uma descarga, mas uma ação específica
que atesta que toda ação é um meio de reprodução.
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No neurótico obsessivo, por oposição, o objeto que organiza a experiência de
prazer traz prazer demais. Seu comportamento demonstra que ele se regula para evitar o
que está demasiado claro para ele: a meta e o fim de seu desejo e, o motivo desses
desvios, ligados ao modo de funcionamento do princípio do prazer, evitar o excesso e o
prazer em demasia.
Na paranóia, sua posição é não acreditar nesse primeiro estranho ao qual tem de
referir-se. Freud usa o termo – versagen des glaubens – sentido que aponta falha na
crença, na fé. A perspectiva de Lacan é que o principal da paranóia está relacionado à
rejeição de certo apoio na ordem simbólica. Essa atitude radical de descrença guarda um
profundo interesse de investigação, pois mostra a importância disso na relação que o
homem tem com a fé.
Para Lacan, os filósofos da antiguidade, essencialmente Platão e Aristóteles
situavam, na Coisa, o soberano Bem, a suprema harmonia que o ser humano almeja. Os
desejos sexuais são bestiais, desejos que para a psicanálise são primordiais. Esses
filósofos privilegiavam a temperança dos sentidos.
Na forma do amor cortês, Lacan vê a Dama como objeto no lugar da Coisa –
sublimação do desejo – o objeto elevado à dignidade da Coisa. Gozo sublimado,
inversamente, ao gozo de Sade, que ultrapassa todas as barreiras, apontando-nos o
paradoxal do gozo da transgressão, caminho de um desejo, que pode levar à destruição.
O discurso analítico que se articula dentro da sua própria estrutura parte da
perspectiva de juízo final, padrão de revisão ética que tem como princípio a relação da
ação com o desejo nela contido. Até porque a relação da ação com o desejo tem um
caráter trágico e cômico, exemplificado na dimensão trágica do ser-para-a-morte, na
citação do me phynay de Édipo, o não ter nascido – negação idêntica à da entrada do
sujeito no suporte significante, bem como na perspectiva cômica, na criação de um
significante escondido – o falo – oriundo das comédias gregas, a nos demonstrar que o
que provoca nosso riso não é o triunfo da vida, mas sim como se escapa a tudo o que é
posto como barreira constituída pela instância do significante falo, significante dessa
escapada. Nessa possibilidade de revisão ética e de juízo ético, abre-se uma questão
com valor de juízo final:
- Agiste conforme o desejo que te habita?
Questão que só pode ser colocada no discurso analítico e de difícil sustentação,
já que o inconsciente escapa, no entanto é preciso chegar lá, dizia Freud, e seguir com
Lacan, que consegue cercá-lo numa estrutura temporal – momento de julgar e concluir,
testemunho ético duma ação reduzida a puros significantes.
A ética da psicanálise não incide sobre ordenar e arrumar a vida do sujeito
procurando adequá-lo a usufruir os serviços dos bens. Os psicanalistas que procuram
seguir a ética de Lacan ao pé da letra, lidam em sua prática diária com a perda do objeto
e com a falta e vivenciam, através de sua própria experiência, que não há como separar
a falta como um todo e sua ligação com a morbidez e com o atrativo dessa falta. Pode-se
falar de necessidade de punição, mas sua ligação é com a falta mais obscura que brada
por punição. São dois termos freudianos: a falta do assassinato do pai e a falta mais
enigmática a da pulsão de morte, dialética terrível, pois é onde o homem se fundamenta.
Mas o mito do assassinato do pai produz, gera e desencadeia uma transformação de
desejo, mutação da energia do desejo que dá origem ao recalque e sua vinculação com a
lei. Gênese do supereu que Lacan destaca como sendo sua dimensão o registro de
relação do significante com a lei do discurso.
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NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. Psicanalista membro da Escola Letra Freudiana.
2. LACAN, J. O Seminário, Livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar,
1997. p. 16.
3. Idem, p. 22.
4. Idem, p. 31.
5. _________O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988.
6. _________ A Direção do Tratamento e os Princípios do seu Poder. In:______
Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.
7. VALLAS, P. As dimensões do gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 2001.
8. FREUD, S. Projeto Para Uma Psicologia Científica (1950 [1895]). In:______.
Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (Obras
Psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira; v. I).
9. _________ Moisés e o Monoteísmo: três ensaios (1939 [1934-38]). In:______.
Moisés e o monoteísmo. Rio de Janeiro: Imago, 1975. (Obras completas psicológicas
completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira; v. XXIII).
10. LACAN, J. Meu Ensino. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: J.Zahar, 2006.
11. _________ Leitura, “A Direção do Tratamento e os Princípios do seu Poder”,
coordenação: Cláudia Moraes Rego – Letra Freudiana.
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